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Canto da origem Eu venho de muitas datas Nasci dos canaviais Do ouro dos cafezais Tirei o meu refrigério Tenho o perfume do campo Onde há beleza e mistério Nasci em noite estrelada Tive a fronte ornamentada Pela coroa do Império. Minhas águas são moradas De entes da natureza Dos campos eu sou princesa. Sou um recanto de fadas Foi delas meu nascimento um berço de mururu Pois nasci do encantamento Das águas do Sipau. Minhas flores são do campo Minha luz é o pirilampo O meu fruto é o anajá Guardo todas as riquezas Nas correntes indefesas Das águas do Troitá. Tenho ilhas isoladas Onde ninguém mora lá Pois elas guardam as estradas De Rita do Paricá*. Tenho recônditos santos Frutos raros, e sào tantos, Como a guapéua e o ameju Pois eu nasci dos encantos Das águas do Sipau Pelos campos, isolados, Tenho morros encantados - Pacoval e Graxixá - Velando os sagrados entes Que moram sob as correntes

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Canto da origem

Eu venho de muitas datas

Nasci dos canaviais

Do ouro dos cafezais

Tirei o meu refrigério

Tenho o perfume do campo

Onde há beleza e mistério

Nasci em noite estrelada

Tive a fronte ornamentada

Pela coroa do Império.

Minhas águas são moradas

De entes da natureza

Dos campos eu sou princesa.

Sou um recanto de fadas

Foi delas meu nascimento

um berço de mururu

Pois nasci do encantamento

Das águas do Sipau.

Minhas flores são do campo

Minha luz é o pirilampo

O meu fruto é o anajá

Guardo todas as riquezas

Nas correntes indefesas

Das águas do Troitá.

Tenho ilhas isoladas

Onde ninguém mora lá

Pois elas guardam as estradas

De Rita do Paricá*.

Tenho recônditos santos

Frutos raros, e sào tantos,

Como a guapéua e o ameju

Pois eu nasci dos encantos

Das águas do Sipau

Pelos campos, isolados,

Tenho morros encantados

- Pacoval e Graxixá -

Velando os sagrados entes

Que moram sob as correntes

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Das águas do Troitá

E o meu solo sacrossanto

Retirado de um recanto

Da Vila do Mearim,

Também de Itapecuru

E de Rosário por fim,

Viu meu povo se formando

E nos campos navegando

Nas águas do Sipaú.

Sou de mito e de magia! Que meu canto centenário.

Honre a Virgem do Rosário

E aos céus numa prece suba!

Encha o mundo de alegria,

Pois nasci Santa Maria

Dos campos de Anajatuba.

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“A coisa mais nobre que

podemos experimentar é o

mistério. Ele é a emoção

fundamental, paralela ao berço

da verdadeira ciência. Aquele

que não o conhece, que não

mais pode cogitar, que não

mais sente admiração, está

praticamente morto”

(Albert Einstein)

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SUMÁRIO

PREFÁCIO...................................................................................................................................15

UMA VOLTA AO PASSADO ............................................ ............................................................ 17

MISTÉRIO NA RUA DO FIO.................................................................. ...................................... 19

ATAQUE O OITEIRO.................................................... ............................................................... 23

O ANIMAL DO LUGAREJO DESERTO....................... ................................................................ 27

O CASTIGO DE ZÉ DO PREFEITO................ ............................................................................ 29

OS ELEMENTOS NOTURNOS DO CAMPO ............................................................................... 33

ASSOMBRAÇÕES...................................... ................................................................................. 37

SANTOCA, UM HOMEM DE MUITAS VISÕES ........................................................................... 43

PORTO DAS GABARRAS............................. .............................................................................. 47

ILHAS E OUTROS LUGARES ENCANTADOS ......................................................................... ..49

VIAGEM AO DO MORRO DO GRAXIXÁ ..................................................................................... 55

O CAMINHO DOS SERES SOBRENATURAIS ........................................................................... 61

TESOUROS ENTERRADOS ............................ ........................................................................... 67

A MISSA ........................................................ ............................................................................... 71

SÃO JOÃO DA MATA................................... ............................................................................... 77

IMAGENS E APARIÇÕES ............................. .............................................................................. 81

FESTEJOS TRADICIONAIS........................... ............................................................................. 87

A FESTA DE SÃO BENEDITO .................... ................................................................................ 91

O BODE DE PALETÓ .................................. ................................................................................. 97

A REGIÃO DO MORElRA............................. ............................................................................. 101

P E R I........................................................... ..............................................................................107

UMA AFRONTA À NOSSA HISTÓRIA. ....................................................................................... l13

O PODER DOS PRIVILEGIADOS................ ..............................................................................119

C U R A D O R E S................................... .................................................................................. 123

BENZEDEIRAS ............................................ ...............................................................................149

CURADORES DE HOJE................................ ............................................................................ 151

LEMBRANÇAS DA GUERRA ....................... ..............................................................................153

A BUSCA ATRAVÉS DA ILUSÃO DO AMOR ............................................................................157

GLOSSÁRIO................................................. .............................................................................. 163

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OS FANTASMAS DO CAMPO ( Vol.II)

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Prefácio

Este volume constitui uma coletânea de relatos acerca

de pessoas e acontecimentos singulares que povoam a memória do povo de

Anajatuba, embalados pela atmosfera mística de seus campos e seus morros.

No primeiro volume, a aventura mística daqueles que se propõem à

iluminação, as provas a que se submetem, as lições recebidas e os castigos

infligidos àqueles que fracassam na busca. Nele tentamos contar as razões dos

poderes de certas pessoas privilegiadas e o porquê das penas a que são submetidas

tantas criaturas que encontramos no nosso caminho.

Os fatos aqui relatados e muitos outros que constarão de próximos trabalhos

foram presenciados por pessoas vivas ou já falecidas conhecidas em nosso meio, ou

ouvidas de seus ascendentes e constituem parte da cultura singular do povo

anajatubense. Por esse motivo, alguns nomes e situações foram modificados a fim

de não causar constrangimento aos descendentes das pessoas envolvidas. Alguns

termos de uso regional, assinalados com asteriscos, terão sua significação explica

da em pequeno glossário incluído nas últimas páginas.

Estamos certos de que os buscadores virão aos nossos campos para

comungar de sua paz, inebriar-se com suas belezas, envolver-se com sua atmosfera

mística, conhecer outros encantamentos e encontrar, quem sabe, o seu guia, o seu

mestre que lhes dará as chaves do Poder e os encaminhará aos nossos santuários.

O lançamento deste livro acontece quando a cidade de Anajatuba atravessa

um dos períodos mais dolorosos de sua história, com a demolição inesperada de sua

Igreja Matriz que constituía o seu símbolo e seu orgulho.

Não sabemos quais serão os desdobramentos do fato, mas registramos a

nossa indignação pelo ocorrido.

UM A VOLTA AO PASSADO

Lua cheia de junho. As chuvas, agora esparsas, não turvam o céuque,

límpido, serve de pano de fundo para sua bonita apresentação.

Sento-me na varanda de modo a poder contemplá-Ia. Os pensamentos que

dominam a minha mente não são de saudades, pois nenhuma lembrança antiga

invade a minha solidão de agora... Não penso em ninguém; as coisas que me

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rodeiam vão aos poucos perdendo a significação e eu sinto que estou isolado do

mundo. Somente a lua exerce o seu encanto sobre a minha alma e eu viajo em

suas asas luminosas em busca do infinito. Não sei quanto tempo dura esse

alheamento, mas aos poucos essa luz parece envolver o morro de São Roque,

para onde baixo os olhos instintivamente.

Como se toda a claridade da lua se concentrasse em sua retaguarda, o

morro de São Roque parece envolto por essa beleza singular. E do alto, no lugar

onde deveria estar o poço sagrado, eu vejo a figura branca do Mestre que me

acena e vai se aproximando a caminhar num raio de luz.

A luminosidade que envolvia o morro talvez tivesse desaparecido, pois

toda a minha atenção já se concentra na figura imponente e singela que agora

está ao meu lado.

Em pé, eu sinto a sua mão pousar sobre o meu ombro enquanto me

abençoa:

Ainda estás no caminho, embora tuas fraquezas persistam e os desejos da carne continuem escravizando tua alma. Tua missão ainda não terminou. Vê quanta desinformação ainda domina tua gente. Terás que guiá-Ia em busca da iluminação.

O Mestre fez com que eu viajasse de volta às minhas primeiras experiências místicas: O encontro inesperado na Matriz, no alvorecer do ano de 1945, enquanto aguardava a chegada do Padre Possidônio Monteiro para a celebração da meia noite, quando seria anunciado o fim da Segunda Guerra Mundial.

Depois, o caminhar pelo morro de São Roque, a tentação da sacerdotisa do

templo, o meu quase desabamento do alto que me transformaria em um dos muitos

seres que vagam pelo campo em forma de luzes caminheiras ou com o trágico

sofrimento das almas penadas. O alerta para os perigos e os castigos para aqueles

que abandonam a senda.

O grito de Raimundo Gadeiro parece chegar de longe, angustiando a alma

de nossa gente simples; o rufar dos tambores do Divino no morro do Pacoval, as

procissões silenciosas iluminando o campo e se desfazendo em passe de mágica,

luzes misteriosas convocando as almas para os mistérios da regeneração.

O sonho me conduz de volta ao santuário do morro de Santa Rita com a

Bíblia aberta sobre o altar e as primeiras palavras lidas no Templo da Solidão:

“Lança o teu pão sobre as águas...”.

A evocação dessas palavras trouxe-me de volta à varanda banhada de luar

e eu ainda pude ver a figura do Mestre acenando, sorrindo em um raio da lua

cheia.

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Continuarei a contar as aventuras insólitas de muitos dos que me

precederam na senda e dela se desviaram para o mundo

misterioso dos campos de Anajatuba.

MISTÉRIO NA RUA DO FIO

A Rua do Fio estava mais sombria naquela noite. A rua era, na verdade,

um caminho ladeado de mata- pasto e outros arbustos. Não havia iluminação

elétrica e as casas eram distantes umas das outras.

Caminho dos viajantes, cavaleiros que seguem a trilha em busca da baixa

de São Roque para alcançarem a fralda do morro e seguir até Santana para daí,

buscarem outros destinos: Itapecuru-Mirim, onde tomarão o trem da REFESA

para São Luís, ou os campos de Pombinhas para o sul do Maranhão.

Era também o caminho dos vaqueiros que buscavam a Estrada da Cruz e

seguindo depois para os povoados Santa Rita ou Rosário e, de lá, percorrerem os

campos extensos em busca do Mearim.

A lua minguante parecia um pedaço de espelho, pálida num céu coberto

de nuvens que a envolviam constantemente e, com isso, dando um aspecto

lúgubre à via, assim batizada por ser a passagem da linha telefônica que ligava a

vila àcidade de I tapecuru- Mirim.

Para o lado de São Roque havia o mistério das luzes estranhas, seres

encantados que costumavam fazer os viajantes perderem as trilhas e só

reconhecerem a paisagem quando a madrugada ia alta.

Mês de junho, com as chuvas já passadas, a lama ainda aparecia aqui e ali,

onde o chão era protegido dos raios solares pelas árvores que emergiam dos

quintais.

Uma chuva miúda caíra cedo da noite e apenas refrescou a terra e deixou

cheios de lágrimas os olhos das folhas de murta.

Seu Lé caminhava apressado na direção do campo. Já havia dobrado a

esquina da casa de José Pereira, comerciante na esquina com a Rua Nina Rodrigues,

onde Dulce e Enilde sonhavam os sonhos das virgens e Walber se agitava num sono

angustiante fazendo com que a rede balançasse e as sombras causadas pela

lamparina que jazia a um canto do quarto enchesse de magia a casa dos Prazeres

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Pereira, onde D. Gracinha reinava.

Já andara cerca de duzentos metros na trilha sinuosa, quando um assobio

fino o fez estremecer, enquanto o ruído dos passos de um animal em fuga se

aproximava. A lua se escondera completamente e um animal estranho arremessou-

se sobre ele como se fora um enorme cão.

Lé já desembainhara o facão para defender-se, mas não conseguia atingir o

animal que recuava a cada investida para atirar-se com mais furor em sua direção.

Um pedaço de lua foi ficando a descoberto, dando-lhe a impressão apenas

de um animal negro, de pele luzidia como o cão, mas de estatura bem maior.

Na luta desesperada, havia caminhado mais alguns metros e alcançara a

casa de D. Antonia Oliveira, perto de onde hoje está o poço desativado do SAAE,

defronte da atual casa de Neco de Mariano, em cuja porta arremessou-se, fazendo

com que se abrisse, apesar dos ferrolhos que tinham sido passados. Ao cair no

corredor da casa salvadora, o clarão da lua aumentou e ele ouviu o ruído das patas

céleres do animal se afastando.

D. Antonia, que já despertara com os ruídos dos passos de um homem em

fuga, trancou rapidamente a porta ao perceber o estado de seu amigo Lé,

extremamente cansado, que ela julgou estar sendo atacado por malfeitores. Deu-

lhe de beber água com ferrugem, enquanto tentava acender o fogo para lhe

preparar um chá de manjerona.

Refeito do pasmo inicial, seu Lé contou- lhe o acontecimento. D. Antonia

sentiu um arrepio correr-lhe pelo corpo e benzeu-se várias vezes numa prece

silenciosa. A neta, que com ela vivia, já trazia a tijela com o chá para acalmar o

“padrinho Lé” como o chamava, e D. Antonia Oliveira passou a explicar- lhe o que

havia acontecido.

Há pessoas que trazem consigo a sina de virar bicho. A maioria não sabe a

causa, porque se trata de penitência, carmas de vidas passadas que a falta de

orações, a descrença nos poderes de Deus ou a aproximação com rituais maléficos

não consegue atenuar.

Em casos assim, o agredido deve envolver o cabo do fação com uma folha

verde, pois as unhas humanas funcionam como espelhos para essas entidades, de

modo que percebem todos os seus movimentos e até adivinham as intenções. Com a

folha verde no cabo do facão, o bicho ficaria quase cego, sendo mais fácil atingi-lo.

É preciso ter cuidado, adverte. Nas noites de sexta-feira

que precedem a lua nova, o viajante deve prevenir-se com um

dente de alho no bolso e levar a sua arma já protegida por uma

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folha de cauaçu*.

ATAQUE NO OITEIRO

Bembém de Viria to (loaquim Oliveira Dutra) era Oficial de Justiça. Anajatuba

era termo da Comarca de Itapecuru-Mirim e as comunicações eram feitas através do

telefone do D.CT. (Departamento de Correios e Telégrafos), cujos fios eram estendidos

por caminhos feitos no mato em postes de ferro ou de madeira, atravessando a enseada

de São Roque. O transporte era o cavalo e animais da mesma família ou o carro de boi,

quando era necessário transportar mercadorias.

A viagem para Itapecuru-Mirim consumia cerca de quatro horas, se a montaria

era esperta e, como os trabalhos da Comarca às vezes se estendiam até o fim da tarde,

Bembém já se acostumara a viajar à noite e o seu cavalo branco já conhecia os

caminhos, os locais de repouso para o balaio*, as fontes ou poços onde faziam paradas

para mitigar a sede.

Pouco importava ao viajante acostumado com a lida, se os caminhos

atravessavam cemitérios humildes e desprovidos de cercas, como o do Oiteiro, pois

jamais tivera medo dos mortos.

Numa dessas viagens, numa sexta-feira de céu cinzento, Bembém viajava no

rumo da Vila. Perto de Oiteiro, quase na divisa dos dois municípios, um animal

estranho atravessou o seu caminho. Suas patas agarraram as rédeas da montaria com

tanta violência que Bembém caiu pela garupa, mas com a mão já segurando o punhal

que era sua única arma. Quando o bicho, deixando o cavalo afastar-se, partiu para

atacá-Ia, ele gritou: "Em nome de São Raimundo, serei o teu vencedor!". E, desferindo

um golpe, atingiu o animal que, sentindo-se ferido, correu gemendo mato adentro.

Acostumado com situações dificeis, mercê de seu cargo, não sentiu medo.

Encontrou o cavalo pastando na enseada do Pastorador e verificou que alguns

documentos trazidos da Comarca haviam desaparecido. Voltou ao local, riscou

fósforos, encontrou-os e os colocou no alforje.

Sempre com o punhal na mão, seguiu sua viagem. Chegando ao Pastorador,

havia uma sentinela. Juntou-se aos que ali estavam e, enquanto descansava, contou o

ocorrido, mostrando- lhes o punhal sujo de sangue.

Os circundantes entreolharam-se e não fizeram outro comentário senão do perigo

de viajar sozinho à noite pelas estradas desertas.

Bembém, que já tomara uns dois tragos de cachaça e vangloriava-se de sua

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coragem, montou o cavalo e seguiu viagem. Somente quando chegou perto de casa é

que o cabelo começou a

arrepiar e foi tomado de um pavor tão grande que quase derrubava a porta e teve que

dormir agarrado com a mulher.

Soltou o cavalo sem lavar. A esposa reclamou e ele respondeu que o cavalo

poderia até morrer, mas ele não sairia fora por nada deste mundo.

Alta noite começou a ouvir um barulho no quintal como se o gado o houvesse

invadido e estivesse quebrando os galhos de suas limeiras. Em vão, a mulher chamou-o

para enxotá-Ios, pois ele falava que poderiam acabar tudo, mas não saía. No dia

seguinte, verificaram que a cerca estava perfeita e nenhuma das

plantas apresentava sinal de haver sido quebrada.

Poucos dias depois, um homem morreu para os lados do Pastorador e a família

contava que apareceram uns buracos nas suas costas, onde também surgiram pêlos

negros e grossos.

O homem era conhecido como virador de bicho e a notícia de que teria sido

Bembém quem o atingira pelas costas correu de boca em boca.

Ninguém lembra mais o nome do morto.

O ANIMAL DO LUGAREJO DESERTO

Perto do povoado Mato Grosso, à margem da estrada antiga, há um lugarejo

chamado Deserto. São duas ou três casas de palha, distantes entre si, onde moram

lavradores e pescadores. Ali residiu, no primeiro quartel do século XX, um mulato

graúdo, conhecido por Cecilia Preto e, logo adiante, um preto velho chamado Delmiro,

temido pela fama de virador de bicho.

O povoado, pelos padrões da época, era considerado próximo da vila e os

moradores faziam esse percurso a pé, mesmo à noite, principalmente porque eram muito

pobres e não podiam manter cavalos de sela, pela necessidade da ração diária que era à

base de milho e capim.

Certo dia, fim de tarde, Cecilia precisou ir à vila em busca de mantimentos.

Tomou a estrada a pé e, ao passar pela casa de Delmiro, este o alertou:

-Rapaz, deixa de andar de noite por aí; dizem que anda aparecendo um bicho na

estrada...

Cecilia respondeu qualquer coisa e continuou viagem, chegando à vila ao

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anoitecer.

Intrigado com a advertência do vizinho e recordando as notícias que corriam a

seu respeito, contou suas preocupações a Santo Aires (Tomé de Sousa Santos),

comerciante estabelecido defronte da casa do Padre Possidônio e da casa de José

Flautim, perto da igreja matriz. Santo Aires, pai de Dudu Santos, aconselhou-o a

prevenir-se.

Essas histórias contadas há tantos anos tinham algo de verdadeiro. Anajatuba já

foi mar, os espíritos das águas ainda viajam pelo campo em busca das moradas antigas e

os morros que nos cercam são ilhas marinhas emergi das por determinação de seres

sobrenaturais que aqui continuavam a ter os seus abrigos. E, onde vivem os bons, os

maus também vivem para persegui-los.

De sua casa, avistando o campo e a igreja, já presenciara muitos fatos inusitados

e sua casa de comércio era ponto de parada de vaqueiros e pescadores que, ali,

comentavam fatos estranhos.

Depois de falar-lhe dos presságios das noites de sexta- feira, emprestou-lhe uma

espingarda carregada com palha e dente de alho macho que, segundo a tradição, tem

poderes sobre o demônio e sobre as forças do mal.

Na viagem de volta, já noite avançada, Cecilio ouviu primeiro um assobio fino

seguido de um cheiro estranho. Foi atacado por um bicho preto, mais parecido com um

porco. Prevenido como estava, conseguiu disparar a arma no instante em que o agressor,

tendo recuado, preparava-se para atacá-lo novamente. O tiro atingiu o animal que fugiu

grunhindo.

No dia seguinte foi conversar com Delmiro e o encontrou na rede, gemendo e

queixando-se de dores nos rins. Delmiro morreu dois dias depois, correndo a história de

ter sido ele o bicho que atacara Cecílio Preto e que fora atingido pelo tiro de alho

macho.

O CASTIGO DE ZÉ DO PREFEITO

A igreja Matriz de Anajatuba está edificada diante do campo, em terreno doado

pelo Comendador Joaquim José da Silva Rosa Filho e sua mulher, D. Ana Raimunda da

Silva, cuja escritura de doação teria sido lavrada em 03.12.1846, no 5° Distrito de

Anajatuba, pelo escrivão Francisco Quirino Mendes.

O historiador César Marques, tenta contestar a existência da terra que

denominou "fazenda", situada na ilha das Voragicas, confundida com a Boragica que se

situa nos limites com o rio Mearim. Trata-se, talvez, da data Voragica, nome dado às

terras

que se situam entre a Picada, onde fica a ilha do mesmo nome, e o Cravo. Também o

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fato de ser uma área de apenas quatro hectares, leva-nos a crer na possibilidade de

tratar-se da Praça da Matriz. Tudo, entretanto, é mera suposição.

Na Praça da Matriz à falta de um cemitério público, na sede do município,

passaram a ser feitos os sepultamentos. Quando se tratava de pessoa de maior

representatividade política ou de reconhecida vida religiosa, a sepultura era aberta

dentro da Igreja. Ali estão sepultados o Comendador Rosa e sua esposa D. Anna, o Sr.

João Constâncio Fernandes Lima, o Cel. Antônio da Cunha Sanches, o Capitão José da

Cunha Sanches, a Sra. Veridiana Josefa Machado Verde e, provavelmente, o Padre

Antônio Firmo da Cunha Sanches. Quando das escavações para reconstrução da Matriz

muitos túmulos foram descobertos.

Raimundo Dativa, Domingos Botinha e D. Eugênia Vieira falavam do tempo em

que os mortos eram enterrados na praça da igreja, que ali não era propriamente um

cemitério, pois não tinha as delimitações, ou seja, não tinha cerca. Segundo contavam,

os mortos eram "socados" após o enterramento. Falavam do som surdo e tenebroso que

ouviam, jovens ainda, e cuja razão, diziam, era evitar que os mortos fugissem dos

túmulos.

Seja por essa razão, seja pelo misticismo do lugar diante da imensidão do campo

que, como o oceano e o deserto, levam as pessoas a meditar sobre sua humilde condição

humana diante da grandeza infinita da planície com a fimbria do horizonte

cada vez mais além, a praça da matriz guarda muitos segredos estranhos.

Assim, as misteriosas luzes errantes, cujo surgimento regular e constante é

mistério que ainda desafia os moradores para uma explicação lógica, têm na praça da

matriz um de seus caminhos. As luzes que surgem na Ilha dos Algodões, por exemplo,

passam pelo largo da igreja antes de seguirem no rumo do Pacoval e voltam novamente

pela mesma praça antes de se recolherem à sua origem. Outras que também desafiam a

nossa imaginação, conforme relatadas neste livro têm na praça da igreja um dos

principais palcos de suas aparições.

Ilídio Luso Mendonça, pai da professora Bessie, certa noite foi amarrar seu

burro de sela na beira do campo, em frente à igreja, para aproveitar o pasto. Ia com as

filhas mais novas, Maria José e Maria da Conceição. Ao amarrar a corda a um mourão

avistou uma luz para o lado do Barro Vermelho. Com a lanterna que conduzia, focou

naquela direção e a luz imediatamente apagou-se para surgir novamente em local mais

próximo. Tornou a focar e novamente a luz se extinguiu para aparecer mais próximo

ainda. As duas meninas, apavoradas, pediram ao pai que não prosseguisse na

provocação e saíram correndo. Ilídio acompanhou as filhas e, quando chegaram à

esquina da casa de comércio de seu Dudu, na época pertencente ao seu pai, Santo

Aires, a tocha apareceu na beira do campo, no local onde o burro estava amarrado.

Também Nanu, filho de José de Nicolau estava pescando em companhia de sua

esposa, quando ambos avistaram uma luz. Voltaram imediatamente, amarraram a canoa

no Poção das Crianças e, ao caminharem pela praça da igreja, viram o clarão que os

seguira, no quintal da casa de Wilson Pereira, hoje residência da Profª Maria Bastos.

Segundo contavam, era tão brilhante que eles distinguiram as selas dos animais que

eram guardadas na varanda do fundo da casa.

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Passaram sem ser molestados, mas ao se recolherem em casa, foram

surpreendidos por uma confusão, como se ali estivesse havendo uma briga: móveis

eram arrastados e objetos jogados ao chão. Só alguns minutos depois tudo voltou ao

silêncio e conseguiram dormir. No dia seguinte, entretanto, todas as coisas estavam

dispostas normalmente como se nada houvesse acontecido.

Enquanto a praça não era iluminada, o que só aconteceu recentemente, os jovens

escolhiam a porta da igreja para namorar. Uma garota contou-me que, certa vez,

enquanto conversava com o namorado, colocou uma folha de papel pela fresta da porta,

a qual foi arrancada de sua mão pela parte interna da igreja. Nunca mais namorou ali.

Mas o acontecimento mais comentado envolveu o filho do ex-prefeito Mundico

Pereira, nomeado para o cargo pelo interventor Paulo Martins de Sousa Ramos, na

época da ditadura de Getúlio Vargas. Era conhecido pela alcunha de "Zé do Prefeito",

morava na Praça da Igreja, onde hoje reside a professora Maria Bastos e era casado com

Cota de Manahem.

Certo tempo, José começou a ver uma dessas luzes a que nos referimos que se

movia sempre em sua direção. Depois de algumas aparições, parava próximo a ele e

uma moça loura lhe dizia da existência de um tesouro no pé da escada do coro da

Igreja e que ele deveria ir desenterrar. A moça dizia, entretanto, que a joia mais preciosa

deveria ser entregue a D. Maria José Dutra, mãe de D. Mariinha, esposa do ex-prefeito

João Serra. Por três vezes essa mulher lhe aparecera junto com a luz e várias

vezes em sonhos, sempre com a mesma informação. José, que era um homem

displicente, dizia que não iria ter o trabalho de arrancar um tesouro para o melhor não

ser dele. A moça apareceu em sonho e lhe disse que ele iria arrepender-se. Dois dias

depois José foi assassinado por Lobato.

A mesma visão apareceu em sonho ao Padre Chiquinho,

segundo contava D. Isaura Monção, poucos meses após a sua chegada nesta cidade. O

Padre, entretanto, ao saber do que contavam a esse respeito, disse que não queria nem

mais ouvir falar no assunto. Se alguém retirou a fortuna, ninguém sabe, pois D. Zezé

Dutra nunca recebeu a joia que a visão lhe destinara, mas houve um tempo em que o

piso da igreja amanheceu cheio de buracos.

OS ELEMENTOS NOTURNOS DO CAMPO

Transporta-te aos campos em que todas as coisas

verdejam com o Sopro de Deus e são vivifica

das

com os poderes do céu.

(Thomas

Voughan)

Os campos de Anajatuba guardam segredos só revelados a alguns predestinados.

Mistérios e encantamentos nos surpreendem e deixam a nossa imaginação caminhar na

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sua imensa planície, até onde o céu, no horizonte distante, beija o arvoredo baixo que

serve de moldura à paisagem verde. Do morro do Pacoval, o espetáculo que é oferecido

nos convida ao silêncio e à meditação. Os igarapés serpenteiam no meio do junco,

caminhando para a distância, alcançando as ilhas campestres que, vistas de tão alto, só

são reconhecidas se por acaso divisarmos uma casa ou um curral. É um verde constante

que afiara logo nas primeiras chuvas, no início de dezembro, em tons diversos. Mesmo

no verão, quando o junco seco lhe dá tonalidade laranja ou marrom e a fumaça das

queimadas interrompe a visão da paisagem, ele é todo encantamento.

Caminhar pelo campo a pé, em canoa ou a cavalo, é penetrar num mundo

misterioso, sobrenatural, divino. A brisa, encrespando o junco e o algodão, mexe

carinhosamente com os crivirizeiros, os tucunzeiros e os outros arbustos que crescem

nas suas ilhas, ornamentando as enseadas.

Por ali vagam os espíritos dos nossos ancestrais. Almas que ainda não

conseguiram desapegar-se do mundo e caminham, dia e noite, em sua penitência,

deixando ao viajante apenas a tênue impressão de sua presença imaterial, adivinhada

pelos sentidos, percebidos de maneira às vezes grotesca, ouvidas em suas vozes

soturnas.

Quem explica certos acontecimentos? Quem não sente arrepios diante do grito ocasional

de uma única ave, como se fosse um alerta? Quem não interioriza suas emoções quando

vozes nos vêm através da brisa?

Caminhar no silêncio do campo, sentindo a energia misteriosa que ele conduz,

percebendo movimentos inexplicáveis, experimentando sensações místicas, é, com

certeza, comungar com o infinito e chegar aos pés de Deus.

Mas é à noite que os mistérios se expandem, pois no rei- no das sombras é que

os espíritos se manifestam, aproveitando a calma e o silêncio, redobrados pela ausência

dos pássaros que se recolhem aos ninhos. É quando a lua e as estrelas se parecem

com archotes ou velas, simbolizando talvez procissões luminosas pelo céu,

acompanhando a peregrinação daqueles que ainda não alcançaram a paz definitiva.

Por isso, as noites de lua são mais susceptíveis a essas manifestações. Há então

um chamado das sombras para a luz. Muitas vezes um astro risca os céus e cai sobre o

campo como se fosse uma chuva de estrelas. Seria talvez a hora do resgate daqueles

que, com anos de tantos sofrimentos, alcançaram o perdão de suas culpas.

Numa dessas noites misteriosas, Pedrinho de Lica (Pedro Ewerton), Pedro Leite e

outros companheiros foram pescar na barragem do igarapé Troitá, sempre o local mais

piscoso da região.

Luar bonito de agosto. As águas ainda não haviam baixado totalmente e o campo

se mantinha verde e alagado após um inverno rigoroso que se estendera até meados de

julho.

A beleza da noite os fez alongar a faina de forma que só muito mais tarde

resolveram voltar. Os dois vieram na frente, rasgando o junco e o mururu, distanciando-

se dos outros que, em três canoas, ainda demoraram na arrumação dos instrumentos de

pesca.

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Alguns minutos depois, divisaram uma canoa que os seguia e imaginaram tratar-

se de alguns dos companheiros. Pedro Leite vinha empurrando e, mais sensível,

começou a perceber algo estranho naquela embarcação, eis que não via o varejador.

Pediu então que Pedrinho também pegasse a outra vara para ajudá-lo, de modo a

viajarem mais depressa.

Pedrinho gritou para os companheiros, mas ao invés de obter uma resposta, a

canoa que os seguia desapareceu. Ao dar o primeiro impulso com a vara, sentiu

estranhamente que o peso da embarcação aumentara, como se lhe tivesse sido

acrescentada uma carga adicional. Nada falou, pois não se comenta o que se vê ou

percebe no campo. Continuou ajudando o companheiro a empurrar a embarcação com

certa dificuldade, embora a trilha do igarapé já estivesse limpa e o junco afastado.

A lua cheia brilhava no céu numa esplendorosa magia de luz. O Pacoval, à

esquerda, já havia sido ultrapassado e a vila se tornava mais próxima. O igarapé foi

ficando mais raso e alargou- se adiante em um poção.

Um baque dentro da água provocou ondas na superfície espelhada do campo e

eles ouviram ruídos de passos como se alguém, a pé, rasgasse o junco, afastando-se

apressadamente. Nesse instante a canoa subiu, tornando-se mais leve.

Um passageiro estranho certamente estivera com eles e resolvera deixá-los ali, no

momento em que ouviram o cantar de galos e a fachada da igreja surgia na madrugada

banhada de luar.

ASSOMBRAÇÕES

Acontecimentos insólitos

Histórias de almas penadas, assombrações e outros acontecimentos insólitos,

povoam a imaginação dos habitantes do campo. A alma da gente simples do interior é

povoada de fantasias, muitas delas fruto da falta de conhecimento das leis naturais,

enquanto o encanto pelas superstições faz abrir as asas da imaginação, fazendo correr de

boca em boca certos fatos, cujos detalhes vão sendo enriquecidos, até nem mesmo

parecerem com o original.

A história da humanidade é cheia dessas coisas e as próprias religiões primitivas

nasceram do espanto com que os nossos ancestrais se portavam diante das coisas da

natureza. Não se pode apagar da memória do povo humilde certos fatos mar-

cantes e inexplicáveis que fizeram nascerem citações como a de Shakeaspeare: "Há

mais coisas entre o céu e a terra, do que sonha tua vã filosofia, Horácio".

A palavra "encantamento" é definida por Antenor Nascentes como "ato ou efeito

de encantar, feitiçaria, bruxaria, etc." Aurélio Buarque de Holanda define o vocábulo

"encantado" também como feitiçaria, mas também como algo "que tem ou sofre

encantamento, sortilégio"; e a palavra "encantar" é definida como "transformar em outro

ser por artes mágicas, tornar invisível, transformar em outro ser por meio de

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encantamento ou sortilégio." A palavra "encantado" é comum ouvir-se dos habitantes do

campo com relação a diversos lugares e com relação à nossa cidade. Dizem de muitos

lugares que são encantados, isto é, que escondem gênios disfarçados na água, nas

plantas, nas pedras.

Lugares bem diferentes do seu aspecto real e que só se mostram como são de

centenas a centenas de anos, e às vezes apenas por um dia ou uma hora para depois

retomarem a forma com que o encantamento os deixou. E por isso acontecem coisas

estranhas, ouvem-se ruídos e vozes do além, cria-se uma atmosfera mística ou de terror

para que seres sobrenaturais manifestem a sua presença.

Aurélio Buarque de Holanda ainda define a palavra "assombração" como

"terror" proveniente de causa inexplicável. Pavor motivado pelo encontro ou aparição

imaginária de coisas sobrenaturais. Fantasia.

Qualquer que seja a definição, não nos propomos a defender ou condenar as

pessoas que se envolveram em acontecimentos dessa natureza, propomo-nos apenas

contar histórias ouvidas de muitas pessoas, de modo a desenhar a alma do habitante dos

nossos campos, entre os quais nos colocamos.

Alguns fatos corroboram a afirmativa de que somente a imaginação fértil de um

povo movido pelas superstições cria determinadas crendices. Exemplo disso aconteceu,

certo tempo, quando começaram a aparecer nas areias que cobriam a nossa cidade,

rastros de um animal estranho. A experiência dos nossos homens acostumados a viajar

pelos campos e capoeiras, e que conheciam, um a um e com detalhes, os rastros dos

animais queconstituem a nossa fauna, não foi capaz de definir que tipo de bicho

formava suas pegadas daquela maneira. Criou-se daí a história do "balalá de pé no

chão", designação retirada de um baião de João do Vale muito em moda na época.

Muitas pessoas já deixavam de sair de casa à noite com medo do "monstro" até o dia em

que descobriram tratar-se de um mucura atingido por um tiro, que ficara defeituoso e,

em conseqüência disso, andava arrastando o quarto doente pela areia. E lá se desfez uma

história criada e enfeitada pela imaginação popular.

Quando eu era criança, falava-se muito do "monstro de Guimarães", um animal

marinho que de vez em quando emergia do mar sem que ninguém pudesse saber que

tipo era. A notícia assumiu tais proporções que, segundo comentavam, atraiu a atenção

de pesquisadores de outros Estados, até que a Marinha, resolvida a dar caça ao monstro,

descobriu que se tratava do tronco de uma árvore que se movia com o fluxo e refluxo

das marés. E o "monstro de Guimarães" passou a ser objeto de zombaria e expressão

usada para denunciar mentirosos.

Um tempo, surgiu a notícia de que no povoado São Roque havia um tamanduá-

bandeira, animal desconhecido na região. Diziam tratar-se de um bicho grande e branco

e havia pessoas que até já tinham conseguido passar a mão no pêlo macio do animal.

Depois as notícias foram sendo esquecidas, até que ninguém mais falou no assunto.

Falavam de um criador que só viajava para sua fazenda à noite e sempre o viam passar

com um negrinho na garupa do cavalo e que seria o capeta.

No povoado Olho D'água existe um lugar onde, segundo as crenças antigas, o

diabo aparecia. Por esse motivo colocaram ali duas cruzes: uma defronte da casa de

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Alexandre e outra na saída da estrada de Zacarias. Hoje tem uma sumaumeira no

local.

Contam, também, que Nhô Joca Silva, rico dono de engenho de cana na Boca do

Caminho, perguntava às pessoas que viajavam para o Ribeirão, se não queriam chegar

mais depressa. Se aceitavam, mandava que montassem na garupa de seu cavalo

e logo chegavam ao destino. Essa estrada do Ribeirão é uma das mais antigas do

município. Hoje resta pouco mais de cem metros da trilha original por onde todos

passavam quando iam para o Afoga e por onde viajava o Comendador Rosa, fundador

da cidade, que possuía propriedades naquela região.

Os cabruncos são luzes que surgem no campo, possivelmente fogos-fátuos e que

desorientam os viajantes fazendo-os perder o caminho. Outras luzes, pouco parecidas

com essas, são vistas pelos moradores da região que delas falam com respeito e

reverência.

O surgimento de luzes que se deslocam principalmente pelo campo, ainda hoje é

presenciado por algumas pessoas. Uma delas, dizem que sai do Morro do São Roque,

atravessa a enseada, sobe a Rua do Fio e passeia pela cidade. Outra sai da ilha

dos Algodões, passa pelo largo da Igreja e segue para o Troitá. Houve um tempo que

aparecia todas as noites, por volta das 8:00 horas e voltava antes da meia noite,

seguindo o mesmo trajeto, conforme afirmam Chico de Santoca e Valentim de Cheré.

José de Enéas, José Laura, Dico de Pedro e outros, estavam pescando na

tapagem do igarapé das Cangalhas quando, a uma distância de 100 metros do lugar onde

se encontravam, surgiu um clarão estranho, vindo do fundo da terra. Era uma

bola de fogo, de cor vermelha, que logo subiu em linha vertical e depois tomou o rumo

do morro do Pacoval, sobre o qual caiu.

Logo depois, outro clarão semelhante, mas de cor amarela, tomou o mesmo

percurso. Alguns minutos após, outra bola de fogo, de cor verde, também surgiu das

profundezas e, como as anteriores, se desfez sobre o morro do Pacoval. Seria um aviso?

Seria um sinal acerca das riquezas que se dizem plantadas no campo? Os companheiros

se entreolharam, abandonaram a pescaria e regressaram para a vila. Só no dia seguinte

comentararn o caso.

Certa noite, João Carlos Dutra, Almir, Zé de Toca, Zé de Tier, Chico de Sérgio e

Gonzaga decidiram perseguir uma tocha que saía da Água Boa, nos buritizais existentes

por trás da casa que era de Catarino Sousa. Quando surgiu na esquina da residência do

falecido Enock Ewerton, eles correram para alcançá-Ia, mas ao chegarem perto da

esquina de Heráclito a luz desapareceu para surgir, logo após, na beira do campo, no fim

da Rua Coelho Neto, perto do Porto de Teodoro. Ao correrem para lá, a luz apagou-se

novamente e eles ficaram conversando na antiga Praça do Mercado, hoje Praça Cívica,

até que a avistaram novamente perto da casa de Enock, de onde começou a deslocar-se

no rumo da Água Boa.

Mas a par desses acontecimentos simples, muitas outras histórias constituem

fatos que singularizam a nossa cultura.

Na Picada havia um lugar onde, contam, aparecia um bicho e, nas noites em que

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isso acontecia ninguém se atrevia a passar por lá. A aparição fez voltar do caminho

grupos de até oito ou dez homens assombrados.

Havia um velho conhecido por Zeca Martins, que não tinha medo de nada e resolveu

passar pelo local uma dessas noites. Aconselhado a não fazer aquela viagem, respondeu

com sua fala mansa, que nunca fazia mal a ninguém e por isso nada lhe faria

mal. Ele contava que, ao passar no local, o bicho estava sentado no meio da estrada. Era

um animal preto, grande, parecendo um rato. Zeca, destemido, aproximou-se, focou a

lanterna no focinho do animal e este se afastou para deixá-lo passar.

O certado do saudoso Dr. Benedito Dutra Mendonça, na estrada que vai do

Bacuri para o Olho d'Água, é apontado como local de muitas aparições. Dodô foi

atacado ali e nunca ninguém soube de que forma, pois ele jamais contou a alguém e,

quando era inquirido - pois chegara a casa suado e sujo como se houvesse lutado muito -

, respondia que só podia contar quando estivesse para morrer, pois "disseram-lhe" que

se ele fizesse isso iria dar-se muito mal. Dodô morreu em São Luís sem jamais Contar o

seu segredo.

Pipó há pouco tempo, entrou no mato do mesmo terreno com o intuito de tirar

cipó para amarrar umas estacas na casa do forno. Conta que quando começou a tarefa

ouviu umas batidas às quais não deu importância julgando que fosse Manoel.

Repentinamente sobreveio uma ventania muito forte deixando- o sem poder mover-se,

agarrado a uma árvore para não cair, até que o vento amainou e ele pôde correr, morto

de medo. No jussaral ali perto, contam que são ouvidas conversas, música e outros

ruídos estranhos. Benedito de Tomaz contava que saiu a cavalo da Boca do Caminho

para o Olho D'água quando foi atacado sem ver por quem. Ouvia vozes pronunciando

seu nome e não conseguia ver quem falava nem de que lado vinha tais vozes. O cavalo

foi

embora e ele perdeu tamancos, facão e tudo ao fugir da assombração.

SANTOCA

UM HOMEM DE MUITAS VISOES

Um dos personagens mais fantásticos do meu tempo de menino era Antonio dos

Santos Dutra, conhecido por Santoca. Carpinteiro de profissão, não rejeitava trabalho de

qualquer espécie. Tomava a sua pinga, fazia seus próprios cigarros e pilheriava com

todos. De uma conversa fluente, deliciava a todos com os seus "causes", dos quais era,

quase sempre, participante.

Conhecia todos os mistérios do campo, sabia de todas as nossas histórias e

gabava-se de nunca ter fugido à constatação dos fatos insólitos que constituem a nossa

cultura, sendo considerado uma das pessoas mais corajosas do seu tempo.

Os elementos do campo pareciam comprazer-se em manifestar-se na sua

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veneranda presença, como se buscassem a testemunha mais respeitada entre os nossos

habitantes.

Santoca e seu compadre Jerônimo Bogéa estavam transportando mercadorias

para Paulo Bazé, alta noite, para driblar a vigilância do fiscal do Estado. Uma das vezes

em que voltavam ao Porto Grande, em frente à Igreja, conhecido também como Poção

das Crianças, Santoca parou para fazer um cigarro de palha, junto ao paredão da

sacristia. Jerônimo, que já se afastara alguns rnetros, foi atingido por um murro nas

costas, perdendo o equilíbrio e caindo em conseqüência do golpe. Julgando ter sido

Santoca com alguma brincadeira de mau gosto, voltou-se para reclamar, quando o

avistou encostado ao paredão da igreja, acendendo o cigarro que acabara de fazer. Ao

verificarem, ambos, que acontecera um fato estranho, voltaram nervosos e só

continuaram o trabalho porque Paulo Bazé passou a acompanhá-los.

Quando Santoca transferiu-se da Boca do Caminho para a vila, morava em uma

casa vizinha à de Sisnando* Barbosa, marido de D. Pulucena*, que eram fabricantes

artes anais de pão. D. Maria, sua esposa, tinha o costume de "ir ao mato" sempre à noite,

pois nesse tempo eram poucas as casas que tinham sentinas. Uma noite, Santoca chegou

à casa todo molhado, após uma pescaria. Depois de passar o café, deixou o marido perto

do fogão para aquecer-se, saiu para o quintal e, ao chegar ao local de costume ouviu

uma voz: "Tá cagando?" Sabendo que estava ali sozinha, imaginou que era D. Pulucena

brincando e continuou. Novamente ouviu a mesma indagação. Chamou pela vizinha,

mas verificou à distância que ela estava na cozinha de casa, não podendo ser dela a voz.

Outra vez ouviu a voz: "Tará cagando mesmo?"

O cabelo arrepiou e ela saiu correndo no rumo de casa e, quando chegou ao

terreiro, sentiu nas costas a pancada de uma pedra. Atirou-se pelo vão da porta indo cair

perto de Santoca com a língua dura. Só depois de alguns minutos, socorrida pela vizinha

que lhe fizera um chá de arruda, conseguiu falar e contar o que acontecera, inclusive

que percebera duas faíscas acompanhando-a durante a carreira.

No dia seguinte procuraram inutilmente a pedra que lhe havia sido atirada e não

a encontraram.

Perto da casa de Mãe Cirene havia um poço de pedra. Os moradores mais

próximos contavam que todas as noites ou- viam ruídos de lavagem de roupa como se

muitas lavadeiras estivessem ali. Ouviam os sons de batidas de paus sobre as roupas

para ajudar a retirar a sujeira conforme era o costume do lugar. Certa noite, Santoca

reuniu um grupo de homens para surpreenderem as lavadeiras, mas ao chegarem ao

local não encontraram ninguém. Em volta do poço, entretanto, estava muito molhado,

com vestígios de que ali alguém estivera lavando, havendo, inclusive, restos de água de

sabão. Desde esse dia nunca mais os moradores ouviram os ruídos e afirmam que o

encantamento havia sido quebrado pela curiosidade dos mortais.

Contam que certa vez Santoca vinha da Boca do Caminho com alguns

companheiros e avistaram adiante deles um animal muito comprido e desconhecido,

parecendo um cachorro alvacã. Perto, havia uma ingazeira, numa passagem estreita e

funda. Santoca apressou o passo para passar ali antes do bicho, mas passaram juntos.

Afirmava que passara a mão no lombo do animal que era muito macio, mas não

conseguiu identificá-lo. Destemido como era, resolveu esperar o animal naquele lugar,

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outra noite, armado com um cacete. Quando o bicho passou no local, desferiu-lhe

violento golpe que bateu como se fosse sobre um fardo de algodão, mas o animal

continuou o caminho como se nada o houvesse atingido e desapareceu no mato.

Mas em meio a tantos casos, existem fatos hilariantes. Falava-se, por exemplo,

que um urso estaria aparecendo na estrada da Boca do Caminho, no início da Rua da

Titara. A história era tão alarmante que ninguém mais andava por aquele lugar à noite,

principalmente no inverno. Preferiam ir de canoa da vila até a casa de Tunico Dutra

para, de lá, seguirem a pé.

Santoca, que morava naquele povoado, distraiu-se certa vez nas casas dos

amigos e quando se lembrou do urso já era noite fechada. Não tendo vindo de canoa,

resolveu ir mesmo pela estrada, na esperança de que o bicho não estivesse lá naquela

noite.

Entretanto, ao aproximar-se do local, observou que o urso estava sentado no

meio do caminho. Para a vila não queria voltar a fim de não incomodar ninguém àquela

hora. Resolveu enfrentar o bicho. Voltou até uma casa de forno que havia ali perto,

escolheu uma acha de lenha comprida e forte, verificou que não se quebraria facilmente

e partiu para a luta.

Segundo contava, o bicho parecia avançar sobre ele e as orelhas do animal iam

ficando maiores à proporção que chegava mais perto. Não tendo outra opção, partiu

contra o animal, desferindo-lhe violento golpe com o pedaço de madeira que arranjara.

Foi quando descobriu que o urso nada mais era do que o jumento de Lorentino que

dormia ali nas noites de inverno.

E, assim, foi desfeita a assombração.

Santoca contava também que em certa noite de chuva miúda voltava do Troitá

com um companheiro e, ao aproximar- se do antigo Mercado Público, construído por

Manuel Rosa Mendonça, o Maniquinho, no local onde se encontra hoje o marco

comemorativo do primeiro centenário da cidade, com a lua encoberta pelas nuvens,

pararam assombrados diante de um bebê que engatinhava na grama.

Nenhum dos dois sabia o que fazer. Já iam até desviar- se do caminho, pois

pensavam tratar-se de uma assombração, quando as nuvens deixaram escapar um pouco

da claridade da lua e eles verificaram que se tratava de uma preguiça que se deslocava

lentamente, como é próprio desse animal.

PORTO DAS GABARRAS

Porto das Gabarras era a mais importante vila do município de Anajatuba antes

do advento das estradas de rodagem. Embarcadouro de gado na foz do rio Mearim, era

ponto estratégico na defesa da ilha de São Luís durante a Guerra da Independência.

O comandante das tropas nacionalistas no interior, Salvador de Oliveira,

interceptou o acesso dos portugueses pela estrada de Porto das Gabarras, que o major

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Fidié, transformara no ponto de resistência para defender a Capital dos ataques pela baía

de São Marcos, colocando defronte uma flotilha com duas canoeiras em 16 de junho de

1823.

A prosperidade da vila que, embora não exista mais, ainda figura com destaque

nos mapas políticos do Estado do Maranhão, deveu-se ao seu porto de embarque para

onde eram conduzidos os rebanhos do sul do Estado destinados ao abastecimento da

Capital.

O acesso ao Porto das Gabarras era feito pela estrada do Afoga que já era a mais

importante durante o século XIX e primeira metade do século XX. Por ela cavalgavam

os fundadores deste município e, muitos anos antes, os nossos colonizadores. Jesuítas e

Mercedários se misturavam aos plantadores de cana-de-açúcar, de café e de fumo.

Contam que os jesuítas, ao serem expulsos do Brasil, enterraram muitas riquezas

na expectativa de resgatá-las depois. Esses tesouros, diziam os mais velhos, eram

responsáveis pelos acontecimentos estranhos que povoam de histórias nossos campos.

Domingos de Nhô Lau, o Domingos Bastos, que também era conhecido por

"Cor de Rosa", recebeu uns quadros que deveriam ser vendidos no interior. Voltando do

Porto das Gabarras, já a noite avançada, sentiu o cabelo arrepiar quando avistou um

bode preto no meio da estrada. O cavalo assustou-se e ele teve dificuldade para dorniná-

lo, enquanto o bode crescia à sua frente. O bode já estava do tamanho de um boi e ele

ainda lutava para controlar o animal. Era por volta da meia noite quando, nas

proximidades, um galo cantou. Imediatamente o bode começou a diminuir de tamanho

até desaparecer. Domingos conseguiu então dominar o cavalo que, sob a pressão das

esporas, partiu num galope ligeiro, enquanto ele ouvia no meio da noite uma voz

fanhosa que lhe gritava: "É tua valença".

Hoje já não são tão freqüentes as notícias desse tipo. Indagando os mais velhos

acerca do porque da redução de tais fatos, eles explicam que a maioria dos tesouros já

foi desenterrada, libertando muitas almas que penavam por causa deles e que

encontraram a paz após as fortunas terem sido resgatadas.

ILHAS E OUTROS LUGARES ENCANTADOS

"A Natureza é o trono exterior da magnificência

divina"

(Buffon)

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As crendices e os mistérios envolvendo os campos de Anajatuba repetem apenas

muitos fatos que deixam a humanidade perplexa. A ciência não descobriu ainda as

causas de muitas reações do próprio corpo humano, portanto, não pode saber de todas as

coisas esquisitas da natureza. Esses mistérios são sentidos e contados durante toda a

história do homem, em lendas como as do rei Arthur, nas quais a Ilha de Avalon é

também lugar encantado e tem seu próprio acesso envolto em mistério. Erich von

Daniken alinha em suas obras uma sucessão de fatos extraordinários desafiando as leis

naturais conhecidas. No famoso Triângulo das Bermudas, misteriosos desaparecimentos

de navios têm ocorrido e, em simples clareiras de florestas, a vegetação não germina.

Esses são outros mistérios contados e não explicados.

Nos campos de Anajatuba, coisas exóticas acontecem com freqüência; existem

certas ilhas, enseadas e morros, onde a natureza desafia a inteligência humana para

afirmar que os mistérios de Deus não podem ser de todo explicados. Viajando nas horas

antes do amanhecer, o homem do campo olha para o alto e observa muitos astros se

deslocando em assombrosa velocidade, riscando o céu ou parecendo cair bem próximos,

deixando sempre um rastro de luz na imensidão, tudo levando a sua alma mística

imaginar tratar-se de indicações para buscar as surpresas do céu. E, na calmaria de

tardes intermináveis de seu cavalgar solitário, seu olhar se fixa em certas ilhas

desabitadas, apesar de belas em sua flora exuberante, e recorda histórias antigas,

contadas por seus avós, acerca dos mistérios que as envolvem. São caminhos de seres

sobrenaturais, fazendo o próprio animal que lhe serve de montaria deles se desviar,

aumentando as distâncias para não penetrar no lúgubre sombrio de sua mata.

O respeito do homem do campo por certos lugares é causado por

acontecimentos contados através dos anos e reacendidos pela sua experiência pessoal.

Ou é um poço de pedras de onde certa vez retirou água para si e para o seu cavalo que

ele procurou outro dia e não encontrou mais, ou simples quadrados de ladrilhos vistos

uma vez e nunca mais encontrados pela mesma pessoa ou, ainda, assobios finos, vozes e

outros ruídos que fazem seu corpo experimentar arrepios estranhos.

Na Ilha dos Bichos, próxima ao Igarapé Novo, uma das muitas espalhadas pelos

campos de Anajatuba, muitas desabitadas e ainda sem denominação, havia muita caça,

especialmente carão. Certo tempo os caçadores contavam que, ao correrem para apanhar

as aves abatidas, uma mulher se antecipava a eles e desaparecia com a caça.

João dos Santos, destemido, resolveu cacar sozinho na ilha. Atirou no primeiro carão e,

quando correu para apanhá-lo, a mulher surgiu e agarrou-o; mas ele, que chegara junto,

agarrou-o também, ficando ambos lutando pela posse do animal.

Durante a disputa, a mulher que ele nunca havia visto, chamou-o pelo nome e

perguntou-lhe se ele tinha coragem. João respondeu que se não tivesse não estaria ali.

Então a mulher lhe disse que precisava de um favor. Deu-lhe o nome e explicou

haver morrido há menos de um ano mas ainda não alcançara sossego porque ficara

devendo uma promessa feita a N. S. de Santana. Estava fazendo aquilo com os

caçadores porque precisava de alguém para ajudá-Ia. Queria que mandasse rezar uma

ladainha e acendesse uma caixa de velas para a Santa. João prometeu que o faria e

cumpriu a promessa. Dizem que a partir dai nunca mais alguém falou dessa aparição.

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Muitas pessoas, ao serem indagadas acerca das visões que constituem a tradição

do campo e de suas ilhas, dizem que essas coisas estão desaparecendo porque só

acontecem onde há fortunas enterradas e a maioria delas já foi descoberta. Mas por

muitos anos era proibido levantar quaisquer obras em certos locais para não interceptar

os caminhos dos seres sobrenaturais.

A ilha do Coati fica defronte da igreja do Ribeirão. Ninguém consegue morar

ali e quem mais demorou foi Alípio Marinho que chegou a possuir uma fazenda com

muito gado. Perdeu tudo que tinha e ausentou-se do lugar para nunca mais voltar.

Os moradores do Ribeirão contam que muitas vezes, à noite, vêem a ilha

pegando fogo, mas no dia seguinte tudo continua no mesmo sem o menor sinal de

queimadas.

A ilha, plantada de mangueiras e tucunzeiros, é mais visitada por vaqueiros à

procura de gado. As poucas pessoas que foram seus moradores e de que se tem notícia,

contam da aparição de muitas visagens e que não conseguiam dormir à noite,

perseguidos por assombrações. Muitos dos que a visitaram encontraram buracos feitos

na terra e falam de pessoas que ali estiveram procurando tesouros. Os incêndios já

foram vistos por dezenas de moradores do Ribeirão durante os festejos de São

Bartolomeu e Nossa Senhora das Mercês.

Pertencendo, no século XIX, à extinta Ordem dos Mercedários do Maranhão,

fica defronte das terras que eram de Domingos Martins e hoje pertence aos

descendentes de Pinheiro Costa, que não a exploram, deixando-a sob os cuidados de

Cordeiro e Selegote.

No Banguelo, perto da extinta vila do Porto das Gabarras, ao lado do Cauaçu,

existe uma ilha pequena, também esquisita. Ninguém mora lá, não tem nome e, como a

ilha do Coati, só é visitada por vaqueiros à procura de gado. E eles contam que acharam

um poço de pedras com muita água e grossas correntes presas à borda, descendo até o

fundo. Marcaram o lugar, fizeram sinais nas árvores próximas e, quando voltaram, nada

mais encontraram.

Contam que um cidadão mandou construir uma casa no Porto das Gabarras.

Quando a construção já estava adiantada, despachou os operários e desapareceu. Havia

encontrado um tesouro nessa ilha.

A ilha dos Algodões também esconde algum segredo. Uma das luzes que

costumam vagar pelos campos sai de lá, passa pelo largo da igreja e segue para o Troitá.

Antigamente muitas pessoas a viam surgir por volta das 20 horas e seguir seu trajeto,

regressando pelo mesmo caminho antes da meia noite.

Ninguém consegue morar na ilha dos Algodões. Alguns chegaram a construir

casas, mas as abandonaram misteriosamente, deixando-as cair com o tempo.

Certa vez, Toledo e João Marinho, viajando pelo campo, aproximaram-se da

ilha e, na orla do campo, embaixo de um crivirizeiro, encontraram um quadrado de

tijolos vermelhos que brilhava intensamente à luz da lua. Sem coragem para olhar de

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perto do que se tratava, marcaram o local e as árvores em volta para uma verificação à

luz do dia, mas ao voltarem na manhã seguinte não encontraram vestígios do lugar onde

estiveram.

Lucas de Seleuco morava na Ilha do Inverno. Certa vez, ao voltar do campo,

viu no meio da malhada, em frente à sua casa, um touro estranho: era mais alto do que

os outros, muito preto e com os chifres brancos. Como já era noite, deixou para

observar o animal pela manhã.

Nessa noite sonhou com o touro batendo as patas em frente da casa enquanto

alguém lhe dizia que, se tivesse coragem, havia um tesouro para ele, mas sob certas

condições.

Primeiro, devia dar um filho ou um neto para o dono do touro. Depois deveria

convidar um seu compadre para ir com ele desenterrar o tesouro, mas na hora da

divisão, haveria uma discussão entre os dois e ele mataria o companheiro.

Lucas agradeceu dizendo que não queria nenhuma fortuna com um preço desses.

Na Malhada Alta também acontecem coisas estranhas. Guilherme Raposo morou

ali e conta que de vez em quando aparecia um cavaleiro montando um bonito cavalo

branco que brilhava à luz da lua. Vinha esquipando do meio do campo, fazendo retinir

seus arreios de prata. Parava no terreiro em frente da casa e depois voltava da mesma

maneira que havia chegado.

José Rosa, seu filho, conta que as pessoas da casa às vezes olhavam através de

brechas abertas na tapagem de palha da casa, mas ninguém tinha coragem de sair fora.

Muitas vezes ouviam e viam caixões de madeira rolando capoeira adentro, mas

jamais os encontravam na manhã seguinte.

No Graxixá, terreno do Dr. Francisco Oliveira Filho, também aconteciam fatos

inexplicáveis. O morador do lugar chamava-se Pedro. José Rosa muitas vezes dormia na

sua casa, durante as invernadas, quando criava porcos. E diz que à noite ouviam ruídos

de cavaleiros chegando e tirando os arreios dos cavalos. Ouviam os passos de pessoas

arrastando os tamancões por dentro da casa, chegar ao pote, pegarem os copos de

alumínio, baterem com eles sobre o jirau para espantar as formigas que ali apareciam em

abundância e o ruído dos copos mergulhando na água do pote e sendo recolocados no

lugar.

Conta que havia noites em que quase não conseguia dormir e quando indagava a

Pedro acerca do que acontecia, ele respondia que já estava acostumado com aquilo então

ligava mais.

VIAGEM AO DO MORRO DO GRAXIXÁ

A canoa deslizava sobre a superfície do campo ladeada pelo verde do junco ou,

quando nas clareiras, vencendo a beleza do mururu sobre samambaias aquáticas, capins

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e outras variedades da flora característica da região que explodia em flores variadas, em

dimensões e cores para saudar aquela manhã de abril.

Adiante a parioba exibia sua flor branca em cachos deslumbrantes, aguardando

as jaçanãs que fariam seus ninhos nas suas moitas. Tudo iluminava essa manhã saudada

desde os primeiros anúncios dourados do sol e que pintava o céu de um azul brilhante.

Eu era o vareiro, guiando a embarcação com certa dificuldade, esforçando-me, às vezes,

para retirar a vara quando a lama submersa era mais profunda. Meu objetivo era alcançar

o morro do Graxixá, situado além, na verde campina que se estende em frente à vila de

Santa Maria.

Aos meus olhos as enseadas se sucediam. Ali adiante um tapete de ramos

brancos artisticamente montados por minúsculas flores ostentava a beleza pura do

campo.

O ruído da embarcação rasgando o junco para procurar os caminhos dos igarapés que

permitiam as viagens, espantava os cardumes de jejus e traíras miúdas. O Pacoval já

ficara à direita e eu empurrava a canoa em busca do Barro Vermelho de minha infância,

um lugar que eu julgava inacessível, um conjunto de ilhas no oeste infinito do campo

que se estendia sem fim na minha frente.

Na confluência dos igarapés do Troitá e Cangalhas, deixei de lado as ilhas de

Juçatuba, Boragica, Murici, Guariba, Jutai e Tapera, e seguia no rumo do Teso do Bom

Prazer, alcançava a Ilha das Cuias, do Deserto, Melão e Ponta da Ilha, para afinal divisar

o morro do Graxixá, de onde eu podia avistar a ilha Serrano, onde reside o meu amigo

Bruguelo.

Somente no auge do inverno era possível alcançá-lo pelo caminho das águas:

Em maio, essas águas começariam a baixar e a caminhada para o morro só seria possível

a cavalo ou a pé, vencendo com dificuldade a lama que se amontoava sob o algodão e o

matapasto.

Ninguém me seguia, ninguém me acompanhava. O esforço despendido para

empurrar a canoa já me causava dores no corpo e eu imaginava que o sacrifício

anunciado pelo Mestre seria muito mais pesado do que minha resistência física permitia

suportar.

O sol já estendia seus raios sobre toda a paisagem verde quando consegui

ancorar a canoa no meio dos criviris. Um tronco tombado me oferecia oportunidade de

repouso com seus galhos viçosos e convergentes que pareciam poltronas.

Sentei-me para reanimar o corpo e fiquei a contemplar a infinita paisagem verde

que caminhava em busca do Mearim. As pálpebras cansadas ficaram semicerradas na

contemplação silenciosa do campo, enquanto o vento que cantava sobre a folhagem das

árvores trouxe para os meus ouvidos a voz serena do Mestre.

"Não subirás ao morro hoje! A viagem sugerida te fará meditar na braveza dos

que vivem nesta região do campo. O esforço de cada um para sentir-se parte da

humanidade, vivendo sem os benefícios que a ciência oferece aos homens. São felizes

esse abandono e conseguem sonhar com a ancestral simplicidade dos que viveram nos

séculos passados, mesmo os que sofreram injustiças e foram traídos por outros homens."

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"Um dia a civilização os alcançará e em vez desta paz que reflete dias iguais, a

correria em busca de quase nada os integrará às outras comunidades. O avanço dos

meios de comunicação os fará desejar novos bens e a febre de consumo que faz os

homens escravos da propaganda haverá de banir para sempre a magia deste lugar."

“Aproveita este momento e comunga com a natureza ainda esplendorosa nos

seus crivirizais e busca a comunhão com os espíritos dos teus ancestrais que ainda

penam por aqui."

“Ao teu lado, um pouco adiante, estão as ruínas de uma igrejinha antiga e sob os

seus escombros haverás de encontrar o templo antigo, guardado pelos que permanecem

fiéis à natureza”.

A voz do mestre vinha na brisa, que ondulava o junco, como se fosse urna

melodia antiga, suave, ritmada. Eu não o via, mas a sua presença parecia tão real que

olhei em volta para ver se o encontrava, mas a minha procura foi inútil.

Sentei-me no tronco de criviri e fechei os olhos para imaginar o movimento

antigo dos escravos fugidos que buscavam a ajuda dos padres e pareceu soar os

atabaques dos índios aprisionados e conduzidos até esta região com promessas

tentadoras e que foram vendidos com os negros a outros senhores de engenho para se

consumirem no corte da cana-de-açúcar.

Como deve ter sido doloroso: para uns, o desespero de nova escravidão

permitida pelos que lhes prometeram paz e, para outros, a perda da liberdade, do

convívio com as matas, quebrada pelo poder do europeu colonizador.

Esses lamentos de angústia começaram a pesar na minha alma e, aos poucos,

foram se transformando em sons mais familiares, como se urna torrente desabasse do

morro em forma de cachoeira.

Alguém tocou no meu ombro e, ao voltar-me, um vulto de mulher, envolto numa

aragem, começou a tomar forma. Reconheci uma das sacerdotisas que se manifestaram

em outros encontros insólitos, em outros morros. O seu braço estendido indicava uma

pedra de dimensões maiores, cercada de arbustos.

Ouvi o som de um gongo e uma pesada porta de aço surgiu na encosta do morro,

abrindo-se lentamente e provocando o ruído característico de dobradiças antigas.

A sacerdotisa tomou a minha mão e conduziu-me até aquela porta, fazendo-me

ultrapassar a soleira como num sonho e penetrar na escuridão que dominava a caverna.

O ruído das dobradiças voltou a soar em meus ouvidos, e eu percebi que a porta se

fechava. A escuridão era total. A mão da sacerdotisa deixou a minha mão, e eu me senti

só, imensamente só na escuridão.

Tive medo e fechei os olhos como se isso me protegesse de algum perigo.

Parecia que muito tempo se passara e eu tive a sensação de que estava prisioneiro. A voz

da sacerdotisa pronunciou um nome estranho, e tive a sensação de que esse era o meu

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nome. Foi como se eu viajasse num tempo distante e que um acontecimento igual já

havia sido presenciado por mim.

Na escuridão total eu ouvi o estalo de um chicote de couro, enquanto ouvi um

gemido surdo de alguém que sofria, mas procurava reter o grito. Tive a certeza de que

alguém estava sendo açoitado.

-Levanta ! Gritou uma voz que eu reconheci ser a minha.

Novo estalo do chicote, novo gemido de dor e meus olhos foram percebendo uma luz

que ia iluminando fracamente o local onde me encontrava.

Era uma caverna. A luz penetrava através de frestas entre rochas... Ao fundo,

uma pequena lagoa foi tomando forma, e algumas raízes grossas surgiram na margem.

Sentei- me em uma delas e esperei. A claridade aumentou, e eu percebi se estendia para

mais distante. As águas se tornaram límpidas a medida que a claridade aumentava.

Percebi que saíam de algumas rochas grossas correntes de ferro que se

estendiam até o fundo da lagoa, terminando com uma espécie de algema. Dois cilindros

de ferro estavam de lado e uma espécie de tacho, já corroído pela ferrugem e pelo tempo,

completava o conjunto.

Um raio de luz mais forte incidiu nos meus olhos e eu os fechei no momento

exato em que ouvi o ruído das correntes se arrastando e um gemido gutural de alguém

pedindo ajuda.

Afastei os olhos da luz e contemplei a paisagem em volta que em nada se

modificara.

Instantes após ouvi os passos de alguém, e a sacerdotisa surgiu, não sei de onde, e falou:

-Este encontro de hoje, hás de lembrá-lo sempre. O preço da civilização é muito

alto para alguns, pois a sede de poder e de bens muda a consciência das pessoas e faz

com que pratiquem o mal sem disso se aperceberem. Volta a tua casa e medita nesses

pequenos símbolos que feriram tua sensibilidade. Todos cumprimos a nossa sina e

somos úteis até no sofrimento. Às vezes precisamos de amparo para vencer as

dificuldades. Vai e vence, pois sofrerás outros castigos que te haverão de aperfeiçoar até

que te tornes digno de voltar aqui.

A sacerdotisa desapareceu e encontrei-me novamente na orla do campo, à

sombra do criviri.

O CAMINHO DOS SERES SOBRENATURAIS

A procissão surgiu outra vez no silêncio do campo. De- zenas de pessoas a

acompanhavam, saídas não se sabe de onde, entoando hinos religiosos do qual não

entendia a maioria das palavras, mas que era um convite à meditação e ao recolhimento.

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Não havia nenhuma imagem sendo conduzidas em andor, como as tradicionais

procissões do culto católico.

Quando surgia à noite, centenas de velas iluminavam o percurso e o Teso das

Aningas tinha seus caminhos iluminados na direção da ilha de Cajaraman.

Miguel Popopó, sentado à porta de sua choupana, assistia constantemente àquele

espetáculo, intrigado com o seu surgimento inesperado e, mais ainda, pela maneira

relâmpago com que tudo desaparecia deixando seus olhos novamente pairando na

imensidão do campo, onde o gado continuava pastando e os bandos de marrecas,

alçando voo, quebravam a monotonia da paisagem com seus gritos alegres.

Algumas vezes tentou acompanhar a procissão que, de tão habituado a ver, não

lhe causava medo. Numa dessas vezes em que saíra correndo até a curva do caminho e

que tornara a sentir-se decepcionado pelo seu súbito desaparecimento, decidiu pôr fim

àqueles acontecimentos ou buscar conhecer a sua origem e significado.

Sua choupana estava necessitando de reparos; a madeira já estava apodrecendo e

a cobertura de palhas já não estava resistindo às chuvas. Construiria outra casa

exatamente naquela curva do caminho da ilha de Cajaraman. Só assim acabaria aquela

sinistra a

Não falou a D. ]oana, sua esposa, a razão por que escolhera aquele lugar, como

jamais comentara sobre a procissão. Sabia que ela já presenciara o fato, comentado em

poucas e curtas ocasiões posteriores, mas a conversa nunca se estendia, disfarçada pelo

conhecimento de que não se fala acerca do presenciado no campo. Aliás, D. ]oana só

soube que iria ser mudada a localização da casa quando Miguel começou a limpar o

local. Até gostou da ideia, pois o galinheiro e o chiqueiro de porcos precisavam mesmo

ser reconstruídos.

Assim, Miguel Popopó construiu a sua nova morada no meio do caminho da ilha

de Cajaraman, local onde a procissão desaparecia. O caminho foi deslocado através de

um atalho que fizera no mato.

Para sua satisfação, a procissão deixara de aparecer, mas acontecimentos

estranhos punham a família em desassossego.

Um dia, a exemplo, quando alguns pescadores da região ali faziam parada e

aguardavam o almoço, soprou uma brisa mais forte, envolveu o fogão de tacurubas,

nome dado às três pedras que o compunham, enquanto um bocado de terra era atirado

dentro da panela, emborcando-a e pondo a perder toda a comida que estava sendo

preparada. Tiveram que se valer da fritura de peixes, em azeite de coco, trazidos pelos

visitantes.

No dia seguinte, a máquina de costura antiga, sem móvel, desapareceu. Foi

encontrada no teso, afastado da casa, mais ou menos no local onde surgia outrora a

procissão. Como o fato se repetisse outras vezes, encarregaram Zé Preto de comprar

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uma

corda forte na vila, para amarrá-Ia.

Zé Preto comprou a corda, mas ao alcançar o Barro Vermelho começou a

apanhar sem saber quem lhe batia. A surra só parou quando se desfez da corda

entregando-a a Miguel Popopo, que amarrou a máquina ao esteio central da casa com

vários nós cegos que foram molhados e batidos várias vezes para torna- se impossível

desfazê- los.

Como todos os habitantes do campo, Miguel e D. Joana eram criadores de patos

e porcos. Naquela época possuíam cinco patas em postura. Não havendo comida em

casa certo dia resolveram cozinhar alguns ovos. Novamente a pequena ventania

envolveu o fogão sem emborcar a panela como das outras vezes, mas, ao retirarem os

ovos, verificaram surpresos que só havia as cascas. E D. Joana assegurava que os havia

examinado, um a um, contra a luz da lamparina, para verificar se estavam em boas

condições.

E a máquina de costura, cuidadosamente amarrada ao esteio da casa, novamente

desapareceu, deixando a corda intacta, sem nenhum sinal de que os nós tivessem sido

desatados ou cortados. Encontraram-na no teso como das vezes anteriores.

As perturbações continuaram chegando a ponto de dormirem vestidos e

acordarem nus.

Alguma coisa estranha envolvia a casa e Miguel, embora descrente, seguiu os

conselhos de D. ]oana e mandou chamar Luzardo, conhecido curador da região que, ao

encantar-se, assumia uma personalidade feminina e dizia chamar-se Rita do Paricá.

Luzardo chegou acompanhado de Clóvis de Epifânio. Sentados em tamboretes

cobertos de couro de bode, ouviam as explicações do dono da casa enquanto D. ]oana

apressava-se em preparar-lhes um café. Quando a água começou a ferver, uma bola de

barro foi atirada dentro do papeiro que emborcou e quase apagava o fogo.

Luzardo mandou que Clóvis ficasse perto do fogão, pediu licença e afastou-se,

ficando sozinho no teso frente à casa. Clóvis reavivou o fogo, entusiasmado com a

presença do curador que lhe indicara para auxiliá-lo, disse em voz alta:

-Já derramaram a panela. Agora quero ver quem é que vão derrubar.

Não terminou o comentário e foi atingido na costela por uma bola de barro, quase

perdendo o equilibrio.

Em silêncio ficaram observando Luzardo à distância. Caminhando pelo teso, o

curador olhava para o chão ou estendia os braços em várias direções. Voltou para a casa

e mandou que D. Joana preparasse novamente o café, dessa vez servido sem nenhum

incidente.

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Luzardo chamou Miguel e explicou que deveria derrubar aquela casa e construí-

la no local anterior. Ali era passagem de encantados, um dos caminhos de entes

sobrenaturais que se dirigiam para o mar. Ninguém tinha permissão para obstrui-los,

pois eram guardados há milhões de anos pelos senhores do campo. Deveria tomar essa

providência antes que o inverno chegasse, pois até lá não seria perturbado.

Miguel assegurou que iria tratar do assunto e agradeceu a Luzardo e Clóvis que

voltaram para suas casas.

Tendo cessado as perturbações conforme lhe falara o curador, Miguel decidiu

não mais mudar a casa, pois o encantamento já teria sido quebrado. Apesar das

reclamações da mulher não falou mais no assunto.

O verão prolongou-se por todo o mês de janeiro e somente em fevereiro as

chuvas começaram a cair, espaçadas. Mas no mês de abril, na madrugada de sexta-feira

santa, um temporal caiu sobre a região e continuou durante parte da manhã. A casa

estava cheia, pois muitos parentes, vindos de várias cidades, estavam passando os dias

grandes no interior, espalhando-se pelos vários lugarejos e aproveitando os igarapés

que, já estando cheios, permitiam a navegação em pequenas canoas.

Oito horas da manhã e a chuva continuava copiosa. As pessoas estavam

reunidas na cozinha para o café, pois, como a chuva forte continuasse a cair, ficaram

aproveitando o conforto das redes que se distribuíam pela casa para acomodar todos os

visitantes. Uma ventania mais forte fez a palha da cobertura levantar e o ruído de fogo

espalhou-se pela casa apesar da chuva.

Nada restou da casa e dos pertences da família e dos visitantes, que ficaram

apenas com a roupa do corpo.

Vendidos os animais, Miguel Popopó abandonou o Teso das Aningas e mudou-

se para a Rua da Titara onde ainda viveu alguns anos... Era o castigo dos seres

sobrenaturais, cujas estradas Miguel ousara interromper.

TESOUROS ENTERRADOS

Os padres da Companhia de Jesus que habitavam o Maranhão no tempo do

Brasil Colônia e ainda no Império, possuíam muitos bens na região hoje pertencente ao

município de Anajatuba. Como eram instruídos, Ezeram grandes fortunas. Denunciados

a seus superiores porque estavam escravizando índios, foram chamados a Portugal e,

antes de partirem, enterraram muitos tesouros para deles se apossarem depois. Nunca

mais voltaram e tudo ficou perdido. Dizem que, em frente à Igreja Matriz, há uma

imagem da Virgem Maria toda em ouro e um forno de cobre cheio de moedas antigas.

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Os fazendeiros ricos de antigamente possuíam grandes fortunas em joias, ouro e

pedras preciosas. Costumavam guardar essas riquezas dentro de potes que eram

enterrados em um dos compartimentos da casa. Alguns morreram sem descendentes

deixando esses tesouros perdidos. Essa a explicação dos antigos para muitos casos de

assombração e para o fato de muitas pessoas enriquecerem inesperadamente deixando a

suspeita de haverem encontrado essas fortunas.

Defronte do Cravo, do lado de Rosário, há uma ilha até à pouco tempo habitada

por Berto Raposo. Chama-se Ilha da Feira e seu nome sugere que ali deve ter sido local

de compra e venda de gado e de escravos. Nome idêntico foi dado a outra ilha, situada

na Ribeira do Itapecuru, citada por Gayoso como local de compra e venda de gado.

Fortunato, irmão de Zé Ferreira, morou na ilha logo que se casou. Dizem ter ele

achado ali uma fortuna. Mudou-se para a Rua Coelho Neto, montou comércio, comprou

gado e construiu uma casa, levando o povo a admitir o achado, pois antes era muito

pobre.

Depois foi embora de Anajatuba e nunca mais voltou. As pessoas mais velhas

dizem que se alguém encontrar um tesouro e permanecer no mesmo lugar, morre.

Se Fortunato realmente achou um tesouro é porque naquela ilha, em tempos

passados, moraram pessoas prósperas, confirmando a lenda da feira. Dizem que um

fazendeiro a comprara para fazer parada de gado trazido de longe. Depois o proprietário

foi embora e nunca mais ninguém soube notícia dele. Alguns dizem que a ilha pertencia

ao Cravo, mas hoje tem outros proprietários.

Em Anajatuba havia notícia de pessoas que, diziam, acharam riquezas

enterradas. Uma delas foi Major, um comerciante do extinto povoado Santana. Com

efeito, ele mudou-se para São Luís onde abriu um comércio muito grande no bairro do

Tirirical. Depois desapareceu e nunca mais se soube notícia dele. Falam também que

Amazonas, um músico antigo, havia achado uma fortuna ao pé da cruz, na praça do

mesmo nome, mas ninguém tem certeza disso.

Viveu muitos anos e aqui morreu um cearense conhecido por Tamancaria. Vivia

quase sempre embriagado e usava uma linguagem engraçada, inventando palavras,

alterando a pronúncia de outras e divertindo a população. Apesar de sua maneira de

viver (ou de morrer), todos gostavam dele, pois não havia notícia de que houvesse

faltado com o respeito a alguma senhora ou praticado alguma má ação.

Havia também um cidadão chamado José Santana, amigo de um dentista

prático de nome Francisco Lindório. Um deles sonhou com um tesouro enterrado na

Praça da Cruz. Sem coragem para desenterra-lo, mas dispostos a fazê-lo, convidaram

Tamancaria para acompanha-los. Tamancaria aceitou o convite. Como sempre, bebeu

demais e apenas ficou sentado na escadaria da cruz, onde amanheceu dormindo.

Tamancaria ora dizia ter sido José Santana ora Francisco Lindório quem achara

uma caixa cheia de joias e de moedas de ouro, e que haviam deixado duas moedas no

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buraco, pois segundo a tradição, não se deve levar tudo, em vão indicou o local onde

fora encontrado o tesouro e no qual estariam as duas moedas jamais encontradas.

José Santana e Francisco Lindório, nunca mais foram vistos em Anajatuba e

ninguém mais teve notícia de seus paradeiros.

Também na antiga casa de Agostinho Sanches, pai da professora Agostinha,

localizada onde hoje mora Teodora, diziam haver um tesouro enterrado. Berta, tia de D.

Isaura Monção Rodrigues, morou com Dona Maricota depois que Agostinho morreu.

Sonhou várias vezes haver um tesouro no quarto principal. Que ela cavasse embaixo de

um dos ladrilhos um pouco diferente dos outros.

Certa noite, Berta acordou com batidas na porta principal da casa enquanto uma

voz chamava seu nome.

- Berta, Berta! Tem pena de mim!

Somente ela ouvia o chamado, pois ninguém acordou. A voz pedia que ela

desenterrasse o tesouro, mas Berta, tremendo de medo, nada respondeu. Já havia até

percebido a existência de um ladrilho diferente, mas nunca se atreveu a arrancá-lo.

Ninguém me deu mais notícias de Berta e, depois que a casa foi derrubada não

se ouviu mais falar no assunto.

A MISSA

Quarta feira de abril. Como de costume, entrei na igreja matriz de volta da casa

de D. Maria Bastos onde almoçara. Eram 14:30 horas.

Ajoelhei-me e, de imediato, ouvi as pancadas da chuva lá fora. Chovia com

intensidade e eu, após alguns minutos de oração, sentei-me em um dos bancos para

aguardar o fim do temporal.

A igreja estava vazia àquela hora. Somente eu estava ali.

O passado foi aos poucos tomando conta da minha mente. Quanta horas havia

passado ali, na igreja antiga, menino de oito anos, sacristão que não se conformava

apenas em ajudar a missa, repetindo palavras em latim cujo significado ainda não

compreendia, anotar os banzados e casamentos ou fazer repicar os sinos chamando o

povo para as celebrações.

Gostava de ficar contemplando as imagens e imaginando quantos sacrifícios e

horas de oração os santificaram para merecer estarem ali, testemunhas que foram da

misericórdia divina.

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Os santos, cujas imagens eu admirava, deveriam ser imitados na sua maneira de

viver em contato com Deus e distribuindo caridade aos outros homens. Tinham sido

pessoas humanas, sujeitas às mesmas tentações e fraquezas que nos acarretam, mas que

as superaram servindo a Deus, dissera certa vez o Padre Possidônio na missa dominical.

Eu recordava aquelas palavras e aqueles momentos já vividos por mim e

imaginava que os santos não viviam om o Adoremus e a Bíblia na mão, repetindo em

voz alta textos das Sagradas Escrituras, mas davam exemplo de vida cristã através de

suas obras, de seu comportamento para com os outros mortais, pecadores, vitimas da

pobreza e das discriminações.

Eles se santificaram porque em tudo viam a bondade divina e, em todos, a

imagem de Deus. Suas orações constantes eram sua própria rotina diária de amar aos

semelhantes, de compreender suas fraquezas, de estender a mão cheia de misericórdia

para amparar os mais infelizes.

Viviam no mundo cercados de pessoas comuns, ouvindo mexericos, mas não se

envolvendo neles. Não difamavam não desejavam o mal a ninguém, não exploravam as

pessoas, não comentavam as falhas alheias, não negavam nem o pão nem a palavra. O

seu evangelho era a sua própria vida.

A presença de suas imagens não se constitui nenhuma forma de idolatria, mas,

como o retrato das pessoas que amamos, elas nos lembram que o caminho do céu é feito

dos nossos relacionamentos com as outras pessoas. Boas ou más, lobos ou cordeiros, a

missão dos 6lhos de Deus é conviver com todos e dar-Ihes exemplos de vida e não

apenas repetir palavras não vividas.

Fechei os olhos enquanto o sonho me levava para o passado. A chuva

continuava forte e um vento frio trouxe aos meus ouvidos o rumor de vozes e sussurros.

Abri novamente os olhos e me encontrei novamente na Igreja antiga, agora

repleta de pessoas que vagamente eu conhecia... Dona Dolores e D. Zinha, irmãs que

moravam na praça, iam se dirigindo para os bancos da frente, seguidas por D. Luiza

Machado, D. Macica e D. Cotinha Mendes todas com terços de contas coloridas nas

mãos.

Ao lado do altar-mor estavam Basiliano Colins, Leopoldo Oliveira, Anastácio

Rego, Heráclito Everton, Flávio Cordeiro Mendes e outros senhores que faziam parte,

da Conferência de Vicente de Paula. Voltei os olhos para trás e olhei o coro lá no alto e

pude ver Maria Freire, D. Elisa, Maria José Sanches, Luiza de Manahem e outras

senhoras que eram as cantoras.

Com os olhos novamente no altar, vi que o Padre Possidônio vinha surgindo da

sacristia, com paramentos verdes, antecedido por Benedito Oliveira, para iniciar a

celebração. Ao pé do altar, o padre começou a recitar os salmos, em latim: "Introibo ad

altare Dei". O sacristão completava: "Ad Deum qui letificat juventutem meam".

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Ainda entre o sonho e a realidade ouvi as cantoras entoarem um hino de

penitência: "Senhor, eu não sou digno que neste peito entreis, mas vós, ó Deus benigno,

a falta suprireis".

O Padre já subira ao altar onde orava de costas para a assembleia para a qual se

voltava algumas vezes com a saudação crística: "Dominus vobiscum", à qual todos

respondiam: "Et cum spiritu tuo".

O Padre leu um texto de uma epístola de São Paulo aos Coríntios e voltou ao

centro do altar, enquanto a missal era transportado para a outra extremidade onde seria

lido o Evangelho.

Foi então que ele me surpreendeu. Vestindo uma sobrepeliz branca, era o

Merlin quem transportava o livro sagrado. A alvura de seus cabelos e a barba branca

não deixava dúvidas. Ele havia voltado. Seus olhos encontraram os meus, mas apenas

um leve sorriso foi à saudação recebida.

Como todas as outras pessoas, levantei-me para ouvir a leitura do Evangelho,

feita em latim e, antes que o Padre iniciasse a homilia, um relâmpago iluminou a igreja

e o trovão ecoou por toda a nave.

Abri os olhos e me encontrei novamente só na igreja revestida de pedra. O sonho

passou. Sentei-me lentamente e senti a mão sobre meu ombro direito, enquanto uma voz

familiar me dizia: Tua luta continua.

Voltei-me e encontrei o Mestre que deu a volta e sentou, se ao meu lado.

- Quase perdias o caminho. Tu te afastaste da senda e o teu altar foi destruido.

Apesar de tudo, não perdeste a esperança. O sofrimento é o fogo onde se apura o metal

precioso da alma.

O Mestre fez uma pausa como se meditasse. Depois prosseguiu.

- Ambos sofremos. Eu, porque não conseguia comunicar-me contigo, distante

que estavas na única ideia de resolver problemas materiais. Tu também sofreste por te

julgares abandonado nos momentos mais difíceis.

Baixei a cabeça, envergonhado por reconhecer a verdade de suas palavras.

Esperei uma advertência severa, mas o que ouvi foram palavras de conforto e

humildade.

- Renova tuas energias pela oração e cinge novamente tua espada para a luta. O

pão que lançaste nas águas retoma às tuas mãos, pronto para teu alimento. Muito terás

ainda que lutar.

Fechei os olhos e sorri conformado.

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- São muitos os que sofrem e aguardam teu serviço. Sob o chão que agora pisas,

milhares de vozes ancestrais reclamam a tua iniciativa. São vozes daqueles que partiram

desta vida sem terem realizado todos os seus sonhos. Pára e escuta.

Como se ouvíssemos uma música suave, ambos permanecemos em silêncio,

enquanto a chuva continuava a cair copiosa. O Mestre então prosseguiu com suas

palavras cheias de evocações.

- Os sonhos são reflexos de uma realidade possível. Se tu sonhas com o que é

melhor para todos foi porque foste inspirado por milhares de outras mentes que te

antecederam e que sonharam também. Teus sonhos são, portanto, o somatório de uma

multidão de sonhos acumulados pelos séculos que te antecedera. Vai e luta por eles. Um

dia é sempre único na vida de cada um. Não te deixes influenciar pelas dificuldades de

ontem. Hoje é um novo dia e talvez ele te reserve a vitória que tanto desejas.

A um sinal do Merlin, levantei-me e o acompanhei até o altar onde reunimos as

nossas almas numa oração silenciosa. Nada falamos. O silêncio falava por nós.

Quando abri os olhos ele não estava mais ao meu lado. Teria sonhado? Mas a

minha presença nos degraus do altar dizia que algo real havia acontecido. Ergui-me e

voltei os olhos paraa porta da igreja. Lá longe, no Barro Vermelho, contra a cortina

cinzenta da chuva que caia no campo, divisei ainda o seu vulto branco com um aceno de

despedida.

Lá fora o tempo amainara e apenas um chuvisco miúdo caia silencioso sobre a

grama verde. Com a alma inebriada de um sentimento que não conseguia distinguir

entre a angústia e a esperança, desci os degraus do átrio da Matriz e continuei a minha

caminhada em busca de meus sonhos.

SÃO JOÃO DA MATA

O pasto continuava verde, apesar do verão, mercê das águas represadas nos

açudes da Fazenda Teso da Porta, de propriedade do Cel. Felipe Tiago Pires, próxima à

povoação São João da Mata.

O mês de outubro iniciava, e os preparativos para a festa de Nossa Senhora dos

Remédios, no lugar Santa Rita, sempre realizadas no dia 16 de outubro, qualquer que

fosse o dia da semana, davam a entender que seria outra grande celebração, como nos

anos anteriores.

O Monsenhor Dourado, tio do Padre Chiquinho e Vigário do município de

Rosário, já havia confirmado a sua presença e, por isso, o coronel já encarregara o filho

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Bidoca (Raimundo Pinheiro Pires), de fazer o levantamento das crianças a serem

batizadas e dos que aproveitariam a ocasião para contrair matrimônio.

Havia, portanto, uma movimentação geral na Casa Grande, com as muitas

providências a serem tomadas: cavalos ou burras de sela para conduzirem o padre e o

seu eventual sacristão; emissários até a vila de Santa Maria para avisar Regino Guia

que, tradicionalmente, acompanhava o religioso a outras localidades para onde se

deslocaria nos dias seguintes, como Monjubelo, Saco Grande, Frades e,

indiscutivelmente, Mato Grosso, onde o vigário tinha ligações muito íntimas com D.

Gregória; escolha dos novilhos que seriam abatidos; engorda de leitoas, capões,

galinhas e patos, além das encomendas de camarão e pescada que viriam de São Luís,

tudo para garantir alegria e satisfação aos muitos convidados, eleitores e devotos que

para ali se deslocariam desde a véspera, entre os quais, o Cel. Saul Nina Rodrigues que

viria direto de Vargem Grande.

Os vaqueiros reuniriam o gado na semana anterior à festa, pois o coronel Felipe

fazia questão de escolher o novilho que doaria para o leilão e aproveitaria a ocasião para

distribuir as "sortes" a seus leais vaqueiros, sempre conforme a tradição: apartavam,

aleatoriamente, quatro bezerros, machos e fêmeas, e o vaqueiro escolhia o que lhe

agradasse.

Na noite de 13 de outubro, quando iniciou o tríduo com a ladainha cantada em

latim pelas senhoras e acompanhada contritamente por todos, o coronel permaneceu na

varanda da Casa Grande até muito mais tarde, apreciando o luar de prata que dava ao

campo, em frente, uma aparência serena e mística. Era lua cheia e os vaqueiros

aproveitavam a ocasião para antecipar a festa, pois o coronel apreciava o som de uma

viola e não deixava de oferecer quitutes e bebidas aos seus amigos.

Já era uma hora da manhã, quando o último vaqueiro se despediu, e o coronel

continuou na varanda olhando o gado que se espalhava pelo campo. Após fumar o seu

charuto, levantou-se para recolher-se e, no momento em que fechava a porta, ouviu o

som de um galope ligeiro vindo do campo. Viu então um cavalo branco, ostentando seus

arreios feitos de moedas de prata, sela coberta por um cochonil de uma alvura

resplandecente, surgindo no meio do teso, já à distância de uns trezentos metros da casa,

para onde se dirigia. Ninguém o montava.

O fazendeiro já ouvira falar dessas aparições que tanto podiam anunciar uma

catástrofe quanto podiam predizer alegria e fartura. Não voltou à varanda nem fechou a

porta totalmente, contentando-se em observar o animal através de uma pequena abertura

controlada com o bico de sua bota de couro. Não devia enfrentar o encantamento, por

isso trancou a porta e ficou à escuta.

O cavalo chegou até a pequena escada de dois degraus que dava acesso à

varanda, parou, bateu as patas no capim rasteiro que rodeava a casa e afastou-se

velozmente em direção ao campo onde o ruído de suas patas se perdeu na distância.

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Entreabrindo a porta, o fazendeiro olhou novamente a paisagem. O cavalo havia

desaparecido e, no meio do teso, uma luz azulada subia a grande velocidade até cair

atrás dos crivirizeiros distantes, transformada numa chuva de pequenos fragmentos

coloridos.

Suspirou aliviado. Era sinal de que a festa decorreria tranquila, o verão não lhe

causaria prejuízos e, por certo, a vitória do seu partido nas próximas eleições estava

garantida.

Persignou-se e recolheu-se aos seus aposentos; só quebraria o silêncio acerca do

ocorrido no dia da festa, após receber a bênção do vigário e amigo.

Lá fora o luar banhava de prata as copas das carnaubeiras e as estrelas piscavam

com alegria anunciando um período de bonança.

IMAGENS E APARIÇÕES

A vocação religiosa do homem do campo determinou sua própria história. A

cultura cristã da sociedade européia, aqui implantada através dos missionários católicos,

aliou-se às manifestações indígenas e africanas, povos de origem humilde que buscavam

no sobrenatural uma explicação para as coisas não entendidas do seu cotidiano. Esse

misto de religiosidade diversificado nas culturas que deram origem aos nossos

agrupamentos humanos continua arraigado na alma do homem do campo que sente a

força divina em tudo que percebe e cria na sua imaginação acontecimentos que dão

origem a devoções diversas.

A imagem de N. S. do Rosário, venerada na Igreja Matriz, vestida em seda, tem

a sua origem envolvida em muitas lendas. Para alguns, foi encontrada apenas a parte

superior, no igarapé do Sipaú, tendo o Comendador Rosa a enviado para restauração no

Rio de Janeiro, de onde voltou com as características atuais.

O Padre Chiquinho dizia que a tradição indicava a origem dessa devoção no

Sipaú onde, nos séculos XVI ou XVII, teria havido uma capela dedicada a N. S. do

Rosário do Sipaú, cuja imagem peregrinava pelos campos, conduzida pelos fazendeiros

devotos.

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As crônicas da igreja, datadas do início do Séc, XIX, dizem que a capela, cuja

autorização para construir fora requerida em 1751, não fora edificada. Algumas

pessoas mais antigas diziam que a imagem estivera inicialmente no povoado Ribeirão

na capela de N. S. das Mercês erigida pelos frades mercedários que o Coronel José

Sabino a levava, de vez em quando, para o Sipaú, de onde deveria ser conduzida para o

povoado Laranjeiras.

Em minha opinião, a imagem teria sido trazida da Europa para o povoado Sipaú,

pois ali, segundo um historiador, havia uma capela dedicada a N. S. do Rosário do

Sipaú em meados do Séc. XVII. Essa capela abandonada pelos antigos senhores de

engenho deve ter ruído e a imagem encontrada no igarapé cem anos depois. Poderia ter

sido abrigada na capela de N. S. das Mercês, em Ribeirão, até que fosse construído o

templo em sua dedicação, previsto para o lugar Laranjeiras e edificado na povoação

Santa Maria, hoje sede do município, mas ficou peregrinando, de fazenda em fazenda,

conduzida pela família do Coronel José Sabino.

D. Catarina Vi eira falava com saudade dessa imagem, exposta na capela

provisória do Padre Zezinho Freitas, edificada no local do marco comemorativo do 1º

Centenário. Dizia ser uma imagem muito bem cuidada e que, quando se entrava na

Capela, parecia ficar sorrindo para as pessoas; mas, depois que a levaram para

restauração em São Luís, parece ter sido substituída, pois não lhe pareceu mais tão linda

e tão misteriosa como antes.

A imagem maior, localizada no nicho central do altarmor, foi trazida de São

Luís pelo Padre Newton Neves no ano de 1923 ou 1924. Veio de trem até Itapecuru-

Mirim, e foi conduzida para cá em procissão. A maioria dos acompanhantes foi espera-

la no povoado Santana, fazenda do Coronel Manoel Tomaz Ferreira Mendonça.

Essa devoção tem, portanto, quase 300 anos e a festa religiosa em homenagem

a N. S. do Rosário, sempre a maior do município, acontecia com as características das

festas de arraial do tempo do Brasil colônia: O largo enfeitado de palmeiras, balões e

bandeirolas, o coreto, sobre o qual a banda de música animava as quermesses, as

barracas com sorteios ou vendas de bebidas e doces.

Durante o governo arquidiocesano de D. José de Medeiros Delgado, houve

muitas modificações na liturgia da Igreja. Uma delas foi à instituição das missas

vespertinas pelo Papa Pio XII e recomendadas pelo Arcebispo através da Circular n° 6,

de 03.03.53, imediatamente posta em prática pelo Padre Chiquinho.

Também no ano de 1953 foram proibidas as celebrações de festas religiosas

quando, durante elas, houvesse danças, vendas de bebidas alcoólicas e jogos. No mesmo

ano foi proibida a continuação das festas do Divino Espírito Santo da maneira

tradicional, não podendo bandeiras, reis ou rainhas serem recebidos na igreja.

Como se percebe, toda a cultura anajatubense era arraigada a essas tradições. E

só muitos anos depois essas proibições foram relaxadas e na Carta Pastoral de D.

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Reinaldo Pünder, da Diocese de Coroatá, a cuja subordinação está a Paróquia de

Anajatuba, ficou demonstrada a sua admiração pelas festas do Divino que aqui eram

realizadas, após demonstração que lhe foi feita na Igreja Matriz.

D. Reinaldo elogiou o trabalho do Padre Chiquinho pela "abertura, a sensatez, o

zelo pastoral e amor ao povo, com que conseguiu integrar elementos do folclore

religioso do nosso povo, como pude constatar hoje, na missa de encerramento do

encontro de animadores e da minha visita pastoral, com a belíssima cerimônia da

"imperatriz" e das "caixeiras" celebrando o "Divino", o Espírito Santo, alma da Igreja".

E adiantou: "Teremos que comunicar estas coisas aos outros padres".

Assim, durante os últimos quarenta anos os festejos se restringem aos cultos

religiosos no interior da igreja. Houve uma tentativa de reavivar essa festa na forma

tradicional, graças ao interesse do poeta e musicista Raimundo Nonato Mendes Dutra -

inclusive com a instituição do show "Canta Anajatuba", que oferece um espetáculo de

música popular com a revelação dos valores da comunidade -, mas a igreja posicionou-

se contra essa iniciativa e o espetáculo passou a ser realizado em outras praças durante o

mês de julho.

No povoado Rosarinho, há alguns anos, os dois filhos de Bento Rego, caçando

pelo mato das redondezas, ao pé do morro, viram uma imagem muito bonita sobre um

tapicuem.

Tapicuem é um monte de terra construído pelos pirilampos ou vagalumes, para

lhes servir de abrigo e que, à noite, fica todo claro com a luminosidade desses insetos: O

primeiro que avistou chamou o irmão para ver a imagem, mas quando apontou na sua

direção, a imagem desapareceu.

Durante muitos anos as pessoas iam ali pagar promessas por graças alcançadas

por intermédio da santa do tapicuem e o então vereador Robson Castro Bastos pensou

até em construir uma capela no local. Depois, não mais pertencendo à igreja católica,

Robson dizia que foi arte do demônio.

Manoel Pinto, conhecido por Mané Pinto, contava que, andando muito próximo

ao morro, avistou um oratório com uma imagem muito bonita sobre um quadro de areia

branca que brilhava como prata. Estando sozinho, e com muito medo, marcou o lugar

para visitá-lo no dia seguinte com outras pessoas, mas nunca mais conseguiu encontrá-

lo.

No povoado Caquena, há uma devoção singular ao Santo Antonio do Buraco. D.

Heloísa, avó da Professora Tomásia, encontrou uma imagem de Santo Antônio em um

buraco existente no tronco de uma árvore, o que deixou os moradores do lugar

abismados, uma vez que a árvore estava situada em local por onde muitos transitavam e

ninguém havia percebido qualquer cavidade no tronco. A cavidade, entretanto, parecia

muito antiga, pois já se estava revestida de musgo.

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A notícia correu e todos passaram a visitar Santo Antonio do Buraco, a quem

dirigiam preces, ofereciam novenas e faziam promessas. Com o decorrer dos anos foi

aumentando o número das novenas, sempre em agradecimento de graças que teriam

sido alcançadas por intermédio do santo.

No local onde estava a árvore, que já não existe, um devoto mandou construir

uma capelinha de taipa, hoje em ruínas, mas como a imagem original desaparecera,

trouxe outra para substituí-la e que se encontra em poder dos descendentes de D.

Heloísa aguardando a reconstrução do templo.

A devoção ainda continua, mas, embora haja ali uma imagem de Santo Antônio,

os devotos dirigem suas preces através da imagem desaparecida. No local onde estava a

árvore existem algumas cruzes que foram colocadas por devotos que, dessa maneira,

manifestaram seus agradecimentos por graças alcançadas.

A tradição de mais de cem anos é mantida ainda hoje pela família da Profª Tomásia e

os festejos são realizados no mês de julho.

FESTEJOS TRADICIONAIS

A mais antiga notícia acerca da festa de Nossa Senhora do Livramento vem a

partir de quando era realizada por Brígida Moreira, que recebera a imagem como bem

de família, no local onde hoje funciona o Cartório Único da Comarca. Não havia capela

e as ladainhas eram rezadas em casa. Por volta do ano de 1952, Mário Marinho

Rodrigues, filho do ex-prefeito Saul Bogéa Rodrigues, instalou ali uma pequena usina

de pilar arroz que denominou "Usina Nossa Senhora do Livramento" por causa da

tradição dos festejos.

Após a morte de Brígida, Estefânio Moreira continuou a celebrar a festa até a

morte, sendo substituído por Paulo Pereira que morava defronte. Hoje continua, no

bairro São Raimundo, e as novenas são realizadas na residência do falecido Wilson

Pereira, onde se encontra a imagem tradicional.

Próximo ao povoado Afoga, no início do século XX, os populares foram

surpreendidos com um ruído estranho, parecido com gemido humano, emitido por uma

árvore em determinadas horas do dia. Certamente, a junção de dois galhos

impulsionados pelos ventos, provocava esse ruído, mas a crendice popular o identificou

como originário de algum ser sobrenatural que pedia ajuda. Criou-se então a lenda do

"toco gemedor", que levou muitas pessoas a rezar novenas em sua homenagem e

assegurar o recebimento de benefícios divinos por seu intermédio.

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A devoção, hoje extinta, constava, como todas as outras, de um tríduo ou de uma

novena de Nossa Senhora e de mais alguns benditos em honra do santo homenageado,

havendo quermesses e leilões, sendo encerrado com uma procissão.

Outro festejo tradicional é em honra a Nossa Senhora do Carmo, no povoado

Muído, cuja origem se perde no tempo. Dizem os mais velhos que a imagem, em estilo

barroco, teria sido encontrada no campo e que portava uma coroa de prata. O povoado

possui um cemitério muito antigo à beira do campo, tendo a sua capela em homenagem

à santa e sendo os festejos encerrados no dia 27 de novembro de cada ano, atraindo

muitos devotos deste e dos municípios vizinhos.

Quando assumiu a chefia da paróquia, o Padre Chiquinho fez o levantamento

dos bens pertencentes à capela, que se constituíam, entre outros, de muitas joias, alfaias

e objetos religiosos. A família Marinho é a responsável pelos festejos, incumbência que

vem sendo transmitida de geração a geração.

Muitas outras festas religiosas de origem secular desapareceram,

principalmente pela extinção das famílias encarregadas. Entre elas, destacam-se as de

Cristo Rei e São José do Desterro, no povoado Porto das Gabarras.

Não havia imagens em escultura como as demais. Os louvores a Cristo Rei

eram dirigidos através de um quadro em cor esverdeada que ainda hoje se encontra no

povoado Afoga, sob a custódia de uma das famílias tradicionais, dada a extinção de

Gabarras. O quadro da imagem de São José do Desterro foi conduzido durante uma

passeata por ocasião do aniversário de emancipação política do município, em 1994.

Porto das Gabarras era a mais importante povoação do interior do município de

Anajatuba. Foi sede de um distrito e, ainda hoje, os mapas do Estado do Maranhão a

mostram como a mais importante vila de Anajatuba, embora haja desaparecido há

muitos anos. Localizada em frente à baia de São Marcos, era um importante porto de

embarque de gado, feito em embarcações de dois andares denominadas gabarras ou

gambarras. Era grande o movimento de barcos, igarités, lanchas e canoas. Sua

localização estratégica foi utilizada e disputada por brasileiros e portugueses durante a

Guerra da Independência que ocorreu devido à relutância do governo do Maranhão em

reconhecer a autoridade de D. Pedro I, quando coroado Imperador do Brasil em 1822. O

Maranhão só aderiu à independência no dia 28 de julho de 1823.

O Porto das Gabarras dispunha de um comércio florescente até a primeira

metade do século XX, com muitas casas comerciais que vendiam tecidos. Os principais

comerciantes da época eram Parsondas da Costa Mendes, que foi Vereador e Bidico.

Além do arroz e da farinha, eram comercializados o peixe seco e a crina de cavalo Com

o surgimento das rodovias e a dificuldade de acesso, a sua importância decaiu hoje não

possui uma única casa.

O cantor Gabriel Melônio emocionou-se quando visitou o lugar no ano de 1999 e

encontrou os escombros da casa onde nasceu.

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A FESTA DE SÃO BENEDITO

Primeiro de janeiro. Estouro de foguetes e ronqueiras se misturam ao som de

tambores em rítimo africano ao norte da cidade, anunciando o início da festa de São

Benedito nos terrenos dos Botinha.

A multidão caminha ao lado do mastro enfeitado de murtas e flores nativas,

seguindo pelas ruas ao som de um pequeno conjunto musical liderado pelo saxofone de

Domingos Botinha.

É também a hora do "donativo", tradição que se repete há mais de trezentos anos.

No largo enfeitado de bandeirolas e palmeiras, as barracas se espalham ao lado das

bancas de doces, chocolate e café. Quando o cortejo alcança o bairro, sob os aplausos

elirantes da multidão, o mastro encimado por uma bandeira vermelha é fincado em

frente à capela para anunciar o início dos festejos.

Ao lado da capela está a "tribuna", um salão amplo onde se realizam as

cerimônias rituais em homenagem à princesa e aos mordomos, sempre descendentes da

família Verde, escolhidos para o ano seguinte ao final de cada festa.

Em frente à "tribuna" estão as "joias" do leilão: cupuaçu, frangos, coco babaçu,

coco da praia, bananas, jacas, jurarás*, uma infinidade de outras coisas, incluindo os

"segredos", pequenos invólucros feitos de folha de pindoba que tanto podem conter um

passarinho como uma troíra*.

-Quanto me dão por esta melancia?

E as ofertas vão se elevando até que o preço oferecido não seja coberto por

ninguém.

-Procuro, caço e não acho; quem mais dera mais tomara. Dou-lhe uma, dou-lhe

duas, dou-lhe três e uma pequenina em cima.

Seu Heráclito arrematou a prenda. E o leilão continua até que se esgotem todas as

joias que serão substituídas por outras na noite seguinte.

É a hora da reza. Como há trezentos anos, a ladainha de Nossa Senhora é cantada

em latim, acompanhada pelos instrumentos musicais: um saxofone, um clarinete e um

banjo. Já pouco resta do latim de outrora, mas todos cantam com respeito: os homens

com o chapéu na mão e as mulheres com a cabeça coberta.

No largo da festa os tambores estão sendo aquecidos ao fogo, aguardando o

término da ladainha para dar início à dança de São Benedito. Hoje é o dia do pagamento

da promessa de D. Eugênia e amanhã será a vez da de D. Prisca.

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A madrinha da festa sai da capelinha com a imagem de São Benedito, uma

escultura barroca talhada em madeira, coloca-a sobre a cabeça e ensaia os primeiros

passos da dança antiga ao som dos atabaques. É o início da festa negra que se

prolongará até alta madrugada, com os homens se revezando para receberem a "punga",

vez por outra animados por um gole de cachaça, distribuída numa bacia esmaltada, com

uma folha de laranjeira e uma xícara comum com que o dono da festa homenageia os

brincantes e convidados, sendo uma grosseria recusar o gole que, por deferência, lhe for

por ele oferecido. Na "tribuna", o baile se prolongará até ao raiar do dia.

Policiando o largo para conter os excessos, cada membro da família é um

defensor de suas tradições. Todos sabem que, de pai para filho, essa festa atravessou

cerca de três séculos sem que jamais alguém perturbasse a sua paz.

Seu Domingos Vieira vai contando aqui e ali as histórias antigas e recordando os

bons tempos em que as jaçanãs azuis e os socós eram abundantes e lamentando as

caçadas fora de tempo que vêm pouco a pouco dizimando essas aves sem que ninguém

se preocupe com a tragédia. Acabaram-se até os enxertos. Quantos pés de caju com

parte das frutas em cor amarela e parte em cor vermelha ele fizera florir; quantos pés de

laranja lima ligados ao tronco de laranjas da Bahia ele espalhara pelo seu quintal...

Agora ninguém mais liga para essas coisas que fizeram desta terra um lugar farto.

Agora não se ouvem mais, em São Luís, os gritos dos pregoeiros anunciando: "Laranja

doce de Anajatuba, quem vai querer?".

E entre uma prosa e outra ele conta o porquê dos festejos que começam

realmente em dezembro, com o almoço de São Lázaro, para o qual são convidados

todos os cachorros da redondeza.

Seus ancestrais eram escravos. Há cerca de três séculos, a lepra era tão terrível

quanto constante e afligia pessoas das famílias mais importantes do lugar. Misturar

peixe com carne de porco era um dos meios de contrair a doença, ouvira dizer.

Quando um dos filhos do senhor foi acometido de hanseníase, foi designada uma

de suas escravas para cuidar do doente, pois nenhum membro da família queria correr o

risco de Contaminar-se. E a escrava Ana tratou do moço até a sua morte, atando-lhe as

feridas que lhe deformavam as mãos e faziam cair-lhe os dedos, dando-lhe um aspecto

aterrador. Pela graça de Deus e pelas suas orações a São Lázaro, não contraiu a doença.

Anos mais tarde, outro membro da família foi também vítima da doença terrível

e a negra Damiana, filha de Ana, foi designada para cuidar do branco doente. Foi então

que Ana fez a promessa de fazer a festa de São Lázaro enquanto vivesse, sempre

terminando com o tambor de São Benedito, costume que transferiu à sua descendência

que, por tradição, passou a cuidar dos leprosos surgidos na vila sem jamais uma delas

contrair o mal.

-E a festa de São Benedito, seu Domingos?

-Ah! Isso foi no tempo da pegação.

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E seu Domingos contava que, para combater os balaios, as pessoas eram

caçadas como animais, algemadas e conduzidas para Itapecuru, de onde eram mandadas

para a frente de batalha.

Foi nessa época que apanharam Ciriaco e Prisco, a mando do Coronel Marins.

A família ficou aflita, pois jamais alguém voltara dessa guerra a não ser desertando.

Contava que os dois seguiram a pé, algemados um ao outro, acompanhando os soldados

a cavalo.

Então Ciriaco teve a idéia de jogar terra nos olhos dos condutores, num

momento em que os outrostomavam banho e só dois estavam de guarda. Correram

emparelhados pela mata durante três noites, até alcançarem a vila. Sabedores de uma

desavença que havia entre o Coronel Marins e o Coronel Coqueiro foi na fazenda do

último que se refugiaram, na Boca do Caminho. E quando o Coronel Marins mandou

buscar os negros fugitivos, o fazendeiro mandou dizer que ele fosse busca- los, mas só

os levaria passando sobre o seu cadáver. O Coronel Marins duvidou e foi recebido a

bala pelo Cel. Coqueiro e seus empregados.

Teria sido nessa ocasião que a mãe de Prisco prometeu a São Benedito realizar

uma festa só em sua homenagem, se os filhos fossem libertados, repetindo a tradição

dos negros nas senzalas. Assim, a festa tricentenária foi reformulada e se repete com a

mesma singeleza antiga.

Muitas coisas mudaram, todavia, permanece a tradição acompanhado por uma

multidão e culmina com o tambor de São Benedito. O dia maior é o dia 5 de janeiro,

quando é celebrada a missa solene, realizados os batizados e a procissão. Mas no dia 6

de janeiro, os encarregados escolhem e transmitem a responsabilidade para os do ano

seguinte em uma cerimônia muito bonita, quando a princesa, ou madrinha, desfila no

bairro com suas vestes reais e recepciona os convidados com um banquete.

O BODE DE PALETÓ

O povoado Peri-Mirim fica localizado ao final da estrada que vai para São Pedro.

São famosas as suas galinhas caipiras, avantajadas, bem poedeiras, que mais se

parecem, em estatura, com as da raça New Hampshire.

Próximo ao casario está o lago do Assutinga, que abastece os municípios

vizinhos e a capital com a sua produção de peixes. Dificilmente o lago seca. Uma das

vezes que isso aconteceu, no ano de 1855, ficou apenas um poção de aproximadamente

um metro de diâmetro e pouco mais de um palmo de fundura. A estiagem fazia o gado

morrer à míngua, quando não eram mortos pelos puraqués, ou enguias elétricas,

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escondidos em suas locas, onde as reses procuravam água. Os próprios moradores já se

valiam de suas criações domésticas para sobreviver.

Um grupo de pescadores, após infrutíferas tentativas de cavar o poção para,

com o aumento da água, dar ensejo ao surgimento de peixes, abandonou a empreita. Um

deles, Antônio José Lopes, por curiosidade, enfiou a vara de empurrar canoa no centro

do poção, até cerca de dois metros de profundidade. Ouviu-se então um ruído rouco e

um jato d'água jorrou com força, elevando-se até dois metros de altura, enquanto jejus,

traíras e carambanjas* se espalhavam à volta para alegria de todos.

Não faltou mais peixe naquele verão.

No meio da alegria geral, somente o velho Bonifácio resmungava, como se o

ocorrido, ao invés de uma bênção, fosse uma maldição. Era um homem intratável,

briguento, disposto a falar mal das pessoas, principalmente dos vizinhos, com os quais

não se comunicava. Mas se alguém também alterava a voz em represália, ele logo fugia.

Certas noites escuras ele desaparecia e ninguém dava conta de seu paradeiro.

Em muitas noites sem lua, corria a notícia do aparecimento de um bode vestido

de paletó nas imediações do povoado; e quando alguém se dispunha a ir-lhe ao

encontro, o animal corria para o campo, na direção do lago.

O estranho bode visto por poucas pessoas, mas cuja aparição era comentada por

muitos, permanecia às escondidas, fugindo quando alguém o ameaçava.

O episódio dos peixes impressionou de tal forma o velho Bonifácio que, dias

depois, ele abandonou a casa e o povoado e nunca mais foi visto. O bode de paletó

também não voltou a assombrar a população do povoado Peri-Mirirn.

Muitos anos depois, voltou a aparecer um bode atacando a população dos

povoados Camboa, Peri-Mirim, Lindosa, Flores e Sapucaia. Desconfiavam de um dos

moradores de Lindosa, cujo nome omitimos em respeito aos seus descendentes. O

comerciante Antônio Lima era um dos mais perseguidos e as pessoas já evitavam viajar

antes da saída da lua para escapar à fúria do animal, principalmente quando sabiam da

presença daquele morador pelas redondezas.

Certa vez, uma pessoa que costumava andar por aqueles povoados, encontrou o

cidadão sentado à beira do caminho.

Aproximou-se e perguntou-lhe se era verdade o que diziam a seu respeito. O homem

disse que era mentira o que afirmavam; a pessoa ameaçou-o dizendo que gostaria que

ele o atacasse naquela noite para dar-lhe uma lição e o pobre homem terminou dizendo

que o deixasse em paz para que ele cumprisse a sua penitência.

No ano de 1966 o bode passou a atacar as pessoas de Entre-Ilhas. Um grupo de

moradores resolveu tomar desforra, aguardando o animal numa barreira funda entre

duas cercas de roça, onde seria difícil escapar-lhes. O bode apareceu naquela noite e lhe

aplicaram muitas pauladas, fazendo-o embrenhar-se no mato para fugir dos seus

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perseguidores. Na manhã seguinte o morador apareceu morto na beira da estrada. E

nunca mais tiveram notícia do bode.

A REGIÃO DO MOREIRA

A magia dos campos de Anajatuba se revela em toda a sua extensão. Para

deparar-se com os seus mistérios é necessário que se esteja no local do encantamento na

hora certa e a sensibilidade da pessoa esteja harmonizada com os poderes sobrenaturais.

Assim, certas manifestações podem ser presencia- das por alguns e não o sejam por

outros do mesmo grupo.

Seus mistérios são bem guardados, razão por que certos locais são de difícil

acesso. Há ilhas que, no verão ou no inverno, obrigam os visitantes a um esforço e

persistência grandes para serem alcança das. A vegetação abundante que as cerca,

dificulta o ancoramento das canoas no inverno, ou a espessura da camada morta de

vegetais em decomposição, impede o caminhar de pessoas ou animais durante o verão.

Os meios de transporte mais comuns são a canoa ou o cocho*, impulsionados

por varas, rasgando o junco em aberturas às vezes formadas em curvas sinuosas,

aumentando o percurso.

No verão, muitas ilhas já podem ser alcançadas por veículos automotores, no

curto período que vai de outubro até o início das chuvas, em dezembro ou janeiro,

quando a lama tiver secado completamente.

Para o sudeste, buscando os limites com o município de Arari, além de Entre-

Ilhas, de Morcego e do Raposo, está a região do Moreira e do Lacre, lugares

privilegiados para a criação de gado vacum, onde a suinocultura também se desenvolve

em Culturas extensivas. Por ser lugar de fácil alagamento, não serve para a criação de

ovelhas ou bodes, animais que preferem lugares altos e secos.

Era, portanto, uma região pouco habitada, devido às dificuldades de acesso. Ali

residia Joaquim Sotero Mendes, conhecido por Joaquim de Agnelo - devido à tradição

anajatubense de ligar os nomes das pessoas aos nomes dos pais - e, até a Sua morte,

residiu na sede, guardando suas lembranças daquele lugar outrora ermo e cheio de

mistérios.

O povo do campo é religioso. Católico à sua maneira. Dificilmente um padre

chega até aquela região para celebrar missa, porque não existem capelas, mas as

famílias costumam realizar suas novenas à Virgem Maria, a que chamamos de rezas. E,

embora as moradas fiquem distantes umas das outras, todos atendem ao convite dos

donos da casa onde se realizam as ladainhas, sempre à noite.

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Eles vêm de longe, a pé ou a cavalo, sozinhos ou em grupos e, após o culto, lhes

é servido um cafezinho simples, antigamente torrado em casa com açúcar mascavo,

açúcar bruto como era denominado, que o deixava um pouco grosso.

Era nessas ocasiões que eles se reuniam no terreiro em frente à casa, sentados

em troncos de jussareiras que eram colocados à guisa de bancos, ou nos "mochos",

assentos simples e sem encosto. Falavam quase sempre de gado, dos lugares distantes

onde encontraram a rês que estava perdida, das previsões de chuvas ditadas pelo canto

de certos pássaros, das notícias antigas que foram comentadas na vila.

Foi no ano de 1960, aproximadamente, que a esposa de Biné, para pagar uma

promessa, promoveu urna novena a Nossa Senhora do Rosário. Durante as nove noites

os moradores da região ali compareceram, levando suas lamparinas a querosene para a

viagem de volta, pois eram poucas as pessoas que podiam comprar uma lanterna.

José da Conceição, filho de Joaquim de Agnelo, costumava ir às ladainhas, e

dirigiu-se apressado para a casa do amigo, pois a noite já estava chegando. Logo após

atravessar os limites do quintal, encontrou um cavalo pastando, amarrado pelo cabresto.

Não conhecia o animal, mas como estava amarrado próximo à casa, imaginou que

poderia ser da entrega de algum dos seus irmãos.

Para encurtar o caminho, montou o animal em pêlo e dirigiu-se ao local da reza.

Durante todo o trajeto, foi seguido pelo balido de um carneiro, animal inexistente na

região. Além disso, nada lhe pareceu anormal, senão, no dia seguinte, o

desaparecimento e a falta de informações acerca do animal que montara naquela noite.

Além das ladainhas, os dias de reza pelas pessoas mortas constituíam outra

ocasião de encontro dos moradores. O costume dos sete dias de orações pelo falecido

ainda existe. São sempre realizadas às seis horas da tarde e constam do Ofício de Nossa

Senhora, Ladainha de Todos os Santos e recitação do terço.

Quando Benedito de Choco morreu, no Raposo, os moradores do Lacre

compareceram às rezas durante as sete noites. Os homens às vezes não podiam ir, pois a

lida do campo podia entrar pela noite, mas as mulheres não costumavam faltar a esses

encontros.

Durante as sete noites, Dona Edith que era a esposa de Joaquim de Agnelo viu o

morto por quem rezavam vestido de azul, acompanhando as orações perto da janela.

Contava Dona Edith que desviava o olhar da janela para ter certeza de não ser

impressão sua, mas quando olhava novamente ali estava ele, contrito, acompanhando as

orações.

Só contou aos outros no fim dos sete dias, constatando então que ninguém o

havia visto.

Os irmãos Mendes - Moreno e Ribinha - estavam certo dia, caçando carâo,

quando começaram a sentir catinga de bode animal que também não existia na região,

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razão de resolverem voltar para casa. Ao tomarem o caminho, ouviram um assobio fino

e longo perto deles, ruído que os acompanhou durante os cinco quilômetros da

caminhada.

Focavam a lanterna e o assobio passava a ser ouvido pelo outro lado. Focavam

quando o assobio era em frente e imediatamente passava a ser ouvido por trás.

Chegando a uma clareira, resolveram parar. Acocorados, fizeram cigarros e

novamente ouviram aquele assobio longo e fino como se fosse vindo do além. Moreno

então resolveu falar:

- Tu que andas vagando, procura Deus para te perdoar, se mereceres. Nós não

podemos te perdoar. Deixa-nos em paz, deixa de nos acompanhar.

Segundo Moreno Mendes, o assobio não mais os acompanhou, mas eles

continuaram a ouvi-lo até quando chegaram à cidade, como se continuasse a ser emitido

no lugar onde estiveram parados.

No Lacre, também região do Moreira, havia um lugar onde se ouvia batidas de

tambor, conversas, cantorias e barulho de quebradeiras de coco. O lugar ficou

conhecido como "Capoeira da Confusão" e muita gente correu dali assombrada com o

que acontecia.

Um homem conhecido por Zezé resolveu fazer uma casa ao lado dessa

capoeira, no fundo da enseada, mas não pôde morar ali. Dizem que ele ficou louco

dentro da casa, ouvindo vozes e vendo vultos.

Um dia, um de seus amigos foi devolver-lhe um ferro de marcar bois que lhe

fora emprestado e o encontrou em cima da parede amedrontado com o que estava

ouvindo. Contou-lhe não ter conseguido dormir durante a noite.

Antes que completasse um mês, abandonou a casa, pois um curandeiro explicou-lhe que

ali era caminho de Mãe D'água e que toda enseada de campo é lugar encantado.

Peri

Quando criaram a Colônia do Bonfim, defronte da ilha de São Luís, os leprosos

que fugiram para escapar à fiscalização da Saúde Pública, abrigaram-se nos campos. Ali

construíram as suas cabanas, longe dos olhares curiosos, e andavam em bandos,

consolando-se mutuamente na sua desgraça.

Eram restos humanos; corpos apodrecidos, vítimas de uma doença terrível, cuja

cura, naquele tempo, era considerada impossível.

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Acostumei-me a vê-los em grupos; montados em seus cavalos, permanecendo no

meio das ruas, de onde conversavam animadamente com as pessoas. A comida, as

esmolas ou os mantimentos lhes eram entregues através de pequenas varas, para evitar o

contato. Contava-se que alguns, revoltados com sua situação, procuravam contaminar as

outras pessoas, puxando-as para si quando deles se aproximavam.

Com o tempo verifiquei que isso não era verdade e, embora suas figuras

mutiladas me causassem pavor, costumava ficar muito tempo ouvindo as suas conversas

alegres com as pessoas adultas, como se nada de mau se houvesse abatido sobre eles.

A maioria deles não tinha mais os dedos das mãos e dos pés e as extremidades

desses membros eram horrorosas. Talvez essa deformação fosse acentuada pela sua vida

errante, constantemente montados a cavalo, com os pés enfiados nos estribos das selas

e as mãos sustentando as rédeas do animal e o chicote. Ao lado da sela, na garupa ou

pendurados nas cangalhas*, os cofos de pindoba abrigavam seus pertences.

Minha cidade era considerada a terra dos leprosos e, embora eles não morassem

ali, eu sabia que muitos se abrigavam nos campos, em cabanas miseráveis, sempre

errantes, temendo que a polícia os obrigasse ao confinamento do leprosário. Por esse

motivo, quando viajávamos pelo campo, encontrávamos muitas cabanas abandonadas,

de onde ninguém se aproximava porque haviam pertencido a esses irmãos infelizes.

Eu me lembro de uma grande concentração desses pobres homens quando eu era

menino. Era a primeira vez que ouvira falar da visita de um príncipe da igreja católica à

minha terra. E D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, com seu séquito de sacerdotes,

fizera alguns casamentos entre eles.

D. Carlos muitas vezes se referiu a esse evento e, tenho certeza, durante a sua

maturidade em Aparecida do Norte, quando era o mais velho dos Cardeais brasileiros,

lembrava-se desse acontecimento insólito. Fê-los sentirem-se pessoas capazes de

sentimentos nobres, abrigos da grande alma divina em cujos corações também o amor

morava.

E eu os conheci como almas que amavam; pessoas extraordinárias que

conseguiam sorrir e contar coisas alegres no meio de tanta desgraça. Vi-os muitas vezes

prevenir os incautos acerca de sua doença, para que não se aproximassem demais, como

ouvi também histórias de mulheres que por eles se apaixonavam e que suportavam, sem

um sinal de dor, que lhes enfiassem agulhas e alfinetes no corpo para que, julgadas

também acometidas do mal, tivessem licença para com eles casarem.

Dentre esses pobres doentes lembro-me, principalmente, de dois: Anísio e Peri.

Anísio era bem moreno; quase preto. A sua doença dera- lhe um aspecto terrível.

Suas mãos perderam todos os dedos e eram apenas palmas feridas. Seus pés inchados

eram enormes e viviam envoltos em panos, através dos quais adivinhavam- se os

ferimentos existentes pelas manchas do plasma que escorria e umedecia esses trapos.

Suas feições eram grosseiras, pois a doença engrossara-lhe a pele.

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Anísio vivia montado em um cavalo alazão, roupa de brim azul de mangas

compridas e era calado e triste. Tratava-me com uma certa ternura e até já havia uma

cuia atrás da porta para dar-lhe água, despejando-a em uma lata que ele mesmo estendia

com bastante cuidado, para que eu não tocasse em nada seu. Seu aspecto me inspirava

mais compaixão do que terror, embora, como as demais crianças, utilizasse seu nome

como insulto dirigido aos meus desafetos.

O outro era Peri. Qual o maranhense de minha geração que não ouviu falar dele?

Peri Gomes Feio, o insigne poeta de "Cortina Azul" e "Poemas de Miquita".

Diziam-no rosariense e eu, que nunca pesquisei sua vida, às vezes me pergunto

se não era anajatubense, como muitas vezes ele mesmo afirmou. Penso que essa

naturalidade que lhe é atribuída deva-se ao fato de Anajatuba ter seu território em parte

desmembrado do município de Rosário, ao qual foi anexado durante certo período ao

perder a sua independência política ao longo de sua história. A verdade é que eu o via

constantemente na minha vila.

Peri era bem diferente de Anísio. Branco, extremamente magro, sua doença

parecia de outro tipo, pois, pelo menos durante o tempo que o conheci, jamais descobri

em suas mãos ou pés qualquer sinal parecido com os ferimentos e deformações que eu

via nos outros. Também naquela época e com a minha idade, eu era incapaz de perceber

alguma alteração ou atrofia nos seus membros.

Possuía uma dentadura bem alva, talvez postiça, sempre aberta num sorriso.

Nunca o vi triste nem aborrecido embora suas poesias demonstrassem um espírito

aniquilado pelo sofrimento. Muitos de seus poemas eram escritos no couro da sela de

sua montaria ou eram ditados. Escrevi-lhe alguns que me ditou, mas na minha meninice

não lhes dava valor nem sabia agrupa-los em versos. Só muitos anos depois, em seu

livro "Cortina Azul" descobri a beleza de um deles, ao reconhecer dois tercetos de um

soneto que, a seu pedido, copiei certa vez:

"Bem sei que não me amaste, mas eu juro

Que te amei com fervor, ardentemente,

Amor sincero, verdadeiro e puro.

E em paga desse amor, só me tens dado

A injusta que me torna ultimamente

Mais infeliz, mais triste e desgraçado."

Marcos Dutra Mendonça, de saudosa memória, declamava um soneto que Peri

escrevera no couro de uma sela, mas nem \'{1aldemar nem Ivone conseguem lembrar-se

daquela jóia de sentimentos que Peri escreveu e não foi publicada em nenhum de seus

livros. Eu o encontrei algumas vezes no campo; sempre alegre e montado em seu cavalo

branco; sua personalidade se tornou lendária na minha terra, acostumada como foi à sua

presença constante.

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Retomando a visita de D. Carlos Carmelo, por quem fui crismado, tendo como

padrinho Agostinho Sanches, pai de minha primeira professora, D. Agostinha, essa

visita pastoral descobriu o que havia de grandioso nesses homens sofridos e

marginalizados. Eles eram pessoas como os demais. Amavam e eram amados. E Peri,

com sua linguagem poética e seu magnetismo pessoal, atraia maiores atenções. Muitas o

amavam sem receio outras descobriam até com horror que esse sentimento nascia em

seus corações.

Mas uma havia casada com João Macaco, que não se casou ante o receio da

doença e fugiu certa noite com o seu amado, na garupa de seu cavalo branco, talvez

num raio da própria lua, como diria Vinicius de Moraes, e foi até a morte do poeta sua

musa inspiradora.

Os leprosos desapareceram; o poeta se foi; mas a sua lembrança permanece no

campo e na cidade onde ele viveu, nos lugares que ele enfeitiçou com o seu sorriso e

para onde ele chamou todos os deuses e todas as musas para que despertassem

sentimentos belos que inspirassem poemas e invocassem a paz.

E é por isso que ele volta ainda, nas noites de lua cheia, galopando o seu cavalo

branco, em busca de sua amada, cantando em versos a beleza do lugar ao qual D.

Mariinha Dutra Mendes, na festa do primeiro centenário de nossa independência

política, denominou de "pérola encravada na esmeralda dos campos".

Se algum dia, amigo, estiveres ali em noite de lua, guarda silêncio na

contemplação das estrelas que ele conhecia tão bem, e poderás vê-lo montado em seu

cavalo branco, surgindo talvez do céu, cavalgando em direção ao campo onde viveu,

sofreu, sonhou e encantou com a beleza de suas criações.

UMA AFRONTA À NOSSA HISTÓRIA

A tarde quente, em pleno setembro, no meio das capoeiras e na orla dos campos

que formam a Baixada Maranhense, era um desafio para o viajante que já percorrera

algumas léguas em busca de sua cidade natal de onde saíra a cerca de 40 anos atrás, mas

que permanecera presente em sua memória. Já ultrapassara os 70 anos de idade, quase

todos na dura vida de vaqueiro e durante os quais amealhara alguns recursos

representados por centenas de cabeças de gado recentemente vendidas, cujo produto

depositara em um Banco e seriam aplicados na compra de uma pequena propriedade à

beira do campo de Anajatuba, onde planejava viver seus últimos dias.

Isaura, sua companheira, havia morrido um ano atrás e os três filhos, já adultos,

haviam partido para outros Estados e já não dependiam de sua ajuda financeira.

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Sozinho, não lhe restava senão a alternativa de buscar a companhia de familiares

distantes e dos amigos também em avançada idade que deixara na sua terra.

Procurou a sombra de um crivirizeiro para descansar a montaria, comer do balaio

que conduzia no alforje e tirar uma Soneca na rede que sempre conduzia em sua maca

de viagem. Apenas alguns minutos de repouso após a refeição humilde, se- riam

bastante para recuperar as energias e continuar a viagem.

E o crivirizeiro, árvore quase sagrada dos campos da baixada, fazia-o recordar a

infância distante, vivida no sítio de seu pai no povoado Santa Rosa, a poucos

quilômetros da Vila de Santa Maria que, embora já com foros de cidade, continuava a

ser assim designada pelos mais velhos.

Dissera-lhe o Padre Chiquinho que o crivirizeiro estava para a baixada

maranhense como o juazeiro para o sertão do Cariri, porque ambos permanecem sempre

verdes mesmo nas mais rigorosas estiagens. É, portanto, a árvore sagrada dos campos.

Ao recordar a figura do Padre fora tomado de intensa tristeza, pois havia sido

informado de sua morte em acidente ocorrido em São Luís. A última vez que o vira já

fazia muitos anos, em visita rápida que fizera à sua cidade, e ele o recebera alegre e

ativo como sempre, contando os seus projetos para o futuro. Projetos simples como a

expansão da Escola Paroquial e do seu Jardim da Infância, do resgate das tecedoras de

redes, para o que já havia adquirido dois teares, do combate às doenças provoca das pela

água do campo, como a difteria e a barriga d'água.

Os tempos estavam difíceis, dissera-lhe, pois já não contava com a ajuda do

Deputado Afonso Matos, já falecido, que sempre conseguia alguma verba para as suas

obras sociais. Não fora essa ajuda, não teria concluído a construção da Matriz, a qual

não pudera receber os vitrais e o relógio sonhados e cujas janelas foram substituídos por

cobogós.

Quando o Padre Chiquinho morreu, dissera-lhe o informante, houve uma intensa

comoção na cidade que recebeu seu corpo na Rua da Rodagem e o conduziu em

procissão. Mesmo os participantes de outras igrejas foram lhe prestar homenagem

durante o seu velório na Igreja Matriz, a sua obra mais importante e que se transformara

no símbolo e no cartão postal da cidade, embora a Escola Paroquial e o Hospital Padre

Possidônio Monteiro também fossem de muita importância.

A lembrança do Padre Chiquinho o transportava com mais intensidade para a sua

Vila que esperava atingir antes da meia noite. Deixaria para o dia seguinte a sua visita a

igreja para Tocar o manto da imagem de Nossa Senhora do Rosário, à qual a cidade

conservava uma devoção de mais de 200 anos.

Refeitas as suas forças após o breve descanso, selou novamente o seu cavalo

alazão e continuou a viagem em busca de suas recordações. Atravessou o rio Pindaré e,

depois, o Mearim, no lugar Curral da Igreja, município de Arari, à hora da Ave-Maria.

Chegaria com a noite avançada e, mesmo com a lua minguante, seria guiado pela torre

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da Igreja Matriz, há mais de 150 anos encarregada de guiar os vaqueiros e os pescadores

que se aventuravam pelo campo durante a noite.

De repente uma luz azul-clara surgiu poucos metros à sua frente, ofuscando- lhe a

visão e fazendo-o desviar-se da trilha que seguia com dificuldade. A luz se afastou cerca

de cem metros adiante e apagou-se. Em vão o viajante procurou orientar-se e o cavalo

que se empinara começou a caminhar desordenadamente. Não sabendo mais o rumo que

deveria tomar, ergueu os olhos na esperança de divisar a torre da igreja, inutilmente.

A estranha luz reapareceu em outro lugar e veio caminhando em sua direção

apagando-se três metros à sua frente. Um cavaleiro surgiu da escuridão e

cumprimentou-o cordialmente.

- Olá, companheiro! Parece que vem de longe...

- Sim, respondeu, estou viajando desde a madrugada, mas parece que errei o

caminho e ainda não consegui divisar a torre da igreja que deve estar perto.

-Não há mais torre e sim um monte de ruínas.

- Que aconteceu? A igreja foi novamente atingida por um raio?

Não houve resposta e o estranho cavaleiro desapareceu.

Bem mais adiante a luz reacendeu e foi se afastando até desaparecer na

imensidão do campo. O viajante a muito custo conseguiu dominar o cavalo que soltou

um relincho doloroso antes de voltar a obedecer à sua orientação. Os minutos se

transformaram em horas e o viajante não tinha noção do lugar onde se encontrava.

Consultou o relógio e constatou que eram 23 horas.

Após outra espera silenciosa, ouviu gritos de vaqueiros que conduziam uma rês.

Estranhou que isso ocorresse tão tarde.

Mas os vaqueiros vinham em sua direção, guiados por uma lanterna. Ao

aproximarem-se do viajante que já quase chegava ao desespero, um deles exclamou:

- Para onde o amigo está indo nesta hora e numa noite tão escura?

- Vou para a vila, mas não consigo ver a torre da igreja e acho que estou perdido.

- Você está indo em sentido contrário. A vila está ali adiante, às suas costas, mas

a igreja está sendo demolida.

- O que aconteceu?

- A história é complicada e não há tempo para explicar.

Nós vamos seguindo para o Cravo com este garrote que estava perdido junto

com outras reses do Dr. Agostinho. Siga nesta direção e encontrará a cidade. Boa

viagem!

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Os vaqueiros soltaram um aboio e juntaram-se aos outros companheiros,

enquanto o viajante erguendo os olhos na direção indicada divisou as luzes da cidade já

próxima.

Não sabendo como coordenar seus pensamentos, alcançou o largo da Matriz e

constatou que havia apenas algumas no local onde existira a igreja recuperada pelo

Padre Chiquinho.

Tomado de estranha emoção, sentiu as lágrimas caírem e desceu do cavalo,

caminhando silenciosamente. Recordou-se de muitos casamentos de amigos que

presenciara ali e de muitos batizados dos filhos desses amigos. Lembrou-se de que ali

estava sepultado o Padre Chiquinho, o Comendador Rosa e outros cidadãos que não

conhecera.

Ao aproximar-se mais, percebeu que a luz que vira no campo estava ali, sobre os

escombros e começou a aumentar, tornando-se uma bola de fogo com quase um metro

de diâmetro. Percebeu que figuras de homens, mulheres e crianças iam surgindo em

volta, gritando por socorro. Algumas vozes se destacaram.

- O túmulo do Padre está soterrado! Violaram nossas moradas e o castigo haverá

de vir! A imagem peregrina foi desprezada!

O viajante sentiu que as pernas lhe faltavam e experimentou uma espécie de

desmaio. Fechou os olhos, atemorizado e, quando os reabriu, estava sentado junto à

cruz, no meio da praça. A estranha visão desaparecera e apenas uma pequena luz

brilhava adiante. Constatou que vinha de um dos postes no início da Rua Magalhães de

Almeida. Um pedaço de lua ainda brilhava sobre o campo e ele montou o cavalo, deu

nas esporas e dirigiu-se a galope para o hotel de D. Joana, na Rua Regino Rodrigues de

Paula, onde obteve hospedagem, mas permaneceu sem conciliar o sono até que a manhã

surgiu.

O PODER DOS PRIVIEGIADOS

A natureza privilegia algumas pessoas, dotando-as de poderes incomuns. Trata-

se, às vezes, de quem desprezou os talentos com que a graça divina o enriqueceu, quer

por falta de oportunidades, quer por incredulidade. É mais comum o primeiro caso, pois

geralmente são pessoas de pouca instrução e que vivem em estado de pobreza extrema,

os que desenvolvem certos dons.

Esses poderes ou dons livram seus detentores das ciladas de seus inimigos ou

evitam que acontecimentos maus perturbem suas vidas. É o exemplo de Inácio Castelo

Branco, um advogado que morava na Ilha das Almas, no fim do século XIX.

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Certo fazendeiro, indignado por ter perdido uma causa defendida por Castelo

Branco, mandou que um de seus escravos lhe armasse uma tocaia na estrada para matá-

lo, quando de suas várias passagens diárias.

O escravo esperou inutilmente durante todo o dia e, à noite, foi avisar ao patrão

que o advogado não passara. Indagado, o escravo passou a relacionar, uma a uma, as

pessoas que haviam transitado naquela estrada durante o dia. Entre elas estava um

menino que ele não conhecia, usando um chapéu de palha e que o intrigara por ter

passado à sua frente acendendo um charuto sem o menor respeito.

Era Castelo Branco que intuitivamente desconfiou do atentado e se encantara

para não ser reconhecido.

Contam que o Comendador Rosa também foi vítima e escapou de uma

emboscada no caminho da Picada. Cinco vezes ouviu, parado, o estalido do cão de uma

espingarda sobre a espoleta que não disparava. Mandou agarrar o criminoso e

determinou que sumisse de Anajatuba.

O coronel Agripino, importante fazendeiro que morava no Teso, teve uma

contenda com certo Benedito, conhecido por Bibi, e jurou só tirar a barba no dia que

matasse seu contendor. Mas toda vez que se encontravam, ou Bibi estava com uma

criança no bico da sela, fato que respeitava, ou outra circunstância qualquer o impedia

de realizar o seu intento. Morreu barbudo.

Dona Joana Teodolina Sousa, avó do poeta popular Francisco Ludgero Vieira,

tinha o dom de apaziguar. Catarino Antonio de Sousa mandou bater um tambor de São

Bendito no Olho d'Água, onde morava. No meio da festa começou uma briga, durante a

qual alguém quebrou a cabeça de Joaquim com uma cacetada. Antenor Monção, que era

um dos músicos, pulou a cerca para fugir de uma agressão. Catarino fechou a casa e a

confusão tomou conta do lugar, pois Joaquim, violento e muito zangado, ameaçava

todas as pessoas com um facão. Ninguém se atrevia a chegar perto com receio de ser

atingido pela arma.

Dona Joana foi a única com coragem de abordá-lo. Pegou-lhe pelo braço pedindo

calma. Joaquim ainda quis justificar- se dizendo não ter outra coisa a fazer senão brigar

depois do que lhe tinha acontecido. Dona Joana retrucou dizendo que aquilo acontecia

mesmo era com homem e que o melhor era que ele fosse para casa. Para espanto de

todos Joaquim abaixou a cabeça e tomou o caminho de volta.

Assim acontece com muitas pessoas do lugar. Alguns curam bicheiras de animais

à distância, outros conhecem orações para livrar de muitos males, alguns curam doenças

que desafiaram os médicos com um simples chá de ervas nativas ou uma infusão de

sementes e folhas.

São pessoas simples, rezadeiras na maior parte analfabetas, que dizem ter

aprendido certas orações de suas avós e devem encontrar alguém para substituir-Ihes

antes de morrerem. Mas o segredo deve ser guardado por cada uma das pessoas que

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receberem a missão. E, se é missão, não devem receber nenhum pagamento pelo

benefício prestado a quem quer que seja.

Não devem, portanto, serem confundidas com os curadores ou curandeiros que

existem desde o início dos tempos. Alguns autores não cristãos costumam identificar

Jesus Cristo como um dos muitos curandeiros existentes na Palestina no tempo em que

Viveu.

Explorando a ingenuidade do povo, muitas pessoas armam seus terreiros, exigem

pagamentos às vezes absurdos e prometem resultados surpreendentes mediante as suas

invocações a supostas entidades que os assistem.

Com o devido respeito àqueles que se dedicam à prática de ritos de origem afro

e que podem ser dotados de alguns poderes, trataremos a seguir apenas daqueles cujas

histórias são envolvidas por acontecimentos insólitos, testemunhados por pessoas vivas

ou já mortas que transmitiram informações de geração em geração.

CURADORES

Joaquim Antonio

Joaquim Antonio é considerado o mais sábio de todos os curandeiros que viveram

em Anajatuba. Sua atuação era apenas para curar enfermidades e predizer fatos. Sua

fama de médico- do-mato e sua presciência deixavam surpreendidos os mais in-

crédulos. Viajava muito e por isso a sua fama de "capurreiro", como eram denominados

aqueles que tinham esses poderes, era muito difundida.

Certa vez, estando no Rio de Janeiro, foi protagonista de um de seus mais

célebres casos: Havia uma moça rica que vinha sofrendo de um terrível mal no

estômago. Inutilmente os médicos tentaram salvá-la e a família reuniu os mais

conceituados da cidade por volta do ano de 1920, época em que eram poucos os

especialistas, os recursos eram escassos e as crendices marcantes.

Desesperados, os familiares tiveram notícia da presença de um capurreiro de

passagem pelo Rio e essa informação os conduziu a Joaquim Antonio. Apesar da

condenação dos médicos, os pais da moça o levaram à sua casa, onde, ironicamente, o

trataram de "colega", zombando de sua figura ridícula e magra debaixo de um chapéu

de palha.

Joaquim Antonio tomou a mão da moça, estudou-a por alguns minutos e pediu

que todos se retirassem do quarto, ficando somente o pai da enferma. Satisfeita a sua

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vontade, Joaquim Antonio fez várias perguntas e depois de meditar sobre cada resposta,

perguntou se ela manifestara algum desejo especial durante a doença. O pai informou

que ela sempre pedia para comer abacaxi, pedido que sempre fora recusado, haja vista

as febres altas de que estava sempre acometida.

-Pois olhem, disse ele, ela tem um coágulo de sangue no estômago. Se comer o

abacaxi, como deseja, isso se desmanchará, e ela vai ficar curada.

A indicação do curandeiro causou risos de desdém e mofa por parte dos médicos

que o consideraram um idiota. Diziam que comer abacaxi com uma febre daquela era

matar a paciente.

A família concordou com os médicos e agradeceu a visita de Joaquim Antonio.

Este, ao despedir-se, pediu e obteve do pai da moça o compromisso de que, caso ela

morresse, mandaria fazer uma autópsia à qual o curandeiro queria estar presente.

A doente morreu, a família pediu a autópsia e Joaquim Antonio foi chamado para

presenciar. Ao ser aberto o estômago, detectaram a presença de um coágulo bastante

crescido, tal como houvera descrito. Joaquim Antonio pediu uma rodela de abacaxi e

espremeu-a sobre o coágulo que, em alguns instantes, começou a desfazer-se.

Houve então um grande tumulto. De um lado a família da morta que acusava

duramente os médicos de incompetentes e assassinos; de outro, os médicos injuriados

que ameaçavam Joaquim Antonio e o taxavam de charlatão e feiticeiro. Homens de

muita projeção como eram, os médicos conseguiram o apoio da polícia, iniciando-se a

perseguição do curandeiro que, para escapar, fugiu do Rio de Janeiro, vestido de

mulher.

Traumatizado com o acontecimento, Joaquim Antonio findou enlouquecendo.

Antes, porém, vol tando do Rio de Janeiro, a família correu contente a abraçá-lo,

Joaquim Antonio, à chegada da irmã mais moça, recusou-se a cumprimentá-Ia,

empurrando-a com uma das mãos. A mãe, decepcionada, perguntou-lhe porque tratava

assim a sua caçula. Ele voltou-se para a irmã e gritou: "Diz logo quem é o pai de teu

filho".

A essas palavras, seguiu-se um alvoroço entre os presentes que o julgaram louco.

Joaquim Antonio argumentou: "Essa sem-vergonha está grávida há três dias".

Pressionada, a irmã confessou que havia mantido relações sexuais com o

namorado, dias antes. Logo a gravidez foi confirmada.

Certa vez Joaquim Antonio ia passando na Praça Goncalves Dias, em São Luís,

quando cuspiram em seu chapéu. Ao perceber o ocorrido, tirou-o da cabeça e observou

a cusparada.

Olhou para o alto e viu algumas moças sorridentes na sacada. Preocupado, dirigiu-

se à porta do sobrado e tocou a campainha. Ao ser atendido perguntou qual das meninas

da sacada havia cuspido em seu chapéu. Imediatamente as moças surgiram para se

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desculparem, dizendo-lhe não ter sido proposital. Ele, calmamente disse não se tratar de

nenhum aborrecimento, mas a pessoa que cuspira em seu chapéu estava gravemente

enferma e se não fosse tratada imediatamente não teria uma semana de vida.

O ambiente de retratação foi substituído pelo de zombaria, culminando com a

expulsão do curandeiro sob as risadas de todos.

Dois dias depois a moça estava morta.

De outra feita, ele encontrou um homem comendo ananás no mato. Olhou

penalizado e disse aos que o acompanhavam que aquele homem, comendo ananás

àquela hora, iria morrer no mesmo dia. O homem, ao terminar de comer a fruta, pegou

uma bilha com água e bebeu vários goles. Joaquim Antonio então comentou: "Não

morre mais. A água o salvou. Já curou o veneno".

Diziam os antigos que quando Joaquim Antonio previa a morte de alguém,

podiam preparar o funeral. Ele sabia, também quando uma pessoa mordida de cobra iria

procurá-lo, E ficava aguardando em casa para curá-lo.

Manoel dos Santos

O mais célebre curador de cobras de que se tem notícia no município de Anajatuba

foi Manoel dos Santos, cognominado "o gênio das cobras".

Segundo contado pelos mais antigos, ele havia cometido um crime bárbaro: era

casado na Bahia, de onde procedia, e tinha duas filhas. Um dia desconfiou de que estava

sendo traído; matou a mulher e depois as duas filhas "para não deixar raça ruim".

Procurado pela polícia, ernbrenhou-se nas matas, mas caiu prisioneiro de uma

tribo de índios antropófagos, sendo conduzido, conforme o ritual, à presença do chefe.

Este, porém, analisando o prisioneiro, determinou que o poupassem, pois adivinhara

nele qualidades que poderiam ser desenvolvidas a ponto de poder substituí-lo, no futuro,

como chefe da tribo ou pajé.

Manoel dos Santos ficou prisioneiro, na tenda do pajé, por três anos e, durante

esse tempo, contava, o tapete em que pisavam eram cobras. O pajé era um ancião que

lhe ensinou tudo a respeito delas e ele aprendeu a dominá-las, conhecendo todos os seus

segredos e manias, passando a exercer poderes sobre elas.

O cacique era uma espécie de feiticeiro. De idade avançada, sabia fazer

encantamentos e magias, o que lhe valeu o temor dos índios que o reverenciavam como

a um deus. Manoel dos Santos foi seu discípulo dedicado; sabia do porquê de sua

liderança e temia por sua morte que o deixaria desamparado nas mãos dos selvagens.

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Um dia Manoel dos Santos resolveu fugir, o que não foi muito difícil, uma vez

que já era considerado um dos membros da tribo e gozava de certa liberdade. Assim,

quando perceberam a sua fuga, ele já se encontrava a uma légua de distância.

O cacique lançou- lhe um encantamento e a sua fuga foi interrompida por

empecilhos diversos. Prestes a ser recapturado conseguiu fugir outra vez, mas foi

novamente retido pelos poderes do pajé. Antes, porém que os seus perseguidores o

alcançassem, conseguiu empreender nova fuga e ultrapassou o limite dos poderes de seu

mestre.

Não se sabe como nem porque Manoel dos Santos surgiu em Anajatuba. Pobre e

humilde lavrava as terras de Manoel Thornaz Ferreira Mendonça, o Maniquinho Velho,

que possuía um engenho de cana na Boca do Caminho. Andava com uma cascavel

dentro de um cofio para todo lado que ia. Afirmava que se uma pessoa mordida de

cobra lembrasse de seu nome, não correria perigo de vida.

Certa vez foi chamado ao Sipaú por um criador de gado que vinha sofrendo

muitos prejuízos com reses mortas por pica- da de cobras. Ao chegar à fazenda, Manoel

dos Santos assobiou e, logo após, chegaram três cascavéis no terreiro. Ele olhou os

répteis e disse que duas delas nunca haviam mordido gado. Assobiou e mandou-as

embora. A terceira, ele disse ser a responsável pela morte de algumas reses. Se

quisessem fazer alguma coisa com ela, fizessem, mas não por sua ordem. E saiu

imediatamente para não presenciar a execução da cascavel.

Uma senhora muito rica que morava na ilha das Pacas foi mordida de cobra. Foi

um "Deus nos acuda", pois a vítima piorava cada vez mais, causando pânico entre os

vaqueiros e outros empregados da fazenda. Manoel dos Santos, da Boca do Carninho,

adivinhou o ocorrido e comentou com o seu compadre e vizinho que já estava fora de

perigo porque se lembrou de seu nome. Seria bom, entretanto, que desse uma

chegadinha até lá para abreviar a cura.

O compadre alarmou-se, pois era uma loucura viajar àquela hora da noite,

durante um inverno tão rigoroso; seria uma viagem inútil e, ainda por cima, corria o

risco de se perder nos caminhos do campo, debaixo de tanta chuva.

O curador acalmou-o, dizendo que se garantisse empurrar a canoa, deixasse o

caminho por conta dele. Com a confiança que ele inspirava, o compadre resolveu

acompanhá-lo. Na escuridão, de vez em quando Manoel dos Santos mandava que

desviasse um pouco, ora para a esquerda ora para a direita, até que chegaram ao porto

da ilha, em frente à casa do fazendeiro.

Fingindo-se viajantes perdidos no campo, dirigiram-se à casa grande, onde o

movimento não parara apesar do avançado da noite por causa do que acontecera com a

esposa do patrão. Indagaram a causa de tanto nervosismo e foram informados de que a

dona da casa havia sido mordida de cobra e achava-se à beira da morte.

Pediu ao fazendeiro que permitisse sua entrada no quarto para fazer um

benzimento, no que foi imediatamente atendido. Após rezar, Manoel dos Santos

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perguntou à senhora por que não se levantava para passar um café para o pessoal, pois

havia muita gente em casa. A mulher fitou-o incrédula e ele assegurou que ela poderia

levantar-se, pois estava curada.

A senhora levantou-se e foi cuidar do café como se nada tivesse acontecido.

Um dia apareceram uns norte-americanos na cidade com objetivos que não foram

divulgados e se encontravam na Prefeitura numa reunião com as autoridades. Durante a

conversa, tomaram conhecimento da existência desse curador e pediram para chamá- lo.

Manoel dos Santos chegou humilde, chinelo de couro nos pés, chapéu de palha na

cabeça e o seu cofinho com a cobra companheira. Depois que satisfizeram sua

curiosidade não com poucos gestos de zombaria e descrença, perguntaram o que se

agitava tanto dentro do cofo, para onde ele se dirigia, de vez em quando, com uma voz

de comando: "Te aquieta".

O curandeiro explicou que era uma cobra e que ela estava agitada porque naquele

meio havia uma pessoa que a incomodava. Certamente seria alguém de mau olhado.

Pediram para ver a cobra que foi colocada no chão. Insinuaram que ele a conduzia

porque lhe tinham sido quebrados os dentes. Ele abriu a boca da cobra e mostrou-lhes os

dentes em garra.

Não satisfeitos, perguntaram-lhe se havia alguma cobra nas proximidades. O

curandeiro pensou um pouco e disse que havia uma no paredão da igreja em ruínas.

Perguntaram se podia chamá-Ia. Ele assobiou e dentro de alguns instantes chegou a

cobra. Quando todos se entreolhavam abismados, Manoel dos Santos tornou a assobiar e

a cobra voltou para o lugar onde se encontrava antes, pulando na areia quente que,

naquela época, cobria as ruas da vila.

Manoel dos Santos vivia numa choupana de palha, na Boca do Caminho, cujas

portas eram fechadas por mançabas, uma esteira de pindoba bastante conhecida e usada

no município. Um dia começou a notar que algumas de suas coisas estavam

desaparecendo. Resolveu pregar um susto no desonesto. Chamou as cobras e foi para a

roça.

Quando voltou, encontrou um rapaz trepado na grade da casa e as cobras no

chão, rodeando-o ameaçadoramente, silvando e tentando subir pelos esteios, o que não

acontecia porque não lhes tinha sido dada ordem para tal.

Ao reconhecer o rapaz, lamentou que tivesse chegado a praticar um ato tão

vergonhoso com uma pessoa pobre como ele era. Depois lhe disse:

-Agora você vai escolher: ou desce no meio das cobras que estão lhe esperando

ou vai garantir nunca mais roubar ninguém.

O rapaz pediu perdão, prometeu que iria emendar-se e Manoel dos Santos

mandou-o embora após despedir as cobras.

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São fantásticas as histórias que contam a seu respeito.

A expressão curar de cobra" tinha o sentido de livrar a pessoa do ataque das

víboras. Havia duas maneiras de ser curado: para nunca ser mordido ou para nada sofrer

no caso disso acontecer uma pessoa curada de cobra por Manoel dos Santos recebia dele

certo poder.

Certa vez, o velho "seu Três", que era "curado" por Manoel, estava trabalhando no

campo com um grupo de pessoas, quando um dos companheiros foi vítima da picada de

uma cascavel. Sabedor do dom que o curador lhe havia transmitido seu Tares mandou

que o amigo vestisse a sua camisa. Foi o bastante para que o processo de envenenamento

fosse sustado até achegada de Manoel dos Santos.

Outra característica sua, difícil de encontrar em outros curadores, é que ele

conseguia fazer com que cobras desaparecessem completamente de um determinado

lugar, isto é, o lugar que ele "curava" era local onde não apareciam cobras.

Contam que certa vez mandaram um portador levar a urina de uma pessoa doente

para Manoel dos Santos curá-lo. O portador, um irresponsável que não acreditava em

nada, jogou a urina do doente fora e substituiu-a pela sua. Ao examinar o material, o

curandeiro disse que o dono da urina estava prestes a morrer, vítima de um aneurisma. O

portador voltou zombando do fato e contando a todos que ele nada sabia, pois a urina era

sua e não do doente.

Inconformados, os parentes mandaram outro portador pedir a ajuda do curador

que a examinou e mandou-lhes uma garrafada. Pouco tempo depois, o doente estava

curado. O primeiro portador, entretanto, foi um dia rachar lenha e durante o trabalho o

machado soltou-se do cabo atingindo-o mortalmente.

Estava cumprida a previsão outro célebre curador, dos muitos que viveram e!ll

Anajatuba, foi Alexandre, do Pacova, de quem contavam saber quando uma pessoa vinha

procurá-lo para tratar de alguém mordido de cobra. À chegada do portador, dizia logo que

sabia a que vinha e mandava-o de volta, pois o serviço já estava feito. Esses e outros

relatos de acontecimentos singulares que o tinham como protagonistas são contados por

muitos.

Regino Rodrigues de Paula, prefeito nomeado em 1945 e 1946, vereador por duas

legislaturas, pai do também ex-prefeito Sebastião Marinho de Paula, possuía um cavalo

de sela muito bonito. Um dia, estando Alexandre em sua farmácia, pediu que ele

"curasse" o seu cavalo, de modo que nenhum mal o afetasse. O curandeiro replicou que

nem ele nem ninguém faziam esse serviço em um cavalo, mas que "curaria" o arreio, pois

com ele qualquer cavalo doente ficaria bom.

Viajando certa vez para o Morcego, em companhia de seu cunhado João Marinho,

o cavalo deste começou a fraquejar até que caiu. Por muito que tentassem não

conseguiram fazer com que levantasse. Encostaram-se à sombra de uma árvore na certeza

de que o animal não sobreviveria.

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Foi então que Regino lembrou-se do arreio. Sugeriu que trocassem os cabeções dos

dois animais, sem explicar o porquê, temendo ser ridicularizado. Como o cavalo de João

Marinho já estava com o queixo duro, foi difícil a troca, mas conseguiram fazê-la. Poucos

minutos depois perceberam que o animal se levantava e não mostrava mais nenhum sinal

de que estivera doente, completando a viagem.

Seu Regino, ao lembrar o fato, lamentava não ter guardado o arreio para outras

situações idênticas, mas dizia que a ferragem continuava guardada em uma caixa. Com a

idade avançada, deixou de cavalgar e o assunto foi esquecido e as ferragens também se

perderam.

José Cabral era embarcadiço, assim como João da Silva.

O primeiro era genro de seu Três, pai de Cutra e Belarmino. João da Silva era o

marido de D. Juventina Ferreira da Silva, mãe da Profa. Elisa. José Cabral trabalhava no

barco de Pedro Sousa, pai de Catarino Antonio de Sousa, apelidado de Pedro Bazé. O

nome do barco era "Flor da Vila". João da Silva trabalhava em sua própria embarcação,

denominada "Santo Antônio". Sempre que um dos barcos vinha de São Luís, cruzava

com o outro que seguia. Como o barco de João da Silva era velho, havia sempre uma

troca de piadas entre os tripulantes. Daí a inimizade.

A imagem de São Bartolomeu, do Ribeirão, carecia de uma pintura. Entretanto

não conseguiam levá-la para São Luís onde seria feita a "encarnação", pois os barcos que

a conduziam sofriam avarias ou se defrontavam com problemas atmosféricos que os

obrigavam a voltar ao porto.

José Cabral, que era protestante, disse certo dia à sua esposa, D. Luzia, que ia

fazer baldeação do barco e regressaria logo para São Luís; nessa viagem, iria levar o

"calunga", apelido que dava a todas as imagens.

Isso era no começo do século passado e é bom lembrar que, nessa época, ainda

não havia a estrada de rodagem, só construída no governo de Sebastião Archer da Silva,

nos anos 40. Só se viajava de barco. Com a criação da Estrada de Ferro São Luís-

Teresina, algumas pessoas viajavam a cavalo até Itapecuru-Mirim para tomarem o

trem, apelidado de Maria-fumaça... o dia da viagem, José Cabral havia feito as pazes com

João da Silva e até aceitou o convite para almoçar no barco do

antigo desafeto, ancorado no Troitá.

Voltando à vila, Cabral passou em casa de seu Três, no Teso, levando-lhe de

presente dois peixes do mar. Seu Três percebeu que ele estava falando com a boca torta e

mandou que seu filho Mundico o acompanhasse, pois ele devia estar doente.

Chegando a casa, José Cabral teve uma congestão após ter começado a sentir

forte dor de cabeça. Definhou de tal maneira que ninguém mais acreditava na sua

recuperação.

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Resolveram mandar chamar Alexandre, que começou a tratá-lo com seus próprios

remédios, recomendando que não tomasse os de farmácia, sob nenhum pretexto. Dizia

que haviam feito um "trabalho" para rematá-lo e, cada vez que tomasse medicamento

industrializado, mais se agravaria a sua doença.

A dor de cabeça passou e José Cabral começou a melhorar, pois já se alimentava

sozinho e começava a caminhar. A saúde chegava rapidamente.

Entretanto, aconteceu um tambor de São Benedito próximo a sua casa. Cabral,

incomodado com o batuque, gritou que não sabia que milagre esse calunga havia feito

para fazerem aquela zoada. Logo depois, começou a sentir a dor de cabeça que não o

abandonou durante toda a noite e continuou mais forte no correr do dia.

Apesar da melhora apresentada com os remédios de Alexandre, Cabral não lhe

dava muito crédito. Insistia para que lhe comprassem um comprimido de Guaracene,

medicamento muito usado na época. De tanto insistir, D. Tunica, mãe da professora

Bessie Dutra Mendonça,criança na época, foi encarregada por D. Luzia de comprar o

analgésico na Farmácia Santa Maria,

De Regino Rodrigues de Paula. José Cabral ingeriu o comprimido, contrariando a

prescrição de Alexandre.

A dor de cabeça continuou mais forte e ele começou a piorar, Alexandre foi

novamente chamado e, aborrecido Com a desobediência, recolheu os seus remédios,

lamentando nada mais poder fazer. José Cabral ainda se valeu de Bezerra, outro curador,

mas não sobreviveu à recaída.

Bezerra

Bezerra foi outro curador célebre em Anajatuba. Era de Areia, mas estava morando

em Picos.

Quando José Cabral foi desenganado por Alexandre Mundico de Virginato e

Raimundo Luso Mendonça (ex-vereador e filho de Manoel Rosa Mendonça, primeiro

Prefeito eleito com essa denominação e neto do ex-Intendente e ex-Vereador Manoel

Thomaz Ferreira Mendonça), foram procurá-lo levando consigo a camisa do doente e

outra de Felintro Moreira, um senhor meu conhecido que andava gritando como louco

pela rua.

Bezerra tomou as duas camisas, que exigia fosse de cor branca, e, à proporção que

as ia dobrando, ia contando o que sucedia com seus donos. Repetiu as imprecações de

Cabral, falou sobre o medicamento de farmácia que só contribuíra para sobrevir-lhe a

morte e sobre a desobediência às recomendações de Alexandre. Nada mais poderia fazer

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em seu benefício, pois já estava muito magro por causa dos dias em que não se

alimentava acrescentando que, quando morresse, a barriga ia crescer muito.

Entregou uma garrafada para ser entregue a Felintro Moreira e recomendou que

voltassem logo para não deixarem de assistir ao enterro de José Cabral. Os portadores

encontraram José Cabral morto, nas circunstâncias que Bezerra previra. Quanto a Felintro

Moreira, ficou curado e só morreu muitos anos depois, aos 92 anos de idade.

Casemiro Arapuca era marchante e cortador de gado. Mulherengo, contraiu doença

venérea, numa época que ainda não haviam descoberto a penicilina, portanto de cura

demorada e difícil. Tanto a doença se agravou que a bexiga e depois a barriga furaram.

Procurou recurso em São Luís, de onde voltou desenganado pelos médicos.

Procurado, Bezerra mandou que lhe aplicassem um remédio que era usado

contra carrapato de boi. Quando terminasse o primeiro vidro, deveria procurá-lo.

Explicaram a Bezerra que ele não tinha condições de andar a cavalo, tal o estado

de quase putrefação que seu corpo apresentava. Bezerra, entretanto, repetiu a

recomendação de que fosse à sua casa. Poucas semanas depois, Casemiro conseguiu

realmente apresentar-se na casa do curado r que, após curativos e benzimentos,

recomendou-lhe cuidado com mulheres "da vida", pois se voltasse a contrair a doença

não teria cura.

Curado, Casemiro voltou a comprar e vender gado e, achando-se novamente em

boa situação financeira, com dinheiro no bolso, não demorou muito a voltar à antiga vida

boêmia.

Contraiu então uma blenorragia e, uma semana depois, estava morto.

Manoel Rosa Mendonça, o Maniquinho, ex-prefeito que nos referimos acima, já

em avançada idade, apareceu com um ferimento na ponta de um dos dedos do pé. Esse

ferimento foi adquirindo proporções alarmantes, de modo que toda a perna foi ficando

inchada e roxa, sem que a medicação que lhe vinha sendo aplicada surtisse efeito.

Temendo sua morte, o homemIlídio Luso Mendonça convidou João Marinho para ir com

ele até a casa de Bezerra, levando uma camisa do pai. Encontraram o curador deitado em

uma rede, sentindo muita febre.

Explicada a razão da visita, Bezerra disse que dessa ele não morreria. Entregou

duas garrafadas. Uma deveria ser aplicada dos joelhos para baixo; a outra deveria ser

bebida. Antes que o remédio terminasse, a ferida estava fechada, a perna voltou ao

normal e até a unha havia nascido. E Maniquinho ainda viveu mais de três anos.

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Mãe Aninha

Ana do Espírito Santo, Mãe Aninha, era filha única de um rico fazendeiro de Arari.

Um rapaz de Anajatuba, que tinha uma amante na vila, começou um namoro com ela e

resultou em casamento. Após o matrimônio, arrumou todas as coisas da esposa e a trouxe

para Anajatuba. Chegando ao Troitá, mandou que ela ficasse esperando-o na casa de um

amigo, enquanto iria buscar uns cavalos para seguirem viagem. Aninha, que já possuía

alguns dons, recomendou que ele não deixasse ninguém abraçá-lo pelas costas.

Chegando a Anajatuba, o marido foi diretamente à casa da amante, que havia saído

e estava na casa da vizinha. Ao vê-lo entrar, a mulher veio por trás e abraçou-o

carinhosamente. Foi a conta para que ele nunca mais se lembrasse da mulher que ficara

esperando.

Ana ficou naquela região vivendo em casa de um e de outro. Quiseram levá-Ia de

volta para a sua família, mas ela escolheu ficar. Morou muito tempo na casa do Padre

Zezinho Freitas e depois continuou com o Padre Possidônio, como doméstica.

À proporção que ia avançando em idade, seus dons para normais foram-se

desenvolvendo e ela adquiriu o poder de "responsar" Santo Antonio e descobrir as coisas

desaparecidas cuja exata localização ignorava, apontando a direção em que seriam

encontradas. Bastaria que lhe dissessem que um animal estava sumido, ela indicava o rumo

que deveriam seguir para encontrá-lo.

No povoado Olho d 'Água, houve o caso de uma menina que desapareceu. Naquele

tempo havia muita mata e os morado- res diziam que o currupira a havia levado.

Desesperados, os pais, mais de uma semana depois, foram procurar Mãe Aninha, como

passou a ser conhecida depois que ficou velhinha. Ela acendeu uma vela, rezou por alguns

minutos e depois voltou à sala para falar com os pais da menina que estavam aguardando.

- Nesta direção que estou indicando, tem um lugar muito trancado de espinho, num

local baixo onde há um buraco e uma árvore muito grande. Ela está brincando nesse lugar,

mas está brava. É preciso muito cuidado, pois ela pressente a presença de pessoas, tal qual

o faz um animal selvagem. Os pais da menina procuraram o velho Sotero, caçador que

conhecia todos os lugares e que andava principalmente à noite. Dizem até que ele morreu

virando bicho. Sotero informou que conhecia o lugar, situado no fundo da enseada de Gado

Bravo, onde havia uma gameleira, local de espera de paca.

Um grupo de homens cercou o tucunzal que havia ali, conseguindo agarrá-Ia e

dominá-la. Mãe Aninha tinha recomendado que levassem a menina até ela para que a

amansasse e lhe tirasse os espinhos. Realmente a menina estava cheia deles.

O ex-marido de Mãe Aninha ficou com todos os seus bens, mas a amante gostava

muito dela e, de vez em quando, lhe mandava presentes, principalmente carne, quando

matavam alguma das reses que tinham sido suas. Mãe Aninha recomendava que não o

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deixasse saber, pois não queria que eles brigassem por sua causa. Quando o marido

morreu, Mãe Aninha passou a dizer um chiste: "Quando eu morrer quero palma e capela,

porque sou viúva donzela".

Certo dia, já velhinha e surda, saiu da igreja para a casa do Padre, que era no terreno

ao lado da residência da Dra. Idalina quando um boi bravo escapou do curral de Manoel

Rodrigues e veio disparado na direção em que ela caminhava calmamente. Todos gritavam,

mas ela nada ouvia. Padre Zezinho fechou as janelas para não presenciar sua morte.

Quando Mãe Aninha percebeu o que acontecia, juntou as mãos como em prece e voltou- se

para o boi que imediatamente se desviou e passou ao seu lado, para espanto dos que

anteviam desesperados um triste desfecho para aquela cena.

João de Pu deixou uma vaca peada na Boca do Caminho, e a vaca fugiu deixando o

bezerro. Três dias depois de procura inútil, foi pedir ajuda a Mãe Aninha.

-Nesta direção, não muito longe, tem um lugar na beira do campo com árvores de

galhos muito grandes. Chove agora por lá. Debaixo das árvores, há uma porção de tocos de

pau. A vaca está lá com apeia enganchada. Mas vá devagar: se a espantar, ela rebenta

apeia.

Encontraram a vaca na direção indicada, e ela rebentou a peia quando os vaqueiros

se aproximaram.

Zifa

Zifa era chamado curador de cobra. "Curava" uma pessoa para que cobra não a

mordesse ou para que a sua picada não lhe fizesse mal.

Várias pessoas deste município são curadas. Alguns não precisam desse trabalho,

segundo Zifa, porque são curados de nascença. A pessoa curada, se encontrar alguém

mordido de cobra, deve colocar um objeto seu sobre ele, como um anel, por exemplo, que

o veneno deixa de correr e pode ficar esperando a chegada do curador.

Uma vez, no extinto povoado Santana, falaram-lhe de um animal bonito que

morrera de uma picada de cobra. Zifa pensou um momento e disse: ''Ainda não morreu.

Vamos lá.".

Encontraram o animal apenas arquejando. Zifa deu-lhe um remédio que sempre

trazia consigo e o animal ficou bom.

Agapita, uma filha de Zifa, ainda mora no Colombo e também sabe "curar de

cobra".

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Luzardo

(Rita do Paricá)

Quem fez nome em passado mais recente, em Anajatuba, foi Luzardo, que morava

na Ponta da Ilha. Embora existissem muitas controvérsias acerca de seus poderes, que eram

exercidos através de seu "encantado" - uma mulher que dizia chamar-se Rita do Paricá -

muitos acontecimentos singulares são contados a seu respeito, principalmente por pessoas

que foram suas amigas.

Certa vez, Joaquim Sotero Mendes Goaquim de Agnelo) passou três dias com uma

febre inexplicável. Nenhum sintoma apresentava, senão a febre. Recusava qualquer

alimento e cada dia ficava mais fraco. Cansados de usar os medicamentos de farmácia

indicados pelos amigos, seus filhos resolveram procurar Luzardo.

Quando Ribinha chegou à Ponta da Ilha, Luzardo estava tirando pindoba para

cobrir a casa de forno. Luzardo pediu que ele o ajudasse na faina e, depois, que cobrisse a

casa. Ribinha estava impaciente, pois o estado de saúde de seu pai era preocupante.

Luzardo dizia que ele tivesse paciência, que não se preocupasse, pois tio Joaquim, como o

chamava, já estava melhor. Iriam à tarde.

Ribinha insistiu. O curador retrucou que a melhora do tio era tal que ele já havia até

almoçado.

Somente depois do meio-dia, e devido à insistência do mensageiro, Luzardo selou o

cavalo e seguiram para o Moreira. Ao chegarem, encontraram o doente bem melhor, a

febre baixa e conversando. Foram informados de que por volta das 10 horas havia comido

um pouco de arroz com um franguinho cozido.

Joaquim Sotero Mendes residia na Rua Coelho Neto em frente à Praça Cívica, ao

lado do filho Moreno, testemunha do fato e era muito amigo de Luzardo.

Gostava de conversar com ele quando estava com seu "encantado". Rita de Paricá

lhe contava muitas coisas: que sabia fazer e tirar feitiço, mas não trabalhava para ninguém,

nem ensinava, porque não achava correto. Disse-lhe, ainda, que não era morta. Era viva.

Teria sido encantada desde menina e era filha de Bacabalzinho, da família Pinto. "Eu sou

viva, compadre", repetia sempre.

Quem primeiro colocou gado de boa raça em Anajatuba foi Saul Bogéa Rodrigues,

ex-prefeito. Eram dois garrotes encerados. Certo dia, um deles amanheceu caído, mordido

de cobra. Aplicaram uma porção de medicamentos, inutilmente. Então Gaspar, seu

vaqueiro, insistiu para que Saul mandasse chamar Luzardo. Como nada mais havia a fazer,

Saul concordou.

Luzardo chegou, olhou o garrote e disse logo que não morria. Benzeu-o e deu-lhe

um medicamento por via oral. Deixaram o garrote no meio do campo e foram para casa de

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Gaspar, enquanto os outros vaqueiros ficaram reunindo o gado para a ferra. Pouco tempo

depois, um dos vaqueiros veio informar que o garrote estava de bruços e antes do fim da

tarde que estava sempre.

O animal não morreu. Saul deu uma gratificação ao curado r e disse-lhe que

enquanto ele fosse vivo Luzardo poderia brincar à vontade, pois para ele não havia cadeia.

Saul era Prefeito e chefe político na época e, de fato, Luzardo fazia o que queria dentro da

cidade.

O falecido Antonio Lima, pai do ex-vereador Antonio Lima Filho, apareceu com

um ferimento na perna. Era uma feridinha seca, mas que foi se aprofundando da noite para

o dia e era dolorosa. Gonçalo, do povoado Rosário, ia levar D. Maria para dançar tambor

na casa de Luzardo e convidou Antonio Lima para ir com ele. Aproveitariam para dar uma

olhada no gado daquela região.

Encontraram Luzardo com o seu "encantado" que, como foi dito, dizia chamar-se

Rita do Paricá. Ao observar a ferida, Luzardo mandou-lhe raspar casca de limão em um

pedaço de algodão e botar dentro da ferida. Antonio Lima dizia ter aplicado o remédio três

vezes porque quis, pois no segundo dia estava quase bom.

Joaquim de Agnelo estava sozinho no mato fazendo uma cerca. Cavou um buraco

e colocou uma estaca de pau-darco. Virou as costas para fazer outro buraco e, quando se

voltou, verificou que a estaca havia caído, apesar de o buraco ser fundo. Tornou a colocar a

estaca, socando-a e continuou o serviço. Ao voltar-se novamente, a estaca havia caído.

Aborrecido, disse uma imprecação, recolocou a estaca que não caiu mais.

Dias depois, passando pela casa de Luzardo, encontrou- o com o seu "encantado".

Parou, porque gostava de conversar com "ela", a quem chamava de "comadre Rita". Na

conversa, comentou nunca mais tê-la visto. Rita do Paricá respondeu-lhe que ela sempre o

via. E perguntou-lhe se estava lembrado do dia em que a estaca caíra duas vezes e que

ficara zangado. Fui eu quem a derrubou para brincar com você, declarou.

Joaquim referia-se ao fato com admiração, pois garantia que estava sozinho e que

nunca contou o caso, antes, a ninguém. Afirmava que Luzardo sozinho tinha pouco poder,

mas quando estava com Rita, fazia coisas incríveis.

Juca de Leandro e Antonio Lima foram a uma vaquejada na fazenda de Saul

Rodrigues. Na hora de voltar, Antonio Lima deu por falta de seu revólver, arma que,

naquela época, diziam que valia ouro, e eram poucas as pessoas que possuíam.

Aborrecido, passou na casa de Luzardo. O curador disse- lhe que Juca, saindo mais

cedo, o havia guardado. A arma estava na casa dele, dentro de um cofo cheio de panos

velhos, a um canto do quarto. Antonio Lima foi à casa de Juca e encontrou o revólver do

jeito que o curador informara.

D. Vitória, esposa de Luiz Laranjeira, adoeceu. Sua barriga cresceu tanto que

quem a olhasse do lado dos pés não via a sua cabeça e quem a olhasse do lado da cabeça

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não via os seus pés. Foi desenganada pelos médicos e mandaram até fazer o caixão.

Quando chamaram Luzardo, ele mandou que ela tomasse um purgante de Lefol (ou

Nepol?). Encontraram o remédio em uma farmácia no Arari. D. Vitória tomou e ficou

curada, mas o efeito do purgante foi tão sério que ela ficou lisa como uma taboa, mas ainda

hoje vive. O seu caixão serviu para sepultar Maria de Manezinho Carvalho.

Rira do Paricá, o guia de Luzardo, falava da existência de muitos tesouros enterrados

em vários lugares de Anajatuba, mas não informava porque dinheiro desse tipo não serve

para ninguém. Ninguém, segundo ela, ia pra frente com esse tipo de riqueza.

Mas no meio de tantas histórias fantásticas, contam-se também, casos hilariantes.

Certa vez, uma mulher adoeceu no Teso e um médico de São Luís receitou-lhe certo

remédio e ela ficou curada. Passado um tempo apareceu um homem que se queixava dos

mesmos sintomas de que a mulher se queixava na época. Luzardo receitou-lhe a mesma

medicação. Ao aviar o remédio, Regino Rodrigues de Paula, proprietário da farmácia,

perguntou se a esposa do comprador sabia como torná-lo e ouviu atônito a informação de

que era ele quem ia usar. Seu Regino informou-lhe que Ovariuteram era remédio de uso

feminino.

Pedro da Silva

Um curador muito conhecido em Anajatuba, mas que morava no vizinho município

de Arari foi Pedro da Silva. Meu pai dizia que quando ele olhava a mão de uma pessoa

contava-lhe toda a sua vida e dizia se estava doente ou não. Se a doença era de sua área,

curava, mas se fosse caso para a medicina não escondia. Contava que ele costumava

acender o charuto e quando estava bem aceso invertia-o, colocando o lado do fogo dentro

da boca e ficava soprando a fumaça.

Contam que Dona Edith, esposa de Joaquim de Agnelo, ficou muito doente,

passando mal. Sofria de uma dor de cabeça que a deixava aos gritos. Procurou João Lino e

Orfila, conhecidos por suas mediações espíritas, mas não obteve resultado positivo.

Resolveu apelar para Pedro da Silva.

Moreno, seu filho, montou o cavalo às duas horas da tarde, deixando-a aos gritos.

Dormiu no Arari, de onde saiu às duas da madrugada indo amanhecer o dia na casa do

curador. Havia dezoito pessoas na sua frente, de modo que só foi atendido às 11 horas.

Pedro da Silva tomou a roupa que havia sido levada, examinou-a atentamente,

virou-a do avesso e disse que realmente ela estava muito mal. Não podia dar-lhe de seus

remédios porque ela não resistiria. Recomendou então dois remédios de farmácia que

foram comprados no Arari. Informou ainda que o filho iria encontrá-Ia aos gritos no dia

seguinte. Deu-lhe então um vidrinho daqueles que eram usados para penicilina com um

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líquido que deveria ser derramado na sua cabeça aos poucos, misturando os cabelos até

terminar. Ela dormiria e, quando acordasse, estaria melhor.

Moreno encontrou-a enrolando-se de dor. Aplicou o lí- quido conforme foi instruído

e ela com poucos minutos dormiu, só acordando no dia seguinte com a dor mais fraca.

Usou os remédios e com nove dias estava andando.

Pedro da Silva havia recomendado que com 30 dias levassem uma de suas roupas

para ele examinar. D. Edith levou a roupa pessoalmente no prazo indicado, já

completamente curada.

Manoelzinho

Manoelzinho mora no Arari, mas é muito conhecido e procurado pelo povo de

Anajatuba. No exército, apelidaram-no de Mata Cachorro, porque era baixinho e um

sargento, para chateá-lo, disse que no exército ele só iria servir para isso. Era amigo de

Pedro da Silva, que às vezes se utilizava de seus poderes na realização de seus trabalhos.

Um ano depois de casados, a esposa de Moreno, a quem nos referimos várias vezes,

começou a sentir uma série de problemas: tinha raiva da casa, implicava com o marido,

andava chorando à toa e falava constantemente em matar-se. O problema agravou-se de tal

maneira que Moreno procurou a sogra para dizer-lhe que, se a situação não melhorasse, era

obrigado a levá- la de volta para a família.

Lembrou-se então de Pedro da Silva que, nessa época, morava em Cachoeira,

município de Vitória do Mearim, em um lugarejo conhecido como Itatiquetuba. Apesar da

relutância da mulher, levou-a até ele. Ao examiná-la, Pedro da Silva disse que nada podia

fazer com ela, pois não era de sua linha, mas que retomassem em um dia determinado,

quando Manoelzinho iria à sua casa fazer um trabalho. A "coisa" teria sido feita para o

marido, mas foi ela a atingida e, se não cuidassem a tempo, ela era capaz de suicidar-se.

No dia marcado, estavam lá e perceberam, pelo movimento da casa, que ia haver

tambor de mina. Pedro da Silva trabalhava com maracá e Manoelzinho com tambor.

Como ainda era cedo, Moreno foi ajudar a fazer uma parede do depósito de arroz,

quando D. Conceição começou a sentir-se mal e chorar. Dona Zélia, esposa de Pedro da

Silva, ficou preocupada, mas foi informada pelo marido de que Manoelzinho já havia dado

um toque nela. Que bebesse água e tudo passava.

Uma hora depois ouviram o batido de um tambor e não demorou muito para que o

pessoal começasse a chegar para a função. Pedro mandou chamar Manoelzinho que estava

na casa de um morador próximo, chamado Juvenal.

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Quando Manoelzinho chegou disse que, quando atraves- sou o igarapé do

Penicapau, percebeu haver alguém à sua espera, mas recomendou que o aguardasse no

terreiro e só entrasse no salão quando fosse chamado. Depois de certo tempo mandou-a

entrar e começou a falar do que estava acontecendo com mais exatidão do que falariam as

pessoas de casa. Mas não podia fazer o serviço ali. Que fossem visitá-lo dois dias depois.

Aflito, o casal atendeu a recomendação. Manoelzinho bateu no tambor por alguns

minutos e mandou-a de volta para casa. E desde esse dia nunca mais D. Conceição sentiu

nada.

Certo rapaz, cujo nome não foi lembrado, começou a sentir fortes dores no

estômago. Depois de usar muitos remédios, foi conduzido ao Hospital do município, sendo

atendido pelo Dr. Luís. Após algumas semanas de tratamento sem resultado, o médico

aconselhou-o a procurar um "doutor do mato", pois a medicina convencional nada mais

podia fazer.

Levaram o doente a vários curadores. Por esse tempo já Manoelzinho estava

morando no Arari. Procuraram-no. Após examiná-lo, disse-lhes que se não havia morrido

ainda como queriam, que não morreria mais. Benzeu-o, colocou as mãos sobre sua cabeça

e mandou que usasse um defumador em casa. Despachou-o dizendo que ele não iria mais

sentir a dor, mas só estaria curado quando o trabalho fosse concluído. Dez dias depois,

quando o rapaz para lá se dirigiu, Manoelzinho bateu tambor até uma hora da manhã, e

despachou-o para que seguisse em paz com Deus. Estava curado.

Manoelzinho ia fazer um trabalho no interior de Vitória do Mearim e convidou João

Moreno, outro curador, que traba- lhava com maracá, para acompanhá-Ia. João Moreno,

entretanto, disse-lhe que não podia, porque fora convidado para participar de um trabalho

em casa de Antonia da Silva, filha de Pedro da Silva, no lugar Pau dos Bichos. Ela era da

mesma linha dele e por isso não podia recusar o convite. Manoelzinho ficou chateado e

disse que ele haveria de arrepender-se.

Durante os trabalhos, o guia de Manoelzinho avisou que estava para passar por ali

um rapaz que seguira para Pau dos Bichos, mas não conseguira encontrar o caminho. Uma

hora depois João Moreno chegou todo molhado, aborrecido e prometendo vingar-se, pois o

caminho estava entupido e ele não conseguiu chegar ao seu destino, sendo obrigado a vir

para aquele lugar.

A festa continuou. Manoelzinho não bebia e trabalhava com muita vela. Vela no

meio da casa, nos cantos, embaixo dos tambores e uma ao lado de uma bacia com água

colocada em frente do altar. Sempre que o guia ia embora ele se ajoelhava diante da bacia e

curvava a cabeça sobre a água, talvez para facilitar o seu acompanhamento. Nesse dia,

quando se ajoelhou, caiu com a cabeça dentro da bacia. Todos correram para ver o que

acontecia e o encontraram desmaiado. Foi uma grande confusão, pois pensaram que ele

estava morto. Uma gritaria das mulheres, da esposa e dos filhos.

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Passados alguns minutos em que o pânico continuava a tomar conta de todos, João

Moreno pediu licença, deu um sopro no ouvido de Manoelzinho que deu um salto e voltou

a si. Olhou para João Moreno e disse-lhe que ele quase o matava. João Moreno retrucou

dizendo-lhe que não entupisse mais o caminho dos outros.

Manoelzinho sempre dizia que sua missão era tirar feitiço dos outros, mas não

fazia trabalho para ninguém.

Certa vez ele fincou um punhal no chão durante os trabalhos . Enquanto o tambor

tocava o punhal vibrava como quando se finca na madeira e puxa para vibrar. Vibrou toda

a noite e a vibração diminuía ou acelerava de acordo com o ritmo dos tambores.

Um dia Manoelzinho bateu o tambor para abrir um trabalho no Aranha, mas

imediatamente bateu novamente para fechar. Pediu desculpas por não poder trabalhar

naquela noite. Ficaria para a seguinte.

Ele contou depois que quando abriu o salão, este foi invadido por muitas entidades

más e no meio dos presentes havia uma mulher, vinda de São Luís para acabar com ele.

Suspendera o trabalho a fim de preparar-se para enfrentar o inimigo.

Na noite seguinte, quando tocou o tambor para abrir o salão, a mulher caiu em

transe e rolou pelo chão. Ordenou que ninguém tocasse nela. Quando a mulher parou de

rolar, ele deu- lhe uma sova com um cordão de São Francisco, apanhou um punhal e feriu-

a na testa até o sangue escorrer. Então ele gritou:

"A partir de agora tu não vais mais fazer mal para ninguém. Nem tu nem quem te

mandou." Contou então a todos que aquela mulher tinha ido ali para matá-lo, mas ele

descobrira tudo na noite anterior.

Manoelzinho ainda mora no Arari.

BENZEDEIRAS

Várias benzedeiras eram conhecidas em Anajatuba.

Lembro-me de Eurica Santana que benzia de "carne-aberta" (distensão muscular).

Ela recitava uma oração em silêncio e, de quando em quando, perguntava ao doente:

- O que eu coso?

O doente respondia:

- Carne aberta.

O ato era repetido vários dias, até que o doente ficasse curado.

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Outras benzedeiras, como Teodora, Clemência, Pulucena, atendiam freqüentemente

aos que se diziam vítimas de mau olhado.

Zeferina foi uma das mais conhecidas e consideradas benzedeiras de Anajatuba. Sua

missão maior, assegurava, era:

- curar do meu olhado e retirar espinhas de peixe das gargantas.

Como a alimentação de nosso povo sempre teve o peixe no seu cardápio, eram

frequentes os casos daqueles que engoliam espinha, a qual ficava atravessada na garganta,

causando muito sofrimento. Zeferina benzia a garganta e mandava que a pessoa escarrasse.

Quase sempre no primeiro escarro ou primeira tosse, a espinha saltava pela boca.

Benedito Guia foi um dos que procurou Zeferina três dias depois de uma espinha ter

se alojado em sua garganta e aconteceu exatamente como descrito acima.

Por recomendação de Zeferina, mesmo depois de sua morte, as pessoas que a

invocarem em casos semelhantes seriam imediatamente curadas. E isso acontece até com

os que não acreditam, como ocorreu com José Viana, cuja espinha de peixe já estava

alojada em sua garganta há vários dias. Aconselhado por Benedito Guia e pela esposa

Maria de Jesus, após relutar, chamou por seu nome e, instante depois, tossiu e a espinha

saltou.

Benedito Guia conta que certo criador conhecido por Bastico tinha um cavalo muito

bonito. Certa feita viajava para a região de Mato Grande e, ao passar pela Picada alguém

elogiou o animal. Quando chegou a casa o cavalo não quis mais comer e a partir do dia

seguinte não levantou mais.

Lembrou-se então de Zeferina e pediu-lhe que curasse o animal. Zeferina atendeu e, por

três dias, deslocou-se ate a casa de seu pai, Neneco, para benzer. Ao terceiro dia o cavalo

levantou-se e comeu a ração. Ficou curado.

CURADORES DE HOJE

Existem hoje muitos cura dores em Anajatuba e também pessoas que detêm certos

poderes especiais. Manoel Dutra Mendonça, o Manoel de Ilídio, cura bicheira de gado de

longe. Só não benze capação e fueiro. Basta que lhe indiquem onde o animal se encontra e

ele reza nessa direção. Todos os animais que estiverem doentes nesse rumo até chegar ao

que está sendo atendido, ficam curados. Tem curado muitas reses de José Rodrigues e

outros.

Raimundo Freire tinha poderes idênticos.

Raimundo de Mateus, irmão de Jerônimo Honório Santos, passava por cima de uma

cobra e ela morria. Magnetizava-a e ela fugia.

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Certa vez atirou em um pato bravo e não o atingiu. O pato fugiu, mas voltou

novamente, caindo a seus pés para ser sacrificado. Ele era o melhor capador de porco que

existia aqui, mas se olhasse o animal depois de capado, antes de sarar, o animal morria.

Entre os curadores de hoje, mais conhecidos, destacam- se Raimundo Beroco, do

povoado Afoga e Manoelzinho da Bacabeira, atualmente residindo no povoado Centro do

Izidório.

LEMBRANÇAS DA GUERRA

A Segunda Guerra Mundial me encontrou menino, nos primeiros anos de vida.

Pouca coisa eu sabia do conflito, mesmo quando os adultos se reuniam na quitanda

de meu pai, para comentar as notícias que chegavam através dos jornais recebidos de São

Luís pelo Sr. Bias Amaral. E eu, magro e nu, ouvia falar das batalhas, dos avanços e dos

recuos, na voz daqueles homens que eu considerava sábios.

Lembro-me das histórias que corriam acerca da maldade dos japoneses e dos alemães.

Muitas vezes os céus de minha cidade eram cortados por esquadrilhas de aviões e, cá de

baixo, ouvíamos as fantásticas notícias comentadas pelos adultos, acerca desses pássaros

metálicos. Diziam que as pessoas viajavam amarradas; e nós imaginávamos os soldados

amordaçados e presos com cordas às suas cadeiras para não caírem do céu.

Surgiam pessoas estranhas falando-nos da guerra. Nesse tempo apareceu Tamancaria,

um cearense sempre ébrio, com uma linguagem engraçada, que gostava de rimar com as

palavras, cuja pronúncia ele sempre deturpava.

Desse tempo é também "Três Motor", uma mulher surgida não sei de onde e que

recebeu o apelido por causa de seus grandes seios, numa alusão aos aviões maiores, que

dispunham, além do tradicional motor à frente, mais um de cada lado.

E havia ainda os gringos, à procura de petróleo, diziam.

Hospedavam-se na casa de D. Juventina Ferreira da Silva e, com eles, aprendi

algumas frases em inglês, com que orgulhosamente me exibia: "Good night", "Good by",

Co long" e outras. E o velho Sisnande (Segisnando), vindo de São Luís onde trabalhara no

porto, costumava beber seu copo de vinho precedido de uma frase que ele dizia ser em

inglês mas que nunca foi traduzida:

"Good fort money".

Por esse tempo surgiu um camarada meio esquisito, prin- cipalmente porque portava

sempre um revólver na cintura, coisa que não costumava acontecer entre os habitantes da

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vila, cujas armas eram o facão, o punhal e a espingarda, usados nas caçadas e nas viagens

pelo campo. Um dia essa criatura embriagou-se e passou a ameaçar as pessoas com o

revólver. Foi quando a polícia decidiu prendê-Ia. Verificou-se então que o revólver era de

plástico, material ainda pouco conhecido, e que o homem era realmente uma mulher

disfarçada. Foi aquela confusão.

A meninada seguia os policiais que tentavam levá-Ia para a cadeia, aos gritos de "é

mulher, é mulher". E seu Mundico Mendonça, pacífico e ordeiro, tentava convencê-la a

acompanhar os policiais, enquanto ela se debatia gritando: "Mas seu Mundico, eu sou

homem, três vezes homem". E na luta para não se deixar prender, a blusa abria e os seios

ficavam à mostra para delírio da multidão ávida por novidades.

Tudo falava do conflito, até as toadas do bumba-meu-boi de Graveto que eram

cantadas pelos jovens da época, entusiasmados com a perspectiva de viajar para outros

países mesmo sem atentarem para o pengo:

"Eu vou, mamãe, eu vou,

O governo me chamou,

Eu vou tomar conta

Do navio americano."

Uma coisa que marcou o tempo da guerra foi a maneira como as coisas foram ficando

difíceis. Os comerciantes constantemente acrescentavam um pouco de sabão ou cera de

abelha no fundo do medidor de querosene, vendido a retalho. As lamparinas a querosene

foram substituídas, quando possível, por lampiões alimentados com azeite de andiroba. Os

caroços de bacuri passaram a ser valorizados, porque com eles se conseguia iluminar as

casas.

Das pessoas que saíram de minha vila para participar da Força Expedicionária

Brasileira, na Itália, pouco lembro; mas algumas vezes fui até o Porto do seu Teodoro,

como era conhecido o embarcadouro no final da rua Coelho Neto, ou ao Poção das

Crianças, em frente à igreja matriz, para assistir aos embarques, sempre acompanhados

com banda de música e muito choro.

Um dia apareceu um jornal de São Luís anunciando a morte de Hitler. Foi uma festa.

A Prefeitura decretou feriado e houve uma passeata conduzindo um boneco de barro

simbolizando o Füher. A passeata foi encerrada na praça da igreja e Chagas Teixeira, com

um capote comprido como se fora a batina de um padre, fez um discurso dirigido ao chefe

alemão, de cujo conteúdo lembro o seguinte: "Hitler, há muito tempo o diabo te espera no

inferno".

A seguir, sempre sob as ordens de Chagas, os soldados executaram algumas

manobras para, finalmente, dispararem seus fuzis contra o boneco, sob os aplausos de

todos. Os alemães eram muito discriminados e constituía insulto chamar-se alguém de

alemão, pois era símbolo da crueldade.

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Foi por essa época que, certa manhã, Eduwirges, que trabalhava para minha mãe,

chamou a todos no quintal para mostrar um avião que se aproximava.

-Vejam como ele vem sereno, gente!

Pouco depois tivemos a notícia de que o avião caíra no largo da igreja por falta de

combustível. Todos correram para ver o aparelho de perto, pois somente víamos avião de

longe, voando no céu. O teco-teco estava parado a cerca de três metros do paredão lateral

da igreja e os pilotos, Dieguez e Brito haviam considerado um milagre a sua sobrevivência,

pois se o impulso fosse um pouco maior, o aparelho teria se espatifado de encontro ao

paredão de pedra.

No meio da multidão que acorrera para ver o avião, eu também cheguei e,

aproximando-me da cauda do aparelho, toquei-o com as mãos abertas, palmas voltadas

para baixo, quando fui repreendido pelo soldado Temístocles:

-Menino, não toque no avião!

Vieram pessoas de longe e algumas cozinhavam seus alimentos ali perto, a fim de

não se afastarem daquela maravilha.

Enquanto isso, os dois pilotos que foram logo hospedados pelo Sr. Elpídio Vieira

Ewerton, tentavam comunicar-se com São Luís. O Telégrafo possuía apenas um telefone

que se comunicava com Itapecuru e Arari em horários determinados.

Não sei como foi feito o contato, mas certa manhã, um outro teco-teco sobrevoou a

cidade. Toda a população correu para a beira do campo e o avião, após algumas voltas,

jogou duas latas de gasolina que afundaram nas águas do campo e logo foram resgatadas.

Tudo então começou a ser preparado para a partida.

De vez em quando o motor do avião era movimentado e uma das pessoas

importantes da cidade entrava no aparelho e ficava sentado ao lado do piloto, no avião

imóvel, mas que tinha suas hélices em movimento. Aquilo era uma glória que todos

ambicionavam.

Certa manhã, superadas as dificuldades, o avião partiu sob os aplausos delirantes da

multidão, contida pelos gestos de comando, em terra, do Sr. Elpídio Ewerton que, com

uma toalha na mão, fazia sinais para a aeronave que partia deixando a vila sem o seu

tesouro.

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A BUSCA ATRAVÉS DA ILUSÃO DO AMOR

A lua paira silenciosa no céu limpo desta noite de julho. Seus raios incidem sobre a

água do campo que mais parece um espelho de cristal refletindo sua luz azulada de uma

beleza fluorescente.

Sentado na varanda ao Leste da casa, eu a contemplo e deixo que a minha alma

divague, viajando longe no tempo e no espaço, em busca de minhas lembranças.

O sorriso de Iolanda parece dominar a noite e eu me deixo levar por esse encanto. a

orla do campo a grama verde me oferece refúgio à sombra dos criviris, e no meu

encantamento eu tomo as suas mãos e, como duas crianças, caminhamos à luz da lua pelo

prado emoldurado pela água parada que reflete a luz da lua.

O canto de um pássaro rasga o silêncio da noite e sorrimos um para o outro como se

confidenciássemos e compartilhássemos o receio de algo inesperado.

Do outro lado da enseada, as árvores se destacam inertes sobre o fundo luminoso do

céu, parecendo um cenário teatral montado para uma plateia constituída por nós dois

apenas.

Os mistérios da noite nos envolvem numa silenciosa canção e as estrelas

desapareceram, dominadas pela majestade da lua.

Iolanda sorria e bailava à luz desse luar argênteo e, logo depois, correu para uma

canoa ancorada na margem do açude, fazendo-a deslizar sob o impulso da vara que ela

manejava com maestria.

Seus olhos sorriam também e, como num conto de fadas, a canoa foi se afastando

lentamente, enquanto meus olhos a acompanhavam atônitos.

O encantamento desapareceu e eu permanecia na varanda, absorto em meus

pensamentos diversificados, pensando na possibilidade de encontrar um dia a ternura

desses olhos pousados nos meus...

Outros pensamentos iguais ocupavam a minha mente em diversas situações, mas

era o sorriso de Iolanda que se destacava no rosto de cada criatura que vinha à minha

mente.

O sonho levou-me de volta ao morro do Rosário, anos atrás, quando fui

introduzido no Templo da Regeneração. Ali eu fora notificado acerca de tantas outras

provações que me aguardavam, e anunciadas muitas paixões desesperadas e amores não

correspondidos.

Seria esse o novo olhar ou teria sido ele extraído do de uma das sacerdotisas que

velavam os santuários dos morros antes visitados?

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Qualquer que fosse a revelação de agora, a minha alma ansiava por esses

sofrimentos, capazes de despertá-la para novas paixões, mesmo que se tratasse de afetos

não correspondidos.

O sofrimento é uma dádiva divina. Eles maltratam a alma, mas sem eles não

poderíamos justificar as alegrias porque não teríamos elementos para comparação. Bem

vindo, portanto, esse sofrimento que nos assegura que ainda estamos vivos, fazendo a

nossa história com as tristezas de agora e os sonhos constantes que caracterizam a nossa

imortal alma humana.

- Bendito o sofrimento que alimenta a alma, disse uma voz ao meu lado...

Era o Mestre que voltava uma vez mais para indicar-me caminhos, lembrar-me da

missão que pesa sobre meus ombros, mas que me conforta a alma com a possibilidade de

alcançar a maestria.

O sofrimento é o alimento da alma, dissera o Mestre e, mentalmente, aceito essa

afirmativa. Se não tivéssemos essa dádiva, como poderíamos saber quando a felicidade

bate à nossa porta, quando a alegria nos informa acerca dos desejos do inconsciente que

buscamos através das eras com uma intensidade que nós mesmos não compreendemos?

Que encanto teria a vida se todas as coisas acontecessem como queremos, como

esperamos? Certamente a monotonia iria tornar muito dolorosa a nossa experiência de ser.

Mas as dificuldades superadas, as tristezas substituídas pelo riso, a angústia de ontem

sendo comutadas pela esperança de hoje, as lágrimas salgando os sorrisos, as dores dando

asas à alegria, tudo isso constitui a beleza da vida e nos faz pensar que somos deuses

porque superamos tantos obstáculos.

A felicidade perene seria então a negação da vida. Um amor entregue na sua

totalidade, sem dar nenhuma chance ao ciúme, estaria fadado a fenecer em pouco tempo. A

incerteza do amor é o tempero picante para transformar a busca do olhar querido numa

maratona a ser vencida para a conquista desse amor.

A voz do Mestre me levara a refletir acerca do valor do sofrimento e de sua

necessidade. Teria sido assim desde que o homem descobriu esse sentimento que levou

muitos povos à guerra. A angústia de um amor insatisfeito feriu muitos reis da antiguidade

e, para superá-la, os exércitos se defrontaram, vidas foram sacrificadas, reinos foram

conquistados, monarcas perderam os tronos. A guerra se justificava pelo desejo de

conquistar o amor de uma mulher e muitos acordos de paz foram selados por causa de um

sorriso.

A humanidade foi criando novas formas de convivência.

O poder dos reis foi aos poucos sendo desmistificado e as decisões passaram a ser

questões de Estado. Mas a necessidade de encontrar o sofrimento nas asas do amor

continuou a dominar a mente humana, havendo quem afirme que o amor só seria grande se

fosse caracterizado pela tristeza.

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Esses pensamentos me dominavam quando o Mestre, cuja mente dirigia a minha

reflexão, tocou os meus ombros e assentiu tristemente as palavras que sequer pronunciei.

- É a tua provação, meu filho. E hás de te submeter a esse sofrimento por muitas

outras vezes, pois ele é necessário para que aprendas o domínio da vida! Um dia subirás o

morro do Pacoval, quando tua alma tiver sido purificada no cadinho das paixões e te

contentares com o brilho de um único olhar distante, cuja beleza estará somente na sua

inacessibilidade.

Baixei a cabeça em sinal de aceitação enquanto o Merlim concluía suas palavras.

-Os teus fantasmas continuarão atormentando tua existência e haverás de

experimentar outras adversidades até que possas ser admitido no Grande Templo. Segue

teu instinto e eu te aguardarei para aplaudir tua vitória.

A lua pareceu sorrir, as estrelas surgiram com mais brilho. O sorriso de Iolanda

feriu a minha alma como um punhal que penetrasse em meu peito, enquanto eu a via

acenar lá longe, quase na fralda do morro de Santa Rita na pequena canoa que ela,

habilmente, impulsionava com a vara.

O Mestre já desaparecera e eu senti um desejo intenso de contemplar o Pacoval.

Caminhei então pela Rua do Fio, indiferente aos muitos mistérios que a envolvem,

esquecido do galopar do cavalo solitário ainda ouvido nas noites de lua e aos suspiros de

seres invisíveis emanando das sombras das árvores e ensombrando a terra vermelha em

que eu pisava.

O grito de uma jaçanã me despertou e eu percebi que continuava no terraço com os

olhos fixos na lua que ia desaparecendo atrás do telhado da casa silenciosa.

GLOSSÁRIO

Ameju - fruta parecida com a ata (fruta do conde), porém de cor vermelha.

Anajatuba - palavra formada pela conjunção de dois vocábulos tupi-guarani: anajá

(espécie de palmeira) + tuba (abundância). Significa, portanto, anajazal ou lugar

abundante de anajá.

Anojado - pequeno peixe de couro, conhecido em outras regiões como bagrinho ou

capadinho.

Bacuri - fruto de casca grossa, redondo e amarelado, geralmente com dois caroços grandes

envolvidos por uma polpa branca e deliciosa. Os caroços produzem uma resina inflamável

que pode ser usada como combustível.

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Balaio - nome dado ao alimento conduzido, no alforje, pelo viajante do campo.

Geralmente carne frita, com farinha.

Cabruncos - ou fogo-fátuo; luzes produzidas pela decomposição de ossos. São errantes e,

segundo a crendice do homem do campo, desviam os viajantes de seu caminho.

Caixeiras - batedeiras de caixas, grandes tambores de couro usados nas festas do Divino e

São Benedito.

Cangalha - Armação de madeira usada como montaria e que dispõe de ganchos ou

tornetes usados para dependurar carga.

Carambanja - pequeno peixe do campo, de forma ovoidal, coberto de escamas. Em outras

regiões é conhecido por cará.

Cascudo - peixe do campo da família dos loricariídeos.

Cauaçu- planta de folhas grandes e arredondadas, usadas para acomodar farinha dentro

dos paneiros ou cofos.

Cocho _ pequena embarcação feita de um tronco de árvore, igual às usadas pelos índios.

Por ser estreita, tem pouca estabilidade.

Criviri _ fruto do crivirizeiro. Árvore da orla do campo, resistente à seca e ao alagamento.

É de porte médio, copa larga e de um verde perene. Fruto miúdo e vermelho que deixa um

travo no paladar. Está sendo devastado.

Guapéua _ fruta do campo, parecida com o caqui. A planta é trepadeira como o maracujá,

mas de caule mais grosso.

Jacama - fruta mais conhecida como graviola.

Jambolão _ árvore também conhecida como azeitoneira. Árvore de porte médio, cujo fruto

é lilás.

Jeju- pequeno peixe do campo, coberto por escamas.

Jurará _ pequeno cágado que prolifera no campo na época do verão. Parente próximo do

jabuti.

Mançaba - esteira feita de folha de pindoba.

Meia _ lugar mais alto no campo, geralmente próximo à margem. A vegetação é "capim de

marreca". No inverno, chega a alagar, mas o nível da água não ultrapassa os 50 em,

Mururu _ planta aquática parecida com o aguapé. Suas flores miúdas são de cor amarela.

Reparte com o junco a cobertura das águas do campo, durante o inverno.

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Pacova _ arbusto de folhas parecidas com as da bananeira. Possui um pendão parecido

com o “bico de sericora”( stelitia). Produz um fruto lilás utilizado para tingir roupas. É

também conhecido como pacova de tinta.

Pulucena - deformação de Nepomucena.

Rita do Paricá - Personagem mítica que se manifestava através do curandeiro Luzardo,

em Anajatuba.

Sisnando - deformação de Segisnando.

Traíra - ou tarira. Peixe do campo, coberto de escamas.

Troíra - fêmea do calango.

Teso - lugar mais alto no meio do campo, que não alaga. Pode ser de areia ou coberto pelo

capim de touceira.

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