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FESTAS Lúcia Lobato Érico José Souza de Oliveira 20 PPGAC Programa de Pós-graduação em Ar tes Cênicas

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FESTAS

Lúcia Lobato

Érico José Souza de Oliveira

20

PPGACPrograma de Pós-graduação em Artes Cênicas

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Cadernos do

GIPE-CIT

Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em

Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade

Nº 20

FESTAS

Organização:Lúcia Lobato

Érico José Souza de Oliveira

PPGACPrograma de Pós-graduação em Artes Cênicas

Escola de Teatro/Escola de DançaUniversidade Federal da Bahia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAEscola de Teatro/Escola de Dança

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Cadernos do GIPE–CIT N. 20FESTAS

Maio - 2008

Coordenação Geral do GIPE-CITProf. Armindo Bião

Conselho EditorialAndré Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA),

Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa (UFRN),Sérgio Farias (UFBA)

Diagramação e FormataçãoNádia Pinho - Fast Design

CapaDesenho de Sônia Rangel

Revisão:Érico José Souza de Oliveira

Impresso no Brasil em maio de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA.CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: [email protected] - Tiragem: 300 exemplares

Biblioteca Nelson de Araújo – TEATRO/UFBA

Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal

da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. – N. 20, maio. 2008. Salvador (Ba): UFBA/ PPGAC, 2008. 93 p. ; 21 cm. Periodicidade semestral ISSN 1516-0173

1. Teatro. 2. Festas populares 3. Festas religiosas. I. Universidade

Federal da Bahia. Programa em Artes Cênicas. II. Título

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOLúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira........................................................................ 5

HOMENAGEM A JEAN DUVINGAUDArmindo Bião......................................................................................................................... 7

FESTA: UMA TRANSGRESSÃO QUE REVELA E RENOVALúcia Lobato....................................................................................................................... 13

A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE A FESTA DO CONGADOValeska Ribeiro Alvim.......................................................................................................... 18

REZAR, CANTAR E FESTAR – HOMENAGEM A SENHORA DO ROSÁRIO:Pontuações sobre a congada em Uberlândia/MGAna Maria Pacheco Carneiro.............................................................................................. 28

FESTAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕESCélia Conceição Sacramento Gomes..................................................................................... 44

DE OLHO NA LAVAGEM DO BOMFIM: transfiguração de uma festaCÉLIDA SALUME MENDONÇA............................................................................................ 53

DIA DE FINADOS EM RIO REAL: uma festa dos vivos para os mortosCristiano Fontes.................................................................................................................. 67

A RODA DO CAVALO MARINHO: espaço para uma memória espetacularde uma ancestralidade festivaÉrico José Souza de Oliveira................................................................................................78

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Apresentação

O Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Fed-eral da Bahia foi pioneiro no Brasil a implantar, em sua linha de pesquisa MatrizesCulturais na Cena Contemporânea, a disciplina Etnocenologia, inauguradaquando da fundação, em Paris, do Centro Internacional de Etnocenologia no dia03 de maio de 1995. A partir de seu Manifesto de autoria de Jean Marie Pradierficou definida como “o estudo, nas diferentes culturas, das Práticas eComportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) e tem comodefesa de princípios a multiculturalidade, a alteridade, a pluridisciplinaridade e,entre outros a lógica da indistinção apresentada pelo Professor Dr. Armindo Biãona Conferência de abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Per-formance e Sociedade em 22.11.1995 na UNB, em Brasília.

Os professores doutores Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira,ambos do PPGAC e com teses defendidas em Etnocenologia, no ano de 2006inauguraram na disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas um estudoespecífico que denominaram de Festas e Espetacularidade. A nova proposta foifruto do próprio amadurecimento do Programa e conseqüente desdobramentodo bem sucedido curso em Etnocenologia.

A disciplina apresentou como conteúdo programático a conceituação defestas e sua função civilizatória, destacando dentre seus elementos constitutivos,o jogo, a brincadeira e o corpo festivo. Ressaltou sua dimensão espetacular, ogrotesco, o riso, o significado dos comportamentos e das práticas espetacularese as perspectivas de investigação das festas. Entre outros autores foram visitadosMikhail Bakhtin, Laplatine, Jean Duvignaud, Michel Maffesoli, Clilfford Geertz,Johan Huizinga, Renato Ortiz, Armindo Bião, Roberto da Matta entre outros.

Ao final do curso os alunos foram avaliados a partir de seminários ondeapresentavam uma descrição etnocenológica de uma festa de sua escolha. Osucesso alcançado nesses trabalhos incentivou os professores a fazerem umaseleção e organizar em artigos alguns dos referidos seminários que ora sãopublicados nesse 20º Cadernos do GIPE-CIT.

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Homenagem a Jean Duvignaud

Em nosso livro coletivo Artes do Corpo e do espetáculo: questõesde etnocenologia (Salvador: P & A, 2007, 492 páginas), em sua Apresentação,rendemos discreta e sincera homenagem ao líder do encontro fundador daEtnocenologia, realizado em 1995, na UNESCO e na Maison des Sciences del’Homme, em Paris, França. Aqui e agora, voltamos a render mais uma sincera ediscreta homenagem a nosso grande inspirador: Jean Duvignaud (La Rochelle,22 de Fevereiro de 1921 - La Rochelle, 17 de Fevereiro de 2007).

Essa nova iniciativa é de dois pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia – PPGAC/ UFBA,Lúcia Fernandes Lobato e Érico José Souza de Oliveira, cujos doutoramentostive a honra e o prazer de orientar. São eles que organizam a presente publicação.E o veículo é nosso periódico, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensãoem Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, os Cadernos do GIPE-CIT, que publicamos já há dez anos.

Na vida, assim como na arte e na academia, quando tudo corre bem,andamos, voamos, navegamos, subimos em espirais, passando por muitasencruzilhadas, o tempo todo. Por isso precisamos, sempre, fazer escolhas, usandoo verbo, aquilo que distingue uma coisa da outra. De fato, é a linguagem que nospermite avançar. Mas é também a linguagem – nossa língua – que pode nosprender e fazer ficar parados, empacados. Pode até mesmo nos fazer retornaraos inumeráveis becos sem saída que existem por aí. A linguagem liberta, mastambém pode aprisionar, pois a tentação de nos direcionarmos a nossos própriosumbigos é muito grande, nessas espirais do mundo. É a armadilha abissal poronde nossa vaidade nos engole, é o rodamoinho das lamas movediças maisinternas de nós mesmos.

A busca do conhecimento pode nos levar a perder a alma, mas certamentepode também nos levar a contribuir para a formação de novos pesquisadores e acriação de conhecimento novo. A crença em nosso próprio conhecimento,contudo, pode nos abrir os caminhos do mundo, mas também pode nos levar anossa própria perda, de ponto de vista, da necessária humildade e recuo, quando

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de eventuais passos falsos, tão naturais para quem anda muito. Só quem nãoanda não se machuca (?), nem a si nem aos outros. Jean Duvignaud caminhoumuito, formou muita gente e nos legou obras de referência, particularmente nasáreas das artes do espetáculo, da sociologia. É certo que somos, a todo momento,levados a fazer escolhas, opções, eventualmente fazendo – ou perdendo – amigose colegas. Perdemos o professor, o colega e o amigo, mas ganhamos muito emnossa memória.

Esse é o risco da vida, da arte, da academia e das encruzilhadas, ondeencontramos os mensageiros, os línguas – intérpretes tradutores, as criançasperdidas, os exus e as pombagiras. É também aí que encontramos Hermes(Trimegisto) - o três vezes grande, que nos ensina a decifrar os textos e Mercúrio,o das asas – e capacete – alados, que protege as artes e o comércio. Pois, comonão poderia deixar de ser, foi nas encruzilhadas da vida, da arte e da academia,que conheci Jean Duvignaud, e foi nas escolhas de palavras para noscomunicarmos que eu cresci como pessoa, artista e acadêmico, correndo riscos,me movimentando – muito, ganhando e perdendo, errando e acertando. Masnão apenas eu é claro!

Tanta referência pessoal pode ser a reafirmação da tentação do doutorFausto, de conhecer o máximo e ser feliz para toda a eternidade. Mas, na verdade,trata-se apenas de um recurso retórico, para dar conta da grandeza do homemque perdemos em fevereiro de 2007. E que tanto se interressou por aquilo quenos encanta, a festa e o teatro, por exemplo, e pelo que é, simultaneamente,maravilhoso e também perigoso, o diferente, o diverso, o anômico.

Escritor, crítico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensaísta, cenógrafo eantropólogo, francês, dirigente máximo da Maison des Cultures du Monde, JeanDuvignaud foi um desses seres das encruzilhadas, mensageiros do conhecimento,que nos ensinam a andar, voar, navegar, subir, falar e fazer escolhas. No caso muitoparticularmente do GIPE-CIT e do PPGAC/ UFBA, nosso mestre é referência maior,sem dúvida e nos tem – muito – inspirado, tanto antes quanto depois de maio de1995, quando presidiu o colóquio de fundação da etnocenologia.

Com suas obras dedicadas ao teatro, numa perspectiva bastante ampla,à festa e à diversidade cultural da humanidade, numa perspectiva de simpatiacompreensiva, Jean Duvignaud nos legou um patrimônio útil e acessível,

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universalmente, mesmo que sua também brilhante atuação como gestor cul-tural, na França, seja um bem mais particularmente usufruído por quem conheceseu país. Do mesmo modo, honrado com sua participação, a convite de meuorientador Michel Maffesoli, como presidente da comissão julgadora de minhatese de doutorado, na Sorbonne, em 1990, eu e meus colegas presentes a esseritual de passagem acadêmico, na Sala Louis Liard, do histórico edifíciouniversitário, pudemos usufruir, mais particularmente, de sua preciosa experiência– e expressão – acadêmica.

Por isso meu prazer é multiplicado, aqui e agora, quando mais um leitor –deste Caderno do GIPE-CIT, de número 20, é informado que esta obra é dedicadaa Jean Duvignaud. E quando posso, num laivo deslavado de vaidade, arriscadosem dúvida, mas que, por isso mesmo, aumenta meu prazer, pois repito o poetaCaetano Veloso, “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”, reportar-me a trêsmomentos em que encontrei, nas encruzilhadas, o grande mestre.

O primeiro desses momentos – pessoais e envaidecedores, repito - ocorreuem Salvador, Bahia, em 1979. Foi quando, na Escola de Dança da UFBA, ondeentão eu começava a lecionar Filosofia da Dança, a convite dos professoresDulce Tamara Lamego e Romélio Aquino, por sugestão da colega Maria daConceição Castro Franca Rocha, li, deslumbrado, a Sociologia do Comediante(Zahar, 1972, trad. H. Facó, publicado originalmente em francês pela Gallimard,em 1965, com o título L’acteur, sociologie du comédien). Ali, pude percorrerum vasto panorama da história e da sociologia desses outros seres dasencruzilhadas, que são os atores, que vivem - e comunicam - entre a realidade ea fantasia, a sedução e a crítica, a servidão e a rebeldia.

O segundo desses momentos ocorreu na cidade de Cuernavaca, noestado de Morelos, no México, em 1996. Foi durante a realização do II ColóquioInternacional de Etnocenologia, quando o ouvi cantar – seguidas vezes - músicasbrasileiras e falar entusiasmado de nosso povo, de nossos artistas e de nossopaís. Na companhia de Dionísio, nos luxuosos jardins de Cuernavaca, nas ruínasde Xoxicalco e nas monumentais montanhas de Morelos, testemunhei, porexemplo, a força do Teatro Campesino e Indígena, fundado em 1971 e que temsuas origens em cerimônias, danças, festas e manifestações artísticas tradicionais

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dos povos e comunidades indígenas e camponesas mexicanos, com a liderançade María Alicia Martínez Medrano. Poder acompanhar Monsieur Duvignaud emseus comentários sobre o Brasil, o México, a Europa e a África, nessa ocasião,encheu de sangue meu espírito e de ar meu corpo. O livro se fazia gente econhecimento e eu nasci de novo nesse momento.

O mais recente momento ocorreu em 2005, quando o visitei em sua casanatal, na cidade de La Rochelle, na Charente Maritime francesa. Conheci entãosua família (como ele, também interessada pelas artes do espetáculo e peladiversidade cultural), bem como seus objetos de estimação, espalhados portoda a casa, muitos levados para ali daqui do Brasil. O Museu do Novo Mundo deLa Rochelle (la rebelle), um porto de circulação de bens materiais e simbólicos,encruzilhada da anomia, registra as relações históricas entre essa cidade e oBrasil. A casa de Jaen Duvignaud também.

Professor Duvignaud foi professor nas Universidades de Túnis, na Tunísia eTours e Paris Diderot (Paris 7, Jussieu), na França. Fundou várias revistas, entre asquais Argumentos, com o filósofo Edgar Morin, nos anos 50, Causa comum, como escritor Georges Perec e o filósofo Paul Virilio, nos anos 70, e Internationale del’imaginaire, com Chérif Khannadar e François Gründ, nos anos 90.

Seus livros mais importantes são: L'Acteur, esquisse d'une sociologiedu comédien, Paris, Gallimard, 1965. Rééd. L'Archipel, 1995; Durkheim, savie, son œuvre, Paris, PUF, 1965; Sociologie du théâtre, Paris, PUF, 1965.Rééd. Quadrige, 1999; Georges Gurvitch, symbolisme social et sociologiedynamique, Paris, Seghers, 1969; Anthologie des sociologues françaiscontemporains, Paris, PUF, 1970; Spectacle et société, Paris, Denoël, 1970;Introduction à la sociologie, Paris, Gallimard, 1971; Sociologie de l'art, Paris,PUF, 1972; L'Anomie, hérésie et subversion, Paris, Anthropos, 1973; LeLangage perdu, essai sur la différence anthropologique, Paris, PUF, 1973;Fêtes et civilisations, Paris, Weber, 1974; Le Théâtre contemporain, cultureet contre-culture, Paris, Larousse, 1974; Le Ça perché, Paris, Stock, 1976; LeDon du rien, essai d'anthropologie de la fête, Paris, Plon, 1977; Le Jeu dujeu, Paris, Balland, 1980; L' Or de la République, Paris, Gallimard, 1984; LePropre de l'homme, histoires du comique et de la dérision, Paris, Hachette,

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1985; La Solidarité, liens de sang et liens de raison, Paris, Fayard, 1986;Chebika, étude sociologique, Paris, Gallimard, 1978. Rééd. Paris, Plon, 1990;La Genèse des passions dans la vie sociale, Paris, PUF, 1990; Disl'Empereur, qu'as-tu fait de l'oiseau ? (récit), Arles, Actes Sud, 1991; Fêtes etcivilisations ; suivi de La fête aujourd'hui, Arles, Actes Sud, 1991; Perec ouLa cicatrice, Arles, Actes Sud, 1993; Le singe patriote. Talma, un portraitimaginaire (roman), Arles, Actes Sud, 1993; L'oubli ou La chute des corps,Arles, Actes Sud, 1995; Le pandémonium du présent, idées sages, idéesfolles, Paris, Plon, 1998; Le prix des choses sans prix, Arles, Actes Sud, 2001;Les octos, béant aux choses futures, Arles, Actes Sud, 2003; Le sous-texte,Arles, Actes Sud, 2005; La ruse de vivre, état des lieux, Arles, Actes Sud, 2006.

Seu interesse pelo teatro, pela festa e pela anomia compõe um sistemacoerente, tanto do ponto de vista conceitual quanto de sua produção literária. E énesse interesse que todos os leirores desse Caderno do GIPE-CIT tambémpoderão se encontrar e compreender a extensão da homeagem que aqui fazemosa Jean Duvignaud.

Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2007Armindo Bião

Coordenador do GIPE-CIT desde 1994

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FESTA:

Uma transgressão que revela e renova

Lúcia Lobato1

As festas, cada vez mais, vêem sendo reconhecidas no campo dasHumanidades como um fenômeno necessário para a renovação e restauraçãodo equilíbrio coletivo. Autores como Jean Duvignaud e Norberto Luiz Guarinelo, apartir de enfoques distintos, dedicaram atenção especial ao tema buscandocompreender seu significado histórico e social na transformação das vidas emsociedade.

Ambos ressaltam o lúdico como um dos elementos constitutivos das festas.Nesse sentido Johan Huizinga (2004, p. 234) argumenta que:

Uma verdadeira civilização não pode existir sem um certo elementolúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio,a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último dahumanidade, compreendendo que esse está encerrado dentro decertos limites livremente aceitos.

Este elemento lúdico tem expansão garantida nas festas. Digamos que oshomens, para conviver com suas limitações acordadas em sociedade,desenvolveram uma espécie de fair play, que seriam ações realizadas de boa fée com um evidente sentido lúdico.

Para Duvignaud a festa estaria contemplada nesse savoir faire que destrói aaparente normalidade da vida coletiva, pois quebra com a seqüência do cotidianoinstaurando o que sabiamente denominou “subversão exaltante” (1983, p. 31).Estaria na essência da festa a capacidade de despertar e animar os sentidos. Nelao participante perde o domínio da percepção e imerge no terreno das “dimensõesocultas” que o remetem, por sua vez, à dimensão do imaginário.

1 Professora Doutora da Escola de Dança e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escolade Teatro e da Escola de Dança da UFBA.

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As “dimensões ocultas” (DUVIGNAUD, 1983, p. 55) são dimensões daexistência que deixam de corresponder às conformações tradicionais ou àsconfigurações estabelecidas do espaço cotidiano e em geral contestam edestroem tais formas.

As festas acontecem em extensões existenciais que são, para o autor, porexemplo, as ruas, as praças, os mercados, os bares, enfim, qualquer espaçoonde pessoas possam se encontrar e comemorar um acontecimento ou atémesmo o simples encontro. É o lugar privilegiado do possível, da transgressão edo desafio. Nele a festa promove um recorte e constrói um cenário que pode sersocial, religioso, militar entre outros, identificado pelos símbolos da tradição ondeas pessoas vão interagir se vestindo, se movendo, cantando e dançando comopersonagens de uma cena.

Duvignaud sublinha na festa o elemento do transe que, segundo ele,instaura um estado onde tudo é possível. Para o autor a festa não está vinculadaà normalidade, à funcionalidade, nem à rentabilidade, o que não a torna por essarazão uma irracionalidade. A festa tem uma lógica interna que a constitui e paracompreendê-la é necessário o estado presencial. É preciso vivenciá-la, respiraro seu ambiente, mesmo como um espectador com o “corpo contraído”. Odinamismo da festa é repleto de performances e ações espetaculares, queconsagram a razão da existência e promovem a renovação. Nesse sentido, parao autor o elemento orgiástico é o principal responsável das festas.

Norberto Luiz Guarinello, partindo de uma outra ótica, propõe pensara festa a partir de quatro categorias de análise: 1º- Fazer uma fenomenologiada festa sem ignorar os sentimentos, os afetos e as emoções vivenciadaspelos participantes; 2º- Não pensar a festa como uma instituição passível dehistória; 3º- Abandonar a proposição de uma tipologia das festas; e finalmente,na 4ª categoria, propõe entendê-la como estrutura do cotidiano e não comouma realidade oposta. A partir dessas categorias elabora a seguinte definiçãopara a festa:

A festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, umaação coletiva, que se dá num mesmo tempo e lugar definidos eespeciais, implicando a concentração de afetos e emoções em

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torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujoproduto principal é a simbolização da unidade dos participantesna esfera de uma determinada identidade. (GUARINELLO, 2001,p. 972)2 .

É importante destacar que o autor não compreende o cotidiano como adimensão do particular, mas sim o espaço e o tempo concreto das realizaçõessociais. Para Guarinelo, a festa é parte integrante deste cotidiano e implicanecessariamente uma estrutura de produção e de consumo que vai determinaruma estrutura de poder que, por sua vez, tentará impor sua identidade, seusgostos, sua ideologia. Mas por outro lado, reconhece que por mais controladae manipulada que seja uma festa, sempre é um ato de explosão coletiva eproduzirá identidades provisórias em diferentes graus. Produto da realidadesocial, a festa produz identidades, mas nunca alcança o consenso, muito pelocontrário ressalta e expressa os conflitos e as tensões dessa mesma sociedade.

Segundo Guarinelo, a festa unifica a partir de suas próprias regras ecódigos de conduta, mas também diferencia. É possível dizer que cria uma espéciede unidade diferenciada que aglutina extremos aparentemente contraditóriosnuma prática lúdica ao mesmo tempo de cooperação e competição.

Na visão de Guarinelo, resumindo, a festa implica numa produção socialque subentende um trabalho com custos, planejamento, hierarquias e funçõesenvolvendo uma participação coletiva que se legitima e conseqüentemente de-fine suas regras.

Em outra direção, para Duvignaud nenhum regulamento sobrevive nasfestas, pois não será obedecido e nenhum ideal conseguirá se fixar. Nomomento em que a festa se instaura se apoderando de um determinadoespaço, é estimulada à digressão e o homem se vê diante de um mundo sem“códigos” num reinado do desregramento. Segundo o autor é nesse momentoque a festa se torna o instrumento para a comunidade alcançar a suafinalidade última: o mundo reconciliado a partir de um estado fraternal.

2 In JANCSÓ, Istven e KANTOR, Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa.V. II. SãoPaulo: Hucitec, EDUSP, Fapesp: Imprensa Oficial.

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Se relacionarmos os dois posicionamentos conceituais sobre o fenômenoda festa e visitarmos o sentido da celebração na Antiguidade seria possívelentender a festa de Guarinelo com um olhar apolíneo enquanto a festa deDuvignaud certamente só poderia ser apreendida sob as lentes de Dionísio.Enquanto Guarinelo privilegia a necessidade da obediência às regras e umacerta organização que implica acordos para o acontecimento, Duvignaud inverteessa razão apontando que é justamente o caráter da subversão ao estabelecidoque promoverá a festa.

O Carnaval é considerado uma festa por excelência. Se tomarmos comoexemplo para nossas conjecturas o carnaval baiano e suas transformaçõespodemos melhor compreender as distinções propostas pelos dois autores. Éinquestionável que o carnaval baiano deixou de ser o espaço da irreverênciaespontânea, da brincadeira inconseqüente e da farra coletiva. O que antes era arealização da vontade festiva descompromissada transformou-se em exibiçãono formato de uma espetacularidade produzida, permitida e controlada pelosórgãos oficiais do poder municipal e estadual. O atual carnaval baiano,profissionalizado e mercadológico, tornou-se um teatro vivo da sociedade,passarela da performance dos famosos e dos políticos. Tornou-se a vitrine deprodutores, emissoras locais, nacionais e internacionais interessadas mais naexploração dos efeitos da “imagem lucrativa” que nos registros da festa em si.

Nessa nova realidade as entidades populares, para sobreviver, têm que seintegrar e interagir com essa proposta de festa. Para tanto devem provar que têmum produto de valor, pois são portadoras legítimas das simbologias que dão aimagem e a digital local da festa. Tudo isso leva ao fenômeno contemporâneode fortalecimento de uma cultura popular peculiar que, ao contrário das culturasde matrizes regionais tradicionais, supera os limites geográficos e se impõecomo fenômeno planetário: a cultura midiática. Esta nova cultura veicula umamentalidade e um conjunto de valores idênticos em qualquer parte do mundo, aserviço de uma indústria em expansão, a indústria cultural.

A festa passa a ser um novo e atrativo produto de mercado que impõe atodo momento a novidade e o inédito. Assim são introduzidas as técnicas queatingem a emoção e acionam uma lógica da diversão. Nesse sentido a festa é

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cooptada para o marketing que seduza e ative esse desejo criando umanecessidade não natural de consumir.

E é nesse momento que cabe refletir sobre as propostas dos autores dereferência nesse artigo pensando o carnaval contemporâneo de Salvador.Estamos diante de um carnaval apolíneo ou dionisíaco? É um reflexo do cotidianocontemporâneo da mentalidade soteropolitana? É um evento que exclui ouinclui? Qual é a sua prática marcadamente lúdica? Quais são os elementos quedeterminam a cooperação e a competitividade? Onde é possível encontrar oespontâneo, a brincadeira, a descontração e a farra? Onde a diversidade estáestimulada? Onde há digressão e a quais códigos e padrões?

Mas, seja lá como for, a festa é sempre presencial e é renovação. CitandoHuizinga (2004, p. 222) em tempos contemporâneos, “o jogo se transforma emnegócio” e, porque não os negócios se transformam em jogo. Essas são apenasconjecturas acadêmicas que estão ao largo da festa. E vale lembrar que muitasvezes o que é festa para uns pode não ser para outros, mas indubitavelmentetodos sabemos o que é uma festa.

Bibliografia:

DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições UniversidadeFederal do Ceará; Rio de Janeiro Tempo Brasileiro: 1983.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa Trabalho e Cotidiano. In: Jancsó,Istvan e Kkantor, Íris Festa: Cultura e Sociabilidade na AméricaPortuguesa. V.II. São Paulo: Hucitec; Editora Universidade de São Paulo/Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. 5ª ed. SãoPaulo: Editora Perspectiva, 2004.

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A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE AFESTA DO CONGADO

Valeska Ribeiro Alvim3

Após a ocorrência da disciplina Etnocenologia que tem como linha mestra oestudo das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados, oPrograma de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA resolve nos agraciar, commais uma disciplina voltada para as práticas espetaculares que se intitula Festas eEspetacularidade4 . Tal disciplina focaliza os fenômenos das práticas festivas, suasformas de espetacularidade e suas funções sócio-culturais e civilizatórias.

Durante a disciplina, a partir das aulas expositivas, leituras dirigidas,seminários avançados e debates com convidados que têm vasto conhecimentono assunto, busquei abordar uma manifestação popular como exercício paracompreender a espetacularidade5 ,como categoria filosófica, além de abordaras questões da tradição e as reinvenções vivenciadas pelas manifestaçõespopulares na contemporaneidade..

O avanço desses estudos traz possibilidades alternativas para ainvestigação, fundamentação teórica e aperfeiçoamento dos processos criativosde alguns profissionais da área da dança. Muitos ainda têm como referencial oolhar eurocêntrico6 e, insistem em pensar e trabalhar as técnicas já codificadascomo, por exemplo, o Balé clássico, a Dança Moderna, como únicasrepresentantes da linguagem da dança, o que muita das vezes acaba excluindoas outras formas cênicas.

3 Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente mestranda doPrograma de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.

4 Este texto foi produzido durante a Disciplina “Tópicos especiais em Artes cênicas -TEA 507” ministradapelos professores Lúcia Lobatto e Érico José.

5 De acordo com o professor Bião espetacularidade é “o que ultrapassa o universo rotineiro, que revelarituais e os encontros inter-pessoais extraordinários ou extracotidiano”.

6 A tendência para julgar a realidade social, política, cultural ou antropológica de uma dada comunidade deacordo com os critérios da cultura européia denota um ponto de vista eurocêntrico. A cultura da Europatorna-se o contexto de referência legitimadora e exclui qualquer realidade alternativa.

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Sob essa perspectiva de um corpo total7 , penso que a análise das formasde produção e transformação das chamadas manifestações populares ofereceuma alternativa para as práticas redutoras e tecnicistas sob as quais aqueles quese ocupam do oficio de dançar estão acostumados a pensar a dança e seuensino. Tal abordagem, que se diferencia do etnocentrismo, requer a visão docorpo como algo simbólico dotado de pensamento, espírito e emoção, bemcomo do contexto histórico-social no qual está inserido.

É sob esse enfoque que me proponho a pensar o congado como uma dasmanifestações de cultura popular que possibilitam um olhar acerca daespetacularidade.

Antes de adentrar na manifestação em questão, teço inicialmente algumasconsiderações sobre o uso do termo festa. Empreendo, em seguida, a festa doCongado tal como é experienciada pelos congadeiros de São José do Triunfo,município de Viçosa, Minas Gerais.

Mas afinal o que é uma festa? Para Norberto Luiz Guarinello (2001, p.969), o caráter vago desse termo pode reunir uma série de entendimentos que sechocam: Os sentidos que o próprio senso comum atribui à festa são desta forma,bastante fluidos, negociáveis e contestáveis. Segundo o autor, a festa é parte docotidiano de todas as sociedades humanas, necessária a esse cotidiano sendo,portanto, algo integrado e não adverso a ele.

Na tentativa de entender esse termo, geralmente tratado de formaimprecisa, Guarinello aponta algumas características sob as quais a festacostuma ser circunscrita. Entre elas, está o fato de que implica uma determinadaestrutura social de produção; envolve a participação concreta de um coletivo,distribuindo-se dentro de uma determinada estrutura de produção e de consumoda festa, na qual ocupam lugares distintos e específicos; aparece como umainterrupção do tempo social, uma suspensão temporária das atividades diáriasque pode ser cíclica, ou episódica; articula-se em torno de um objeto focal, quepode ser um ente real ou imaginário; por fim, segundo o autor, a festa é uma

8 Não dualista, ou seja, que não vê o corpo como algo separado da mente, não eurocentrica, um corpodotado de emoção e, que a todo tempo intercâmbeia e dialoga com o contexto no qual está inserido.

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produção social que pode gerar vários produtos, tanto materiais comocomunicativos ou, simplesmente, significativos.

A conclusão de Guarinello é que a festa é, portanto, sempre umaprodução do cotidiano, coletiva e que se dá num tempo e espaço definidoe especial. Tal definição assemelha-se, como admite o próprio autor, aocaráter do jogo. Johan Huizinga (1996, p. 25) também atribui uma estreitarelação entre jogo e festa:

Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente,pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempoe espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regrasestritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogotêm em comum suas características principais. O modo mais íntimode união de ambos parece poder encontrar-se na dança.

O caráter espetacular da festa está presente em suas característicasprincipais, tais como sua organização coletiva e o rompimento do cotidiano numtempo/espaço. Para Pradier (1997, p. 02), por exemplo,

O adjetivo espetacular designa uma variável intermediária quese refere a um modo especifico de tratamento de informação sen-sorial, quando a intensidade de um objeto percebido contrastaem relação ao ambiente. (...) a palavra “espetacular” só existepara nós sob a forma adjetival, enquanto que “espetáculo” designaum objeto finito.

Mendes (2000, p. 80) chama atenção para o fato de que uma abordagemetnocenológica sobre manifestações populares abre a possibilidade para numanova visão do corpo humano que pode contribuir para as práticas cênicas: Ocorpo como atividade simbólica, cujas dimensões físicas, somáticas, cognitivas,emocionais e espirituais interagem entre si e com o contexto cultural no qual elese insere.

A festa do congado

O congado tem uma origem luso-afro-brasileira, uma vez que a devoçãodos negros a Nossa Senhora do Rosário foi introduzida ainda na África pelos

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dominicanos8 no final do século XV, ao fornecer elementos europeus comoestratégia de dominação religiosa. A Igreja no Brasil, por sua vez, desde o inícioda colonização reforçou essa crença, enquanto os negros juntaram esseselementos aos rituais que sempre permearam a cultura africana para dar formatoe brilho à festa. Logo, o que conhecemos hoje como Congado é resultado dosincretismo entre a religiosidade africana, portuguesa e, mais tarde, brasileira.Como confirma Souza (2002, p. 179):

(...) foi na América portuguesa que a eleição de reis negros e suascomemorações festivas esteve mais difundida, existindocomprovadamente desde o início do séc. XVII, ganhando força noXVIII e ocorrendo ainda hoje em várias localidades brasileiras.

Câmara Cascudo (1993, p. 44) ratifica o pensamento de Souza ao explicaressa questão: de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradiçõeshistóricas, os usos e costumes tribais de Angola e de Congo, com influênciasibéricas no que diz respeito à religiosidade.

Os processos históricos de sua formação e a religiosidade vivenciada noCongado evidenciam a devoção a Nossa Senhora do Rosário.

O início de toda essa devoção dos negros africanos a Nossa Senhora doRosário se atribuiu à lenda, em suas muitas variantes transmitidas de geração ageração, nas mais diversas versões regionais, tendo como a mais recorrente dashistórias a que conta o aparecimento inesperado da imagem de uma Santa nomar que, imediatamente, foi levada pelos brancos para uma capela, construídapelos escravos na qual, ironicamente, não podiam entrar.

A Santa, que logo recebeu preces por parte dos brancos, não ficava nacapela e por várias vezes voltou ao mar.

As várias tentativas de mantê-la na capela e a decepção com sua voltasucessiva para as águas, fazem com que os brancos rendam-se à insistência dosnegros e permitam que eles rezem para imagem. A reza se dá quando ummoçambiqueiro9, segundo narra a tradição oral, acompanhado de seu tambor de

8 Frades da Ordem São Domingos.9 O Moçambiqueiro é o brincante que faz parte da comitiva dos Reis e Rainhas da festa do Congado.

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ritmo vibrante, vai até a Santa e, então, dança com seus pés descalços enquanto rezaem forma de canto, num tom que revela fé e humildade. A imagem, conforme reza alenda, então se movimenta nas águas e os acompanha para nunca mais voltar.

É a partir dessa crença em Nossa Senhora do Rosário que,tradicionalmente, no mês de outubro, os devotos realizam a cerimônia doCongado. As manifestações possuem particularidades, de acordo com cadaregião que acontece, que podem envolver as cores da farda, do capacete, aorganização espacial, os ritos, os instrumentos, o modo como desenvolvem suasseqüências coreográficas. Deste modo, é de extrema necessidade que sejamaqui colocadas as particularidades relativas ao Congado de Nossa Senhora doRosário de São José do Triunfo, localizado na Zona da Mata mineira.

O Congado apresenta um caráter religioso e ritualístico, realizado nacomunidade, nos meses de maio e outubro, sendo organizado espacialmenteem forma de préstitos, cortejos. No dia da festa, os congadeiros reúnem-se emduas filas, o Rei Congo, a Rainha Conga, o Rei e a Rainha de compromisso, osAnjos, o Reinado, o Rei do Meio, o Príncipe e a Princesa, estes últimospermanecem durante a organização da fila, ocupando o corredor interno.

A indumentária desta festa está correlacionada à imagem da santapadroeira, ou seja, a fila do lado direito usa o saiote e o capacete rosa quecorrespondem à cor da veste da santa; a fila do lado esquerdo usa o saiote ecapacete azul correspondentes à cor da manta. Por baixo da roupa, oscongadeiros usam blusa de manga comprida, calça e sapatos brancos.

A programação dura três dias, começando na sexta-feira e indo até odomingo, com cantos, dança coroação de seus reis e rainhas, príncipes eprincesas, banquetes, missas e fogos de artifício. Um ritual coletivo que reúneem sua prática tradicional todos os elementos que marcam o caráter da festacomo um ato espetacular de ressignificação do cotidiano.

Da Matta (1990, p. 24), acredita ser de grande importância umainvestigação dos rituais coletivos por proporcionarem a reprodução de valoresculturais e, ao mesmo tempo, reapresenta e discute distinções hierárquicaspresentes no cotidiano da sociedade:

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É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para sepenetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologiadominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permitetomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas quea própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais–eternos.

Em Minas Gerais, onde acontece a maioria dos festejos do Congado, adominação colonial esteve intimamente vinculada às ações missionáriascatólicas no empreendimento colonial português. A significativa quantidade deirmandades leigas de "homens pretos", formadas por escravos, negros e alforriadosque se estruturaram em torno de alguns santos, foram utilizadas pelo sistemaescravista como mecanismo de controle, ao mesmo tempo, as irmandades foramum meio pelo qual os negros puderam vivenciar aspectos de sua cultura,demonstrando elementos de sua concepção de mundo e proliferando certosrituais africanos, como alguns dos elementos que compõem as celebraçõesdramatizadas em Minas Gerais, revestindo a vivência do sagrado em umimportante identificador de resistência cultural.

A convivência dos elementos sagrados e profanos foi uma das característicasmais marcantes das irmandades. A justificativa para a existência das mesmas, muitasvezes se pauta na afirmação de que elas eram as únicas responsáveis por proporcionarum enterro cristão a negros, que na grande maioria das vezes eram abandonadospelos seus senhores na hora da morte. Portanto, desde a chegada em nossas terras,essas irmandades foram reconhecidas como uma forma de afirmação cultural.

Desta forma, pode-se concluir que desde a colonização, a manifestaçãocultural popular tradicional vem sofrendo inúmeras adaptações edescontinuidades no que diz respeito à estrutura ritual, por se tratar de umaprática dinâmica, não estática e imutável, que está em constante interação comoutros tipos de eventos, sejam eles sociais ou culturais: Não existem culturasinteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação dedeterminismo histórico, a classes inteiras – embora existam formações culturaisde classe bem distintas e variáveis. (HALL, 2003, p. 262).

O Congado é considerado uma tradição porque, através da transmissãooral de lendas ou narrativas, repassa valores e crenças de geração em geração.

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O termo tradição constantemente relacionado com o antigo, o resistente, oherdado vem do latim tradere, e quer dizer “trazer”. Buscar de uma época passadae trazer para a contextualização atual, ou seja, o campo das tradições abarcapráticas que possuem seus significados primeiros em lugares do passado, masque se relacionam de forma intercambiável com o presente, adaptando a práticatradicional a um contexto histórico atual.

Hobsbawm (1997) afirma que as tradições vão sendo inventadas ereinventadas, na intenção de preservarem certa conservação em relação ao passadodiante das constantes transformações do presente. Sendo assim, muitas alteraçõesno conteúdo das práticas culturais tradicionais se fazem necessárias como forma dereorganizar os sentidos, o que, de certa forma, explica a dinamicidade e reinvençãocotidiana de manifestações da cultura popular. Por exemplo, no Congado, também épossível perceber o diálogo dessas práticas com a atualidade sem deixar de ser vistacomo referência de memória, embora abra mão de determinados aspectos pormuito tempo conservados e agrupem outros contemporâneos.

Na mesma esteira de pensamento de Hobsbawm, a autora Vicente(2005, p. 78) coloca que sobreviver e resgatar são palavras cotidianas quandose fala em cultura popular e, que o uso delas demonstra um desejo que amanifestação permaneça e, ao mesmo tempo uma descrença de que aquelacultura resistiu até os dias de hoje.

A atualidade, com seu ritmo acelerado, permitiu algumas mutações nastradições, mas não extinguiu o desenvolvimento das culturas tradicionais,apenas as deixou mais sincréticas, menos cerradas, mais provocativas emseus significados e significantes.

Nesse sentido, interessa salientar a questão da temporalidade evocadanessas práticas culturais. Elas adquirem um caráter não linear, onde passado,presente e futuro se interconectam a todo o momento. A manifestação do congadorememora, no presente, práticas culturais e realidades sociais passadas que,possivelmente no futuro, estarão em constante modificação.

As manifestações culturais populares tradicionais trazem uma recorrenteponte transformadora entre passado e presente. Pensamento que remete à

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perspectiva apontada por Simson (2004) que afirma que ao compartilhar amemória os indivíduos constroem uma sólida ligação, baseada em uma bagagemcultural comum, usando os “óculos do presente” e experiências passadas, paraentão construir um gancho bem alicerçado para ações futuras.

E é nesse ato de compartilhar memória, que o aprendizado vai se dandonas manifestações culturais, como tão bem coloca Falcão (2002, p. 52):

Todas as formas de arte (canto, dança, música) na tradição africanapossuem o mesmo processo de aprendizagem, ou seja, um processoiniciático que ocorre desde a infância, imitando-se os mais velhos. Aaprendizagem está fundamentalmente ligada ao aspecto religioso, oreligare, em que os conteúdos culturais são transmitidos de geração ageração.

O que se apresenta no trânsito entre gerações fica nítido nos corpos dosmanifestantes, os brincantes congueiros vivem a memória do que há muito tempofoi vivido por seus antepassados. O Congado representa uma maneira única dosintegrantes se relacionarem com o seu corpo, memória viva de uma manifestaçãode resistência cultural e fé.

Comumente as pesquisas acerca dessas manifestações populares, nãolevam em consideração esse corpo simbólico, que de acordo com Ektin (2000)é aquele marcado pelo significante, isto é, um corpo conhecido pelo outro, queestá presente em seu discurso, que o nomeia e o caracteriza, fica limitado a umrelato de vestimentas, ritmos, cores do momento festivo, deixando, muitas dasvezes, de retratar a valorização do passado coletivo, as formas orais detransmissão dos saberes, a vivência da tradição no cotidiano, e o vínculo constantecom o sagrado.

O olhar sobre o Congado, levando em consideração esses elementos,possibilita uma nova abordagem sobre a manifestação e principalmente sobre suatransmissão. O ensino dos vários elementos que compõem tal manifestação difereda prática acadêmica que, sob a perspectiva eurocêntrica, desfacela o corpo atravésdas técnicas montadas a partir de uma visão unicamente anatômica e física.

Muitas vezes um brincante, integrante de um folguedo como o Congado,que cresceu fazendo parte daquela manifestação, ao levar as questões da festa

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para o universo acadêmico, preocupado em desenvolver uma pesquisareconhecidamente científica, acaba por desenvolver um trabalho que é estranhotanto para o seu universo de origem como para a própria academia. O resultadoé a descaracterização do próprio objeto de estudo e a conseqüente questãosobre as razões e objetivos para tal abordagem.

Esse olhar crítico, sobre os fenômenos cênicos, vê as manifestações alémda mera descrição, portanto, é a tentativa de contribuir para o ensino dessasmanifestações cênicas no universo acadêmico, levando em conta esse corposimbólico. Uma abordagem assim, num universo ainda tão marcadamente europeu,pode realizar com maior propriedade pesquisas sobre as manifestações populares,pois, exige que conceitos eurocêntricos sejam revistos e redimensionados.

A disciplina apresentou-se como um convite, uma possibilidade de discutire buscar caminhos para a compreensão das inquietações a respeito daespetacularidade, provocando questões a respeito da tradição, da conservaçãoe do novo, bem como da existência múltipla de entrelaçamentos que relacionamo acadêmico com a cultura popular.

Em consonância com este pensamento enfatiza Vicente (205, p. 22) acercados estudos das manifestações: (...) mais do que um objeto de estudo, ele seapresenta principalmente como uma posição a partir do qual é possível enxergaras relações simbólicas contemporâneas por vários ângulos.

Pensando assim, e ciente que o caminho não está concluído, pelocontrário, está sendo construído e que o ato de construí-lo modifica tanto quem oexerce quanto o produto final que se apresenta, espero que esse GIPE-CITproduzido a partir da disciplina Festas e Espetacularidade seja o primeiro, demuitos diálogos que emergem desse olhar que se engendrou enquanto discursocientifico e acadêmico para os fenômenos cênicos.

Bibliografia:

BIÃO, A. theatrelité et spectacularité.Une aventure tribale comtemporaine àBahia. Tomo I,tese de doutorado, Michel Maffesoli, Universidade Paris V, 1990,p.127.

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CASCUDO L. C. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. edição ilustrada.São Paulo: Global, 2001.

DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia dodilema brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1990.

ETKIN, G.E. O Corpo da Psicanálise. In. Cabeda, S.T. L(org) O corpo ainda épouco. II Seminário sobre contemporaneidade. Feira de Santana: NUC/UEFS.2000

FALCÃO, E. F. Metolodogia da mobilização coletiva e individual. JoãoPessoa: Editora da UFPB, 2002. P.28-97.

GUARINELLO, N. L. Festa, Trabalho e Cotidiano. In: Istvan Jancso; IrisKantor. (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. SãoPaulo: EDUSP/HUCITEC, 2001, v. 2, p. 969-975.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeuda Silva, Guaracira Lopes Louro. 9ª. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (orgs). Introdução: a invenção das tradições.In: A invenção das tradições. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

HUIZINGA, J. Homo Ludes: o jogo como elemento da cultura.Trad.JoãoPaulo Monteiro.

MENDES, E. B. B. Um abraço da etnocenologia no popular brasileiro. In: IReunião científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2000,Salvador. Memória ABRACE II - Anais da I Reunião Científica de Pesquisa ePós-Graduação em Artes Cênicas. Salvador: ABRACE,2000. p. 79-84.

PRADIER, J. M.. “Etnocenologia: a carne do espírito”. Trad. Armindo Bião.Paris, 1997.

SOUZA, M. de M. Reis Negros do Brasil escravista: história da festa decoroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

VON SIMSON, O. R. de M.. Memória, cultura e poder na sociedade doesquecimento. In: Revista da Faculdade de Educação e Centro de Memóriada Unicamp. São Paulo, 2004.

VICENTE, A. V. Maracatu Rural: o espetáculo como espaço social. Recife:Ed. Associação Reviva, 2005 •.

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REZAR, CANTAR E FESTAR — HOMENAGEM À SENHORADO ROSÁRIO:

pontuações sobre a Congada em Uberlândia/MG

Ana Maria Pacheco Carneiro10

De março, quando em geral os rosários são abertos, até meados denovembro, quando então os reinos se recolhem e se fecham, ostambores cantam em Minas e guiam pelas ruelas e pelos asfaltos, pelascapelas e Igrejas do Rosário, pelos quintais, as nações do congo que,com seus reis e rainhas, seus capitães e marinheiros, rematizam aÁfrica em terras das Américas. (MARTINS, 1997)

Ao som do tambor, Tá caindo fulô

Conheci o Congado11 em 2002, quando fui trabalhar no Curso de Teatroda UFU, Uberlândia/MG. Apesar das diversas informações recebidas sobre afesta, fui surpreendida uma tarde pelo som de tambores que soavam ainda longee, depois, cada vez mais perto. Um som forte, com uma cadência marcada — osom de um Terno de Congo que iniciava o período de rezas do terço e leilões,preparando-se para mais uma Festa em homenagem a Senhora do Rosário.

Durante quarenta dias, o mesmo deslumbramento aconteceu. Em algunsdeles, cheguei a ver o Terno: roupas cotidianas, simples, cerca de 30 pessoas —

10 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA; Professoraefetiva do curso de teatro FAFCS/UFU.

11 De origem africana, principalmente das áreas do Congo, Angola e Moçambique, onde vivia o povo bantu,o Congado é uma manifestação cultural católica e africana, que surge a partir da devoção à Senhora doRosário, disseminada pelos portugueses em suas conquistas. Devoção reforçada no Brasil, a partir doséculo 18, quando os negros, utilizando-se das formas rituais cristãs — única forma de conviver comseus mitos ancestrais —, reforçaram o culto e a festa. Origens lendárias também explicam o surgimentodo congado: a lenda de Chico Rei e a história da aparição de Nª Sª na linha do mar. www.uberlandia.gov.br;visitado em 21/11/2006.

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homens, mulheres, crianças e adolescentes que se dirigiam a alguma das casasdo bairro, cumprindo os rituais que todo ano se repetem.

Depois, chegou a Festa: o desfile dos Ternos, as danças e a música,símbolo marcante da Festa do Congo

Olha São Benedito é o santo! (bis)Viva Nossa Senhora do Rosário! (bis)

Senhor capitão, onde me mandá eu vou (bis)No palácio da Rainha nasceu um gai de fulô (bis)

Tá caindo fulô, eh, ehTá caindo fulô, eh, a!Lá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulôLá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulôLá na rua de baixo, lá no fundo da horta (bis)

A polícia me prende, olêlê, a Rainha me solta (bis)Tá caindo fulô, eh, ehTá caindo fulô, eh, a!Lá no céu, cá na terra

Eh, tá caindo fulô12

Junto a tudo isso, a transformação da própria Uberlândia com a festa — osurgimento de uma cidade alegre, colorida e negra13 . Uma cidade não adivinhada,ainda, por entre o burburinho cotidiano das movimentadas ruas de seu Centro oudas vazias e solitárias ruas do bairro de classe média em que moro.

Para mim, vinda do Rio de Janeiro, foi um reencontro com a energia dasfestas de rua, seus barulhos e sons; os cheiros das barracas de comida, os risos,

12 Congo cantado nas festas de São Benedito e Nª Sª do Rosário. Gravações: Dércio Marques e DorotyMarques (Álbum “Monjolear”); Luis Dillah e Pena Branca, com vocal de Vagamundo e Luiz Salgado(Álbum “ Cantigas do Cerrado”).

13 Os festejos são realizados por afrodescendentes, que constituem 42% da população da cidade. Entretanto,esse enorme contingente passa despercebido no cotidiano de Uberlândia, só se revelando por ocasião daFesta.

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as falas e os olhos vivos, brilhantes de um povo cuja presença não se faz tãodeterminante no cotidiano da vida na cidade. Um povo que, nesse dia, comoverdadeiro Rei Congo, domina aquele espaço.

Durante esses anos, tenho ouvido os tambores, visto a festa e apreendidoalgumas poucas informações que me trazem a compreensão do quanto meencontro realmente “no começo do princípio do início de algum conhecimentosobre o congado. (...) que devo estar sabendo quase nada, principalmente doessencial que é a vivência da fé em N. S. do Rosário pelos congadeiros...”14

O Santo e A Senhora: o Juizado de São Benedito e o Reinado deNossa Senhora

“Isso vem do começo do mundo” — assim se referem os devotos às “festasde santo de preto” que, identificadas com o tempo das origens de rituais denegros, são sempre associadas ao que pode haver de mais antigo, legadoimaterial ao mesmo tão presente e tão distante relacionado “à crença no santo,à fé na festa e à tradição dos festejos.” (BRANDÃO, 1978, p.65)

Considerados como os grandes protetores do povo negro, São Benedito eNossa Senhora do Rosário recebem anualmente as devidas homenagens doscongadeiros. O Juizado de São Benedito15 acontece em abril ou maio, próximoà Festa do Divino, — realizada no Domingo de Pentecostes, que geralmente “cai”em maio ou junho — e, juntamente com ele, abre o grande ciclo de “festas desanto”: Santo Antonio, São João, São Pedro, que se encerra em outubro, com oReinado de Nossa Senhora do Rosário.

Segundo a tradição, São Benedito era escravo na África; bom cozinheiro,nunca atrasava o almoço. Os senhores, só para vê-lo atrasar, mandavam-nobuscar as rezes no mato; mas ele ia, voltava e o almoço saía na hora certa e

14 Frei Chico, Congados: origens e identidade. http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadorigem.htm ; visitado em 21 nov. 2006.

15 Os congadeiros explicam o Juizado de São Benedito pelo fato de as cabeças de seu cortejo não seremcoroadas, pois os que as recebem não são reis, são juízes (Brandão, 1978).

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sempre saboroso. Dizem ainda, que era um homem negro muito inteligente, oque os senhores não aceitavam e, por isso, terminaram por queimá-lo vivo. Porsuas qualidades, o santo está sempre presente na Festa de Nossa Senhora, poisenquanto a Senhora comanda a festa, ele comanda a cozinha.

Em Uberlândia, realizado num bairro da periferia da cidade, o Juizado seconstitui ainda como uma festa “pequena”, apesar do incentivo que vemrecebendo, principalmente por parte dos congadeiros e do pároco atual. Assim,a Festa de Nossa Senhora do Rosário, considerada como de responsabilidadeda Irmandade16 que leva o seu nome, é realmente a grande “festa de santo” dacidade.

É ela ainda, a propiciadora da grande transformação do espaço urbanoquando, pelo breve período de sua duração, coloca em primeiro plano apopulação afrodescendente, ainda hoje rejeitada pela elite local.

Em entrevista a Brasileiro (11/03/2006), João Rodrigues (vulgo Bolinho),65 anos, morador do Bairro do Patrimônio, local reconhecido como o mais antigoponto de concentração de negros na cidade de Uberlândia, aponta barreirassociais explícitas existentes na cidade, ainda na década de 60, quando a subidada Av. Afonso Pena (uma das principais avenidas da cidade) era dividida: do ladodireito, os bares e confeitarias freqüentados pelos brancos; do lado esquerdo, acalçada destinada aos negros, que não podiam entrar naqueles locais. “Mesmono Uberlândia Clube eles não aceitavam negros, nem para lavar banheiro”,acrescenta ele. (BRASILEIRO, 2006, p.11)

Se hoje as barreiras não são tão explícitas, reclamações e grosseriaspraticadas contra os congadeiros atestam, ainda hoje, um grau bastante elevadode rejeição às atividades culturais e religiosas praticadas pelos negros.

16 A Irmandade de Nª Sª do Rosário de Uberlândia data, conforme seu livro de Atas, de 01 de Novembro de1916, quando foi oficialmente instituída, com a presença de 25 irmãos fundadores (Brasileiro, 2006). Asprimeiras Irmandades de Nª Sª do Rosário dos Pretos, assim como as Irmandades de São Benedito noBrasil datam possivelmente de anos não muito posteriores à chegada dos primeiros escravos para aslavras de ouro. Seus livros de Atas, guardados na Igreja, possuem referências importantes sobre seusparticipantes, quantias arrecadadas e gastos feitos. (Brandão, 1978:147, nota 69)

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O movimento do Congado na região começou por volta de 1876, quandoos negros reuniam-se nas beiras do Rio das Velhas (Olhos D'água) — região dodistrito de Santa Maria (atual Miraporanga) e do arraial de São Pedro doUberabinha (atual Uberlândia) —, e saíam "batendo caixa", numa festividadeainda sem ordenação sistemática.

Com o passar dos anos, a Festa do Congado passou a ser comemoradana própria cidade17, sempre no último domingo do mês de outubro, quandoaconteciam, simultaneamente, a Festa da Irmandade dos Homens Pretos naIgreja do Rosário, e a festa dos brancos na Igreja Matriz. A partir de 1917, entretanto,os padres acharam por bem mudar o dia da festa dos negros, que passou a serealizar no segundo domingo de novembro18 . Apenas em 2003, quando um novopároco entendeu que a festa devia retornar para o seu tempo “certo”, ela voltou aser comemorada a partir do segundo domingo de outubro19.

Disseminada pelo interior dos estados de Minas Gerais20 , Espírito Santo,São Paulo, Goiás, a Congada apresenta-se sob diferentes formatos. Em algunslugares, está relacionada à escolha e coroação do Rei Congo e de sua Rainha;em outros, acrescentam-se ainda aspectos de luta entre o Bem, representadopelos cristãos e o Mal, representado pelo grupo de mouros. Trajadosrespectivamente de azul e vermelho, nas movimentações simbólicas de

17 Conta-se que os negros chegavam das fazendas em carros de bois e se agrupavam debaixo de umagrande árvore, no campo onde hoje se encontra a principal praça da cidade, a Praça Tubal Vilela.Depois, seguiam por uma trilha até a Capela de Nª Sª do Rosário, e ali realizavam a Festa. Em princípiosde 1891, foi proposta a construção, na atual Praça Rui Barbosa, da segunda Capela. Ampliada em 1931,foi tombada e restaurada (1987-1988) e hoje, como Igreja de Nª Sª do Rosário, pertence ao PatrimônioCultural da cidade. www.uberlândia.gov.br; visitado em 21/11/2006.

18 As trocas de datas da comemoração feita pelos negros envolvem questões conflituosas, relacionadasa preconceitos sociais que remontam às origens da cidade, quando a comunidade branca realizava suacomemoração de forma mais discreta, com novenas e missa na catedral, quermesses, leilões ebarraquinhas. A festa dos negros, ruidosa, com desfiles, som de tambores e danças não era bemrecebida pela elite da cidade. Ainda hoje essas questões perduram e muitas vezes causam conflitosentre os quartéis de Congo e as comunidades onde estão inseridos.

19 Em depoimento registrado em 05/10/2003, o pároco Olimar Rodrigues justificou a mudança como uma“tentativa de trazer novamente a união da liturgia com a manifestação popular”, afirmando ainda que adecisão fora tomada em conjunto, em assembléia que contava com a presença de todos os capitães dosTernos e do Presidente da Irmandade. (cf Brasileiro, 2006:39)

21 De acordo com o Atlas de festas populares de Minas Gerais, atualmente existem no estado 326 Festasdo Rosário, presentes em diversas regiões. www.foliacultural.com.br; visitado em 21/11/2006.

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embaixadas e cantos, os cristãos sempre vencem os mouros, que são, por fim,batizados.

Em Uberlândia, a Congada consta principalmente do cortejo dos Ternosde Congo — apesar de ter inseridos, em seu interior, outros momentos rituais —, momento em que a

voz dos tambores dos moçambiques (...) remont[a] aos tempos de vidados escravos africanos na colônia brasileira, quando negros entãocristianizados introduzem disfarçadamente, na formação desses grupos,todas as suas vivências do antes e do após as travessias no Atlântico.21

Participante e pesquisador das Congadas, Jeremias Brasileiro, moradorde Uberlândia, assim expressa sua compreensão sobre elas:

As Congadas são muitas coisas, principalmente um costume culturalque propicia aos praticantes continuar mantendo um elo deancestralidade com uma África Memorial. Vinculados a um grupo étnicoe social de feições catolicistas, os congadeiros procuram em seusfestejos cíclicos reafirmar sua identidade com esse costume cultural tãopresente em expressiva parte da população afrodescendente, emespecial, nas cidades de Minas Gerais.22

Contando com um número variado de componentes — os Congos eTernos são geralmente compostos por cem pessoas, enquanto osMoçambiques possuem aproximadamente quarenta pessoas —, os Congostêm uma estrutura rígida e clara: o general ou comandante, o dono do Terno, équem possui a patente, a permissão para o grupo existir; os 1°, 2° e 3° capitãessão responsáveis pela organização do terno; o guarda ou fiscal é o zelador dosinstrumentos e das crianças nas ruas; alferes são os soldados que puxam asfilas; são caixeiros de frente os tocadores de caixa que fazem evolução naporta da Igreja; e os soldados completam o terno.

Alguns Ternos possuem, ainda, o grupo das "Virgens do Rosário" que,comandado pela madrinha do Terno, carrega um ou dois estandartes na frente do

21 Brasileiro, Jeremias. Um reinado que persiste com seu jeito congadeiro de festejar. Artigo. 2005.. http://www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.

22 Idem.

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cortejo. Formado por onze meninas, de acordo com a tradição todas elas devemser virgens, como símbolo de pureza e devoção a Nossa Senhora do Rosário.

O estandarte, com a imagem votiva, é geralmente ornamentado com fitas,seguras pelas virgens. Faz parte, juntamente com o mastro votivo, dos elementossimbólicos do ritual da Congada.

Levantado no início das festividades da manhã de Festa, o mastro votivosimboliza a união entre Terra e Céu, vivos e mortos, corpo e alma. A força dessasimbologia faz com que ele caracterize o centro energético da Festa, em tornodo qual os Ternos dançam e recriam laços ancestrais. Aquele que toca e beija omastro terá muita sorte e receberá muitas graças.

Em Uberlândia, são levantados mastros em homenagem a São Beneditoe Nossa Senhora do Rosário, durante ritual em que as guardas entoam cantos,pontuando os movimentos dos congadeiros.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário: Um Reinado que Persiste

No segundo domingo de outubro, desde cedo, a movimentação na cidadejá é grande: o som dos tambores se junta a cantos no interior de algumas casas;homens de chapéus com fitas, bordados ou com coroas na cabeça, trajescoloridos; mulheres com suas mais lindas roupas, elegantes, o largo sorrisoestampado no rosto; crianças e adolescentes paramentados com óculos escuros,os jovens com suas cabeças raspadas, as moças com tranças e contas ou floresnos cabelos — são capitães do Congo, integrantes da Congada, devotos que sepreparam para a festa.

A cada um deles, independentemente de qualquer ação mais direta quenela possam exercer, caberá como tarefa nesse dia: rezar e cantar; praticar atosde fé em momentos rituais; comer e beber do que simbolicamente se oferece;deixar-se envolver pelo “espírito da festa”, com disposição para “festar”.

É principalmente essa disponibilidade que dá o tom da festa, abrindoespaço para o riso e para a alegria. O ambiente é, portanto, mais festivo-religiosodo que contrito-religioso. É de maneira lúdica, em que não falta o riso e adescontração, que todos distribuem, ao mesmo tempo, suas obrigações paracom a festa e as alegrias a retirar dela.

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Abarcando um período maior que o de sua realização propriamentedita, pode-se dizer que a festa, em seu todo, consta de um antes, um durantee um depois.

O Antes:

Quarenta dias antes da data, têm início as campanhas, destinadas aarrecadação de recursos. São visitas a residências, onde se reza o terço e faz-se o leilão de prendas. Diariamente elas acontecem; a imagem da Santa élevada a uma casa previamente contatada, em longas caminhadas pelas ruasda cidade, muitas vezes atravessando de um bairro a outro, sempre ao som dostambores de Congo.

O dinheiro arrecadado servirá para os preparativos da festa: conserto deinstrumentos, renovação do estandarte e das vestimentas. Algumas famíliascostumam também, em lugar do leilão, fazer doações de cestas básicas, quepodem ser vendidas pelo grupo ou ainda contribuírem para a comida da festa.

Nove dias antes desta, é realizada a Novena a Nossa Senhora, na Igreja doRosário; após a novena, diariamente, na porta da Igreja, são realizados os últimosleilões, cuja arrecadação é dividida, a cada dia, entre grupos previamente designados23.

No sábado à noite e no domingo, as guardas convidadas, vindas de outrascidades e estados, começam a chegar.

23 São em número de 24 os ternos de congo em Uberlândia: 1 - Congo Camisa Verde, B. Aparecida; 2 -Catupé Nª Sª do Rosário, B. Dona Zulmira; 3 - Marinheiro de Nª Sª do Rosário, B. Sta Mônica; 4 - CongoSainha, B. Sto Inácio; 5 - Marinheiro de São Benedito, B. Tibery; 6 - Moçambique de Belém, B. StaMônica.; 7 - Moçambique Pena Branca de Nª Sª do Rosário, B. Canaã; 8 - Moçambique Princesa Isabel,B. Patrimônio; 9 - Terno de Congado Sta Efigênia, B. Brasil; 10 - Azul de Maio, B. Roosevelt; 11 -Moçambique do Oriente, B. Roosevelt; 12 - Congado Congo Branco, B. Tibery; 13 - Terno de Catupé Azule Rosa, B. Sta Mônica; 14 - Amarelo Ouro, B. Saraiva; 15 - Verde e Branco, B. Pampulha; 16 - RosárioSanto, B. Aparecida; 17 - Moçambique Estrela Guia, B. São Jorge; 18 - Moçambique de Angola Nª Sª doRosário e São Benedito, B. Daniel Fonseca; 19 - Congo São Benedito, B. Tibery; 20 - Congo Prata, B.Martins; 21 - Moçambique Guardiões de São Benedito, B. Sta Rosa; 22 - Congo São Domingo, B. Planalto;23 - Beiramar de São Benedito, B. Morumbi; 24 - Moçambique Raízes, B. Patrimônio.

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O durante:

A festa propriamente dita realiza uma confraternização dos ternos, comdesfile pela cidade, coroação dos novos festeiros e de Nossa Senhora do Rosárioe São Benedito, procissão com as imagens dos Santos festejados e missa solene.É o momento em que a cidade realmente se transforma, com a presença maciçada comunidade negra em seu Centro vital.

A primeira atividade desse dia é realizada nos quartéis — sede de cadaterno, localizados em diferentes (e muitas vezes longínquos) bairros da cidade,para onde se dirigem todos os componentes de cada grupo. É a cerimônia daAlvorada, realizada com a queima de fogos de artifício — a rouqueira — pelocomandante do terno e que marca o início dos festejos.

Em seguida, em cortejo, os Ternos de Congo, com banda de músicosformada por pífanos, violão, zabumba, caixa ou outro instrumento percussivo,encaminham-se para o ponto de concentração, no Centro da cidade24, a partirdo qual desfilam até a Igreja do Rosário, onde as imagens de Nossa Senhora doRosário e São Benedito abençoam seus fiéis, enfeitadas com flores e tendo aseu lado caixas ou cestos para recolhimento de oferendas.

Nesse momento, a Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja, já estátomada: são devotos que vieram pagar dívidas e promessas com os “santospretos” ou simplesmente celebrar; moradores da cidade e de cidades vizinhas,que muitas vezes participam anualmente dos festejos; homens, mulheres —velhos, jovens, crianças — que em meio a barracas, ambulantes, mesas, sentadosnos bancos e muretas da praça, vivem a alegria de encontros e reencontros,comem, bebem, conversam, namoram e brincam, enquanto assistem apassagem dos Congos.

Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles penetram no espaço dapraça — coloridos, vibrantes, com os tambores batendo ainda mais fortes — e,na frente da Igreja, se apresentam, entoando seus cantos e danças, que

24 A concentração é feita na Praça do Forum, junto ao Terminal Rodoviário Central; os desfiles ocorrem naAv. Floriano Peixoto, em direção à Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja do Rosário.

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obedecem a ritmos lentos ou mais apressados, homenageando seus protetores.Depois, seguem pela rua lateral, onde prestam homenagens aos representantesda municipalidade — Prefeito, Secretários, dentre os quais o de Cultura,representantes de entidades afro e demais autoridades locais e convidados,acomodados em palanque especial.

Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles deságuam depois, na praça,os seus componentes, contribuindo assim para o crescimento da multidão que,por todo o dia, até o final da noite, ocupa esse espaço.

Já no meio do dia, o cortejo retorna, sempre ao som de toques de tambor,caixas e outros instrumentos, a seu quartel, onde não deve faltar uma “mesadade comida e bebida”. É um tempo de congraçamento, descanso e recuperaçãode forças dos integrantes de cada grupo, que entre comentários sobre o desfile,conversas cotidianas, músicas, risos, brincadeiras das crianças, alimentam corpoe espírito para a segunda parte de sua jornada festiva.

Às quatro horas, alguns grupos se dirigem às casas dos novos festeirospara levá-los à Igreja, onde serão coroados. Os cortejos retornam, marchandoem direção à Igreja do Rosário. Mais uma vez os tambores soam pelas ruas dacidade. Depois de todos marcarem com cantos e danças sua presença, têminício as últimas atividades desse dia de festa: a coroação dos novos festeiros ea celebração dos rituais católicos: a procissão, com as imagens de São Beneditoe Nossa Senhora e, no retorno desta, a celebração da missa, rezada pelo pároco.

O depois:

Na segunda-feira, no final da tarde, acontece a “entrega da festa”: osternos se reúnem nos quartéis e novamente percorrem as ruas em direção àIgreja do Rosário, onde realizam a cerimônia de retirada dos mastros votivos, quesão guardados no interior da Igreja, agradecem a todos que colaboraram com arealização da festa e, em sua porta, se despedem25.

25 Até o ano 2000, no encerramento da festa, era oferecido um lanche pela Secretaria Municipal de Cultura,no espaço da Oficina Cultural, onde os capitães faziam cantorias em agradecimento ao apoio recebidopela Municipalidade. A interrupção desse lanche pela Secretaria, levou os Ternos a procurarem outroslocais para reunirem-se após a festa, momento em que receberam apoio da Família Chatão, “a maiorfamília de negros de Uberlândia”. (Fábio Vladimir Chatão, em entrevista a Brasileiro - 10/04/2004)

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O “jeito congadeiro de festejar”

É assim de maneira festiva e espetacular, que expressa uma forma de ser,de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar,de cantar e de se enfeitar (...) distinta das ações banais do cotidiano (PRADIER in:GREINER; BIÃO, 1998, p. 24), que os devotos de Nossa Senhora do Rosário eSão Benedito celebram seus protetores.

É, portanto, a partir de uma resignificação de seu corpo — eixo de relaçãocom o mundo (...) e elemento mais importante do evento espetacular (...) porque éatravés dele e de sua energia vital que os demais elementos adquirem sua razãode existir (OLIVEIRA, 2006, p. 580) — que a disposição para “festar” se assenhorade cada um dos participantes da Festa.

O corpo festivo é assim o elemento detonador do “espírito de festa” que,associado ao riso, permite o estabelecimento de um território a parte, onde nãopermanecem as questões cotidianas — mas que também não as elimina ousubverte — e onde cada um é parte integrante de um mundo em evolução.

BRANDÃO (1978, p. 65), ao analisar a Festa do Divino de Pirenópolis/GO,detecta o que define como os três componentes do discurso que traduz ossignificados da festa: a crença no Divino, a fé na festa e a tradição dos festejos.Reunidos, oferecem uma interpretação completa da ideologia com que osparticipantes explicam sua festa e seu envolvimento pessoal nela.

Esses mesmos componentes são também perceptíveis na relação quese estabelece entre os congadeiros e a Festa de Nossa Senhora do Rosário: elaacontece para que o povo comemore sua crença na Santa, e isso se cumpre emqualquer um dos acontecimentos tradicionais que a compõe. Mas ela se faztambém porque existe a fé na festa, no acreditar que a sua boa realização agradee traga bons frutos, na forma de bênçãos e proteção da Senhora.

Em tal contexto, como acentua BRANDÃO (1978, p. 38-39), a aparênciapessoal é investida, na festa, de alto valor simbólico: se, por um lado, estabelecedistinções de classe e riqueza em um plano de competição igualmente simbólica,por outro, ela se constitui também como forma de homenagear a Santa.

A vestimenta de cada grupo, sempre nas cores que o simbolizam, é cuidadapara que o grupo se apresente em sua melhor forma. Constando basicamente

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de calça e camisa, em alguns Ternos ela recebe o acréscimo de algum elementoespecífico. É esse, por exemplo, o caso das marlotas usadas pelos Marinheiros,ou ainda, dos Ternos de Sainha, de cuja indumentária faz parte uma pequenasaia, muitas vezes em cor diferente, sobreposta à calça.

Pode-se dizer que essa roupa especial, a farda, atua como uma espécie de“fantasia”, investindo aquele que a traja de uma “nova identidade”: a de congadeiro.

Também os movimentos corporais, cantorias e ritmos exteriorizam amaneira específica encontrada por cada grupo para homenagear a Senhora doRosário, uma vez que, por sua estrutura e organização, eles apresentamcaracterísticas que os caracterizam e conferem determinada classificaçãoenquanto Congos, Moçambique, Catupês ou Catopés, Marujos ou Marinheiros,Penachos e Vilão.

Os Congos têm cantorias mais brincantes, alegres, feitas ao som decaixas, tamborins, reco-recos, pandeiros e acordeons. São também maiscoloridos, enfeitadores das ruas para os Moçambiques passarem. Esses trazemas coroas, o reinado e as bandeiras dos santos protetores, sempre com ritmo emúsicas cadenciadas e uma cantoria devocional.

Antigos cantadores de pontos de influência dos terreiros de umbanda edas ritualidades de candomblés, os capitães de Moçambiques sempre foramassociados à mística do poder espiritual herdado de seus ancestrais africanos.Têm como instrumentos básicos as caixas, patagomes e as gungas ou paiás deproteção que, com seus grandes guizos, marcam sonoramente o seu caminhar.

Os Catupês ou Catopés, originados por negros que se refugiaram emaldeias indígenas, inseriram nas Congadas o jeito de vestir e dançar com elesadquiridos. Suas cantorias são irônicas e contém críticas sociais.

Marujos e Marinheiros, com influências mouras e portuguesas, têm comocaracterística o uso de marlotas, espécie de capa curta que esconde as espadase a evolução em formação de luta, percutindo fortemente as suas maracanãs,ripiliques e os chocalhos. São reconhecidos pela expressão "mar abaixo", quesimboliza a chegada dos negros ao Brasil como escravos, desembarcados entreas ondas que açoitavam as praias.

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Os Penachos representam os índios africanos inseridos nas congadas.Suas coreografias se constituem de passos marcados de forma livre e graciosa.

O Vilão representa os jovens escravos preparados para assaltar as fazendase engenhos, de onde levavam animais domésticos e mantimentos, com a devidaorientação dos mais idosos, os Moçambiqueiros. Sua dança retrata conflitos,com suas representações simbólicas coletivas: "avança e recua"; "assoviosintercalados entres os diversos capitães"; "dançar astuciosamente" e os"entrechoques de bastões feitos de bambu".

Toda essa gama de gestos, ritmos, cores e atitudes está assim repleta deuma carga ancestral, e faz com que a festa aconteça com um “jeito congadeirode festejar” — um jeito que mantém presentes simbolismos, ritualidades, processopedagógico de ensinamento às crianças já no colo de suas mães e tambéminsubmissões não verbalizadas que se apresentam ora nas gestualidadescoreográficas, ora nas percussões dos praticantes congadeiros26.

Identifica-se nesse pensamento algo bastante presente na cultura popu-lar tradicional, onde “a aprendizagem se faz por meio da convivência, daobservação e imitação, fortalecida pela identificação que as pessoas têm com asmanifestações das quais fazem parte27.

Tendo recebido “dos antigos” as formas de prestar o culto, os realizadoressabem que sua eficácia e significado — ou seja, aquilo que justifica manter suarealização — depende diretamente da conservação de objetos, símbolos e padrõesrituais de conduta, porque a festa sempre perde alguma parte importante delamesma quando um de seus rituais desaparece.

Manter a tradição da festa é manter a permanência de suascaracterísticas mais essenciais e conservar suas qualidades. Assim, a dinâmicacriada pela modificação de algumas partes deve permitir que ela conserve amesma estrutura, logo o mesmo significado religioso e festivo; a mesmasolenidade e o mesmo simbolismo.

26 Brasileiro, Jeremias. Obra citada. http://www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.27 Meira, Renata Bittencourt. Memória, Tradição e Aprendizagem. www.foliacultural.com.br; visitado em

21/11/2006.

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Mesmo a substituição de alguns objetos feita anualmente — como o mastroda bandeira do Santo festejado, obtido a cada ano — observa princípios de tradição28

. Por isso, há o cuidado de repassar aos mais jovens o patrimônio cultural dosantepassados — e crianças e jovens sabem que estão aprendendo as liçõesdeixadas por seus ancestrais, quando acompanham os passos das guardas deCongo, ouvem seus cantos ou dançam, guiados pelo ritmo dos mais velhos.

Estes, por seu lado, aceitam o uso de óculos escuros, trancinhas, tatuagensafro — iconografias corporais que introduzem elementos modernos no interiorda Congada e apontam as possibilidades reais de seu prolongamento enquantocostume cultural adaptado à realidade contemporânea.

É ainda o “jeito congadeiro de festejar” que, imprimindo status de festa àshomenagens prestadas aos santos protetores, articula relações entre espaçosclaramente dominados pelo sagrado, pelo profano e ainda estabelece um terceiroespaço, em que esse domínio se faz em comum.

Assim é que, embora sob o controle de princípios religiosos, onde osentimento coletivo da “presença do sagrado” pode ser observado em “atos defé” — que se traduzem no “pagamento de voto” ou cumprimento de promessa aosanto; nos momentos de bênçãos e pedidos de proteção; no colocar-se de joelhose beijar a fita, a bandeira ou a imagem do santo; ou ainda, no gesto de se benzerquando a Bandeira é erguida —, o espaço da festa abarca muitas conversas,músicas, ruídos e risos.

Por baixo da aparente desordem com que a festa se conduz, entretanto,há um sistema muito bem estruturado de promotores da festa — Ternos de Congoe Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Igreja, Prefeitura — coordenadosentre si através de relações de troca de serviço.

Se cabe à Prefeitura colaborar com a realização da festa tanto pelaliberação de verbas municipais como pela manutenção de serviços urbanosbásicos necessários a sua estrutura — serviço de transportes, coleta de lixo,policiamento e outros —, cabe à Irmandade e aos ternos a organicidade geral de

28 O mastro deve possuir cerca de 18 a 20 metros e é pintado sempre com as mesmas cores (as cores doSanto) e da mesma forma (listas diagonais alternadas).

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todo o evento, cuidando do bom andamento de tudo e da beleza da festa, paraque esta se faça de forma harmoniosa.

Todos sabem que o desenrolar dos festejos servirá para avaliar, a cadaano, a qualidade da festa. E a “festa boa” é aquela que preenche determinadosrequisitos: se a inexistência de problemas, arruaças e brigas durante seudesenrolar é sempre importante para o olhar das autoridades locais, a observaçãoda tradição, com rituais “como devem ser”, realizados com solenidade e pompa,perceptíveis na quantidade e qualidade das roupas, variedade de festejos, fogos,alimentos distribuídos é o que importa ao olhar dos Ternos de Congo e daIrmandade.

Afinal, como pontua AMARAL29 , uma questão significativa se coloca aindana produção da Festa, para os congadeiros:

A festa concentra recursos dos grupos e os redistribui. A fartura e apossibilidade de fazer uma festa cada vez mais "rica" são motivos deorgulho de uma comunidade. É desse modo que os participantes criamum "espelho" no qual percebem, concretamente, o que são capazesde acumular e distribuir, ou desperdiçar, e qual a estatura do grupo nasociedade. Em casos como estes, a festa deixa de ser a simples "válvulade escape", como pensam muitos teóricos, para ser momento de auto-avaliação dos grupos sociais. Ela não é unicamente manifestaçãoreligiosa, e sim uma "parceria" entre homens, santos, orixás e outrosdeuses na luta por uma vida mais digna. Desse modo, ela pode seruma das maneiras de enfrentar dificuldades práticas, como a falta decreches, asilos ou escolas.

Bibliografia:

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BRASILEIRO, Jeremias. Congadas de Minas Gerais. Fundação CulturalPalmares, 2001

29 Amaral, Rita de Cássia. A alternativa da festa à brasileira. http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/pdf/num2/a_alternativa.pdf, visitado em 22/11/2006.

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__________ . Congado em Uberlândia: espaço de resistência eidentidade cultural (1996-2006). Monografia. Universidade Federal deUberlândia. Instituto de História, Curso de Graduação, 2006.

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FESTAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES

Célia Conceição Sacramento Gomes30

Este artigo visa articular a concepção de festas como rede de memóriasque produzem significados para as representações do homem no seu contextosocial.

As festas contribuem para manter viva a memória das comunidades; comoproduções sociais estão conectadas a histórias e experiências significativas,atualizando os ritos comunitários. A multiplicidade de fenômenos encontrados nocontexto da festa implica em adaptações às situações próprias desses eventos,realizados de diferentes formas e estilos.

Valle (2004, p. 13) considera que

como acontecimentos resultantes de diferentes processosdesenvolvidos no decorrer de ciclos temporais apropriados, segundoo calendário religioso e solar, as festas e celebrações trazem-nos amemória do passado, a vitalidade do presente e a visão do futuro,oferecendo-nos a possibilidade de permanência ou mudança.

O contexto da festa permite que se construa uma re-significação do sentidode humanidade em função das identificações culturais, que acontecem mediadaspelo corpo.

Na visão de Chauí (2002, p. 126) quando o artista ou o historiador registramem suas obras aspectos do humano, isto não será esquecido, passando a fazerparte de uma experiência que não se perde no tempo.

Na concepção de festa várias situações podem ser incluídas, tais como:eventos comemorativos de distintas ordens como aniversários, competiçõesesportivas; rituais que mantêm vivas as tradições de uma comunidade,preservando o patrimônio histórico, cultural ou religioso; reunião de membros deuma comunidade para homenagear seus santos e divindades; encontro depessoas para celebrar os mais importantes ciclos da vida.

30 Mestre em Artes Cênicas, UFBA. Especialista em Psicodrama, FEBRAP. Especialista em Gestão dePessoas, UEFS.

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Na festa o curso da vida cotidiana dá lugar a uma experiência estética queenseja outras formas de representação social; o corpo se prepara com figurino egestual apropriado, se metamorfoseando para construir cenas que denotam certaruptura com o contexto do dia-a-dia. Essas representações encontram-se nolimiar entre a realidade e a imaginação. O real não é um dado sensível nem umdado intelectual, mas um processo, um movimento temporal de constituição dosseres e de suas significações, como os homens relacionam-se entre si e com ocontexto em que vivem.

Guarinello (2001, p. 972) compreende a festa como uma produção docotidiano, de caráter coletivo a qual acontece em tempo e espaço exclusivos;as pessoas se envolvem em torno de algo que é festejado, resultando nasimbolização de um significado próprio que possibilite a concepção de umaidentidade para o grupo.

Por tratar-se de espaço de encontro, celebração, compartilhamento ecumplicidade, palco de atualização da memória coletiva, a festa torna-se realidadecomum a todos, outorgando um sentido ao grupo e em última instância à vida.

Quando uma pessoa se relaciona com outra, ela e o outro fazem uso deseus corpos, seus sinais e mensagens, como um instrumento de comunicação.Essas relações entre os homens constituem-se em algo produzido pelos próprioshomens, ainda que estes, muitas vezes não tenham consciência de serem osúnicos atores desse processo.

Na festa acontece uma espécie de reencantamento da vida, um jogoespontâneo de faz-de-conta, como se a memória do grupo fosse um acervo vivode experiências a serem reinventadas a cada momento.

Segundo Heers (1987, p. 11), (...) a festa, reflexo duma civilização, símbolo,veículo de mitos e lendas, não se deixa apreender com facilidade. Comportadiferenças, conflitos, negociações, cooperação e competição, evidenciando,por via própria, distintas realidades sociais.

Na Bahia foi significativa a influência dos povos africanos que para oBrasil foram transladados; os distintos grupos étnicos que aqui chegaramimpregnaram com suas culturas o nosso território. Eles foram destituídos de

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seus bens materiais; os conhecimentos e tradições foram trazidos no corpo-memória e aqui intercambiaram com os povos nativos e com os colonizadores,construindo novas concepções civilizatórias. Isto pode ser constatado nas artes,na estética (cabelos, vestimentas), na linguagem falada (a exemplo de elementosdos idiomas banto e iorubano, incorporados à língua portuguesa), na culinária,na medicina tradicional e especialmente nas festas.

As festas populares da Bahia revelam a vitalidade, religiosidade esensualidade do povo desta terra. Boa parte delas acontece nas proximidadesdo mar, reverenciando santos católicos, divindades das religiões de matrizafricana, reunindo-se a cidade em torno destas celebrações como se todosfossem um só organismo.

Embora tenham se modificado, as festas tradicionais baianas conservamseus aspectos essenciais apresentando suas versões contemporâneas. O imagináriocoletivo com ritos, histórias e tradições são a base da performance e darepresentação de suas práticas e comportamentos espetaculares. A performance,portanto, surge da recriação e reinterpretação de aspectos das matrizes culturais eda religiosidade afro-brasileiras, evidenciando uma concepção de corpo.

Martins (2002, p. 72) considera que os ritos transmitem saberes, princípiose convenções que conformam as performances rituais, com base nosfragmentos de memória instalados no corpo. Isto acontece num espaço defronteira entre o imaginário e o real, criando um contexto de afirmação,resistência e transformação social.

O calendário dessas festas tem início no dia 30 de novembro com a festa dopadroeiro dos estivadores, São Nicodemus. Esse evento teve início em 1943 como nome de Festa do Cachimbo e São Nicodemus31 do Cais do Carvão. Consta demissa festiva, procissão pelas ruas do Comércio, na Cidade Baixa, terminandocom um caruru para os trabalhadores do Porto de Salvador e convidados.

A festa do Senhor do Bonfim é considerada uma das mais famosas; naatualidade o ponto alto do ciclo de festejos é a Lavagem do Bonfim. A festa ocorreem data móvel, na segunda quinta-feira do mês de janeiro.

31 Nicodemus significa “aquele que sabe lidar com o povo”.

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Nas primeiras horas da manhã as pessoas reúnem-se em frente à Igrejada Conceição da Praia, local de onde sai o cortejo. As baianas abrem o cortejo,usando seus bordados e rendas, pano da costa, as contas dos seus orixás, cheiasde fé, alegria e devoção para homenagear a divindade maior (muitas delas sãooriundas de terreiros de candomblé da região metropolitana de Salvador, doRecôncavo baiano e de outras cidades). São seguidas pelos cavaleiros, carroçasenfeitadas, bicicletas, batucadas (grupos de pessoas que tocam instrumentosinformalmente, cantam e dançam) em direção à colina do Bonfim.

Em tempos mais remotos eram as famílias da redondeza que lavavam ointerior do templo. Depois vieram os romeiros, a afluência de devotos aumentoue começaram a trazer água em burricos, potes, além de oferendas como flores,velas e outras. À medida que aumentava o número de pessoas crescia a confusão,até que o Cardeal Augusto Álvaro da Silva proibiu a lavagem do interior da Basílica,ficando esta restrita ao adro da Igreja.

A população acompanha o cortejo até a Colina Sagrada, onde as baianascom seus jarros de flores e água perfumada lavam o adro da Igreja. Após estacerimônia, seguida de muitos vivas ao Senhor do Bonfim, as pessoas ocupam olargo com samba de roda, capoeira, comidas típicas e bebidas.

De acordo com o historiador Cid Teixeira32 o comandante das tropasportuguesas Madeira de Melo (durante as lutas pela independência da Bahia),mandou retirar a imagem do Senhor do Bonfim da Colina Sagrada para outraIgreja. Em 1823 a imagem retornou trazida por um grupo de mulheres descalçase de roupa branca. Esta é a origem da Lavagem do Bonfim.

O calendário das festas tradicionais encerra-se no carnaval, ocasião emque baianos e turistas acotovelam-se nos circuitos da festa, ou seja, o centro dacidade, incluindo o Centro Histórico e as avenidas principais dos bairros da Barrae Ondina, em Salvador.

Na Bahia do século XIX as mais importantes festas religiosasassemelhavam-se a celebrações da vida. Para participar da vigília da Quinta-

32 TEIXEIRA, Cid. Entrevista concedida a Jorge Portugal em Salvador, TV Bahia, 03/07/2004.

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Feira da Semana Santa na Catedral de Salvador famílias inteiras superlotavam aigreja, levando esteiras, cobertores, comida e até penicos; do lado de fora,vendedores ambulantes se misturavam a pessoas cantando e tocando flautas,violões, cavaquinhos e harmônicas (REIS, 1991, p. 137).

A Etnocenologia lança um olhar sensível sobre esses eventos e tradiçõesno sentido de identificá-los como parte de um “processo de trocas entre pólosinterculturais” para estabelecer padrões de análise que lhe permitam observar osprocessos de interatividade presentes nas manifestações enfocadas, adotando aperspectiva da transculturalidade (GUINSBURG et al., 2006, p. 139); desta forma,essa disciplina amplia o conceito de intercâmbio cultural para valorizar os saberesespecíficos manifestados pelos praticantes de cultura, enfatizando a importânciada história de cada povo.

Conforme a perspectiva de Duvignaud (1983, p. 67) a festa é compreendidacomo espaço de violação das regras, que são destruídas e colocam o ser humanofrente a um universo sem cultura e valores. Considera que em momentos decrises e transformações profundas da sociedade as festas coletivas irrompemcom mais força, porque os desejos humanos precisam ser aflorados e osregulamentos não satisfazem mais.

O autor faz referência à forma como a festa instala-se nos espaços,aproximando pessoas, acentuando relações emocionais e contatos afetivos,propiciando uma abertura recíproca entre os membros da coletividade. Nessesentido, a festa tem um fim em si mesmo, saindo do domínio da percepção, nãoobstante a sua amplitude por intermédio do reconhecimento das “dimensõesocultas” para penetrar a esfera do imaginário (Idem, 1983, p. 66).

Nas comunidades tradicionais a população organiza esses eventos numaconcepção lúdica em que privilegia a improvisação, o imprevisto, o bem-viver,alterando, de certa forma, a simbologia das rotinas do cotidiano. A festa fortalecea visão de mundo da coletividade, celebrando crenças e valores que tendem amanter a coesão do grupo.

A condição de organização que expressa uma maneira de ser, de secomportar, de apresentar uma estética distinta do cotidiano e que caracteriza a

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espetacularidade nos estudos da Etnocenologia pode ser observada nas festastradicionais comunitárias; as pessoas evidenciam no seu gestual, nos cânticos, nosrituais coletivos, os elementos que simbolizam sua cultura e sua visão de mundo.

A vivência do corpo é a vivência de impulsos, sentimentos, movimentos,memória, que corporificada explicita os interstícios e as simbologias da tramacoletiva: Podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, paranós e sob o olhar do Outro, traduzem nossa maneira de ser no mundo, como se ocorpo não fosse nada sem o sujeito que o habita (JEUDY, 2002, p. 20).

Os folguedos e festejos evidenciam o modo característico com o qual ascomunidades tradicionais expressam sua concepção de cultura e re-significama existência da festa, alterando os limites de fronteira entre o real e o imaginário.Desta forma, a festa se constitui numa forma criativa de tratar de temas por vezescomplexos, com leveza e descontração. O lúdico funciona como elementonorteador da consciência de si mesmo e do outro.

Os rituais próprios da comunidade indicam a visão de mundo narrada nosenredos que são transmitidos de uma geração a outra, mediados pela memóriacoletiva que se faz ação. O corpo comunica por meio de uma linguagem simbólicae subjetiva os saberes e experiências transmitidas simbolicamente.

A não observância de determinadas condições podem ser funestas para oindivíduo e desastrosas para a comunidade. Eles criam formas próprias deexpressão nas quais se entrecruzam as crenças e mitos que preservam astradições da comunidade, evocando suas concepções místicas e cosmológicas.

A comunidade representa uma realidade concreta que é ritualizada nosenredos construídos pelo grupo com base nas suas matrizes (culturais, religiosas,sociais). O tempo e o espaço na festa possuem um sentido próprio distinto danoção linear, conhecida e previsível. O compromisso de viver o momentomantendo um diálogo entre a tradição e a contemporaneidade, engendra umtrânsito permanente que nesse contexto é complementar e renovador. O tempoé efêmero, vivido com profundidade e significado.

As festas estão inseridas na categoria de fenômenos denominados porBião como “ritos espetaculares”, nos quais os participantes e os espectadores

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participam ativamente da produção do evento. As práticas corporais extracotidianascompreendidas como performance referem-se aqui a um entendimento do corpocomo um espaço de inscrição da memória pela performance corporal, vinculandoo homem com a cultura, a religiosidade, o lúdico e o ritual.

A memória corporal registra identificações que revelam uma representaçãode si próprio e do outro; desta forma, organizam-se repertórios que indicam apercepção do homem sobre suas circunstâncias e experiências vivenciadas nocontexto da sociedade, seus mitos, histórias e práticas culturais.

Na festa esse corpo se prepara para ser visto por um outro, num jogo depapéis que o complementa e transforma. Essa interação é compreendida porBião33 como teatralidade: todo comportamento de troca humana em que a pessoase organiza para ser visto; é uma forma de ligação com a comunidade.

Por outro lado, Grotowski entende que o corpo é memória:

Pensa-se que a memória seja algo de independente do resto do corpo.Na verdade, ao menos para os atores, é um pouco diferente. O corponão tem memória, ele é memória. (...) O “corpo-vida” ou “corpo-memória” determina o que fazer em relação a certas experiências ouciclos de experiências de nossa vida (2007, p. 173).

É possível fazer um paralelo entre o teatro, como experiência coletiva esensível à realidade social, ao imaginário e ao ato revolucionário e criador humanocom a festa como produção de memória que em certa medida revela demandasque se insurgem contra as convenções sociais, cria outras formas de organização,possibilitando o acesso a um mundo de liberdade e afirmação do coletivo.

Nas manifestações culturais tradicionais, na medida em que os praticantesde cultura atualizam seus festejos e brincadeiras, reinterpretam a realidadeconstruindo experiências criativas compartilhadas pelo grupo.

Analisando esses fenômenos o pesquisador penetra no campo da práticadaqueles que realizam a festa. Da convergência e até do conflito entre práticos eteóricos constrói-se um sistema de abordagem que enriquece e aprofunda a

35 BIÃO, Armindo. Palestra proferida nos fóruns de debate do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensãoem Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas daUFBA. Salvador, 2001.

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sistematização de conhecimentos, com suas interfaces que se complementame se interpenetram.

Discutir festas, memórias e representações é colocar em evidência osignificado das tradições, o papel da memória na preservação do patrimôniocultural e seus desdobramentos na era da informação e dos avanços tecnológicos,analisando as rápidas mudanças do mundo contemporâneo, o dinamismo dasmanifestações tradicionais, que recriam e reelaboram seus folguedos ebrincadeiras em forma de crítica, de jogo, de festa34.

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34 OLIVEIRA, Érico José de O. A roda do mundo gira. 2006, p. 37.

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GUINSBURG, J.; FARIA, J. R.; LIMA, M. A, (Orgs.). Dicionário do teatrobrasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Sesc SãoPaulo, 2006.

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DE OLHO NA LAVAGEM DO BONFIM:

A TRANSFIGURAÇÃO DE UMA FESTA

Célida Salume Mendonça35

Num mesmo instante, joelhos, que se dobravam ante os altares,estiravam-se agilmente nos passos e voltas de atrevido fandango.Enquanto as vassouras chapinhavam nas lages da nave, olharescaprinos incendiados em chammas alcoólicas, devoravam collos negrose impantes, onde as contas do rosário vibravam como guizos demascarado.

Consocio Xavier Marques

Nas férias de janeiro de 2004, eu, filha de um baiano e uma catarinenseque não residem no Estado, acordo em Salvador. É quinta-feira, dia 15, e peloque observo não é um dia qualquer, mas sim, uma data especial: ruas desertas,agrupamentos de pessoas caminhando, roupas predominantemente brancas,trânsito engarrafado - meu primeiro encontro com a Lavagem do Bonfim,considerada a segunda maior manifestação popular na Bahia, ondeaproximadamente um milhão de pessoas é esperado.

Mas, antes mesmo que o movimento da festa inicie, muitos soteropolitanose turistas já fizeram suas promessas ao Nosso Senhor do Bonfim. Algunsmoradores de Salvador não freqüentam mais a festa em função do carátercomercial e turístico que adquiriu. Apronto-me para sair, tentando ficar o maisconfortável possível: roupa leve, branco e azul para entrar no clima, tênis e dinheirocamuflado entre as roupas.

De carona, chegamos o mais próximo possível da cidade baixa, porque aessa altura, ônibus, nem pensar. São ainda alguns quilômetros que teremos queandar até a Igreja da Conceição da Praia, no bairro do Comércio, de onde sai aprocissão. Os rituais religiosos, em geral, partem de Igrejas e locais sagrados. O

35 Mestre em Literatura pela UFSC (Florianópolis-SC) e doutoranda no Programa de Pós-graduação emArtes Cênicas na UFBA (Salvador-BA).

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dia está lindo, um sol escaldante e chegando a Cidade Baixa, são agora 7 a 8quilômetros de caminhada até a Colina Sagrada. O cortejo inicia ao final dacelebração da missa e sob chuva de fogos de artifício.

Pegamos a procissão ainda no início, tudo é novidade. No cortejo, baianasvestidas impecavelmente de branco com suas roupas engomadas, seus jarrosde água perfumada na cabeça, afoxés, bandas de sopro, grupos de percussão,charangas, agremiações carnavalescas, carroças ornamentadas, policiamento,postos médicos e vendedores ambulantes durante todo o trajeto. Os romeiros,vindos de todas as partes da Bahia e de todas as idades, incluem também osturistas - todos estão muito bem arrumados e dispostos. As pessoas se vestem debranco que é a cor de Oxalá36 , o Deus Yorubá sincretizado com Senhor doBonfim. Tal comunhão de corpos parece estabelecer uma teia que em termosabole magicamente as divisões de classe e de crenças. Assim, temporariamente,as diferenças se apagam. Durante o trajeto, muita adrenalina, água e suor. Nascasas e prédios, moradores nas janelas.

Segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1984), essas solenidadespermitem ligar a casa, a rua e um outro mundo, no qual a festa se transforma.Tudo parece maravilhoso, inesperado, fantástico. Passo por alguns camarotes,todos repletos de artistas e autoridades37 embaçando o caráter de festa popularque se converte em uma espécie de desfile de carnaval, uma vitrine. O quetambém faz parte da espetacularidade da festa.

Os filhos de Gandhy, todos caracterizados como o líder negro indianoMahatma Gandhy, entoam seu hino, cortejam e seduzem borrifando alfazemanas mulheres que passam. Se você aceitar, pode ser conduzida para dentro do

36 Oxalá, o orixá supremo do camdomblé, simboliza a paz, é o pai maior nas nações na religião africana.É calmo, sereno, pacificador, é o criador, respeitado por todos os orixás. A Oxalá pertence os olhos quevêem tudo. Ele tentou fazer o homem de vários elementos. Nana veio em seu socorro e deu a Oxalá alama, o barro do fundo da lagoa onde ela morava, a lama sob as águas, que é Nana. Oxalá criou ohomem, o modelou no barro. Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta no final tudo o que é seu.Oxalá teve vários filhos com Nana e com Iemanjá.

37 Entre autoridades e povo, nessas ocasiões solenes e formais, há uma clara divisão. Seja uma cerca,seja um espaço vazio, seja um palanquim ou outra construção qualquer que permita imediatamente saberquem é quem (...) tais distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões (...) DAMATTA, Roberto.O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, p.86.

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cordão por alguns instantes e depois acompanhar o cortejo ao lado do “tapetebranco”, como são chamados. Você pode ainda trocar com um dos integrantes,um beijo por um colar de contas azul e branco. Nesse jogo de sedução, osgandhys assumem uma personagem e propõem às mulheres um papel a serrepresentado. Nesse sentido, podemos dialogar com Caillois (1986, p. 26-28)reconhecendo o espírito de jogo na festa:

O domínio do jogo é, portanto, um universo reservado, fechado,protegido – um autêntico espaço. (...) Jogos que supõem uma livreimprovisação e cujo principal atrativo advém do gozo dedesempenharmos um papel, de nos comportarmos como se fossemosdeterminada pessoa ou determinada coisa...”

Transbordando charme e sensualidade, os filhos de Gandhy cortejamquem se permite ser cortejada. Suas roupas, colares e turbante invocam umapessoa imaginária, um personagem que sugere outras condutas, e, portanto,mesmo depois do final do cortejo não se permitem tirar o turbante, como se essaação implicasse em desmanchar a personagem, em apagar a sua magia, o seustatus. No espaço de duração da festa abre-se um vácuo no tempo, onde épossível esquecer as desilusões, o baixo salário, ou as mínimas condições devida. Outras personagens podem ser ainda identificadas, como várias pessoasrepresentando Bel - o vocalista do Chiclete com Banana, e uma carioca que seveste de baiana nas cores verde e rosa, homenageando sua escola de samba, aMangueira.

Mas é somente ao chegar na Colina Sagrada que a festa atinge seuclímax. Ninguém revela sua fadiga, talvez porque estejam todos anestesiados.Quando subimos a ladeira principal da Colina Sagrada podemos olhar paratodas as direções que o que se vê é um mar de gente. O hino ao Senhor doBonfim é entoado e uma onda de emoção invade a maioria das pessoas que láchegam. Num gesto simbólico de purificação, as baianas molham com água decheiro as cabeças dos que pedem esta bênção e os degraus da escadaria, ondetambém depositam flores. É o coro formado pelo canto e as orações queentusiasmam, e não o sentido das palavras. A multidão disputa a água de cheiro- o privilégio de serem batizados pelas baianas. Sob esse aspecto, o de fruição,

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Duvignaud propõe que para o entendimento da festa é preciso entrar nela porextensões existenciais. É espacialmente que nosso corpo sente essapotencialidade sinestésica. E é o que realmente pode-se verificar: um arrepio, umasensação de plenitude nos embriaga, nos emocionamos e nos enchemos dealegria sem saber exatamente o porque. Nesse momento, é produzida umaatmosfera que nos aproxima do transe antigo, que tinha por função reforçar o estar-junto daqueles que participavam dos mesmos mistérios, como nos lembra osociólogo francês Michel Maffesoli em A contemplação do mundo (1995, p. 16):

(...) é o retorno das imagens, a importância do contágio emocional, orecurso a esses múltiplos simbolismos que são a afirmação daidentificação religiosa, a efervescência étnica, a busca do “território”,são coisas que servem de matriz a socialidade nascente, coisas queconstituem o caldo de cultura do qual a atualidade nos oferece muitosexemplos...38

A festa se apodera de todos os espaços. O cheiro do perfume das flores,do azeite de dendê, dos espetinhos, da cerveja, está por toda à parte. O largo, apraça, as ladeiras, as ruelas, estão todos preenchidos pela multidão, todosdesempenhando um outro papel que o cotidiano, por um período no qual a vidacoletiva é extremamente acentuada. O clima de empatia que se instala intensificaa afetividade no contato entre todos. Uma nova comunicação se estabelecesubstituindo todos os códigos e estruturas impostos socialmente ecotidianamente, por um período onde a subversão é, de certa forma, autorizada.A festa abole as representações, as normas por meio das quais a sociedade sedefende contra a agressão natural: segundo as aparências, a festa atinge aquiloque constitui a finalidade última das comunidades, isto é, um mundo reconciliado,uma entidade fraternal. (DUVIGNAUD, 1983, p. 69)

Os festejos religiosos, a parte sacra da Festa do Bonfim consiste numnovenário que se encerra no segundo domingo após o Dia de Reis. Na quinta-feira da Lavagem, a Igreja abre somente à noite, a partir das 19 horas, quando acerimônia religiosa acontece. Os fiéis fazem suas orações nos portões. O que jáacontece a aproximadamente vinte anos na intenção de preservar as peças da

38 Ibidem, p.24.

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Igreja do assédio da multidão. Devotos, turistas e curiosos pagam suas promessas,ajoelhados nas escadarias, segurando nas grades do adro e amarrando as fitinhasde Senhor do Bonfim que são cortadas no mesmo tamanho do braço da imagemque está no interior da Igreja.

Depois que tudo termina, o povo se espalha em várias direções: sãovárias barracas com comidas típicas, acarajé, vatapá, cocadas, amendoimcozido e bebidas de todos os tipos, espalhadas pelo Largo do Bonfim, Ribeira,Pedra Furada e Mont Serrat. No decorrer de todos esses anos de Lavagem, asbarracas sempre traduziram uma certa excentricidade. Nas memórias da festa,encontramos as barracas residências que sempre foram destaque pelaqualidade dos quitutes e pela decoração com o melhor efó39 e roda de samba,apresentando nos seus nomes uma mistura religiosa e profana: “Recreio deSão Bento”, “Maria de São Pedro”, “O sol nasce para todos”, “Bosque do amor”,“Barraca da gringa”. Segundo Duvignaud (1983, p. 63), as extensões da refeição,os locais onde as pessoas se reúnem para, em comum, ingerirem alimentos,teriam seu caráter fantasioso:

O alimento é um signo, assim como o signo é digerível. O sustentoofertado em abundância exorciza a penúria e libera o estômago e oventre da angústia da morte. (...) Os grandes banquetes são festascopulativas, a natureza instala-se no homem, no curso da festa, aomesmo tempo destruímos e regeneramos.

As barracas distribuídas pelo largo e pelas redondezas agradam a todosos gostos. Você pode descer a ladeira de trás da igreja até a Pedra Furada ou cairno samba, no pagode, no arrocha ou no forró, que dominam até o cair da noite.Apesar da proibição, barracas de jogos de azar também são armadas para afesta. Entre elas, roletas e jogos de dados, funcionando o tempo todo. Além disso,camisetas, fitinhas do Senhor do Bonfim, rosários, escapulários e uma série delembranças, são vendidas a todos os preços.

Entretanto, esse é um retrato de um contato inédito – meu primeiro contato- com a festa, o que já não ocorre da mesma forma no ano seguinte, quando

39 Prato da cozinha baiana.

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tomados por uma outra sensação podemos observar as escadarias ocupadaspor profissionais da imprensa e o adro por autoridades e turistas. De certa forma,com o caráter turístico da cidade, visando captação de recursos e uma difusãodessa sua imagem, as festas têm acompanhado esse movimento. Sob o olhar deDuvignaud, o elemento finalidade não faz parte da festa, ou melhor, sua finalidadeé zero. As festas destroem, sim, a imagem e a aparência da realidade, ecorrespondem a uma subversão.

Os jornais refletem constantemente a projeção que a Lavagem ganha anoapós ano. A cada festa, adquire mais contornos de um cortejo alegórico. E nasúltimas décadas tem tornado-se praticamente um megaevento. A partir de 1998 aparte carnavalesca do evento sofreu uma intervenção imposta pela Prefeitura Mu-nicipal e a Arquidiocese de Salvador que, numa tentativa de defender as tradiçõeshistóricas da festa, promoveram um afastamento dos trios elétricos e caminhõesde blocos alternativos que acompanhavam o cortejo desde a Avenida Contorno. Noano seguinte, como alternativa para os foliões de ocasião e os demais envolvidosna promoção da parte considerada profana na festa, ficou estabelecido que nossábados seguintes a Lavagem, aconteceria no bairro da Barra o Farol Folia - gritode carnaval dedicado aos blocos que ficavam fora da festa.

Hoje, até virtualmente se pode acompanhar a festa. A lavagem dasescadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim também pode ser apreciadanas páginas da internet, quando o cortejo virtual transforma os oito quilômetrosdo percurso em uma peregrinação online - opção para os curiosos que não temfôlego para participar das comemorações. Todas estas transformações e outras,sofridas pela Lavagem do Bonfim, podem ser identificadas através de pesquisase matérias publicadas em revistas e jornais locais. Em 1995, Gideon Rosa escreveno Jornal A Tarde:

É no rebuliço profano e religioso do Bonfim que o vento sopraforte, faz a curva na Colina Sagrada e retorna detonando umaonda de alegria em toda a cidade. (...) A cada ano se transforma,transfigura-se em um ritual de puro prazer gastronômico e etílico,apesar do pretexto religioso.40

48 JORNAL A TARDE, Salvador, 12 jan. 1995, p.03.

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Mas nem sempre era assim que podíamos falar da Festa do Bonfim. Oritual se repete todos os anos sempre na segunda quinta-feira do mês de janeiro,segundo alguns autores há 252 anos, ou seja, desde 1754. Enquanto outrosconsideram que, o ano de 1804 foi o ano da primeira lavagem oficial.

A Lavagem do Bonfim, muitas vezes sob suspeita de africanismo eselvagismo teve seus precedentes históricos na velha metrópole portuguesa,como se pode confirmar nas palavras do bispo de Évora de Portugal (1534):

Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas populares, de qualquerestado ou condição, que sejam, que não comam nas igrejas, nembebam, com mesas nem sem mesas: nem cantem nem bailem em ellas,nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentrodellas sobre cousas profanas, nem se façam nas ditas egrejas ouadros dellas jogos alguns, posto que sejam em vigília de santos ou dealguma festa, nem representações, ainda que sejam da paixão deNosso Senhor Jesus Christo, ou de sua Ressurreição, ou nascença,de dia nem de noite, sem nossa especial licença, porque de taes actosse seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem o escândalono coração daqueles que não estão, mui firmes na nossa santa fécatholica, vendo as desordens e excessos que nisto se fazem. (XAVIER,1929, p. 376)

Aqui podemos identificar os elementos constituintes da festa vistos comofoco de subversão pelo olhar da Igreja. Permitindo as pessoas chegarem a umestado onde tudo se torna possível, a festa pode ser vista como perigosa nosentido de perda de controle ou de saída da “normalidade”.

Os estudiosos de mitologia dizem que a Lavagem do Bonfim é umacerimônia que tem origem na África, em homenagem a divindade Yorubá Oxalá,que é filho direto de Olorum, Deus criador e pai de todos os orixás. Os escravosafricanos, proibidos de cultuar seus deuses, identificavam Oxalá com o Senhordo Bonfim, e todos os anos lhe faziam o desagravo, isto é, lavavam as escadariasda sua igreja. Oxalá tem de ser desagravado com as águas porque sofreu seteanos de prisão e exílio por amor a Nanã, sem se queixar ou pensar em vingança.Câmara Cascudo discorda desta visão e considera que na Festa do Bonfim háconvergência de dezenas de festas tradicionais da Europa e da África. Enquanto

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Roger Bastide observa que a cerimônia não é de origem africana, pois já existiaem Portugal. O culto ao Senhor do Bonfim teria origem em 1669, em Setúbal.Uma imagem de Jesus crucificado, igual a que existe em Portugal, chegaria àBahia em 1745, trazida pelo oficial Theodorico Rodrigues de Faria41 para aIgreja da Penha (Ribeira) e, em 1754, seria transferida para a Colina Sagradaonde foi construída a atual igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim42,transformando-se em objeto de devoção popular.

Foi o capitão de mar e guerra da marinha portugueza, TheodoricoRodrigues de Faria (*) que, de viagem para o Brazil em 1745, trouxede Lisboa uma imagem do senhor crucificado, semelhante a que sevenera em uma capellinha das visinhanças de Setúbal – Portugal, ecomo devoto que era dessa imagem, pensou em continuar aqui a suadevoção, razão por que, trocando a nova, conseguiu que ella fossecolocada da Egreja de Nossa Senhora da Penha na península deItapagipe. Esta colocação realizou-se pela Paschoa de 1745.43

A festa, teria sido então difundida no Brasil por esse português combatentena guerra do Paraguai que fizera o voto de, caso não morresse, lavar o átrio doSenhor do Bonfim. Acredita-se ainda, que o ritual da lavagem teve origem nostempos em que os escravos eram obrigados a levar água para lavar as escadariasda Basílica para a festa dos brancos, desde esta época um agradecimento dopovo às graças concedidas pelo Senhor do Bonfim. Os negros baianos teriamtransformado a lavagem numa festa sincrética ao catolicismo e ao candomblé.

Em 1881, era outro o retrato que tínhamos do bairro do Bonfim nessesdias de festa. O largo se povoava de caravanas vindas do Recôncavo, dos altosSertões da província e de além do rio São Francisco, para participarem darepresentação do que era considerado um “estupendo mistério” que tinha porteatro a Colina de Itapagipe. Na época, o evento reunia mais de trinta mil pessoasde todas as classes e de toda parte.

41 Em alguns registros o nome do capitão consta como Theodózio Rodrigues de Faria.42 Os fiéis devotos da imagem e o próprio Theodorico, resolveram escolher um lugar de destaque onde se

podesse erigir uma Egreja para o santo, e então, na eminência, hoje conhecida por Alto do Bonfimantigamente – do Mont Serrat deu-se princípio a edificação da capella. CARVALHO, Carlos Alberto de.Tradições e Milagres do Bonfim, Typ. Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915, p.07.

43 Ibidem, p.07.

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A leitura dos registros de Carlos Alberto de Carvalho em Tradições eMilagres do Bonfim (1915) nos oferece uma série de imagens singulares devários aspectos da Festa do Bonfim na década de 20. Entre elas, a de um “assaltoao Templo”, feito na última quinta-feira antes da festa, por mulheres e homens dopovo, carregando potes de água de cheiro na cabeça e empunhando vassourasde piaçaba que zig-zagueavam de um modo infernal sobre as lages. As pessoascantavam “bendictos e ladainhas”, que misturavam-se com chulas e sambas: Asmulheres seminuas, os homens arregaçados até acima dos joelhos, bailavamdiabolicamente, de vez em quando distribuíam-se copos de aguardente e alavagem não tinha fim.44 .

O ano de 1923 foi marcado por dois acontecimentos especiais em relaçãoà Festa do Bonfim. No dia 24 de junho, a Igreja recebe a Sagração do altar e doedifício, é transformada de Igreja em Basílica e a Colina do Bonfim recebe onome de Colina Sagrada. No mesmo ano, nas comemorações do Centenário daIndependência, o governador do Estado da Bahia, intercedendo diretamente aoBispo, consegue autorização para a saída da imagem do Senhor do Bonfim emprocissão. O evento veio patentear a religiosidade do povo baiano, sua fé e grandedevoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim, que após uma série de milagres,como a epidemia de cholera-morbus45 , o furioso temporal46 e os muitos registrosde cura em pessoas desenganadas, passa a ser considerado protetor da Bahia.

44 Ibidem, p.50, 51.45 “Consideremos por exemplo, esse facto da epidemia de cholera-morbus que aqui na Bahia tantas victimas

fez em 1855 (...). Tenhamos em mente pelo que nos contam os annos, aquelle espectaculo de enterrarem-se centenas de infelizes acommettidos do mal bilioso, em poucas horas, a ponto de não serem maisutilizadas as covas isoladas e fazerem-se inhumações na vala comum. Sabemos demasiado que asfamílias infelicitadas pela visita do mal, abandonavam apavoradas as suas casas, fazendo com um giz osignal da cruz na porta, indicio da existência de cadáveres, e que estas casas eram depois devassadaspelos africanos escravos, encarregados de enterrarem os infelizes. O mal reinava assustadoramente (...).A cidade da Bahia era uma necrópole. A proteção do Senhor do Bonfim foi pedida a una você, os devotosvindos de toda parte, ajoelhavam-se e tiravam “Senhor Deus...”, reunidos, pediam a cessação do mal,promettendo ao misericordioso um testemunho de gratidão. Então a 6 de setembro do anno fatal fizeram adescida da sagrada imagem do seu altar e cobriram-na de lagrimas. O Senhor do Bonfim sahiu em procissãoacompanhado de uma multidão attonita, o andor fora até a cidade e collocaram-no na Cathedral. Diaspassaram-se, preces fizeram-se e, para o qual não havia remédio e cuja marcha parecia não ter outro fimsenão a flagellação completa da população, diminuiu, mais um dia e fez-se escasso, mais outro dia, edesappareceu radicalmente. O Senhor do Bonfim foi reconduzido jubilosamente ao sanctuario e os devotosmandaram fazer o painel que para gloria dos que confiam alli está na casa dos milagres. Ibidem, p.108, 109.

46 Em 29 de setembro de 1905 um furioso temporal ameaça uma série de embarcações em Salvador. Naocasião, pescadores do Rio Vermelho imploraram ao Senhor do Bonfim sua proteção. Na praia, todosrezavam e pediam. E sem que se possa explicar as embarcações foram trazidas a praia e o mar serenoumilagrosamente.

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Antigamente, quando o romeiro, peregrino de longas jornadas, aportavana Bahia por dois, três e até oito dias para render homenagens à sagrada imagemdo Cristo morto e crucificado, encontrava como parada algumas casas na regiãodo Bonfim. Eles costumavam descalçarem-se ao subir os degraus do Templo.Pelos caminhos entoavam ladainhas e saudações, até chegarem à Igreja. Alidepositavam velas, objetos de cera, trocavam as medidas de seda da sagradaimagem e ouviam a missa. Terminada esta, saíam do templo rezando em voz altaou cantando e circulavam três vezes a Igreja, entrando depois para o oferecimentoda romaria.

As casas dos romeiros, em número de dezesseis, era ocupadas porpessoas que pertenciam a “melhor sociedade”47 entre os devotos que chegavamde Santo Amaro, Nazareth, Cachoeira, Feira e outras cidades do recôncavo e dointerior. Anos depois, com os hotéis, as pousadas, as pensões de baixo preço e osalbergues os romeiros deixaram de ocupar ou não procuraram mais as casas doSenhor do Bonfim.

Segundo alguns registros, a partir de 1929 as peregrinações a Itapagipediminuíram de volume e a Lavagem da Basílica foi aos poucos desaparecendo,tornando-se mais simples, menos nostálgica e mais moderna, mas mantendo-se ainda como a festa religiosa mais importante da cidade. Porém, as casas dosromeiros já eram alugadas neste período para as famílias da capital, de veraneio.A Igreja e o Estado “uniram-se” para transformar a devoção popular do Senhor doBonfim em uma grande manifestação de fé. O objetivo era converter a lavagem –rito popular que teimava em persistir – em uma exclusiva manifestação da religiãocatólica. No final de 1930, novas obras foram realizadas na colina, paralelo aoprojeto de valorização e modernização da festa.

Em 1932, o pessoal da limpeza pública assume a lavagem do templo,organizando a ornamentação do adro, do largo, como também promovendo ocortejo de auto-bombas e caminhões do referido serviço. E em 1939, as Festasdo Bonfim passaram a apresentar uma novidade: estabelece-se um contrato

47 Termo utilizado por Carlos Alberto de Carvalho em Tradições e Milagres do Bonfim: “É sempre amelhor sociedade que ocupa esses dois lotes de casinhas de romarias”. (CARVALHO, 1915, p.30.)

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com a rádio Sociedade da Bahia para a irradiação das novenas de quinta-feira,sexta e sábado, bem como de toda missa da festa.

O programa da festividade externa também sofreu modificações, nãoaprovadas pela grande maioria dos crentes, mas as que afinal se resignaram,coagidos pelas proibições da Igreja. Na ocasião se fez necessário também, oreforço da polícia armada. É por volta da década de 70 que começa a se instauraro mito da violência nessas festas.

Em 1989, Dom Lucas, em entrevista a Revista Veja, afirma em relação àfesta: As músicas ruidosas, a dança desrespeitosa são verdadeiras profanações,que tenho o dever sacrossanto de evitar (1989, p.67). Mas o cardeal acaba voltandoatrás e autoriza a Festa do Bonfim, assim como já havia ocorrido na década de50, quando Dom Augusto Álvaro da Silva decidiu fechar as portas da igreja para opovo. Esse movimento da Igreja em relação à festa pode ser observado emdiferentes intensidades no decorrer da história da Lavagem do Bonfim.

Poderíamos identificar esta tensão estabelecida entre o sagrado e oprofano, ou o que o que é considerado sagrado e profano, como uma "harmoniaconflitante". Maffesoli aponta para uma pluralidade de valores, onde a relaçãosocial em gestação atualmente é a de uma "harmonia conflitante". A vida social eo acontecimento festivo, como parte dela, não pode mais ser compreendido,como a expressão de um bem único. Se dirigirmos agora nosso olhar ao corpoque habita esta festa, o corpo como eixo de relação com o mundo, veremos queele se converte no elemento mais importante do evento espetacular. O corpo é olugar onde se constituem e propagam as significações. É o corpo que,manifestando-se por uma teatralização, põe em cena a ação de um drama48. Asnecessidades do corpo como o beber, o comer, o jogo de sedução, o vestir-se, otravestir-se, desdobrando-se em outras manifestações.

É a partir da presença desse corpo festivo que me arrisco a formular doisaspectos identificados na Lavagem do Bonfim: a festa e seu poder aglutinador eigualador e a festa e seu poder regenerador. Em Tradições Religiosas da Bahia:

48 Para Duvignaud entende-se por drama a teatralizacão coletiva da existência.

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o culto do Senhor do Bonfim, Xavier Marques relata um momento dos festejosvivenciado, em 1717, pelo crítico francês Mr. La Barbinais le Gentil que saltou naBahia e presenciou nossa festa:

O estrangeiro foi a festa com o vice-rei e os fidalgos da corte. E qualnão foi o seu espanto ao ver, no meio da turba de brancos e negros,entre plebeus e escravos, metter-se também o vice-rei com os seusgentis homens a dansar e a dar vivas ao santo! Então, confessa opróprio viajante, vendo-se instado pelos grandes da cidade a deixar osimples papel de espectador pelo de actor, teve que entrar na rodacom os devotos dansarinos.49

Não são poucos os turistas que deixam de fotografar para se entregar aosamba de roda e a cerveja quente. Na festa, comemos, rimos e vivemos a utopia daausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico. Aqui todos se aproximampor meio de conversas informais e, na construção da festa, a música que congregae iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo absolutamente fundamental no casobrasileiro (DaMatta, 1983, p. 69). Assim, esse poder que aglutina e iguala, mesmoque momentaneamente, ou no tempo da festa, instala uma nova realidade, uma“subversão exaltante”. A festa então, abala e desagrega as normas. SegundoDuvignaud, nestas fases de metamorfose, as representações e os símbolos quesatisfazem os desejos humanos, não conseguem mais reter a expansão de uma“libido” brutalmente desvelada. E, segundo as aparências, o espaço da festa propiciaum mundo reconciliado, uma convivência harmoniosa entre desconhecidos, comoo freqüentador esporádico e distante e os soteropolitanos. Passam também a “existir”na festa, muitos que, apesar de se sentirem marginalizados, encontram nesselugar, a possibilidade de serem vistos como personagens “reconhecidas” e “aceitas”.A festa revela então, seu poder regenerador:

A preta Maria Melania Ribeiro da Silva que declarou ter 110 anos deidade, estava feliz e firme de vassoura em punho, dizendo que desdemenina se habituava a lavar a Igreja do Bonfim. Depois do exercícioque lhe matava as forças a preta Melania foi até o armazém local abeber meio copo de cachaça, erguendo um viva a Oxalá que é omesmo que o Nosso Senhor do Bonfim em idioma nagô.50

49 Tradições Religiosas da Bahia: o culto do Senhor do Bomfim publicado na Revista do InstitutoGeographico e Histórico da Bahia, nº 55, Secção Gráphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1929, p. 380.

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Essa imagem congelada de 1937 pode ser vista ainda hoje nas ladeirasdo Bonfim. A festa transformando o estado, o espírito das pessoas. Uma festaapreendida ao longo da história como fenômeno transcultural, como regeneraçãodo tempo, como meio de descoberta da energia que induz a incursão em novasáreas da experiência livre dos constrangimentos impostos pelas culturas. ParaMircea Eliade, não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estrutura doTempo sagrado atualizado nas festas, tempo que é sempre o mesmo, que é umasucessão de eternidades. Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa,trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve seu lugar de origem eque é, ritualmente tornado presente.

Os participantes da festa “saem” de seu tempo histórico, do tempoconstituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais e reúnem-se ao tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à eternidade. Éesse tempo que permite pausar a dura realidade e cair no desregramento51 quepode ser lido nas palavras de Carlos Alberto de Carvalho: No largo do papagaioreuniam-se outros grupos de batuques e candomblés, pondo trégoas as durezasda vida e louvando o Senhor do Bonfim (1915, p. 42).

Para muitos a festa sempre foi um misto de paganismo e de catolicismo.E é justamente essa mistura que compõe sua magia.

A Lavagem do Bonfim e as festas de modo geral, permitem que seusintegrantes se entreguem ao devaneio, embora conservando um status social“normal” e “respeitável”, sem serem julgados. Ao mesmo tempo que a festa destróicódigos e normas estabelecidos ao colocar o homem diante de um universodesaculturado, também transforma as relações no contato intercultural, gerandomudanças que podem resultar de uma modificação interna, destruidora da culturaestabelecida. Esse mergulho do homem no tempo sagrado constitui-se de umanecessidade, pois é o tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, aduração profana em que se desenrola toda a existência humana. Tempo esse,que nos impõe a visão grandiosa e espetacular da Lavagem do Bonfim.

50 JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.51 Ao dialogar com os elementos componentes da festa Duvignaud desenvolve a idéia de desregramento

em Caillois: “O ‘desregramento’ de que fala Caillois é o desregramento de uma sociedade que colocaas suas regras ‘entre parênteses’ e que interpreta para si mesma a comédia de sua existência.”(DUVIGNAUD, 1983, p. 72.)

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Bibliografia:

CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens: A Máscara e a Vertigem. Lisboa:Edicões Cotovia, 1990.

CARVALHO, Carlos Alberto de. Tradições e Milagres do Bonfim: obraseguida de interessante resenha histórica da península de Itapagipe.Typ.Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco,1984.

DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições UniversidadeFederal do Ceará. RJ: Tempo Brasileiro, 1983.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. P.Alegre: Artes e Ofícios,1995.

MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora UNESP,2003.

SANTANA, Mariely Cabral de; SILVA, Odete Dourado da; UNIVERSIDADEFEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Alma e festa de uma cidade :devoção e construção da Colina do Bonfim. 2002. 225 f. Dissertação(Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2002.

Periódicos

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAFHICO E HISTÓRICO DA BAHIA. Salvador:Secção Gráphica da Escola de Aprendizes Artífices, Editora IHGHB, n 55, 1929.

REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, 18 de janeiro de 1989.

JORNAL A TARDE. Salvador, 12 jan. 1995.

JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.

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DIA DE FINADOS EM RIO REAL:UMA FESTA DOS VIVOS PARA OS MORTOS

Cristiano de Araujo Fontes52

Este artigo traz algumas questões a respeito da espetacularidade da festade finados que comemora o dia dos mortos, na comunidade de Rio Real. Nessedia há procissão, movimento constante no cemitério, muitas flores enfeitando ascarneiras, muitas orações pelas almas dos mortos, encontros e confraternizações,ou seja, é um dia espetacular na vida daquela comunidade com muita vida pulsando.

Neste dia, a morte e vida se chocam e se confrontam de modo glorioso.No jogo da vida cotidiana – na dramaturgia da existência – o ser-homem atua,por vezes, no espetáculo do mundo. Espetaculariza sua existência através de umpartilhamento em comum assumido pelos membros de sua comunidade. Talmodo se faz referenciado por um sentido de ser que também é partilhadopublicamente e se funda numa interpretação sobre o mundo, legada por umatradição. Trata-se dos limites hermenêuticos que referenciam uma comunidadenuma realidade passada de geração a geração. É pelo “texto do mundo”circunscrito a cada tradição, que as práticas espetaculares podem eclodir e sedesvelar na dramaturgia da existência. Tais práticas são os objetos dainvestigação etnocenológica que perscruta o modo de ser espetacular quetranscende à cena cotidiana e instaura, na dramaturgia da existência, aespetacularidade.

Acredito ser necessário, previamente, discutir os limites da etnocenologia. Anecessidade de retomar os seus conceitos e objetivos se faz pela sua recenteexistência no campo das ciências sociais. Com isso, ainda é pouco discutida econhecida. Os textos recentes que perseguem a trilha etnocenológica não deveriamse esquivar dessa empreitada. É importante retomar sempre suas idéias centraispara assim iluminar os caminhos (o meu e os daqueles que me acompanham).

52 Mestrando do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, UFBA, com especializações emTeoria da Psicologia Junguiana - IJBa, Metodologia do Ensino Superior – CEPOM, Bacharel em Turismo– FACTUR. Professor das Faculdades Integradas Olga Mettig – FAMETTIG e pesquisador de Interpretaçãodo Patrimônio.

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Assim, poderei adentrar na análise sobre a espetacularidade do dia dosfinados que se dedica a homenagens aos mortos que “são tão queridos” e queem Rio Real é uma grande celebração dos vivos para os mortos.

Questões centrais da etnocenologia

O que é a etnocenologia? O que investiga? Como e onde surge? Quemsão os seus colaboradores que se situam no limiar das fronteiras etnocenológicasabrindo perspectivas?

A etnocenologia possui um manifesto, onde todas essas respostas, de certomodo, se encontram. No manifesto, cunhado por Jean-Marie Pradier, encontra-sea seguinte definição: é o estudo, nas diferentes culturas, das Praticas eComportamentos Humanos Espetaculares Organizados – PCHEO. Nesse sentidoela é uma disciplina, um campo de pesquisa e uma ciência. Pradier observa:implica em termos de aparelhamento teórico e métodos heurísticos. E continua:como para toda ciência a etnocenologia é (...) uma direção dada, um elã, em favorde um canteiro de investigações permanentes (PRADIER, 1995, p. 01).

Investiga as práticas e comportamentos espetaculares, extra-cotidianos, noâmbito partilhado, ou seja, em comum. Como define Khaznadar, as formasespetaculares que entram no campo da etnocenologia são aquelas que são própriasde um povo, que são a expressão particular de sua cultura (BIÃO, 1999, p. 05).

A palavra etnocenologia evoca alguns significados. Tem-se: 1. Etno –particular a um povo, a um agrupamento humano, a uma socialidade; 2. ceno(skenós) – possui muitos significados, dos quais, para a etnocenologia, o corpoe a cena assumem uma centralidade, numa relação imbricada, de co-pertencimento, no qual se enraíza a espetacularidade; 3. logia – estudossistemáticos, tratado, um perscrutar científico de algo.

Daí pode-se inferir, sem exageros, que a etnocenologia estuda uma cenae um corpo partilhado e significativo para uma comunidade. Ressalta-se aqui ocaráter partilhado e significativo dado ao corpo e a cena que restringe e exclui asidiossincrasias e os momentos corriqueiros do cotidiano.53

53 Nessa perspectiva Bião diz: (...) a espetacularidade seria a colocação em cena extra-cotidiana derelações sociais que tem lugar nos espaços sociais e públicos.” (1991: 108)

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Por fim é importante dizer que a etnocenologia já nasce no seio de umainstituição: o Centro Internacional de Etnocenologia. O Centro, sob os auspíciosda Unesco, é criado por iniciativa da Maison des Cultures du Monde e doLaboratoire Interdisciplinaire de Pratiques Spetaculaires da Universidade de Paris8. (PRADIER, 1995, p. 06).

06). Os seus colaboradores internacionais mais conhecidos além dosacima citados são ainda Jean Duvignaud e Françoise Gründ (na França).

A etnocenologia e as ciências sociais

A etnocenologia é uma ciência que se lança na direção de objetos decaráter extra-cotidiano da cena contemporânea, no intuito de compreendê-los,quanto as suas constituições, sem necessariamente esgotá-los.

A etnocenologia dialoga com intimidade com a antropologia. A etimologiada palavra antropologia fala que: 1. Antropo (anthopos) – homem; logia – estudosistematizado, científico. Temos então, de modo mais simples possível, acompreensão de que é o estudo do homem e, mais precisamente, o estudo dahumanidade. É a ciência que estuda o homem e a humanidade. Porém essadefinição pouco nos diz, é muito ampla e perde-se em si mesma.

Tomemos, contudo, as subáreas da antropologia cultural, denominadasde etnografia e etnologia. Elas muitas vezes são necessárias nos estudos epesquisas etnocenológicos. Muito contribui o que a etnografia e a etnologia nosfalam a partir de seus termos e conceitos.

Tanto a etnografia quanto a etnologia são ciências que investigam o homemimerso na cultura e na relação com os seus. Assim também é a etnocenologia. Aimersão do pesquisador numa comunidade e em sua realidade cultural é funda-mental. A Etnografia (éthnos, povo; graphein, escrever), como diz Marconi, sepreocupa com a descrição das sociedades humanas. (?) Mais adiante afirma: oetnógrafo é o especialista (...) exaustivo da cultura material e imaterial dos grupos.Observa e descreve, analisa e reconstitui a cultura”. (?) Já Levi-Strauss nos informaque a etnografia consiste na observação e análise dos grupos humanos (...) evisando à reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles

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(apud, MARCONI, 2001, p. 27). Hoebel e Frost falam que a palavra etnografiasignifica, literalmente, “escrever sobre os povos” e que ela é o fundamento daantropologia cultural. Continuam dizendo sobre ela e sua prática:

São, podemos repeti-lo, relações descritivas de dados e poucos seinteressam por comparações “per se”, hipóteses e teorias. A etnografiafornece os blocos de construção para Antropologia Cultural, mas épreciso buscar em outra parte a grandiosa planta. (HOEBEL e FROST,1999, p.9)

A cultura é pública porque o significado o é (GEERTZ, 1989, p. 09). ParaGeertz o fazer etnográfico é como tentar ler (no sentido de “construir uma leiturade”) um manuscrito estranho, desbotado (Idem 1989, p. 07). Com isso o autordemarca o caráter interpretativo da cultura, que pode ser compreendido comoum texto. O que compartilho integralmente.

Se a etnografia busca descrever minuciosamente as culturas e suas formasespecíficas de ser, a etnologia é o estudo desses povos por via de comparaçãoatravés das etnografias existentes. Hoebel e Frost falam: a etnologia é a “ciência”dos povos, de suas culturas e das histórias de suas vidas como grupo (1999, p.9).Já Marconi afirma: eminentemente comparativa, preocupa-se com a análise, ainterpretação e a comparação entre as mais variadas culturas existentes,considerando suas semelhanças e diferenças (2001, p. 28). E, por fim, Levi-Strauss:

Etnografia, Etnologia e Antropologia não constituem três disciplinasdiferentes ou três concepções diferentes dos mesmos estudos.São, de fato, três etapas ou três momentos de uma mesmapesquisa, e a preferência por este ou aquele destes termosexprime somente uma atenção predominante voltada para umtipo de pesquisa que não poderiam nunca ser exclusivo dos doisoutros. (apud, MARCONI, 2001, p. 28)

Todas as definições trazidas aqui da etnografia, etnologia, antropologia eetnocenologia nos indicam o sentido claro destas ciências. Serem a luzcompreensiva sobre o ser-homem, em seus diferentes modos de ser, nasconjunturas abertas de sua tradição que se fazem a partir de uma historicidade ede uma constituição partilhada e pública (Etno). Tais ciências estão abertas emseus fundamentos para acolher a diversidade, multiplicidade, variância e colorido

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constituídos por esse ser-homem no enfrentamento do mundo. Buscamcompreender o homem enredado em sua relação social, na produção de benssimbólicos, nos afazeres cotidianos, na relação com o sagrado, em meio àsfestas e às manifestações culturais. Buscam compreender as diferençasconstituídas por esse que aparenta, de certo modo, ser sempre o mesmo, emqualquer tradição, quanto sua grandiosidade criativa, artística, mítica, lingüística,e, poética. Capacidades hauridas da perplexidade de viver com outros no mundo.Essa é a beleza e a poética de ser.

Contudo, na mesma intensidade de reciprocidade, essa capacidadegrandiosa do ser-homem irrompe a partir de uma interpretação constituída domundo, onde cada tradição pode oferecer os limites em que ele pode habitar demodo partilhado. Nesse sentido o ser-homem, em qualquer lugar que aconteça,traz em si os limites e as referencialidades de sua tradição. Os grandes artistasda humanidade retrataram o mundo a partir da perspectiva que os constituiu.

A dança sagrada de um povo revela seu enredo e personagens sagrados,pois participa de concepção constituída e partilhada por seus praticantes. Agrandiosidade pelas quais todos os povos humanizaram o mundo foi a partir deuma abertura interpretativa. Esta que se anuncia e nos enreda desde as coisasmais simples – quando recebemos um nome, nomeamos as coisas, ou nosorientamos no mundo.

Por uma compreensão dos limites interpretativos de uma tradição

O ser-homem no mundo interpretou o mundo e tal interpretação, paracada tradição, se faz mais própria que o próprio mundo. Isto não é apenas umtrocadilho, eis que a interpretação de mundo é mais concreta que o mundo. Ainterpretação é o significado que aponta o que alguma coisa é, enquanto omundo, ao contrário, é líquido, fluido. Sempre escapa a novas interpretações.Mas, quando interpretado torna-se concreto. O mundo é sempre determinado aalguma interpretação, mas indeterminável à pretensão de determiná-lo numaúnica interpretação.

Acredito que é de suma importância a capacidade de um pesquisadorem compreender os limites da interpretação da tradição quando se propõe a

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uma investigação científica. Isto é, tem que contextualizar o fenômeno com ainterpretação que o concebeu e que o orienta. Um ritual sagrado só tem sentidoa partir de suas próprias regras e da narrativa mítica que o concebeu. Um jogotambém tem regras e faz parte de um conjunto maior de coisa que estãoconstituídas a partir de uma interpretação de mundo. Até porque um fenômenocultural ou social só toma sentido e limites numa interpretação. Fora desseslimites tornam-se objetos desconectados sem um “por que” e “para que”.Compreendidos a partir de uma interpretação participam de um todo conjunturale relacional, fazendo parte de um projeto futuro, pois são partes de um acontecere de uma história.

Compreender os limites de uma interpretação, de uma tradição, não é umreducionismo da capacidade do homem e de uma comunidade. Ao contráriopercebe-se que são nesses limites que o indivíduo pode atuar na dramaturgia daexistência. A tradição – uma constituição em comum – é o horizonte em que seusatores podem compartilhar a dramaturgia da existência num sentido e num modode ser. É por isso que uma comunidade se reconhece só no anunciar do conjuntosimbólico, pois nele não se tem apenas símbolos, mas um sentido de existir.

Isto acontece, por exemplo, com as comemorações do dia de finadosem Rio Real. Previamente a comunidade se antecipa ao próprio dia, fazendodecorações, organizando os lugares de festejo, preparando o cenário para omomento que vai ser partilhado em comunidade. Ou seja, o dia de finadosacontece antes mesmo do próprio dia. Além de toda a organização material,a comunidade se prepara espiritualmente. Nessa época, ou próxima a ela,intensifica as suas orações em intenção das almas. Os rosários e os terços,os ofícios, as celebrações religiosas em comunidade, a adoração aoSantíssimo (nas quintas-feiras) e as celebrações das missas sãovigorosamente acentuadas em quantidade de fiéis e no comprometimento-participativo deles. O próprio dia em si eclode numa festa. Para quem não éda comunidade, ou para quem está afastado e esquecido dessas festividades,pode ser tomado pela mesma durante seu clímax. Como foi o que aconteceucomigo e passo a relatar, pois me revelou a força desta tradição e do sentidoque se faz subjacente ao seu modo de ser:

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Estava eu em Rio Real, no dia 01 de novembro de 2006, feliz porque iapassar alguns dias nessa terra tão querida e, ao mesmo tempo, fazer algumaspesquisas em função da disciplina de mestrado Festas e Espetacularidade(PPGAC – UFBa).

Justamente, buscava alguma coisa que servisse para uma análiseetnocenológica. Procurava alguma manifestação, algum evento, alguma práticaespetacular. Porém estava completamente esquecido que era véspera do dia definados e dele ser uma significativa celebração da comunidade. Acordei e demanhã cedo fui andar de bicicleta, celebrando uma satisfação particular, por meencontrar naquela cidade, naquelas ruas, naquele contexto, e, além disso, poderempreender algum trabalho.

Estava à procura de algo singular e significativo para a comunidade. Dealgo espetacular. Em hipótese alguma esperava qualquer coisa de pronto.Acreditava que pelos finais da tarde talvez tivesse alguma idéia que me acenassesobre o “objeto” que procurava. Mas, repito, naquela manhã nada procurava.Porém, como num repente, estava a me perguntar, o que significava aquilo àminha frente. Procissão, enterro, um evento cultural?

Na verdade, é que eu ia numa direção, e direcionado por um sentido, e acomunidade, partilhando um modo em comum, vinha numa outra direção, numoutro sentido. O sentido da comunidade, claro para ela, dava um modo de serpartilhado e experienciado existencialmente. Fiquei sem entender a questão,pois estava “esquecido” deste evento. No que me informei o compreendi e aceiteicomo aquilo que procurava e que veio de modo inesperado. Porém, já meencontrava atrasado para a pesquisa, de modo inapropriado para a celebração(ou seja, camisa e bermuda inadequada e uma bicicleta, tão importante para opasseio, mas que naquela nova conjuntura atrapalhava mais do que ajudava) edesorientado no que fazer (pois o que fazer: voltar para casa, me arrumar, arrumaro material e, assim, retornar, poderia me tirar o próprio evento).

Mas, de certo modo, não tive escolha. Havia um modo de ser empartilhamento que imputava, a quem participasse, a ser no âmbito de seus limites.Havia, também, uma celebração direcionada às almas, uma oração em comumàs almas, e quem quisesse participar teria que respeitá-las, mesmo que não

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comungasse a mesma crença. Vi-me enredado por uma cena espetacular indona direção de seu clímax e, ao mesmo tempo, tendo que me afastar.

A sorte é que uma procissão, para quem a conhece (a experienciouna existência), na maior parte das vezes, possui um passo repousado eleve, cadenciado num ritmo em comum. Foi isto o que me fez projetar asminhas possibilidades de retorno com um devido sucesso. Mas, é bomdeixar claro, que se eu não estivesse esquecido desse evento, e se navéspera já o soubesse, também me prepararia de modo adequado,antecipadamente, pois como membro de uma tradição que partilha o queé um dia de finados (ou seja, o seu sentido e modo de ser) eu não hesitariaem me por em função de sua conjuntura, caso quisesse partilhá-la. Assim,não me encontraria com tantos imprevistos.

Com isso, uma interpretação de mundo é um texto partilhado e só fazsentido para aqueles que são constituídos pela mesma. Nela há um sentido emodo de ser partilhado pelos membros de uma tradição. A espetacularidade,quando eclode na dramaturgia da existência, realça esse texto e põe os limitesinterpretativos numa visibilidade acentuada. O homem então passa a ser partedo texto e conseqüentemente da história, revelando-se e assumido os limiteshermenêuticos de sua constituição.

Quando a comunidade se ajoelha para orar de modo partilhado, as-sume um modo de ser, que já foi constituído e liberado pela sua própria tradição,na relação com o sagrado. Alem disso, o ajoelhar não só está arremetido pelosentido com o sagrado, mas acentua a relação. No modo do ajoelhar opraticante é em si parte do texto, porque tal modo é constituído por umainterpretação do mundo. Tal atitude faz sentido porque pertence ao conjuntode códigos que lhe constitui. Com isso, não está completamente “solto”, semreferência, mas nos limites de uma constituição. As práticas e comportamentosespetaculares estão circunscritos na constituição parti lhada de umacomunidade e, nesse sentido, compreender tais práticas é revelar os limitesinterpretativos pelo qual a comunidade habita o mundo. É revelar, também, omodo e o sentido de ser legado por uma tradição.

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A espetacularidade dos vivos e a festa para os mortos

O dia dos finados é um dia especial pelo seu próprio tema: a morte. E nocaso o dia dos mortos passa a ser o dia dos vivos. Primeiro porque, para os fiéiscatólicos, os mortos que são homenageados nessa tradição não são consideradosmortos, mas vivos, pois suas almas estão nos céus. Sua finitude, sua morte, é emrelação às “coisas do mundo”, da terra. A comunidade concebe que existe vidaapós a morte e esta vida é realizada próxima a Deus e a Cristo. Por isso, asorações são feitas em intenção das almas, do perdão de seus pecados, para queDeus as aceite junto a ele.

Para tanto é necessário um conjunto de instrumentos que fortalecem aoração e ajudam na orientação dessas almas até o seu caminho para o céu. Asvelas representam a luz do Espírito Santo, o Espírito de Deus, e auxiliam naorientação das almas para o caminho celeste. As flores ornam as carneiras ondeo corpo material ainda se faz presente. A decoração com as flores é um gesto decarinho para aqueles que agora na terra são apenas saudades. Ali, em meio àscarneiras, muitas pessoas oram, muitas excedem o emocional, outros apenaspermanecem em silêncio, algumas conversam, crianças brincam de modocomedido, mas todos estão orientados pela solenidade maior de celebraçãodas almas de seus entes queridos.

Nesse caso, acontece o “divino social”, aquilo que arregimenta e agregauma comunidade para Maffesoli. Todos, de certo modo, estão em função dessacompreensão que se faz partilhada e pública numa comunidade. Talcompreensão é uma interpretação sobre a morte, com seus específicos limiteshermenêuticos. Os povos da humanidade tiveram outras relações com a morte,outras celebrações, pois havia outros limites interpretativos em jogo.

Não se pode esquecer que na tradição cristã e católica os limitesinterpretativos da morte estão dados a partir de uma relação com os limitesinterpretativos da vida. A vida é dada por Deus. Deus é o criador do mundo, davida, do homem, e nada há, além dele. Ele é o criador. É o fim de todas as coisas.O homem vem ao mundo, mas volta para Deus. O sentido do homem é Deus,assim como, o sentido de Deus é o homem. A morte em si mesma não existe. A

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morte na tradição é representada no afastamento da alma em relação a Deus. Eo afastamento é representado pelo inferno. Ou seja, se uma alma não chegar aocéu ela está condenada ao inferno. Por isso, também, o apelo nas orações parao perdão das almas, e, ao mesmo tempo, a intensidade como se ora buscandoa salvação das almas em Deus.

O segundo motivo para o dia dos finados ser o dia dos vivos é o seu caráterde estar celebrado em função dos vivos. São eles que celebram, confraternizam,fazem a festa. Mas não é uma festa pela festa, nem uma confraternização pelaconfraternização. Como já foi visto, é uma festa para os “mortos”, para a salvaçãode suas almas. Esse fazer partilhado e de modo significativo, é o campo daespetacularidade.

Quando uma comunidade se apropria de sua tradição e do que ela lega– um modo e sentido em comum – a dramaturgia da existência se desabrochana espetacularidade. A espetacularidade eclode, ressaltando, justamente, o textointerpretativo54 que amarra a comunidade em seu cotidiano. A comunidade trazà cena os limites de uma interpretação (alma, céu, Deus, oração, casa celestial,vida depois da morte, perdão, pecado, viver com Cristo, etc.) no seu próprio modode ser e de se orientar.

O que no dia-a-dia, utilizando a expressão de Maffesoli, encontra-se nos“subterrâneos” das relações sociais – uma constituição partilhada de ser – tomarelevo e se sobressai na espetacularidade. Ou seja, o que está esquecido no ritmocotidiano – a constituição em comum – no modo espetacular emerge. Assimaconteceu comigo ao estar em meio àquela procissão. Numa hora, completamenteesquecido, na outra, completamente presente. Numa hora fechado ao que vinhade encontro, na outra me antecipando nas possibilidades futuras.

Lançado na cena espetacular, experienciando na existência aespetacularidade, o ser-homem é interpelado pela tradição, a todo instante, num

54 Texto interpretativo é uma redundância, pois todo texto, até uma bula de remédio – completamenteinformativo – é, também, uma interpretação, pois o que está em jogo é um sentido que pode sercompreendido de modo partilhado. Mas esse caráter de redundância é aqui de suma importância. Somosinterpretação quando pedimos e solicitamos as coisas, pois elas já estão nomeadas e assim podemos nosreferencializar com algum sentido.

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constante assumir de papéis, referenciados pelo sentido que constitui a própriaprática. Na dramaturgia da existência, por vezes, eclode a espetacularidade.Momentos raros em que o texto, que subjaz e constitui a tradição, se sobressai,indicando os seus limites. O sujeito, no momento em que se encontra num modoespetacular, revela uma poética, visto que é personagem de um enredo em comum.

Essa experiência me despertou para a compreensão de como o dia definados em Rio Real é a festa dos vivos para os mortos. Momentos raros deespetacularidade. Momentos de apropriação de si e da tradição.

Bibliografia:

BIÃO, Armindo. A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade. CadernoCRH, n. 15, p. 104 -110, jul/dez, 1991.

______________. Etnocenologia, uma introdução. In, Etnocenologia:textos selecionados / Christine Greiner e Armindo Bião, organizadores. – SãoPaulo: Annablume, 1999.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. LTC- Livros Técnicos eCientíficos Editora S.A.; RJ.

HOEBEL, E. A. e FROST, E. L. Antropologia Cultural e Social. SP: Cultrix, 1999.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. 2ª ed – Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1998.

MARCONI, Marina de Andrade e PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia:uma introdução. São Paulo: Editora Atlas, 2001.

PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123,maio-junho, 1995, pp. 46-48.

__________________. Etnocenologia: a carne do espírito. InEtnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123, maio-junho, 1995, pp. 46-48.

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A RODA DO CAVALO MARINHO:ESPAÇO PARA UMA MEMÓRIA ESPETACULAR DE UMA

ANCESTRALIDADE FESTIVA.

Érico José Souza de Oliveira - UFBA55

Iniciaremos nossa comunicação sobre a festa do Cavalo Marinho, tambémchamada de sambada por seus participantes, abordando três elementosessenciais à existência humana: o jogo, a festa e o riso.

Estas três noções se complementam enquanto aspectos constitutivos: aliberdade e a regra, a evasão temporária da realidade, o caráter cômico e crítico,a concentração de esforços e afetos, a reinvenção da vida ordinária, a transgressãoe o reforço da ordem, além de seus elementos próprios de espetacularidade.

Para Johan Huizinga (1993, p. 53), a cultura surge sob a forma de jogo, ouseja, ela possui certo grau de ludicidade, principalmente nos seus primórdios,mas também nos dias atuais: A vida social reveste-se de formas suprabiológicas,que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através desteúltimo que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo.

Também encontramos este raciocínio nas reflexões de Roger Caillois(1967, p. 34), quando o autor trata da noção de jogo atualizando-a entre as culturasantigas e os tipos de jogos contemporâneos a ele, abordando seu domínioespetacular e ostentatório, do qual ele define precisamente:

Tudo o que é mistério ou simulacro por natureza, está próximo dojogo: é preciso ainda que a parte da ficção e do divertimento o façasurgir, isto quer dizer que o mistério não seja venerado e que o simulacronão seja início ou sinal de metamorfose e de possessão.

Para Huizinga (1993, p. 11-12), o jogo tende a se fixar rapidamente comofenômeno cultural, como uma criação nova do espírito, um tesouro a serconservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição.

55 Professor Doutor da graduação e pós-graduação da Escola de Teatro da UFBA, Pós-doutorado (em curso)na Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (Paris), Diretor do Grupo de Pesquisa em EncenaçãoContemporânea – G-PEC (CNPq), Ator, Encenador, Iluminador, Sonoplasta e Figurinista de teatro.

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Com relação à festa, o professor Norberto Luiz Guarinello (2001, p. 973) adefine como uma forma de ação coletiva peculiar que implica em produção. Porisso, ela envolve uma coletividade num processo de produção e consumo debens materiais e imateriais que ocupam lugares específicos no seio do grupoque a realiza, compondo uma sensorialidade identitária que se dá pelocompartilhamento simbólico festejado.

O autor atribui à festa um caráter polissêmico e complexo:

O que quero dizer, na verdade, é que o que chamamos de festa éparte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para a reiteração,produção e negociação das identidades sociais (...) um tempo deexaltação dos sentidos sociais, regido por regras que regulam asdisputas simbólicas em seu interior e que podem, por vezes, ser bastanteagudas. A festa unifica, mas também diferencia, tanto interna quantoexternamente.56

Neste ponto, Bakhtin (1999, p. 10) nos oferece uma definição de festa como

(...) uma “forma primordial”, marcante da civilização humana (...)As festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentidoprofundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo (...) Suasanção deve emanar não do mundo dos “meios” e condiçõesindispensáveis, mas daquele dos “fins superiores” da existênciahumana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso não pode existirnenhum clima de festa.

O grande fôlego investigativo de Georges Minois o faz encarar o desafiode seguir o riso no curso da história ocidental, enquadrando-o como elementoessencial e intransferível da existência humana. Segundo Minois (2003, p. 30), oriso é a força motriz da festa:

Não se concebem mascaradas, travestimento, cenas de inversão,desordens e excessos sem o riso desbragado que, de algumaforma, imprime-lhes o selo de autenticidade. É o riso que dá sentidoe eficácia à festa arcaica. Porém, essas festas têm uma função:reforçar a coesão social na cidade. Elas asseguram a perpetuação

56 In: JANCSÓ, István e Kantor, Iris (orgs.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. VolumeII. São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.

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da ordem humana, renovando o contato com o mundo divino; e osímbolo do contato com o mundo divino é o riso (...)

Segundo o autor, o riso é implacável enquanto arma contra as questõespráticas e existencialistas do mundo, contra as incertezas e as certezas, contraas eternas interrogações que se multiplicam durante os séculos, como umaforma de resposta alegre às desventuras da vida, permitindo ao homem aceitar oincompreensível, assumindo tudo sem levar nada a sério.

Diante do exposto, observamos que o que chamamos de ancestralidadefestiva é, sobretudo, uma espécie de memória física, que utiliza o próprio corpocomo instrumento que estrutura todos os sentidos com o intuito de reavivar, derecompor um universo de liberdade e coletividade, tendo como elementosimprescindíveis o jogo, a festa e o riso, servindo para promover uma espécie devida transversal que, desestruturando a ordem convencional, ajuda a organizar eamenizar a lida com os sistemas de normas sociais vigentes.

Por isso, ela segue seu curso por entre as imposições sociais, semprese renovando e se transformando, porém, sem perder seus aspectos principais.A ancestralidade festiva traz seu rastro de resistência e dinamismo, produzindoinúmeras formas e modos de exteriorização dos anseios, alegrias e tristezas dahumanidade.

Esta sensação de distanciamento dos valores morais da sociedade,através de uma realidade mais graciosa e rica, plena de prazer e felicidadepersegue e complementa o homem. E é no encontro deste corpo sedento dealegria que o jogo, a brincadeira, o teatro, enfim, o espetacular se instala e recria,revigora e fecunda a existência.

São práticas mantidas fora do funcionamento social padrão e, por isso,tornam-se o espaço ideal para que a voz daqueles que não dispõem de poder nasociedade em que se inserem seja projetada e brade contra todas as espéciesde injustiças e abusos.

Ao se incursionar por entre os elementos constitutivos do espetáculo(esteja ele em que contexto estiver), é importante ter em mente que são semprenossos hábitos perceptivos culturais que nos dirigem para valorização deste ou

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daquele detalhe ou recorte57, o que torna toda e qualquer análise um tantosubjetiva, se pensarmos que é através de nosso olhar – e não há outra forma –que os fatos tornam-se perceptíveis.

Sendo assim, situamos nossa análise sobre o Cavalo Marinho dentro deuma perspectiva que absorve também o olhar do outro, no caso, dos brincadores,a partir de seu entendimento do espetáculo em questão e tentamos acrescentarnosso ponto de vista, na posição inevitável de pesquisador e praticante de teatro,que ora rediscute as informações colhidas através dos próprios praticantes, oracorrobora ou acrescenta, a partir de outros olhares – teóricos que venham acontribuir ou elucidar o pensar o outro em seu caráter espetacular – na tentativade, mais que objetivar uma descrição do evento, refletir sobre sua importância naestrutura sócio-cultural de quem o pratica.

O Cavalo Marinho de Pernambuco

É neste contexto que situamos nossa investigação sobre o CavaloMarinho de Pernambuco, através da análise de seus aspectos estéticos,dramatúrgicos e históricos, sendo uma manifestação espetacular que funcionano seio da sua sociedade local como um momento de integração, de práticaidentitária que, através do riso, do jogo e da festa, traça um diagnóstico da relaçãode poder e das diferenças sócio-econômicas existentes no Brasil.

A brincadeira do Cavalo Marinho é realizada, principalmente, na Zonada Mata Norte de Pernambuco, região agrícola que, desde o período dacolonização do Brasil, sobrevive em torno da monocultura da cana-de-açúcar,num sistema de latifúndios que privilegia uma pequena parcela da população eexplora de forma aviltante a grande parte dos trabalhadores rurais.

É neste cenário que o drama social oferece as bases para a construçãoe o fortalecimento das identidades de um povo abandonado ao descaso e àsinjustiças dos grandes proprietários de usinas de açúcar e aguardente de cana.

Historiadores sinalizam documentos que tratam de tal manifestação –também conhecida como Bumba-meu-boi – desde o início do século XIX, mas,

57 PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 2003, p 163.

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certamente, ela nasceu nas senzalas dos engenhos de cana, através do hibridismodas culturas européias, africanas e ameríndias.

De conteúdo complexo, o Cavalo Marinho pode ser consideradoum espetáculo construído a partir de várias práticas espetaculares, festas,brincadeiras, rituais religiosos e profanos que permeiam o imaginário dopovo brasi leiro, principalmente, da parcela mais desprestigiada dapopulação.

A dança, o canto, a récita, o drama e o improviso são elementos constitutivosdo espetáculo que possui, aproximadamente, oitenta e cinco personagens –chamados de “figuras” pelos praticantes – com enredos, canções e dançaspróprias, que se apresenta ao ar livre durante toda a noite – o espetáculo, quandocompleto, começa às 21 horas e finaliza às 06 horas do dia seguinte, durando,em média, oito ou nove horas.

A brincadeira se desenvolve em círculo – chamado de roda pelosbrincadores – no qual o público, de pé, dá forma ao espaço representacional,enquanto, dentro dele, se desenvolvem os dramas e conflitos pertencentes aosmembros do grupo e seu entorno sócio-cultural.

Apoiando-nos no estudo do literato russo Mikhail Bakhtin (1999, p. 10),podemos perceber que o Cavalo Marinho pernambucano lida com estruturassimilares ao que o autor observou nas práticas festivas do medievo e darenascença européia, como, por exemplo, a necessidade de práticas festivascomo desejo humano de renovação universal, de ressurreição e de transformação,passagem para um estado ideal em que se revestia a segunda vida do povo, oqual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade,igualdade e abundância.

Neste tipo de evento, as imagens cômicas do princípio da vida material ecorporal – imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidadesnaturais, da vida sexual, da liberdade gestual e de linguagem, revelam sua relaçãoentre o alto e o baixo, o céu e a terra, o grotesco e o sublime, além de serviremcomo forma de inversão do statu quo, promovendo a sátira e a crítica aos padrõesrígidos e socialmente estabelecidos.

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E é no meio da roda do Cavalo Marinho que presenciamos um ato festivoe cômico, realizado por cortadores de cana, analfabetos em sua maioria, quetransmitem oralmente, através dos tempos, uma gama de valores, conhecimentose compreensão de mundo. Neste espaço, o embate entre a vida como ela é e avida desejada pelos participantes ganha ares espetaculares e representa umfórum de debate acerca das condições em que se encontra tal comunidade:

Como um drama que enfatiza as relações patrão-empregado, asubordinação e outros aspectos da autoridade rural tradicional,o cavalo marinho pode ser interpretado como um quadro davisão moral de seus participantes, que se vêem na transição deum sistema tradicional, substituído pela modernização daindústria de açúcar e da economia local.58

Podemos dividir os personagens do Cavalo Marinho em figuras deautoridade e populares. Entre as primeiras estão o soldado, o padre, oengenheiro, o proprietário de terras, entre outros, que se utilizam de máscarasgrotescas e são, durante a brincadeira, ridicularizados pelos escravos Mateus,Bastião e Catirina, que possuem o rosto pintado de negro. Os demaispersonagens se dividem em trabalhadores manuais, animais e seressobrenaturais.

Nos corpos carnavalizados de todas as figuras do Cavalo Marinho estãoindissociáveis as imagens de nascimento e morte, pois,

...a vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório.Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Esta éprecisamente a concepção grotesca do corpo59 ,

contendo estes corpos, ao mesmo tempo, a velhice e a infância, o ventree o túmulo.

58 MURPHY, John. O cavalo marinho pernambucano. Trad. André Cunati de Paulo Bueno. 1994. Tese(Ph D em Etnomusicologia) – Escola Graduada de Ciências e Artes de Nova York, Columbia University,Nova York.

59 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto deFrançois Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidadede Brasília, 1999, p. 23.

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E é este corpo aberto e incompleto que se expande e se confunde comoutros corpos como animais, coisas e seres de outro mundo, pois é um corpocósmico, uma partícula do caos, de onde brotam as trevas e a luz, a vida e a morte.

Em relação aos conteúdos do espetáculo, observamos a noção bakhtinianade “obras verbais”, na qual a literatura está imbuída da concepção carnavalescade mundo60 , e é composta tanto do aspecto religioso quanto de paródias eescárnios ao sistema social e aos poderosos, através de travestimentos, animais,bufões, malandros e tolos.

Tal dramaturgia abarca romances populares provindos da penínsulaibérica, histórias de figuras do imaginário popular brasileiro ou personagens quese tornaram famosos por alguma característica particular, como o Valentão ou aVelha libidinosa, e se divide em momentos versificados: toadas (cantos), loas(récitas ou poemas), e momentos em prosa: diálogos (estruturas definidas dediscurso verbal) e improvisos (momentos de discurso livre sobre um tema).

Naturalmente, tais momentos não são estanques, mas, sim, possuemfronteiras liminares e tênues, sempre enfatizadas pela relação que se estabeleceentre a brincadeira e o público presente, que participa de forma ativa e se vêrefletido nos episódios apresentados.

O conteúdo textual do Cavalo Marinho, que se perpetua e se atualiza deforma oral, assim como sua estética e corporeidade, trazem em seu bojoreminiscências de um passado e de memórias de uma ancestralidade que viabilizao fortalecimento das identidades atuais e suas formas de se posicionar perante omundo que as cerca.

Mateus, Bastião e Catirina

Dissertar sobre o todo da brincadeira do Cavalo Marinho torna-seinviável neste momento, por isso, vamos nos ater a três figuras importantesdentro da dinâmica da roda da manifestação popular em questão: o Mateus,o Bastião e a Catirina.

Importantes no sentido de que são figuras que possuem umaparticipação ambivalente na brincadeira, pois, ao mesmo tempo que são os

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três escravos do Capitão, eles têm todo poder e liberdade para comandar a festacom o consentimento do seu senhor.

Além disso, são figuras apresentadas pelos mesmos figureiros durantesua permanência no grupo. Os brincadores responsáveis por estes tipos de figurase especializam nos seus códigos gestuais e vocais e as apresenta durante todaa sua vida ativa na brincadeira. Podemos dizer que, dentro das etapas deaprendizado da brincadeira, estas figuras fazem parte do estágio mais elevadode realização no drama.

Mateus é uma das figuras que permanece o tempo inteiro na arena, ficandodo início ao fim da brincadeira. Segundo os brincadores, é um escravo que serveao Capitão. Tem espírito matreiro e arredio. Seu objeto característico é uma bexigade boi seca e inflada com ar que usa para marcar o compasso das toadas batendo-a na perna enquanto dança e, principalmente, para surrar as outras figuras.

Outros elementos característicos são: seu chapéu em forma de conecoberto de papel laminado colorido, sua roupa sempre estampada e o matulãoque traz no alto das nádegas, feito de folha de bananeira, além do rosto meladode cinza de carvão. É chamado pelo Capitão para tomar conta da festa que estáorganizando.

Bastião também é uma figura permanente no terreiro e parceiro de Mateus.É muito parecido com este, tanto nos trajes como em sua atuação no espetáculo,com o diferencial de que o Mateus é mais ativo que ele. É chamado pelo Capitãopara ajudar seu amigo a cuidar da festa. Os dois negros se chamam de “pareia”(parelha), devido à cumplicidade e companheirismo.

Catirina (ou Catita) é outra figura permanente da brincadeira. É a escravaassanhada e mulher de Mateus. Alguns brincadores dizem que ela é mulherdos dois negros, mas nosso informante, o mestre Biu Alexandre, não confirmaesta versão, apesar de haver sempre insinuações neste sentido durante oespetáculo.

Apesar de ser uma figura feminina, é interpretada por um homem.Também pinta o rosto de negro, usa um lenço na cabeça, um vestido simples,um jereré (espécie de peneira para pescar) e uma boneca (a calunga) como

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elementos de caracterização. Vem para a roda a pedido de seu marido Mateus.É uma figura que está voltando aos poucos ao espetáculo, depois de muitos anosde ausência e notamos que, devido a este afastamento, muita coisa em relaçãoa sua participação na brincadeira se perdeu (toadas, loas, enredos, etc.).

Percebemos, em todas as formas de jogos e manifestações espetaculares,que o acentuado caráter visual é importante para a instalação da consciência deque, naquele momento, se apresenta uma outra maneira de compreender enarrar a vida.

Patrice Pavis (2003, p. 196-170) também atribui um importante papel aoselementos responsáveis pela transformação do homem em seu momentoespetacular:

O figurino é, no teatro, um embreador natural entre a pessoafísica e privada do ator e a personagem da qual ele veste a pelee os aparatos. Perfeito agente duplo, ele é levado por um corporeal para sugerir uma personagem fictícia: podemos assim abordá-lo a partir do organismo vivo do ator e do espetáculo, ou então,a partir do sistema da moda que ele transmite da maneira maisprecisa possível (...)

Analisando as vestimentas das figuras do Cavalo Marinho, concordamoscom Patrice Pavis, quando este observa a questão dos limites do figurino, ouseja, o que pode ou não ser chamado de figurino.

Segundo o autor, não é fácil definir o começo e o fim do que pode serchamado de vestimenta, pois, a depender do tipo de roupa, torna-se impossíveldistingui-la de outros elementos como máscaras, perucas, postiços, jóias,acessórios e maquiagem.

Tanto a relação do figurino com o corpo do ator que o utiliza, quanto como espaço que ele interage, assim como sua relação com os outros elementosvisuais deve ser levado em conta no momento de uma análise mais apurada doque se convencionou chamar figurino.

O mestre Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, também estáde acordo com esta forma de pensar a vestimenta e sua importância para quema utiliza:

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Rapaz, pra mim, tudo é importante. Eu não separo de importância.Eu não separo nada, porque, pra mim, tudo é importante (...) ofigureiro, se ele não tiver uma roupa certa pra botar aquela figura,ele já está achando ruim. Porque, você vê, tem figura que agente bota de manga de camisa, mas têm outras que não, quesão de paletó. Porque a figura só assenta com paletó. Uma figurapesada, sem paletó, ela não é de nada. 61

Os negros Mateus e Bastião, quanto às suas vestimentas, são as figurasmais curiosas em termos de análise, pois possuem um figurino que vem seestilizando a um ponto em que não mais os enquadram nas suas funções deescravos e serviçais. Não há, neste caso, como deixar de fazer uma relação entrea roupa destas figuras com as antigas imagens de bufões, palhaços e os famososArlequins da Commedia dell’arte.

Principalmente, se evidenciarmos um elemento que eles trazem nas costasà altura das nádegas, o chamado matulão, que é feito de palha seca de bananeira.No início de nossa pesquisa, pensávamos que a função deste objeto era dediminuir o impacto dos tombos que as figuras levavam no decorrer dasapresentações, mas, através de entrevistas, fomos informados que seria umaespécie de bagagem que os negros levavam consigo: Aquilo ali é a mala dele (...)É a bagagem. Os negros, antigamente, não andavam com as bagagens? Quandoiam viajar, não levavam aquelas bagagens? A mesma coisa são os Mateus.62

O curioso é que encontramos referências longínquas sobre o empregodeste material nas roupas de personagens cômicas, como vemos a seguir:

Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha), material usadono revestimento de colchões, porque a primitiva roupa desse cômicoera feita do mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, eafofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem avestia um verdadeiro “colchão” ambulante, protegendo-o dasconstantes quedas (RUIZ, 1987, p. 12).63

60 Idem, p. 11.61 Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 17/02/2005, na cidade

do Condado, Pernambuco.62 Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 16/02/2005, na cidade

do Condado, Pernambuco.63 In: BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp,

2001, p. 205.

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De fato, não podemos asseverar de forma conclusiva tais relações, mas,podemos perceber certa proximidade entre os dois casos expostos.

A roupa em si do Mateus e do Bastião também nos lembra, pelo coloridoe pela forma, as roupas mais conhecidas dos Arlequins, ficando claro que háuma ligação muito antiga entre a graça, a diversão e a utilização de roupascoloridas, pois, nos dois casos, estes são personagens encarregados em mantero tom cômico dos espetáculos, além de suas origens modestas que geraram umfigurino em forma de retalhos multicores.

Também, são estas figuras, juntamente com a Catirina, que assumem afunção de inverter as relações sociais estabelecidas pelo sistema vigente, isto é,dentro da roda, através do riso e do escárnio, são eles que dominam as outrasfiguras que, na vida real, são os detentores do poder. Neste caso, o figurinodemonstra sua forma de participação na brincadeira.

Em se tratando da maquiagem que, segundo Patrice Pavis, tem a funçãode vestir o corpo, assim como a alma de quem a usa, ela desempenha papéissimples e de fácil percepção, à primeira vista, em se tratando da brincadeira doCavalo Marinho. Poderíamos mesmo dizer que a maquiagem se resume a rostospintados de preto ou branco ou o uso de máscaras.

Porém, numa análise mais apurada podemos observar significantes deprofunda relação com o imaginário que constitui o universo que permeia osbrincadores e, atentos à conduta de Pavis, tentaremos avaliar, sobretudo, a funçãosimbólica que a maquiagem e a máscara preenchem no momento daespetacularização do corpo e suas conexões com o sistema sócio-cultural deseus participantes.

Mas, antes de adentrarmos nestas questões, observemos o que Pavis(2003, p. 170) nos diz a respeito da máscara e da maquiagem:

A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo comopodem ser a máscara, o figurino ou o acessório (...) É, melhordizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana colada norosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor paraservi-lo ou traí-lo que esse filme tênue.

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Esta passagem nos faz refletir sobre a utilização das máscaras,maquiagens e rostos limpos dos integrantes do Cavalo Marinho.

A maquiagem de cor preta só é usada por três figuras no espetáculo, oMateus, o Sebastião e a Catirina, os negros escravos do Capitão que sãocontratados para tomar conta da festa. Por mais que seus intérpretes nãosejam brancos, isto é, estejam mais próximos dos descendentes de escravos,seus rostos são maquiados de preto, o que ressalta o branco dos olhos quasesempre arregalados e dos dentes sempre aparentes através da ginásticafacial característica que imprime o tom zombeteiro e satírico das figuras.

Podemos, a partir disso, afirmar que, nesta estrutura do Cavalo Marinho, amaquiagem é a personificação do elemento oprimido que se faz livre nabrincadeira, ganhando poderes acima das normas do dia-a-dia. São os antigosescravos que, reinventados pelos brincadores, são vividos como identidade destes,são as figuras mais próximas a eles, que se identificam com seus pesares,sofrimentos e injustiças.

Por isso, não a máscara, nem o rosto limpo, como acontece com asoutras figuras, mas aquela fina membrana colada no rosto, simbolizando quenada está mais próximo do universo dos brincadores que seus antepassadosescravizados e, sendo assim, seus lugares são os mais próximos possível docorpo do brincador, na sua pele, representando o elo, as referências sociais,econômicas e simbólicas que refletem o sistema destrutivo que permanecepor anos a fio e unem passado e presente de uma história infeliz.

Para Maria Acselrad, as figuras do Cavalo Marinho fazem alusão, aomesmo tempo, à realidade e ao imaginário local, trazendo em sua aparição,tanto a história do figureiro (pessoa responsável em executar a figura) quelhe dá vida, do povo de seu lugar como a presença de um universo maiscoletivo e imemorial.

Esta relação dinâmica se estabelece através da vivificação da memóriaque atua como um elo entre o passado e o presente, conferindo uma constânciaidentitária para o grupo:

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A memória cria efetivamente uma ligação temporal sensível, entre lugare corpo, e faz ressentir, num dado momento, o que foi ou o que teriapodido ser, na reconstrução de um passado no momento presente.64

Porém, esta noção de memória não deve ser vista como algo saudoso oumelancólico, algo distante que não se pode resgatar, mas como experiência quepossui representatividade no agora, como complementa Pascal Roland:

A mobilização da memória se insere, consequentemente, na expressãodo instante presente e não na lembrança de um passado inexistente,uma nostalgia.65

Neste processo de rememorização através do ato espetacular, nãoimporta a cronologia, o momento exato de algum fato, pois, ele já não existemais. Está nos elementos que transpassam o tempo e penetram nos dias atuaisa necessidade do relembrar.

Relembrar para esquecer o que passou, mas para não esquecer de simesmo, produzindo forças para poder seguir a diante e recriar a vida.

A brincadeira que corporifica as figuras do passado une um tempoancestral ao tempo atual, através de uma conjunção de ações e movimentosque transitam entre tais temporalidades, ressignificando e atualizando ahistória e neste contexto a referência ao passado só se faz no eco suscitadono período atual e só vale por ele.66

Este acontecimento da memória se dá também na escolha dos tiposque compõem o Cavalo Marinho como sendo um arcabouço de interseçõesentre o hoje e o ontem, circulando no corpo dos participantes num fluxo infindávelde conhecimento e diversão, como explicita Helena Tenderine (2003, p. 64):

64 ROLAND, Pascal. Danse et imaginaire – Étude sócio-antropologique de l’univers chorégraphiquecontemporain. Paris: EME, 2005, p. 94. Minha tradução : La mémoire crée em effet um lien temporelsensible, entre lieu et corps, et fait ressentir, à um moment donné, ce qui a été ou aurait pu être, dans lareconstruction d’um passe au moment présent.

65 Idem. p. 95. Minha tradução: La mobilisation de la mémoire s’insère em conséquence dans l’expressionde l’instant présent et non dans le rappel d’un passe révolu, une nostalgie.

66 Id. ibid, p. 96. Minha tradução: (...) la référence au passé ne se faisant que dans l’écho suscite dans lapériode actuelle et ne valant que pour elle.

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Eles mostram o universo em que vivem e o universo em que viveram seusantepassados. Mesmo que alienadamente, eles estão representando eapresentando uma realidade que foi vivida há tempos passados (na época daescravidão) por seus ancestrais. Por isto, eles são e não são eles na brincadeira,porque para alguns deles esta realidade está distante, guardada no passado,mas para outros não, ela está bem viva no presente.

Maria Acselrad (2002, p. 108) desvela o caráter cósmico queemprenha a brincadeira do Cavalo Marinho de sentido, interesse edinâmica, personalizado no conjunto de figuras que anima o espetáculo,através das vielas da memória, do significado cultural e da relaçãoestabelecida entre elas e o público: As figuras são os outros dentro de umsó eu. A maneira como são colocadas, na maioria das vezes, sem rupturaou transição enfática, sugere que a multipl icidade é constitutiva daintegridade dos sujeitos que as colocam.

E mais, que tal multiplicidade é parte integrante de cada indivíduo,permeado de tantos outros em sua suposta individualidade.

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