Candomblé Agora é Angola
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IVETE MIRANDA PREVITALLI
CANDOMBL: Agora Angola
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Foto: Syntia Alves Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda
Dissertao apresentada BancaExaminadora da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestreem Cincias Sociais, sob orientao daProfa. Teresinha Bernardo.
POTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO2006
1Nos candombl de nao angola, h um toque de atabaque que se chama muzenzae a coreografia que osfilhos de santo desenvolvem ao som deste ritmo muito peculiar. Os braos formando um ngulo de 90graus se agitam fazendo subir e descer os cotovelos, enquanto os ps, um de cada vez, sem se levantaremdo cho se arrastam em movimentos rpidos e repetitivos para os lados. Essa dana sugere uma galinha
de angola ciscando no cho ao mesmo tempo em que abre e fecha suas asas, reproduzindo um graciosobal.
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Banca Examinadora
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Este trabalho teve apoio financeiro de CNPq
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Para Heitor Barbosa Previtalli.
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Agradecimentos
Agradeo a Professora Dra. Teresinha Bernardo, orientadora e amiga que com
pacincia e dedicao, ensinou-me a pesquisar nestes anos que estivemos juntas desde
minha iniciao cientfica at o mestrado.
Aos professores Eliane Hojaij Gouveia e Accio Sidinei A. Santos que
compuseram a mesa de qualificao e que competentemente contriburam de maneira
positiva para o aperfeioamento deste trabalho.
minha filha Luciana que esteve sempre presente me estimulando e acreditando
no meu trabalho, alm de dar consultoria nos escritos em lngua inglesa.
Ao meu filho Amlcar pela colaborao com as questes das leis em tempo de
escravido.
Ao meu filho Daniel pelo suporte em informtica que em muitas horas fez-me
perder a razo.
Ao Walter pela paciente leitura preliminar, pelos achados nas bibliotecas e por
suas opinies precisas.
filha-de-santo, amiga e colega de academia Syntia Alves, que nunca me
deixou esquecer prazos, e esteve presente em todos os momentos, sempre estimulando e
oferecendo todos os seus prstimos.
Lajara Correa amiga que sempre solcita acudiu-me com as mais diversas
informaes sobre a comunidade do candombl e a comunidade negra de Campinas.
Letcia Reis Vidor, doutora, antroploga, filha de santo e amiga, que nos
intervalos dos ritos me auxiliou a pensar e organizar o trabalho.
Maria Jos Sanches makota de minha casa de candombl que ajudou-me comos textos em francs.
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Melissa Barreti que muitas vezes acolheu-me em sua casa.
Aos meus filhos-de-santo que tiveram pacincia com a diminuio da minha
disponibilidade como sacerdotisa e que continuaram assumindo as atividades relativas
aos inquices e s entidades espirituais, alm da administrao da casa.
Aos meus pais em especial minha me que nunca deixou de me estimular
mostrando o caminho que eu j havia percorrido.
Ao tateto dia inquice Ubiacyl, maeto dia inquice Corajacy, ao tateto dia
inquice Gitalanguange, mameto dia inquice Dangoromia, ao tata Taw, ao baba
Tologi, e a todo povo do santo que em entrevistas ou conversas informais ofereceram
dados preciosos para a realizao deste trabalho.
Aos meus professores na graduao e na ps das Cincias Sociais da PUCsp,
que sempre me incentivaram a ir em frente na carreira acadmica elogiando e lapidando
meus trabalhos.
Ao CNPq rgo que financiou este trabalho durante dois anos.
Em especial agradeo a Inkossi o grande guerreiro que me ensina a vencer as
lutas da vida e o carinho de pai Congo que nunca deixou de me acolher.
A todos aqueles que comigo tem caminhado e que de alguma forma ajudaram-
me a escrever este trabalho, meus sinceros agradecimentos.
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Resumo
Esta pesquisa trata dos candombls de nao angola de Campinas, e analisa-os sob aperspectiva do sincretismo religioso e do ideal de pureza. Entre os aspectos analisadosencontram-se: a observao do espao que revela a passagem da umbanda para ocandombl alm da acomodao de novos ritos que foram absorvidos por um dosterreiros pesquisados; a formao do parentesco que se estrutura conforme a proibiodo incesto e tambm como as caractersticas da famlia moderna so encontradasatualmente na famlia de santo inclusive o transito de seu filhos; aLavagemdo adro daCatedral Metropolitana de Campinas que se constitui em uma festa de rua, apesar de serevelar como uma manifestao de uma linhagem, no deixa de proporcionarvisibilidade para o candombl campineiro independente da nao a que pertence. Almdisso, torna o negro visvel numa sociedade racista, pois atrai para a praa ativistas e asmais diversas manifestaes culturais afro-brasileiras.
Abstract
This research is about candomblsof the Angola Nation from Campinas, and analyzethem under the perspective of religious syncretism and the ideal of purity. Among theanalyzed aspects are: the observation of space that reveals the transition from umbandato candomblbesides the accommodation of new rites that were absorbed by one of thestudied terreiros; the constitution of relashionships that are structured according to theforbiddance of incest and also how the characteristics of the modern family arecurrently found in the famlia de santo including the transit of its followers; the
Lavagem of Campinas Metropolitan Cathedrals steps, which is a street festivity andeven though it reveals itself as a lineages manisfestation, it still provides visibility forthe candomblof Campinas independent of the nation to which it belongs. Besides, itmakes the black people stand out in a racist society, because it atracts to the public eyeactivists and the most diverse afro-brazilian cultural manifestations.
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Sumrio
INTRODUO 1
CAPTULO I:
Nascimento e estabelecimento dos terreiros 20
Campinas 21
CAPTULO II:
Da umbanda para o candombl: o espao conta a histria 34
As casas de angola 41
Trs Oguns: uma s terra 42
Outros usos do espao 64
As Casas de Santo e a Casa de Egungum. 66
O Recanto da Umbanda. 73
O Arranjo Entre As Diversas Naes. 75
CAPTULO III:
Elaborao do Parentesco Formao e Organizao das Famlias-de-santo 81A aliana 105
CAPTULO IV:
A Festa 112
Vencendo A Intolerncia: Murmrio de uma festa afro-brasileira 118
Lavagem: festa na praa - Uma etnografia 123
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A Lavagem e o Ideal de pureza 129
CONSIDERAES FINAIS 135
NDICE E CRDITOS DAS ILUSTRAES 145
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 148
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INTRODUO
Esta dissertao trata do candombl angola circunscrito na cidade de Campinas.
Neste trabalho, proponho analisar alguns aspectos do candombl angola de
Campinas, mostrando a sua formao, a elaborao do espao, a constituio das
principais famlias de santo, o trnsito de filhos de santo, as rivalidades e alianas e a
lavagem do adro da Catedral Metropolitana, sob a perspectiva do sincretismo religioso e
do ideal de pureza.
Embora no existam dados quantitativos a respeito de quantos terreiros de
candombl h na regio de Campinas nem a que naes pertencem, pude perceber que
so os terreiros de nao angola os que tm mais visibilidade, os que so mais
numerosos e os mais influentes nessa cidade.
O candombl de nao angola valorizado em Campinas por seus adeptos, no
s por pessoas annimas, mas tambm por ativistas do movimento negro e por polticos
que participam dos congressos sobre religies de matrizes africanas1, dos encontros de
valorizao da cultura banta e de atos pblicos, como o que ocorre nos sbados de
aleluia, desde 1985, isto , a lavagem das escadarias da igreja Nossa Senhora da
Conceio, catedral Metropolitana de Campinas. Nota-se, assim, que este tipo de
candombl goza de prestgio na cidade.
1Entre as religies de matrizes africanas encontram-se as diversas naes de candombl, os batuques, os
tambores de mina, os xangs, a umbanda, o candombl de caboclo, e todas as manifestaes religiosasque tm em sua composio teolgica elementos advindos de religies que os diversos grupos africanostrouxeram para o Brasil.
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O meu interesse por essa expresso religiosa data de algum tempo, mais
precisamente, sobrevm do meu envolvimento com o candombl angola e tambm do
meu estudo sobre as religies afro-brasileiras. Ao pesquisar sobre o candombl,
observei que a maior parte da literatura se referia, diretamente, ao candombl queto,
enquanto quase no havia informaes sobre o angola.
O candombl se organizou em torno de naes que se originaram
principalmente dos grupos de negros bantos e dos sudaneses que chegaram ao Brasil,
atravs da dispora africana. Edson Carneiro escreve que os escravos que vieram para o
Brasil provinham de muitas tribos e quecada uma delas tinha sua religio em particular.
A diversidade era tanta que, segundo Carneiro, O conde dos Arcos achava prudente
manter as diferenas tribais entre os negros, permitindo os seus batuques, porque
proibir o nico ato de desunio entre os negros vem a ser o mesmo que promover o
governo, indiretamente, a unio entre eles. (1991, p.16,17)
Porm, parece que o Conde se equivocou, uma vez que da unio de todas essas
religies surgiram diversas expresses religiosas afro-brasileiras de norte a sul do
Brasil, que se assemelham ao menos pelas suas caractersticas essenciais.(Carneiro;
1991)
O Trfico trouxe escravos de Guin, Angola e da Costa da Mina e o
denominador comum nesse tipo de escravido foi a preocupao em anular as
peculiaridades nacionais das tribos africanas. Assim, um nmero considervel de
culturas africanas foram trazidas para o Brasil e ressignificadas. Alm disso, vale
lembrar o trfico interno, aps 1850, que trouxe escravos de todas as regies do pas
que, por sua vez, pertenciam s vrias etnias.2
2Edson Carneiro escreveu que a minerao absorveu, indistintamente, todo brao escravo ocioso nasantigas plantaes de acar do litoral; muitos negros da Costa da Mina, quando a corrida do ouroarrefeceu, ficaram na Bahia, outros foram vendidos para Pernambuco e para o Maranho; a maioria dos
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Do intercmbio cultural dos escravos e ex-escravos surgiram as diversas
modalidades de religies afro-brasileiras, dentre elas, o candombl, o batuque, o
tambor de mina, o xang, entre outras.
As naes de candombl surgiram dos antigos terreiros baianos, fundados por
sacerdotes africanos angolas, congos, jejes, nags, - iniciados em suas religies
tradicionais,que ensinarama norma dos ritos e o corpo doutrinrio para as comunidades
que se formavam em torno dareligiosidade que conservava certos traos da cultura,
particularidades de dana, msica, de canto, de organizao de festas, que os
identificavam com a regio de origem). (Carneiro,Antologia do Negro Brasileiro; p.
263). Conforme Vivaldo da Costa Lima, as naes foram aos poucos perdendo sua
conotao poltica para se transformar num conceito quase exclusivamente teolgico.
Nao passou a ser, desse modo, o padro ideolgico e ritual... ( 2003; p. 29) dos
antigos terreiros de candombl da Bahia fundados por africanos.
As primeiras obras referentes a um estudo mais criterioso sobre a cultura dos
africanos no Brasil surgem na primeira metade do sculo XX. Em 1906, Nina Rodrigues
escreveu Os Africanos no Brasil, publicado em 1933. Mais tarde, Artur Ramos e
Edson Carneiro tambm se voltaram para os estudos das manifestaes culturais afro-
brasileiras, dentre elas as diversas naes de candombl, gerando obras que at hoje so
indicadas para quem se interessa pelo tema.
Nota-se, porm, que, quando havia alguma referncia sobre o angola, era sempre
alguma observao pejorativa e, ainda hoje, essa expresso religiosa, quando comparada
ao queto, se situa em uma categoria inferior.
escravos antes empregados na minas serviu s culturas de caf e do algodo ou aos novos
empreendimentos pecurios do Sul; as cidades reuniram elementos de todas as tribos, quer agregados camuflagem do senhor, quer alugados a particulares, quer trabalhando por conta prpria, quer engajadosem exploraes de tipo industrial. (1991, p.18)
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Tais estudos posicionavam as manifestaes religiosas oriundas dos bantos
como as mais pobres de todas as naes de candombl. Concebiam-se os negros de
angola como ignorantes adoradores de lascas de pedra, imitadores da estrutura religiosa
nag, alm de serem sincrticos, pois misturavam s suas crenas qualquer elemento
religioso que conhecessem. 3
Posteriormente, Roger Bastide, nos anos 50, escreveu sobre o candombl,
contudo, sem dar maior ateno ao de origem banta, prestigiando mais os candombls
queto.
Desta forma, os autores pioneiros que se ocuparam dos estudos sobre o
candombl, fizeram apenas algumas observaes sobre os de nao banta e, por causa
3 Falando sobre os cambindas, Luciano Gallet escreve que: considerados pelos outros, inferiores,imitadores e ignorantes. Desconhecem at o prprio idioma, complicado e difcil, e o misturam comtermos portugueses. Adoram as pedras, os paraleleppedos e as lascas de pedra. (Gallet, Luciano.
Estudos de Folclore. Edt. Carlos Wehrs & Ltda. Rio de Janeiro, R.J. 1934. p.58). Ainda sobre osnegros bantos, Nina Rodrigues afirma que: decorrido meio sculo aps a total extino do trfico, ofetichismo africano constitudo em culto apenas se reduz ao da mitologia jeje-iorubana. Angolas,guruncis, minas, hausss, etc., que conservam suas divindades africanas, da mesma sorte que os negroscrioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, moda dos nags, terreiros e candombls emque as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixs iorubanos e dos santoscatlicos, um culto externo mais ou menos copiado das prticas nags.( Rodrigues, Nina. Os africanosno Brasil. Edita. UnB ,Braslia, D.F. 7a edio, 1988, p. 216).
Por outro lado, Arthur Ramos embora considerasse tambm que as sobrevivncias religiosas emgicas de origens bantu existiam deturpadas e transformadas (1961: p. 361), escreveu um captulointitulado:sobre as culturas bantu, no 1o volume da coleo de sua obra chamada Introduo antropologia brasileira. Nesse captulo faz uma ressalva afirmao de Nina Rodrigues quanto quantidade de negros bantos existentes na Bahia, que para Nina no passavam de uns trs Congos e
alguns angolas. J para Ramos os bantos eram encontrados em grande nmero, mesmo na Bahia (1961:p. 357).
Outro autor, Edson Carneiro, refere-se aos candombls angola e congo tanto no livroCandomblsda Bahia, quanto noReligies Negras. Carneiro escreveu que: Pode-se dizer que, na Bahia,os negros bantos esqueceram os seus prprios orixs. (1991, p,134). E quando escreve sobre aformao dos candombls de caboclo, diz que : foi a mtica pobrssima dos negros bantos que,fusionando-se com a mtica igualmente pobre do selvagem amerndio, produziu os chamados candomblsde caboclo na Bahia. ( 1991, p. 62).
Carneiro, Edson.Religies Negras. Negros Bantos. Edita . Civilizao Brasileira , 3a edio.Rio de Janeiro, R.J. 1991. Candombls da Bahia. Edita. Civilizao Brasileira, 8a edio. Rio deJaneiro, R.J. 1991.
Ver ainda: Carneiro dison. Cartas de dson Carneiro a Artur Ramos. Edita. Corrupio, SoPaulo. S.P. 1987.
Querino, Manoel. Costumes Africanos no Brasil.Edita Massangana, 2a edio.Recife. Pernambuco. 1988.
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da baixa qualificao dada a esta cultura, os trabalhos posteriores trataram dos
candombls queto, deixando de lado os de nao angola.
Prandi, em 1992, escreveu que o candombl nag4 pode contar, alm do
prestgio, com muitas fontes escritas brasileiras, alm de uma etnografia produzida
sobre o culto dos orixs da Nigria e do Benin. Nada semelhante existe para o
candombl angola, a no ser o ensino do quicongo oferecido pela Universidade
Federal da Bahia.(Prandi, 1991; p. 20). O mesmo autor comenta o discurso feito por
Esmeraldo Emrito de Santana, representante da nao angola no Encontro de Naes
de Candombl, promovido em Salvador pelo Centro de Estudos Afro-Asiticos da
Universidade Federal da Bahia em 1981...: Aqui fao um apelo, j que existe um
centro de estudos, para que pesquisem o angola. No h livros sobre o angola. E tem
mais terreiros de angola na Bahia do que de queto, de jeje, de qualquer nao (Lima
et al., 1984:41, In Prandi, 1991; p.20).
Portanto, o principal argumento que pode justificar esta dissertao a falta de
pesquisa sistemtica sobre o candombl angola. importante ressaltar, ainda, que,
mesmo havendo preconceito sobre o candombl de origem banta, o candombl angola
de Campinas majoritrio e vem se fortificando perante seus adeptos, o movimento
negro e outras instituies.
A produo etnogrfica sobre o candombl elegeu para seus estudos antigas
casas de candombl queto da Bahia, que foram preferidas por preencherem os critrios
necessrios de pureza que as tornavam melhores que as outras ditas mais miscigenadas
e, portanto, impuras. Segundo Beatriz Gis Dantas a ideologia da pureza pressupe a
existncia de um estado original, uma espcie de reduto cultural preservado das
influncias perturbadoras de elementos estranhos... (Dantas, 1988; p. 145)
4Prandi quando fala de candombl nag se refere nao queto.
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A pureza, nesse sentido, presume que haja um estoque original de bens
simblicos, uma continuidade da tradio e fidelidade frica, requisitos para a marca
dos puros. lgico que as origens existem, porm numa frica distante no tempo e,
portanto mtica. O candombl foi composto por diversos povos, por isso,no tem uma
origem nica, embora preserve mais traos de uma ou outra cultura originria.
Desta forma, mesmo que esses terreiros baianos tenham nascido de mes
africanas ou de seus descendentes, no foi somente este fator que os caracterizou como
os mais puros e que os colocou em evidncia.
Embora a pureza fosse uma categoria nativa utilizada para expressar as
rivalidades entre as diversas naes, na disputa pelo mercado de bens simblicos, a
influncia nos meios religiosos afro-brasileiros dos antroplogos apegados aos
africanismos, segundo Dantas, transformou esta categoria nativa em categoria
analtica, prtica que cristalizou traos culturais que passaram a ser representaes
da expresso mxima da africanidade(Dantas, 1998; p.148)
Prandi, estudando os candombls de So Paulo, entende que: A produo
etnogrfica sobre estes candombls prestigiados por sua publicidade passou tambm,
em anos recentes, a oferecer modelos legitimamente puros da religio dos orixs para
aquelas casas de criao mais recente, ou de origem de memria perdida. (Prandi,
1991,17)
O candombl de So Paulo somente se torna expressivo a partir dos anos 60
(Prandi; 1991. Wagner; 1995) e, por isso, muitas casas se servem dos modelos baianos
para se espelharem.
Ao participar do projeto Religio da dispora negra: Continuidades e rupturas
de autoria da DraTeresinha Bernardo, para o qual realizei a coleta de histrias de vida
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das mes-de-santo mais velhas de So Paulo, percebi, ainda em uma observao
preliminar, que o candombl paulista procura uma legitimidade que vai ser encontrada
por meio da descendncia a uma destas casas antigas de queto ou pela proximidade
com a frica, obtida atravs da viagem Nigria.
Por outro lado, em Campinas, os terreiros angolas so fortes representantes das
religies afro-brasileiras, mesmo conhecendo a existncia de um preconceito banto, que
ainda hoje tem muito peso entre os adeptos do candombl; ao contrrio do que se
poderia esperar ao observar o candombl paulistano, o candombl campineiro de nao
angola elaborou uma reao soberania nag, que comeou com a delimitao das
fronteiras da nao angola. 5
primeira instncia, o que parece que a mesma categoria analtica utilizada
para definir a pureza nag, definida por Beatriz Gis Dantas, a que o candombl
angola de Campinas est utilizando, a fim de marcar suas diferenas e de firmar sua
identidade.
No entanto, com um olhar mais cauteloso, percebi que, num primeiro
movimento, as casas paulistas procuravam uma tendncia homogeneizante em direo
nao queto, em decorrncia do ideal de pureza que se lhe atribua. Atualmente em
Campinas, e numa observao preliminar, pude averiguar que, tambm em So Paulo,
5 Isso pode ser percebido em algumas casas de candombl angola de Campinas pela preocupao em,
por exemplo, repercutir os atabaques apenas em toques que so reconhecidos da nao angola, em
somente cantar nas festas em alguma lngua banta, em separar os inquices (divindades bantas) dos orixs
(divindades queto)., mediante tambm dos vocabulrios em banto colados nos murais dos terreiros e que
servem para o aprendizado dos filhos-de-santo, os nomes das casas que foram transformados de nomes
em lngua ioruba para nomes bantos, entre outras evidncias que tm o sentido de delimitar as fronteiras e
o fortalecimento da identidade.
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surge um segundo movimento que se caracteriza, utilizando as palavras de Hall, como
uma proliferao subalterna da diferena. (Hall; 2003)
O candombl paulista, tanto em Prandi quanto na pesquisa que realizei para o
trabalho de Bernardo com as mes-de-santo mais antigas de So Paulo, parecia
quetetizar-se, porm, paradoxalmente, notei, por intermdio da presena em
congressos de cultura banta e reunies com a comunidade de candombl campineira,
que a nao angola est interessada em firmar as diferenas. Porm no se trata de uma
diferena binria em que existe o absolutamente eu e o absolutamente outro, seria
conforme o pensamento de Hall uma onda de similaridades e diferenas, que recusa a
diviso em oposies binrias fixas. (2003; p. 60)
Neste caso, o candombl de nao angola procura retornar ao particular, ao
especfico, que o torna diferente, mas no pode deixar intactas as formas antigas
tradicionais. Ento,ao mesmo tempo em que se torna um stio de resistncia tambm
traduz e se ressignifica, tornando evidente que a tradio no precisa necessariamente
ser algo fixo, mas que busca um dilogo com o passado e a comunidade e este dilogo
conduz afirmao da identidade. Contudo, isto no se dar sem conflitos e acordos,
sem disputas e consensos.
Para designar este tipo de diferena, Hall utiliza o termo Derrida diffrance
que tanto pode ser marcar diferena [to differ], quanto diferir [ to defer]. O
conceito se funda em estratgias de protelao, suspenso, referncia, eliso, desvio,
adiamento e reserva. ( 2003; p.92)
Conforme observei, h nos quatro terreiros que fizeram parte de minha pesquisa
uma preocupao em valorizar a nao angola para si e perante a sociedade religiosa
afro-brasileira. Para que isso ocorra, os pais e mes-de-santo tm se empenhado em
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recuperar as marcas autnticas do angola e, em alguns casos, retirar elementos estranhos
nao.
Para que seja possvel a "recuperao" do angola, acreditam os adeptos que
existe um estoque original de bens simblicos, que hoje est numa frica mtica, uma
vez que a dispora transformou os elementos africanos constitutivos desta nao. Desta
forma, dicionrios de lngua banta so muito comuns a estas comunidades, sugerindo
conforme as palavras de Hall, que a cultura no apenas uma viagem de
redescoberta, uma viagem de retorno. No uma arqueologia. A cultura uma
produo.(2003; p.44).
Neste contexto, a procura da valorizao da cultura banta surge como
instrumento que mobiliza e justifica a nao angola, podendo ainda agregar, no sentido
da afirmao identitria da populao afro-descendente campineira, outros movimentos
culturais e polticos afro-brasileiros. Neste caso esto inseridos os grupos de capoeira,
de jongo, de tambor de crioula, que acompanham, no sbado de aleluia, a lavagem das
escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, realizada pelo candombl angola.
Para a realizao da pesquisa, acho relevante expor as dificuldades e facilidades
que minha condio de iniciada gerou para a de pesquisadora. Ao mesmo tempo em que
a minha posio de adepta possibilitou ao trabalho uma perspectiva interna do
candombl, causou-me algumas dificuldades, quando tive que olhar de fora para essa
expresso religiosa da qual fao parte. A questo foi tornar estranho aquilo que j h
muito tempo me era familiar.
Vagner Gonalves, no livro O antroplogo e sua magia, diz que:
Para alguns antroplogos que tm experincias de
aproximao e familiaridade com as religies afro-brasileiras
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(como simpatizantes, freqentadores ocasionais ou adeptos) em
perodos anteriores realizao da pesquisa etnogrfica, a
observao participante pode assumir outros significados, pois
para eles, a imerso no campo no tem a funo, propriamente,
de proporcionar a familiaridade com o universo dos seus
observados, mas tornar aquilo que aparentemente lhes
familiar em estranho. Se por um lado o antroplogo pode
contar com maior segurana em estabelecer contato e conviver
no ambiente da pesquisa, pois parte do cdigo de comportamento
do grupo ele conhece, por outro, seu esforo ser redobrado para
no restringir a pesquisa a relaes e posies mais
contingenciais sua prpria experincia de vida na religio".
(2000; p. 69)6
Desta forma, o fato de eu ser iniciada, por um lado, facilitou a realizao da
observao etnogrfica, posto que eu conheo a expresso religiosa e, por conseguinte
suas regras, por outro lado, dificultou a observao mais atenta de detalhes que
pudessem ser importantes para uma descrio minuciosa e interpretativa. Alm disso,
tive que tomar cuidado com o jeito de olhar, j que o olhar curioso de observador
etnogrfico poderia ser tomado por bisbilhotice a fim de conhecer os segredos da
casa. Destarte, procurei voltar diversas vezes em cada casa, paraque pudesse observar
com os olhos da curiosidade de pesquisadora aquilo que me era familiar, ao mesmo
tempo em que o ato de repisar me permitia olhar sem ser inconveniente.
Na verdade, eu estava ali desempenhando outro papel, ou seja, eu era a aprendiz
de antroploga e procurava mostrar isso indo s visitas com roupas ocidentais e sem
6Silva, Vagner Gonalves da. O antroplogo e sua magia. Edusp, So Paulo, SP. 2000,
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utilizar smbolos que pudessem me associar ao candombl. Deixei claro para os pais e
mes-de-santo que, no momento das entrevistas, eu estava realizando uma pesquisa
sobre o candombl de Campinas, proposta aceita por todos. Apesar disso, jamais
deixaram de me tratar como uma de dentro, ora chamando-me pela dijina" 7, ora
expondo-me segredos, pedindo sigilo, dizendo que confiavam em mim, em virtude de
minha posio religiosa.
O distanciamento entre a adepta e a pesquisadora que, nas entrevistas, se deu
to-somente pelo abandono dos smbolos religiosos afro-brasileiros, no foi assim to
simples, quando das idas s festas.Em taisocasies, no foi possvel participar sem a
vestimenta tpica de baiana, o que me causou alguns constrangimentos para tirar fotos,
porque eu era vista ali, antes de tudo, como sacerdotisa vestida com roupas incmodas
que tolhiam meus movimentos; ao mesmo tempo, era estranho estar paramentada com a
mquina fotogrfica mo.
Para a realizao do trabalho de campo, programei uma observao sistemtica,
durante um ano, que comeou no sbado de aleluia de 2004 com a lavagem da
Catedral e terminou com o mesmo evento, em 2005. Durante esse perodo, fui s
principais festas, sadas de muzenza8, de makotas9, de tatas10, festa de caboclo,
confirmao de kota11, kudi mutue12 e, como j disse, lavagem da Catedral. Alm
disso, participei de encontros com a comunidade de candombl de Campinas quepromoveu discusses sobre legalizao e visualizao dos terreiros, sobre os problemas
com a polcia e com outras religies, principalmente, com as neopentecostais.
7Nome religioso recebido por aquele que iniciado no candombl angola8No candombl de rito angola-congo, filha-de-santo.9Cargo feminino correspondente ao cargo de equeji no candombl queto. Acolita dos orixs, quandodescem nas filhas-de-santo.10Cargo masculino no candombl de rito angola correspondente ao og no candombl queto.11Irm mais velha, com mais de sete anos de feita.12Cerimnia de dar de comer cabea.
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A minha pesquisa se concentrou em quatro terreiros que foram selecionados,
levando-se em conta os seguintes critrios: pertencer nao angola, antiguidade, ter
expressividade para o povo de santo e ter reconhecimento na cidade.
Terreiro 1
Nome do terreiro: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda
Data de fundao: dezembro de 1981
Pai-de-santo: Antonio Carlos Rodrigues da Silva
Dijina: Tateto dia Nkisi Ubiacyle
Data da iniciao: ano - 1971
Terreiro 2
Nome do terreiro: Inzo Musambo dia Hongolo
Data de fundao: abril de 1974
Me-de-santo: Eunice de Souza
Dijina: Mameto dya Nkisi Edangoromia
Data de iniciao: 18 de janeiro 1984
Terreiro 3
Nome do terreiro: Inzo dia Musambu Kaiango nboti Oful
Data de fundao: 20 de Janeiro de 1983
Me-de-santo: Antnia Lima Duarte
Dijina: Mameto dya Nkisi Corajacy
Data da iniciao: 15 de fevereiro de 1981
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Terreiro 4
Nome do terreiro: Ile Ax Arol
Data de fundao: 8 de dezembro de1986
Pai-de-santo: Jos Estrivo
Dijina: Tateto dya Nkisi Od Gitalanguangi
Data de iniciao: 13 de maio de 1980
A teoria escolhida para interpretar os dados selecionados das histrias de vida dos
pais e mes-de-santo foi a da memria. De acordo com Pierre Nora, diferentemente da
histria que uma representao do passado, a memria um fenmeno sempre atual,
um elo vivido no eterno presente... Porque afetiva e mgica...(Nora, 1993, p. 9)
Para a memria fundamental o envolvimento com o grupo afetivo, pois segundo
Halbwachs:
Outros homens tiveram essas lembranas comigo. Muito
mais, eles me ajudaram a lembr-las: para melhor me recordar,
eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de
vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois
sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das idias e
modos de pensar a que no teria chegado sozinho, e atravs dos
quais permaneo em contato com eles. (1990, p.27)
Seguramente, ao trabalhar com a memria, se tem a lembrana que , ainda
segundo Halbwachs,
em larga medida uma reconstruo do passado com ajuda
de dados emprestados do presente e, alm disso, preparada por
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outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a
imagem de outrora manifestou-se j bem alterada. Certamente,
que se atravs da memria ramos colocados em contato
diretamente com algumas de nossas antigas impresses, a
lembrana se distinguiria, por definio, dessas idias mais ou
menos precisas que nossa reflexo, ajudada pelos relatos, os
depoimentos e as confidncias dos outros, permite-nos fazer uma
idia do que foi nosso passado. (Halbwachs.1990; p.71)
Neste sentido, a memria viva, uma vez que o ato de lembrar dispe de um
movimento que sai do presente, vai para o passado, retornando novamente para o
presente. Deste modo, trabalhar com a memria trabalhar com reconstruo que se
efetiva mediante este movimento de ir e vir tal qual uma lanadeira, isto , tem-se
elementos do presente incorporados aos do passado.
Embora lembrar seja o ato mais importante no estudo da memria, quando
lidamos com grupos discriminados, como o caso do candombl, o esquecimento
tambm tem que ser considerado, visto que por meio dele podemos identificar a
presena de conflitos. Tais conflitos so muitas vezes revelados por intermdio de
lacunas nas histrias de vida que surgem como esquecimentos de algumas situaes ou
de pocas da vida.
A memria das minorias tem tanto continuidades quanto rupturas. A estas ltimas,
Pollak vai cham-las de memrias subterrneas, porque uma memria que no pode
ser revelada, por causa do preconceito e das perseguies; fica, pois, restrita
comunidade afetiva.
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Uma caracterstica da memria subterrnea que ela somente vem tona
quando surge uma brecha nas relaes sociais, especialmente as polticas, e por ela ser
assim, podemos outorgar-lhe um carter de resistncia.
Segundo Pollak,
o longo silncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, a resistncia que uma sociedade civil impotente
ope ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo ela
transmite cuidadosamente as lembranas dissidentes nas redes
familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da
redistribuio das cartas polticas e ideolgicas. (Pollak,1989,
p.5).
No caso do candombl, muito comum a presena deste tipo de memria, j que
a origem dessa manifestao religiosa est vinculada populao afro-descendente, e o
racismo que se impinge contra esta populao tambm se estende aos elementos de sua
cultura.
Uma das formas de localizar a memria subterrnea por meio da histria oral .
Michael Pollak, ao se ocupar da memria de grupos segregados, excludos e
minoriasdiz que para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de
mais nada encontrar uma escuta. (Pollak, 1989; p. 6). Desta forma, a histria oral
revela-se uma importante tcnica de pesquisa com minorias sociais.
Na histria de vida h um ncleo forte que vai dar consistncia ao discurso e ao
qual o sujeito vai sempre retornar. Nas de longa durao, conforme Pollak:
a despeito de variaes importantes, encontra-se um ncleo
resistente, um fio condutor, uma espcie de leitmotiv em cada
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histria de vida. Essas caractersticas de todas as histrias de
vida sugerem que estas ltimas devem ser consideradas como
instrumentos de reconstrues da identidade, e no apenas como
relatos factuais.(Pollak, 1989; p. 12).
Esta reconstruo da identidade do grupo um ponto bastante importante para o
candombl angola campineiro que hoje luta contra o preconceito que o prprio povo do
santo, aliado a alguns intelectuais, possui em relao a este tipo de expresso religiosa.
Neste sentido, a histria de vida transforma-se numa tcnica excelente para realizao
deste trabalho.
O critrio assumido para determinar quantas histrias de vida deveriam ser
coletadas foi aquele conhecido como bola de neve, isto , foram os entrevistados do
primeiro grupo que indicaram os outros que os sucederam at que se repetiram as
indicaes, terminando assim as entrevistas. Alm disso, muitos dados foram frutos da
convivncia com os sacerdotes, por causa de minha condio de iniciada do candombl.
Coletei histrias de vida das quatro mes e pais-de-santo escolhidos e de outros
pais-de-santo, inclusive de outras naes, que se revelaram essenciais na formao do
candombl campineiro, por intermdio da citao de seus nomes nas histrias orais j
ouvidas. Tambm fizeram parte da pesquisa filhos-de-santo das diversas casas.
Para registrar as histrias de vida, optei pelo uso do gravador que foi bem aceito
por uns e considerado constrangedor para outros. Muitas vezes, as revelaes
interessantes aconteciam depois que eu desligava o aparelho.
Foram gravadas 40 horas de entrevistas, mas muitas revelaes importantes
foram obtidas em conversas informais, nos fins das festas, nos dias de sacrifcios, nas
reunies polticas da comunidade religiosa afro-brasileira de Campinas, em que o
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gravador no estava presente. Estas revelaes feitas pelos pais, mes-de-santo e filhos-
de-santo eram anotadas discretamente em cadernetas ou escritas assim que fosse
possvel, porm em momento e local adequados.
importante mencionar uma outra questo relevante para quem pesquisa esta
expresso religiosa: aquela relacionada aos conflitos e rivalidades. Como nem sempre
fosse possvel ficar neutra, no momento da pesquisa, era importante saber a que
distncia eu deveria me manter para no me envolver na indaka de mavula"13e poder
realizar o meu trabalho.
Quando comuniquei aos pais e mes-de-santo selecionados para este meu estudo
que estaria nos prximos anos fazendo uma pesquisa e escrevendo sobre o candombl
de Campinas, a notcia se espalhou como rastro de plvora. Numa reunio com aquela
comunidade, na qual se discutiam as diversas dificuldades que os terreiros encontravam
na legalizao da construo de suas casas, percebi uma conversa paralela, que no era
comigo, mas que se fazia bem ao meu lado para que eu pudesse ouvi-la. O assunto desta
conversa era: Qual era a casa mais antiga de candombl de Campinas?
Havia diversos nomes de pais e mes-de-santo envolvidos na questo, e eu no
havia percebido o quanto era importante para a comunidade ser notada, isto , ser
tomada como objeto de um trabalho acadmico. Certamente, na perspectiva do
candombl de Campinas, ser objeto de estudo lhe dava maior importncia.
Na realidade, para esta expresso religiosa, seja queto, seja angola, ser o
primeiro significa ter prestgio, pois quer dizer que, no mnimo, os que vm depois
descendem dele. Da a relevncia da questo da casa mais antiga, do primeiro
candombl, do primeiro pai-de-santo.
13Discusso, litgio. Confuso, barulho, tumulto. Fofoca.
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Ouvi estas conversas paralelas sem me intrometer durante vrios encontros, at
que um dia, a discusso entre alguns dos envolvidos veio tona. Embora o recado fosse
para mim, a conversa se passou como se eu no estivesse ali. Por fim, depois de alguns
acertos, ficou resolvido, com muita habilidade, que a casa de candombl mais antiga,
registrada era a de pai Toloji; a primeira me-de-santo com casa aberta de candombl
angola em Campinas, porm sem registro, fora me Nanjerecy; o barraco mais antigo,
isto , o primeiro que tinha sido construdo, era o que pertence hoje ao pai Ubiacyle,
considerado como o pai-de-santo mais velho. Assim, a comunidade resolveu seus
problemas muito diplomaticamente, sem deixar ningum de fora, ao mesmo tempo em
que me passava o recado.
Portanto, ficou evidente para mim que o que eu fosse escrever deveria estar de
acordo com o que a liderana desta expresso religiosa havia determinado.
O trabalho est dividido em quatro captulos. No primeiro captulo, farei uma
contextualizao da cidade de Campinas, relacionada ao tipo de escravido que foi
institudo na regio, que deve ser levado em conta para se entenderem as caractersticas
do candombl angola hoje estabelecido na cidade.
O segundo captulo trata da etnografia do espao mais antigo, alm de mostrar
como uma das casas de candombl pesquisada se diferencia das demais, na ocupao e
distribuio do espao com a introduo de novos ritos.
O terceiro captulo destina-se a mapear as famlias de santo e mostrar como se
formam os parentescos e o que resulta do trnsito de filhos-de-santo entre as famlias,
levando-se em conta as alianas e os conflitos.
Os nomes dos componentes das famlias de santo que participaram deste
trabalho foram obtidos atravs dos depoimentos dos entrevistados.
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No quarto captulo, ser analisada a lavagem das escadarias da Catedral
Metropolitana de Campinas, atentando para a ausncia do deslocamento de filhos entre
duas importantes casas de angola, que possivelmente tenham nessa prerrogativa a
possibilidade de realizarem juntas a nica festa pblica do candombl campineiro e que
hoje est inscrita no calendrio oficial deste Municpio e no calendrio turstico e
cultural do Estado de So Paulo.
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CAPTULO INascimento e estabelecimento dos terreiros.
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Campinas
Por volta de 1767, em decorrncia do caminho de Goiases, formou-se no oeste
do Estado de So Paulo o bairro de "Campinas do Mato Grosso de Jundia". Um
pequeno comrcio se desenvolveu naquele local para suprir as necessidades das tropas
que transitavam entre Santos, Minas Gerais, Gois e Cuiab e atendiam economia
mineira. (Baeninger, 1992)
Em 1774, o bairro tornou-se "Freguesia de Nossa Senhora da Conceio das
Campinas do Mato Grosso de Jundia"14, e, em 1797, de Freguesia passou para a
categoria de vila, "Vila de So Carlos". A cultura de cana de acar fora introduzida na
regio e, entre 1790 e 1795, a indstria aucareira fundou a prosperidade econmica e
populacional da regio. 15
O ciclo do acar arregimentou significativa quantidade de mo-de-obra escravacuja maioria era formada de negros provenientes do grupo lingstico banto, filhos das
diversas etnias que o compem. Conforme Slenes,
vrios grupos de bakongo, mbundu e ovimbundo (localizados
respectivamente no baixo rio Zaire, no interior de Luanda, e no
hinterland de Benguela), forneceram grandes contingentes de cativos
14No dia 14 de julho de 1774, em uma capela de sap e paus rolios, foi celebrada a primeira missa porFrei Antnio de Pdua, primeiro vigrio da parquia. Essa ficou sendo a data oficial da fundao dacidade, na poca Freguesia de Nossa Senhora da Conceio das Campinas do Mato Grosso de Jundia.Nessa fase, o Governador da Capitania cumpria expressas ordens do Rei de Portugal para povoar eimplantar agricultura slida no territrio paulista, pois a minerao estava em queda e os preos do acaranunciavam alta
15. Em 1797, a freguesiafoi elevada condio de vila, mantendo at 1842 o nome de Vila So Carlos. Operodo do acar marcou a fase de construo da cidade, havendo ainda ruas com pouqussimas casas.
Site www.campinas.sp.gov.br
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para o sudeste e (estou convencido) boa parte da matriz cultural da
senzala. (Slenes, 1999; p.50).
Com a sangrenta revoluo de Saint Dominique em 179116, que dizimou a
colnia francesa, a exportao de acar para o mercado europeu ficou bastante
prejudicada. O preo do produto subiu vertiginosamente e deu um impulso s
"plantation" da regio de Campinas, onde a escravido passou a caminhar junto com o
acar. A expanso da cultura da cana gerou uma expanso econmica que, por sua
vez, estimulou, tambm, o crescimento da populao cativa.
Conforme Baeninger,
"o ciclo do acar marcou a fase de construo da cidade. A dinmica
expressa por esse ciclo econmico contribuiu para o surgimento de
pequenos ncleos urbanos ligados ao setor agrcola e comercializao
de escravos, introduzindo a diversificao, embora incipiente e
apontando para o surgimento de uma importante rede urbana no
Estado.(1992; p. 23)
Com a queda do preo do acar no mercado internacional, a cultura da cana
entrou em decadncia. Porm, o ciclo econmico do acar gerou capital suficiente para
a introduo da cultura cafeeira que veio como alternativa econmica para a queda do
mercado aucareiro. Embora a cultura do caf tivesse surgido concomitantemente
16O domnio colonial (no Haiti) foi seriamente abalado pelos acontecimentos que culminaram com aRevoluo Francesa. Os antigos escravos da ilha rebelaram-se contra o jugo francs em 1791 e o grandelder abolicionista Pierre-Dominique Toussaint L'Ouverture tomou o poder. Em 1794, Napoleo
Bonaparte enviou uma expedio para combater os rebeldes. Aps meses de resistncia, Toussaint aceitouos termos de paz e foi enviado para a Frana onde, contra os termos da paz negociada, morreu na prisoem 1803. www.ufrs.br/cdron.
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prosperidade da cultura aucareira, foi somente em 1835 que houve a substituio de
uma cultura pela outra. (Beaninger, 1992). 17
Prometendo considerveis ganhos para os fazendeiros, a cultura do caf se
estendeu por toda a regio, o que aumentou a necessidade de mais trabalhadores,
arregimentando, desta forma, grande quantidade de mo-de-obra escrava, que com a
proibio do trfico negreiro em 1850, foi suprida atravs do trfico inter-regional.18Os
escravos do Norte e Nordeste deixaram as regies que manifestavam decadncia
econmica e se dirigiam para as regies que apresentavam maior desenvolvimento,
como o Sudeste.19
O primeiro registro nacional de escravos, datado de 1872, segundo Slenes,
mostrou que Campinas tinha 14.000 cativos, ou a maior populao escrava de todos
os municpios paulistas". (Slenes, 1999; p. 71). Em virtude da proibio do trfico
externo20a mo-de-obra escrava foi suprida pelo trfico inter-regional. Embora amo-
de-obra escrava, naquela ocasio, fosse proveniente principalmente do Nordeste
17Em 1867, com capital derivado essencialmente de cafeicultores, fundou-se a Ferrovia Paulista que entraem operao em 1872. www.campinas.sp.gov.br
18Perodo e economia fortemente escravagistas, entre 1854 e 1886, a populao cativa estava em 50%.www.campinas.sp.gov.br
19Conforme Baeninger: A migrao de escravos provenientes de regies onde as lavouras canavieirasentravam em decadncia, como as do Nordeste, contribuiu para o crescimento populacional das
provncias do Sul (Prado, 1983). De fato, nos jornais da poca, encontravam-se anncios como este:"vende-se(sic) 12 bonitos escravos de 12 a 20 anos, todos do Cear" ( gazeta de Campinas, 22-6-1878;apud Lapa, 1991) - (Baeninger. 1992; p. 21)20Leis Abolicionistas :* 1815 - Tratado anglo-portugus, na qual Portugal concorda em restringir o trfico ao sul do Equador;* 1826 - Brasil compromete em acabar com o trfico dentro de 3 anos* 1831 - Tentativa de proibio do trfico no Brasil, sob presso da Inglaterra.* 1838 - Abolio da escravido nas colnias inglesas* 1843 - Os ingleses so proibidos de comprar e vender escravos em qualquer parte do mundo* 1845 - A Inglaterra aprova o Bill Abeerden, que d Inglaterra o poder de apreender os naviosnegreiros com destino ao Brasil.* 1850 - aprovada sob presso inglesa a lei Eusbio de Queirs, que probe o trfico negreiro no Brasil.* 1865 - A escravido abolida nos Estados Unidos (13a. Emenda Constitucional) 1869 - Manifesto
Liberal prope a emancipao gradual dos escravos no Brasil.* 1871 - Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco 1885 - Lei dos Sexagenrios ou Lei Saraiva-Cotejipe* 1888 - Lei urea.
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brasileiro, esses escravos poderiam no ser mais africanos, mas j terem nascido em
terras brasileiras, contudo observa-se que "a populao cativa de Campinas na primeira
metade do sculo XIX era predominantemente africana. (Slenes, 1999; p. 72).
Cabe notar que a proibio do trfico negreiro limitava a aquisio de mo-de-
obra escrava, numa poca em que o complexo cafeeiro se estruturava, se consolidava e
isso demandava uma grande quantidade de mo-de-obra.21Ademais, a partir da metade
do sculo XIX, o Movimento abolicionista tomou fora e incitava levantes e fugas de
escravos que desorganizavam a produo nas fazendas. Nesta mesma poca, idias
racistas importadas da Europa formavam opinies entre alguns intelectuais que,
baseados nestas fontes, se preocupavam com um Brasil que se formava moreno e
miscigenado. A soluo encontrada nesse caso, tanto para o dficit de mo-de-obra,
quanto para o branqueamento da populao, foi uma poltica de imigrao europia.
Desta forma, acreditavam, estaria salvo o Brasil no s economicamente, mas
tambmna constituio da sua identidade nacional, uma vez que com o branqueamento
poderia se configurar uma nao aos moldes europeus.
A lei urea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de Maio de 1888, alm de ter
libertado um dcimo da populao negra da poca no Brasil, significou, principalmente,
a retirada de um entrave para o trabalho assalariado no pas, visto que muitos dos
setores da economia j no mais utilizavam a mo-de-obra escrava.
Porm o que deveria terminar com um programa de ajustamento social
gradativo, tornou-se um desajustamento estrutural, porquanto os negros foram fadados
ao desemprego e marginalidade. Esse contexto somente agravou o preconceito racial
21A hiptese de que a proibio do trfico negreiro gerara um dficit de mo-de-obra disponvel paratrabalhar na agricultura do caf, refutada no livro de Petrnio Domingues, Uma Histria No Contada negro racismo e branqueamento em So Paulo na ps-abolio (Editora Senac, SP) que foi resultado da
dissertao de mestrado desenvolvida pelo autor na USP. Segundo Petrnio, no havia falta de mo-de-obra em So Paulo, mas uma concreta inteno da elite, do governo e dos intelectuais paulistas embranquear a cidade.
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que justificava a degradao do liberto na nova realidade social pela superioridade do
branco sobre o negro. Alm disso, os libertos tiveram que disputar no mercado de
trabalho com os imigrantes brancos europeus, mais bem aceitos.
Reafirmando essa questo, Bernardo chama a ateno para a concorrncia no
mercado de trabalhadores livres, entre os ex-escravos e o imigrante europeu, afirmando
que este ltimo era o preferido. Com isso, o ex-escravo alforriado ou aquele que mais
tarde obteria a liberdade, eram colocados inteiramente margem da nova ordem social,
que se instaurou com o mercado de trabalho livre. (Bernardo, 1998; p. 24).
A primeira experincia com mo-de-obra formada por imigrantes europeus no
Estado de So Paulo data de 1847 e foi realizada na fazenda Ibicaba, na regio de
Campinas, e atual municpio de Limeira (Beaninger). Esse foi um empreendimento
importante, por empregar, simultaneamente, mo-de-obra livre e escrava.
No entanto, essa primeira tentativa de imigrao europia no foi bem sucedida.
Os imigrantes que chegaram ao sudeste vinham para trabalhar como meeiros, parceria
que no deu certo, por um lado, porque as condies de trabalho eram pssimas e nesse
sistema os imigrantes eram obrigados a pagar para o fazendeiro as despesas realizadas
com a imigrao, ficando vinculados a ele at saudarem a dvida. Por outro lado, o
regime escravista ainda vigente tambm se tornou um entrave para a imigrao, uma
vez que esse sistema no era bem aceito pelos governos europeus da poca.
Em 1886, uma nova experincia imigratria se iniciou, mas, desta vez, com
outro sistema de trabalho que no era mais o de "parceria" como fora nas dcadas
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anteriores, mas o de "colonato". Inaugurou-se, ento, o sistema de trabalho livre, em
contrapartida com a escravatura. 22
O desenvolvimento da cultura do caf no sudeste do Brasil trouxe consigo o
desenvolvimento dos meios de transportes, da construo civil e uma industrializao
rude, que geraram um processo de urbanizao. A regio se modificou, as cidades
cresceram, as indstrias precisaram de mo-de-obra, e o comrcio, de consumidores.
Conforme Baeninger,
"Com a implantao da cultura do caf, que passou a ser o
principal produto cultivado, Campinas acentuou seu dinamismo
com um intenso desenvolvimento urbano e rural. O efeito
urbanizador j se fazia sentir atravs da expanso das vias de
comunicao para o transporte do caf, como as Estradas de
Ferro Mogiana e Companhia Paulista (1872), originando ncleos
urbanos e ampliando as atividades ligadas a esse setor". (1992;
p. 29)
Em 1889, uma epidemia de febre amarela causou muitas mortes em Campinas e
provocou intensa fuga de moradores para outros municpios, alm de diminuir a
imigrao europia para a regio. 23
Em So Paulo, a febre amarela adentrou por Santos, que era a porta de entrada
dos imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras de caf. A doena alastrou-se
22Segundo os registros da hospedaria dos imigrantes do Estado de So Paulo, " foram enviados para aslavouras de caf do Municpio, de 1882 a 1900, 140631 imigrantes estrangeiros, dos quais 75% eramitalianos; 11,3% portugueses; 7,9% espanhis; 3,9% alemes e 1,8% de outras nacionalidades."(Baeninger. 1992: 31, 32)23 Segundo Baeninger,: Os historiadores locais afirmam que durante a epidemia quase 75% da populaoemigrou do Municpio (Brito, 1969; Pupo, 1969). "A cidade abandonada; a populao reduziu-se de 20
mil para 5 mil moradores; a morte rondava a cidade."(Figueira de Mello, 1991:23). Estabelecimentoscomerciais, escritrios de indstrias e at algumas indstrias transferiram-se para So Paulo e Jundia.(Semeghini, 1988). (1992: 35)
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primeiramente pela regio porturia e, como no havia casos no interior paulista, a
medicina acreditava que era uma doena tpica das regies litorneas. Porm, em 1889,
houve uma forte epidemia em Santos que subiu a serra atravs da ferrovia e chegou a
Campinas. Foram vrios surtos que assolaram a regio nos anos de 1889, 1890, 1892,
1896 e 1897, dizimando grande parte da populao. 24
Como era desconhecido o meio de propagao da enfermidade, acreditava-se
que a febre amarela era contagiosa e, num consenso geral, originria de eflvios
miasmticos ou emanaes ptridas. Sendo assim, os mdicos higienistas, pensando na
erradicao da enfermidade, voltaram-se para os aspectos urbansticos, j que
associavam a doena ao ar confinado, portanto a habitaes coletivas, a ruas estreitas,
matadouros, cemitrios, valas, guas de fontes duvidosas e falta de esgotos. Desta
forma, o combate da doena ficou centrado na reorganizao urbana e na normatizao
da vida cotidiana. Nesse sentido, foi a populao mais pobre, constituda de imigrantes
e negros libertos, que arcou com a responsabilidade da disseminao da enfermidade,
acentuando desta forma o preconceito contra aqueles que se amontoavam em cortios na
cidade. Segundo Figueira Mello libertos e imigrantes em 1888 e1889, afluram para a
cidade. Entupiram os cortios(1991; p. 23)25
Nessa perspectiva, o preconceito racial contra o negro se intensificou e gerou
fortes demandas contra suas manifestaes religiosas, pois do mesmo modo que a raanegra foi considerada inferior, sua religiosidade tambm foi encarada como mais
primitiva e, ao mesmo tempo, associada a bruxaria e malefcios.
Embora Slenes afirme que "a maioria dos escravos de Campinas, mesmo em
1888, estava prxima no tempo s fontes africanas de sua cultura" (Slenes, 1999; p.
24Dados obtidos na Biblioteca Virtual Adolph Lutz.
http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/home.html25 FIGUEIRA MELLO, F. Formao histrica de Campinas: Breve Panaroma. Subsdios para aDiscusso do Plano Diretor. Prefeitura Municipal de Campinas, 1991.
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72), seus cultos foram escondidos, parecendo desta forma no terem se estruturado ou
mesmo desaparecido, mas, pode ser que tenham se tornado subterrneos por causa das
perseguies sofridas, segundo a concepo de Pollak. (Pollak, 1989). 26
Apesar de Campinas ter passado por muitos surtos de febre amarela, a cidade
aos poucos foi se recuperando e, em 1891, deu-se continuidade ao processo imigratrio,
com o registro do maior "volume anual de imigrantes com destino a Campinas".
(Baeninger, 1992). Na virada do sculo, tanto So Paulo quanto os principais
municpios do interior apresentaram dinamismo econmico e populacional.
No entanto, com a queda do preo do caf e a conseqente crise neste setor, a
imigrao subsidiada para So Paulo e a economia cafeicultora encerraram-se,
respectivamente em 1927 e 1930.
Contudo, na regio houve tambm a vinda de imigrantes norte-americanos que
introduziram o cultivo do algodo, que trouxe consigo novas tcnicas de plantio, alm
de um novo plo industrial.
Conforme Baeninger:
"O movimento migratrio internacional desempenhou
urbanizao, alternando em muitos casos, o comportamento
26 Um estudo realizado por Rita Amaral sobre a coleo etnogrfica de cultura religiosa afro-brasileira
do MAE , curiosamente revela a Coleo Registro Sertanejo que apresenta um candombl banto datadodo comeo do sculo XX. De acordo com o artigo, Rita divulga que: Foram encontradas 187 das 252peas listadas, datadas do princpio do sculo, de cultos afro-brasileiros sediados principalmente nointerior de So Paulo.Segundo informaes contidas nesta listagem, algumas peas foram levadas ao Museu Paulista, em 1914.Outras, em 1938 e outras ainda, em 1943. So originrias de cultos do interior de So Paulo (Tiet,Pirapora, Araraquara, Jundia) e foram doadas ao Museu Paulista pela Secretaria de Segurana Pblica, oque indica que devam ter sido apreendidas durante o perodo de represso policial ao culto. Essa coleo extremamente valiosa, no apenas por representar aspectos mltiplos do culto, como por seu carterartesanal, constituindo peas nicas., 26Amaral, Rita. A coleo etnogrfica de cultura religiosa afro-brasileira do museu de arqueologia e etnologia da universidade de So Paulo, In Revista do Museu deArqueologia e Etnologia, Universidade de So Paulo, no. 10, 2000, p266. Isso significa que houve umcandombl anterior a este que hoje existe em Campinas e que, possivelmente, desapareceu em virtude da
perseguio policial.
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demogrfico, o perfil populacional econmico e as formas de
insero dos municpios na diviso social do trabalho no
Estado".(1992; p.48)
Campinas, no ciclo do acar, fora denominada a Capital da escravatura, no
perodo cafeeiro, recebera a alcunha de "Princesa do oeste" e, com o avano da
industrializao, tornara-se uma "Cidade Modelo".
Na primeira metade do sculo XX o processo de urbanizao e industrializao,
conforme Baeninger,
"representou a formao de uma nova ordem social permeando
todas as instncias da sociedade. A mistura de raas,
nacionalidades, culturas e ideologias, dispersas no espao
urbano, comeou a caracterizar certos grupos sociais. A
constituio da classe operria, formada primeiramente pelos
trabalhadores estrangeiros foi expresso desse processo".(1992;
p.50)
Com o crescimento do nmero de indstrias aumentava tambm a migrao
originria no s de outros Estados, como tambm do xodo rural. (Baeninger, 1992)
Campinas era uma cidade que reforava o papel da migrao, uma vez que isto era
sinnimo de dinamismo econmico e prosperidade.
A partir dos anos 60, o fluxo migratrio para a regio de Campinas aumentou
consideravelmente e continuou na dcada de 70, ocasio em a cidade recebeu
"um total de 230.464 migrantes, dos quais, aproximadamente,
20% apresentavam como local de ltima residncia o Estado do
Paran, 15% vinham da regio Metropolitana de So Paulo, 10%
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do Estado de Minas Gerais e 5% da prpria regio de governo
da Campinas".27(Baeninger. 1992; p. 76)
Em Campinas, o Estado do Paran que nesta poca aparece como a principal
rea de procedncia dos migrantes, porm de uma maneira geral de Minas Gerais que
tradicionalmente vem a maioria. Ademais,se para So Paulo a migrao de nordestinos
foi intensa, em Campinas ficou em torno de 12,5%, ocupando a quarta posio em
relao a outras regies do Brasil. (Baeninger, 1992)
Alm dos fluxos migratrios interestaduais, tambm foi significativo o
movimento migratrio proveniente do oeste paulista que se direcionou para Campinas.
Na dcada de 70, coincidindo com o processo de urbanizao, com a afluncia
de indstrias que formaram o maior parque industrial regional e com a expanso
rodoviria, fatos que estimularam a vinda de um nmero significativo de migrantes,
que se deu a chegada dos pais e mes-de-santo que fazem parte desta pesquisa e, por
meio deles, o surgimento dos primeiros terreiros de Umbanda em Campinas.
Por sua vez, o candombl que j havia se estabilizado em So Paulo nos anos 60,
chega a Campinas na dcada de 80, confirmando o que nos afirma Boaventura de Souza
Santos ( 1996), a saber, que s permanecem ou florescem elementos da cultura que
possuem raiz. Por isso, me ative explicao de como chegaram os escravos em
Campinas, na verdade, a raiz das expresses religiosas afro-brasileiras. .
Fundamentando-nos em Bernardo (1986) e Prandi (1991) que explicam que a Umbanda
abriu caminho para o candombl em So Paulo, podemos assegurar que o mesmo
processo ocorreu em Campinas.
Mais reintegrada sociedade a umbanda, como expe Ortiz,
27Beaninger considera como migrante o indivduo residente h menos de dez anos no municpio deresidncia atual.
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aparece, pois como um soluo original; ela vem
tecer um liame de continuidade entre as prticas
mgicas populares dominncia negra e ideologia
esprita. Sua originalidade consiste em reinterpretar
os valores tradicionais, segundo o novo cdigo
fornecido pela sociedade urbana e industrial .(1999;
p.48)28
Sem a necessidade de processos iniciticos mais drsticos, tais
como so exigidos pelo candombl, na umbanda por meio do transe
que h a manifestao do caboclo, do preto-velho, que so espritos
ancestrais, que vo direcionar o inicio do caminho religioso a esses
sacerdotes pesquisados. Todos os entrevistados vieram de famlias de
religies crists, sejam catlicas ou neopentecostais, e para se chegar ao
universo mgico do candombl, no qual os ritos de passagem e
purificao so realizados mediante o sacrifcio de animais, rito que foi
e ainda amplamente questionado e combatido pelas diversas
modalidades de religies crists no Brasil e pela sociedade mais
abrangente, a umbanda surge, ento, como uma interessante soluo para
a entrada ao universo afro-brasil eiro. Por um lado, citando Ortiz,
O problema das despesas encontra, pois, na religio
umbandista uma soluo original; um primeiro
28Ortiz, Renato.A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. EditoraBrasiliense, So Paulo. 1areimpresso, 1999.
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resultado a ausncia de gastos no sacrifcio de
animal, uma vez que estes tendem a ser abolidos.
(1999; p.154).
Por outro lado, ainda referindo-se obra de Ortiz, o problema
longe de ser uma equao funcional, parece-nos ser de cunho
ideolgico. Por detrs do jogo de funcionalidades se esconde um conflito
muito mais amplo que se trava contra os valores da sociedade global.29
(1999; p.155)
Este conflito j se mostrava desde o incio da caminhada desses
sacerdotes, quando iam procura das benzedeiras e revelavam a m
impresso deixada pelos objetos religiosos afro-brasileiros, expostos nos
altares. Neste caso, o elemento bsico determinante da ao dramtica
a oposio entre os valores da populao branca, crist e de classe mdia
e os padres afro-brasileiros expressos na estaturia e, muitas vezes, na
incorporao dos espritos de pretos-velhos e caboclos.
A entrada do candombl em So Paulo se d, segundo Prandi:
"... por diferentes maneiras: atravs de pais-de-santo que vm do
Rio e da Bahia para iniciarem filhos aqui; quando umbandistas
vo ao Rio e Bahia para l se iniciarem no candombl; nos
casos em que um pai ou me-de-santo migra para So Paulo j
iniciado em seu Estado de origem e abre aqui terreiros de
candombl; na situao em que o migrante j vem feito no
29 Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editorabrasiliense, So Paulo.1areimpresso, 1999.
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candombl, mas comea sua carreira religiosa em So Paulo
abrindo casa de umbanda, para mais tarde vir a tocar candombl
e abandonar a umbanda; e, finalmente, atravs de filhos que j
so iniciados em So Paulo por mes e pais-de-santo, tambm
iniciados em So Paulo... J na etapa de expanso, claro, esta
ltima forma a mais freqente e tambm a que refora a idia
de estar esta religio se enraizando na metrpole. (1991; p.93)
Em Campinas, a umbanda data da dcada de 70 e o candombl se estabelece na
dcada de 80 do sculo XX, edificado por dois pais-de-santo brancos e duas mes-de-
santo negras, todos provenientes de outras cidades do Estado de So Paulo e de outros
Estados, ecoincide com o fluxo migratriodirecionado para este Municpio. 30
A iniciao destes sacerdotes no candombl foi realizada por mes-de-santo
oriundas de So Paulo e da baixada santista31, a propsito, da mesma forma de expanso
relatada por Prandi.
Convm ainda acrescentar que o candombl que primeiro e mais largamente se
estabeleceu em Campinas foi o de nao angola, ainda hoje o mais numeroso.
30Pai Ubiacyl proveniente de Limeira, pai Gitalangunage de Catanduva, me Corajacy da Bahia, masj morava em Minas Gerais quando migrou para Campinas e Me Dangoromia oriunda de MinasGerais. A expanso do plo industrial de Campinas atraiu grande quantidade de migrantes originrios dointerior de So Paulo assim como de outros Estados. Estes pais e mes-de-santo vieram com essemovimento migratrio que muito se intensificou depois de 1960.31Vagner Gonalves nota que: A importncia do candombl litorneo em So Paulo tambm pode seratestada na relao dos mais antigos pais-de-santo em So Paulo, elaborada pela Comisso de Candomblformada por algumas lideranas religiosas paulistas, a partir da Assessoria para Assuntos Afro-brasileirosda Secretaria do Estado da Cultura do Governo Franco Montoro, em 1983. Dos vinte e sete babalorixs e
ialorixs citados, quinze se localizam na capital e doze em Santos; deste total, onze pertencem naoangola e trs sua varivel amerndia o xamb; do queto so seis, o mesmo nmero para sua varivelefon. ( obs.: um dos terreiros no tem definida a nao) (Vagner, 1995: p.82)
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CAPTULO IIDa umbanda para o candombl: o espao conta a histria.
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no espao que encontramos todas as marcas das pocas em que um
determinado grupo viveu..
Maurice Halbwachs afirma que as religies
esto solidamente afixadas sobre o solo, no somente porque se
trata de uma condio que se impe a todos os homens e a todos
os grupos; mas uma sociedade de fiis conduzida a distribuir
entre diversos pontos do espao o maior nmero de idias e
imagens que so por ela defendidas. (1990; p. 143). 32
Nos terreiros pesquisados, isso visvel nas novas edificaes, nas imagens dos
inquices pintadas nas paredes, nas imagens de gesso dos santos catlicos colocados em
suportes, nos assentamentos distribudos pelos canteiros, nos odus assentados nos
cantos da casa, nos smbolos da umbanda que se encontram distribudos pela casa ou
reunidos num s recanto, nos centros dos sales, enfim, todo espao provido de
smbolos cujos significados esto ali mostrando as relaes com os deuses e como o
fiel deve se comportar.
Os terreiros aqui estudados, assim como a maioria dos terreiros paulistas,33 se
tornaram de candombl num movimento posterior umbanda.
Ao observarmos as permanncias e modificaes no espao, podemos tentar
desvendar a histria da comunidade e o conjunto de smbolos e atributos pertinentes
quele grupo.
32Halbwachs, Maurice. A Memria Coletiva. Vrtice, Editora Revista dos Tribunais, So Paulo. 199033 Sobre o trnsito dos terreiros paulistas da umbanda para o candombl existe vasta bibliografia arespeito. Ver: Bernardo, S. Teresinha. A mulher no candombl e na umbanda. Dissertao de mestrado
apresentada ao programa de Estudos Ps-graduados em Cincias Sociais PUCSP, 1986. Prandi,Reginaldo.Os candombls de So Paulo. Editora da Universidade de So Paulo, So Paulo,1991. Silva,Wagner Gonalvesda. Orixs da Metrpole. Editora Vozes Ltda. Petrpolis, R.J. 1995.
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Situados em bairros perifricos de Campinas, os terreiros de candombl podem
ser identificados, externamente, pela presena de alguns elementos simblicos que so
comuns s religies afro-brasileiras, os quais geralmente ficam dispostos sobre os
portes e muros frontais. Sempre circundados por muros altos que no permitem a viso
interior do ptio das casas, a fachada revela, por seu recato, a inquietao perante o
preconceito que ainda hoje persiste contra as religies de matrizes africanas. Desta
forma a busca da segurana avana em direo a uma comunidade de interesses e
identidade comuns, e os muros altos a protegem dos olhos dos diferentes.
Das quatro casas escolhidas, apenas a de mameto Dangoromia que est
localizada num bairro de Hortolndia34, cidade prxima a Campinas, apresenta uma
indicao mais contundente sobre a razo daquela construo. Num muro lateral que d
para a rua de maior movimento pode-se ler o nome Inzo Muzambo dia
Hongolomenha, escrito em grandes letras azuis sobre a parede branca, que significa
Casa do Dono do Arco-ris.
A localizao dos terreiros nas periferias da cidade denota a capacidade
aquisitiva do grupo, uma vez que os terrenos nessas regies possuem um valor mais
baixo do que outros em localidades nobres. Alm disso, encontrar-se num bairro
retirado significa estar num nicho da sociedade onde as regras da vida social so mais
maleveis, possibilitando o toque de atabaques, a criao e sacrifcio de animais e osdespachos de ebs,j queas encruzilhadas e matas na poca da fundao dessascasas
34At 1953, com o nome de Jacuba, a atual Hortolndia pertencia ao municpio de Campinas. A partirdesta data, o povoado de Jacuba foi elevado a Distrito de Jacuba do municpio de Sumar emancipadonesta mesma poca . Em 1958, Jacuba passa a ser conhecida como Hortolndia, distrito de Sumar. Trintae trs anos depois, em 19 de maio de 1991, Hortolndia se emancipa de Sumar, passando a ter umaidentidade prpria no processo de desenvolvimento da regio. www.hortolandia.sp.gv.br
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estavam mais presentes. Vale notar, ainda, que ali esto os mais pobres e a maioria dos
afrodescendentes.
A justificativa para os estudos dos terreiros que esto localizados,
respectivamente em Hortolndia e em Monte Mor, que o crescimento da Regio de
Governo de Campinas (ver fonte IBGE, censo demogrfico de 1980) teve como eixo
dois processos, segundo Beaninger:
A expulso da populao de baixa renda para reas
cada vez mais distantes - com menor valor de solo urbano em
relao s reas mais centrais e precrios sistemas de infra-
estrutura e equipamentos sociais - a industrializao de grande
parte dos municpios da Regio, alm de Campinas, com
importante peso no emprego industrial do Estado (FUNDAO
SEADE, 1990b)(1992; p 134)35.
Fonte IBGE, Censo Demogrfico de 1980 3
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Fonte IBGE, Censo Demogrfico de 1980
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O terreiro de mameto Corajacy o que fica num bairro mais afastado e de mais
difcil acesso. Anteriormente, esta me-de-santo havia construdo um barraco nos
fundos de sua casa que ficava num bairro de casas populares em Campinas. Hoje, o
terreiro est localizado num bairro perifrico de Monte Mor, com ruas sem
pavimentao, constitudo de pequenas chcaras.
Por ocasio da entrevista, tive dificuldade para encontr-lo, uma vez que as
informaes que haviam me passado para chegar ao terreiro eram um emaranhado de
direitas e esquerdas, e apesar de terem me dado algumas referncias, a dificuldade
persistiu uma vez que a rua no tinha placa sinalizadora.
Depois de errar diversas vezes e vagar por muitas ruas do bairro, eu pude chegar
ao terreiro, ainda assim mameto Corajacyprecisou me enviar um de seus filhos para
que me guiasse at l.Essa procura me fez recordar as histrias mticas contadas nos
candombls, em que os caminhos eram indicados aos que saiam em jornada na terra,
por transeuntes ou moradores encontrados pelos caminhos. Foi exatamente assim que
consegui chegar at o terreiro de mameto Corajacy, pedindo informao para
transeuntes. Somente depois de tantos erros, de diversos ir e vir que atinei ao mito de
como os caminhos podem ser facilmente encontrados, ou seja, quando anteriormente
partida faziam-se ofertas votivas a Exu, o orix dos caminhos e das encruzilhadas, que
ajudava os viajantes a chegarem a seus destinos; eu no as havia feito.
Nas minhas voltas pelo bairro procura do terreiro da mameto Corajacy, olhava
para os portais das chcaras na esperana de ver uma quartinha, um alguidar e por
intermdio destes objetos to comuns nas entradas dos terreiros, encontrar a chcara
certa. Se minha busca tivesse dependido destes smbolos para identificar o terreiro, eu
no o teria achado, uma vez que seus assentamentos de porto estavam cuidadosamente
camuflados entre as folhagens que eram abundantes sobre o portal. Apenas ao longe, a
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bandeira branca do Tempo, atada a um alto mastro, surgia por sobre a vegetao e a
cerca viva.
Os demais terreiros aqui pesquisados ficam em bairros residenciais de ruas
asfaltadas e com uma disponibilidade de espao muito menor que a chcara onde est
localizado o terreiro da mameto Corajacy, alm de estarem cercados de vizinhos muito
prximos as suas instalaes.
Todos esses terreiros foram construdos na formao desses bairros, e por isso,
esses pais e mes-de-santo foram os primeiros moradores a se estabilizarem nessas
localidades. Essa referncia tem sido constantemente utilizada como atributo legalizador
das atividades do candombl nos dias de hoje, pois que, com o crescimento da cidade,
acabaram ficando cercados de casas. A constante presena de animais, como cabritos e
galinhas, ou ainda o barulho dos atabaques nos dias de festa, alm da convivncia com
as diferenas religiosas, fazem com que os terreiros sejam muitas vezes espezinhados
pela vizinhana. Embora esses candombls possam declarar que esto ali h mais tempo
que os seus vizinhos, acabam alterando os costumes, a fim de se adaptarem nova
realidade. As festas passaram a comear e a terminar mais cedo, os ebs so
despachados cada vez mais longe, e as criaes de animais destinados ao sacrifcio esto
cada vez menos presentes. Na nova realidade espacial, decorrente do crescimento da
cidade, esses terreiros acabaram ficando circundados de residncias, exigindo por isso
uma nova organizao das atividades, a fim de facilitar a convivncia com o outro.
Esses candombls mudaram seus horrios e maneiras de fazer as oferendas,
porque esperam ser aceitos na vizinhana. Embora o intuito das mudanas seja obter a
reciprocidade e a generosidade daqueles com que essas comunidades so obrigadas a
interagir socialmente, nem sempre issoque acontece. bastante comum os terreiros
terem que lidar com atos de rejeio, como apedrejamentos, realizados por
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fundamentalistas de outras religies, principalmente neopentecostais, ou por crianas e
adolescentes que certamente tm alguma referncia de discriminao em relao s
religies afro-brasileiras.
Campinas tem uma histria em que a ao repressora sempre esteve presente na
vida dos negros. Desta forma, o preconceito contra o candombl, que uma religio
afro-brasileira, tambm muito forte. A dificuldade de o candombl conviver com suas
indumentrias ritualsticas e a sociedade mais abrangente campineira, expresso no
depoimento de mameto Dangoromia:
Aqui em Campinas no tinha... com todo o respeito aos meu
irmo que so mais velhos na religio, mas tudo era muito
escondido, porque o preconceito era muito grande. Ento eu no
via as pessoas de cabea raspada, porque punham peruca. Era
muito difcil ver uma pessoa com tobosso36. (mameto
Dangoromia)
A opresso sobre as atividades culturais do negro, mesmo depois
da abolio da escravatura, continuou muito forte. Se a escravido
legitimava a opresso, com a abolio, esta relao passou a ser um caso
de polcia que freqentemente invadia bailes e proibiam as capoeiras.
Alm disso, a idia do branqueamento, a partir do perodo da Repblica
Velha, reforou ainda mais o racismo que j era institudo.
Essas so marcas que a histria das relaes raciais em Campinas
tambm deixou como herana para o candombl, tanto que os terreiros de
hoje so datados dos anos 70, do sculo XX, foram fundados por pais e
mes-de-santo migrantes de outros estados e cidades. Embora Campinas
36Pano enrolado cobre a cabea das mulheres do candombl angola.
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tenha recebido um grande contingente de negros escravos, seus
descendentes no esto presentes na formao destes candombls.
Diferente dos antigos terreiros de Salvador, onde h uma comunidade que vive
tanto nas imediaes quanto dentro da prpria roa 37, os terreiros em Campinas so
menores e so poucos os adeptos que residem nas proximidades, de forma que a maioria
dos filhos-de-santo vem de outros bairros e outras cidades.
As casas de angola
O primeiro terreiro campineiro de angola de que se tem notcia, data do final dos
anos 70 e era dirigido por uma me-de-santo chamadaNanjerecy.Hoje no existe mais,
porm foi nesta casa que se iniciou tateto Gitalanguange, um dos pais-de-santo que faz
parte deste trabalho.
Assim, o terreiro mais antigo de candombl angola em Campinas que continua
ativo, atualmente, o Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda, fundado em dezembro
de 1981, dirigido por pai Ubiacyl.
Localizado na rua Joo Sulinski, n 390, no Jardim So Pedro, este terreiro tem
uma histria peculiar, pois o barraco havia pertencido, originalmente, a uma me de
37Bernardo descreve um terreiro baiano dizendo que: A roa surpreende, desde o incio, pela suaconstruo. Parece um pequeno bairro, todo cercado de grades brancas com um porto central. Aoatravess-lo, entra-se em uma pequena praa que d origem a curtas e estreitas ruas asfaltadas earborizadas com casas antigas e bem cuidadas. Em uma das vielas, v-se um armazm e, em outra, umacapela toda branca.As crianas brincam despreocupadas dispondo daquele espao como verdadeiros
donos, diferentemente das brincadeiras infantis que se vem nas ruas de So Paulo e da prpriaBahia.Bernardo, Teresinha. A mulher no candombl e na umbanda. Dissertao de mestradoapresentada ao programa de Estudos Ps Graduados em Cincias Sociais da PUCsp- 1986. So Paulo.
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umbanda, depois foi vendido a um sacerdote de nao queto que, posteriormente, o
vendeu ao tateto Ubiacyl. Alm disso, o espao mais antigo dentre todos os outros,
considerado o lugar onde nasceu o candombl de Campinas.
Trs Oguns: uma s terra.
Ogum Rompe Mato foi o primeiro nome que esse barraco recebeu de uma
sacerdotisa de umbanda chamada Antonieta. Curiosamente, esta senhora vendeu o
barraco juntamente com o corpo de mdiuns e o peji38 para um babalorix de So
Paulo que estava se estabelecendo em Campinas, chamado baba Toloji. Ele conta:
Era uma casa de Umbanda. Ela se chamava Ogum Rompe
Mato. Essa casa foi de Ogum. Eu comprei. Sou de Ogum. Era de
uma pessoa de Ogum, comprei e sou de Ogum, vendi para o Bia
que uma pessoa de Ogum. Voc est entendendo? Ela nasceu
para ser uma casa de Ogum. (baba Tologi)39
Pela narrativa do baba Tologipodemos observar que, na concepo dos adeptos
do candombl, Ogum fundou seu cho sem se importar se era inicialmente um terreiro
de umbanda edepois de candombl queto, ou como agora, de nao angola. O que
interessa que foi o mesmo santo que tomou aquele lugar para si, no se importando
de ser So Jorge, como sincretizado na umbanda paulista, ou o Ogum Rompe Mato da
38Altar onde so colocadas imagens de santos catlicos, orixs, velas, nos terreiros de umbanda.39Pai Tologi um sacerdote da nao queto que comeou em Campinas batendo para caboclo, nobarraco onde hoje funciona a casa de pai Ubiacyl.
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umbanda, ou simplesmente Ogum como no queto, ou finalmente como Roxi
Mukumbo,o inquice, no angola.
A casa sempre foi de Ogum, independentemente se ele foi rezado em portugus,
ioruba ou banto. Nesse momento, Ogum deixa de ser santo, orix, inquice ou vodum
para ser uma nica divindade que tem ali uma terra que tomou para si e a sacralizou.
Inicialmente, este terreiro dispunha de uma infra-estrutura precria, pois havia
ali apenas um barraco, sem banheiro e sem luz eltrica, construdo no fundo do terreno
e utilizado somente para a realizao das sesses de umbanda.
Aos poucos, medida que se introduziam os ritos do candombl, as
modificaes foram sendo feitas, conforme nos conta este sacerdote:
Eu acrescentei uma porta no centro, fiz uma porta lateral, fiz um
ronczinho, do lado fiz os banheiros. Agora est modificado umpouquinho. Fiz uma casinha de Exu na frente que parece que o
Bia desmanchou ou fez alguma outra coisa. E fiz no espao vazio
do outro lado, fiz uma moradia. Ali eu fiz um banheiro e dois
espaos, um para a cozinha e um para dormir e um jardinzinho
de inverno. (baba Tologi)
Alm do banheiro e da moradia para suprir as necessidades dos consulentes e do
pai-de-santo, j o ronc faz parte do espao sagrado do candombl. ali naquele
quartinho que so colocados os assentamentos de santo e tambm onde vo ser
realizados os recolhimentos dos nefitos para as cerimnias de bori e feitura de santo.
A casinha de Exu disposta na entrada do terreiro tambm foi modificada,
tornando-se maior. De um modo geral, na umbanda, a casa de Exu pequena, porque
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ela no exige sacrifcios e assentamentos, portanto, para o culto bastam uma imagem e
velas. No candombl, ao contrrio, os assentamentos so grandes e a presena do
sacrifcio constante; exige, pois, a construo de um espao maior.
Do barraco simples no fundo do terreno, baba Tologi tambm fez uma cozinha
para preparar as comidas do orix e para assar os cabritos, os porcos, os carneiros e as
aves, que foram sacrificados.
O candombl campineiro foi se compondo aos poucos. O aprendizado se fazia
mediante a relao com outras casas, com amigos, com os livros e com os prprios
sacerdotes que iniciaram os pais e mes-de-santo. No comeo, ritos de umbanda e
candombl foram se mesclando.
Com o decorrer do tempo, acrescentaram-se mais um quarto, uma cozinha, um
quarto de santo, uma dispensa, o ronc, banheiros, quartos de vestir e, aqui e ali, nos
canteiros do quintal, colocaram-se alguns assentamentos.
Apenas quando houve a feitura do primeiro filho-de-santo que o terreiro se
concretizou como sendo de candombl. Neste contexto, baba nos conta:
Bonid, foi feita l. Ento ela foi feita l... Foi a rombona da
casa. Olhe, eu comprei l em 77 porque eu registrei em 78. Em
77 por a assim... um ano depois eu estava registrando a casa.
Alguns anos depois, Bonid j era feita....( baba Tologi)
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4 5O primeiro barraco - 1980- foto cedida por Baba Tologi
6 7Interior do salo- 1980 Lembrana da abertura
Fotos cedidas por Baba Tologi
Em 1980, tateto Ubiacylque j tinha filhos iniciados em Limeira e em outra
casa em Campinas, comprou este barraco e est nele at hoje. As reformas que j
tinham comeado com baba Toloji, continuaram, a fim de suprirem as necessidades do
sacerdote e do candombl que, de uma vez por todas, se estabilizaram naquele local.
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5/25/2018 Candombl Agora Angola
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As primeiras construes foram conservadas com pequenas alteraes e no
restante do terreno foram construdos novos compartimentos.
Esta casa, assim como a maioria dos terreiros de candombl de Campinas, so
construes muito discretas. Porm, se no h nomes que os identifiquem, a bandeira
branca do Tempopode ser vista ao longe, atada ao mastro de bambu, tal qual pequena
chama que aponta para o candombl angola filho deZara Ktembo40.
Exceto esse marco, um vaso com folhas de peregum41e uma quartinha branca,
tradicionais smbolos religiosos afro-brasileiros, indicam exteriormente que se trata de
uma casa de candombl. Fora isso, um muro alto e um grande porto de ferro pintado de
azul no permitem que nada mais seja revelado.
Do lado de dentro, esquerda, num canteiro beirando o muro, uma pequena
telha de amianto margeada por uma folha de palmeira desfiada protege um tufo de
ferros que plantado num vaso, foi colocado estrategicamente entrada.
um assentamento de Incossi42 que, de modo semelhante ao de Ogum43das
casas de queto, tambm comporta o faco, a espada, as chaves, as setas e outras
40Zara Ktembo , como tambm conhecido o inquice Tempo41 Dracaena fragans Gawl, AGAVACEAE,. Fonte: Barros, Jos F. Pessoa de. O segredo das folhas.Sistema de classificao de vegetais no Candombl jje-nag do Brasil. Pallas; UERJ, Rio de Janeiro,R.J. 1993.42 Corresponde ao orix nag Ogum. Tambm conhecido nos candombls angola como:Incossimucumbe,Iincossi, Mungongo. Roxim