Camoes Notas

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Análise de sonetos de Camões

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  • COMENTRIO A CAMES

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  • O original foi sujeito a apreciao cientfica por

    Sebastio Tavares Pinho

    Maria Luclia Gonalves Pires

    Jorge Alves Osrio

    Ttulo: Comentrio a Cames, vol. 2coordenao e traduo de Rita Marnoto

    Edies Cotovia, Lda., Lisboa, 2012

    Todos os direitos reservados

    ISBN 978-972-795-329-5

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  • Comentrio a Cames

    vol. 2 Sonetos

    coordenao deRita Marnoto

    Amor, que o gesto humano nalma escreve (Maurizio Perugi),Seguia aquele fogo, que o guiava (Clelia Bettini), Os vestidosElisa revolvia (Clelia Bettini), Amor, co a esperana j perdi-da (Marimilda Rosa Vitali), Cara minha inimiga, em cujamo (Maurizio Perugi)

    Centro Interuniversitriode Estudos Camonianos

    Cotovia

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  • ndice

    Introduo 9

    Sonetos 13 Amor, que o gesto humano nalma escreve (Maurizio Perugi) 15 Seguia aquele fogo, que o guiava (Clelia Bettini) 19 Os vestidos Elisa revolvia (Clelia Bettini) 27 Amor, co a esperana j perdida (Marimilda Rosa Vitali) 35 Cara minha inimiga, em cuja mo (Maurizio Perugi) 39

    Bibliografia 45 1. Edies de referncia da obra de Cames 47 2. Outras edies e comentrios a Cames 47 3. Manuscritos em edio 52 4. Textos literrios de referncia 53 5. Estudos 54

    Ensaios 55 Maurizio Perugi, Achegas ao comentrio do soneto Amor, que o gesto humano nalma escreve 57 Clelia Bettini, De Cartago ao Helesponto. Dois sonetos camonianos de inspirao clssica 75 Marimilda Rosa Vitali, As cadeias da esperana 103 Maurizio Perugi, Achegas ao comentrio do soneto Cara minha inimiga, em cuja mo 129

    Autores 165

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  • Introduo

    Se h autor da literatura portuguesa que tem vindo a suscitar umapreo constante e intenso, ao longo dos tempos, entre Portugal e tan-tas outras latitudes do globo, esse autor Lus de Cames. A sua lrica,escrita h mais de cinco sculos, pedra basilar de um cnone de in-cidncia nacional e mundial, no qual sucessivas geraes de leitoresda mais variada ndole se tm vindo a reconhecer.

    Sob o ponto de vista literrio, esse estatuto assenta numa recriaosem par do cdigo petrarquista e tambm do neoplatonismo dos s-culos XV e XVI, o que implica quer uma forte renovao de toda aanterior tradio peninsular luz de um novo contexto europeu, queruma singular e genial declinao desses modelos. A partir da, o rastode Cames estende-se ao longo de uma linha ininterrupta. Nos nossosdias, o lrico continua a falar a linguagem das novas geraes, comobem o mostra a facilidade com que os seus versos passam dos manuaisescolares para os palcos da msica rock, e continua a ser fonte pri-mordial de motivao literria, se um dos maiores poetas portuguesesda actualidade, Vasco Graa Moura, confessa que Cames uma es-pcie de sombra tutelar que lhe ocorre naturalmente e o faz res-pirar melhor na sua lngua e na sua escrita.

    Um arco temporal to alargado acumula interpretaes e leiturasque so inigualveis lies de erudio ou at verdadeiros rasgos degnio, a par com outras, to imprecisas e aleatrias, que chegam a re-dundar em autnticos atentados ao nome do poeta. Mas um autor ca-nnico vive no tempo, em continuidade, e resiste s suas usurasporque, da mesma feita, se sobrepe ao tempo. Para utilizar a imagemde Italo Calvino, persiste sempre como rudo de fundo, capaz de res-ponder s perguntas que cada poca e cada grupo de leitores lhe di-rige.

    O comentrio lrica de Cames levado a cabo pelo Centro In-teruniversitrio de Estudos Camonianos feito por um grupo de ex-perientes crticos, portugueses e estrangeiros, que, ao estudar a obrado poeta numa dimenso verdadeiramente europeia, mostra bem a

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  • imensido das fronteiras literrias por entre as quais o poeta se move.Dirige-se a um pblico constitudo por estudantes de nvel avanadoe por estudiosos de Cames, situando-se numa plataforma de conver-gncia. Nesse sentido, procede por estratos, entre uma primeira abor-dagem mais simples das matrias e nveis interpretativos mais com-plexos.

    O comentrio um aparato de ilustraes verbais, destinado atornar mais compreensvel um texto, o qual ganha sentido exclusiva-mente na relao que mantm com esse texto. Tomado por si, no temvalor de texto, porquanto desprovido de autonomia comunicativa. Ins-creve-se entre emissor e receptor, como um decriptador da mensagem,e a sua funo semelhante que se costuma designar como metalin-gustica, mas fica para alm dos aspectos lingusticos, pelo que sercaso de dizer metacomunicativa. nestes termos que Cesare Segre odefine, logo no incio do seu clebre ensaio Per una definizione delcommento ai testi. O comentrio no tem autonomia, dado que expli-cita um outro texto, mas ao faz-lo tambm produtor de um sentido,que correlato ao momento em que escrito e ao pblico a que se di-rige.

    Nos tempos que correm, so cada vez mais fortes os sinais da ne-cessidade de uma renovada ateno letra do texto camoniano, e nesse plano que o comentrio assume uma funo basilar. Como dizAguiar e Silva, na introduo ao seu livro de ensaios sobre Cames in-titulado A lira dourada e a tuba canora, o suporte da materialidade decada texto camoniano e a moldura constituda pelos outros textos queo envolvem so os grandes fundamentos da sua interpretao herme-nutica, pelo que, quando no lhes dada primazia, a actividade crticafacilmente se esvai numa espuma efmera. Essa atitude metodolgicacentrada sobre a substncia do texto camoniano fundamental para oseu mais profundo conhecimento, em todos os planos, e o comentrio,enquanto ilustrao verbal, ser uma das melhores formas de a explo-rar. Uma forma concreta e real, que so precisamente os termos atravsdos quais Walter Benjamin caracteriza o comentrio.

    tomado como texto de referncia o volume das Rimas prepa-rado por Costa Pimpo, resultado de um trabalho que saiu pela pri-meira vez em 1944 e que encontrou a sua ltima forma na edio de1973, sucessivamente reeditada. Corrigem-se lapsos ou gralhas edito-

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  • riais pontualmente, conforme devidamente assinalado, e quando ne-cessrio actualiza-se a grafia de acordo com as normas em vigor.

    O comentrio articula-se em cinco pontos, de modo a organizarde forma clara e metdica os vrios aspectos tratados, mas deixando acada crtico um espao prprio para a modulao desses itens, em cor-relao com a especificidade de cada poema.

    O ponto 1 visa um quadro geral de informaes e questes rela-tivas composio. Compreende uma sntese do seu contedo globale uma apresentao da sua estrutura, com eventual explicitao de ca-sos, episdios, figuras ou fontes que nela ocupam um lugar central, ereferncia a comentrios e interpretaes precedentes de particularimpacto na sua leitura.

    O ponto 2 incide sobre aspectos filolgicos ligados materiali-dade do texto e sua transmisso, com indicao remissiva das fontesprimordiais, impressas e manuscritas, bem como dos trabalhos onde feito o registo de variantes, e indicao do texto de base escolhido porCosta Pimpo (e eventualmente por outros editores), apresentandoum balano crtico acerca desse conjunto de questes.

    Por sua vez, o ponto 3 contempla assuntos relacionados com aforma mtrica da composio, o seu esquema e a sua estruturao.

    O ponto 4 organiza-se em torno do comentrio pontual de pala-vras, sintagmas ou versos do poema. No caso de composies maislongas (odes, canes, etc.), faz-se uma chamada para toda a estrofe,com a sua parfrase, ao que se seguir o comentrio pontual dos seuselementos.

    No ponto 5, apresentada uma bibliografia passiva especfica so-bre o poema, que no contempla comentrios ou estudos gerais. Numaseco final, rene-se o elenco da bibliografia citada pelos vrios co-mentadores, que funcional a cada grupo de composies.

    Um comentrio trabalha elementos que, num texto (neste caso,num poema), esto dispostos sintagmaticamente, isto , segue o fra-seado desse texto pela sua ordem material. certo que pode reenviarpara outros textos e para passos da obra do autor, numa dimenso pa-radigmtica, de sistematizao. Mas, de uma forma ou de outra, o pri-meiro aspecto tende a sobrepor-se ao segundo. Diferentemente, o en-saio crtico tende a valorizar a dimenso paradigmtica, ao descortinar,

    INTRODUO

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  • pr em relevo, organizar e sistematizar elementos do texto que o co-mentrio explicita.

    Uma segunda seco de cada volume rene ensaios que desen-volvem e aprofundam assuntos relacionados com cada uma das com-posies objecto de comentrio, mas no enquadrveis na sua dimen-so breve, mostrando bem, na variedade de assuntos e abordagens, ainesgotvel riqueza da obra lrica de Cames.

    Rita MarnotoCoordenadora da Quarta Linha de Investigao

    do Centro Interuniversitrio de Estudos Camonianos

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  • Sonetos

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  • Amor, que o gesto humano nalma escreve, vivas fascas me mostrou um dia, donde um puro cristal se derretia4 por entre vivas rosas e alva neve.

    A vista, que em si mesma no se atreve, por se certificar do que ali via, foi convertida em fonte, que fazia8 a dor ao sofrimento doce e leve.

    Jura Amor que brandura de vontade causa o primeiro efeito; o pensamento12 endoudece, se cuida que verdade.

    Olhai como Amor gera num momento, de lgrimas de honesta piedade14 lgrimas de imortal contentamento. (Rimas, Soneto 42, p. 137)

    1. Com recurso explorao de alguns dos esteretipos prpriosdo cdigo petrarquista, o soneto, apesar da sua aparncia enigmtica,no faz mais do que descrever uma cena bem simples, contada peloeu lrico enquanto amador, ou seja, aconteceu que um dia viu a mulheramada no acto de chorar, pelo que, por sua vez, ele prprio subitamentecomeou a chorar. Logo aps esta descrio, que ocupa as duas qua-dras, no primeiro terceto o eu lrico induzido pelo prprio sentimentoamoroso a interpretar o pranto da mulher como uma manifestao debenevolncia para com ele prprio. No tem, contudo, a coragem deacreditar nisso, porque se se provasse ser verdade, correria o risco deenloquecer. No ltimo terceto, o autor, dissociando-se do eu lrico,chama a ateno do leitor (Olhai) para o poder sobrenatural de Amor,na medida em que capaz de gerar lgrimas a partir de lgrimas. Noprimeiro caso, o pranto apenas sinal de compaixo. No segundo caso, sinal de uma felicidade no menos imortal do que ilusria. Este soneto exemplo de uma atitude tipicamente maneirista.Primeiro, o autor descreve um espectculo to comum, como o de

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  • uma mulher a desfazer-se em lgrimas, em termos singularmente enig-mticos. A cada detalhe fisionmico substitui-se o seu equivalente me-tafrico, numa acumulao que s um leitor bem treinado na lingua-gem petrarquista est em condies de decifrar. Depois, no final dosoneto, o prprio autor que assinala, com evidente complacncia, asingularidade do fenmeno descrito. Esta resulta, em boa parte, daexagerada importncia de alguns detalhes o que, tanto na poesiacomo na pintura, um trao eminentemente tpico do Maneirismo.

    Alm disso como, alis, foi oportunamente sugerido por Fariae Sousa , um soneto como este indcio do grande xito que tevena poca a literatura dos emblemas, iniciada por Andrea Alciato. O seulivro de Emblemata saiu no ano de 1534, em Paris. Um emblema constitudo por uma imagem visual, por cima da qual se l uma devisa,que geralmente uma frase curta, e por baixo da qual h um pequenotexto explicativo. A moda dos emblemas difundiu-se, antes de mais,na literatura francesa, e logo se alargou Pennsula Ibrica. Inserindo--se dentro desta corrente, o nosso soneto pode tambm ser analisado,portanto, como uma glosa a colocar sob um emblema virtual. No casoem apreo, tratar-se-ia muito provavelmente de um alambique.

    2. O soneto conta como testemunhos com o Manuscrito apenso ecom a segunda edio das Rimas (1598: 3), onde foi editado pela pri-meira vez. excludo da edio crtica de Leodegrio de AzevedoFilho, que o integra no corpus possibile: quando o duplo testemunho[quinhentista] incontestado vier apenas de MA [Manuscrito apenso] eRI [Rimas, 1598], sem que o texto aparea em qualquer outro manus-crito da poca, ainda que sem indicao de autoria [...], embora o so-neto possa ser de Cames, por medida de precauo, no dever aindaintegrar o corpus irredutvel (Lrica de Cames 1, 1985: 255).

    3. Soneto com esquema ABBA ABBA CDC DCD.

    4. 1 Amor, que o gesto humano nalma escreve Amor, que desenha eimprime na alma a imagem do rosto humano. Assim, segundo umateoria que, remontando a Aristteles, foi detalhadamente desenvolvidapor Marsilio Ficino, a memria guarda a imagem que viu uma vez,sendo capaz, a partir da, de a evocar. Neste verso, onde ecoa muito

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  • fielmente um outro incipit de um soneto de Garcilaso de la Vega, oautor tambm alude terminologia prpria dos sintomas de amor.

    3-4 donde um puro cristal ... alva neve Em conformidade com umconjunto de esteretipos codificados pela linguagem petrarquista, asfascas so os olhos da mulher amada, as rosas e a neve aludem s coresda sua face e o cristal representa as lgrimas. Em suma, o espectculoque Amor aqui mostra ao seu sequaz, uma mulher no acto de chorar.

    5 A vista, que em si mesma no se atreve Ao p da letra: o eu lricono se atreve a olhar-se a si prprio. Para entender este verso, que omais enigmtico da descrio, preciso lembrar que, na doutrina neo-platnica, o amador se transforma no ser amado, com ele se identifi-cando. Portanto, contemplar a mulher amada a mesma coisa quecontemplar-se a si prprio, o que, alm de ser psicologicamente difcil,comporta o risco de cegueira, porque, de acordo com o cdigo petrar-quista, a mulher amada identificada com o sol.

    6-8 por se certificar do que ali via, / ... doce e leve Apesar de nor-malmente no se atrever a olhar para a mulher amada, desta vez o ama-dor ousa faz-lo, e no momento em que se d conta que a mulher esta chorar, os seus prprios olhos convertem-se em fontes, sofrendo umametamorfose que j estava em Petrarca. Isto , tambm ele comea derepente a chorar, o que lhe serve de desabafo, pois as lgrimas aliviama dor, tornando-a mais suportvel.

    9-11 Jura Amor ... verdade Neste ponto, o eu lrico pergunta-sequal seria a causa do pranto da mulher amada. Conforme lhe sugere oseu prprio sentimento de amador, as lgrimas seriam sinal da bene-volncia da mulher para com ele. Entretanto, caso o amador acreditenessa explicao, arrisca-se a enlouquecer por excesso de felicidade( o imortal contentamento do v. 14).

    10 o primeiro efeito Refere-se s lgrimas da mulher, que prece-dem as do amador.

    13 de lgrimas de honesta piedade Ao chorar, a mulher teria mani-festado a sua prpria compaixo, na medida em que o seu recato lhopermitia.

    14 imortal Adjectivo que remete para o estatuto que cabe a Amorna doutrina neoplatnica.

    Maurizio Perugi

    AMOR, QUE O GESTO HUMANO NALMA ESCREVE

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  • Seguia aquele fogo, que o guiava, Leandro, contra o mar e contra o vento; as foras lhe faltavam j e o alento,4 Amor lhas refazia e renovava.

    Despois que viu que a alma lhe faltava, no esmorece; mas, no pensamento, (que a lngua j no pode) seu intento8 ao mar que lho cumprisse, encomendava.

    mar (dezia o moo s consigo), j te no peo a vida; s queria 11 que a de Hero me salves; no me veja...

    Este meu corpo morto, l o desvia daquela torre. S-me nisto amigo, 14 pois no meu maior bem me houveste enveja! (Rimas, Soneto 61, p. 147)

    1. O soneto retoma a clebre histria de Hero e Leandro, um temada antiguidade clssica. A virgem Hero, sacerdotisa de Afrodite na ci-dade de Sesto, e o jovem Leandro encontram-se por ocasio das cele-braes em honra da deusa e enamoram-se de imediato. Todavia, oseu amor um amor impossvel. Hero vive fechada numa torre ao pdo Helesponto (o actual estreito de Dardanelos, que separa o MarEgeu do Mar de Mrmara, que fica a sul de Istambul). vigiada, diae noite, por uma ama, ao passo que Leandro vive do outro lado do es-treito, na cidade de Abidos. Mas a paixo que os liga to intensa queo leva a atravessar o estreito a nado, todas as noites, guiado pela luz deum facho que Hero acende para lhe servir de guia. Os dois amantesficam juntos at ao nascer do dia, que quando Leandro faz a viagemde regresso, para voltar a Abidos. Os meses passam, e comea o mautempo, com ventos fortes, vagas cada vez mais altas. Uma noite, en-quanto o jovem atravessa o brao de mar que o afasta da amada, ovento apaga a tocha que lhe servia de guia, e ele, desorientado, acabapor morrer, submerso pela ondas. Hero, sem o ver chegar, pensa quefoi abandonada, mas de manh encontra a derradeira prova do amor

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  • de Leandro, quando o mar faz dar costa o corpo do seu amado. En-to, invadida pelo desespero e deita-se da torre abaixo, aquela torreque tinha sido templo e priso do seu amor, assim se unindo ao amado,morto nas vagas do Helesponto.

    No soneto Seguia aquele fogo, que o guiava, Cames capta o mo-mento em que Leandro se d conta de no estar em condies de levara bom termo a travessia e faz um pedido quele mar que, em vida,tinha separado os amantes, causando-lhes tanta dor. Suplica-lhe queseja clemente, no momento em que a morte se aproxima, e que poupeHero, sem deixar que veja o seu corpo desfigurado pelas guas. A or-ganizao estrutural do soneto semelhante de Os vestidos Elisa re-volvia, cuja histria tambm tirada da antiguidade clssica. Nas qua-dras, apresenta-se o tema da composio, ao passo que os dois tercetosso em discurso directo. Em Seguia aquele fogo que o guiava, nos lti-mos seis versos fica contida a invocao de Leandro ao mar, segundoum processo que a retrica designa como sermocinatio, e que consisteem pr uma personagem a falar na primeira pessoa, com o discursoque lhe prprio.

    O tema foi tratado por muitos autores da antiguidade, com des-taque para Ovdio nas Herides, Marcial no XXV epigrama do Liberde Spectaculis e Museu Gramtico (poeta do sculo V ou VI que es-crevia em grego). Teve grande fortuna nas vrias literaturas da Penn-sula Ibrica (Green 1948), com o clebre soneto de Garcilaso de laVega Pasando el Mar Leandro el animoso (29: 126) e o longo poemaHero y Leandro do poeta catalo Juan Boscn, que seguiu Museu Gra-mtico e tambm, sem qualquer dvida, as reelaboraes italianas dahistria (para uma resenha da fortuna do tema de Hero e Leandro,em mbito ibrico, ver Menndez y Pelayo, que dedicou a Boscn o Xtomo da sua Antologa de poetas lricos castellanos, 1945: 292-332 emespecial). Remonta a Bernardo Tasso a primeira traduo para lnguavulgar do poema de Museu Gramtico, Ero e Leandro. Elaborou-a apartir da traduo de grego para latim que dele foi publicada em Ve-neza, por Aldo Manuzio, em 1494-1495. Um outro importante prece-dente, quer de Boscn, quer de Cames, sem dvida a Favola di Eroe Leandro de Bernardo Tasso, publicada em 1537. importante re-cordar que j Faria e Sousa apontava esses autores como provveisfontes de inspirao de Cames (Rimas varias I 1685: 295). A intensa

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  • circulao do tema, ao longo de todo o sculo XVI, na Europa, bemilustrada pelo poema Hero and Leander, publicado pelo dramaturgo epoeta ingls Christopher Marlowe em 1598, o que quer dizer que posterior ao soneto camoniano. Tambm Marlowe, semelhana deBernardo Tasso e de Boscn, se inspira no texto de Museu, como o in-dicam, desde logo, quer a extenso do poema, que se adapta muitobem narrao de uma histria, quer outras referncias textuais.

    A reelaborao camoniana da histria de Hero e Leandro segue,porm, caminhos prprios, no seio dessa vasta tradio. Cames tirapartido de obras e autores que o precederam, mas desenvolve o temade forma autnoma (ver ensaio).

    O soneto apresenta-se ao leitor como uma fotografia, em que oolhar e a objectiva do poeta se concentram num momento preciso dahistria, para o contar no breve espao de 14 versos. Trata-se de uminstante carregado de pathos, que incide sobre as ltimas reflexes doamante antes de sucumbir ao prprio destino trgico.

    Uma nota: a 3 de Maio de 1810, um dos poetas mais temerriosdo sculo XIX, Byron, venceu a nado o Helesponto, que j ento sechamava estreito de Dardanelos, para provar que a travessia de Lean-dro era, de facto, possvel.

    2. Leodegrio de Azevedo e Filho no inclui Seguia aquele fogo queo guiava no corpus mnimo formado pelas composies seguramenteescritas por Cames. Justifica-o pelo facto de o soneto ser unicamentetransmitido pelo Manuscrito Juromenha, sem indicao de autoria (L-rica de Cames 1, 1985: 291). Contudo, no existe nenhuma prova quea contrarie.

    No que diz respeito tradio impressa, no includo nas duasprimeiras edies das Rimas, de 1595 e 1598.

    Costa Pimpo segue a lio textual de Domingos Fernandes (Ri-mas 1616), diferena dos editores precedentes, que tendiam a seguira de Faria e Sousa. A verso de Faria e Sousa (Rimas varias I 1685:294-295) difere em alguns versos, mas sem alterar significativamente ainterpretao do texto.

    Para um registo completo das variantes textuais, ver a edio deCleonice Berardinelli (Sonetos 1980: 191).

    SEGUIA AQUELE FOGO, QUE O GUIAVA

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  • 3. Soneto, com esquema ABBA ABBA CDE DCE. As quadras tmrima interpolada, que acompanha o seu pendor reflexivo. Ao longode todo o soneto, sonoridades nasais alternam com sons fricativos, amimar o angustiante confronto entre a doura de um amor que desco-nhece limites e a dureza dos obstculos que o contrariam, acabandopor lhe pr fim.

    4. 1-2 Seguia aquele fogo, que o guiava, / Leandro Leandro seguiaaquele fogo que o guiava. A inverso da ordem dos elementos da frase,ou hiprbato, frequente ao longo do texto do soneto, a mimar o tu-multo dos elementos da natureza e a angstia do momento que fo-cado. O verbo colocado no incio do verso, ao passo que o sujeitosurge depois, s no incio do verso seguinte. Cria um efeito de suspen-se, que mantm o leitor na expectativa.

    1 fogoA tocha que Hero todas as noites acende na torre, do outrolado do estreito de Dardanelos, para que Leandro no se perca na tra-vessia a nado. um elemento constante, na tradio antiga desta his-tria.

    2 Leandro, contra o mar e contra o ventoO nome do protagonista colocado em incio de verso. Anfora da preposio contra, que re-petida duas vezes, seguida de dois elementos atmosfricos, mar e vento.Este segmento do verso ganha, assim, um ritmo mais lento. Ilustra asituao dramtica de Leandro que enfrenta as contrariedades da tra-vessia, prestes a afogar-se.

    3 as foras lhe faltavam j e o alento Aliterao de [f] em incio depalavra e da vogal [a], a sugerir a repetio de uma aco, neste casoo esforo de Leandro para se manter tona da gua, a todo o custo.Note-se a simetria dos dois complementos directos em relao ao ver-bo, evidenciando o cansao de Leandro, que tem de enfrentar a suaprpria fadiga. Tambm a rima vento (v. 2) / alento (v. 3) transmite umforte sentido de dificuldade. De facto, Leandro deve lutar contra ovento e por isso fica ofegante. Neste caso, a palavra alento pode-se re-ferir no s sua fora fsica, como tambm sua fora interior e aoseu estado de esprito, que perturbado pela conscincia de que noconsegue fazer frente s dificuldades da travessia.

    4 Amor lhas refazia e renovava Personificao de amor, que dnimo a Leandro. Paralelismo na formao das palavras re-fazia e re-

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  • novava, ambas com o prefixo re-, que tem significado iterativo e in-tensivo. O seu uso evoca, depois da falta de vigor (v. 3), a repetida re-cuperao das energias, graas fora do amor que tem dentro de si.

    H um paralelismo entre os vv. 3 e 4 que d lugar a um jogo deoposies. No v. 3, temos dois substantivos que indicam o que vai fal-tando a Leandro, as foras e o alento. No v. 4, dois verbos que indicama recuperao das energias, refazia e renovava.

    A fonte um passo de Ovdio, nas Herides, et subito lassis viresrediere lacertis, / visaque quam fuerat mollior unda mihi (E de re-pente as foras voltaram aos meus braos esgotados / e as ondas pare-ceram-me mais brandas do que antes, Her. 18, 87-88). Cames expri-me a ideia de forma mais sinttica e com uma alta capacidade desugesto, tirando partido dos efeitos retricos apresentados.

    5 Despois que via que a alma lhe faltava A repetio de que evocao crescendo de dificuldades e a percepo ntida que Leandro possuida prpria situao em que se encontra, claramente expressa pelo ver-bo ver. O advrbio de tempo despois forma arcaica por depois.

    5 alma No sentido de nimo, coragem, fora.6 no esmorece Segmento forte do verso, seguido por uma pausa

    marcada por vrgula que o torna ainda mais enftico. 6-8 mas, no pensamento encomendava mas encomendava ao

    mar que cumprisse o seu intento, no pensamento porque a lngua jno o conseguia.

    6mas O segmento sucessivo introduzido por um mas adver-sativo, que prenuncia o trgico fim de Leandro. Apesar de no perdera coragem, sente que o seu fim est iminente. A rima pensamento (v.6) / intento (v. 7), emparelhada e com aliterao em nasal, semelhanade vento (v. 2) / alento (v. 3), confere um ritmo lento a toda a quadra.Alm disso, institui-se uma oposio entre capacidades fsicas e inte-lectivas. O corpo nada mais pode fazer, porque as suas energias estoesgotadas. Diferentemente, a fora do pensamento afirma-se.

    7 (que a lngua j no pode) seu intento Explicita-se uma situaode total impotncia. Neste momento de aflio, Leandro apenas podepensar, no consegue sequer falar, sob risco de logo se afogar.

    8 encomendava Resta-lhe a splica ao mar, encomendava, com in-verso por hiprbato, em final de verso e a rematar as quadras.

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  • 9 mar Inicia-se a apstrofe ao mar, segundo o expedienteretrico da sermocinatio. Leandro pede ao mar que poupe a vida deHero, fazendo com que no veja o seu corpo desgastado pelas guas,o que a poderia levar a querer-se suicidar. Aliterao das vogais poste-riores [u], [o] (moo, consigo) e [ ] (, s), a evocar uma atmosferacarregada, que prepara o leitor para a tragdia iminente.

    Ao longo dos tercetos, sucedem-se segmentos breves, separadospor pausas, a mimar as dificuldades em que Leandro se encontra, en-quanto faz a sua derradeira prece ao mar.

    9 (dezia o moo s consigo)Orao intercalada, que mostra comoLeandro estava entregue a si prprio, no meio do mar revolto.

    10 j te no peo a vidaO advrbio j, em posio inicial, sublinhao desalento de Leandro, que tem a sua morte por certa, mas no deixade pensar em Hero e em como a poder poupar ao sofrimento. Hi-prbato, com inverso do pronome te, que complemento indirecto.

    10-11 s queria / que a de Hero me salves. s queria que me salvesa [vida] de Hero, com hiprbato. Note-se tambm o encavalgamentoentre os dois versos (processo potico que consiste em colocar no versoseguinte uma ou mais palavras que completam o sentido do verso an-terior).

    11 no me veja Pela primeira vez, Hero o sujeito de uma frase,que tem o verbo na forma negativa, num sintagma-chave do pedidode Leandro ao mar. Exprime a vontade absoluta de proteco, porparte do seu amante. importante sublinhar um elemento de origina-lidade do texto camoniano em relao s suas fontes mais prximas.Se em Museu o jovem no se preocupa, de forma alguma, com o des-tino da amada, em Ovdio Leandro chega mesmo a desejar que elaveja o seu cadver para que entenda que foi causa da sua morte ( He-rides 18, 197-200). Ora, o Leandro de Cames manifesta uma ternurae preocupao com Hero at ao ltimo momento.

    12 Este meu corpo morto, l o desvia Nova aliterao de vogaisposteriores que, juntamente com a rima interna corpo / morto, contri-bui para criar uma atmosfera lgubre. O leitor encontra-se peranteum paradoxo enftico, reforado pelo adjectivo demonstrativo decti-co, este. Leandro refere-se a este meu corpo morto, mas est com vida.Note-se tambm o uso do verbo desvia, em anttese com o seu contr-rio, guiava, logo no incio do soneto (v. 1).

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  • 12-13 l o desvia / daquela torre Encavalgamento. Leandro expli-cita o que j tinha pedido numa formulao mais geral.

    13 S-me nisto amigo A invocao ao mar exemplo de captatiobenevolentiae, ou seja, procura da benevolncia, recurso estilstico eretrico usado para captar a ateno e a boa vontade do leitor. Leandropede ao mar, prestes a afog-lo, que seja seu amigo, para o levar a fazero que tanto deseja.

    14 pois no meu maior bem me houveste enveja Uso, em posiode final de verso e a fechar o soneto, de um substantivo muito forte,sob o ponto de vista semntico, enveja, em oposio com amigo (v. 13;um amigo no tem inveja) e com o verbo veja (v. 8).O substantivo en-veja (por inveja) deriva do verbo envejar, que vem do latim in-video,ou seja olhar mal, e portanto dar m sorte (da o mau-olhado). A rimaentre me veja (v. 11) e enveja (v. 14) ampliada, e as palavras em posi-o rimtica esto ligadas por paronomsia (figura que faz a alteraode uma parte do corpo da palavra) e por efeitos sonoros, com um somnasal a preceder a tnica, me (v. 11) e en- (v. 14).

    Clelia Bettini

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  • Os vestidos Elisa revolvia que lhEneias deixara por memria; doces despojos da passada glria,4 doces, quando seu Fado o consentia.

    Entreles a fermosa espada via que instrumento foi da triste histria e, como quem de si tinha a vitria,8 falando s com ela, assi dezia:

    Fermosa e nova espada, se ficaste s para executares os enganos 11 de quem te quis deixar, em minha vida,

    sabe que tu comigo tenganaste; que, para me tirar de tantos danos, 14 sobeja-me a tristeza da partida. (Rimas, Soneto 64, p. 148)

    1. Tema do soneto a trgica concluso da histria de amor entreDido, Rainha de Cartago, e o heri Eneias, vindo de Tria, tal como contada por Virglio no IV canto da Eneida. Em fuga de uma Triadestruda pelos gregos, depois de ter salvo o pai Anquises e o filho As-cnio, Eneias faz uma longa viagem por mar. O fado e os deuses reser-vam-lhe o destino de desembarcar nas costas de Itlia, onde deverdar origem famlia imperial romana (gens Iulia) e, por consequncia, grandeza de Roma. Primeira etapa da sua longa peregrinao so ascostas africanas de Cartago, onde surge o potente reino fencio gover-nado pela rainha Dido. Com a ajuda da deusa Vnus (me de Eneias)e de Juno, nume tutelar das ligaes amorosas, Dido e Eneias enamo-ram-se perdidamente, apesar de a Rainha ainda estar de luto pelo ma-rido, Siqueu, ao qual tinha jurado ser sempre fiel. Todavia, para os an-tigos gregos e romanos, nenhum ser humano se podia livrar da vontadedo fado e dos deuses. Depois de alguns meses de intensa paixo, Jpi-ter envia o seu mensageiro, Mercrio, para conversar com Eneias epara lhe recordar a gloriosa misso que lhe tinha sido confiada. O heri

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  • troiano v-se, pois, forado a abandonar a amada, repentinamente,mas tem ainda tempo para uma dolorosssima despedida, magistral-mente descrita por Virglio. As embarcaes troianas deixam o portode Cartago no escuro da noite, e Dido, quando acorda, ao encontrar apraia deserta, cai no maior desespero. Pede irm que empilhe, numapira pronta a arder, todos os objectos pertencentes a Eneias, sobre osquais coloca o leito nupcial, smbolo da sua unio, bem como as armase uma figura em cera de Eneias, na inteno de esquecer para sempreo amante traidor. Ao ver as armas de Eneias, porm, decide matar-se,incapaz de viver sem aquele homem que amou de forma to absolutae pelo qual trau a memria do falecido marido e a sua prpria honra. com uma espada banhada em sangue que se encerra uma das maisbelas pginas da literatura mundial. Cames escolhe a forma consagrada do soneto para contar o tr-gico desfecho da histria de Dido e Eneias, ou seja, o momento emque a Rainha decide matar-se com a espada do amado. Nas duas pri-meiras quadras, o poeta introduz a cena, descrevendo-a, abandonada,que revolve as roupas deixadas por Eneias em Cartago antes de partir.Entre elas, encontra a espada do heri, instrumento da tragdia queest prestes a dar-se. Os dois tercetos, por sua vez, relatam em discursodirecto a sua invocao a essa mesma espada, segundo o procedimentoda sermocinatio, atravs do qual o poeta coloca o seu discurso na bocadessa personagem. As duas quadras so a parte do texto que mais directamente re-mete para a fonte prxima do poema, o canto IV da Eneida de Virglio,como se fosse uma homenagem que o poeta lhe presta, ao passo que,nos tercetos, Cames d largas sua inveno potica. Da Eneida, o mais importante poema pico latino, Cames tinhaum profundo conhecimento, como o mostram algumas cenas e as fre-quentes citaes que dele faz em Os Lusadas. Enquanto peregrinaomartima (peregrinatio maritima), a epopeia de Vasco da Gama encon-tra na Eneida, mais do que nos poemas homricos, um dos seus gran-des precedentes e uma referncia densa de autoridade literria. Ca-mes escolhe, porm, a forma do soneto para tratar o tema do amorentre a rainha de Cartago e o heri romano, na senda da tradio po-tica italiana e do Renascentismo peninsular.

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  • 2. O soneto Os vestidos Elisa revolvia considerado de segura atri-buio a Cames pelos grandes editores da sua obra, com testemunhosna tradio manuscrita e impressa. Os manuscritos so o Cancioneirode Cristvo Borges (19) e o Cancioneiro de Lus Franco (230). Quantoaos impressos, trata-se da segunda edio das Rimas, de 1598 (25), eda edio de Faria e Sousa (Rimas varias I 1685: 96). Leodegrio de Azevedo Filho toma como testemunho de base otexto do Cancioneiro de Cristvo Borges, manuscrito de grande im-portncia, pois foi compilado em Lisboa quando o poeta ainda estavavivo (1578). O manuscrito no difere, se no por algumas oscilaesgrficas, da verso impressa que saiu na segunda edio das Rimas.Essa lio foi a adoptada, com actualizao da grafia, na edio deCosta Pimpo. Para um registo completo das variantes manuscritas e impressas,ver as edies de Askins, (Cancioneiro de Cristovo Borges: 230), Be-rardinelli (Sonetos 1980: 154) e Azevedo Filho ( Lrica de Cames 2 II1989: 575-588).

    3. Soneto com esquema rimtico ABBA ABBA CDE CDE. Os ver-sos tm acento secundrio na 6. e na 10. slabas, excepo do ter-ceiro, que acentuado na 8. e na 10. slabas. Nas duas quadras, haliterao em final de verso, com o som voclico -ia nas rimas A e B.As vogais i e a so retomadas na rima E dos tercetos, vida / partida. Note-se, alm disso, o valor semntico das rimas. A rima A dasquadras formada por imperfeitos da segunda e da terceira conjuga-es verbais. Enquadram, temporalmente, a descrio de uma cenaque atinge o seu ponto alto nos tercetos. No que diz respeito rima B,os substantivos em posio de final de verso so palavras-base paracompreender toda a histria de Dido e Eneias, memria / glria e his-tria / vitria.

    4. 1 ElisaO mesmo que Elissa. Elisa era o nome pnico equivalenteao nome africano Dido e aparece duas vezes no canto IV na Eneida,em ambos os casos em posio de final de verso e na declinao latinade genitivo, Elissae (de Elisa). Tambm Ovdio, na Heride dedicada Rainha de Cartago, utiliza o nome Elissa. Segundo algumas interpre-taes, Elisa seria o nome de Dido na sua relao com o defunto ma-

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  • rido, Siqueu, ao passo que o nome africano seria utilizado para a defi-nir na sua relao com Eneias. A escolha camoniana de Elisa, em vezde um mais comum Dido, pode ter sido determinada por razes m-trico-estilsticas (Elisa um trisslabo, ao passo que Dido um bissla-bo) ou por uma escolha feita com base no prprio conhecimento, quepossua, do significado dos dois nomes no mbito da tradio latina. 1 Os vestidos Elisa revolvia Aliterao do som [v] no primeiroverso, a evocar o roagar das roupas que Elisa revolve, como quemrev o grande amor perdido, talvez na esperana de o recuperar. A pa-lavra vestidos (palavra arcaica, que est por vestes) retoma etimologi-camente as Iliacas vestes citadas por Virglio (Aen. IV 648). 2 que lhEneias deixara por memria Que Eneias lhe tinha deixa-do para que o recordasse. Verso fundamental para a compreenso dosoneto. O acto de crueldade de Eneias perante Elisa reside, precisa-mente, em lhe ter deixado objectos que lho trazem constantemente memria, atormentando-a. A antecipao do pronome de complemen-to indirecto lh (lhe), referido a Elisa, gera uma inverso ou anstrofe,que desloca a nfase para a amante abandonada. 3 doces despojos Os despojos so aquilo de que os vencedores seapropriam, no final de uma batalha. Neste caso, a palavra usada emsentido figurado, com referncia ao que Eneias deixou, ao abandonarDido de uma forma to cruel. Corresponde expresso latina dulcesexuviae (Aen. IV 651). O portugus doce provm directamente do la-tim dulcis, ao passo que despojos decalca a construo de exuviae, apartir de uma raiz latina que lhe afim, do ponto de vista semntico,mas que em portugus no teve xito. O termo exuviae, que s se usano plural, provm do verbo exuo (-ire), privar de, tirar, subtrair, esignifica literalmente o que foi tirado, numa aluso ao que foi sacadoao inimigo depois da batalha. O termo despojos, que se utiliza quasesempre no plural (como spoglie, em italiano, que provm da mesmaraiz), deriva do verbo despojar (provenal despolhar, castelhano despo-jar, francs dpouiller), o qual, por seu turno, tem na sua origem directao verbo latino despolio, intensivo de spolio, privar, tambm ele nor-malmente usado em contexto militar para definir o acto de depredare saquear o inimigo. 3 glria O termo encontra-se carregado de sentidos. Refere-se glria militar de Eneias na Guerra de Tria, mas tambm glria de

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  • Elisa porque conseguiu faz-lo prisioneiro do seu amor. Por inversode significado, Elisa fica com os despojos de um inimigo que no per-deu nada, mas venceu. Memria / glria so dois substantivos abstrac-tos em posio rimtica, com rima B, que esdrxula. 4 doces, quando seu Fado o consentia Repetio do adjectivo docesno incio dos vv. 3 e 4, em anfora. Doces introduz a segunda citaode Virglio. Os despojos de Eneias eram doces, ou seja, do agrado deDido, Dulces exuviae, dum fata deusque sinebat (doces despojos, atos fados e os deuses o permitirem, Aen. IV 651), ao passo que os despo-jos camonianos eram doces quando seu Fado o consentia. O decalquede Virglio mais do que evidente. Cames no faz referncia aos deu-ses pagos. Fala de fado, no sentido abstracto e geral de destino. Comefeito, Eneias devia chegar s costas de Itlia para fundar Roma e a fu-tura dinastia imperial. O heri pico tem sempre uma misso superiora realizar, como o caso de Eneias ou do Vasco da Gama cantado porCames em Os Lusadas. 5 Entreles a fermosa espada via Entre os doces despojos via a belaespada. O adjectivo fermoso variante antiga de formoso, derivado dolatim formosus, e significa belo. Qualifica a espada de Eneias que temum lugar central no soneto. 6 que instrumento foi da triste histria A espada instrumento oumeio do triste caso contado pelo poeta, porque com ela que a Rainhacartaginesa se ir matar. Note-se a aliterao em torno das consoantes[s], [t], [r], a sugerir uma ideia de tenso e dificuldade (instrumento /triste / histria). Antecipa a concluso trgica que Cames conta deseguida. O verbo foi o nico pretrito perfeito utilizado no soneto, aindicar um dado certo e concluso. 7 e, como quem de si tinha a vitria Descreve o comportamentoda Rainha, prestes a dirigir-se espada do amante. Duas interpretaesso possveis, como quem conseguia dominar-se, controlar os prpriossentimentos, ou ento, como quem tinha alcanado vitria sobre oinimigo (cf. v. 3). 9 Fermosa e nova espada, se ficaste Elisa que fala, dirigindo--se directamente espada de Eneias, objecto que ser instrumento dasua morte. Cames recorre ao expediente retrico da sermocinatio,que consiste em pr uma personagem a falar na primeira pessoa, comum discurso que lhe prprio.

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  • Encontramo-nos perante uma verdadeira e prpria personificaoda espada, que funciona, contudo, tambm como duplo ou figura deEneias, pois faz as suas vezes, ao matar Dido. Retoma-se o adjectivofermosa, em incio de verso, j anteriormente utilizado para definir aespada de Eneias (v. 5). Aliterao em consoante fricativa (fermosa enova espada, se ficaste). O uso do encavalgamento aumenta o efeitode suspenso e prolongamento da tirada da Rainha, prestes a levar acabo um gesto de desespero. Uma possvel explicao do adjectivonova para definir a espada que talvez fosse nova para Elisa, que nuncaa tinha visto em sua posse at quele momento. Na pica clssica, as armas dos heris so smbolo primordial doseu possuidor, como se dele quase fossem um duplo. Para exemplosde armas que so smbolo do guerreiro, podem-se recordar a lana deAquiles ou o arco de Ulisses. Para um heri pico, as armas so umobjecto especial que o identifica, e, em alguns casos, tm mesmo ori-gem divina. Eis, pois, porque que Dido opta por se matar, precisa-mente, com a espada de Eneias. 10 s para executares os enganosOu seja, (ficaste) s para levar acabo os enganos de Eneias, como se explicita no verso seguinte. 11 de quem te quis deixar, em minha vida Liga-se a (os enganos)daquele que te quis deixar, enquanto eu estou em vida ou tambm,com incidncia sobre a minha vida. Mais um encavalgamento que des-loca as atenes para Eneias, responsvel pela morte de Elisa. 12 sabe que tu comigo tenganaste Continua a dirigir-se espadade Eneias, tu. O instrumento do engano de Eneias , por sua vez, en-ganado, como o vai mostrar o gesto que a Rainha ir realizar. ParaDido, de facto, a espada tinha sido voluntariamente deixada por Eneiascomo memria de si, para recordar eternamente, amante, o abandonoa que fora votada. A partir do momento em que a usa para tirar a vidaa si prpria, a Rainha anula a eterna condenao do amante-traidor, ef-lo, por sinal, servindo-se daquilo que devia ser o instrumento dessamemria. Observe-se a paronomsia (figura que faz a alterao de uma partedo corpo da palavra), enganos / enganaste, a sublinhar a importnciado tema do engano na histria de Dido e Eneias descrita no soneto. 13-14 que, para me tirar de tantos danos, / sobeja-me a tristeza dapartida Alude-se triste concluso da histria. Literalmente, porque,

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  • para me livrar de tanto sofrimento, -me de sobra a tristeza da partida.O discurso da Rainha faz-se voluntariamente enigmtico, elptico, tam-bm porque pressupe o conhecimento de todo o sucedido. A espada,que como se disse simboliza Eneias e o seu destino, foi deixada, peloheri, em posse da amada. Os enganos de Eneias, que so executadospela sua espada (v. 10), so os de perpetuar a sua memria, assim con-denando a Rainha cartaginesa a uma pena eterna. Todavia, segundo aapstrofe que Dido lhe dirige, a espada, que devia ser instrumento deum engano perpetrado a outrem, ela prpria vtima de um engano.A tristeza que sente com a partida de Eneias to forte que at o actode tirar a vida a si prpria, para deixar de sofrer, se torna demasiadosimples. Note-se a anttese semntica entre o verbo tirar (subtrair) eo predicado do verso seguinte, sobejar (sobrar).

    Clelia Bettini

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  • Amor, co a esperana j perdida, teu soberano templo visitei; por sinal do naufrgio que passei,4 em lugar dos vestidos, pus a vida.

    Que queres mais de mim, que destruda me tens a glria toda que alcancei? No cuides de forar-me, que no sei8 tornar a entrar onde no h sada.

    Vs aqui alma, vida e esperana, despojos doces de meu bem passado,11 enquanto quis aquela que eu adoro:

    nelas podes tomar de mim vingana; e se inda no ests de mim vingado,14 contenta-te com as lgrimas que choro. (Rimas, Soneto 83, p. 158)

    1. Neste soneto, Cames personifica o Amor enquanto divindade.O amante deposita em seu templo a alma, vida e esperana em lugardas oferendas comumente dadas aos deuses pelos nufragos em guisade agradecimento. Como recorda Faria e Sousa, Esto de poner enlos Templos algunas seas de sus naufragios los que navegan, es anti-qussimo (Rimas varias I 1685: 111). Trata-se do tpico denominadonavigium amoris que est amplamente documentado nos poetas gregose latinos (o amor como um mar tempestuoso, o mar das paixes amo-rosas, em que se debate o barco que simboliza o amante). Normalmente, os nufragos seguiam at o templo dos deuses paraagradecer o fato de ainda estarem vivos. Aqui, Cames faz o contrrio,isso , vai ao templo para protestar o fato de ainda estar vivo e ques-tiona o desejo de vingana do prprio Amor, que percebido comoentidade hostil. At chega a afirmar que vingana maior seria deix-lovivo a chorar do que tirar-lhe a vida. Tanto Faria e Sousa (Rimas varias I 1685: 111) quanto Juromenha(Obras II 1861: 594) lembram que este soneto fora inspirado na ode

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  • 5 do livro I de Horcio, dirigida a Pyrra. Garcilaso tambm abordouo mesmo tema no seu soneto No pierda ms quien ha tanto perdido (7:92).

    2. Este soneto conta com testemunhos tanto manuscritos, quantoimpressos. Os manuscritos so o Cancioneiro de Cristvo Borges (62v)e o Cancioneiro de Lus Franco (126v), aos quais se junta o ndice doCancioneiro do Padre Pedro Ribeiro (40), que s traz o primeiro verso,com atribuio a Cames. Os impressos so as duas primeiras ediesdas Rimas, de 1595 (14) e de 1598 (13v), como tambm as edies deFaria e Sousa (Rimas varias I 1685: 111), Juromenha (Obras II 1860:594) e Tefilo Braga (Parnaso I 1880: 20). Como, neste caso, o critrio do duplo testemunho quinhentistaincontroverso est respeitado, este soneto pertence ao corpus mnimoestabelecido por Leodegrio de Azevedo Filho (Lrica de Cames 1,1985: 203, n.18). Alm da edio de Costa Pimpo, este soneto est presente emtodas as principais edies modernas: Rodrigues-Vieira, Hernni Ci-dade, Salgado Jnior, Cleonice Berardinelli, Maria de Lurdes Saraiva. As variantes redaccionais so registadas nas edies de CleoniceBerardinelli (Sonetos 1980: 108) e de Leodegrio de Azevedo Filho(Lrica de Cames 2 II 1989: 113-126), bem como no aparato apostopor Arthur Lee-Francis Askins edio do Cancioneiro de CristvoBorges (266).

    3. O esquema mtrico o seguinte: ABBA ABBA CDE CDE. Comexcepo dos vv. 8 e 10, que so decasslabos sficos, os demais versosso decasslabos hericos, como o notou Azevedo Filho (Lrica de Ca-mes 2 I 1987: 123). Alm da escanso mtrica, o primeiro desses ver-sos est marcado pelo oximoro (v. 8), enquanto o outro apresenta, em-bora de forma implcita, a oposio entre bem passado e mal presente.Trata-se, em ambos os casos, de figuras primordiais na lrica camoniana. Note-se tambm, no v. 9, a acumulao alma, vida e esperana queparticulariza o patrimnio semntico do termo vida, posto no fim daprimeira quadra, marcando ao mesmo tempo o comeo da segundaparte do soneto.

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  • No ltimo terceto, encontra-se, no momento da rima, o polptoto(figura que faz a alterao flexional de uma parte do corpo da palavra)de mim vingana / de mim vingado.

    4. 1 co a esperana j perdida Tema recorrente na lrica camoniana.Co a = com a. 2 soberano Em lugar das fontes manuscritas do soneto, que trazemteu sagrado, os impressos apresentam teu soberano. Tanto Cleonice Be-rardinelli (Sonetos 1980: 63), como Azevedo Filho (Lrica de Cames 2I 1987: 119), seguem a opinio de Emmanuel Pereira Filho (Manuscritoapenso: 228), quem v nesta modificao uma correo imposta pelocensor. Com efeito, no o nico caso em que a censura modificou otexto dum poema camoniano. 3 naufrgio Los principales testimonios del naufragio, que se po-nian en el Templo, eran los vestidos, anota Faria e Sousa (Rimas variasI 1685: 111). Imagtica associada ao tpico do naufrgio amoroso. 4 em lugar dos vestidos, pus a vida Cames pe sua vida em lugardas oferendas comumente utilizadas porque ya se contava por muertoa pretensiones del mundo, y en particular amorosas; porque deseavamorir, assim Faria e Sousa, quem acrescenta, no tenia otra cosa queponer, porque lleg a faltarle todo; y a no salvar de sus infortunios msde la vida (Rimas varias I 1685: 111). 4 vestidosO que trazia vestido. O nufrago, depois de escapar aoperigo, pendurava as vestes e outros despojos do naufrgio, como ex--voto, na parede do templo do deus invocado durante a tempestadeem alto mar. 6 glriaAlude ao privilgio de ter vivido um amor sublime. O factode poder desfrutar, ou no, deste amor est no poder do deus. Na horaem que ele decide de retir-lo, considerado pelo amador como umtirano. 8 tornar a entrar onde no h sadaOximoro completado pela me-tfora de um caminho sem sada. Oxmoro que forma a espinha dor-sal do poema (Achcar 1994: 193). 9 Vs aqui alma, vida e esperana Expanso a partir do termo vida(v. 4). Uma tcnica semelhante se encontra no soneto Quem v, Senho-ra, claro e manifesto, Este me parecia preo honesto; / mas eu, por devantagem merec-los, / dei mais a vida e alma por quer-los, / donde

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  • j me no fica mais de resto. // Assi que a vida e alma e esperana / etudo quanto tenho, tudo vosso, / e o proveito disso eu s o levo(Rimas 17: 125). 10 despojos doces de meu bem passado Cf. doces despojos da pas-sada glria (despojos ou restos, fragmentos), no soneto Os vestidosElisa revolvia (Rimas 64, 3: 148). Nos sonetos camonianos, o jogo dia-ltico bem passado / mal presente frequente. 11 enquanto quis aquela que eu adoro Costa Pimpo, em nota derodap (Rimas, ed. 1961: 166), comunica a variante da segunda ediodas Rimas, de 1598, remetendo entretanto para o soneto Apartava-seNise de Montano. Esta composio, com efeito, apresenta nos tercetosadoro rimando com as lgrimas que choro. Tambm neste caso, a ediode 1598 mudou adoro para eu moro. Este exemplo de censura vem sejuntar a outro que est mencionado na nota ao v. 2. 12-14 nelas podes tomar ... as lgrimas que choroConstitui o clmaxdo soneto. Depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperana, o ama-dor termina oferecendo as suas prprias lgrimas, que, neste caso, sopara ele mais doloridas do que a morte.

    Marimilda Rosa Vitali

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  • Cara minha inimiga, em cuja mo ps meus contentamentos a ventura, faltou-te a ti na terra sepultura,4 porque me falte a mim consolao.

    Eternamente as guas lograro a tua peregrina fermosura; mas, enquanto me a mim a vida dura, 8 sempre viva em minhalma te acharo.

    E se meus rudos versos podem tanto que possam prometer-te longa histria 11 daquele amor to puro e verdadeiro,

    celebrada sers sempre em meu canto; porque enquanto no mundo houver memria, 14 ser minha escritura teu letreiro. (Rimas, Soneto 86, p. 159)

    1. Perante uma recolha de poemas que o autor no quis, ou no con-seguiu organizar, com vista publicao, poucos foram os crticos dossculos precedentes que escaparam tentao do biografismo. Assim,no mbito da lrica camoniana foi imaginado um ciclo de composiesdedicado a Dinamene, apesar de no encontrar qualquer fundamentona tradio manuscrita (ver Silva 1994: 19-20). Ao longo dos sculos,diversos crticos associaram informaes variadas, e mais ou menosimaginrias, sobre a vida amorosa de Cames, a versos que trazem re-ferncias mulher amada morta em naufrgio. H os que afirmam serDinamene uma jovem chinesa com quem o poeta tivera um breve re-lacionamento amoroso. Outros pretendem que o remorso do poetaest expresso na srie de poemas dedicados Dinamene, pois teria elepreferido salvar os originais de Os Lusadas namorada, durante umacidente martimo no rio Mekong. H ainda os que vem no nome Di-namene a designao de ninfa do mar ou o disfarce do nome de D.Joana Noronha de Andrade, dama nobre, por quem Cames dedicara

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  • um amor platnico (Torralvo/Minchillo, ed. Sonetos de Cames 2001:27; ver tambm Spina 1972). Costa Pimpo anota: O romance de Dinamene , se no me en-gano, uma inveno fraudulenta da era de Seiscentos (Rimas 1961:14; cf. Sena, 1980: 80-81, que atribui uma boa parte da responsabili-dade dessa fantasia a Afrnio Peixoto). Com efeito, o relato do supostonaufrgio (1559) encontra-se na verso indita da Dcada 8 de Diogodo Couto, cuja autenticidade controversa (ver Cruz 1982, 1984; Mar-tins 1985: 16-17). Sobre as discusses em torno da personagem de Di-namene, ver Askins (Cancioneiro de Cristvo Borges: 207-227, nota23; e 244-245, nota 56).

    2. O soneto de autoria camoniana comprovada, pois conta comdois testemunhos manuscritos, o Cancioneiro de Lus Franco Correa(128) e o ndice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro (191), onde fi-gura o seu primeiro verso, e trs testemunhos impressos bsicos, asduas primeiras impresses das Rimas, de 1595 (5v) e de 1598 (6v), eas Rimas varias de Faria e Sousa (I 1685: 61). indicativo de uma si-tuao bastante frequente na tradio da lrica camoniana. Os manus-critos conservam uma verso mais antiga, enquanto a tradio impres-sa, seguida pela maioria dos editores anteriores a Leodegrio deAzevedo Filho (que restaura, como alis seu costume, a lio manus-crita), transmite uma verso retocada quer pelo editor, quer maisprovavelmente, neste caso pelo prprio autor. A alterao mais im-portante diz respeito ao v. 8, na minha alma enterrada tacharo,logo corrigido para sempre viva em minhalma te acharo. Destaforma, por razes que dizem respeito no s prosdia (cf. AzevedoFilho, Houve aqui, por certo, algum propsito de aperfeioamento,para tornar o verso mais suave, Lrica de Cames, 2 I 1987: 181), comosobretudo mudana do gosto literrio, quis-se eliminar uma imagemmuito tpica do gosto maneirista. O paradoxo da viva sepultura que se encontra num corpo humanotem o seu modelo mais conhecido em Lucrcio (5, 990-994). J o pri-meiro homem tinha conscincia, muitas vezes, de que os seus vivosmembros se encontravam sepultados no ventre, tambm vivo, de umabesta feroz. Uma variante dessa imagem, igualmente censurada numaparte da tradio, encontra-se nos vv. 41-42 da cano 10, Vinde c,

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  • meu to certo secretrio, Quando vim da materna sepultura / de novoao mundo (Rimas: 224). Esse tpico gozou, alis, de longa vida na li-teratura europeia. Um dos poetas que com maior xito o tratou foi oromntico ingls Percy Bisshe Shelley, na sua breve prosa On Love (spublicada em 1829). Se no estiver vivificado pela fora de amor, manbecomes the living sepulchre of himself. Com toda a probabilidade, o conjunto de transformaes que severifica, da verso manuscrita para a impressa, nos vv. 9-11, reflecteum processo autoral levado por diante com extrema coerncia. Ondeno manuscrito do Cancioneiro de Lus Franco Correa se l fraquos, pe-quena, sincero, no impresso passa-se, respectivamente, a rudos, longa,to puro (cf. notas). Da resulta a aproximao de um registo estilsticomais rigorosamente petrarquiano, e ao mesmo tempo mais integradono lxico camoniano da fase, digamos, da maturidade. Em confrontocom a modesta qualificao de pequena, a variante longa no s recu-pera uma palavra que aparece apenas uma vez no Canzoniere de Pe-trarca, ou seja, um hpax, como se integra perfeitamente no vocabu-lrio lrico de Cames. No caso de rudos, tambm hpax petrarquiano,outra motivao importante da modificao reside na maior confor-midade estilstica com letreiro, referido no final do soneto, o que con-firma a marca decisivamente rstica e medocre da composio. A recuperao simultnea de dois hpax petrarquianos dificil-mente poder resultar de uma mera coincidncia. Tambm a tendn-cia, claramente autoral, para aumentar o nmero de palavras-chaveque so usadas noutros poemas, aumenta a quantidade de remissesinternas recolha, contribuindo, como tal, para a sua coerncia ma-cro-estrutural. Um precioso indcio, fornece-o a eliminao de sincero,que est no Cancioneiro de Lus Franco Correa e um evidente latinis-mo semntico, substitudo por to puro. Como assinala Faria e Sousa,remete imediatamente para o v. 8 do soneto Alma minha gentil, que tepartiste, que j nos olhos meus to puro vistes (Rimas 80: 156). Almdisso, contribui para uma melhor integrao na recolha, a evidente li-gao destes dois passos com o terceto final do soneto camoniano Grotempo h j que soube da Ventura, Mas vs, Senhora, pois que minhaestrela / no foi milhor, vivei nesta alma minha, / que no tem a For-tuna poder nela (Rimas 26: 129).

    CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MO

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  • 3. Soneto-epitfio (como justamente o declara a palavra final letrei-ro), com esquema ABBA ABBA CDE CDE. Note-se o nmero singu-larmente elevado de polisslabos. Na primeira quadra, os dois primei-ros coincidem com a cesura (v. 1, inimiga; v. 2, contentamentos),enquanto os dois seguintes esto em posio rimtica (v. 3, sepultura;v. 4, consolao). Na segunda quadra, a acumulao de seis polisslabos,de entre os quais quatro nos primeiros versos (vv. 5-6, Eternamente,lograro, peregrina, fermosura) e dois no quarto verso (v. 8, enterrada,acharo, conforme a lio manuscrita) constitui de certa forma o em-blema estilstico do soneto. O tratado de Minturno Larte poetica (1563) que aconselha, no-meadamente, a mistura de bisslabos e polisslabos (p. 344),

    Dolce Temperamento di voci di due syllabe con altre di una o pisyllabe. Compongasi adunque il verso di voci di due syllabe, purche alcuna vocale vi se ne perda: o non senza alcuna delle lunghe,come dolce temperamento della gravit: over con qualche parti-cella duna syllaba per dargli pi nervo; e talvolta spessa, per ag-giungerli tardit l, dove la materia il richeggia: s come nel versoallegato, nel qual si dinota, che lanima in quelle cose dimorasse, eil suo tempo spendesse, Vedi, odi, e leggi, e parli, e scrivi, e pensi.

    Doce combinao de palavras de duas slabas com outras de uma ou mais slabas.O verso h-de ser constitudo por palavras de duas sllabas, apesar de algumasvogais poderem ser objecto de eliso; ou ento h-de haver entre elas algumapalavra longa, de maneira que a gravidade seja temperada pela doura; ou en-to alguma palavra monossilbica, para lhe conferir mais energia; e s vezesfaa-se isso, com vista a acrescentar-lhe um suplemento de lentido, sempreque o assunto o requeira; o caso do verso citado, onde se d a entender comoa alma se demorava naquelas aces e lhes consagrava todo o seu tempo, Vedi,odi, e leggi, e parli, e scrivi, e pensi [Canz. 204, 2].

    4. 1-4 Cara minha inimiga ... consolaoO autor dirige-se sua ama-da, interpelando-a na segunda pessoa do singular, sob a forma de aps-trofe, e lembrando que o destino colocara nas suas mos, isto , naposse dela, a sua prpria felicidade. Essa mulher no pde, depois demorta, ser enterrada, com certeza porque o seu corpo se teria perdidopor ocasio de um naufrgio.

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  • 1 Cara minha inimiga O epteto inimiga remonta a Petrarca. Estepoeta usa como suas principais variantes, la dolce mia nemica (Canz.73, 29; 125, 45; 202, 13) / la mia dolce nemica (Canz. 179, 2), la nemicamia (Canz. 88, 13; 195, 11; 206, 8) / la mia nemica (Canz. 76, 3; 170, 4;261, 4; 360, 54), de la dolce et acerba (amata) mia nemica (Canz. 23, 69;254, 2), s quais cabe acrescentar la mia cara nemica (Canz. 315, 6),que a variante mais prxima do incio do nosso soneto. 3 faltou-te a ti na terra sepultura Notar a aliterao em [t]. 4 porque me falte a mim consolao Tal como o corpo da mulherno teve sepultura, assim o amador ficar para sempre privado da con-solao ligada sua presena. 6 a tua peregrina fermosura Verso de cunho petrarquiano, a con-frontar com leggiadria singulare et pellegrina (Canz. 213, 5). Trata--se de um provvel aperfeioamento, seja ele autoral ou do copista,feito a partir da primeira redaco conservada no Cancioneiro de LusFranco Correa, a saber, os olhos terrestres e a figura, verso que obe-dece a uma estrutura prosdica antiquada (decasslabo de arte maior,com acento na 5. slaba e hiato aps e). 8 sempre viva em minhalma te acharo O mar guardar eterna-mente em sua posse a singular beleza do corpo amado. Contudo, en-quanto o amador viver, a mulher continuar a viver na alma dele. Naverdade, como dissemos acima, o Cancioneiro de Lus Franco Correaque conserva a lio autntica, ou seja, na minha alma enterradatacharo. A perenidade da memria metaforicamente traduzidapela imagem da mulher que permanece enterrada na prpria alma doamador. Desta feita, tambm se recupera a gradao formada por trstermos pertencentes ao mesmo campo semntico, a saber, sepultura (v.3), enterrada (v. 8), letreiro (v. 14). Quanto verso mais recente, denotar que ela alude simplesmente ao tpico da vida pstuma, garantidapela memria potica (um tpico tratado por Virg. Aen. IX 446-447;Petrarca Canz. 327, 12-14; Bernardo Tasso, Aminta I, son. 1; Sannaza-ro, Arcadia cl. 11, 117). 9 rudos Tpico da auto-afirmao de modstia que, apesar da suaorigem latina (recusatio), remonta neste caso ao filo do petrarquismoelegaco inaugurado por Sannazaro. Em Petrarca, encontra-se apenasuma vez, referido prpria cano (O poverella mia, come se roz-za!, Canz. 125, 79). Graas a Sannazaro, ao escrever il rozzo stil

    CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MO

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  • (Arcadia cl. 9, 99) e lassando il pastoral ruvido stile (v. 113), rudotorna-se, na Pennsula Ibrica, um dos termos tcnicos para designaro estilo prprio do gnero buclico. Neste mbito, rudo aparece muitasvezes na lrica de Cames com referncia ao prprio engenho, canto,verso, frauta. Cf. tambm, Mas eu que falo, humilde, baxo, e rudo(Lus. X 154). 10 que possam prometer-te longa histria O Cancioneiro de LusFranco Correa l prometer pequena histria, quer como profisso demodstia (cf. v. 7), quer como aluso brevidade dessa histria deamor. Cf., entretanto, Petrarca, la lunga historia de le pene mie(Canz. 343, 11). 11 daquele amor to puro e verdadeiro O latinismo sincero, queest no Cancioneiro de Lus Franco Correa, onde se l, daquele amorsincero e verdadeiro, encontra abonao, em todo o caso, no versoE de sincero amor sejam dotados (Lus. VIII 54). 13-14 porque ... teu letreiro Enquanto a poesia continuar a ser cul-tivada neste mundo, os poemas que o amador vai escrever sero o pr-prio epitfio da mulher amada, como se fizessem parte da sepulturaque lhe falta. No comentrio, mencionado por Faria e Sousa (Rimasvarias I 1685: 61), que Fernando de Herrera fez aos poemas de Garci-laso, letrero considerado como variante estilstica mais baixa, isto ,mais adequada ao estilo elegaco, relativamente a epitfio.

    Maurizio Perugi

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  • Bibliografia

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  • O texto das edies camonianas citado literalmente,com actualizao de grafemas e meras alteraes pon-tuais. Procede-se da mesma forma para os comentriose outros textos publicados at ao sculo XIX e para areferenciao bibliogrfica. No caso de Faria e Sousa,normaliza-se a acentuao. A partir do sculo XIX, faz--se actualizao da grafia.As referncias s edies de Cames e a manuscritos deinteresse camoniano dizem respeito a todo o volume.

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  • 1. EDIES DE REFERNCIA DA OBRA DE CAMES

    Rimas, texto estabelecido, revisto e prefaciado por lvaro J. da CostaPimpo, apresentao de Anbal Pinto de Castro, Coimbra, Al-medina, 2005, reimpr. Tem por fulcro a ed., Barcelos, Companhia Editora do Minho,1944, que foi objecto, ao longo do tempo, de vrias reformula-es, e matriz da edio anotada, Coimbra, Atlntida, 1961.

    Os Lusadas, leitura, prefcio e notas de lvaro Jlio da Costa Pimpo,apresentao de Anbal Pinto de Castro, Lisboa, InstitutoCames, Ministrio dos Negcios Estrangeiros, 2003, 5. ed. 1. ed., Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1972.

    2. EDIES E COMENTRIOS A CAMES

    Rimas 1595Rhythmas de Lus de Cames divididas em cinco partes, dirigidasao muito illustre Senhor D. Gonalo Coutinho, impressas com li-cena do Supremo Conselho da Geral Inquisio e Ordinrio,em Lisboa, por Manoel de Lyra, anno de M.D.LXXXXV, custade Estevo Lopez mercador de livros. Ed. facsimilada do exemplar pertencente a D. Manuel II, come-morativa do IV centenrio da estada de Lus de Cames na Ilhade Moambique, s.l., s.d. Ed. facsimilada do exemplar pertencente Academia Brasileirade Letras, Rio de Janeiro, 1980. (2-2011)

    Rimas 1598Rimas de Lus de Cames accrescentadas nesta segundaimpresso, dirigidas a D. Gonalo Coutinho, impressas com li-cena da Santa Inquisio por Pedro Crasbeeck, anno deM.D.XCVIII, custa de Estevo Lopes mercador de livros comprivilgio.

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  • Ed. facsimilada, estudo introdutrio de Vtor Manuel de Aguiare Silva, Braga, Universidade do Minho, 1980. (2-2011)

    Rimas 1616Rimas de Luis de Cames, segunda parte, agora novamente im-pressas com duas comedias do autor, com dous epitafios feitos asua sepultura, que mandaro fazer Dom Gonalo Coutinho eMartim Gonalvez da Camara, e hum prologo em que conta avida do author, dedicado ao Illustrissimo e Reverendissimo Se-nhor D. Rodrigo dAcunha, Bispo de Portalegre, e do Conselhode Sua Magestade, com todas as licenas necessarias, em Lisboa,na officina de Pedro Crasbeeck, 1616, custa de Domingos Fer-nandez mercador de livros, 1616. (2-2011)

    Rimas 1666-1668Rimas de Luis de Cames, princepe dos poetas portugueses, pri-meira, segunda e terceira parte, nesta nova impressam emmen-dadas e acrescentadas pello Lecenciado Joam Franco Barreto,Lisboa, com as licenas necearias, na officina de Antonio Craes-beeck de Mello, impressor da Casa Real, anno 1666.Terceira parte das rimas do princepe dos poetas portugueses Luisde Camoens, tiradas de varios manuscriptos, muitos da letra domesmo autor, por D. Antonio Alvarez da Cunha, offerecidas So-berana Alteza do Princepe Dom Pedro por Antonio Craesbeeck deMello, impressor de S. Alteza e sua custa impressas, anno 1668. (1-2012)

    Rimas varias I 1685 / II 1689Rimas varias de Luis de Camoens prncipe de los poetas heroycosy lyricos de Espaa, ofrecidas al muy ilustre Seor D. Iuan da Syl-va, Marquez de Gouvea, Presidente del Dezembargo del Pao yMayordomo mayor de la Casa Real, etc., commentadas por Ma-nuel de Faria y Sousa, Cavallero de la Orden de Christo, tomo Iy II, que contienen la primera, segunda y tercera centuria de lossonetos, Lisboa, con privilegio real, en la Imprenta de Theotonio

    COMENTRIO A CAMES, VOL. 2

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  • Damaso de Mello Impressor de la Casa Real, con todas las licen-cias necessarias, ao de 1685.Rimas varias de Luis de Camoens prncipe de los poetas heroycosy lyricos de Espaa, ofrecidas al muy ilustre Seor Garcia deMelo, Montero Mor del Reyno, Presidente del Dezembargo delPao, etc., commentadas por Manuel de Faria y Sousa, Cavallerode la Orden de Christo, tomo III, IV y V, segunda parte, el tom.III contiene las canciones, las odas y las sextinas, el tom. IV laselegias y las otavas, el tom. V las primeras ocho clogas, Lisboa,con todas las licencias necessarias, en la Imprenta Craesbeeckiana,ao 1689, con Privilegio Real.Reed. facsimilada, Rimas vrias de Lus de Cames, comentadaspor Manuel de Faria e Sousa, nota introdutria do Prof. F. RebeloGonalves, prefcio do Prof. Jorge de Sena, Lisboa, IN-CM,Comisso Nacional do IV Centenrio da Publicao de Os Lu-sadas, Edio Comemorativa, 1972, vol. 1 (contm t. I e II), vol.2 (contm t. III, IV e V). (2-2011) (2-2011) (2-2011)

    Obras I 1860 / II 1861 / III 1861 / IV 1865 / V 1864 / VI 1869Obras de Luiz de Cames, precedidas de um ensaio biographicono qual se relatam alguns factos no conhecidos da sua vida, aug-mentadas com algumas composies ineditas do poeta, pelo Vis-conde de Juromenha, Lisboa, Imprensa Nacional / vol. I, 1860 /vol. II, 1861 / vol. III, 1861 / vol. IV, 1865 / vol. V, 1864 / vol. VI,1869.Em 1924 a Imprensa Nacional editou um fragmento.

    Obras completas I 1, 1873 / I 2, 1874 / I 3-4, 1874 / II 5, 1874 / II 6,1874 / III 7, 1874Obras completas de Luiz de Cames, edio crtica, com as maisnotaveis variantes, Porto, Imprensa Portugueza Editora / t. I Par-

    BIBLIOGRAFIA

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  • naso, vol. 1 Sonetos, 1873 / vol. 2 Canes, sextinas e odes, 1874 /vols. 3-4 Elegias. Eclogas, 1874 / t. II Cancioneiro de todas as re-dondilhas e autos / vol. 5 Redondilhas, 1874 / vol. 6 Autos e cartas,1874 / t. III, vol. 7 Os Lusadas, 1874.

    Parnaso I 1880 / II 1880 / III 1880Parnaso de Luiz de Cames, edio das poesias lyricas consagrada commemorao do Centenario de Cames, com uma introduosobre a historia da recenso do texto lyrico por Theophilo Braga,Porto, Imprensa Internacional de Ferreira de Brito & Monteiro,1880 / vol. I Os sonetos / vol. II Canes, sextinas, odes e outavas /vol. III Elegias e eclogas, redondilhas ineditas do Ms. da Academiadas Sciencias.

    Smmtliche Gedichte I 1880 / II 1880 / III 1881 / IV 1882 / V 1883 /VI 1885Luis de Camoens Smmtliche Gedichte, zum ersten Male deutschvon Wilhelm Strorck, Paderborn, Druck und Verlag von Ferdi-nand Schningh / erster Band, Buch der Lieder und Briefe, 1880/ zweiter Band, Buch der Sonette, 1880 / dritter Band, Buch derElegieen, Sestinen, Oden und Octaven, 1881 / vierter Band, Buchder Canzonen und Idylen, zweite Vermehrte und verbessert Auf-lage, 1882 / fnfter Band, Die Lusiaden, 1883 / sechster und letzerBand, dramatische Dichtungen, 1885.

    Cames lrico I 1925 / II 1925 / III 1925 / IV s.d. / V s.d.Antologia portuguesa organizada por Agostinho de Campos,Cames lrico, Livraria Aillaud e Bertrand, Paris, Lisboa / LivrariaChardron, Porto / Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro / vol.I Redondilhas, 1925, 2. ed. / vol. II Redondilhas, 1925, 2. ed. /vol. III Concluso das redondilhas, autos e cartas, 1925 / vol. IVSonetos escolhidos, s.d. / vol. V Canes, s.d.

    Lrica 1932Lrica de Cames, edio crtica pelo Dr. Jos Maria Rodrigues eAfonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.

    COMENTRIO A CAMES, VOL. 2

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  • Obras completas I 1946 / II 1946 / III 1946 / IV 1946 / V 1946Obras completas, com prefcio e notas do Prof. Hernni Cidade,Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1946 / vol. I Redondilhas esonetos / vol. II Gneros lricos maiores / vol. III Autos e cartas /vol. IV Os Lusadas (I) / vol. V Os Lusadas (II).Com vrias reedies, tambm por outras casas editoras.

    Obra completa 1963Obra completa, organizao, introduo, comentrios e anotaesdo Prof. Antnio Salgado Jnior, Rio de Janeiro, G. B./Compa-nhia Aguilar, Editora, 1963.

    Sonetos 1980Sonetos de Cames, corpus dos sonetos camonianos, apresentaode Jos V. de Pina Martins, edio e notas por Cleonice Sera daMotta Berardinelli, Paris, CCP/Rio de Janeiro, Fundao Casade Rui Barbosa, 1980.

    Lricas 1981Lricas, seleco, prefcio e notas de Rodrigues Lapa, Lisboa, Sda Costa, 1981, 10. ed. [verso revista da ed., Lisboa, Textos Li-terrios, 1940].

    Lrica completa I 1986 / II 1994 / III 1981Lrica completa, Lisboa, IN-CM, prefcio e notas de Maria deLurdes Saraiva / vol. I, 1986, 2. ed. / vol. II Sonetos, 1994, 2. ed.revista / vol. III Canes, sextinas, odes, elegias, oitavas, clogas,epigramas, 1981.

    Lrica de Cames 1, 1985 / 2 I 1987 / 2 II 1989 / 3 I 1995 / 3 II 1997/4 I 1998/ 4 II 1999/ 5 I 2001Leodegrio A. de Azevedo Filho, Lrica de Cames, texto estabe-lecido luz da tradio manuscrita, em confronto com a tradioimpressa, reviso editorial e colaborao na adaptao ortogrficade Sebastio Tavares Pinho, Lisboa, IN-CM / vol. 1 Histria, me-todologia, corpus, apresentao de Antnio Houaiss, 1985 / vol.2, t. I, t. II, Sonetos, apresentao de Slvio Elia, 1987, 1989 / vol.

    BIBLIOGRAFIA

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  • 3, t. I, Canes, 1995 / t. II, Odes, apresentao de Roger Bismut,1997 / vol. 4, t. I, Elegias em tercetos, apresentao de lvaro deS, 1998 / vol. 4, t. II, Oitavas, apresentao de Marina MachadoRodrigues, 1999 / vol. 5, clogas, t. I, apresentao de Xos Ma-nuel Dasilva Fernndez, 2001.

    Sonetos de Cames 2001Sonetos de Cames, ed. comentada e anotada por Izeti FragataTorralvo/Carlos Cortez Minchillo, Granja Viana/Cotia/SP, AteliEditorial, 2001.

    3. MANUSCRITOS EM EDIO

    Cancioneiro de Cristvo Borges, edition and notes by Arthur Lee-Fran-cis Askins, Braga, Barbosa & Xavier Limitada/Paris, Jean Touzot,1979.

    Cancioneiro de D. Ceclia de Portugal, introduo e notas por AntnioCirurgio, Lisboa, Edies da Revista Ocidente, 1972.

    Cancioneiro de Fernandes Toms, facsmile do exemplar nico, comprembulo de D. Fernando de Almeida, Lisboa, Museu Nacionalde Arqueologia e Etnologia, 1971.

    Cancioneiro de Lus Franco Correa 1557-1589, Lisboa, Comisso Exe-cutiva do IV Centenrio da Publicao de Os Lusadas, 1972.

    The Hispano-Portuguese Cancioneiro of the Hispanic Society of America,edition and notes by A. L.-F. Askins, Chapel Hill, UNC, Depar-tment of Romance Languages, 1974.

    ndice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro - Castro, Anbal Pintode, ndice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro. Fac-simile eleitura diplomtica, Pginas de um honesto estudo camoniano,Coimbra, CIEC, 2007: 49-84.

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  • Novos Subsdios - Cruz, Maria Isabel S. Ferreira da, Novos Subsdiospara uma edio crtica da lrica de Cames. Os cancioneiros indi-tos de Madrid e do Escorial, Porto, Centro de Estudos Humans-ticos da FLP, 1971.

    4. TEXTOS LITERRIOS DE REFERNCIA

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    Boscn, Juan, Obras completas, edicin de Carlos Clavera, Madrid,Ctedra, 1999.

    Couto, Diogo do, Dcada outava da sia, Lisboa, custa de Ioam daCosta, e Diogo Soarez, 1673.

    Herrera, Fernando de, Anotaciones a la poesa de Garcilaso, ed. InoriaPepe/Jos Maria Reyes, Madrid, Ctedra, 2001.

    Minturno, Antonio, LArte poetica [...], Venezia, G. A. Valvassori, 1563.Petrarca, Francesco, Canzoniere, ed. Marco Santagata, Milano, Arnal-

    do Mondadori, 1996, 22004.Petrarca, Francesco, Canzoniere. Rerum vulgarium fragmenta, a cura

    di Rosanna Bettarini, Torino, Einaudi, 2005, 2 vols.Sannazaro, Iacopo, Arcadia, a cura di Francesco Erspamer, Milano,

    Mursia, 2003, reed.Vega, Garcilaso de la, Obra potica y textos en prosa, edicin de Bien-

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    Achcar, Francisco, Lrica e lugar-comum. Alguns temas de Horcio esua presena em portugus, Editora da Universidade de So Paulo,1994.

    Bowra, Charles M., From Virgil to Milton, New York, St. Martins,1967.

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    BIBLIOGRAFIA

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    Cruz, Maria Augusta Lima, Diogo do Couto e a Dcada 8. da sia, Lis-boa, CNCDP/IN-CM, 1993-1994, 2 vols.

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  • Ensaios

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  • Achegas ao comentrio do soneto Amor, que o gesto humano nalma escreve

    Maurizio Perugi

    1. O incipit deste soneto atribudo a Cames no mais do queuma variao, na verdade, do incipit do soneto V de Garcilaso de laVega, cuja primeira quadra aqui se reproduz,

    Escrito st en mi alma vuestro gesto,y cuanto yo escribir de vos deseo:vos sola lo escribistes; yo lo leo,tan solo, que aun de vos me guardo en esto.

    Como o reconhecem os comentadores, esta quadra suscita sriosproblemas de pontuao. Segundo a interpretao mais sedutora, que tambm, sem dvida, a que mais se aproxima do esprito que animaa imitao camoniana, na solido que o poeta contempla a imagemda sua amada. Contudo, essa precauo no basta para o proteger,porque, apesar de o ser amado se encontrar ausente, o amante estperturbado, como se o tivesse ali perante si prprio. Convir acres-centar que esta mesma composio de Garcilaso, qual foi geralmenteatribuda uma funo de prlogo, tambm pode ser lida numa pticaespiritual, quando no mstica1.

    Neste soneto atribudo a Cames, o incio, que segue Garcilaso, retomado e enriquecido por uma sequncia metafrica bastante com-plicada, a qual d uma ideia muito clara dos extremos a que podiachegar o Maneirismo, nesse domnio. As imagens brotam umas dasoutras com uma rapidez vertiginosa, dispostas numa sucesso ininter-rupta que conserva, apesar de tudo, a aparncia enganadora de umencadeamento lgico.

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    1 Ver Carrizo Rueda 1986, que cita, entre outros, II Cor. 3, 3, epistulaestis Christi [...] scripta non atramento, sed spiritu Dei vivi; non in tabulis la-pideis, sed in tabulis cordis carnalibus.

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  • O comentrio de Faria e Sousa, to iluminante a este propsito,como em poucos outros passos, analisa de modo pontual a sequnciade equaes metafricas, todas elas decorrentes da mais pura tradiopetrarquista,

    hermosas llamas (vivas fascas) = los ojospurpureas (vivas) rosas, y cndidas (alva neve) azuzenas = las mejillaspuro cristal = frente ~ lgrimas

    Recorde-se que o abuso deste tipo de metforas se tornou umverdadeiro lugar-comum, ao longo de todo o Siglo de Oro, como o as-sinala Quevedo, ironicamente, em vrias ocasies: Pues qu es verloscargados de pradicos de esmeraldas, de cabellos de oro, de perlas dela maana, de fuentes de cristal, sin hallar sobre todo esto dinero parauna camisa ni sobre su ingenio2; Es mejor andar gastando aurorasen mejillas y perlas en lgrimas, como si se hallasen detrs de lapuerta?3.

    No esquema atravs do qual tentmos resumir as explicaes deFaria e Sousa, as estrelas simbolizam o fulgor que brilha no olhar damulher4,

    Pero al igual que el vapor de los espritus nace de la sangre, astambin manda fuera rayos semejantes a s por los ojos, como atravs de ventanas de vidrios [...]. Y a travs de aquellos [espri-tus] difunde las chispas de luz de los rayos a cada miembro, sobretodo a travs de los ojos [Ficino, De Amore 7, 4]. De lo dicho sededuce que la imagen (en este caso, del amado), canalizada espi-ritual, sanguneamente, y expulsada por los ojos, no deja de seruna parte de l que entra por los ojos del amante, pues se infundeespiritualmente en la sangre de este. Tan material transforma-

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    2 Sueo del infierno, ed. Arellano: 324.3 Discurso de todos los diablos: 534. Cf. Quevedo 2003, vol. I, t. I: 13,

    nota 13.4 Sers 1996: 77, 185. Ver tambm o soneto de Francisco de Figueroa,

    Oh espritu sutil, dulce y ardiente, / que sales de las dos vivas estrellas, / [...],// bien conozco tu fuerza y bien la siente / mi vista, que se aclara en tus cen-tellas (vv. 1-6).

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  • cin de uno y otro y viceversa (siempre que se d la reciprocidadamorosa) ha de pasar forzosamente por la phantasia, que es la fa-cultad encargada de recoger los espritus visivos (en forma de scin-tillae, chispas5, que transportan la imagen del objeto).

    Quanto ao epteto vivas (ardentes), remonta a Petrarca, Vivefaville uscian de duo bei lumi (Canz. 258, 1), passando depois pelocaptulo 3, 66 de El Cortesano, sem dvida manejado atravs da tra-duo de Boscn revista por Garcilaso (por aquellos vivos espritusque salen por los ojos), para depois desaguar no incipit do soneto 8do mesmo Garcilaso, De aquella vista pura y excelente / salen espirtusvivos y encendidos.

    neste quadro que deve ser situado o processo atravs do qual ogesto amado fica gravado na alma, conforme o explica Sers (1996:184-185),

    Llegados a este punto, es muy sencillo comprender que dichaimagen o fantasma se grabe en la sangre misma [...], pues dichaimagen, espiritualmente conducida y visualmente introducida, es,al fin y al cabo, una porcin de sangre que acaba circulando porla del amante y, consiguientemente, conformndola6.O sea, la transformacin fisiopsicolgica se completa, as,cuando la imagen impresa (los rasgos del rostro: il volto) delamado se fija, materialmente, en el pensamiento del amante,quien, a su vez, los transmite a sus espritus vitales y, claro, a susangre, que vuelve al corazn e imprime en dicho rgano la ima-gen del amado de que es portadora. O si se quiere, a la inversa:de los ojos del amado salen los espritus animales (que Ficino me-taforiza con las omnipresentes scintillae, centellas), sublimadosa partir de los vitales (o sea, de la sangre), que entran, a su vez,

    ACHEGAS AO COMENTRIO DO SONETO AMOR, QUE O GESTO HUMANO NALMA ESCREVE

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    5 Bem se sabe, alis, que Macrbio considera a alma scintillam stellarisessentiae (Somnium Scipionis 14, 19; ver Sers 1992).

    6 Com efeito, la porcin de la sangre que entr en el ventrculo cerebralcorrespondiente, una vez sublimada por los espritus animales visivos portadores de la imagen, acaba infundindose en los espritus de quien la per-cibi y recrea constantemente en la imaginacin y, claro, en su misma sangre(Sers 1996: 75).

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  • por los ojos del amante y, haciendo el recorrido al revs, se depo-sitan en su sangre. Por lo cual, una porcin de la sangre del amadocircula y se mezcla con la del amante y, como consecuencia, estese transforma en aquel y viceversa, por medio de la transfusinsangunea, es decir, espiritual. Siempre, claro est, que se d lacorrespondencia amorosa.

    2. As rosas e os lrios representam as cores das faces7, ao passoque o cristal, segundo Faria e Sousa, assinala, inicialmente, a brancurada tez e, seguidamente, depois do processo de liquidificao, passa adesignar, por mudana metafrica, a gua das lgrimas derramadas pe-los olhos. Apesar de ser possvel dispensar a primeira dessas duas pas-sagens, no resto Faria e Sousa tem razo. Estamos perante uma verda-deira transformao alqumica. Com efeito, tendo em linha de contaque o cristal se situa encima de los ojos que son el fuego, queda pun-tualssima aqu la arte de la destilacin, en la qual viene a caer lo des-tilado en vidros, y ac en las rosas, y azuzenas de las mexillas que sealentavan, nota o comentador (Rimas varias I 1685: 22).

    A mesma dialctica entre gua e fogo, no mbito de um processotambm ele baseado sobre a alquimia, encontra-se presente, por exem