Cão

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Cão Rui Xavier

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'Cão', primeiro romance do escritor e dramaturgo Rui Xavier, é um crime-fábula-tragédia sobre amor, poder e dinheiro narrado de forma tensa e misteriosa. A trama envolve uma publicitária bem sucedida que nos conduz pelos difíceis caminhos de uma sociedade machista. Obcecada pelo sucesso financeiro e a realização profissional, vendo o mundo como uma arena em que, para vencer é preciso ser sempre linda, fashion, competitiva e genial, ela vai perdendo o rumo das suas relações afetivas, passando a ver todos como aliados ou obstáculos, atribuindo mais humanidade ao seu cão de estimação idealizado que às pessoas ao seu redor. Em meio a essa luta pelo status e glória, vê o relacionamento amoroso com seu marido se destruir da forma mais bizarra e surpreendente. Em linguagem direta e galopante, que prende o leitor desde a primeira página, a protagonista de 'Cão' nos envolve com inteligência e sensibilidade, além do humor cáustico e ferino, até a revelação do seu terrível segredo.

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CãoRui Xavier

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© Rui Xavier, 2013

Todos os direitos de publicação reservados à nVersos editora.

Diretor Editorial Júlio César Batista

Editor Assistente Guilherme Udo

Diretor de Arte Júlio César Batista

Editor d e Arte Áthila Pereira Pelá

Capa, Projeto Gráfico, Ilustrações

e Editoração Eletrônica Erick Pasqua

Revisão Norma Suematsu, Rita Cino e Thamires Palombo

1ª edição - 2013

Esta obra contempla o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Impresso no Brasil Printed in Brazil

nVersos editora

Av. Paulista, 949, 9º andar01311-917 – São Paulo – SP

Tel.: 11 3567-5660

[email protected]

Nota do Editor:

O uso de grandes espaços em branco ao longo do texto faz parte do estilo de Rui Xavier

e foi mantido pela equipe editorial da nVersos Editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Xavier, Rui

Cão / Rui Xavier. -- São Paulo : nVersos,

2013.

ISBN 978-85-64013-85-8

1. Ficção brasileira I. Título.

13-12596 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

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Capítulo 1 ............... 11

// 2 .............. 21

// 3 .............. 35

// 4 .............. 39

// 5 .............. 49

// 6 .............. 65

// 7 .............. 77

// 8 ............. 103

// 9 ............ 111

// 10 ............ 125

// 11 ............. 143

Capítulo 12 ............. 161

// 13 ............. 181

// 14 ............. 201

// 15 ............ 213

// 16 ............ 225

// 17 ............ 237

// 18 ............. 245

// 19 ............. 263

// 20 ............ 267

// 21 ............. 275

Sumário:

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Para Hévelin Gonçalves, que a essas palavras deu voz viva.

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1Capítulo

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capítulo 1

Bom.

(silêncio)

á que estamos aqui, eu e você que me lê, acho que eu preciso contar minha história. Precisar não preciso: ninguém está me obrigando e nem

nada nada assim irresistível me compele, eu nem estou sentindo bater na garganta o azedo dessa histó-ria, o vômito, eu seria capaz de segurar ainda por muitas horas, quem sabe até por anos, a vida inteira, quem sabe. Eu eu não estou desesperada. Mas sinto que devo. “Devo” nem é a palavra; eu não devo: o dever é sempre uma coisa nobre, dificilmente uma coisa que você faz por si mesma, você deve respeito aos seus pais, deve defender o seu país das tropas estrangeiras. Ninguém

deve cometer uma tolice, o gesto impensado e autodestru-tivo, esse nunca é um gesto de dever; tomar aquele por-re quando a vida fica insuportável, levar o desconhecido para o escuro, expor todo o recheio mole para o mundo violento escarnecer com ele. Então, dever eu não devo. A minha história realmente é tudo menos uma história que se deva ficar por aí contando. É uma história pra levar para o túmulo. Tudo em mim que ainda é bom senso sabe. O anjo do medo grita em todos os meus músculos, mas eu sigo: por esse desejo de clareza ou pela ridícula punção de morte, ou por um foda-se monumental que altera todos os parâmetros – as razões realmente não interessam, razões são parte do processo e o que interessa nesse mundo é o resultado. É a ação. Sou eu aqui jogando fora o meu direito de permanecer calada, quem sabe o único inalienável, e de uma das maneiras mais irreversíveis que nós (nós; a gente, o ser humano) fomos capazes de inventar: agora conto e conto por escrito, gero essa prova perene, inequívoca, com meu nome no final, pros arquivos do futuro que vão fazer sei lá o quê com isso. Não estou só correndo o risco, portanto, de ser capturada pela confissão; não é só a mi-nha integridade, a minha liberdade física que eu corro o risco de perder, é a posteridade também. A benção de ser esquecida após a morte, como todo mundo.

Por que não é isso? O natural? Em duas ou três gerações ninguém mais lembrar que você existiu? É isso o que acon-tece com a imensa, imensa maioria das pessoas. Tem gente

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(principalmente quem tem dinheiro sobrando) que faz o es-forço de deixar legados, coleções, doações, obras. Gente cujo nome vira o nome de uma coisa, de uma sala, de uma rua, e que nem por isso, claro, está menos morta ou menos esque-cida. Eu acho lamentável se esforçar tanto para merecer uma nota de rodapé na história. Não é isso que eu estou fazendo aqui. Eu não estou desesperada. Só estou respondendo por antecipação ao que certamente vão me perguntar. Não é vai-dade. Não é para falar de mim, juro, é para não falar; para falar uma vez só e então poder calar para sempre, para tor-nar possível o voto de silêncio. Se este escrito desaparecer no oblívio, ignorado, esquecido ou então jamais sabido, tanto melhor; vai significar que eu me safei, que escrevi a carta sui-cida e acabei sobrevivendo a tempo de rasgá-la. Eu e minha memória – digo, a memória que tem de mim. Melhor ser esquecida, bem melhor. Deus me livre da manchete, porque a manchete de hoje é a nota de rodapé de amanhã.

(Eu sei que é ruim de acreditar, o que escrevi. Releio e sinto que é difícil acreditar. Porque a publicidade de si mesmo virou esse mel divino pelo qual todo mundo se esfalfa, porque eu sou dessa geração obcecada pela celebridade e porque mesmo o sujeito com a mais evidente vocação de nota de rodapé não se enxerga assim – eu sou publicitária, eu sei; coloque o mínimo de recursos na mão de um medíocre e ele acha que é um cristo. Até porque preferimos esquecer que é possível ser celebremente odiado, celebremente ridículo, é como se a celebridade fosse um estado de amor universal, o que não podia ser mais falso.)

Mas mesmo assim eu estou aqui, nessa dança macabra (a dança macabra é a escrita, ler é mais intelectual que es-crever: na escrita existe engajamento físico, ação que envol-ve dedos, cabeça e coluna, que envolve a respiração, como amar, lutar, se debater), produzindo esse documento sobre o que vivi, produzindo a prova do meu crime, e por quê? Eu estava cheia de razões quando passei esse café desneces-sariamente forte, quando sentei à cadeira e abri o compu-tador, e agora todas já me escaparam. Eu não quero ser um cristo, mas também não quero ser um caso. Ninguém quer ser lembrada como um caso. Pros mortos eu imagino que não faça diferença, mas não importa, porque é agora, viva, que eu pondero todos esses riscos. Viva e jovem, e vaidosa, com a imensidão das possibilidades adiante. Agora que eu já comecei, no entanto, é tarde. Eu vou beber esse café hor-rível que passei. Qualquer coisa além de ir até o final seria uma covardia, que é coisa que não tolero. Não tolero que pensem de mim. Não tolero que eu pense de mim.

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*Eu comecei ou não comecei? Eu fico comentando, mas

é que comentar é tão mais fácil que fazer, e agora, então, o comentário vive o seu auge, ter opinião sobre tudo é muito mais importante do que entender qualquer coisa. Exercí-cio Crítico da Vulgaridade. Mediocridade Pensando a Si Mesma. Mas olha eu comentando a respeito dos comen-tários, querendo acreditar que eu sou diferente, e será que eu sou? Provavelmente não. Se eu, como todo mundo, me equivoco e deformo as lembranças. Outro dia essa amiga minha veio com um papo furado de que Fulana não se en-xerga! etc., e eu disse a ela: isso não existe, amiga, ninguém se enxerga; ou você é o sujeito que enxerga ou o que é enxergado, o máximo que a gente consegue ver é a nossa sombra, ou então nosso reflexo. Ela não entendeu. É um exercício básico de ló-gica isso, mas nós estamos tão habituados a surrar as ideias, a amordaçá-las e usá-las amputadas, que mal se reconhe-ce uma ideia inteira, saudável, correndo em liberdade. O pensamento é um vetor sem importância, perto dos outros vetores, a sensação, a relação e a tecnologia. Mas, vejam, eu estou só comentando. E comentar não é pensar.

É por isso que eu não posso começar isso aqui por mim, pela minha historinha, perfil, identidade, porque aí eu se-ria obrigada a fazer esse exercício de me inventar nessas linhas, e com que cara? Que narrativa eu escolheria que não resultasse em vaidade ou em condescendência? O que

é mais ridículo do que o esforço de alguém pra explicar a si mesma: ‘papai’, ‘mamãe’, ‘sou’, ‘não sou’, ‘deixei de ser’, ‘gosto’, ‘não gosto’? E inventar razões, forjar uma densidade e (ai) afetar ser profunda. Não dá. Nós já estamos por aqui com tudo isso. Eu passo metade do dia tentando manter os olhos acima da linha da merda, nesse mundo cheio de for-mulários em que a gente vive, e não vai ser aqui, nesse lugar crucial, no ponto de fissão das partes que me formam, que eu vou me render a essa cultura. Eu sou publicitária, mas não sou burra. Eu sei que os discursos nos engolem, nos entregam, que quanto mais a gente tenta fazer com que eles expliquem alguma coisa, mais são eles que nos expli-cam. E eu também sei perfeitamente que a isso que eles explicam você não tem acesso, os outros é que têm. E aí você é apanhada no ridículo. Mas você só é apanhada no ridículo se estiver tentando fugir dele, se estiver perden-do tempo nisso de inventar e exibir ao mundo uma versão mais digna de você mesma: a dignidade acabou. Houve uma época, um momento na história para ter dignidade, mas é passado. Pelo menos no nosso contexto. Melhor não ficar se inventando; ser, só ser: até porque não sou eu que devo ser transposta para essas linhas, mas determinada ex-periência que vivi, e que eu acredito que possa ser (vá lá) de interesse. Eu só não quero é tornar isso uma confissão – e não estou falando da confissão do crime, que essa é uma confissão maiúscula, e também é a narração de um fato, a descrição de um objeto. O comentário não torna o crime mais crime, o que importa é dizer: eu fiz isso. Não é dessa

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confissão que eu estou falando, é de um outro tipo. É de um tipo de papinho, sabe, é de toda uma modalidade de narrativa, toda uma forma de autocomplacência, contar as próprias cagadas em tom de orgulho, como se confessar um defeito fosse o sumo maior da coragem. Eu não quero fazer isso. Não quero sair exibindo a minha humanidade como uma ferida. Eu não caio nessa. Porque isso é uma linha editorial e eu sou uma mulher de carne, osso e vontade. Todo esse lodo que há dentro de todo mundo, dentro de mim tem também, é claro: mas que ele se exponha, então, sem justificativa. Até porque tudo é injustificável. E eu não estou falando das coisas que eu fiz. Não: eu estou falando de tudo. Tudo é injustificável, porque toda justificativa é uma mentira. A menos que você acredite em um universo que faça sentido. Se acreditar, bom pra você. Mas isso não depõe muito a favor da sua inteligência.

Eu vejo a coisa dessa forma: as coisas acontecem, não é como nós queremos, nem como nós decidimos, mas como elas têm condições de acontecer. E eu estou falando é da ação humana mesmo, que fique claro, não é do movimen-to das placas e nem da fotossíntese, é das nossas decisões. Quantas vezes você pensa eu devia ter feito, eu devia ter dito, eu devia ter ido. E por que não fez? Por que não disse? Por que não foi? Porque não. Eu, por exemplo, eu sou do tipo que se ressente das coisas que fez e falou duran-te muito tempo, muito tempo depois que elas já perderam a importância. É o meu tipo, minha memória é dura pra

essas coisas, como pedra onde se grava. Antes eu queria acreditar que isso era parte de um processo contínuo de melhora, que eu iria acumulando essas vergonhazinhas a cada degrau que subia na compreensão de mim mesma, das outras pessoas e do mundo, e que em algum momento eu ia parar de acumular esses pequenos arrependimentos e daí pra diante eu teria virado uma mulher, sei lá, sábia. Uma mulher sábia, contente com sua sabedoria, e que não fica pescando idiotices no passado, nas escolhas das ações e das palavras. Mas isso não existe, porque você nunca para, o passado está lá, como uma estátua, mas você está se mo-vendo ao redor dele o tempo todo, o tempo todo vendo a coisa por novos ângulos; é aquele negócio do rio, de que ninguém se banha nele duas vezes, muda o rio, muda a pessoa, mas ninguém garante que tenham mudado pra me-lhor. Essa ideia, aliás, nem faz sentido, estar pronto é estar morto, a vida é um processo que não visa um fim, é só mudança, mudança, mudança. É por isso que você sabe em quem atirou, mas você nunca sabe quem morreu lá dentro.

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