Cana e Crack - Sintoma Ou Problema

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Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack1ARLETE FONSECA DE ANDRADECANA E CRACK: SINTOMA OU PROBLEMA?UM ESTUDO SOBRE OS TRABALHADORES NO CORTE DE CANA EO CONSUMO DO CRACKMestrado em Psicologia SocialPUC/SO PAULO2003Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack2ARLETE FONSECA DE ANDRADECANA E CRACK: SINTOMA OU PROBLEMA?UM ESTUDO SOBRE OS TRABALHADORES NO CORTE DE CANA EO CONSUMO DO CRACKDissertaoapresentadaBancaExaminadoradaPontifciaUniversidadeCatlicadeSoPaulo,comoexignciaparcialparaobtenodottulodeMestre em Psicologia Social, sobaorientaodoProf.Dr.PeterKevin Spink.Mestrado em Psicologia SocialPUC/So Paulo2003Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack3Prof. Dr. Peter Kevin SpinkProf. Dr. Odair SassProf.a. Dra. Leny SatoCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack4Dedico este trabalho aos cortadores de cana,acreditando em um futuro melhor.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack5 Alice Correia de Andrade, minha av e meuspais, Areno e Alzira.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack6Sem trabalho, toda vida apodrece. Mas, sob um trabalhosem alma, a vida sufoca e morre.Albert CamusCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack7RESUMONesteestudo,pretende-seanalisaracondiodostrabalhadoresrurais,notadamenteaqueles que se dedicam ao corte da cana-de-acar na regio de Ja/SP, intercalando adiscussoentreoprocessodaformaohistricaeculturaldessaspopulaeseosaspectos relacionados com o uso e abuso de drogas, especificamente o crack.Ametodologiadeanlisefundamenta-senafenomenologiasocial,AlfredSchtz,dandoformatericaaoqueoautordenominaomundodavidacotidiana,ondeaspessoas no teorizam a respeito de suas prticas. Um mundo real eintersubjetivo, emque as pessoas interagem umas com as outras naturalmente; ou seja, a partir do sensocomum, os homens vo interagir com seus valores, cultura, crenas, etc.Das entrevistas, tanto com os profissionais que realizaram atendimento aos cortadoresdecanaqueestavamconsumindocrackcomocomosprpriostrabalhadores,surgiramvriosquestionamentoscomo:adrogarelacionadaaotrabalho;questessociais;rupturacomosvnculosfamiliaresereligiosos;acondioprecriadesobrevivnciadessestrabalhadoresinseridosnumsistemabaseadonaexploraodamo-de-obraeexpropriaodesuasterrasondetodosseusvaloresacabamsendodesenraizados.Assim,aintenoseranalisarpontosemcomumquepossamoferecerrespostassquestes sobre os porqus do consumo de crack por parte dessas populaes.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack8ABSTRACTThisstudyanalysestheruralworkersconditionbringingintofocusthesugarcanecuttersintheregionofJa,StateofSoPaulo.Thediscussiongoesthroughtheprocess of historic and cultural formation of such population and the aspects related tothe use and abuse of crack.Themethodologyforanalysisisbasedonthesocialphenomenology,withwhichAlfredSchtzplacesunderatheoreticalviewtheconceptofworldoftheeverydaylifemeaningthatpeopledonottheorizestheirdailypractices.Arealandinter-subjectiveworldonwhichpeopleinteract oneachothernaturally,thatistosaythatpeopleinteract based on their own values, culture, beliefs, andso on,followingtheircommon sense.Theinterviewsmade with the professionals who attended the sugar canecutterswhowerecrackconsumersandwiththeworkersbroughtupmanyquestionssuchastherelationshipbetweendrugsandwork;socialquestions;ruptureofreligiousandfamiliar ties; precarious survival condition of these workers inserted in a system basedon the labour exploitation and expropriation of theirlands having as consequence therootlessness of their values as a whole. In thisway,thepurpose ofthisstudywillbetheanalysingofthecommonreasonswhichleadthatspecificgrouptotheconsumption of crack.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack9AGRADECIMENTOSA construo e finalizao desta dissertao de mestrado contou com a participao eapoio de vrias pessoas queridas. Sem elas, no haveria nem emoo e nem brilho nodecorrer desta trajetria.Emprimeirolugarqueroagradeceratodososcortadoresdecanaqueparticiparamdestapesquisa.Arecepoafetuosaquetiveportodosnocanavialnopoderiasermais gratificante. Em especial quero agradecer a Cristiane e ao Ccero, cortadores decanaquelutamporumfuturomelhor.Agentilezaegrandecontribuioqueofereceram foi estimulante para que eu continuasse a me interessar pelo tema.A minha me, Alzira da Fonseca Andrade sempre bondosa e generosa, ensinando-meavalorizartodososmomentosdeminhavida.Acalmava-meeconfortava-menosmeus momentos mais difceis, fazendo com que eu no desistisse dos meus objetivos.Aomeupai,ArenoCsardeAndrade,pormeensinarnavidaosignificadodaperseverana e do trabalho na conquista dos meus sonhos e desejos com dignidade.Oamoreapoioquerecebidelesfoiincondicional,compreendendoassim,meusmomentosdeausncia.Semissoseriaquaseimpossvelafinalizaodestadissertao.Ao Ricardo dos Santos Malafronte, grande companheiro que apoiou esta pesquisa emtodosossentidosduranteessesanosdetrabalho.Nosmomentosemquecompartilhavaminhas angstias eincertezascontagiava-medealegriacomseulindoolhar e sorriso renovando minhas foras para que eu continuasse em frente.A minha grande e querida amiga Isabela Pennella que acompanhou-me nesta trajetriadesde o incio semme abandonar umminuto sequer. Sempre disposta a me ensinar ediscutirquestesfundamentaisnoenriquecendodestapesquisa,confortando-meemtodososmomentos.Omaiorpresentequepudereceberdeumapessoa,eurecebi.Recebiaamizadedeumapessoamaravilhosasempedirnadaemtroca.AamigaIsabelaagradeopelagrandecontribuioecarinhoquetempormimeporestadissertao.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack10Ao meu grande e querido amigo Mrio Antnio de Moraes Biral, que assumiu comigoestafilha(adissertao)emtodosossentidos.Biral,comoochamamos,sempreestevepresente,orientando-menasvriasleiturasquefeznestadissertaocomcrticasesugestes,semdeixarocarinhodelado.Prestativo,intermediou-menoscontatos com o Prof. Dr. Igor Vassilieff do CEATOX de Botucatu e com o PresidentedaFETAESP,Sr.Mauroaqualasentrevistasforamfundamentaisparaapresentepesquisa.Aomeuorientador,Prof.Dr.PeterKevinSpink,queaceitouessedesafiocomigo.Seusensinamentospreciosostransmitiramconhecimentoeestmuloacadadianodesenvolvimento desta dissertao.AProf.Dr.MariaAparecidadeMoraesSilva,quedurantesuasaulasnaPUC/SPensinou-nosavalorizarohomemdocampoesuaculturaacadadia.Agradeoporseus ensinamentos alm de sua participao na minha qualificao.A Prof. Dr. Carmem Junqueira, grande professora e amiga que estimulou o princpioda minha escrita neste trabalho. Sempre carinhosa e atenciosa.Ao Prof. Dr. Odair Sass, pelas valiosas sugestes que fez em minha qualificao.AoProf.Dr.AntoniodaCostaCiampaagradeopelasprimeirasdiscussesecontribuies referentes ao presente tema.AProf.a.Dr.LenySatoporaceitarprontamenteoconviteemparticipardaminhabanca examinadora.AEmilenedoProgramadePsGraduaoemCinciasSociaisporsempremeorientareauxiliarnostrmitesadministrativosdaPUC/SP.Excelenteprofissional,alm de prestativa em todos os momentos.Agradeoagrandecontribuiodosprofissionaisqueentrevisteiduranteaminhapesquisa,soeles:oProf.Dr.IgorVassilieff,osprofissionaisdoCEATOXdeBotucatu,aDra.Eliete,oPastorValter,oSr.Francisco,CoordenadordoSindicatoCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack11RuralPatronal,oSr.Mauro,PresidentedaFETAESPeoSr.Polaco,PresidentedoSindicatodosTrabalhadoresRuraisdeMineirosdoTiet.Estaspessoasreceberam-mecomcarinhocedendohorasdeseusdiasparaasminhasentrevistaseindagaesem relao aos aspectos do trabalho no corte de cana e esclarecimentos sobre o crack.Ao meu querido Thor que no saiu nenhum minuto do meu lado e quando encontrava-me exausta e desanimada, distraa-me com suas brincadeiras graciosas, fazendo-me rire relaxar todo tempo.AminhaamigaAnaMariaAugustadaSilvasempreinteressadaemmeajudar,oradiscutindoatemticadorural,orabuscandoemsuabibliotecaparticularlivrosquepudessemmeauxiliaredesenvolverdamelhorformapossvelminhapesquisacomsuas ricas sugestes. Estimulando-me para que eu seguisse em frente.AoAndrPomorskiLorente,meurevisordeportugusquecomtodaapacinciaetranqilidadearrumavameuserros,almdeentregar os textosrapidamenteparaqueeu pudesse acertar os detalhes finais.AminhaamigaMyrt-ThniadeSouzaCruzporcompartilharcomigoasdiscussesreferenteatemticadoruralenriquecendoassimminhasidias.Agradeotambmpelasuadisposioecarinhoqueteveemesclarecerminhasdvidasquantoaostrmites institucionais da PUC/SP visualizando as solues necessrias.AminhaamigaRejaneTeixeirapelaamizadeecarinhoquesemprededicouamimdesdequenosconhecemosnomestradodaPUC/SPestimulandoassim,apresentedissertao.AosamigosMarizeDuarteeHaluopelasgrandescontribuiessobreatemticadorural em nossos encontros no NET (Ncleo de Estudos da Terra).Aos meus sobrinhos Luciana de Andrade Olivieri Braga e Felipe de Andrade Olivieri,pelo apoio moral, emanando energia positiva para que as minhas dvidas e incertezasdesaparecessem.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack12AoSENAR/SP(ServioNacionaldeAprendizagemRural)porterapoiadoefinanciado grande parte desta pesquisa, deixando-me tranqila nesse aspecto para queeu pudesse estudar e pesquisar sem haver este tipo de preocupao.AosfuncionriosdosetordainformticadoSENAR/SP,emespecialAndriaMedeiros Gonalves e Fabiana Gonalves de Lima, pela disponibilidade e carinho quetiveram comigo em todos os momentos em que as solicitei para resolver minhas crisese dvidas nesta rea.A Dlia Corredoni, Sr. Paulo Bonater e Nilson Kikuty, do departamento pessoal e definanasdoSENAR/SPpeladisponibilidade,rapidezecarinhoquetiveramemresolverostrmitesadministrativoscomabolsadeestudosfornecidapeloSENAR/SP.Ao pessoal da LivrariaLoyola,emespecialaoAntnio,porsempremeatendercomcarinho e pesquisar sobre os livros que necessitava para meus estudos. Mesmo quandoalgunsestavamesgotados,davaumjeitodeconseguir,contatandoseusamigosparame atender o mais rpido possvel.AoFlvioRochaeDaniel(CAdeLetrasdaPUC/SP)pelagrandecontribuionatranscriodasentrevistas,eaLissandraRamos,pelarevisofinaldessastranscries.Semvocseuestariaatagoraangustiadaparaterminarapresentepesquisa.A Mara Ftima Barbosa daLivrariaMaxLimonad,sempreprestativaedispostasejana busca dos livros e no andamento do processo da pesquisa.Enfim,tivemuitasorteemencontrarnomeucaminho,pessoastomaravilhosaseafetuosasparameajudaraconcluirestadissertao.Ummomentotosignificativoem minha vida como em suas vidas tambm. Assim, No poderia deixar de mencion-los e dizer muito obrigada.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack13SUMRIOApresentao 2Introduo 8Procedimentos metodolgicos10A Pesquisa de Campo23Histrias e Narrativas do Campo25Fenmeno e Relaes Sociais39Captulo I: Cana-de-Acar e o Trabalho Volante 52Captulo II: Modernizao e Pobreza 72Contradies da Modernizao85Captulo III: Cultura e Trabalho Rural 95Captulo IV: A Droga 109A Cultura do lcool115O Crack123As Diferentes Verses do Fenmeno133Perspectivas na Preveno das Drogas160Consideraes Finais 164Anexos 168Bibliografia 173Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack14APRESENTAOMeuav(minhaav)aminhanarrativaNlida PionCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack15Antes de iniciar a discusso deste estudo: Cana e Crack: Sintoma ou Problema umestudosobreostrabalhadoresvolantesnocortedecanaeoconsumodecrack,algumas consideraes, de cunho pessoal e profissional, so necessrias para entendera escolha desta pesquisa.Primeiramente,queropontuaraquestopessoal,quetemgranderelevnciaparaareferida escolha.Apesar de no ter nascido no rural, este tema sempre permeouminha vida e, de certaforma,minhaorigem,pormeiodasmemriasdeminhaavsobresuavidaemumstio no interior do estado de Esprito Santo, e de meu pai, que nasceu e viveu grandepartedesuainfncianomesmoambiente.Essasmemriasdiziamsobreocotidianonocampoemrelaoaotrabalhonaplantaoenacolheita,criaodosanimais,acaaeapesca,asfestastpicasquefreqentavam,aculinriaregional,queminhaav,jmorandoemSoPaulo,continuavaafazer,comocanjiquinha,quibebe(abborarefogada),cozidodelegumescomcarne,etc.Mas,porsercriana,oquemais gostava de ouvir era sobre as estriasfantsticas, como os animais selvagens (aonaeojacar),quevinhamdamataatostioprocuradecomida,aslendasdeassombrao,chamadasporeladecoisaruim,queemseulinguajarseriamelementosmalignosquevinhamperturbarapazdeespritodaspessoas;enfim,estrias cheias de significados transmitidas de gerao em gerao. Hoje acredito que,pelofatodeminhaavemeupaiseremexcelentesnarradores,almdoaspectodoexercciodamemria,umaformadereviversuaslembranasetransmitiressesconhecimentospormeiodaoralidade,metransformeiemumagrandeadmiradoradessas histrias.Depois, durante alguns anosfizdiversasviagensdelazeraointeriordeSoPauloe,durante o percurso dessas viagens, admirava as plantaes de cana-de-acar, ficandoao mesmo tempo encantada e intrigada com a imensido dessa cultura e com a grandeimportncia que possua na vida dos trabalhadores e produtores rurais.Quandovisitavaaspropriedadesrurais,stiosechcaras,lestavaacana-de-acar.Diversasruasrecortavamoseuinterior,formandoumgrandelabirinto,enoconseguia descobrir o comeo e o fim dessas ruas; era ummarverde,decanaverde.Almdisso,asqueimadasrealizadasnocanavialaoentardecer,comafinalidadedefacilitar o trabalho dos cortadores de cana, eram hipnticas.Ascoresazuleavermelhadocontrastandocomoanoitecereramumespetculo.Apesardoaspectoantiecolgico,eramuitobonitodesever.EsseperodofoinaCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack16dcadade80,nosmunicpiosdePiracicaba,Tietecidadesvizinhas,ondeaplantao da cana-de-acar foi e at hoje a principal atividade agrcola.Emrelaoaoaspectoprofissional,logodepoisdesteperodofuitrabalharcomoestagirianoCentrodeEstudosRuraiseUrbanos-CERU,naUSP.OobjetivodoCERUestudar,apartirdoreferencialsociolgico,osdiversossegmentos,transformaes e movimentos sociais ocorridos tanto no espao rural como no urbano.Ali tive contato com diversos professores e pesquisadores que estudavam o rural. Foiumaexperinciaenriquecedora,poisjencontrava-meinteressadaportemasqueabordavam esse aspecto.Logo aps, trabalhei durante anos na Secretaria de Estado da Cultura, e, para a minhasatisfao,noDepartamentodeAtividadesRegionaisdaCultura-DARC,ondefizmuitasviagensaointeriordoEstadodeSoPaulo,levandoatividadeseeventosculturais populao local.Atualmentetrabalhoemumainstituio(SENAR/SP)deeducaoprofissional,interligadacomatividadesdepromoosocial,parapequenosemdiosprodutores,trabalhadores rurais e seus familiares.Emrelaoaotemadasdrogas,tambmhouvegranderelevnciatrabalhandonoInstituto de Medicina Social e Criminologia IMESC, uma autarquia da Secretaria daJustia.Nessainstituiofizpartedeumaequipemultidisciplinarqueestudavaarelao do uso de drogas entre dependentes qumicos e a repercusso familiar e socialna vida dessas pessoas.Em 1997, j trabalhando na instituio em que me encontro atualmente, assistindo aonoticirio da noite na TV, acompanhei uma srie de reportagens sobre oconsumodecrack entre os cortadores de cana. Fiquei surpresa, pois o contexto que associamos aocrackdeviolncia,marginalidade,consumodeoutrasdrogasesermuitocomumnosgrandescentrosurbanos.Faleidoassuntonomeulocaldetrabalhoedapreocupao frente a essa questo. Sugeri desenvolvermos um programa de prevenoao uso indevido de drogas no campo, e obtive a autorizao para pesquisar e elabor-lo.A partir desse ponto, participei de diversos cursos em relao ao tema,fizpesquisas,entrei em contato com outras instituies e comoscolegasdoIMESCe,finalmente,elaborei o programa, consultando e buscando sempre a validao das diversas pessoasCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack17einstituiesenvolvidascomaquesto,comooCEBRID,IMESC,CONEN,COMEN e SENAD.1A elaborao do programa at sua validao teve durao de um ano. Entretanto, porquestesfinanceiras,athojenopdeserimplantado.Mesmoassim,insistiemestudar esse fenmeno, que, alm de ser um tema importante e preocupante, foi poucopesquisado, at por ser um fenmeno recente.Dessaforma,chegueiaoProgramadePs-GraduaodePsicologiaSocialdaPUC/SP, em 1999, com o objetivo decontribuircomasdiversascomunidadesruraisque enfrentam esse problema.Como a rea rural do estado de So Paulo imensa, e diversas regies vm sofrendocom essa questo, foi necessrio delimitar o perodo e a regio, pois seriaimpossvelfazer um levantamento em todo o estado.Sendo assim, a regio estudada nesta pesquisa Ja, onde localizam-se os municpiosdeIgaraudoTiet,cidadeemquefoirealizadaareportagemtelevisivasobreoscortadores de cana-de-acar consumindo crack, Campos Canavial e Rios Dourados2,cidadesvizinhas,ondeapresentepesquisaconcentrou-senapartedeentrevistasaoscortadores de cana e na vivncia no canavial.OEDRdeJa3umdosmaisimportantesnaplantaoeproduodecana-de-acar.Desse modo, encontro-me envolvida nesta pesquisa desde outubro de 1997, mantendocontato com essanova realidade rural, de trabalhadoresruraisvolantes,expropriadoshistoricamentedoprocessosocialedetrabalho,vivendoamarginalizaoemtodosos sentidos.Tudolhesfoitirado.Suasterras,suadignidade,suasobrevivncia,suacultura,seutrabalho e, agora, seu corpo. Corpo marcado por dcadas de luta e excluso social, e,atualmente, pelas drogas. 1CEBRIDCentroBrasileirodeInformaessobreDrogasPsicotrpicas,IMESCInstitutodeMedicinaSocialeCriminologia,CONENConselhoNacionaldeEntorpecentes,COMENConselhoMunicipaldeEntorpecentes,SENADSecretaria Nacional Antidrogas.2 Foram atribudos nomes fictcios aos municpios estudados em virtude da preservao de suas identidades.3DeacordocomoInstitutodeEconomiaAgrcola,asregiesdoestadodeSoPauloestodivididasporEDR(EscritriodeDiviso Regional). Esta diviso foi criada para facilitar o trabalho dos pesquisadores que analisam os dados relativos sculturaspredominantes nas regies,suaproduoemquantidade,nmeroetamanho daspropriedades,mercadode trabalho,etc., pois oestadodeSoPaulomuitoricoediversificadonareaagrcolaeseriaimpossvelaprofundarosestudosnomeioruralsemestas divises.Os EDRs que mais se destacam no estado deSo Pauloemplantioeproduodacana-de-acarso: RibeiroPreto, Orlndia,Ja,Jaboticabal,Limeira,Piracicaba,AraraquaraeBarretos.Nessasregies,acana-de-acarchegaaserpraticamenteumamonocultura,comgrandenmerodeusinaselargautilizaodemo-de-obra.Asoutrasregiesdoestadotambmproduzemcana-de-acar, mas no to significativamente como as j mencionadas.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack18Otrabalhonocortedecanapossuiduploaspecto.Aomesmotempoquemantmasobrevivncia de vrias pessoas e famlias no meio rural, aviltante ao ser humano nosentidofsico,intelectualesocial.Enfim,fascinanteeaviltantesoaspalavrasquemelhor definem o trabalho com a cana-de-acar.Opresenteestudoapresenta,almdaparteintrodutria,emqueconstamosprocedimentosmetodolgicosadotadosnapesquisaeoreferencialmetodolgicobaseado na fenomenologia de Alfred Shutz4, estar dividido em quatro captulos.Oprimeirocaptuloabordaroprocessohistricodosetorcanavieiroesuasimplicaesnosaspectossociais,econmicoseambientaiseastransformaesgeradasnocotidianodostrabalhadoresruraisrelacionadosculturadacana-de-acar.Osegundo,intituladoModernizaoePobreza,abordarascontradiesexistentesentre os grandesinvestimentos financeiros etecnolgicosapoiadospeloEstado,comoobjetivodebeneficiaraeconomiabrasileiranaproduodeacarelcool,mantendoaposionorankinginternacionalcomoumdosprimeirospasesexportadores destes produtos industrializados, e a crescente pobreza e excluso socialdetrabalhadoresepequenosprodutoresrurais,deixadosdeladodesseprocessoemnome da modernizao tecnolgica.Ocaptuloseguinteabordaaculturacaipiraeatransformaodessapopulaoemtrabalhadoresvolantes,bias-frias,perdendonossuasterras,mastambmacultura, modo de vida, etc.Oltimocaptuloabordarocontextodadroga,iniciandocomseusignificadonasdiversas culturas e o aspecto farmacolgico. Em seguida, o texto abordar a cultura dolcooleoconsumoelevadodeaguardente,queprovenientedacana-de-acar,hbitojinseridonaculturacaipira,almdosurgimentodeoutrasdrogascomoocrack, por exemplo.Quaisosaspectospsicossociaisquelevamessestrabalhadoreseseusfamiliaresaconsumirem?Serquealgicaamesmadoespaourbano?E,finalizando, algumas alternativas de preveno ao uso de drogas. 4 Shutz, A., Fenomenologia e Relaes Sociais. Ed. Zahar, 1979.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack19INTRODUOEu acho que Deus que manda alguma pessoa pra vo que que t acontecendo aqui na, na nossa regio. No s aqui no,emtodoslugar,emtodosos lugar.Vocsvrecramao,choro,desavena,briga,fome.Cno fala, ningum fala assimSra. Clara: mulher, me, trabalhadora e lutadora. Ainda temsonhos e acredita na felicidade.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack20Adisposioemqueseencontramasluvaseofaconofoiumamontagem.Acortadoradecanacolocou-osnochonaturalmentenapausadoalmoo.Euestavapresentenessegrupoeramosquatromulheres.Eusentadanogarrafodegua,oferecidoporelas,comendomeulanche,eelasaomeulado,comendoacomidadesuasmarmitas.Derepente,observeiapresenteimagemeimediatamentefotografei.Estesinstrumentostmumarepresentaomuitograndenocotidianodessestrabalhadores.(Foto: Rios Dourados, agosto de 2001, Arlete Fonseca de Andrade)Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack21Pretende-se,comesteestudo,analisaracondiodostrabalhadoresruraisvolantesque se dedicam ao corte de cana no estado de So Paulo, com o objetivo de enriqueceradiscussosobreoentendimentodoprocessodetrabalhodessesindivduosearelao com o contexto da droga, neste caso, o consumo de crack.Para tanto, faz-se necessrio refletirmos primeiramente sobre oprocessohistricodoadventodaculturadacana-de-acarnoestadodeSoPauloeosurgimentodacategoriadetrabalhovolantenomeiorural,comotambmsobreasmudanasquesurgiram na agricultura paulista.So diversas as questes e contradies queiro permear este estudo, mas uma delasconsidero a mais representativa: trata-se da modernizao e pobreza que envolvem osaspectoshistricosesociaisdamo-de-obranaculturadacana-de-acar.Amodernizao refere-se a toda tecnologia empenhada durante dcadas na agroindstriacanavieira; a pobreza, aos trabalhadores rurais submetidos a uma ordem de exploraoda fora de trabalho e de suas terras, que vem desde o Brasil colonial, contribuindo naconstruodesseimprioenono-reconhecimentodesuaimportncianesseprocesso.Notou-se, no decorrer da pesquisa, que o tema,porsuacomplexidade,possuicartermultidisciplinar,podendoserlidopelovisdageografia,sociologia,economia,histria, psicologia social, poltica, economia e antropologia. Essas disciplinas traamumaanlisedomeiorural,principalmentetratando-sedetrabalhadoresvolantesdeumaregiodelimitada,eumaespecficaculturaagrcola,nocaso,acana-de-acar.Mas o eixo principal deste trabalho ser desenvolvido pela tica da psicologia social,devidoaocontextodoconsumodedrogasporpartedostrabalhadores;abordar,portanto, os aspectos psicossociais inseridos nesse fenmeno.Procedimentos MetodolgicosO desenvolvimento desta pesquisa passou por diversasfases.Inicialmente,procurou-sereunirtodososdadosreferentesaocotidianodostrabalhadoresruraisquesededicamaocortedecanaparaaproximaroentendimentoemrelaoaosvriosaspectos que levam ao consumo de drogas, especificamente o crack.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack22Apartirdareportagemtelevisiva(JornalNacionalRedeGlobo)sobreoscortadoresdecanaconsumindocracknomunicpiodeIgaraudoTiet,transmitidaem outubro de 1997, iniciou-se abusca de dados como: levantamento de reportagensdejornal,bibliografiassobreoassuntoecontatocompessoasquepudessemnortearesclarecimentos sobre esse novo contexto no campo.Foramencontradasreportagensdejornalsobreoassunto(FolhadeSoPaulo,CadernoCotidianoExplodeConsumodeDrogasnosCanaviais:09/06/97,JornalTodoDia,CadernoCidadesUsodeDrogaporCortadoresdeCanaPreocupa:31/07/02,CosmoOnLine,CosmoEspecialCresceConsumodeCrackentreCortadoresdeCana:09/05/02eCosmoOnLine,RedaoWEBEspeciais Trfico Internacional Retoma Rota Caipira: 5/11/02)5, descrevendoos fatos ocorridos em Igarau do Tiet e o crescente consumoemoutrosmunicpios.Apsesselevantamento(reportagensebibliografia),constatou-seaescassezdoassunto.Ento,iniciou-seocontatocomprofissionaisepessoasligadasdiretaouindiretamentequesto,levandoemconsideraoasorientaesprevistasnaResoluon.196de10/10/19966,doConselhoNacionaldeSade,emrelaospesquisas envolvendo seres humanos, preservando, assim, suas identidades.Sobreesseaspecto,asinformaeseesclarecimentosdoOrientadoremrelaoaomododeentraremcontatoeatemsecomportardiantedosentrevistadosforamfundamentaisparaadireodapesquisa,transmitindosegurananasminhascolocaes e observaes. 5 Estasmatriasdescrevemocrescentenmerodecortadoresdecana consumindocrack, alm da Rota Caipira,nomedadoestratgiada distribuiodedrogasno interior paulista. OscanaviaisagoraintegramaRotaCaipiraporteremvriasruasdeterra no meio do canavial, feitas pelos donosdasterras plantadasepelos usineiros, parao acesso dascolheitadeirase transportedas canas colhidas.Anexas, encontram-se as matrias na ntegra.6 Por a pesquisa se tratar de um tema delicado e de certa forma perigoso, no ser revelado o nome dos pesquisados, bem como onomedosmunicpios.EsteprocedimentoestrespeitandoasDiretrizeseNormasRegulamentadorasdePesquisaEnvolvendoSeres Humanos Conselho Nacional de Sade, de acordo com a Resoluo n. 196/96, em no causar possibilidades de danos eriscosdimensofsica,psquica,moral,intelectual,social,culturalouespiritualdoserhumano,emqualquerfasedeumapesquisa e dela decorrente. Pargrafo II 8.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack23Matria: Folha de So PauloJunho 1997Edio 24.904 Segunda, 09/06/97 Tiragem 518/464COTIDIANOExplode consumo de droga nos canaviaisWAGNER OLIVEIRAda Agncia Folha, em BotucatuAdolescentes que trabalham nos canaviais da regio de Botucatu (225 km deSP)estoadotandooconsumodecrackcomoformadeaumentaraprodutividade e, assim, ganhar mais.''O consumo da droga entre osjovensvemcrescendo emritmoacentuado'',disseomdicoIgorVassilieff,especializadoemtoxicologiaediretordoCeatox (Centro de Assistncia Toxicolgica).Ocentro,ligadoaodepartamentodeBiomdicasdaUnespdeBotucatu,realizaanualmenteumapesquisacomjovenscortadoresdecananasfazendas da regio.Em96,ocentroregistrou42usurios.Em95,haviamsidoregistrados14casose,em90,apenasdois.Osusuriossosubmetidosatratamentodedesintoxicao, oferecido pelo prprio centro.''Quemtrabalhanaroaprocuraocrackparatrabalharmais,poisadrogaproduzumefeitoantifadiga.Nacidade,ousodadrogaporinflunciadeamigos, por diverso '', afirma Vassilieff.''Mas, depois, o jovem do campo tem de abandonar logo o servio na lavoura,pois os efeitos da droga acabam debilitando-o.''Os jovens que passam pelo Ceatox so submetidos a uma bateria de examespara se saber o grau de toxinas existente no organismo do usurio.Elesrecebemacompanhamentomdico,psicolgicoe,quandonecessitam,soencaminhadosaentidadesqueoferecematividadespararecuperarviciados,comoterapiasocupacionaiseespirituais.OCeatoxatendejovensde cerca de 20 cidades na regio de Botucatu.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack24Namaiorpartedessascidades,acana-de-acarumadasprincipaisatividades econmicas.EmIgarau,umadascidadesemqueoCeatoxprestouservioajovensligados ao corte de cana, 90% da populao est envolvida com a atividadecanavieira.OpromotordaInfnciaeJuventudedacidade,LuizGuilhermeGomesdosReisSampaioGarcia,dissequeoconsumodedrogasentreosjovenscarentes um dos grandes problemas da cidade.''Ns sabemos que a droga est no campo e na cidade e que um trabalhodifcil combat-la'', afirmou. Ele disse que o baixo preo do crack facilita o usoda droga entre os jovens mais pobres, tambm entre filhos de lavradores. Nacidade, uma pedra da droga vendida por cerca de R$ 5.DesconhecimentoOpresidentedaUnica(UniodaAgroindstriaCanavieiradeSoPaulo),Srgio Ometo, disse desconhecero problemadocrackespecificamentenoscanaviais.''Hoje,todosnssabemos,adrogaestemtodolugar'',afirmou.AUnicarepresenta 122 usinas no Estado e foi criada recentemente para fortalecer osetor.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack25Matria: Jornal DiaREGIOUso de droga por cortadores de cana preocupaClaudete Campos RegioOusodeentorpecentesporcortadoresdecanadeAmericana,SantaBrbaradOeste,NovaOdessa,PaulniaeSumar,tempreocupadoosproprietriosdeplantaesnosmunicpios,emespecialcomaquedadaproduoecomapossibilidadedeacidentesdosviciados.OdelegadoseccionaldeAmericana,JosRobertoDaher,determinouinvestigaesDise(DelegaciadeInvestigaesSobreEntorpecentes)deAmericana.OdelegadoMarcoAntonioPozetideterminoulevantamentosobreoassuntopara tentar descobrir a origem do problema. O presidente da Cooperativa dePlantadores de Cana de Santa Brbara, JurandirTunussi,queaindaatendeAmericana, Nova Odessa, Sumar e Paulnia, alm de Monte Mor, disse queficousurpresocomoconsumodedrogaspelostrabalhadoresrurais,porserem pessoas simples. preocupante, nunca ia imaginar que acontecia umnegcio desses no meio do campo, explicou Tunussi.SindicatoOpresidentedoSindicatodosTrabalhadoresRuraisdeCapivarieRegio,incluindoSantaBrbara,AntonioJosBon,confirmouqueosproprietriosruraissepreocupamcomoassuntoporqueousodedrogaspodeafetaraproduoeprovocaracidentesnotrabalho.Houvecasodeagressesnosalojamentosdevidoousodedrogas.SegundoBon,oproblemavemocorrendo h dez anos e afeta todos os municpios. A dificuldade encontrarvagas nas clnicas de recuperao.OdelegadointerinodaDisereconhecequetambmficousurpresocomarevelao. Normalmente, a polcia e as reparties que cuidam da seguranatentamtraaroperfildousurio,visandoverificarascausasdoconsumo.Pozeti explicou que usurio sob efeito do crack, a droga mais consumida porpessoas de menor poder aquisitivo, no tem condies de trabalhar.Copyright 2001 - Editora Z - Jornal Todo Dia - Todos os direitos reservados. Esta pgina melhorvizualizadanosbrowsersMSInternetExplorer4.0ousuperiorouNetscape4.0ousuperior, com resoluo de tela de 800 x 600 pixels e 256 cores ou melhor.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack26Matria: Cosmo On LineCresce consumo de crack entre cortadores de canaFbio Gallacci/Agncia AnhangeraAs mos speras que empenham o faco afiado para mais um dia de colheitapesada so as mesmas que acendem um cachimbo que pode levar morte.Vtimasfreqentesdoconsumodebebidasalcolicasedocigarro,muitoscortadoresdecana-de-acarqueatuamnascidadesdaRegiodeAmericana (SP) - a 50 km de Campinas - encontraram um caminho sem voltaparaaliviararotinasofridanoscanaviais:ocrack.Maisbarataqueumagarrafa de pinga, a droga que o refugo da cocana em forma de pedra vemsepopularizandoentreostrabalhadoresrurais,quenotmqualqueralternativa de lazer, incentivo ou perspectiva de futuro.A compra em pequenas quantidades garantida nos centros urbanos, mas olocaldoconsumonoumaesquinaqualquerdecidadegrande,masoprprio emaranhado verde onde passam horas a fio. Os mesmos milhares demetrosquadradosdecanaquelhesgarantemoganha-poemcadasafra,tambmservemcomooesconderijoperfeitoparaaviagemalucinadaembusca de um perigoso prazer."Nacidade,voctemumcinema,umapizzaparadistrairacabea.Nocampo, a gente tem a solido, o tdio e o trabalho pesado. Aqui sim o lugarperfeitoparaaentradadasdrogas",defineR.,de40anos,quecostumavaser consumidor frequente de crack nos canaviais de Santa Brbara d' Oestee hoje luta para se manter longe do vcio. "O traficante do cortador de cana ele prprio, que pega quase tudo o que ganha em umasemanadetrabalhopara ir atrs da pedra. O interessante que conheci a droga com pescadoresaqui da Regio", conta.DeacordocomR.,noraroencontrarparceriasorganizadasentreoscolegasdecanavialparaqueoconsumodadrogasejamaisconstante."Cada dia da semana, um do grupo recebe o seu vate. Esse dinheiro garantea compra da pedra para todos aproveitarem. aquela velha histria: hoje eugaranto o seu lado e amanh voc garante o meu", descreve.O consumo do crack tambm feito sem despertar suspeitasdistncia.Otradicionalusodocachimbofacilmentesubstitudopeladrogasendocolocada dentro de um cigarro comum. "Basta esmagar a pedra e enfiar tudono lugar do fumo. Tambm j consumi maconha enrolada em palha de canapara despistar o cheiro", descreve R., nos mnimos detalhes.O trabalhador rural M.V., de 24, que trabalhou no plantio do milho e da canana Regio de Campinas, acelerava o trabalho para fazer sua realidade sumirem meio fumaa. "Ganhava R$ 10,00 por dia trabalhado e gastava R$ 5,00Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack27numa 'paranga' (poro) de maconha. Tambm usava o crack para esquecerdosproblemasemcasa;meuambientefamiliarnoerabom",dizoex-viciadoquebuscaapoioparareconquistaradignidade."Querovoltaraestudar. Parei na 8 srie". M.V. costumava comprar um baseado pronto porR$ 1,00. Para se ter uma idia, cada balaio de milho que colhia lhe rendia R$0,25. Quatro balaios garantiam alguns minutos de "barato".Maconha no volanteAlmdodramadeseentregaraovcio,ostrabalhadoresruraisqueestoligadossdrogastambmexpeavidadeoutrosduranteotrabalho."Nosei como nuncamachuqueinenhumcolegameu.Canseidedirigirumtratorcompletamentedrogado.Almdocrack,costumavavararaterraparaoplantio de cana e batata com um baseado na boca. O patro me pegou vriasvezes, mas como no atrapalhava o servio, ele deixava numa boa. Algumasvezes,attraziapingapragentebebernosintervalos",afirmaotratoristaA.I.R.,de31,quehojebuscarecuperaonoSanatrioEspritadeAssistncia e Recuperao de Americana (Seara)."J cheguei a ficar cinco horas dentro de um canavial fumando maconha e 50gramasdecrack,improvisandoumcachimboemumalatinhadecerveja.Dois cortadores e um motorista desses treminhes estavam comigo", lembraR.,mencionandooprofissionalquetemnasmosaresponsabilidadedetransportar toneladas de cana em caminhes gigantescos pelas mal cuidadasestradas da Regio do plantio da cana-de-acar.Copyright1996-2002,CosmoNetworksS/A.RedeAnhangeradeComunicao-RAC.Todos os direitos reservados.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack28Matria: Cosmo On Line Redao WEB EspeciaisTrfico internacional retoma Rota CaipiraRogrio Verzignasse, do Correio PopularOtrficointernacionaldedrogasestretomandoafamosaRotaCaipira,nomedadoestratgiautilizadaporessesgruposparadistribuirentorpecentesemtodooInteriordoEstadodeSoPaulo.Agora,oscanaviaispaulistaspassaramaintegraroesquema.Osentorpecentes,fornecidosprincipalmentepeloParaguai,sotransportadosdeavioehelicpteroparaoInteriordeSoPaulo.Asaeronavespousamparadescarregarospacotesnoschamadoscarreadores,estradasestreitasabertas pelos usineiros para a operao das colheitadeiras nos canaviais. Snesteano,70%das82toneladasdemaconhaecocanaapreendidasnoEstadodoMatoGrossodoSultinhamcomodestinooInteriorpaulista.Porms, circulam pela Rota Caipira cerca de 5 toneladas de drogas.Ainovaonametodologiadesafiaosorganismospoliciais.Asaeronaves,pequenas,pousamcomtranqilidadenoscarreadores.Hcasosemquehomens, a servio do trfico, alargam as estradinhas, derrubando a cana-de-acarcomjeeps,caminhonetesoutratores.Depoisdopouso,ospilotosnemsepreocupamemdesligaros motores.Empoucosminutos,asdrogasimportadassocolocadasemveculosetransportadasparaoscentrosconsumidores.Em outras situaes, nem o pouso necessrio. Voando baixo, as aeronavesdespejamospacotescomentorpecentessempousar,emtrechospreviamente determinados dos canaviais.Diante deste cenrio dramtico, a Polcia Federal, organismo encarregado decoibirotrficointernacionalnoBrasil,ficademosatadas.Antes,otrficoareoeramaisraroeseutilizavabasicamentede300pistasnohomologadaspelaAeronutica.Sabamos,pelomenos,ondeasdrogaspodiamserreceptadas.Hoje,nestemardecanaviaiscortadosporcarreadoresnanossaregio,impossveldeterminarasrotas,falaodelegado Edson Bocamino, da Polcia Federal de Ribeiro Preto, municpio apouco mais de 200 quilmetros de Campinas.Nova rotaAnovaRotaCaipiraseutilizabasicamentedos54,7milquilmetrosquadradosdoterritriopaulista,localizadosentreosriosTiet,Paran(nadivisacomoMatoGrossodoSul)eGrande(nadivisacomMinasGerais).Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack29So as regies de So Jos do Rio Preto, Araraquara e Ribeiro Preto, ondeesto instaladas delegacias da Polcia Federal.Mas os traficantes descobriram, usando os carreadores, uma estratgia paraescapardarepressopolicialdosimportantescentrosurbanos.Nocomeodo ms, por exemplo, umaviofoiabatidonoarquandosepreparavaparalanarpacotesdemaconhaemumafazendaentreascidadesdeMorroAgudo e So Joaquim da Barra, a 55 quilmetros de Ribeiro Preto. A PolciaFederalconseguiuapreender678quilosdemaconhaevriosveculosqueesperavam pela droga no cho: um Palio, uma Saveiro e duas motocicletas.Umtraficantemorreueoutroscincoforampresos.Nestems,tambmocorreram apreenses em Araraquara, Araatuba e Barretos.Foramapreensesimportantes,masodelegadoreconhece:impossvelimaginarquantastoneladassodespejadasnoInterioracadams.umaguerra que, infelizmente, a sociedade est perdendo.Melhor visualizado em 800X600 e em Internet Explorer 4.0. Copyright 1996 - 2002 CosmoOn Line. Todos os direitos reservados.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack30A primeira entrevista foi com o Prof. Dr. da UNESP de Botucatu, Igor Vassilief,7 quedesenvolvepesquisasnoCEATOX(CentrodeAtendimentoToxicolgico),sobreinformaes das diversas substncias txicas ingeridas pela populao. Existem vriosCEATOXs e Centros deControledeIntoxicao(CCI)emnossopas,etodosestointerligados ao SINITOX (Sistema Nacional de Informaes Txico-Farmacolgicas),que, por sua vez, est vinculado FIOCRUZ (Fundao Osvaldo Cruz).OSINITOXtemporobjetivofazerlevantamentosestatsticosanuaisdoscasosdeintoxicao e envenenamento existentes em todo o Brasil, obtendo esses dados atravsdos CCIs e CEATOXs espalhados por todas as regies do pas.O CEATOX, alm de exames, faz atendimento hospitalar em relao desintoxicaodediversassubstnciaseorientaopsicolgica.Algunscasos,emrelaoaoscortadoresdecana,foramencaminhadosaoCEATOXparaexames,atendimentohospitalar e, caso fosse necessrio, providncias para internao.AentrevistacomoProf.Igorrealizou-seemduasetapas:umanoCEATOX,emBotucatu, e outra em So Paulo, quando veio para proferir uma conferncia.Depoisdessaentrevista, oProf.Igorcolocoudisposiooarquivodospronturiosde atendimento, alm de me apresentar a psicloga com quem trabalha, e que tambmfez o atendimento a esses trabalhadores da cana.Os arquivos onde encontravam-se os pronturios das pessoasatendidasnoCEATOX UNESP/Botucatu no estavam organizados em relao ao tipo de droga consumidaouperfildapopulao,esimporano.Nessaetapadapesquisa,fiz3viagensaomunicpiodeBotucatu,consultandocadapronturio,poishaviamilhares.Destaforma, selecionei alguns anos, principalmente o de 1997, ano da reportagem televisivarealizadanomunicpiodeIgaraudoTiet.Abaixo,descrevereioperfildealgumaspessoas atendidas no CEATOX que considerei relevante para esta pesquisa. 7 Neste caso cito o nome do Prof. e o nome da Universidade em que faz pesquisa em funo de ter autorizado sua imagem nosomente na televiso, mas tambm na reportagem do jornal sobre este caso e a mim, na presente pesquisa.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack31SEXO:M/FIDADE MUNICPIO DROGA ANO OCUPAOM 18 anos Igarau do Tiet Cocana,Maconha eCrack27/08/96 TrabalhadorRural/AutnomoM 21 anos Igarau do Tiet Crack e outras ? Cortador deCana/AutnomoM 39 anos Itatinga Maconha eCrack05/11/97 TrabalhadorRural/AutnomoM 24 anos Avar Cocana eCrack? TrabalhadorRural/AutnomoM 15 anos Igarau do Tiet Crack 19/11/96 Cortador deCana/AutnomoM 16 anos Igarau do Tiet Crack 27/05/97 Cortador deCana/AutnomoM 17 anos Igarau do Tiet Crack 09/09/97 Cortador deCana/AutnomoM 16 anos Igarau do Tiet Crack 08/01/98 Cortador deCana/AutnomoM 17 anos Igarau do Tiet Crack 30/09/97 Cortador deCana/AutnomoM 23 anos So Manoel Crack 11/11/97 TrabalhadorRural/AutnomoFonte: Pronturios do CEATOX UNESP/BOTUCATUAlmdosarquivosdospronturios,oCEATOXforneceuumalistagemdonmerototaldepessoasatendidasporconsumodedrogasilcitas,discriminandooanoeasreas (rural e urbana) como demonstra a tabela a seguir:Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack32Ano Rural Urbana1994 90 1601995 85 1681996 75 2661997 84 2631998 72 2661999 94 214Total 500 1.337Fonte: CEATOX UNESP/BOTUCATUCriou-seapartirdaumarededeinformaesbaseadanaconfianaecredibilidadeemrelaopesquisa.FizdiversasviagensaBotucatu,pesquisandoeanotandoasinformaesqueconstavamnospronturios,almdaentrevistarealizadacomapsicloga Dra. Eliete.Apartirdessaentrevista,foi-meindicadooPastordaIgrejaAssembliadeDeus,oqual, na poca, era Presidente do DesafioJovem,instituioligadaaoGovernodoEstado (Assistncia Social), direcionada a jovens transgressores com priso assistida.Paraencerraraprimeiraetapadeentrevistascomessesprofissionais,entrevisteioPresidentedaFETAESP(FederaodosTrabalhadoresnaAgriculturadoEstadodeSoPaulo)eoCoordenadordoSindicatoRuralPatronaldeSoManuelsobreestaquesto.Almdetraarumalinhacondutoranapesquisa,oobjetivodeentrevistardiversaspessoaseprofissionaisenvolvidosfoiouvirasdiferentesvozeseversessobreopresente fenmeno.Por meio desta rede de informaes, obtive contato com o Presidente do Sindicato dosTrabalhadoresRuraisdomunicpiodeCamposCanavial,paraentrevistarcortadoresde cana que trabalham tanto para as usinas locais como para os fornecedores.Oscortadoresentrevistadosnestapesquisasooquechamamosdeinformantes-chaves,conhecemeconvivemnacidadeenotrabalhocomaquelesquesoconsumidores de crack e outras drogas; alguns deles j esto dependncia qumica.Sendo assim, acredito ser relevanteparaa pesquisarelatar operfildoscortadoresdecana entrevistados e que chamamos anteriormente de informantes-chaves.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack33Sexo Idade Grau de Escolaridade Estado CivilF 22 anos Colegial Completo SolteiraF 30 anos ? SeparadaF 46 anos 2a.SriePrimriaPrimrio IncompletoCasadaM 21 anos Colegial Completo AmigadoM 20 anos 4a.SriePrimriaPrimrio CompletoSolteiroM ? Ginsio Incompleto SolteiroF 48 anos Primrio Incompleto SeparadaM 53 anos Primrio Incompleto AmigadoViajei em diversas ocasies para os municpios de Campos Canavial e Rios Dourados,permanecendodurantetodososdiasnocanavial,interagindonesseespao,opesquisadoreopesquisado,compartilhandocomelesocotidianodotrabalho,vivnciaseemoes,gravandoentrevistasemrelaoshistriasdevida,centralizandoasperguntasnoambientefamiliar,trabalho,expectativasdefuturo,sonhos, e, principalmente, sobre a droga e suas concepes.Almdasentrevistas,registreitodososmomentos,impressesdaviagem,convvionocanavial,conversacomoutroscortadoresquenoentrevisteietc.,naformadediriodecampo,comoobjetivodeaprofundartodosossentidosquecirculavameinseri-los na pesquisa.Osvdeossobreo trabalhoeavidacotidianadoscortadoresdecanatambmforamfundamentaisparaentenderoprocessohistricoesocialqueessaspessoasvmpassandoesofrendo,sobcondiessubhumanasdeexistncia.DestacoosvdeossobreagrevedeGuariba,realizadaem19848.Essagrevefoiumadasmaisimportantes da categoria, ficando conhecida em todo o estado de So Paulo, e tambmem outros estados do pas. Apesar da tamanha violncia que acarretou at na morte deum trabalhador, conseguiram os direitos trabalhistas que exigiam.AsAndorinhas:NemCeNemL9abordaoaspectodamigraodaspopulaesruraisdoValedoJequitinhonhaparaaregiodeRibeiroPretoeossentidosqueenvolvem deixar o lugar em busca de trabalho para manter suas famlias. 8 Realizao: UFRJ, UFSCar, FERAESP. Imagens de Arquivo: TV Cultura, TV Manchete e CEDIC.9 Projeto de Pesquisa da Prof.a. Maria Aparecida de Moraes Silva. Realizao: CEDIC e UNESP Araraquara.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack34OsvdeosBrasilCaipira10eCasaGrandeeSenzala11tambmdizemrespeitosrazesdoBrasil,tradiesesignificadodomododesercaipira.E,finalizando,ovdeosobreareportagemdoscortadoresdecanaconsumindocrack.12.Essesvdeosenriqueceramapesquisa,trazendocomoelementosasimagenssobreavida,otrabalho, a fome, a violncia, a busca pelo direito adquirido e o medo da seca, do no-retorno,donotrabalho.Soimagensreaisquetratamnoapenasdador,masdafelicidade e orgulho de ser um trabalhador rural.A Pesquisa de CampoPara muitos pesquisadores, a pesquisa propriamente dita se restringe ao levantamentodedadosediscussodaproduobibliogrfica;porm,esseesforodecriarconhecimentonoforneceochamadotrabalhodecampo.Dessaforma,adinmicaque ocorre entre pesquisador e pesquisados fundamental para a gerao de idias, aanlisedaproduodesentidosdacomunidadeestudada,apossibilidadedecriaode questionamentos e a interao entre as diferentes realidades presentes. necessrioarticularospressupostostericos-metodolgicoscomavivncia,umavezqueaexperincia adquirida no trabalho de campo fornece ao pesquisador novas descobertasantes no imaginadas.Seguindoesseprocedimento,foramrealizadasdiversasviagensaosmunicpioscitadosparaquetalconstruosocialfossepossvel.Naspesquisasrealizadasnocanavial,buscou-seinicialmenteadotarumaposturalivredepr-conceitosedespretensiosa,deixandoostrabalhadoresvontadeparaquepudessemrelatar,pormeio de suas narrativas, suas histrias de vida, at a chegada do tema em questo.Nasentrevistas,utilizou-seatcnicadegravao,medianteaautorizaodecadaentrevistado.Foiadotado omodelodeentrevistassemi-estruturadas,queconsistenorelato de fatos da vida do pesquisado e no questionamento, por parte do pesquisador,por meio de perguntas bem definidas, que no caso versavam sobre o consumo de 10 Realizao TV Cultura.11 Realizao GNT. Direo: Nelson Pereira dos Santos. Baseado na obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre.12 Reportagem e Pesquisa da Rede Globo. Exibido em outubro de 97 no Jornal Nacional.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack35crack por cortadores de cana, encontrando oreflexodadimensocoletivaapartirdaviso individual dos entrevistados.Apesquisacentrou-senaobservaoparticipante,queconsistenocontatodiretodopesquisadorcomofenmenoemquesto.Atcnicadeobservaoparticipantepermiteobterinformaessobrearealidadeestudadaemseusprprioscontextos,estabelecendoumarelaofaceafaceentreopesquisador/observadorcomospesquisados/observados.Nesseprocessopossvelmodificaresermodificado,ouseja,existeumagrandeinteraoentreduasrealidadesquepodemseropostas,transmitindo e conhecendo diferentes modos de vida e contextos sociais.Umexemplodessaexperinciaocorreunoprimeirodiadapesquisa,quandoapresentei-meaumgrupodecortadorasdecana,esclarecendo opropsitodaminhaincluso no canavial. Alm da grande receptividade, uma delasme props passar porumteste,quedescrevereiconformeconstanodiriodecamposelecionadoparacompor a presente pesquisa.O teste era beber gua do garrafo, mas sem copo. Aceitei e percebiaoportunidadedeconquistaraconfianadelas,umavezquetodosestavam curiosos e me observando. Ento bebi a gua sem me molhareelaficousurpresa,gostandodaminhaatitude.Logoemseguidaperguntouseeuqueriacortarcana;imediatamente,dissequesim.Emprestou-mesuasluvasepegueiofaco,masnocorteiacanacomo deveria. Ento me ensinou e da segunda vez acertei no corte. Ocuriosoque,depois,elasqueriammefotografarcortandocana.Ensineiomecanismodamquinaemefotografaram.Percebi,nessemomento,quetinhasidoaceitanogrupo,poismuitoscortadoresestavam observando mesmo sem parar de trabalhar.Essa forma de ser aceita no grupo foi muito interessante, porque, atento, quase ningum sabia ou entendia o meu papel naquele lugar. Apartirdomomentoemquecomeceiacompartilharassituaesvividasemseuscotidianos,entenderamqueeurealmentequeriaaprender junto comeles,enodistncia,sobreomododevidadeum trabalhador rural.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack36Conformeadescrioacima,aformadeobservaoparticipantefoiplena,semodistanciamentodeapenasmerafiguraonaquelecenrio,contribuindocomminhasexperinciasnaquelemundo.Eraprecisoestarabertaaprendizagemcomasexperinciasdaquelestrabalhadoresparacomporaminhavidacotidiana,registrartodososmomentosqueantecederamsentrevistas,comotambmosmomentosdeintervalo entre uma entrevista e outra no canavial, para poder captar os sentidos dessarealidade e adentrar-me nesse universo com cdigos e significados prprios.Seguindoessapostura,descrevoaseguirodiriodecampoelaboradoduranteapermanncianos canaviais dessas cidades, com o objetivo de registrar e enriquecerapresente pesquisa.Histrias e Narrativas do CampoUma introduo ao mundo da cana-de-acar e ao mundo rural til para ambientar otrabalho,especialmentequelescompoucocontatocomessarealidade,jquemuitadenossapsicologiasocialurbana.Falarsobreomundorural,especialmenteocotidiano do trabalho na cultura da cana, menos comum.As diversas visitas13 s pessoas envolvidas com a questo do trabalho no corte de canae o uso do crack sero a fonte das entrevistas relatadas posteriormente.Em agosto de 2001 viajei para os municpios de Campos Canavial e Rios Dourados,14pertencentes regio de Ja, no interior paulista, localizado a 360 km da capital.Durante todo o percurso da viagem procurei observar se havia canaviaise cortadoresdecananasproximidadesdaestrada,paraentendermelhorocotidianodavidaedotrabalhodessaspessoas.Entretanto,atBotucatuapaisagemnodemonstravanenhumaalterao:noavisteicanaviaisnemtrabalhadores.Nasdiversasvezesemque viajei a este municpio, em funo da pesquisa, nunca cheguei a observ-los.Seguindo viagem, nas proximidades de Igarau do Tiet tudo mudou repentinamente. 13 Descrevo este dirio de campo em particular porque foi o mais significativo na pesquisa.14OsnomesdosmunicpiosemquefoirealizadaapesquisaserodenominadosCamposCanavialeRiosDourados,porumaquestoderespeitoeseguranaquelesquerelataramsuasexperincias,histriasdevidaeassuntosreferentesdroga.Osnomes dos cortadores de cana entrevistados, o Presidente do Sindicato e o turmeiro tambm so fictcios.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack37Amovimentaonaestradaeraintensa.Erammuitostreminhes15indoevoltandocheiosdecana,nibusdetrabalhadoreschegandonacidade,anunciandoofimdemais um dia de trabalho. Avistei canaviais imensos nos doislados da estrada, a usinatrabalhandoatodovaporemuitasqueimadas.Oazulescurodocu,prximodoanoitecer,mudouemmeiofumaaeaocontrastedofogonoscanaviais.Ocheiroimpregnado no ar era uma mistura de lcool, bagao de cana e mato queimado. Todosos meus sentidos mudaram de repente, pois estava vendo e sentindo exatamente o queprocurava.OnibuspassoupelascidadesdeIgaraudoTiet,ondefoirealizadaareportagemtelevisivacomoscortadoresdecanaconsumindocrack,eBarraBonita,ondeestlocalizada a Usina da Barra, considerada a maior da Amrica Latina.PercebiqueIgaraudoTietumacidadecarentederecursospblicosbsicose,como tantas outras prximas, tem o aspecto de cidade-dormitrio, que acolhe pessoaspara trabalhar na cana-de-acar.Todas as cidades vizinhas, como Dois Crregos, Mineiros do Tiet, Lenis Paulista,BarraBonita,Macatuba,entreoutras,sobrevivememfunodotrabalhonacana.Notei o duplo aspecto desta questo: no s as pessoas dependem da cana, mas a canadependedelastambm;existeumatroca,masestatrocadesigual,injustaecompetitiva.Humpoderaparenteesignificativoquandoseobservatodososfatoresqueenvolvemaagroindstriacanavieira.Oespaofsicoesocialestlegitimadopelamobilizao de toda a populao em relao s atividades exercidas pelo trabalho.EmBarraBonita,pegueiumnibusintermunicipalparaCamposCanavial,ondeoPresidentedosSindicatodosTrabalhadoresRurais,Sr.Roberto,meaguardava.Amaioria dos passageiros eram trabalhadores rurais. Fiquei atenta s suas conversas, e oassunto era o trabalho exercido no final do dia, a usina, aproduo,e osafazeresdodiaseguinte.QuandochegueinarodoviriadeCamposCanavial,percebiqueaspessoas me olhavam de forma diferente, pois a cidade pequena (com uma populaoemtornode20.000habitantes)eamaioriaseconhece.Asdiferenasnocomportamento,comooandar,oolhar,vestimentas,etc.nomedeixarampassardesapercebida. 15 Caminhes que carregam as canas cortadas para as usinas.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack38Apsminhainstalao,fuiaoSindicatodosTrabalhadoresRurais,ondemereceberammuitobem.OSr.Robertomostrou-measdependncias:consultriodentrio, barbeiro, salas dereunioeumescritrio ondeumadvogadoprestaauxliojurdico aos trabalhadores.Conversamos um pouco sobre a minha pesquisa e os lugaresnos quais passaria o diacom os cortadores de cana.Durante a noite caminhei pela cidade para conhec-lamelhor, mas no havia pessoascirculando nas ruas. O relgio marcava 20h e estava tudo deserto.Como acontece em outros municpios,CamposCanavialno temfbricas,indstriasouempresaseocomrciomuitofraco.Amaioriadapopulaoexercesuasocupaesnaagroindstriacanavieira,nicafontedesobrevivnciadecentenasdefamlias, e, por isso, acordam muito cedo. O trabalho na cana parece ser a exploraodamisriaenoapenasdotrabalho.Tudogiraemtornodela,amonoculturaqueimperaemdiversosmunicpios.aexploraodacondiohumanajpornaturezamiservel.No dia seguinte, as 8h da manh, fomos para um canavial localizado no municpio deRiosDourados,ondehaviaumaturmadecortadoresdecanaqueprestamserviosparaaUsinadomunicpio,depropriedadedaUsinaX.Cadaturmapossua86cortadores, todos com registro em carteira.Ao chegarmos,fui apresentada ao turmeiro, Sr.Onofre,eaomotoristadocaminho.Apesar de ter obtido autorizao para realizar a pesquisa por parte dos responsveis daUsinaX,oSr.Robertoesclareceuaoturmeiroaminhapermannciadurantetodoodia no canavial.Fui bem recebida por aqueles que logo avistei e procurei ser receptiva e humilde comtodos,conformeassugestesdemeuorientador.OSr.Onofreacompanhou-meemumtrechodocanavialparameambientaredemonstraraoscortadoresdecanaopropsitodaminhainclusoemseuespao.Depoisdealgumtempo,comeceiaandar sozinha pelo canavial e a me apresentar aos cortadores de cana que encontrava,esclarecendo a minha presena.Passadoalgumtempo,noteiquealgunscortadoresdecanajestavamalmoando,poiscomeamatrabalharentre6he6h30,edas8hs8h30fazemumapausaparacomer uma parte da marmita. Maistarde,entreas12he13h,paramnovamenteparacomer o restante.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack39Seguindoomeupercurso,encontreiumgrupodetrsmulheres,meapresenteieconversamosumpouco.Erammuitoalegreseaproveiteiparameincluiremseugrupo.Umadelas,Vitria,eramuitocomunicativaefalouque,jqueeuestavaali,deveria passar por um teste: beber gua do garrafo, mas sem copo. Aceitei e percebia oportunidade de conquistar a confiana delas, uma vez que todos estavam curiosos emeobservando.Entobebiaguasemmemolhareelaficousurpresa,gostandodaminhaatitude.Logoemseguida,perguntouseeuqueriacortarcanaimediatamente,disse que sim. Emprestou-me suas luvas e peguei o faco, mas no cortei a cana comodeveria. Ento me ensinou e da segunda vez acertei no corte. O curioso que, depois,elasqueriammefotografarcortandocana.Ensineiomecanismodamquinaemefotografaram.Percebi,nessemomento,quetinhasidoaceitanogrupo,poismuitoscortadores estavam observando mesmo sem parar de trabalhar.Essaformadeseraceitanogrupofoimuitointeressante,porque,atento,quaseningumsabia ouentendiaomeupapelnaquelelugar.Apartirdomomentoemquecomeceiacompartilharassituaesvividasemseuscotidianos,entenderamqueeurealmente queria aprender junto com eles, e no distncia, sobre o modo de vida deum trabalhador rural.Pergunteiaelassepodiafotograf-laseentrevist-las,edisseramquenohavianenhumproblema,mas,parafotografar,queriamtirarosjalecosesearrumar.Eudissequeaformainteressanteparaafotografiaeraexatamentecomoestavam,noambientedetrabalho,assimcomoelasmefotografaramtrabalhando.Entenderamopropsito e aceitaram.Despedi-me dizendo que voltaria mais tarde para conversar, que queria conhecer maistrabalhadores,etambmoprpriocanavial.Indicaramalgumaspessoasemeconvidaram para almoar na volta.Continueiandandopelocanavial,conversandoeexplicandoaosoutrosoqueestavafazendoali.Muitos,aprincpio,acharamqueeueradausina,fiscalizao,etc.,masdepoisamaioriaentendeueaceitouserfotografadaeentrevistada,comexceodeum casal.Mesmo com a receptividade, havia um receio no ar, porque pessoas j haviamido aocanavialparainvestigar,fiscalizar.Numaconversacomumcortadordecana,soubetambmquepessoaslforamcomo objetivodedegradarseutrabalhoeomododevida do homem do campo.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack40Todososcortadorescomqueconverseieramregistradosemcarteiradoperododemaio a novembro, poca da safradacana.Depois,seriamdemitidose,seatingissemsuasmetas,readmitidosparaaprximasafra.Essetipodecontratotemporriogarantiaosseguintesdireitostrabalhistas:13salrio,friaseFGTSproporcionalaoperododetrabalho.Norecebemos40%demultapordemissosemjustacausa,avisoprvioesalriodesemprego,poisexisteumaclusulanocontratoqueisentatodas as usinas e fornecedores do pagamento desses direitos.AUsinaXfornece,aoscortadores,jalecosestampadoscomosmbolodausinaeofaco,almdosseguintesequipamentosdeproteo(EPI):botascombiqueiradeferro, para proteger os dedos na hora de cortar a cana, culos, para proteger os olhosda palha e da fuligem, luvas, para no cortarem as mos, e caneleira. Oferece tambmnibusespecialparatransportaroscortadoresdecanaedistribuemsoronosdiasmuitoquentes,paranohaverdesidratao.Assimmesmo,otrabalhocompletamenteinsalubreemvriossentidos,principalmenteemsetratandodehigieneealimentao.Nohcabinesparahigienepessoal(necessidadesfisiolgicas), lugar para lavar as mos e tendas para as refeies. Pior: no canavial noexistenenhumarvoreousombraparaseprotegerdosolnahoradasrefeies.Algunssentemcibrasemfunodosmovimentosrepetitivosfeitosduranteodiapara cortar a cana.Apesar da fiscalizao nas usinas e nos fornecedores, nem todos seguem a lei como aUsina X, principalmente quanto ao registro em carteira e doao dos equipamentos detrabalho e proteo.Aps umaboa caminhadapelocanavial,entrevisteiBeatriz,outracortadoradecana,quenocomeoficouintimidada,mas,nodecorrerdaentrevista,sentiu-semaisvontade. Procurei, em todo momento, ser informal, para no influenciarasrespostas.Quandopergunteisobredireitostrabalhistasedrogas,percebiquesefechouumpouco, e foi muito objetiva: todos so registrados e nunca ouvi falar sobre drogas.Dessaforma,noinsistinasperguntasquetratavamdessesassuntos.Aotrminodaentrevista, uma frase me marcou: Nossa vida no tem novidade. a mais comum domundo. Verifiquei, no decorrer dos dias, que a vida desses trabalhadores tem relaodireta com o trabalho;no existem outros acontecimentos, com exceo dos aspectosfamiliares.Trabalhamparasobreviver,semoaspectosurpresaounovidadeemsuasvidas. Acordam muito cedo, preparam suas marmitas evo trabalhar, voltam no finaldatardeparasuascasas,cumpremseusafazeresdomsticos,pagamsuascontas.ACana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack41grande maioria paga aluguel em suas moradias na periferia da cidade. No dia seguinte,tudo recomea. No h grandes sonhos ou esperanas.Entrevistei,emseguida,outracortadora,chamadaPatrcia.Aentrevistafoirpidaepercebi que, nas mesmas questes que abordei com Beatriz, a reao foi semelhante.Noalmoo,Vitriahaviaimprovisadoumacabaninhacomapalhadacana.Aprincpio achei quefosse para todas ns, mas eraparamim.Tinhalevadoumlanchedepocomqueijoepresuntoetrsfrutas.Vitria,antesdeiniciarmosoalmoo,dissequeopessoalestavaenciumadoporqueeuhaviaconversadomaistempocomelas,equeiriamalmoartambmemnossacompanhia,aoquerespondeu:Agenteconvidou primeiro, e mulher se entende melhor. Achei muito simptico da parte dela,pois justificou por mimaos outros trabalhadores o fato de ter aceitado o convite paraalmoar, e tambm o motivo do tempo das conversas.Quando iniciamos o almoo, elas, sentadas no garrafo de gua, ficaramme olhando,semabrirsuasmarmitas.Entoperguntei:Vocsnovocomer?Disseramquesim,mascontinuavammeolhando.Oferecimeulancheedissequenotinhacomotrazercomida,poisestavahospedadanohotel.Percebiseusolhosobservandoolanche,mas no aceitaram. Comearama abrirsuasmarmitas,comvergonha.Tenteinodemonstrarcuriosidadenocontedo,masviderelancequehaviaarroz,feijoeverdura.OolhardaPatrcianomeulancheeraimpressionante,pareciaquenuncahavia comido po com queijo e presunto, e acredito que nunca tenha comido mesmo.Ofereciasfrutas,eanicaqueaceitouumpedaodebananafoiVitria.Pareidecomer ao pensar em como se alimentam mal, no s no trabalho mas tambm em suascasas.DepoisentrevisteiVitria,quedemonstrouseramaiscomunicativa;masnahoradegravarseacanhouumpouco,assimcomotodos.Disse-mequeestavaterminandoocolegial noite e que precisava trabalhar para ajudar a sustentar sua famlia.Amaioria dos familiares dos cortadores de canatambmsocortadores,poisnohoutra atividade na regio.Em relao droga,confirmouquehaviaouvidocomentriosequeconheciaalgunscortadores de cana que estavam usando drogas, mas no eram seus amigos.Depoisdaentrevista,aspessoascomquemjhaviaconversadodisseram-mequeeuestava com expresso de exausta, e realmente era verdade, pois fatores como sol, soloirregular,pontasdecanascortadas,fumaadofogodapalhaqueimada,poeira,malimentao etc., levam a um grande desgaste fsico. Fiquei imaginando que, alm dosCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack42fenmenosnaturaisenfrentadosnocanavial,trabalharcortandocanaaindaagravaasade do ser humano.Disseram-meserpiornosdiasdechuvaefrio,poistmdecontinuartrabalhandomesmo com suas roupas molhadas.Sparamseachuvaestiverforte,protegendo-seno caminho. Alm disso, no frio, mesmo com as luvas, as mos e o corpo todo doem,e as cibras so fortes, devido ao esforo fsico.Apalavraprivacidadenoexistenolocaldetrabalho.Viduascortadorasindoemdireo ao meio do canavial para fazer suas necessidades fisiolgicas.Emrelaoaocontroledetrabalho,osturmeirospassamvriasvezesentreoscortadores. O ponteiro (aquele que vaimedindo os metros cortadosdecana)tambmest sempre presente marcando a produo.Nofinaldatarde,fuientrevistarumcortadorchamadoCsar,jovememuitosimptico.Apesardesorrirotempotodo,seuolhardemonstravatristezaecansao,como o de todos com quem conversei. Falamos sobre sua vida particular e o trabalho.Quandopergunteiseelesabiadoconsumodedrogasentreoscortadoresdecana,disse-me sem hesitar que havia sim.Perguntei sobre seus sonhos e desejos. Contou que tinha o colegial completo e queriafazerfaculdadedeEducaoFsica,masquenotinhacondies.Assimcomoele,seus familiares tambm trabalham no corte de cana.s15h30,todosjestavamcaminhandoatonibusparairembora.Aindameperguntaram:Vocvainocaminhocomagente,n?TorciparaqueoPresidentedo Sindicato no viesse, mas j havia combinado o retorno com ele, pois eu estava emoutro municpio. Fiquei parada na porta do nibus vendo todos entrarem, e ento o Sr.Roberto chegou.Todosqueentrevisteidisseram-mequegostariamdemudardevida,masasobrevivnciaultrapassaseussonhos.Necessitamdotrabalhoparacomereterumlugarondemorar.Jseusfilhosnotrabalhamcortandocana,poisforamunnimesem desejar outro tipo de vida para si.Moramna periferia da cidade,masantigamentemoravamnascolniasdasfazendas,que, hoje, praticamente inexistem, visto que todas viraram imensos canaviais.No dia seguinte, durante a viagem a outro canavial, o Sr. Roberto disse-me que eu iriaperceberdiferenasemrelaoturmaanterior,poisestescortadoresprestavamservio ao fornecedor que vende suas canas cortadas para a Usina X.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack43Quandochegamos,oSr.Robertofoiprocuraroturmeiro.Nessemeiotempoelemeapresentouaumcortadordecana.Cumprimentei-oeesclarecioobjetivodaminhapresena no canavial.Logopercebivriasdiferenasemrelaooutraturma.Acanaerabemmaioretinhamais palha, apesar de esta ter sido queimada,comoaconteceemoutroslugarespara facilitar o trabalho no corte.FuiapresentadaaoturmeiropeloSr.Robertoeoprocedimentofoiomesmododiaanterior,emrelaoreceptividade.Foiinformadoqueodonodacana(ofornecedor)sabiadaminhapresenaequeeuestavafazendoumapesquisacomoscortadores de cana para o mestrado na PUC/SP.O turmeiro me apresentou a alguns cortadores, explicando a eles a minha pesquisa. Oprimeiro que eu entrevistei foi um mineiro da regio do Vale do Jequitinhonha. Assimcomoele,haviavriosmigrantesdamesmaregiodesuaprocedncia,almdealagoanos, baianos, e cortadores da prpria cidade de Campos Canavial.Cludioerajovem,tmidoedepoucaspalavras.Pareciaassustado,masnodecorrerda entrevistafoisentindo-semaisavontadeeconfiante.Haviachegadocidadeemjunhoparatrabalharnasafradacana.ComoaregiodoValedoJequitinhonhaconsideradaamaispobredoBrasil,emperodosdesafraestsempreprocuradetrabalho. Perguntei se sabia sobre o uso de drogas entre os cortadores de cana e disseque sim. No final da entrevista perguntei se podiafotograf-lo,aoqueconsentiu.Derepenteououmavozfemininamechamando.Moa,moa.Vemtirarfotografiada gente tambm. Olhei na direo da voz e observei duas mulheres do outro lado daestrada.Estavamemumnvelmuitoacimadomeu,umtipodebarranco.Quandocheguei, uma delasme perguntou: Voc da televiso? Disse que no,eexpliqueimeupropsito.Umatinha46anos,eaoutra43.Ficamosconversandoumtempoedepoispergunteisepodiafazeraentrevistasobreavidadotrabalhadorrural.Disseque tudo bem, e que contaria tudo; j a outra cortadora, mais calada, distanciou-se dens continuando seu trabalho.Falamossobresuavida,origem,dificuldades,trabalhoeaquestodasdrogasnocampo.Entoeladissequejtinhaouvidocomentriosemoutrasturmas,masnoconhecia ningum. Quando eu estava terminando a entrevista, elamedissebaixinho:Olha o patro, o patro vem vindo. O patro.Desligueiogravador,eeleveioemminha direo para conversar. Era o filho do fornecedor. Apresentamo-nos e expliqueioqueeuestavafazendo.EledissequejsabiapormeiodoSr.Roberto.PediCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack44autorizaoparacontinuarasentrevistas,aoqueconsentiu.Nofinal,salientou:duro este trabalho, n? Eu confirmei sua afirmao e ele foi embora.Clara e Maria, as cortadoras, voltaram para perguntar sobre o patro, e eu disse queconversamosarespeitodaminhapesquisa.Pergunteisepodiafotograf-las,emedisseram que sim. Clara, muito vaidosa, queria se arrumar e fez pose para a foto.Informei a elas que iriaficar o diainteiro no canavial e que nos encontraramosmaistarde.Encontrei o turmeiro, que, alis, havia sido cortador de cana durante 14 anos. ElemelevouparaconversarcomumalagoanochamadoUlisses,quequeriafalarcomigo.Aproximei-meemeapresentei.Elefoimuitogentil.Pareciaestardesesperado,poislogofoirelatandoqueeleemais29alagoanosestavampassandonecessidadesemtodos os sentidos. Percebi que estava tremendo e perguntei o motivo. Respondeu queera fome e que seu irmo e os outros tambm estavam na mesma situao. Fiquei sempalavras, mas segurei minhas emoes para no interferir no andamento da entrevistae nem no seu relato, pois havia muita coisa a ser contada.Era como se fosse um grito de desabafo no meio de tanta gente que no o ouvia. Umgrito em silncio. Disse que iria entrevist-lo. Ele descreveu em que condies chegouemCamposCanavialcommais29alagoanos,ecomoestavavivendo.Chegaramnocomeodejulhoporintermdiodeumhomem,Raimundo,quelemAlagoasosrecrutou para trabalhar em So Paulo na safra de cana, dizendo que iriam ganhar maisdinheiro. Entretanto, tero de pagar as passagens de ida e volta.Outros 70 alagoanosencontravam-seespalhadospelaregio,maselenosabiaondeexatamente. Achava que estavam desempregados, pois no eram acostumados a cortara meta diria estipulada pelos fornecedores.De seu grupo de 30, 24 foram alojados em umstio beiradeumrio,semnenhumacondiodemoradia;passarammuitofrioesofreramcomosborrachudosduranteanoite. Depois os levaram ao salo de uma igreja desativada da religio Testemunha deJeov,tambmsemcondiesdemoradia.Existeapenasumbanheiropara24homensevriosbeliches,masnemtodosdormememcolches,queporsinalsopssimos. Ele mesmo, com seu irmo, dorme no cho.Nesse salo havia doisfoges precrios, em que preparam suasmarmitas,compostasde um pouco de arroz e um pedao pequeno e da pior qualidade de carne. Perguntei sepodia fotografar sua marmita, e disse que sim. Emagreceu vrios quilos em funo dafome.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack45Ulisses(nomefictcio)umtrabalhadorruralquemigroudoestadodeAlagoasembuscadetrabalhonocortedecananomunicpiodeCamposCanavial/SP.Eleumdosmuitosquemigrarameencontravam-seemcondiesprecriasemrelaomoradia, trabalho e principalmente a alimentao. Quando o entrevistei, disse-me quemuitosestavampassandofome,inclusiveele.Pedipermissoparafotografaracomida que estava em sua marmita. Havia apenas um pouco de arroz e um pedao decarne de pssima qualidade. Procurei no mostrar seu rosto inteiro para preservar suaidentidade.Estetrabalhadorfoimuitosignificativoparamim,porissoobatizeideUlisses,aquelequenodesistiudesuabatalhaedeseuretornoaolar,apesardeenfrentar todos os tipos de obstculos.Foto: (Campos Canavial/SP, agosto de 2001. Arlete Fonseca de Andrade)Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack46Ofornecedorparaoqualtrabalhamnohaviacedidotodososequipamentosnecessrios, cabendo a eles a compra da comida, do faco e das botas. Para efetu-la,foram orientados a abrir uma conta na mercearia prxima ao alojamento.Todos os migrantes, com exceo dos cortadores de Campos Canavial, trabalham semluvas.ClarahaviamefaladoqueofornecedormuniaoscortadoresdeCamposCanavial de botas, luvas, caneleiras e culos; porm, se os perdessem, quebrassem ouestragassem, deveriam repor com seu prprio dinheiro.Em relao ao registro em carteira, os trabalhadores de Campos Canavial que estavamamais tempo eram registrados nos moldes preestabelecidos, ou seja, peloperododasafra. Aos migrantes foi dito que iriam ser registrados, no entanto no haviam obtidoretorno.Comoaindanohaviamrecebidonenhumdinheiro,jseachavamendividadosemfunodacompradecomidaeequipamentos.Quandorecebessem,todoodinheiroseria para pagar suas despesas.Ulissesme disse que tinha somente duas peas de roupas, uma para trabalhar e outrapara poder andar na cidade; entretanto, por sua prpria definio, eram trapos.Em Alagoas, todos trabalham no corte de cana tambm, mas l o perodo da safra oinverso daqui, em funo das condies climticas da regio.Quando terminei a entrevista com Ulisses, fui at o nibus, peguei as frutas que tinhapara o almoo e entreguei a ele para repartir com seu irmo.Nesseintervalo,oturmeiroapareceuefalouqueoutroalagoanoqueriaconversarcomigo. Entomedirigiaele.Sr.Perseu,umsenhorde53anos,falavamuitobem.Confirmou tudo que estava ocorrendo e disse que haviam sido vendidos como gadoeenganados.Comeceiaentrevistaelogochegouumoutroalagoano,quesesentouquietinho.Entodecidimanterumaconversamaisaberta,aproveitandoaoportunidade de haver mais de um trabalhador. Mas, de repente, eles foram chegandoquietinhos e se sentando. No final haviam 5 alagoanos. Acabei entrevistando todos aomesmo tempo.NofinaldaconversadisseparaelesprocuraremoSr.Roberto,noSindicatodosTrabalhadores Rurais, e descrever a situao em que se encontravam.Todoscomqueconversei,alagoanosemineiros,eramesemprehaviamsidotrabalhadores rurais.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack47Na entrevista, perguntei ao Sr. Perseu sobre drogas. Disse-me que nunca havia ouvidocomentriosarespeito,masjtinhavistocortadordecanatrabalhardeumaformamuito rpida e diferente, pensando: Olha como aquelecaracortacana.Parecequet com o demnio. A fico desconfiado se ele usou alguma coisa, dizia.Tambm no quiseram almoar na minha frente, por vergonha acredito. Ento fui parao caminho pegar meu lanche. Clara e Maria e outros cortadores que no conheciajsabiam o que eles estavam passando e me perguntaram sobre sua condio. Confirmeia estria eficaram com um olhar que parecia uma mistura de tristeza e solidariedadeem relao situao deles.Algunsforamembora;ficaramapenas4cortadoresdecana,queatentonotinhavisto.Apresentei-meaeles.UmeradaBahiaeosoutros3deCamposCanavial.Apenasdoisdelesforamreceptivoscomigo,obaianoe1deCamposCanavial.Osoutros no meencaravamemantinhamaexpressodo rostofechada.Eramjovenseseucomportamentomedeixouintrigada.Derepente,ouvimosbarulhodefogosdeartifcio, e um deles disse:Ehchegou a droga. Fiz umardesurpresaedissequeemSoPauloaconteciaomesmo,perguntandoemseguidaseleraassimtambm.Elemedeuumarisadinhaemudamosdeassunto.Todosvoltaramaotrabalhoemdireoaumaoutrapartedocanavial,poisondeestvamoseradescampado.Fiqueisozinhanaqueleespaoimensoeaberto,enovimaisoscortadores,poiscortavamde trs para frente.Resolviandarporesseespaoe,derepente,vejoosdoiscortadoresqueacheiestranhossentadossozinhosebemjuntosfumandoalgo.Elesnomeviramecontinueiandandodevagarparameaproximar.Quandonotaramminhapresena,levantaram rapidamente e foram se juntar ao grupo.Fui ao encontro do grupo e fiquei conversando comeles,inclusivecomo turmeiroeUlisses, que estava perto dos dois trabalhadores que estranhei.Percebi que o turmeiro queria que eu soubesse o que os migrantes estavam passando,de uma forma muito sutil, apresentando-me a eles.NesseinstanteoSr.Robertochegou,econversamosmaisumpouco.SinalizeiparaUlissesqueeleeraoPresidentedoSindicatodosTrabalhadores,dequemhaviafalado.Despedi-medaquelescomquemconverseiedosoutrostambm.DeUlissessentivontadedemedespedircomumbeijo.Realizeiminhavontade,desejandoboasorte.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack48O Sr. Roberto me levou de volta cidade s 15h. Os cortadores de cana trabalhariamat 16h 16h30, mais horas, portanto, que o pessoal da Usina X.DecidifalarsobreosmigrantescomoSr.Roberto,edescreviascondiesemqueeles se encontravam. Resolvi fazer isso porque senti ser uma obrigao da minha partedizer o que estava acontecendo. Ele,muito prudente, disse queno estava sabendo, equeiriaatolocalemqueosalagoanosestavammorandoparaaveriguaretentarresolverasituaosemprejudicaroufazeralardes,paranohavernenhumtipoderepreslia; e que, se houvesse irregularidades em relao ao fornecedor, teria defazerdenncias.Combinamoscontinuarmantendoocontato,mesmodepoisqueeuviesseparaSoPaulo. Chegando na cidade, revelei as fotos e cedi uma cpia ao Sr. Roberto, que meconvidou para tomar uma cervejinha e encerrar o dia com um bate papo. Entramos nobare,logoemseguida,umamoatambm.EraVitria,aquemconvidamosparaficarconosco.Foitimo,poiselamedeuo feedbackdoscomentriosdesuaturma.Dissequeadoraramminhapresena,queriamqueeufossecomelesnocaminhoequevoltassenocanavialnodiaseguinte.Tambmdissequesentiramminhafaltaealguns pensaram que eufosse do Pavilho 2 do Carandiru.Outrosficaramchateadosporqueeunooshaviaentrevistado.Expliqueiserhumanamenteimpossvelfalarcom 174 trabalhadores num pequeno espao de tempo. Mas disse que voltaria.Depoisdealgumtempo,jemSoPaulo,telefoneiaoPresidentedoSindicatodosTrabalhadoresRuraisparasabercomoestavaacondiodevidadaquelestrabalhadoresalagoanos.Elehaviaverificadotodososfatosrelatados,constatandoserem verdadeiros. Dessa forma, entrou em contato com o fornecedor para regularizara situao e a deciso foi encaminh-los de volta a Alagoas. Fiquei mais tranqila emsaberdanotcia,poisavontadedeles,demonstradaduranteasentrevistas,eraderetornar para casa ao lado da famlia, ao invs de permanecer no trabalho na condiode escravos.Passado alguns meses da viagem realizada aos municpios de Campos Canavial e RiosDourados,precisamenteemjaneirode2002,Vitriametelefonoudizendoquegostariadeserentrevistadanovamentesobreaquestodasdrogasconsumidaspeloscortadoresdecana,pois,napoca,haviaficadoinseguraemrevelaroquesabia.Dessemodo,retorneiaomunicpiodeCamposCanavialemfevereirode2002paraencontr-la.Nessaentrevista,contou-mesobreoscasosquesabiadeamigosevizinhos que consumiam drogas, especialmente o crack, e tambm sobre o trfico queCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack49algunsdelespraticavam.Disseque,napocadapesquisaedasentrevistasnocanavial, havia alguns que consumiam drogas, mas haviaficado commedo de falar esofreralgumtipodeameaaourepreslia.Procureinofazerinterrupesduranteaentrevista para que Vitria pudesse relatar os fatos de forma seqencial.Depoisdessaocasio,continueimantendocontatocomVitriaeoPresidentedoSindicato.Quandoiniciou-seacolheitadecananoanode2002,Vitriametelefonoudizendoque estava nervosa, pois no havia sido chamada e precisava do salrio para manter afamlia.Elaeoutrascortadorasestavamsendointimidadaspelosturmeirospornoaceitarem sair com eles. Disse a ela que isso configurava assdio sexual e que deveriainformar o fato assistente social da usina. Coloquei-me a disposio para conversarcomosdirigentesparaatestarsuaboaintegridadepessoaleprofissional.Entreiemcontato com o Presidente do Sindicato para falar sobre o que estava acontecendo comelaeoutrascortadorasesolicitarsuaajudapararesolveroproblema.Vitriafoiusinaefaloucomaassistentesocial,comohavialheorientado.Logodepois,telefonou-medizendoquetudoestavaresolvidoemrelaoaotrabalho,poisaassistentesocialnoestavasabendodessetipodeprocedimentoporpartedealgunsturmeiros, e que eles seriam punidos, mantendo o sigilo das informaes.Apsessesacontecimentos,Vitriavoltouatrabalhar.Entretanto,logodepois,foiconvidadaaintegraraDiretoriadoSindicatodosTrabalhadoresRuraisdeCamposCanavial,sendoelaanicamulherdaequipe.Tivenessemomentooprazerdeexperimentar a vitria, tanto por ela, por seu talento e inteligncia, como por mim, porterconseguidomudarumpoucoarealidadedesuavidaeadaqueleshomensquemigraram de Alagoas em busca de trabalho e sobrevivncia, e que estavam sujeitos explorao e maus tratos.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack50Fenmeno e Relaes SociaisApartirdosdadosapresentados,osensocomumpoderianoslevaracrerqueestestrabalhadoresestocadavezmaisenvolvidosnoconsumodedrogasporquenohperspectivas profissionais, assistnciadaredepblicaparaatendersuasnecessidadesbsicas e o fato de o trabalho que exercem ser exaustivo, sendo difcil suportar o dia-a-dia nesses locais.Claroqueestesfatoressodegranderelevnciaparaoestudoemquesto,masexistem outros por trs do aparente. Para tanto, objetiva-sedesenvolveraanlisedasentrevistas gravadas e transcritas, reunindo depoimentos que permitam conhecer:O cotidiano do trabalhador;O significado que atribui ao trabalho;A sua histria de vida;A expectativa de vida em relao ao trabalho, profisso e famlia;Os sonhos/desejos que possui;As diferentes verses que circulam em relao ao crack;Os porqus da droga.O referencial metodolgico de anlise ser baseado nafenomenologia social, que soformasdeconhecimentoprticosocialmenteconstrudo.Essaconstruoestabelecidaentreosocial-psicolgico,sofrendoinflunciasdasociedade,pormeiode valores, conceitos, idias construdas entre diferentesgrupossociaisqueexplicamarealidadedavidacotidianae,aomesmotempo,ainflunciadarealidadepsquica,subjetiva e particular.Oestudodosfatossociaisapartirdafenomenologiasocial,daetnometodologia,dointeracionismo simblico e do construtivismo tem suas razes na ruptura dos modelostradicionaisdapesquisasociolgicaconstrudanavisodurkheimianadeignorarosenso comum, apesar de tais correntes no estarem desvinculadas das cincias sociais.Nascinciashumanas,AlfredSchtzorepresentantemaissignificativodopensamentofenomenolgico,sendoconsideradaestacorrentecomoasociologiadavidacotidiana.ApesardesuaselaboraestereminflunciasdopensamentoCana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack51weberiano, na filosofia de Edmund Husserl que Schtz recebe a maior influncia emrelao fundamentao metodolgica.OargumentodeHusserlomesmodeDiltheyeWeber,isto,osatossociaisenvolvemumapropriedadequenoestpresentenosoutrossetoresdouniversoabarcados pelas cincias naturais: o significado.16Dessaforma,afenomenologiasocialcontribuirnasquestesquesurgironodecorrer da pesquisa em relao vida cotidiana desses trabalhadores e suas relaessociais, como tambm o entendimento do referido fenmeno estudado, pois o mundopara ele est relacionado com a vida cotidiana, o mundo da vida, ou como ele mesmodiz:omundodarotina,noqualaspessoasnoteorizamsobresuasprticas.Ummundorealeintersubjetivo,emqueaspessoasinteragemumascomasoutrasnaturalmente;ouseja,apartirdosensocomum,oshomensvointeragircomseusvalores, cultura, crenas etc.A fenomenologia social apresenta, em relao pesquisa, as seguintes caractersticas:a)Uma crtica radicalaoobjetivismodacincia,na medidaemque prope a subjetividade como fundante do sentido;b)Umademonstraodasubjetividadecomosendoconstitutivadosersocialeinerenteaombitodaautocompreensoobjetiva;c)A proposta da descrio fenomenolgica como tarefa principalda sociologia.17AlfredSchtztrazparaopensamentodafenomenologiasocialomundodavidacotidiana,noqualohomemsitua-seemmeioasuasangstiasepreocupaesemintersubjetividadecomossemelhantesdogrupoemquevivenotempopresente,ouseja, a relao face a face.Referentepresentepesquisa,buscou-seexatamenteessarelao:conhecerocotidiano dos cortadores de cana a partir dapesquisadecampo,buscandoouvirsuashistriasdevidanotempopassado,presenteeperspectivasdefuturo.Partedestacentrou-se na questo da vida cotidiana, como: que horas comeam suas trajetrias de 16 Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Sade. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 55.17 Idem, pg. 55.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack52trabalho,comoodianocanavial,osintervalosparaalmooeolanche,oretornopara casa, etc., alm da questo da droga, to presente em suas vidas.O medo de perder o lugar em que moram, de ser ameaados por saberem de casos quedizemrespeitoquestodadrogae,dessaforma,prejudicarsuasvidasedeseusfamiliares, de perder o trabalho e no conseguirem sobreviver, etc.Sobre o conhecimento, Schtz o divide em trs categorias:a)A do vivido e experimentado no cotidiano;b)da epistemologia que investiga esse mundo vivido;c)do mtodo sociolgico para a investigao.18Num primeiro momento, omundosocialapresenta-seaosindivduoscomoomundoda cotidianidade, tal como experimentado pelo homem, atitude natural e aceito daformaque.Nessesentido,ohomemnoquestionaaestruturasignificativadomundo, mas age e vive nela.Essemundocotidianoapresenta-sepormeiodetipificaesconstrudaspelosprpriosatoressociais,deacordocomsuashistriaserelevncias.SegundoSchtz,essas tipificaes possuem em si o universal e o estvel, o especfico e o mutvel.19Nessepontoobserva-seumadasdiferenasdopensamentodeSchtzemrelaoaWeber.EnquantoparaWeberotipo-idealumaconstruoanalticacriadapelocientista,paraSchtzoatorsocial,noapenasocientista,tipificaomundoparacompreend-lo e comunicar-se com seus semelhantes.20O ponto inicial para a fenomenologia social so os construtos de primeira ordem,21usadosportodaasociedade,isto,osensocomum,mesmoquesetenhaidiasvagas,limitadase/oufragmentadasecomemoo.Schtznoteminteresseemcompararouquestionarseosensocomumsuperiorouinferiorconstruocientfica, pois o propsito de um cientista/pesquisador social descobrir e revelar ossignificadossubjetivosimplcitosquecircundamouniversodosatoressociaisestudados. 18 Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Sade. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 55.19 Idem, pg. 56.20 Idem, pg. 56.21 Idem, pg. 56.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack53Ocientistasocialcriaumsaberdiferenteapartirdoconhecimentodeprimeiraordem,pormeiodaelaboraodemodelosdoatorsocial,detiposideaisparaexplicarossignificadosdarealidadesocial e para descrever os procedimentos dos significados.22DeacordocomSchtz,apartirdomundodavidacotidianaocientistaconstruirmodelos distintos do senso comum. So construdos:a)Pelaconsistncialgica,isto,pelapossibilidadededescreverovivido,buscandotraz-loparaaordemdassignificaes;b)Pela possibilidade de interpretao; ec)Pela adequao realidade.23E o modelo cientfico para compreenso do mundo social tem os seguintes princpios:a)Aintersubjetividade:estamossempreemrelaounscomosoutros;b)Acompreenso:paraatingir,penetraromundodovivido,acinciatemqueapreenderascoisassociaiscomosignificativas;c)Aracionalidadeeainternacionalidade:omundosocialconstitudosempreporaeseinteraesqueobedecemusos,costumes e regras ou que conhecem meios, fins e resultados.24 22 Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Sade. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 56.23 Idem, pg. 56.24 Idem, pg. 56.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack54Sobreacompreensoempricadarealidade,Schtzelaboraalgunsconceitosemrelaoaoatosocial,comoodesituao.Esteconceitodizrespeitoaolugarqueapessoa ocupa na sociedade, o papel que desempenha e suasposiestico-religiosas,intelectuais,polticas,etc.Aesserespeito,dizqueohomemestbiograficamentesituado no mundo da vida, agindo de acordo com esse papel social que desempenha.OutroconceitoqueSchtzelaboraoestoquedeconhecimentodosatoressociais,que seriam as referncias com as quais interpreta-se o mundo e estabelece-se as aes.Outros conceitos com que Schtz trabalha so os termos de relevncia e estrutura derelevncias,quesignificamaimportnciadosobjetoseoscontextosqueestespossuemparaossujeitos,relacionadoscomsuahistriadevidaebagagemdeconhecimento que possuem.Esses conceitos desenvolvidos por Schtz so degrandeimportnciaparaapesquisaemprica,passandodocontextoindividualparaogrupalecomunitrio,queoautordenomina reciprocidade,25 seja de comunicao, sentido de comunidade, de objetivosedeinterpretaointersubjetiva,vistoque,segundoele,amaiorpartedenossoconhecimentovemdenossospais,familiares,professores,grupocomunitrio,etc.Recebemos formas de classificar e tipificar, criando o nosso universo e colocando-nosna vida prtica em relao com o mundo.Outro elemento fundamental paraafenomenologiasocialalinguagem,poisparaoautor a vida humana essencialmente diferente e s pode ser compreendida atravsdo mergulho na linguagem significativa da interao social.26Alinguagem,prticas,coisaseacontecimentossoinseparveis.Ealinguagemessencial para que a realidade seja do jeito que , isto , a realidade a prpria vidacotidiana nos indivduos onde eles se comunicam, concordam, discordam, justificam-se, negam ou criam.27ParaSchtz,alinguagemcotidianaocupatodoumuniversoricoeinexploradodaessncia social.Nesse sentido, a intercomunicao e a linguagem so fundamentais, uma vez que: 25 Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Sade. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 57.26 Idem, pg. 58.27 Idem, pg. 58.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack55Alinguagemcotidianaescondetodoumtesourodetiposecaractersticaspr-constitudosdeessnciasocialqueabrigamcontedos inexplorados.28Afenomenologiasocialdizqueshconhecimentosubjetivo,enoobjetivoouneutro,poisohomemqueimprimeleisaoreal,eoatodeconhecimentoreneoobservador e o observado, ambos possuidores de significados atribudos pelo prpriohomem.29ApartirdatesegeraldareciprocidadedasperspectivasformuladaporSchtz,marca-se o carter social da estrutura do mundo da vida de cada um,30 baseado naidiadequecadaindivduotemsuaexperinciaparticularesubjetiva,suavisodemundo diferente do outro em relao ao mesmofato;mas, em contrapartida, todos,decertaforma,fizeramoufazempartedaquelaao,porquehduasidealizaesusadaspelaspessoas:apossibilidadedetrocaemrelaoaospontosdevistaeaconformidade do sistema de pertinncia. Por exemplo: todas as pessoas que foram aumapartidadefutebolsupemqueforamassistirpelasmesmasrazes,apesardasdiferenas em relao ao modo de vida, ao ponto de vista, etc., mas o que as une amesma razo, a inteno, a situao, ou seja, suas experincias.Portanto,nesteestudo,asexperinciasdaroumsignificadoaotrabalhodocortadordecanaeaoconsumodedrogas,nocaso,ocrack,tomandocomorefernciaotrabalho, a vidafamiliar e afetiva e as perspectivasfuturas, apesar deasexperinciasvividas serem diferenciadas umas das outras. Mas o que as une a mesma condio, amesma situao, o mesmo problema.A anlise das narrativas dos entrevistados procurar identificar sentidos nos discursosquecaracterizamsentimentosdeatividade/inatividade;liberdade/dependncia;sofrimento/conforto;trabalho/no-trabalho;capacidade/incapacidade;terdireitos/noter direitos; ser cidado/ser marginal. 28 Coulon, A. Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 11.29 Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Sade. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 58 e59.30 Coulon, A. Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 13.Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack56Oscasosdecadaindivduotrazemumavidacheiadesignificados,poisoaspectoqualitativofundamentalparaascinciashumanas.Trabalhararealidadevivadogrupoumaformadeelaborarosdados.Comisso,passamosdaimpressoparaahiptese do trabalho em questo.O aspecto da vida social (localizao) uma forma de analisar o problema social. Napesquisa de campo importante determinar as unidades mnimas de vida econmicae social em que as relaes encontram um primeiro ponto de referncia.31Oestudodogrupoemquestovistodaperspectivahistricaquantoaosproblemascaracterizam a situao da vida rural em So Paulo.Ascorrentestericas,comoafenomenologiasocialSchtz,aetnometodologiaPark e Garfinkel, o construtivismo - Berger, Luckman e Goffman, e o interacionismosimblico - Mead, como j foimencionado, tm suas semelhanas ao romper com osmoldestradicionaisdepesquisadascinciashumanas,queconsistiamemignorarosensocomumesuasrepresentaessociais,almdacontribuioeinflunciaqueafenomenologiasocialpossibilitouservindodebaseaessascorre