Campos de produção da cultura e suas arenas públicas: discussões a partir de um estudo na...

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CAMPOS DE PRODUÇÃO DA CULTURA E SUAS ARENAS PÚBLICAS: DISCUSSÕES A PARTIR DE UM ESTUDO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA 1 Amarildo Ferreira Júnior 2 Silvio Lima Figueiredo 3 Resumo: Este artigo apresenta parte de uma discussão na qual tratávamos sobre o que denominamos como a vida associativa no Campo de Relações no Artesanato de Miriti de Abaetetuba (Pará), pertencente ao conjunto dos campos de produção da cultura. Nele, apresentamos como a aplicação de uma abordagem teórica em que se direciona a pesquisa para a análise das arenas públicas que se formam nos campos de produção da cultura permitiu-nos constatar que agentes produtores de cultura também são atores que se dão em espetáculo, e suas práticas não são necessariamente determinadas por um dualismo entre uma abordagem tradicionalista e outra mercadológica, pois se movimentam por redes de relações e apresentam fachadas necessárias diante das situações vivenciadas nos campos de relações e em suas arenas públicas. Palavras-chave: campos de produção da cultura, arena pública, artesãos de miriti. 1. INTRODUÇÃO Diz-se que há, na Amazônia brasileira, um isolamento, e, portanto, a necessidade, pelo menos nas palavras de Adeodato (2015), de se libertar suas comunidades tradicionais e de se levar até elas maiores e melhores formas de organização. Cremos estar claro nas palavras do jornalista paulista uma visão que, apesar da existência de esforços para desfazê-la, ainda é predominante e na qual a imagem que se faz da região é colorida com superlativos sintéticos e analíticos, quando não com espelhismos. Aplicada à totalidade da vida na região, sobretudo aos seus aspectos ambientais e culturais, é uma visão prenhe de pré-conceitos que desconhecem as idiossincrasias e vicissitudes do complexo conjunto de habitantes da região, acostumada que está em vê- la de longe e do alto o que não significa que necessariamente de fora da região , 1 Este trabalho apresenta, em grande parte, discussões desenvolvidas na dissertação de mestrado Entalhadores do efêmero: a vida associativa na criação dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba , defendida e aprovada no dia 09 jan. 2015, de autoria de Amarildo Ferreira Júnior e orientação do prof. Dr. Silvio Lima Figueiredo. Estes estudos foram realizados com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio de concessão de bolsa de estudo, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que disponibilizou recursos para sua realização no âmbito do projeto de pesquisa Turismo cultural e patrimonialização: campo de relações, referências culturais e gestão para visitação. 2 Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA). E-mail: [email protected]. 3 NAEA/UFPA. E-mail: [email protected].

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CAMPOS DE PRODUÇÃO DA CULTURA E SUAS ARENAS

PÚBLICAS: DISCUSSÕES A PARTIR DE UM ESTUDO NA AMAZÔNIA

BRASILEIRA1

Amarildo Ferreira Júnior2

Silvio Lima Figueiredo3

Resumo: Este artigo apresenta parte de uma discussão na qual tratávamos sobre o que

denominamos como a vida associativa no Campo de Relações no Artesanato de Miriti

de Abaetetuba (Pará), pertencente ao conjunto dos campos de produção da cultura.

Nele, apresentamos como a aplicação de uma abordagem teórica em que se direciona a

pesquisa para a análise das arenas públicas que se formam nos campos de produção da

cultura permitiu-nos constatar que agentes produtores de cultura também são atores que

se dão em espetáculo, e suas práticas não são necessariamente determinadas por um

dualismo entre uma abordagem tradicionalista e outra mercadológica, pois se

movimentam por redes de relações e apresentam fachadas necessárias diante das

situações vivenciadas nos campos de relações e em suas arenas públicas.

Palavras-chave: campos de produção da cultura, arena pública, artesãos de miriti.

1. INTRODUÇÃO

Diz-se que há, na Amazônia brasileira, um isolamento, e, portanto, a

necessidade, pelo menos nas palavras de Adeodato (2015), de se libertar suas

comunidades tradicionais e de se levar até elas maiores e melhores formas de

organização. Cremos estar claro nas palavras do jornalista paulista uma visão que,

apesar da existência de esforços para desfazê-la, ainda é predominante e na qual a

imagem que se faz da região é colorida com superlativos sintéticos e analíticos, quando

não com espelhismos.

Aplicada à totalidade da vida na região, sobretudo aos seus aspectos ambientais

e culturais, é uma visão prenhe de pré-conceitos que desconhecem as idiossincrasias e

vicissitudes do complexo conjunto de habitantes da região, acostumada que está em vê-

la de longe e do alto – o que não significa que necessariamente de fora da região –,

1 Este trabalho apresenta, em grande parte, discussões desenvolvidas na dissertação de mestrado

Entalhadores do efêmero: a vida associativa na criação dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba,

defendida e aprovada no dia 09 jan. 2015, de autoria de Amarildo Ferreira Júnior e orientação do prof. Dr.

Silvio Lima Figueiredo. Estes estudos foram realizados com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (Capes), por meio de concessão de bolsa de estudo, e do Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que disponibilizou recursos para sua realização no

âmbito do projeto de pesquisa Turismo cultural e patrimonialização: campo de relações, referências

culturais e gestão para visitação. 2 Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA). E-mail:

[email protected]. 3 NAEA/UFPA. E-mail: [email protected].

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como fronteira de recursos a ser apropriados tanto para “desenvolver” a região e junto

dela o restante do país, quanto para serem apreciados nos mais “elevados” círculos da

sociedade brasileira enquanto exemplares do exótico, cujo consumo ou apreciação atesta

um refinamento em seus gostos e preferências, tudo amalgamado em retóricas que mais

nos parecem cantos de sereias.

Quanto à cultura, olham-se os objetos, expressões e manifestações que produz,

alocando-os nos tipos de consumo próprios da contemporaneidade4, mas pouco se olha

para seus produtores, e, nas vezes em que se dirige a atenção para estes, geralmente se

alterna entre o extremo de folclorizá-los, tornando-os uma sorte de museu vivo, e a

extremidade que lhes aconselha o seguimento quase cego das regras do mercado, seja na

padronização de seus bens culturais, seja no uso de técnicas de organização e gestão

consideradas mais modernas e sofisticadas. Poucos são os que se dispõem a procurar

uma solução entre esses dois extremos, e talvez a contemporaneidade não nos apresente

opções fora desse espaço dos possíveis.

Neste artigo, detemos-nos a apresentar parte de uma discussão desenvolvida em

trabalhos anteriores (FERREIRA JÚNIOR, 2015; FERREIRA JÚNIOR &

FIGUEIREDO, 2014a, FERREIRA JÚNIOR & FIGUEIREDO, 2014b), nos quais

tratávamos sobre o que denominamos como a vida associativa de agentes sociais

pertencentes ao campo de produção cultural de uma forma de expressão da cultura

amazônica5, os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba.

Buscando posicionar nossa discussão em uma abordagem que não esteja

alinhada ao extremo do chamado eixo tradicionalista e tampouco à extremidade

4 García Canclini (1983) afirma que são quatro esses tipos de consumo: o prático, que ocorre no interior

da vida cotidiana; o cerimonial, relacionado a atividades religiosas ou festivas; o suntuário, que serve de

distinção social para setores com alto poder aquisitivo; e o estético ou decorativo. Para esse autor, as lojas

urbanas dispõem os bens culturais de modo a reduzir esses quatro usos a uma combinação dos dois

últimos, e irão diferir entre si pela necessidade de selecionar e de apresentar os objetos para grupos

diversos de consumidores: o de gosto mais ou menos sofisticado, o dos que “adquirem” signos de

distinção ou o dos que apenas desejam levar souvenires. 5 Estabelecer um gentílico para a cultura é uma operação cognitiva que há tempos gera debates e

controvérsias, sobretudo quando nele se encontram indivíduos e grupos de indivíduos que se consideram

os únicos portadores da cultura. No entanto, e apesar de levarmos em conta as considerações daqueles que

veem nessa forma de operar uma forma de velar as contradições provenientes da estratificação social

existente no país (TRAGTENBERG, apud VEIGA, 1978), deixamos as tergiversações sobre a questão

para momentos propícios a sua realização e, ainda assim, optamos por utilizar o termo cultura amazônica,

pois, ao utilizá-lo, não estamos nos referindo a uma cultura amazônica monolítica, mas a um campo

intricado e cheio de contradições internas, inclusive no interior das mesmas camadas sociais. Sendo

assim, tal termo é um constructo (Gebilde) que, embora proveniente da realidade, não é em si uma

realidade imediata, afinal, os elementos que caracterizam manifestações “isoladas” como possuidoras de

traços que a ligam de forma íntima a determinada região não se encontram separados de seus elementos

mais particulares (SIMMEL, 2006). Para discussões que apresentam a complexidade dos elementos que

conformam o que seria uma cultura qualificada como amazônica e quais são suas imbricações, são

importantes os aportes de Figueiredo (1999) e Loureiro (1995).

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representada pelo eixo mercadológico6 e seus respectivos discursos (LEITE, 2005),

ambas as perspectivas geradoras de fortes ressonâncias políticas para os agentes

produtores de cultura, pois colocam em jogo os sistemas sociais e simbólicos que

vinculam os bens culturais criados e seus produtores ao mesmo tempo em que gera

riscos para sua inserção econômica (LEITE, 2005; GARCÍA CANCLINI, 1983),

direcionamos a discussão para o estudo das arenas públicas no interior dos campos de

produção da cultura, utilizando como referência para a discussão o Campo de Relações

no Artesanato de Miriti de Abaetetuba.

Com isso, demonstramos que, a partir da abordagem que apresentamos, pode-se

constatar que agentes produtores de cultura, que também são atores que se dão em

espetáculo, não são necessariamente determinados por esse dualismo, pois se

movimentam por redes de relações, em que despontam algumas estruturas consolidadas

nas quais não hesitam em se apoiar quando necessário, e posicionam-se diante do

mercado e do Estado de forma a retraduzir e refratar pressões, apresentando as fachadas

necessárias diante da situação vivenciada no campo de relações e em suas arenas

públicas para a obtenção de apoios e parcerias que reduzam os riscos dos quais se

ressentem.

2. OS CAMPOS DE PRODUÇÃO E DE DIFUSÃO CULTURAL

A noção de campo social é definida negativamente como recusa à alternativa da

interpretação interna e da explicação externa, sendo espaço social de relações objetivas

que rompe, junto com o conceito de habitus, que lhe é anterior, com o paradigma

estruturalista sem, no entanto, dirigir-se à velha filosofia do sujeito ou da consciência ou

à economia clássica e sua ideia de homos economicus (BOURDIEU, 1989).

Desse modo, o campo é o espaço intermediário entre dois polos antagônicos no

qual ocorre um conjunto de relações sociais, estruturadas e estruturantes

simultaneamente, e para onde fluem e se reelaboram sentidos, com a estrutura da

sociedade sendo composta por uma infinidade desses espaços objetivos e que, embora

apresentem homologias estruturais e funcionais entre si e propriedades comuns,

possuem capitais específicos e obedecem a leis sociais mais ou menos específicas,

6 Pautado no discurso da tradição, mas ignorando sua invenção social e histórica (HOBSBAWM, 2006),

os discursos alinhados ao eixo tradicionalista são marcados pela retórica da preservação dos bens

culturais, defendendo a manutenção dos lastros sociais nos quais estes bens são produzidos, muitos deles

em graves situações de exclusão social; quando levado ao extremo, os defensores desse discurso

enxergam uma imutabilidade inexistente nas produções culturais, contribuem para a manutenção de

situações de pobreza e exclusão social, e geram discriminações sociais a parcelas de membros de grupos

que já são discriminados. O segundo eixo, por sua vez, defende a realização de inovações nos bens

culturais, nas técnicas para sua produção e nas formas de organização de seus produtores para inseri-los,

assim, no mercado e com isso assegurar sua reprodutibilidade (LEITE, 2005).

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dispondo de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada em relação ao

macrocosmo social (BOURDIEU, 2010; 2004).

Logo, e para fazer um paralelo com uma corrente teórica com a qual essa

abordagem dialoga, enquanto uma considerável variedade dos marxismos (AMADEO,

2006; FERNÁNDEZ BUEY, 2006) detém sua análise no que para Bourdieu (2005) é o

campo econômico, considerando-o como principal determinante dos demais campos que

conformam a estrutura da realidade, na famigerada divisão entre estrutura e

superestrutura, levada a graves consequências pelo chamado marxismo vulgar,

Bourdieu (1989) nos apresenta outra perspectiva:

[...] me achei no meio de propriedades gerais, válidas nos diferentes campos,

que a teoria económica tinha assinalado sem delas possuir adequado

fundamento teórico (p. 67).

Tudo leva a crer que a teoria económica, como se espera um dia demonstrar,

em vez de modelo fundador deve ser antes pensada como um caso particular

da teoria dos campos que se constrói pouco a pouco (p. 69).

Dentro desse elevado número de campos sociais que conformam a realidade,

encontram-se aqueles denominados por Bourdieu (2010) como campos de produção e

de difusão de bens culturais, categoria por meio da qual a análise científica das

condições sociais da produção e da recepção de bens simbólicos intensifica sua própria

experiência, e que, segundo este mesmo autor, são campos que, quanto mais autônomos,

mais se (de)marcam por uma lógica propriamente mágica da produção do produtor e do

produto como feitiços (BOURDIEU, 1989), com o ajustamento à demanda nunca sendo

completamente resultante de uma transação consciente entre produtores e consumidores

“[...] e, menos ainda, de uma busca intencional do ajustamento, salvo, talvez, no caso

dos empreendimentos de produção cultural mais heterônomos [...]” (BOURDIEU, 2010,

p. 282).

Esses campos se formam com a autonomização progressiva do sistema de

relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos, e a constituição de um

corpo de agentes correspondentes, colocando-se em oposição a todas as instâncias que

possuam pretensões de legislar no terreno do cultural em nome de poder ou autoridade

que não seja propriamente cultural (BOURDIEU, 2013), e se definindo em relações

objetivas entre diferentes instâncias determinadas pela função que exercem na divisão

do trabalho de produção, de reprodução e de difusão de bens simbólicos (BOURDIEU,

2013). Assim,

O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica da

oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e

artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita

enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação

destes bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um público

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de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de

bens culturais e, de outro, o campo da indústria cultural especificamente

organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não-

produtores de bens culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados

tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público

cultivado”) como nas demais classes sociais (BOURDIEU, 2013, p. 105,

cursivas no original).

Aos dois tipos de campos apresentados no excerto acima, acrescentam-se os

campos das culturas populares, “[...] existentes exclusivamente nas formações sociais

desprovidas de instâncias especializadas de produção, de transmissão e de conservação

culturais [...]” (BOURDIEU, 2013, p. 113, grifo nosso).

Esta é uma classificação que nos serve, desde que se tenha ciência de que toda

cultura é fragmentada e contestada internamente, e seus “limites” não são maciços,

sendo fronteiras porosas (KUPER, 2002) por onde são absorvidos e transpirados os

efeitos das relações culturais. Por isso, não se pode considerar os campos de produção

da cultura como isolados ou imutáveis, pois os movimentos que modificam posições e

situações de bens simbólicos lhe são característicos, e todas as formas culturais são

compostas de elementos antagônicos e instáveis próprios dessa luta cultural que assume

as mais diversas formas: incorporação, distorção, resistência, negociação, recuperação

(HALL, 2003).

Assim, o Campo de Relações no Artesanato de Miriti de Abaetetuba, sobre o

qual nos debruçamos em nossa pesquisa, encontra-se entre os campos do terceiro tipo

apresentado, e o analisamos partindo-se sempre das relações dos artesãos que criam,

dentre a ampla variedade de artesanatos elaborados com fibras da palmeira conhecida

popularmente como miriti (Mauritia flexuosa L.f), os denominados Brinquedos de

Miriti de Abaetetuba (Figura 1).

Figura 1 Barcos e canoa de miriti (peças do artesão Manoel Pantoja, conhecido como Soquete)

Fonte: Amarildo Ferreira Júnior (2014).

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Tais brinquedos pertencem à categoria artesanato-artístico, tipo de atividade

que se situa entre a arte e a criação extra-artística, pois seu produtor atenta para sua

esteticidade, que se sobressai em suas formas, cores, mecanicidade e textura, mesmo

quando sua finalidade é lúdica ou utilitária (LOUREIRO, 2012). São uma distinta

modalidade de artesanato de miriti característica do município de Abaetetuba (Figura 2),

localizado na mesorregião nordeste do estado do Pará, e integrantes da estrutura do

Círio de Nazaré 7

, do qual são seu maior símbolo artístico-cultural.

Figura 2 Localização de Abaetetuba

FONTE: LAENA/NAEA (2014).

3. ARENAS PÚBLICAS NO INTERIOR DOS CAMPOS DE PRODUÇÃO DA

CULTURA

Este campo social que estamos considerando nesta discussão, para o qual

passaremos a nos referir somente como Campo de Relações, foi considerado

historicamente a partir do início dos anos 2000, quando começou a emergir a estrutura

que atualmente o caracteriza. Deter-se em observar as relações que ocorrem nesse

espaço evitou que a interpretação das práticas aí existentes fosse dada em si mesma e

por si mesma, destacando o universo de práticas intercambiáveis e que a

correspondência entre as posições sociais ocupadas pelos agentes e suas práticas não

constituem relação mecânica e direta (BOURDIEU, 2008).

7 O Círio de Nazaré é uma festa cultural-religiosa que ocorre no segundo domingo de outubro em Belém,

na capital do estado do Pará.

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Pelas práticas sociais serem resultantes de uma dialética entre uma situação

objetivamente estruturada vivida no campo social e um habitus8, as relações sociais nem

sempre permanecem as mesmas e nem sempre possuem a mesma qualidade. Ter

observado a construção social do Campo de Relações permitiu-nos dar ênfase nas

mudanças ocorridas em suas relações e, com isso, colocar a questão referente à

formação de arenas públicas no interior desse campo social e às vias de expansão de

processos políticos, econômicos e identitários dos artesãos de miriti que elas propiciam.

O conceito de arena pública tem a dupla conotação de um lugar de combates

(lieu de combats) e de uma cena de realizações (scène de performances) ante ao público

e no interior de uma ordem pública (GOFFMAN, 2010; CEFAÏ, 2002). Este conceito se

diferencia da noção de campo social, embora esta também destaque a dimensão do

conflito entre as partes na definição da realidade e na imposição da legitimidade, e

apresente a relação entre a temporalidade das interações estratégicas e a “construção” de

problemas sociais, mas numa análise, todavia, estrutural (CEFAÏ, 2002).

Direcionar a análise para as arenas públicas que surgem no interior dos campos

sociais focaliza, sobretudo, as atividades práticas em situações sociais (GOFFMAN,

2010; GLUCKMAN, 1987) que se desenrolam ao redor de um problema público, no

qual atores individuais, organizacionais e institucionais se expressam; discutem e

julgam opiniões; localizam problemas; entram em disputas, polêmicas e controvérsias;

resolvem crises; e assumem compromissos; com a chamada “coisa” pública não sendo

mais um monopólio do Estado (CEFAÏ, 2002).

Procede-se a análise das arenas públicas de forma situacional, demonstrando-se

as formas de experiência, de opinião e de ação pública que não cessam de instaurar-se

(CEFAÏ, 2002). Para Gluckman (1987), uma situação social é o comportamento em

certas ocasiões dos membros de uma comunidade ou grupo social enquanto tais, e nela

se revela o sistema de relações subjacente à estrutura social, às partes da estrutura

social, ao ambiente físico e à vida de seus membros.

Ao propormos a análise também das arenas públicas que se formam nos campos

de produção da cultura, estamos orientados a focalizar o fato público no momento de

sua gestação, um processo que ocorre de forma paralela a uma dinâmica de produção de

atores individuais e coletivos e de suas identidades, “encenadas” em suas intervenções e

8 Princípio gerador e estruturador de práticas e de representações definido como os sistemas de

disposições duráveis originários das estruturas constitutivas de um tipo específico de meio (BOURDIEU,

1983).

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suas interações, relançando-se os movimentos que os criam social e culturalmente

(CEFAÏ, 2002).

No caso particular que estamos tomando como referência, as arenas públicas

foram observadas em situações sociais que decorrem de ocasiões sociais compósitas9,

nas quais os artesãos de miriti apresentam-se e representam-se através de um

emaranhado de estruturas de proximidade, dentre as quais destacaremos as suas

associações civis, em especial a Associação dos Artesãos de Brinquedos e Artesanatos

de Miriti de Abaetetuba (Asamab) e a Associação Arte Miriti de Abaetetuba (Miritong),

fundadas, respectivamente, nos anos de 2003 e 200510

.

Estas associações civis são arenas simbólicas que se inserem, dentro do Campo

de Relações, em arenas simbólicas englobantes ou interorganizacionais, as arenas

públicas. Nas arenas públicas, interagem com outros atores sociais, geralmente, entre os

artesãos de miriti, relacionados ao mercado ou ao planejamento estatal, e seus atores,

por mais que venham a se apresentar como indivíduos, sempre estão se posicionando e

apresentando fachadas que condizem com sua condição de membro de associações civis

(CEFAÏ; MOTA; VEIGA, 2011).

Inseridos em espaços nas arenas públicas, os agentes/atores determinam seu

percurso na ocupação de posições sociais e se engajam e desengajam conforme as

circunstâncias, nem sempre se preocupando com questões ideológicas, mas

permanentemente tratando de assuntos de seu cotidiano sobre os quais não possuem

incessantemente o conhecimento claro de qual regime de ação e de interação estão se

referindo na prática, dado o entrelaçamento de lógicas distintas (CEFAÏ; VEIGA;

MOTA, 2011). Apresentam, nesses espaços, propriedades relacionais, que lhe cabem

apenas a um dado momento, “[...] a partir de sua posição em um espaço social

determinado e em uma dada situação de oferta de bens e práticas possíveis”

9 Termo originário da noção de ocasião social adotada por Goffman (2010). Em nossos estudos, foram

considerados como ocasiões sociais compósitas os eventos-ocasiões mais importantes na demarcação do

ciclo de produção e comercialização dos Brinquedos de Miriti, o MiritiFestival, tipo de festival cultural

que ocorre anualmente em Abaetetuba, e o Círio de Nazaré. 10

Apesar de apresentarem diferenças em suas formas de organização e atuação, uma vez que a Asamab

estrutura-se como uma espécie de entidade de classe, enquanto a Miritong apresenta-se como uma

Organização Não Governamental (ONG), os movimentos que levaram ao surgimento dessas duas

associações civis ocorreram de forma homóloga e numa mesma época, com alguns membros da segunda

tendo sido fundadores também da primeira – para maiores detalhes sobre esse processo, confira Ferreira

Júnior (2015). Ao nascerem para o público, propiciaram o surgimento de arenas públicas em torno do

artesanato de miriti de Abaetetuba, nas quais tais associações civis passaram a estabelecer relações com

diversos atores sociais institucionais, gerando, dessa maneira, um conjunto de relações que ora se

fortalecem, ora são desfeitas. Ademais, esse fator também contribuiu para a ampliação do ciclo de

comercialização dos Brinquedos de Miriti, restrito até então à época do Círio de Nazaré, com a

participação dos artesãos de miriti em feiras e exposições locais, regionais, nacionais e internacionais.

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(BOURDIEU, 2008, p. 18, cursivas no original), mas que existem em relação a outras

propriedades.

Nesse aspecto, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

(Sebrae) é explicitamente importante em ser considerado, por sua importante atuação no

processo de fundação das associações civis dos artesãos de miriti (cf. FERREIRA

JÚNIOR; FIGUEIREDO, 2014b), e em outras questões por elas demandadas, como a

educação e formação por meio de oficinas e de cursos para maior promoção do

artesanato de miriti, e o início do processo que almeja uma certificação do Brinquedo de

Miriti, em busca da implantação de registro de indicação geográfica.

Em sua atuação, o Sebrae possibilitou que os artesãos d miriti melhorassem o

uso que fazem do material e aperfeiçoassem algumas técnicas. Por essa via, e com o

complemento de cursos voltados para a gestão de negócios e para o atendimento do

público, por exemplo, o Sebrae se estabeleceu como uma ligação entre os artesãos e

alguns padrões de mercado, o que foi importante para que o ciclo de produção e

comercialização dos Brinquedos de Miriti se ampliasse, com a criação do MiritiFestival,

realizado anualmente desde 2004, e a participação em feiras e exposições diversas.

Foi uma intervenção que, longe de trazer somente benefícios para os artesãos,

foi, em certa medida, por eles acionada, de modo que pudessem cumprir alguns de seus

anseios, notadamente os relacionados à comercialização das peças. E apesar das

possibilidades que gera de modificação dos significantes que caracterizam os

Brinquedos de Miriti enquanto tais, a atuação dos artesãos de miriti, pela intermediação

de seu espaço de disposições, retraduz o espaço de posições sociais em um espaço de

tomadas de posição (BOURDIEU, 2008), fazendo com que tais possibilidades fiquem

restritas, no período tomado como referência, a um estado latente11

.

No entanto, em 2014, a Asamab, maior associação civil dos artesãos de miriti,

rompe com o Sebrae depois da realização de mudanças na diretoria do escritório local

desta entidade e de modificações de suas diretrizes de trabalho. Alguns artesãos

destacam que, apesar da importância do Sebrae em muitas das conquistas que

obtiveram, sobretudo relacionadas ao aumento da qualidade das peças e da

11

Latente porque, embora se fale em habitus de classe, ou de grupo, essas disposições não são nem

imutáveis nem são exatamente iguais, mesmo entre agentes sociais que ocupam a mesma posição no

Campo de Relações, pois a proximidade no espaço social, afirma Bourdieu (2008), não engendra

automaticamente unidade, definindo somente potencialidade objetiva de unidade, dada as propriedades

situacionais particulares a cada agente. Assim, os habitus são diferenciados ao mesmo tempo em que são

diferenciadores. “Distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinções: põem em prática

princípios de diferenciação diferentes ou utilizam diferenciadamente os princípios de diferenciação

comuns” (BOURDIEU, 2008, p. 22).

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comercialização, esse agente possuía muita ingerência nas ações da associação civil,

principalmente nos eventos mais diretamente ligados a ela, como o MiritiFestival e a

Feira do Artesanato de Miriti12

, realizada em Belém durante a festa do Círio de Nazaré,

e suas diretrizes não lhes possibilitava avançar em outros tipos de discussões que

extrapolem os mercadológicos.

Depois que nós fechamos com o Sebrae foi que teve a possibilidade de criar

outras coisas. Teve muitas mudanças, como você tá vendo, todas essas

mudanças veio depois que a gente criou com o Sebrae essa parceria. O

Sebrae começou a colocar cursos pra nós, teve mudanças de tinta, design,

criação de brinquedos e feiras, grandes feiras. Eu te digo assim, que depois

que a gente se segurou com o Sebrae, a gente só teve o que ganhar. De grupo

a gente começou a montar a nossa associação (artesão Amadeu Sarges,

entrevista concedida em 21 ago. 2014).

Eu não sou a favor do rompimento com o Sebrae, mas eles têm que perceber

que o importante são as pessoas. É muito diferente a conversa de um técnico

do Sebrae da conversa de um antropólogo. Já chega o mercado pra pressionar

o cara (artesão Valdeli Costa, entrevista concedida em 22 ago. 2014).

Ao distanciarem-se do Sebrae, os artesãos de miriti passam a fortalecer outros

vínculos que já possuíam e estabelecer novas relações para suprir tanto o suporte dado

pelo Sebrae como para receber novos tipos de apoio que este não lhes oferecia. Dentre

os novos parceiros, destacam-se a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

(Emater), cujo principal apoio volta-se para as questões ambientais, de modo que o

miriti utilizado tenha origem certificada; para o auxílio técnico na elaboração de

projetos e na corealização de eventos; e para a exportação de Brinquedos de Miriti; e o

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), através da área de

patrimônio imaterial de sua superintendência estadual.

Requerida há bastante tempo pelos artesãos de miriti, a aproximação com o

Iphan se deu através da necessidade deste instituto executar ações de salvaguarda para o

Círio de Nazaré, registrado como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro na categoria

celebrações13

, com os Brinquedos de Miriti sendo um dos seus bens associados.

Com isso, o Iphan, ao lado da Emater, pode vir a se constituir como o principal

parceiro dos artesãos de miriti, principalmente ao permitir a articulação para acessar

políticas públicas voltadas para o patrimônio cultural e para constituir um comitê gestor

12

A realização da Feira do Artesanato de Miriti no ano de 2014 é o fator que marcará esse rompimento de

relações, devido mudanças promovidas pelo Sebrae no conceito da feira, que passa a ter um espaço maior

para outros tipos de artesanato do estado do Pará e é renomeada como Feira de Artesanato do Círio.

Descontentes com tais modificações e sentindo-se ameaçados naquilo do qual são orgulhosos, que é a

relação dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba e, consequentemente, deste município com o Círio de

Nazaré, a maior parte dos artesãos de miriti, seguindo orientações da Asamab, retira-se desse evento e

decide organizar a Feira do Artesanato de Miriti por conta própria em outro local da cidade de Belém,

apesar das dificuldades e dos demais problemas que isto suscita (FERREIRA JÚNIOR; FIGUEIREDO,

2014a). 13

Rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de

outras práticas da vida social.

Page 11: Campos de produção da cultura e suas arenas públicas: discussões a partir de um estudo na amazônia brasileira

autônomo dos artesanatos de miriti, além de, como alguns artesãos destacaram, poder

suprir a lacuna deixada pelo rompimento da Asamab com o Sebrae, com o diferencial

de que suas ações não sejam orientadas pelos padrões de mercado, considerando, antes

disso, os aspectos socioculturais desse bem.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de o campo social ser bem situado no espaço e no tempo, as relações que

lhe são próprias se reproduzem em diversos outros espaços, lugares e arenas públicas.

Neste trabalho, não pudemos apresentar com maiores detalhes e nuances todas as

relações que observamos durante nossas pesquisas, uma vez que estamos sob a restrição

do espaço de que dispomos, e optamos por priorizar a apresentação de como podemos

lançar mão da abordagem apresentada para a realização de estudos culturais, buscando,

por meio de discussões, refiná-la.

Propondo-nos demonstrar como se pode pensar a existência de alternativas aos

extremos dos eixos tradicionalista e mercadológico, decidimos apresentar um norte de

discussão que fuja desse forte anseio generalizado de buscar soluções fora das próprias

práticas de quem produz e reproduz o que se pretende “salvar”, realçando o fato de que

os agentes sociais adotam estratégias ao movimentarem capacidades “criadoras”, ativas

e inventivas, e operarem de forma prática construções de objetos e formas de

representação (BOURDIEU, 1989).

As culturas em geral, e o artesanato, neste nosso caso particular, não devem ser

debatidas meramente enquanto conjunto de produtos, mas em uma visão de processos

que se inserem de forma reflexiva no contexto de sua produção e nos modos de vida de

quem os produz. No caso dos Brinquedos de Miriti, vê-se que se encontram

definitivamente em meio às relações de mercado e às políticas públicas, mas não de

forma que por elas sejam determinados, pois surgem da confluência das relações sociais

de seus produtores.

Note-se que falamos ora em agente, ora em ator social quando nos referimos aos

artesãos de miriti, mas isso está ligado à própria forma como esta nossa abordagem foi

formulada: enquanto o ator social encontra-se nas arenas simbólicas, dentre elas as

públicas, os agentes estão presentes no campo social. Essa distinção permitiu

estabelecer que os artesãos de miriti colocam-se em ação em um campo de relações,

mas as realizam em ocasiões sociais específicas e em situações e ajuntamentos em

contextos ambíguos e híbridos, com suas associações civis não sendo homogêneas, pois

são atravessadas por ambiguidades e, às vezes, por contradições que não lhes permite

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ter “[...] um objetivo, uma estratégia e uma ideologia” (CEFAÏ; VEIGA; MOTA, 2011,

p. 35, cursivas no original), diferenciando-se entre si pela diferenciada colocação em

prática dos princípios de diferenciação comuns, o que as permite adotar distintamente as

soluções colocadas pelo mercado e pelo Estado para fazer a intermediação de interesses,

buscar seus objetivos comuns e conquistar espaços de atuação, divulgação e

comercialização dos artesanatos de miriti.

Esse caráter ambíguo, complexo e híbrido surge do entrelaçamento de diferentes

ordens sociais e de diferentes lógicas (CEFAÏ; VEIGA; MOTA, 2011), para as quais

as mudanças de participação nos grupos em situações diferentes revela o

funcionamento da estrutura, pois a participação de um indivíduo em um

grupo particular em uma situação particular é determinada pelos motivos e

valores que o influenciam nesta situação. Os indivíduos podem, assim,

assumir, vidas coerentes através da seleção situacional de uma miscelânea

de valores contraditórios, crenças desencontradas, interesses e técnicas

variadas (Gluckman, 1987, p. 261, grifo nosso).

Assentar as arenas públicas no interior de um campo social evita vê-las como

conceito a-histórico, passando a vê-las como estruturas históricas localizadas em um

mundo social situado e datado. Adentrando nas arenas públicas para alcançar seus

objetivos por meio de um emaranhado de estruturas de proximidade do mundo vivido,

os artesãos de miriti exercem “escolhas racionais” que estão de acordo com o habitus

que compartilham, permitindo-lhes a inserção nas relações econômicas para que

mantenham e melhorem a base material de suas vidas ao mesmo tempo em que mantêm

lastros sócio-simbólicos de sua atividade.

Os artesãos de miriti, influenciados por propriedades de posição e propriedades

de situação, “[...] também são atores que se dão em espetáculo e que, por um esforço

mais ou menos sustentado de encenação, aspiram a porem-se em valor, [...], em resumo,

a fazerem-se ver e valer” (BOURDIEU, 1982, tradução nossa). Não estando isolados,

movimentam-se por redes de relações em que despontam algumas estruturas

consolidadas, públicas ou privadas, nas quais não hesitam em se apoiar, posicionando-

se diante do mercado e do Estado de forma a retraduzir e refratar pressões, apresentando

as fachadas necessárias diante da situação vivenciada no Campo de Relações para a

obtenção de apoios e parcerias que reduzam os riscos dos quais se ressentem.

Não sendo sujeitados passivamente às imposições do imperativo econômico e

tampouco as suas necessidades sócio-simbólicas, a maneira se inserem nas arenas

públicas das quais participam lhes permite que a partir delas possam negociar,

representar-se politicamente, e estabelecer, encerrar ou reestabelecer parcerias, que se

modificam – rompem-se, aproximam-se, reaproximam-se, agenciam-se, etc. – no

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decorrer da mudança de suas situações, e, mais estruturalmente, de suas posições

ocupadas no campo social.

Assim, veem o Sebrae como o agente que mais lhes permite a aproximação que

desejam com o mercado, enquanto a Emater pode lhes proporcionar as garantias

ambientais para manutenção de sua atividade, e o Iphan os insere na arena pública de

discussão de suas questões culturais e simbólicas e também lhe proporcionará o acesso a

algumas das prerrogativas que o reconhecimento do Círio de Nazaré como patrimônio

cultural imaterial pode oferecer.

Na arena pública, as associações civis dos artesãos de miriti se inserem em

articulações para garantir seus anseios de classe, estando às voltas, portanto, tanto com a

reprodução e permanência do tipo de processo criativo que lhes é próprio, quanto com

um engajamento político pela modernização das condições de exercício de sua

profissão, buscando a ocupação e a criação de cada vez mais espaços pensados e vividos

para a sua atividade sem reduzi-la a vitrines, respeitando sua sociabilidade e garantido a

reprodução desse ofício.

Vê-se que, aplicando-se nossa proposta de movimentar teórica e empiricamente

os campos de produção da cultura e as arenas públicas que nele se formam,

conseguimos localizar a cultura em meio a sua própria realidade e situá-la no tempo em

que é produzida, dando-nos subsídios suficientes para partir para discussões sobre qual

é o papel que joga no desenvolvimento de localidades.

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