CAMPILONGO. a Crise Da Representatividade e a Perda Do Espaço Público

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115 REVISTA CIENTÍFICA A BARRIGUDA Revista Científica A Barriguda. Campina Grande PB. v. 2, n. 3, ano 2 2012. ISSN 2236-6695 A CRISE DA REPRESENTATIVIDADE E A PERDA DO ESPAÇO PÚBLICO 1 Celso Fernandes Campilongo 2 Fui aluno e assistente do Professor José Eduardo Faria por vários anos. Na graduação, Faria foi meu professor de Filosofia do Direito, em 1979, à época disciplina do quarto ano. Recebi sua orientação no mestrado (1987) e no doutorado (1992) em Direito na USP. Hoje, não sou mais seu assistente, mas tenho muito orgulho desse passado. Continuo seu aluno e discípulo. Nos anos 80, quando iniciei o mestrado sob sua orientação, seguramente o principal tema do debate teórico e o mais premente desafio político era a redemocratização do Brasil. Num percurso que teve início com a dissertação de mestrado “Poder e legitimidade” (São Paulo, Perspectiva, 1978), Faria desenvolveu intensa atividade de investigação, ao longo dos anos seguintes, sobre as relações entre direito e democracia. São exemplos dessas pesquisas, dentre outros trabalhos, “A crise constitucional e a restauração da legitimidade(Porto Alegre, Sergio Fabris Editor, 1985) e a coletânea, por ele organizada e publicada na “Coleção Roberto Lyra Filho. Pensamento Crítico no Direito”(Brasília, UnB, 1988), intitulada “A crise do direito numa sociedade em mudança”. Nessa trilha, bastante influenciado por meu orientador, ainda na década de oitenta, apresentei dissertação de mestrado que versava exatamente 1 Artigo originalmente publicado no livro “Impasses e aporias do direito contemporâneo. Estudos em homenagem a José Eduardo Faria”, Emerson Fabiani organizador. São Paulo, Saraiva, 2011. 2 Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo FADUSP. Livre Docente Pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP. Professor Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP. Coordenador do Curso de Extensão da Sociedade Brasileira de Direito Público e Coordenador Acadêmico dos Grupos de Extensão Universitária em Serviços de Assessoria Jurídica (SASU-USP), Núcleo de Direito e Cidadania (Centro Acadêmico XI de Agosto). Atua com ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica e Teoria dos Sistemas. Contribuição dada à Revista em reconhecimento ao trabalho que vem sendo desenvolvido pela mesma.

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    A CRISE DA REPRESENTATIVIDADE E A PERDA DO ESPAO PBLICO1

    Celso Fernandes Campilongo2

    Fui aluno e assistente do Professor Jos Eduardo Faria por vrios anos. Na

    graduao, Faria foi meu professor de Filosofia do Direito, em 1979, poca disciplina

    do quarto ano. Recebi sua orientao no mestrado (1987) e no doutorado (1992) em

    Direito na USP. Hoje, no sou mais seu assistente, mas tenho muito orgulho desse

    passado. Continuo seu aluno e discpulo.

    Nos anos 80, quando iniciei o mestrado sob sua orientao, seguramente o

    principal tema do debate terico e o mais premente desafio poltico era a

    redemocratizao do Brasil. Num percurso que teve incio com a dissertao de

    mestrado Poder e legitimidade (So Paulo, Perspectiva, 1978), Faria desenvolveu

    intensa atividade de investigao, ao longo dos anos seguintes, sobre as relaes entre

    direito e democracia. So exemplos dessas pesquisas, dentre outros trabalhos, A crise

    constitucional e a restaurao da legitimidade(Porto Alegre, Sergio Fabris Editor,

    1985) e a coletnea, por ele organizada e publicada na Coleo Roberto Lyra Filho.

    Pensamento Crtico no Direito(Braslia, UnB, 1988), intitulada A crise do direito

    numa sociedade em mudana. Nessa trilha, bastante influenciado por meu orientador,

    ainda na dcada de oitenta, apresentei dissertao de mestrado que versava exatamente

    1 Artigo originalmente publicado no livro Impasses e aporias do direito contemporneo. Estudos em

    homenagem a Jos Eduardo Faria, Emerson Fabiani organizador. So Paulo, Saraiva, 2011. 2 Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo FADUSP. Livre Docente Pela

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP. Professor Doutor pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC/SP. Coordenador do Curso de Extenso da Sociedade Brasileira de Direito Pblico e Coordenador Acadmico dos Grupos de Extenso Universitria em Servios de Assessoria

    Jurdica (SASU-USP), Ncleo de Direito e Cidadania (Centro Acadmico XI de Agosto). Atua com

    ensino, pesquisa e extenso nas reas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia Jurdica e

    Teoria dos Sistemas. Contribuio dada Revista em reconhecimento ao trabalho que vem sendo

    desenvolvido pela mesma.

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    sobre direito e democracia: Representao poltica e ordem jurdica: os dilemas da

    democracia liberal.

    Logo aps a promulgao de Constituio de 1988 e durante toda a dcada

    seguinte, pode-se dizer que a obra de Jos Eduardo Faria e de boa parte de seus

    orientandos passou a discutir as condies de legitimidade e eficcia da nova

    Constituio. Ilustram essa fase, em meio a intensa produo acadmica, O Brasil ps-

    constituinte(Rio de Janeiro, Graal, 1989) e Direito e economia na democratizao

    brasileira(So Paulo, Malheiros, 1994). Tive o prazer de acompanhar a redao, ler os

    originais e de me atrever at mesmo a fazer algumas sugestes ao meu mestre.

    Evidentemente, mais uma vez, comigo e com um grupo de outros alunos de Faria, toda

    essa discusso desdobrou-se em teses e dissertaes. Particularmente no meu caso,

    redundou na tese de doutorado sobre a regra da maioria (1991), depois publicada sob

    o ttulo Direito e Democracia(So Paulo, Max Limonad, 1997). Com esse trabalho,

    que vejo muito mais como produto de um grupo de colegas do que como algo pessoal,

    tivemos a felicidade de conquistar, orientador e orientando, o Prmio USP 1993,

    conferido s teses de doutorado que mais se destacaram no ano anterior.

    Por fim, j neste sculo, Faria escreveu muito sobre direito e globalizao

    econmica. O direito na economia globalizada tese de titularidade publicada, no

    Brasil, pela Editora Malheiros e, na Espanha, pela prestigiosa casa editorial Trotta , e

    Direito e conjuntura (So Paulo, Saraiva/Direito GV, 2008), dentre outras obras,

    traduzem, nesse perodo, a contnua e renovada reflexo de Faria sobre a relao entre

    Direito e Poltica. Nesse perodo, de minha parte, essa mesma temtica traduziu-se,

    ilustrativamente, em dois ttulos: O Direito na sociedade complexa(So Paulo, Max

    Limonad, 2002) e Diritto, democrazia e globalizazzione(Lecce, Pensa, 2002).

    No ensaio que se segue, a interlocuo, a proximidade e, eventualmente, a

    divergncia entre mestre e discpulo retomam tema recorrente nos trabalhos do

    orientador e do seu aluno: as dificuldades da democracia representativa. Uma singela e

    merecida homenagem ao meu Professor.

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    I

    Crise da representao poltica

    Crise da representao poltica? Crise da democracia representativa? Basta que

    se observe figuras como o Senador Sarney ou o Primeiro Ministro Berlusconi para que

    logo se afirme: crise da democracia. Curiosamente, a crtica costuma ser pouco

    reflexiva: quo representativa a representao? Ou, ento, quo democrtica a

    democracia? Essas perguntas vm obscurecidas pela acusao: democracia e

    representao esto em crise. Juristas, economistas, cientistas polticos, enfim, cientistas

    sociais, quando no encontram explicaes consistentes para seus temas, rapidamente

    pem a culpa nos prprios temas. A crise das instituies, no das explicaes.

    O problema da democracia representativa no brasileiro. Com variaes, a

    crise generalizada. Parodiando Mrio de Andrade, onde temos muita sava e pouca

    sade, temos crise da representao. Onde, ao reverso, no se conhece a sava e a sade

    um direito, a crise da democracia representativa tambm se faz presente. No h

    metrpole ou colnia, centro ou periferia, desenvolvidos ou emergentes, quando o tema

    o funcionamento da democracia. Por que ela no funciona?

    A democracia ganhou, ao longo do sculo XX, depois de incontveis

    turbulncias e recadas, elevado reconhecimento. Somos todos democrticos. Mas o que

    significa reconhecer os mritos da democracia representativa? Estabilidade? Certeza?

    Consenso? Nada disso. O mundo dos princpios e valores une. Provoca o amlgama e a

    catlise das diferenas. Abre mo das escolhas. Entre o justo e o injusto, o igualitrio e

    o desigual, a incluso e a excluso, a democracia e o autoritarismo, somos todos pelo

    justo, igualitrio, inclusivo e democrtico. Por acaso, existem representantes do povo

    titubeantes diante dessas diferenas? Ocorre que o mundo da democracia instvel,

    incerto e complexo. Ama a diferena e sers democrtico, diz o ditado. Esse o trunfo

    da democracia: sua capacidade de alargar o espao das decises, manter sempre abertas

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    as possibilidades de escolha, transformar simultaneidades em opes diferidas ao longo

    do tempo.3

    Dessa perspectiva, se aplicados critrios democrticos anlise da democracia,

    vislumbra-se o que est em crise. A poltica moderna pode transformar qualquer tema

    em tema de deciso. Isso equivale a dizer que constantemente surgem novos temas.

    Uma deciso abre margem a tantas outras novas. Qual a estabilidade da democracia

    representativa? Sua nota verdadeiramente democrtica a contingncia. Reversibilidade

    das decises, periodicidade das eleies, renovao dos temas, numa palavra:

    instabilidade. Trata-se de um paradoxo: a estabilidade da democracia depende da

    exposio constante instabilidade. Por isso, longe de ser um sistema perfeito, no se

    conhece formato mais adequado do que a democracia para sociedades complexas. Basta

    que se entenda por complexidade o excesso de possibilidades de escolha.

    Ser que, de fato, a absoluta congruncia entre a vontade do representado e a

    ao do representante existiu, existe ou existir em algum momento? bem pouco

    provvel. O simbolismo da representatividade parece residir mais na capacidade

    procedimental da promoo de escolhas e decises do que na identificao precisa dos

    interesses gerais e do bem comum pela livre discusso no parlamento. Sem os

    procedimentos da representao no h democracia. Mas, ao mesmo tempo em que

    esses procedimentos so observados, a democracia, enquanto ideal de igualdade,

    incluso, justia e liberdade, tambm pode ser sufocada.

    difcil imaginar que esses nobres ideais tenham perdido seus pontos de contato

    com a realidade das democracias representativas. Porm, um olhar realista sobre as

    condies de funcionamento da democracia deixa claro o exaurimento daqueles valores.

    Em razo da democracia, todos os temas podem ser objeto de deciso poltica. O

    3 A especializao de funes, aliada ao inevitvel conflito de classe que caracteriza a sociedade

    industrial, faz do consenso uma mercadoria rara: dada a diferenciao de papis e a necessidade de

    reduzir esta complexidade a padres mdios de consumidor, governar uma sociedade de massas passou a

    significar a exigncia de enfrentar a ausncia de consenso pela descoberta de mecanismos capazes de

    estabelecer a coexistncia entre a necessidade de rpidas decises e as decepes que elas muitas vezes

    provocam. A democracia, evidentemente, um desses mecanismos.Ver JOS EDUARDO FARIA. Democracia e Ideologia: a questo da legitimidade na poltica contempornea. In: Sociologia Jurdica Crise do Direito e Prxis Poltica. Forense, Rio de Janeiro: 1984. p. 57.

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    sistema poltico expande-se constantemente. Qual o consenso possvel em torno dessa

    fragmentao dos temas? Ele existe, mas no percebido nem implementado com as

    feies de unidade, totalidade e generalidade sinalizadas pelos interesses gerais e pelo

    bem comum.

    Imaginou-se que a militncia poltica esclarecida e informada, o espao pblico

    igualitrio da palavra e da ao e a racionalidade do bem comum pudessem orientar as

    escolhas sociais. Ainda que assim fosse na realidade muito duvidoso que assim seja

    no crvel imaginar que estejam disposio dos representantes do povo, por mais

    lcidos que sejam, todas as variveis, informaes e elementos que lhes permitissem

    antecipar o futuro. Por melhores que sejam as intenes da deciso de hoje, impossvel

    determinar, ex ante, seus efeitos amanh. No acontece desse modo com o

    planejamento de um final de semana. O que dizer, ento, do planejamento de um pas?

    Se pensssemos politicamente nos ideais de democracia, nas reais possibilidades da

    representao e nos limites cognitivos, estruturais e operacionais do sistema poltico, a

    crise da representao continuaria existindo. Mas poderia receber explicaes diversas

    das convencionais.

    II

    Fatores de instabilidade da representao

    Como, na generalidade dos casos, as instabilidades do sistema poltico so vistas

    menos como caracterstica constitutiva e mais como defeito da democracia

    representativa, usual que sejam apontadas as possveis causas dos problemas.

    Recorrentes e acertadas as anlises que apontam (i) a fragilidade dos partidos, (ii) os

    desequilbrios e custos econmicos das campanhas eleitorais e (iii) o peso da mdia na

    formao da opinio pblica. Vale a pena comentar cada aspecto.

    Partidos polticos foram concebidos para agregar numerosos interesses. Tiveram

    origem em poca na qual valores morais, religiosos e familiares gozavam de aceitao e

    estabilidade muito maiores do que hoje em dia. Nessa tica, os programas partidrios

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    lanavam-se em propostas de reformas estruturais e de longo prazo. Pensava-se no

    circuito governo/parlamento como o centro de gravidade do debate sobre os rumos da

    sociedade. Algumas dicotomias pautavam o debate: Estado/mercado; poltica/economia;

    trabalho/capital; lei/contrato; pblico/privado, por exemplo.

    As operaes do sistema poltico moderno ocorrem noutro contexto. As

    agregaes de interesses tendem a ser pontuais e momentneas. A fragmentao dos

    interesses e valores notria. Os programas de longo prazo e os projetos reformistas so

    vistos como meras preliminares para novos programas e reformas das reformas4. O

    circuito governo/parlamento perdeu centralidade e passou a concorrer com outras arenas

    de escolha pblica, como as ONGs, os novos movimentos sociais, o Judicirio, as

    agncias reguladoras e as organizaes sociais. Nessas condies, o que esperar de

    estruturas polticas como os partidos tradicionais? E ainda:

    [N]o cenrio de uma sociedade de organizaes e de uma economia transnacionalizada, onde as decises de investimentos cada vez mais so

    condicionadas por vantagens comparativas, por imunidades a interferncias

    provenientes de Estados nacionais, em matria de imposio de tributos e

    restries aos capitais financeiro e mercantil, e pelas concesses em matria

    de subsdio fiscal, de infra-estrutura e de encargos trabalhistas, como

    preservar o "contedo essencial" do ato de votar? Qual o sentido prtico em

    votar e em ser votado, uma vez que a representao baseada na regra da

    maioria j no mais se converte necessariamente em poder substantivo? Por

    que militar em partidos, disputar eleies e atuar no Parlamento, se o alcance

    do controle da esfera pblica sobre a economia foi drasticamente reduzido

    pela revogao dos monoplios estatais, pelos programas de privatizaes e

    pelas delegaes de competncia do setor pblico iniciativa privada?5

    Se existem culpados por esses desarranjos institucionais caractersticos das

    transformaes do Estado , no foram partidos, polticos corruptos ou eleitores

    ignorantes.

    Tome-se, por exemplo, a diferena poltica/economia. Partidos dividiram-se e

    organizaram-se em torno dessas bandeiras. A prpria produo do direito viu nesses

    dois plos seus interlocutores privilegiados. Quer para aproximar quer para afastar o

    4 Ver Giancarlo Corsi. Sistemi che aprendono. Pensa, Lecce:2002.

    5 Ver JOS EDUARDO FARIA. O direito na economia globalizada. Malheiros, So Paulo: 1999. p. 220.

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    direito da economia ou da poltica, grandes escolas do pensamento jurdico foram

    formadas. Basta pensar, para ilustrar, no positivismo jurdico, para afastar o direito

    desses dois plos, ou na jurisprudncia dos interesses, no uso alternativo do direito e no

    neoconstitucionalismo, para aproximar direito, economia e poltica. Ora, quando se

    imagina novos temas e espaos da luta pelos direitos ambiente, sade, orientaes

    sexuais, tempo livre, qualidade da educao, internet, terceiro setor, regulao,

    patrimnio cultural e tantos outros nota-se, tambm, que partidos, governos e

    parlamentos so apenas parte (muitas vezes irrelevante) de contexto infinitamente mais

    amplo de espaos polticos e as questes polticas e econmicas, igualmente, ocupam

    somente duas dimenses de uma pluralidade de contextos antes ignorados ou

    descartados como interlocutores relevantes para o direito.

    Outro ponto importante est na distoro que o poder econmico pode provocar

    no processo poltico representativo. Schumpeter foi um dos primeiros a atentar para

    aproximaes e diferenas operacionais entre os sistemas poltico e econmico. Nos

    mercados competitivos, empresas e empresrios concorrem pela preferncia dos

    consumidores. Monoplios, oligoplios e cartis comprometem essa lgica. Nas

    democracias, partidos e polticos competem pela conquista dos eleitores. Partido nico e

    ditaduras subvertem o modelo. Rivalidade entre empresas e oposio entre partidos

    atuam como frmulas de manuteno de elevada complexidade no ambiente de

    possibilidades dos sistemas poltico e econmico.

    Ocorre que obter votos e apoios polticos, por maior que seja a proximidade e

    dependncia com relao ao poder econmico, operao bastante diversa da luta das

    empresas por lucros e participao de mercado. Entre a circulao do poder poltico e a

    circulao do dinheiro existem, por certo, complementaridades. Mas existem,

    igualmente, diferenas significativas e que no podem ser ignoradas.

    Corre-se o risco, aqui, de se cair em armadilha. Se for certo que o poder

    econmico pode alavancar candidaturas e temas, tambm correto que carisma,

    personalidade, liderana e sensibilidade diversas empolgam o eleitor. A transferncia de

    poder econmico para o poder poltico esbarra em caractersticas exclusivas da ao

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    poltica. Uma descrio realista da democracia representativa no pode esbarrar no

    argumento correto, mas limitado e incompleto - da promiscuidade entre economia e

    poltica.

    O peso da mdia na formao da opinio pblica desdobramento

    potencializado da questo do poder econmico. Primeiro, pelo fato da mdia ser

    financiada pelos grandes anunciantes. Segundo, em razo da mdia reproduzir, em larga

    escala, a diferena entre a soma das opinies individuais e a opinio da maioria, da

    vontade geral ou dos estratos sociais. Mais: alm de reproduzir essa diferena, dela

    resultado. Novamente, acreditar no poder ilimitado da mdia por maior e mais

    perverso que seja significa fechar os olhos para a realidade da democracia. H

    momentos em que, paradoxalmente, o disciplinamento pretendido pela mdia

    simplesmente menor do que se propala ou inexistente.

    Em concluso: partidos fracos, custos de campanha e peso dos meios de

    comunicao de massa interferem na crise da representao poltica; mas nem so os

    nicos nem necessariamente os fatores determinantes dessa crise.

    III

    Representao e opinio pblica

    Nem a democracia representativa nem as relaes de consumo funcionam como

    elementos de autodescrio da sociedade. O espelho da sociedade, dizer, o espao de

    auto-observao da sociedade a opinio pblica, que se traduz nos meios de

    comunicao de massa6. Como tudo pode ser tema da poltica e o sistema poltico tende

    expanso, a transformao dos problemas em problemas polticos depende do

    consenso possvel bem como do dissenso junto opinio pblica. O consenso,

    6 Sobre o conceito de opinio pblica como seleo de autodescries, ver NIKLAS LUHMANN e

    RAFFAELE DE GIORGI. Teoria de la sociedad. 1 ed. Universidad Iberoamericana, Guadalajara: 1993.

    pp. 430-440.

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    porm, produto escasso. Funciona como um inibidor do sistema poltico. Deve ser

    constantemente reativado. Portanto, oscilante, varivel e instvel.

    A representao poltica transforma as manifestaes da opinio pblica em

    temas da poltica. Isso no significa que o sistema poltico possa formatar qualquer tema

    ao seu bel-prazer. A representatividade poltica tem estruturas e operaes que no lhe

    permitem fazer as vezes do sistema jurdico ou do sistema econmico, para ilustrar. Isso

    muito importante. Enriquece qualquer diagnstico crtico que se queira fazer da

    democracia representativa. A democracia no pode postular pretenses ilimitadas como

    se fossem direitos fundamentais. Essa ambio da representao mistura de

    voluntarismo poltico e ingenuidade iluminista decepciona seguidamente a opinio

    pblica. Da a sensao de que os representantes do povo, quando observam seus

    eleitores, olham para espelhos como se estivessem de olhos vendados, cegos para os

    anseios da opinio pblica.

    A representao poltica no pode ser o retrato idntico da opinio pblica. A

    impossibilidade dessa identidade as partes identificadas com o todo, por fora da

    representao mostra a obsolescncia da semntica da representao poltica. A

    opinio pblica construo complexa pela qual a sociedade representa a si prpria e se

    v como que num espelho. Se diante do espelho existir outro espelho, quem se olhar

    num deles ver infinitas imagens de si mesmo. Mas os olhos dos espelhos no vem

    nada.7 desse modo paradoxal que a representao poltica observa a opinio pblica.

    Como a opinio pblica instvel, frgil e mutvel, ela se v sempre no

    presente. Constri, no presente, seu futuro. Por isso pode-se dizer que a opinio pblica

    o resultado da evoluo da sociedade. A opinio pblica o horizonte de observao

    da sociedade. Por isso, tambm, desestabiliza o sistema poltico, mostra um horizonte

    vulnervel de possibilidades e incorpora a inevitvel contingncia do futuro. Elimina

    antigos privilgios, mas cria outros. Expande a participao, mas levanta obstculos

    burocrticos que a bloqueiam. Inclui e gera novas excluses. Cada escolha multiplica as

    7 Ver RAFFAELE DE GIORGI. O poder dos espelhos. O Estado de So Paulo, p. A2, 4 abr. 1996.

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    chances de novas escolhas. Democracia, nesses termos, significa manuteno de amplo

    e alargado horizonte de escolhas.

    A crtica democracia representativa muitas vezes aponta para a diferena entre

    opinio pblica e representao: falta de identidade entre representante e representado8.

    Crise dos valores! Ora, valores so frmulas consensuais: liberdade, paz, justia,

    algum se atreve a ser contra! A poltica se refere aos valores para ganhar legitimidade.

    Os valores detm elevado poder de convencimento e aceitao. Forjam identidades.

    Porm, ao mesmo tempo em que correto que os valores unem e empolgam,

    verdadeiro, tambm, que, no seu funcionamento real, as estruturas do sistema poltico

    instauram delimitaes.

    IV

    Representao e ambio totalizante

    A representao poltica sempre esteve mais propriamente atrelada ao

    Legislativo. Porm, a diviso formal de atribuies da tripartio dos poderes no

    resiste ao teste de verificao emprica. Esvaziado o circuito governo/parlamento, outros

    papis entram em cena. Protagonismo poltico de juzes e promotores, funes

    judicantes da Administrao e delegao de competncias legislativas, autoridades

    regulatrias independentes, por exemplo, so derivaes da nova dinmica do Estado.

    A modstia regulatria do Estado do sculo XIX partia do pressuposto de uma

    relao de equilbrios entre os Poderes e entre os sistemas. Na diviso de poderes, o

    direito desempenhava o papel neutral de rbitro das turbulncias. Na relao do sistema

    jurdico com os sistemas poltico e econmico, o direito era invocado como a regra do

    8 Nesse sentido, ver MARIA DAS GRAAS SOUZA. A crise da representao e a perda do espao

    pblico. Anais do Frum Rumos da Cidadania. Campos do Jordo, mmeo, 2009 A poltica passa a seguir a lgica do marketing e do espetculo. Um dos resultados , sem dvida, da parte da sociedade,

    uma ausncia de identificao entre representantes e representados e a descrena da populao na classe

    poltica. p. 10.

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    jogo garantidora de segurana, calculabilidade e previsibilidade poltica e economia.

    Era esse o papel do Estado de Direito.

    Ao longo do sculo passado, as mudanas estruturais apontadas por Habermas

    realaram a discusso, na esfera pblica, dos princpios que organizavam a sociedade9.

    Foi o momento do Estado Democrtico e Social de Direito. Agora, a instabilidade

    parece ser atributo do sistema jurdico. Filigranas formais, hipertrofia legislativa,

    variabilidade e sobreposio das normas criam um sistema que, na ambio de regular

    tudo, esbarra no problema inverso: perde capacidade e eficcia, como assinala Jos

    Eduardo Faria:

    Ao aumentar de modo cada vez mais desordenado e desarticulado o nmero

    de matrias, atividades e comportamentos regulados por textos legais, essa

    desenfreada produo legislativa culmina, assim, na ruptura da organicidade,

    da unidade lgico-formal e da racionalidade sistmica do ordenamento

    jurdico e, por conseqncia, na perda da prpria capacidade de

    predeterminao das decises concretas por meio do direito positivo.10

    A sada fcil o recurso a valores metajurdicos. O direito que v resgatar no

    ambiente externo nomeadamente, na poltica e na economia o norte supostamente

    estvel das polticas estatais ou da lgica dos mercados. Valores externos estabilizando

    o direito. Valem mais os objetivos das regras do que as regras do jogo.

    Para concluir e aprofundar a crise da representao o sculo XXI aponta para

    a proliferao de cadeias normativas e modelos de produo do direito. No lugar das

    regras do jogo ou dos objetivos das regras, instaura-se, como afirma Cassese, um

    9 Jrgen Habermas. Mudana estrutural na esfera pblica. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: 1984. Ver,

    ainda, MARIA DAS GRAAS SOUZA. A crise da representao e a perda do espao pblico. Anais do

    Frum Rumos da Cidadania. Op. cit., p.8:Segundo Habermas, houve uma grande mudana nas ltimas dcadas no sculo XIX no que diz respeito ao espao pblico, o que ele vai chamar de mudana estrutural

    da esfera pblica. Dois traos desta transformao nos interessam aqui: o papel determinante

    desempenhado pela imprensa como meio estratgico de formao da opinio pblica e a transferncia de

    tarefas da administrao pblica para empresas, estabelecimentos, corporaes, encarregados de negcios

    semi-oficiais, que resulta numa esfera que no nem puramente privada nem genuinamente pblica. 10

    Ver JOS EDUARDO FARIA. O direito na economia globalizada. Malheiros, So Paulo: 1999. p. 117.

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    REVISTA CIENTFICA A BARRIGUDA

    Revista Cientfica A Barriguda. Campina Grande PB. v. 2, n. 3, ano 2 2012. ISSN 2236-6695

    jogo com as regras que solapa, ainda mais, os pressupostos da representao

    poltica.11

    V

    Concluso

    O que fazer? Identificar e descrever a realidade da operao do sistema poltico,

    sem incidir na iluso de que a representao possa modificar a rbita dos planetas, pode

    parecer pouco. Mas j representa algo, numa poca em que o que parece estar em rbita

    a prpria democracia representativa.

    11

    Ver Sabino Cassese. Dalle regole del gioco al gioco com le regole, in Lo spazio giuridico globale.

    Laterza, 2003.