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Índice
I. Crises na União Europeia: o que está por detrás de tudo isto?
Para quê tudo isto?
Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes
II. Manifesto de Economistas Aterrados “Crise e dívida na
Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas em debate para se sair
do impasse”
III. Sobre o filme O Cerco
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I. Crises na União Europeia: o que está por detrás de tudo isto? Para quê tudo isto? Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes
Hoje, existe uma crise económico-financeira mundial, e
existe também uma crise europeia que em parte tem as suas raízes
na ausência de líderes políticos com uma outra visão do momento,
tal como Jean Monnet e Robert Schuman tiveram há mais de 50
anos atrás. É assim preciso, julgamos, criar aqui um espaço de
discussão de uma outra Europa, necessariamente inserida numa
economia global, mas com um outro projecto político e
económico que lhe seja próprio e assente também na solidariedade
entre os seus membros, enfim, assente numa visão de conjunto
como a expressa por estes dois arquitectos da construção
económica europeia.
Com esta sessão, com o tema específico Para uma
redefinição da união económica e monetária europeia: da crítica
dos seus fundamentos à crítica da crise actual, procuramos
precisamente trilhar este caminho. Para isto, pretendemos colocar
no centro do debate essencialmente duas grandes vias de análise:
1) os fundamentos da união económica e monetária europeia, os
limites da sua própria construção e os contornos específicos que a
crise económico-financeira nela assume; 2) na sequência do ponto
anterior, as respostas da União Europeia à própria crise, respostas
no quadro do seu modelo de referência e da sua arquitectura
institucional e que se têm caracterizado pela sua submissão à
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tirania dos mercados (monetários e financeiros), para utilizar a
feliz expressão de Henri Bourguinat utilizada já há quase quinze
anos. A partir daqui, importa perspectivar alternativas possíveis
ao seu quadro de funcionamento, de modo que a União Europeia
seja capaz de responder definitivamente à situação presente.
A economia global em termos económicos, políticos e
culturais, tem sido tradicionalmente expressa por um triângulo,
em cujos vértices se encontra os Estados Unidos, a União
Europeia e, durante muitos anos, o Japão ladeado pelos chamados
Tigres Asiáticos. Hoje a imagem do mundo mantém-se, mas com
uma diferença de fundo: em vez do Japão está agora a China,
contudo com um modelo económico e político completamente
diferente, a colocar questões novas, a exigir respostas novas, nem
uma nem outra a serem concebíveis na arquitectura económica
actual da União Europeia.
Três pólos, três visões do mundo, também três modelos de
resposta à profunda situação de crise que a economia global e
cada uma das economias nacionais atravessam. A China continua
a lidar com os seus excedentes comerciais, com as suas políticas
de expansão económica e de expansão sobre o Mundo, através da
produção, exportação de bens e de empréstimos ao exterior. Joga
com as suas regras próprias de um capitalismo de Estado ao nível
da produção e da repartição de rendimentos, podendo-se até
mesmo falar de um regime de forte acumulação primitiva. Este
regime também tem sido possível graças à intensidade da
deslocalização das indústrias do Ocidente para a China, à
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crescente subcontratação industrial e ao enorme volume de
investimentos directos estrangeiros, tudo como forma de
aproveitamento das suas características: os baixos salários, os
ritmos intensíssimos de trabalho e a cada vez maior capacidade
tecnológica, muita dela devida a estas mesmas reconfigurações
dos processos produtivos ao nível mundial da responsabilidade
principal das multinacionais americanas e europeias. Tudo isto é
assim feito no quadro da desregulação da economia mundial
neoliberal, o que permite à China criar as suas próprias regras,
crescer com elas e inserir-se intensamente no comércio mundial,
este a ser feito sob a égide da Organização Mundial do Comércio.
Tudo isto foi também possível, porque do outro lado esteve um
país — os Estados Unidos — que fez do aumento do consumo e
do endividamento a base da sua efémera estabilidade nos últimos
vinte anos. Os dois países tornaram-se os principais “promotores”
desta economia global, pois asseguraram em conjunto o equilíbrio
macroeconómico necessário para que o modelo fosse
funcionando: os Estados Unidos como “promotor” do lado da
procura e a China como “promotora” do lado da oferta.
Devido a isto, a China manipula ainda uma poupança
nacional em moeda externa, as suas receitas líquidas de
exportação, que não utiliza para promover o consumo interno,
preferindo antes limitar a sua capacidade de importação.
“Congela” assim muitos milhares de milhões de dólares de
exportações possíveis com destino a China, quer fossem elas da
Europa, quer dos Estados Unidos. “Congelando-se” as
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exportações possíveis dos outros, limita-se também o crescimento
da produção destes, dos seus investimentos produtivos, perdem-se
assim postos de trabalho efectivos e potenciais no Ocidente.
Todos estes novos trajectos da globalização são vistos pelos
governos ocidentais como o resultado da lógica da concorrência à
escala mundial e, como tal, supostamente não questionáveis.
Num segundo vértice, temos os Estados Unidos a procurar
inverter o modelo económico dos últimos vinte anos, que o
conduziu a ele, mas também a todos nós, à crise económico-
financeira presente. Para além de haver um trabalho de
diagnóstico da situação actual, feito mercado a mercado, sector a
sector, onde se procura encontrar as causas possíveis para tudo
isto, a Administração Obama tem levado a cabo uma política séria
de retoma económica e de regulação da economia americana.
A intencionalidade desta política é visível quando o Presidente
Obama tem quase necessidade de convencer senador a senador,
eleito a eleito, da importância dos seus projectos, tal é o peso dos
grupos de pressão contra toda e qualquer reforma que ponha em
causa o status quo. Foi assim com a reforma na saúde; foi assim
com a regulação dos mercados financeiros; foi igualmente deste
modo com a política de re-industrialização do país e com a
política de reconversão de algumas infra-estruturas públicas; tem
sido assim também com a oposição à política chinesa de
manutenção do yuan extremamente subavaliado. Toda esta
actuação política se distingue daquela que se vai passando na
União Europeia.
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Esta, depois de um período curto de políticas económicas
anti-crise, volta a estar submetida como talvez o nunca tenha
estado à tirania dos mercados financeiros e tomando como
objectivo prioritário não o relançamento económico, não o
crescimento económico, não a criação de emprego a tempo pleno
e decente, não a intensificação da investigação e da melhoria da
formação da sua população, não os investimentos maciços a
pensar nas gerações futuras e no bem-estar das gerações
presentes, mas antes a redução drástica dos défices públicos e do
valor da despesa pública relativamente ao PIB. O desejo de
apenas querer “acalmar os mercados”, “saber comunicar com
estes”, tornou-se o grande objectivo da política económica
europeia; o objectivo prioritário e único de estabilidade de preços
na zona euro, inscrito nos Tratados, e cegamente procurado até ao
despoletar da crise, em 2008, parece até esquecido.
Os dias de hoje têm revelado, com efeito, uma nova faceta
do modelo da economia neoliberal que tem sido seguido na União
Europeia, têm mostrado de forma mais explícita e brutal que são
os mercados financeiros a determinar aspectos fundamentais da
política governativa. O sistema, apesar destes novos contornos,
continua a ser o mesmo e enquanto continuar assim, não se
consegue pôr cobro definitivo à evolução da crise, pois as mesmas
causas geram os mesmos efeitos. A este nível, a Europa parece
estar a fazer o que o mais incompetente dos professores nunca
faria: dar ao aluno a prova de exame para que seja ele a
determinar a sua própria classificação.
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A liquidez injectada de forma continuada pelo Banco
Central Europeu para salvar da falência o sistema financeiro e o
dinheiro cedido por este aos bancos privados a baixo custo têm
estado a ser utilizados contra alguns Estados-membros, na
aquisição de títulos da dívida pública com taxas de rentabilidade
implícita elevadas, às quais não são alheios os ataques
especulativos às dívidas soberanas destes países. Com isto, é
agora a economia real que está a ser atingida com os planos de
austeridade, considerados necessários para inverter o sentido dos
mercados, para os “acalmar”. Com este comportamento
inesperado dos mercados financeiros, os governos têm-se
endividado ainda mais. À utilização do orçamento para salvar os
bancos e diminuir as tensões que se criavam na economia real, às
medidas económicas anti-crise, ao funcionamento dos
estabilizadores automáticos, há que acrescentar agora o aumento
do serviço da dívida. Tem-se dado assim um aumento excessivo e
perigoso do movimento no mercado de obrigações da dívida
pública, uma vez que a União Europeia não se tem preocupado
em regular os mercados financeiros, onde a especulação ontem
como hoje não está sujeita nem a constrangimentos nem a limites.
Tem-se aberto assim o caminho para se criarem novas bolhas
especulativas nos mercados financeiros com o novo objecto de
ataque dos especuladores: a dívida soberana de cada país e, para
se ser mais eficaz, tomada uma a uma.
A zona euro foi o alvo privilegiado e isto porque, como
cada um dos Estados-membros tem valores de referência a
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cumprir e regras estabelecidas pelo Pacto de Estabilidade e
Crescimento a respeitar, é possível aferir a existência de desvios
na sua situação orçamental e na sua respectiva evolução. Perante a
degradação das contas públicas de todos eles, a capacidade de
alguns países poderem assumir a sua dívida tem sido assim
colocada em dúvida pelos mercados financeiros. A escolha de
países da zona euro é tanto mais intencional quando se sabe que o
não cumprimento por parte de vários países pode pôr em causa a
concepção se não mesmo a própria existência desta união
monetária. É isto mesmo que condiciona a capacidade de resposta
dos Estados-membros e das instituições da União Europeia, dado
o quadro institucional onde estão inseridos.
As indefinições de muitos, a falta de vontade de alguns,
como a Alemanha, criam divisões entre o Norte e o Sul da Europa
e por cada compasso de espera, por cada momento de indecisão,
os especuladores criam mais espaço de actuação, o valor dos
títulos soberanos dos estados atacados caiem, as taxas de
rentabilidade implícita disparam e a dívida pública aumenta.
Por isto, hoje, pela lógica pura dos mercados financeiros e
das opções políticas das instituições europeias, os países da zona
euro percorrem três vias diferentes no acesso ao financiamento da
sua dívida pública. Na primeira via, a mais rápida, circula a
França, a Alemanha e os países da Benelux: os títulos da dívida
pública a 10 anos são remunerados a taxas inferiores a 3%; na
segunda via, de velocidade média, circulam a Itália e a Espanha
com as suas faixas em perigo de degradação eminente, estando os
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seus títulos a 10 anos a ser remunerados a cerca de 4% e, enfim,
na via mais lenta circulam Portugal e a Irlanda com taxas
próximas de 6,5% e a não se saber o que lhes querem fazer a
seguir. Fora da auto-estrada, na zona de paragem urgente, está a
Grécia com os seus títulos a serem remunerados a cerca de 13% e
a ser reparada da sua avaria pelas “oficinas” da União Europeia e
do FMI.
Hoje, a Grécia, e amanhã? Portugal? A Irlanda? A
Espanha? E depois? Quem vai a seguir…? E o silêncio das
instituições europeias continua. Estas instituições e os governos
têm mostrado uma de duas coisas: ou uma incapacidade colectiva
de agir e reagir de forma atempada e antecipada, regulando todos
estes tipos de mecanismos, ou uma vontade de nada alterar como
se na União ainda se tenha pudor em pôr em causa a eficiência
dos mercados. É como se tudo esteja a acontecer como se nada de
especial tenha ocorrido, a não ser passar-se agora a considerar que
a má situação orçamental presente se deve exclusivamente à má
gestão dos dinheiros públicos por parte de alguns governos
europeus!
A submissão à tirania dos mercados financeiros não é nem
política, nem económica nem socialmente aceitável e os seus
efeitos são bem evidentes desde a assunção clara do modelo da
economia neoliberal pela União Europeia no início dos anos 90:
um aumento insatisfatório da produção, taxas de desemprego
elevadas, investimento produtivo insuficiente, precarização nos
mercados de trabalho, desvalorização sucessiva da protecção
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social. A crise poderia ter constituído um bom momento de
reflexão de tudo o que tinha sido feito, um bom momento de
inverter o sentido das coisas. Mas, ao contrário, parece ter-se
reafirmado ainda mais a lógica do modelo até agora seguido.
Assim, em vez de políticas económicas anti-cíclicas consistentes e
sustentadas, assiste-se a políticas fortemente pró-cíclicas de
consolidação orçamental e de moderação ou mesmo de redução
salarial, tudo isto, relembre-se, em nome do “bom interesse” dos
mercados financeiros. Como resultado, a produção não mostra
nenhum sinal consistente de recuperação, a taxa de desemprego
mantém-se nos mesmos patamares e surgem de forma ainda mais
preocupante taxas de desemprego extremamente elevadas dos
jovens (15-24 anos), muitos deles com elevados níveis de
formação. Como se assinala na OCDE e na OIT, há a
possibilidade de se estar a criar uma geração perdida para o
mercado de trabalho, perdida para a sociedade. Trágica ironia! Em
nome das gerações futuras e de acordo com o modelo da
economia neoliberal, muitos têm também justificado estas
mesmas políticas de redução dos défices públicos, mas o que
dirão eles agora perante isto, perante aquilo que a aplicação do
próprio modelo está a sujeitar estas mesmas gerações? Perante a
destruição de garantias de um futuro que passa pela inserção no
mercado de trabalho, pelo respeito do direito ao trabalho, até
mesmo do direito à cidadania?
Em vez de estar em marcha a construção da Europa dos
cidadãos, a Europa das solidariedades, o que parece estar agora
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em marcha é a construção da Europa do medo, medo de perder o
emprego, medo de não conseguir emprego, medo de não vir a ter
cuidados de saúde, medo de não vir a ter reforma, medo de não
poder vir a suportar os encargos de ter casa, em suma, medo.
A realidade actual impõe assim que se realize um
verdadeiro debate democrático quanto às opções de política
económica possíveis. Como se assinala num recente manifesto
intitulado Manifesto de Economistas Aterrados1:
A maioria dos economistas que intervêm no debate público
fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão das opções
políticas às exigências dos mercados financeiros… O modelo
neoliberal continua a ser o único modelo legitimado, apesar dos
seus falhanços bem evidentes…
Como economistas, estamos aterrados ao ver que essas
políticas continuam a estar na ordem do dia e que os seus
fundamentos teóricos não estão a ser postos em causa. Os
argumentos utilizados, desde há trinta anos, para orientar as
escolhas das políticas económicas europeias são, contudo, postos
em causa pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e
sem fundamento da maior parte das pretensas evidências repetidas
à saciedade pelos decisores políticos e pelos seus assessores.
Quer se trate de eficiência e da racionalidade dos mercados
financeiros, da necessidade de reduzir as despesas públicas para 1 Manifesto de Economistas Aterrados, Crise e Dívida na Europa: 10 Falsas Evidências, 22 Medidas em Debate para se Sair do Impasse, 1 de Setembro de 2010, que se encontra a seguir neste caderno de textos.
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reduzir a dívida ou para reforçar o “pacto de estabilidade”, estas
falsas evidências devem ser questionadas e mostrar-se a
pluralidade de escolhas possíveis em política económica. Há
outras opções possíveis e desejáveis, desde que primeiro se liberte
a canga imposta pelo sector financeiro às políticas públicas.
Neste sentido, o grupo de docentes responsável pelo Ciclo de
Cinema Debates e Colóquios na FEUC decidiu assim iniciar o
Ciclo no presente ano lectivo com um debate alargado, que se
quer profundo, sobre a União Europeia, sobre os seus
fundamentos, o seu modelo económico, as suas opções presentes
de resposta à crise económico-financeira. Em suma, perguntar
então: o que está por detrás de tudo isto? Para quê tudo isto?
Perguntas que devem ser feitas, respostas que podem e devem ser
encontradas na Faculdade de Economia e no Teatro Académico
Gil Vicente, dias 10, 11 e 12 de Outubro com o Colóquio sobre a
Europa e a projecção do filme O Cerco: a democracia nas malhas
do neoliberalismo.
Coimbra, 28 de Setembro de 2010
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II. Manifesto de Economistas Aterrados “Crise e
dívida na Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas
em debate para se sair do impasse”
1 de Setembro de 2010
Primeiros signatários: Philippe Askenazy (CNRS, Ecole d’éco-
nomie de Paris), Thomas Coutrot (Conseil scientifique d’Attac),
André Orléan (CNRS, EHESS), Henri Sterdyniak (OFCE)
Tradução para português: Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes
Introdução
A recuperação económica global, possibilitada pela injecção
maciça de despesas públicas na economia (desde os Estados
Unidos à China), é frágil, mas real. Um só continente ficou para
trás, a Europa. Retomar a via do crescimento deixou de ser a sua
prioridade política. A Europa embarcou numa outra via: o da luta
contra o défice público.
Na União Europeia, os défices são, é certo, elevados — 7%
em média, em 2010 — mas muito menos do que os 11%
registados pelos Estados Unidos. Embora alguns estados federais
americanos com um peso económico mais importante do que o da
Grécia, como, por exemplo, a Califórnia, estejam virtualmente
falidos, os mercados financeiros decidiram especular sobre a
dívida soberana dos países europeus, especialmente sobre os
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países do sul. A Europa deixou-se realmente cair na sua própria
armadilha institucional: os Estados europeus têm de contrair
empréstimos junto das instituições financeiras privadas, as quais,
para concederem estes empréstimos, vão buscar liquidez, a baixo
custo, ao Banco Central Europeu. Os mercados financeiros têm,
portanto, em seu poder a chave fundamental do financiamento dos
Estados. Neste contexto, a falta de solidariedade europeia suscita
a especulação, tanto mais que as agências de rating contribuem
para aumentar a desconfiança.
Foi necessária a degradação da notação atribuída pela
Moody's à dívida da Grécia, em 15 de Junho, para que os
dirigentes europeus voltassem a falar de “irracionalidade”, termo
que tinham tanto usado no início da crise dita do subprime. Da
mesma forma, constata-se agora que a Espanha está muito mais
ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu
sistema bancário do que pela sua dívida pública.
A fim de “tranquilizar os mercados”, foi improvisado um
Fundo de estabilização do euro e foram lançados por toda a
Europa planos de cortes drásticos, frequentemente cegos, da
despesa pública. Os funcionários públicos são os primeiros
atingidos, nomeadamente em França, onde a subida das
contribuições para a segurança social se traduzirá numa redução
disfarçada dos salários. O número de funcionários diminui por
toda parte, ameaçando os serviços públicos. Os benefícios sociais,
da Holanda a Portugal, passando pela França, com a reforma das
pensões actualmente em curso, estão em vias de ser gravemente
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amputados. O desemprego e a precariedade laboral vão
necessariamente alastrar nos próximos anos. Estas medidas são
irresponsáveis, quer do ponto de vista político, quer social, e até
mesmo do ponto de vista estritamente económico.
Estas políticas, que terão acalmado momentaneamente a
especulação, têm já consequências muito negativas no plano
social em muitos países europeus, atingindo especialmente os
jovens, o mundo do trabalho e os estratos mais frágeis. A prazo,
irão inflamar as tensões na Europa e, consequentemente, ameaçar
a própria construção europeia, que é muito mais do que um
projecto económico. Pressupõe-se que a economia esteja ao
serviço da construção de um continente democrático, pacificado e
unido. Em vez disso, está a instalar-se por todo o lado uma
espécie de ditadura dos mercados, em particular, actualmente, em
Portugal, em Espanha e na Grécia, três países que ainda eram
ditaduras no início da década de 70, há apenas cerca de quarenta
anos.
A submissão a esta ditadura dos mercados não é aceitável,
quer seja interpretada como uma forma de os governantes
aterrados “tranquilizarem os mercados” ou como pretexto para
imporem opções ideológicas, uma vez que está bem provada a sua
ineficiência económica e o seu potencial destrutivo no plano
político e social. Deve, portanto, ser lançado um verdadeiro
debate democrático sobre as opções de política económica em
França e na Europa. A maioria dos economistas que intervêm no
debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a
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submissão das opções políticas às exigências dos mercados
financeiros. Certamente, todos os governos tiveram que
improvisar planos de relançamento keynesiano e, até mesmo, em
alguns casos, nacionalizar bancos temporariamente. Mas querem
fechar este parêntesis o mais rapidamente possível. O modelo
neoliberal continua a ser o único modelo legitimado, apesar dos
seus falhanços bem evidentes. Fundado no pressuposto da
eficiência dos mercados financeiros, este modelo propugna a
redução das despesas públicas, a privatização dos serviços
públicos, a flexibilização do mercado de trabalho, a liberalização
do comércio, dos serviços financeiros e dos mercados de capitais,
o alargamento da concorrência a todo o tempo e a todo o lado...
Como economistas, estamos aterrados ao ver que essas
políticas continuam a estar na ordem do dia e que os seus
fundamentos teóricos não estão a ser postos em causa. Os
argumentos utilizados, desde há trinta anos, para orientar as
escolhas das políticas económicas europeias são, contudo, postos
em causa pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e
sem fundamento da maior parte das pretensas evidências repetidas
à saciedade pelos decisores políticos e pelos seus assessores. Quer
se trate de eficiência e da racionalidade dos mercados financeiros,
da necessidade de reduzir as despesas públicas para reduzir a
dívida ou para reforçar o “pacto de estabilidade”, estas falsas
evidências devem ser questionadas e mostrar-se a pluralidade de
escolhas possíveis em política económica. Há outras opções
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possíveis e desejáveis, desde que primeiro se liberte a canga
imposta pelo sector financeiro às políticas públicas.
Fazemos seguidamente uma apresentação crítica dos dez
postulados que continuam a inspirar quotidianamente as decisões
das autoridades públicas em toda a Europa, apesar dos
contundentes desmentidos espelhados na crise financeira e nas
suas sequelas. Trata-se de falsas evidências que inspiram medidas
injustas e ineficazes, em confronto com as quais apresentamos 22
contrapropostas. Cada uma delas não colhe necessariamente a
unanimidade dos signatários deste texto, mas deverão ser levadas
a sério, se queremos que a Europa saia do impasse.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 1: OS MERCADOS FINAN-
CEIROS SÃO EFICIENTES
Hoje, todos os observadores constatam um facto: o papel
fundamental que desempenham os mercados financeiros no
funcionamento da economia. É o resultado de uma longa
evolução, que começou no final dos anos setenta. Qualquer que
seja a forma de a analisar, esta evolução marca uma ruptura clara,
tanto quantitativa como qualitativa, em relação às décadas
anteriores. Sob pressão dos mercados financeiros, a regulação
geral do capitalismo modificou-se profundamente, dando origem
a uma nova forma de capitalismo, que alguns apelidaram de
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“capitalismo patrimonial”, de “capitalismo financeiro” ou ainda
de “capitalismo neoliberal”.
Estas mutações encontraram a sua justificação teórica no
postulado da eficiência informacional dos mercados financeiros.
De facto, segundo este postulado, importa desenvolver os
mercados financeiros, garantir que eles possam operar tão
livremente quanto possível, porque são o único mecanismo de
afectação eficiente do capital. As políticas obstinadamente
levadas a cabo ao longo dos últimos trinta anos estão em
conformidade com esta recomendação. Trata-se de criar um
mercado financeiro integrado a nível mundial, em que todos os
agentes (empresas, famílias, Estados, instituições financeiras)
podem negociar qualquer tipo de valor mobiliário (acções,
obrigações, dívidas, derivados, divisas) para qualquer maturidade
(longo prazo, médio prazo, curto prazo). Os mercados financeiros
têm vindo a assemelhar-se aos mercados “sem fricção” dos
manuais: o discurso económico conseguiu recriar a realidade.
Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria
económica dominante, os analistas acreditaram que o sistema
financeiro estava agora muito mais estável do que no passado. A
“grande moderação” — este período de crescimento económico
sem aumento de salários que os Estados Unidos viveram entre
1990 e 2007 — pareceu confirmá-lo.
Ainda hoje, o G20 continua a defender a ideia de que os
mercados financeiros são o mecanismo adequado para a afectação
de capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros
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continuam a ser os objectivos finais da sua nova regulação
financeira. A crise não é interpretada como um resultado
inevitável da lógica da desregulamentação dos mercados, mas sim
como uma consequência da desonestidade e da irresponsabilidade
de alguns agentes financeiros, mal enquadrados pelos poderes
públicos.
No entanto, a crise encarregou-se de demonstrar que os
mercados não são eficientes e que também não conduzem à
afectação eficiente do capital. As consequências desta realidade
factual são imensas, em matéria de regulação e de política
económica. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os
investidores procuram e encontram a informação mais fiável
possível sobre o valor dos projectos alternativos que disputam
entre si o financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço que se
estabelece no mercado reflecte as decisões dos investidores e
sintetiza toda a informação disponível: constitui, portanto, uma
boa estimativa do efectivo valor dos títulos. Ora, pressupõe-se que
este valor sintetize toda a informação necessária para orientar a
actividade económica e, deste modo, a vida social. Assim, o
capital é investido nos projectos mais rentáveis e deixa os que são
menos eficientes. Esta é a ideia central desta teoria: a
concorrência financeira gera preços justos, os quais constituem
sinais fiáveis para os investidores, orientando eficazmente o
desenvolvimento económico.
Mas a crise veio confirmar os vários trabalhos críticos que
tinham posto em causa esta ideia. A concorrência financeira não
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gera necessariamente preços justos. Pior, a concorrência
financeira é muitas vezes desestabilizadora e leva a movimentos
de preços excessivos e irracionais, as bolhas financeiras
especulativas.
O principal erro da teoria da eficiência dos mercados
financeiros consiste em transpor para os produtos financeiros a
teoria usada para os mercados de bens comuns. Nestes mercados,
a concorrência é parcialmente auto-reguladora devido ao que se
chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem
sobe, os produtores aumentam a oferta, enquanto os compradores
reduzem a procura; em consequência, o preço irá descer e chegar
perto do seu nível de equilíbrio. Por outras palavras, quando o
preço de um bem sobe, as forças de mercado tendem a impedir e
depois a inverter esse aumento. A concorrência produz o que se
chama “feedbacks negativos”, ou seja, forças de repercussão em
sentido oposto, na direcção oposta à do choque inicial. A ideia de
eficiência decorre de uma transposição directa deste mecanismo
para os mercados financeiros.
Ora, para estes últimos, a situação é muito diferente. Quando
o preço aumenta, é comum observar-se, não uma diminuição, mas
um aumento na procura! Na verdade, o aumento nos preços
significa uma rentabilidade maior para os detentores dos títulos,
devido às mais-valias realizadas. O aumento de preços atrai assim
novos compradores, o que reforça ainda mais o aumento inicial.
As promessas de bónus estimulam os traders a reforçar ainda
mais este movimento. Até se verificar um incidente, imprevisível
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mas inevitável, que provoque a reversão das expectativas e o
crash. Este fenómeno, digno dos rebanhos de carneiros
panúrgicos, é um processo de “feedbacks positivos” que agrava os
desequilíbrios. É a bolha especulativa: um aumento cumulativo de
preços que se auto-alimenta. Este processo não produz preços
justos, mas, antes pelo contrário, produz preços inadequados.
A posição preponderante que os mercados financeiros
ocupam não pode assim conduzir a nenhuma eficiência. Pior
ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como é
evidenciado pela série ininterrupta de bolhas especulativas
conhecidas desde há 20 anos: Japão, Sudeste Asiático, Internet,
Mercados Emergentes, Imobiliário, Titularização. A instabilidade
financeira traduz-se desta forma nas fortes flutuações das taxas de
câmbio e das Bolsas, claramente sem qualquer relação com os
fundamentais da economia. Esta instabilidade, nascida no sector
financeiro, propaga-se à economia real através de vários meca-
nismos.
Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados
financeiros, sugerimos quatro medidas:
Medida n.º 1: Compartimentar estritamente os mercados finan-
ceiros e as actividades dos agentes financeiros, proibir aos bancos
especularem por sua própria conta, para evitar a propagação de
bolhas especulativas e crashs.
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Medida n.º 2: Reduzir a liquidez e a especulação desestabili-
zadora, através do controlo dos movimentos de capitais e de
impostos sobre as transacções financeiras.
Medida n.º 3: Restringir as transacções financeiras às que corres-
pondam às necessidades da economia real (por exemplo, CDS
apenas aos detentores de títulos segurados, etc.).
Medida n.º 4: Estabelecer limites máximos para a remuneração
dos traders.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 2: OS MERCADOS FINAN-
CEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓ-
MICO
A integração financeira alcandorou o poder da finança ao
seu zénite, na medida em que unificou e centralizou a propriedade
capitalista à escala global. Agora é a finança que determina as
normas de rentabilidade exigidas pelo conjunto de todos os
capitais. O projecto era o de a finança de mercado substituir o
sistema de financiamento bancário dos investimentos. Projecto
que aliás falhou, uma vez que hoje, globalmente, são as empresas
que financiam os accionistas e não o contrário. A governança das
grandes empresas foi, no entanto, profundamente transformada
para corresponder às normas de rentabilidade do mercado. Com a
26
ascensão dominante do valor accionista, instituiu-se uma nova
concepção da empresa e da gestão, pensadas como estando ao
serviço exclusivo do accionista. A ideia de interesse próprio
comum dos diferentes interessados na vida da empresa
desapareceu. Os gestores das empresas cotadas na Bolsa têm
agora a principal missão de satisfazer o desejo de enriquecimento
dos accionistas e nada mais. Consequentemente, deixam eles
próprios de ser assalariados, como mostra bem o aumento
desmesurado das respectivas remunerações. Como sugere a teoria
do “agenciamento”, trata-se de fazer com que os interesses dos
gestores passem a estar em convergência com os dos accionistas.
Uma ROE (“Return on Equity” ou rentabilidade dos capitais
próprios) de 15% a 25% passa a ser a norma imposta pelo poder
da finança às empresas e aos assalariados. A liquidez é o
instrumento deste poder, permitindo a todo o momento aos
capitais não satisfeitos de mudarem para outras paragens.
Confrontados com este poder, os assalariados, tal como a
soberania política, surgem, pela sua fragmentação, em situação de
inferioridade. Esta situação de desequilíbrio leva a exigências de
lucros irrazoáveis, porque definham o crescimento económico e
conduzem a um aumento contínuo das desigualdades de
rendimentos. Por um lado, as exigências de lucros inibem
fortemente o investimento: quanto mais elevada for a renta-
bilidade exigida, mais difícil é encontrar projectos que sejam
suficientemente rentáveis para a satisfazer. As taxas de
investimento continuam a ser historicamente fracas na Europa e
27
nos Estados Unidos. Por outro lado, esses requisitos provocam
uma pressão constante sobre a baixa dos salários e sobre o poder
de compra, o que não é favorável à procura. A travagem
simultânea do investimento e do consumo conduzem a um baixo
crescimento e a um desemprego endémico. Os países anglo-
saxónicos têm procurado opor-se a esta tendência através do
aumento crescente do endividamento das famílias e através de
bolhas financeiras especulativas, que criam uma riqueza fictícia,
permitindo o crescimento do consumo sem salários, mas que
acabam por redundar em crashs.
Para ultrapassar os efeitos negativos dos mercados
financeiros sobre a actividade económica, colocamos em debate
três medidas:
Medida n.º 5: Reforçar significativamente os contra-poderes nas
empresas, para obrigar as direcções a ter em conta os interesses de
todas as partes.
Medida n.º 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal
sobre os rendimentos muito elevados, para desencorajar a corrida
a rendimentos insustentáveis.
Medida n.º 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mer-
cados financeiros, desenvolvendo uma política pública de crédito
(taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social
e ambiental)
28
FALSA EVIDÊNCIA N.º 3: OS MERCADOS AJUÍ-
ZAM BEM A SOLVABILIDADE DOS ESTADOS
Segundo os defensores da eficiência dos mercados
financeiros, os operadores do mercado têm em conta a situação
objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição
de um empréstimo ao Estado. Tomemos o caso da dívida grega:
os operadores financeiros e os políticos decidem exclusivamente
na base de avaliações financeiras para avaliar a situação. Assim,
quando a taxa de juro exigida à Grécia aumentou para mais de
10%, todos concluíram que o risco de incumprimento estava
próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, é
porque o perigo é extremo.
Trata-se de um profundo erro, quando se conhece a
verdadeira natureza da avaliação pelos mercados financeiros. Não
sendo os mercados financeiros eficientes, geram muito
frequentemente preços totalmente dissociados dos “fundamentais
económicos”. Nestas circunstâncias, não é razoável confiar
exclusivamente nas avaliações financeiras para julgar uma
determinada situação. Avaliar o valor de um título financeiro não
é uma operação que se compare a medir uma grandeza objectiva,
como por exemplo, a estimar o peso de um objecto. Um título
financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é
necessário prever o que será este futuro. Trata-se de uma questão
de julgar, não de medida objectiva, porque no momento t, o futuro
não está de forma nenhuma predeterminado. Nas salas dos
29
mercados financeiros, trata-se só do que os operadores imaginam
o que vai ser. O preço de um activo financeiro resulta de um acto
de julgar, de uma crença, de uma aposta no futuro: não há
nenhuma garantia de que os juízos feitos pelos mercados
financeiros tenham qualquer superioridade sobre outras formas de
julgar.
Sobretudo, a avaliação financeira não é neutra: afecta o
objecto medido, compromete e constrói o futuro que ela própria
imagina. Assim, as agências de rating desempenham um papel
importante na determinação das taxas de juro nos mercados de
obrigações, através da atribuição de notações de risco marcadas
por forte subjectividade e, até mesmo, pelo desejo de alimentar a
instabilidade, fonte de lucros especulativos. Ao degradar a
notação de um Estado, estas agências aumentam a taxa de juro
cobrada pelos actores financeiros para adquirir os títulos da dívida
pública desse Estado e, consequentemente, aumentam por aí
mesmo o risco de falência que anunciaram.
Para reduzir a influência da psicologia dos mercados no
financiamento dos Estados, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 8: As agências de rating não devem ser autorizadas a
apoiar arbitrariamente a elevação das taxas de juro nos mercados
das obrigações pela degradação da notação financeira de um
Estado: dever-se-ia regulamentar as suas actividades, exigindo
que as notações resultem de um cálculo económico transparente.
30
Medida n.º 8 bis: Libertar os Estados da ameaça dos mercados
financeiros, garantindo a recompra dos títulos públicos por parte
do BCE.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 4: A FORTE E RÁPIDA
SUBIDA DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM
EXCESSO DE DESPESA
Michel Pebereau, um dos “padrinhos” da banca francesa,
descrevia, em 2005, num desses relatórios oficiais ad hoc, uma
França sufocada pela dívida pública e a sacrificar as gerações
futuras, ao permitir-se despesas sociais descomunais. O Estado a
endividar-se como um pai alcoólico que bebe acima das suas
posses: esta é a visão normalmente propagandeada pela maioria
dos editorialistas. A recente explosão da divida pública na Europa
e no mundo deve-se, porém, a uma outra coisa: aos planos de
salvamento da finança e, especialmente, à recessão causada pela
crise bancária e financeira, que começou em 2008: o défice
público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007,
mas a crise fê-lo passar para 7% em 2010. A dívida pública
aumentou, ao mesmo tempo, de 66% para 84% do PIB.
No entanto, a subida da dívida pública, em França e em
muitos países europeus, foi inicialmente moderada e anterior a
esta recessão: a subida tem origem, fundamentalmente, não numa
tendência ascendente das despesas públicas — já que estas, em
31
proporção do PIB, têm, pelo contrário, níveis estáveis ou mesmo
em declínio na UE, desde o início dos anos 90 — mas sim na
erosão das receitas públicas, devido ao fraco crescimento
económico nesse período e à contra-revolução fiscal levada a cabo
pela maioria dos governos nestes últimos vinte e cinco anos. Em
termos de mais longo prazo, a contra-revolução fiscal tem
continuamente alimentado o empolamento do volume da dívida,
de recessão em recessão. Assim, em França, um recente relatório
parlamentar calculou em cerca de 100 mil milhões de euros o
custo, em 2010, das reduções de impostos feitas entre 2000 e
2010, mesmo sem incluir as isenções das contribuições sociais (30
mil milhões) e outras “despesas fiscais”. Na ausência de
harmonização fiscal, os Estados europeus têm-se envolvido numa
concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as empresas,
sobre as pessoas de altos rendimentos e sobre os grandes valores
patrimoniais, as grandes fortunas. Mesmo que o peso relativo
destas componentes varie de país para país, a subida quase geral
dos défices públicos e dos rácios da dívida na Europa, no decurso
destes últimos trinta anos, não resulta principalmente de um
descontrolo condenável da despesa pública. Um diagnóstico que,
obviamente, abre outros caminhos para além da sempiterna
redução da despesa pública.
Para restaurar um debate público informado sobre a origem
da dívida e, portanto, sobre os meios para a superar, colocamos
em debate uma proposta:
32
Medida n.º 9: Realizar uma auditoria pública e de cidadania sobre
a dívida pública, para determinar a sua origem e conhecer a
identidade dos principais detentores de títulos de dívida e quais os
montantes detidos.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 5: É NECESSÁRIO REDU-
ZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA
PÚBLICA
Mesmo que o aumento da dívida pública resultasse em parte
do aumento das despesas públicas, reduzir as despesas não
contribuiria necessariamente para a solução. Porque a dinâmica da
dívida pública pouco tem a ver com a de uma família: a
macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A
dinâmica da dívida depende na sua grande generalidade de vários
factores: do nível do défice primário, mas também da diferença
entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.
Pois, se esta última taxa for inferior à taxa de juro, a dívida
vai aumentar mecanicamente por causa do "efeito bola de neve": o
montante dos juros explode e o défice total (incluindo os juros da
dívida) também. Assim, no início de 1990, a política do franco
forte, conduzida por Beregovoy, e mantida apesar da recessão de
1993-94, levou a uma taxa de juro mais elevada que a taxa de
crescimento, o que explica o aumento da dívida pública da França
durante esse período. É o mesmo mecanismo que explica o
33
aumento da dívida, na primeira metade da década de 80, sob o
impacto da revolução neoliberal e das políticas de altas taxas de
juro conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Mas a própria taxa de crescimento económico não é, em si
mesmo, independente das despesas públicas: a curto prazo, a
existência de despesas públicas estáveis limita a dimensão das
recessões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os
investimentos e as despesas públicas (educação, saúde,
investigação, infra-estruturas...) estimulam o crescimento. É
errado dizer que todo e qualquer défice faz crescer, no mesmo
montante, a dívida pública, ou que qualquer redução do défice
reduz a dívida de igual montante. Se a redução do défice tem
efeitos negativos sobre a actividade económica, a dívida tornar-se-
á cada vez mais pesada. Os comentadores liberais sublinham que
alguns países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram cortes brutais
nas suas contas públicas nos anos 90 e que conseguiram
imediatamente uma recuperação económica, um forte
crescimento. Mas isto só é possível se o ajustamento se referir a
um país isolado, que ganhe rapidamente competitividade sobre os
seus concorrentes. Mas, obviamente, esquecem os adeptos dos
ajustamentos estruturais europeus que os países europeus têm
como principais clientes e concorrentes os outros países europeus,
uma vez que a UE é globalmente pouco aberta ao exterior. Uma
redução simultânea e maciça da despesa pública dos países da UE
só pode ter como efeito o agravamento da recessão e, portanto,
um novo avolumar da dívida pública.
34
Para evitar que a recuperação das finanças públicas não
venha a provocar um desastre social e político colocamos em
debate duas medidas:
Medida n.º 10: Manter o nível de protecção social, ou mesmo
melhorá-lo (subsídio de desemprego, de habitação…).
Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de
educação, de investigação, de investimento na reconversão
ambiental... para materializar as condições de um crescimento
sustentável, capaz de induzir uma significativa diminuição do
desemprego.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 6: A DÍVIDA PÚBLICA
TRANSFERE PARA OS NOSSOS NETOS OS EN-
CARGOS DOS NOSSOS EXCESSOS
É uma outra declaração falaciosa, que confunde a economia
das famílias com a macroeconomia, segundo a qual a dívida seria
uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras.
A dívida pública é, com certeza, um mecanismo de transferência
de riqueza, mas, sobretudo, uma transferência dos contribuintes
comuns para quem vive dos rendimentos.
De facto, com base na crença, raramente confirmada na
realidade, de que baixando os impostos estimular-se-ia o
crescimento e, no final de tudo, aumentar-se-iam as receitas
35
públicas, os Estados europeus, depois de 1980, puseram-se a
imitar os Estados Unidos, com uma política sistemática de
minimização fiscal. A redução dos impostos e das cotizações
sociais patronais multiplicaram-se (impostos sobre os lucros das
empresas, sobre os rendimentos dos mais ricos e sobre o
património, sobre as contribuições patronais para a segurança
social...), mas o seu impacto sobre o crescimento económico
manteve-se muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistri-
butivas agravaram, assim, de forma cumulativa, as desigualdades
sociais e os défices públicos.
Estas políticas fiscais forçaram os governos a endividarem-
se junto dos detentores de mais elevados rendimentos e dos
mercados financeiros para financiar os défices entretanto criados.
É aquilo que poderia chamar-se um “efeito jackpot”: com o
dinheiro economizado nos impostos, os ricos puderam adquirir
títulos de dívida pública (que rendem juros), títulos esses emitidos
para financiar os défices públicos causados pelos cortes de
impostos... O serviço da dívida pública em França representa
assim 40 mil milhões de euros anuais, quase tanto como as
receitas do imposto sobre o rendimento. Um golpe tanto mais
brilhante quanto, em seguida, se conseguiu convencer o público
de que a dívida pública se devia aos funcionários públicos, aos
reformados e aos doentes.
O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados
Unidos não resulta de políticas keynesianas expansionistas ou de
dispendiosas políticas sociais, mas sim de uma política que
36
favorece as classes privilegiadas: as “despesas fiscais” (baixas de
impostos e de cotizações patronais) aumentam o rendimento
disponível daqueles que menos precisam, os quais, nessa
sequência, podem aumentar ainda mais as suas aplicações
financeiras, nomeadamente em Títulos do Tesouro, cuja
remuneração de juros é paga pelos impostos cobrados a todos os
contribuintes. Em suma, desenvolve-se um mecanismo de
redistribuição em sentido inverso, das classes mais baixas para as
classes de maiores rendimentos, através da dívida pública, cuja
contrapartida vai sempre parar aos detentores de rendimentos
privados.
Para endireitar de forma justa as finanças públicas na Europa
e em França, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 12: Voltar a dar um carácter fortemente redistributivo
à fiscalidade directa sobre o rendimento (supressão de nichos
privilegiados, criação de novas segmentações e aumento das taxas
de imposto sobre os rendimentos...)
Medida n.º 13: Eliminar as isenções fiscais concedidas às empre-
sas que não tenham efeitos suficientes em termos de emprego.
37
FALSA EVIDÊNCIA N.º 7: É PRECISO TRAN-
QUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA
SE PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA
A nível mundial, o aumento da dívida pública deve ser
analisado em correlação com o processo de “financeirização” da
economia. Ao longo dos últimos trinta anos, graças à liberalização
total dos fluxos de capitais, a finança reforçou de forma
significativa o controlo sobre a economia. As grandes empresas
recorrem cada vez menos aos empréstimos bancários e cada vez
mais aos mercados financeiros. As famílias vêem também uma
parte crescente das suas economias escoar-se para a finança no
âmbito dos sistemas de pensões, por via dos diversos produtos de
aplicações financeiras, ou ainda, em certos países, através do
financiamento da habitação (empréstimos hipotecários). Os
gestores de carteiras de títulos, para diversificarem os riscos,
procuram títulos de dívida pública para contrabalançar as dívidas
dos particulares. Encontram-nos facilmente no mercado porque os
governos empreendem políticas no mesmo sentido, que levam a
um aumento dos défices: taxas de juro elevadas, reduções fiscais
beneficiando especificamente os altos rendimentos, incitações
maciças à poupança das famílias para favorecer os sistemas de
pensões assentes em aplicações financeiras de capitalização, etc.
Ao nível da União Europeia, a “financeirização” da dívida
pública foi inscrita nos Tratados: a partir de Maastricht, os Bancos
Centrais foram proibidos de financiar directamente os respectivos
38
Estados, os quais têm que recorrer aos mercados financeiros. Esta
“repressão monetária” acompanha a “liberalização financeira” e
tem exactamente o sentido oposto das políticas adoptadas depois
da Grande Depressão dos anos 30, que foram de “repressão
financeira” (restrições severas à liberdade de acção da finança) e
de “libertação monetária” (com o fim do “padrão-ouro”). Trata-se
de submeter os Estados que, supostamente, por natureza, são
muito gastadores, à disciplina dos mercados financeiros que,
supostamente, por natureza, são eficientes e omniscientes.
Como resultado desta opção doutrinária, o Banco Central
Europeu não tem, portanto, o direito de subscrever directamente
as emissões de títulos de dívida pública dos Estados europeus.
Privados da garantia de poderem financiar-se sempre junto dos
respectivos Bancos Centrais, os países do Sul foram, assim,
vítimas de ataques especulativos. Certamente, passados alguns
meses, apesar de sempre se ter recusado a fazê-lo em nome de
uma ortodoxia inabalável, o BCE passou a comprar títulos de
dívida pública dos Estados, às taxas de juro de mercado, para
acalmar as tensões no mercado obrigacionista europeu. Mas nada
nos diz que isso será suficiente, caso a crise da dívida se agrave e
as taxas de juro de mercado dispararem. Pode ser então difícil
manter esta ortodoxia monetária, que não tem base científica
sólida.
39
Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em
debate duas medidas:
Medida n.º 14: Autorizar o Banco Central Europeu a financiar
directamente os Estados (ou a exigir que os bancos comerciais
subscrevam a emissão de títulos públicos), com taxas de juro
baixas, libertando-se assim da canga com que os mercados
financeiros os sufocam.
Medida n.º 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, por
exemplo, limitando o peso do serviço da dívida pública a uma
determinada percentagem do PIB, introduzindo uma
discriminação entre os credores de acordo com o volume de
títulos que possuem: os detentores de grandes volumes de títulos
da dívida pública (pessoas ou instituições) devem consentir fazer
uma distensão substancial do perfil da dívida, e até mesmo a sua
anulação total ou parcial. É também necessário renegociar as
taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos pelos países em
dificuldade desde que a crise começou.
40
FALSA EVIDÊNCIA N.º 8: A UNIÃO EUROPEIA
DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU
A construção europeia apresenta-se como uma experiência
ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem se atreverem a
confrontar-se abertamente. Para os social-democratas a Europa
deveria ter como objectivo a promoção do modelo social europeu,
fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial,
com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas
políticas industriais. Deveria ser um baluarte contra a globalização
liberal, uma forma de proteger, manter e fazer avançar este
modelo. A Europa deveria defender uma visão própria da
organização da economia mundial, a globalização regulada por
instituições de governação mundial. Deveria permitir aos países-
membros manterem um nível elevado de despesas públicas e de
redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através
da harmonização fiscal sobre as pessoas, sobre as empresas e
sobre os rendimentos de capital.
Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A
visão que prevalece actualmente em Bruxelas e na maioria dos
governos nacionais é, em vez disso, a de uma Europa liberal, cujo
objectivo é o de adaptar as empresas europeias às exigências da
globalização: a construção europeia é uma oportunidade para pôr
em causa o modelo social europeu e para desregulamentar a
economia. A prevalência do direito europeu da concorrência sobre
as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no
41
Mercado Único permite introduzir maior concorrência nos
mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos
serviços públicos e organizar a concorrência entre os
trabalhadores europeus. A concorrência fiscal e social permitiu
reduzir os impostos, nomeadamente sobre os rendimentos de
capitais e empresas (as “bases móveis”) e permitiu fazer pressão
sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades
fundamentais: a livre circulação das pessoas, bens, serviços e
capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade
de circulação de capitais tem sido dada aos investidores do mundo
inteiro, submetendo assim o tecido produtivo aos
constrangimentos da valorização do capital internacional. A
construção europeia apresenta-se como uma forma de impor
reformas neoliberais aos seus povos.
A organização da política macroeconómica (independência
do Banco Central Europeu face ao poder político, o Pacto de
Estabilidade) é marcada pela desconfiança para com os governos
democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de qualquer
autonomia, tanto em termos de política monetária, como em
termos de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser
alcançado, estando banidas quaisquer políticas discricionárias de
relançamento da economia, para deixar funcionar unicamente os
“estabilizadores automáticos”. Nenhuma política económica
conjuntural comum é posta em prática ao nível do espaço
europeu, nenhum objectivo comum é definido em termos de
crescimento e de emprego. As diferenças de situação entre os
42
países não são tidas em conta, porque o Pacto não tem em conta
nem as taxas de inflação nem os défices externos nacionais; os
objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações
económicas nacionais.
As instâncias europeias têm tentado impulsionar reformas
estruturais (pelas Grandes Orientações de Políticas Económicas,
pelo Método Aberto de Coordenação, ou pela Agenda de Lisboa)
com um sucesso muito desigual. O seu modo de elaboração não
foi democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal não
correspondia necessariamente às políticas decididas a nível
nacional, dada a relação de forças em cada país. Essa orientação
não teve desde logo um sucesso brilhante que a teria legitimado.
O movimento de liberalização económica tem sido posto em
causa (o falhanço da directiva Bolkestein); alguns países têm
tentado nacionalizar a sua política industrial, enquanto a maioria
está contra a europeização das suas políticas fiscais e sociais. A
Europa social tem-se mantido uma palavra vazia, só a Europa da
concorrência e da finança é que se tem realmente afirmado.
Para que a Europa possa promover verdadeiramente um
modelo social europeu, colocamos a debate duas medidas:
Medida n.º 16: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de
mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, através
da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais, se
necessário.
43
Medida n.º 17: Em vez da política de concorrência, fazer da
“harmonização no progresso” o princípio norteador da construção
europeia. Estabelecer objectivos comuns obrigatórios tanto em
matéria de progresso social como em matéria de macroeconomia
(as GOPS, grandes orientações de política social).
FALSA EVIDÊNCIA N.º 9: O EURO É UM ESCUDO
CONTRA A CRISE
O euro deveria ser um factor de protecção contra a crise
financeira global. No fim de contas, a eliminação de toda e
qualquer incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas
europeias eliminou um dos principais factores de instabilidade.
No entanto, não foi nada assim: a Europa foi mais duramente e
mais prolongadamente afectada pela crise do que o resto do
mundo. Isto deve-se às modalidades específicas da construção da
união monetária.
Depois de 1999, a zona do euro registou um crescimento
relativamente medíocre e um aprofundamento do processo de
divergência entre os Estados-Membros, em termos de
crescimento, inflação, desemprego e dos desequilíbrios externos.
O quadro da política económica da zona euro, que tende a impor
políticas macroeconómicas similares para todos os países-
membros, mesmo que estes estejam em situações muito
diferenciadas, alargou as disparidades de crescimento entre os
44
Estados-Membros. Na maioria dos países, especialmente nos
maiores, a introdução do euro não provocou a prometida
aceleração do crescimento. Para outros, tem havido crescimento,
mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A
rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu
fazer incidir sobre o trabalho todo o peso dos ajustamentos
empreendidos. Promoveu-se a flexibilidade e a austeridade
salarial, reduziu-se a parcela dos salários no rendimento total,
aumentaram as desigualdades.
Esta corrida à minimização da dimensão social foi ganha
pela Alemanha, que foi capaz de obter grandes excedentes
comerciais, à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus
próprios assalariados, impondo uma redução do custo do trabalho
e dos benefícios sociais, o que lhe conferiu uma vantagem
comercial relativamente aos seus vizinhos, que não puderam tratar
tão duramente os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais
alemães pesam [negativamente] sobre o crescimento dos outros
países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são mais
do que a contrapartida dos excedentes dos outros... Os Estados-
Membros não foram capazes de definir uma estratégia
coordenada.
A zona euro deveria ter sido menos atingida do que os
Estados Unidos ou o Reino Unido por esta crise financeira. As
famílias estão claramente muito menos envolvidas nos mercados
financeiros e estes são menos sofisticados. As finanças públicas
estavam em melhor situação, o défice do conjunto de todos os
45
países da zona euro era de 0,6% do PIB, em 2007, contra quase
3% nos Estados Unidos, no Reino Unido ou no Japão. Mas a zona
euro sofria um agravamento dos seus desequilíbrios: os países do
Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos)
travavam os salários e a procura interna e acumulavam excedentes
externos, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Irlanda)
registavam um forte crescimento, impulsionado por taxas de juro
baixas em relação à taxa de crescimento, ao mesmo tempo que
acumulavam défices externos.
Embora a crise financeira tenha tido origem nos Estados
Unidos, estes tentaram fazer uma verdadeira política de
relançamento orçamental e monetário e, ao mesmo tempo,
iniciaram um movimento de reforço da regulação financeira. A
Europa, pelo contrário, não foi capaz de empreender uma política
suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental
foi de cerca de 1,6 pontos percentuais do PIB na zona euro, 3,2
pontos no Reino Unido e 4,2 pontos nos Estados Unidos. A queda
da produção devido à crise foi nitidamente mais forte na zona
euro do que nos Estados Unidos. O agravamento dos défices na
zona euro foi sobretudo inelutável e não o resultado de uma
política activa.
Entretanto, a Comissão continuou a accionar procedimentos
por défice excessivo contra os Estados-Membros, de tal modo
que, em meados de 2010, praticamente todos os Estados da zona
euro estavam nessa situação. Exigiu aos Estados-Membros que se
empenhassem em voltar, antes de 2013 ou de 2014, a valores
46
abaixo dos 3%, independentemente da evolução económica. As
autoridades europeias continuaram a clamar por políticas salariais
restritivas e que se pusessem em causa os sistemas públicos de
pensões e de saúde, com o risco, evidentemente óbvio, de afundar
o continente numa profunda depressão e de aumentar as tensões
entre os países. Esta ausência de coordenação e, fundamen-
talmente, a ausência de um verdadeiro orçamento da União
Europeia que possibilitasse uma solidariedade efectiva entre os
Estados-Membros incentivaram os operadores financeiros a
afastar-se do euro e mesmo a especular abertamente contra ele.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos
europeus, em caso de crise, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 18: Assegurar uma efectiva coordenação de políticas
macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios
comerciais entre os países europeus.
Medida n.º 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na
Europa, através de um Banco de Regularização de Pagamentos
(organizando os empréstimos entre os diversos países europeus).
Medida n.º 20: Se a crise do euro levar ao seu estilhaçamento, e
contando com a possível institucionalização de um orçamento
europeu (ver abaixo), criar um sistema monetário intra-europeu
(moeda comum do tipo “bancor”), que organize a reabsorção dos
desequilíbrios das balanças comerciais no interior da Europa.
47
FALSA EVIDÊNCIA N.º 10: A CRISE GREGA
POSSIBILITOU FINALMENTE AVANÇAR PARA
UM GOVERNO ECONÓMICO E PARA UMA
VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA
A partir de meados de 2009, os mercados financeiros
começaram a especular sobre a dívida dos países europeus.
Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à
escala mundial não resultou (ainda) em aumentos das taxas de
longo prazo: os operadores financeiros acreditam que os bancos
centrais vão manter durante muito tempo as taxas monetárias reais
em valores muito próximos de zero, e que não há, nem o perigo de
inflação, nem o risco de um grande país entrar em situação de
incumprimento das suas dívidas. Mas os especuladores viram bem
as falhas na organização da zona euro. Enquanto os governos de
outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelo
respectivo Banco Central, os países da zona euro renunciaram a
esta opção e estão totalmente dependentes dos mercados para
financiar os seus défices. Em resultado, a especulação pôde
desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona: Grécia,
Espanha, Irlanda.
As autoridades europeias e os governos nacionais têm sido
lentos na resposta, não querendo dar a impressão de que os países-
membros tinham direito a apoio ilimitado dos seus parceiros, e
querendo castigar a Grécia, culpada de ter escondido — com a
ajuda do banco Goldman Sachs — a dimensão dos seus défices.
48
No entanto, em Maio de 2010, o BCE e os países-membros
tiveram de criar de emergência um Fundo de Estabilização, para
sinalizar aos mercados que dariam aquele apoio ilimitado aos
países ameaçados. Em troca, estes tiveram que anunciar
programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os vai
condenar a um abrandamento da actividade económica a curto
prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da
Comissão Europeia, a Grécia deve privatizar serviços públicos
e a Espanha deve flexibilizar o mercado de trabalho. Mesmo a
França e a Alemanha, que não são objecto de especulação,
anunciaram medidas restritivas.
No entanto, a procura não é, de forma alguma, globalmente
excessiva na Europa. A situação orçamental é melhor do que a
dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, possibilitando margem
de manobra orçamental. É necessário reabsorver os desequilíbrios
de forma coordenada: os países do norte e do centro da Europa,
com excedentes comerciais, devem empreender políticas
expansionistas — salários mais elevados, mais despesas sociais...
— para compensar as políticas restritivas dos países do Sul.
A política orçamental não deve ser globalmente restritiva na
zona euro enquanto a economia europeia não se aproximar, a um
ritmo satisfatório, da situação de pleno emprego.
Mas os defensores da política orçamental automática e
restritiva na Europa estão hoje, infelizmente, com mais força. A
crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira.
Aqueles que concordaram em apoiar financeiramente os países do
49
Sul querem impor, em troca, um endurecimento do Pacto
de Estabilidade. A Comissão Europeia e a Alemanha querem
impor a todos os países-membros que inscrevam nas respectivas
Constituições o objectivo de equilíbrio orçamental e que as
respectivas políticas orçamentais sejam controladas por comissões
de peritos independentes. A Comissão Europeia quer impor aos
países uma longa cura de austeridade, para que a dívida pública
volte a ser inferior a 60% do PIB. Se há um passo rumo a um
governo económico europeu, é para um governo que, em vez de
afrouxar o grilhão da finança, vai impor austeridade e um
aprofundamento das “reformas” estruturais, em detrimento da
solidariedade social em cada país e entre os diversos países.
A crise proporciona às elites financeiras e aos tecnocratas
europeus a tentação para porem em prática a “estratégia de
choque”, aproveitando a crise para radicalizar ainda mais a
agenda neoliberal. Mas essa política tem poucas possibilidades de
sucesso:
— A redução da despesa pública vai comprometer os esforços
necessários a nível europeu para apoiar as despesas orientadas
para o futuro (investigação, educação, política familiar), para
ajudar a indústria europeia a manter e a investir em áreas de
futuro (economia verde).
— A crise vai permitir a imposição de cortes profundos nas
despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos
50
defensores do neoliberalismo, com o risco de comprometer a
coesão social, de reduzir a procura efectiva e de pressionar as
pessoas a pouparem, para garantir as suas pensões de reforma e os
cuidados de saúde, e a colocarem as suas poupanças junto das
instituições financeiras, os responsáveis pela crise.
— Os governos e as instâncias europeias recusam-se a organizar a
harmonização fiscal, que permitiria o necessário aumento dos
impostos sobre o sector financeiro, sobre os grandes valores
patrimoniais e sobre os rendimentos elevados.
— Os países europeus instauram, de forma duradoura, políticas
orçamentais restritivas, que pesam [negativamente] sobre o
crescimento. As receitas fiscais vão cair. Deste modo, os saldos
das contas públicas nunca poderão melhorar, os rácios da dívida
pública irão degradar-se e os mercados não serão acalmados.
— Os países europeus, devido à diversidade das suas culturas
políticas e sociais, não foram todos capazes de se sujeitar à
disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht, e não
serão todos capazes de se sujeitar ao seu reforço actualmente
instituído. O risco de desencadear uma dinâmica generalizada de
os países se fecharem sobre si próprios é real.
51
Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma
verdadeira solidariedade europeia, colocamos duas medidas em
debate:
Medida n.º 21: Instituir uma fiscalidade europeia (imposto sobre o
carbono, imposto sobre os lucros...) e um verdadeiro orçamento
europeu, para apoiar a convergência das economias e para
caminhar no sentido da igualdade de condições de acesso aos
serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com
base nas melhores práticas.
Medida n.º 22: Lançar um vasto plano a nível europeu, financiado
por subscrição junto dos particulares, com taxa de juro baixa mas
garantida e/ou por criação monetária pelo BCE, para empreender
a reconversão ecológica da economia europeia.
52
Conclusão — Colocar em debate a política
económica, traçar vias para refundar a união
europeia
A Europa tem-se construído, desde há três décadas, numa
base tecnocrática, excluindo as populações do debate da política
económica. A doutrina neoliberal, que se baseia na hipótese de
eficiência dos mercados financeiros, hoje indefensável, deve ser
abandonada. É necessário reabrir o espaço das políticas possíveis
e discutir propostas alternativas e consistentes que limitem o
poder da finança e organizem a harmonização e a melhoria do
sistema económico e social na Europa. Isto requer a inter-
mutualidade de importantes recursos orçamentais, libertados pela
institucionalização de uma fiscalidade europeia fortemente
redistributiva na Europa. É também necessário libertar os Estados
do estrangulamento dos mercados financeiros. Só assim é que o
projecto de construção europeia poderá esperar reencontrar a
legitimidade popular e democrática que hoje lhe falta.
Não é, obviamente, realista imaginar que 27 países vão
decidir, ao mesmo tempo, fazer uma tal ruptura nos métodos e nos
objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica
Europeia começou com seis países: a refundação da União
Europeia passará, também, inicialmente, por um acordo entre um
pequeno número de países dispostos a explorar vias alternativas.
À medida que se tornem evidentes as consequências desastrosas
das políticas adoptadas hoje, o debate sobre alternativas
53
aumentará na Europa. Lutas sociais e mudanças políticas
ocorrerão a um ritmo diferente de país para país. Haverá governos
a tomar decisões inovadoras. Aqueles que o desejarem deverão
adoptar uma cooperação reforçada, para tomarem medidas
ousadas em matéria de regulamentação financeira, de política
fiscal ou social. Através de propostas concretas estenderão a mão
aos outros países para que estes se juntem ao movimento.
É por isso que nos parece importante expor e colocar em
debate, desde já, as grandes linhas das políticas económicas
alternativas que tornarão possível a refundação da construção
europeia.
54
III. Sobre o filme O Cerco
Sobre as intenções do realizador Richard
Brouillette
Tal como aconteceu para o meu documentário anterior,
Assez n’est pas trop (Muito não é suficiente), este filme nasceu de
uma revolta.
Inicialmente, era uma revolta contra a derrota do
pensamento, ou seja, face à desvalorização da vida com
pensamento. A conversão do sistema de educação num sistema de
formação profissional teve muito a ver com esta revolta, tal como
o aparecimento de uma sociedade onde a informação se tornou
rainha, enquanto o desenvolvimento do conhecimento era
considerado fora de moda. Uma imagem me guiou, uma gravura
de Goya intitulada O sono da razão produz monstros, obtida a
partir da série Les caprices.
Depois, um editorial de Ignacio Ramonet, intitulado “O
pensamento único” que apareceu no Le Monde Diplomatique de
Janeiro de 1995, fez pouco a pouco o seu caminho na minha
cabeça e o objecto da minha revolta alterou-se lentamente,
fixando-se, sobretudo, na esclerose do pensamento político —
sabendo que tudo é político. Ocupado por uma ideologia
dogmática, este pensamento transformou-se em ideia fixa, em
obsessão, a obsessão de privar o Estado de todos os seus poderes
55
e, em seguida, de os entregar ao cuidado do mercado que, bem
entendido, sabia fazer tudo muito melhor.
De dominante, o domínio dos mestres do pensamento único
tornou-se esmagador, irrefutável. Difundido por uma vasta rede
de canais de propaganda e de doutrinação, falado em todos os
fóruns imagináveis, este deixou de encontrar qualquer obstáculo
na sua marcha, especialmente desde a queda da URSS e,
naturalmente, assumiu força de lei. Além disso, após o colapso
dos regimes comunistas, Francis Fukuyama, vice-director de uma
antiga unidade estratégica do. Departamento de Estado americano,
deu-se mesmo ao luxo de declarar o “fim da história”, porque
segundo ele o homem tinha atingido o máximo da sua glória, e
nunca poderia aspirar a uma maior e mais serena felicidade do que
a de viver numa democracia representativa regida pelo
liberalismo, nem nunca poderia imaginar uma perfeição mais
conseguida do que o reino absoluto do mercado agora alcançado.
Além disso, uma quantidade fenomenal de peritos,
consultores, especialistas, jornalistas e dirigentes de empresa
estava zelosamente envolvida num turbilhão fascinante de
proselitismo, que engolia, na sua passagem, qualquer tentativa de
contestação. Mesmo os partidos chamados de esquerda, os
sindicalistas e os académicos de todos quadrantes deram lugar a
este grande movimento de recrutamento e de fidelização a este
pensamento que reclamava, que exigia, sempre e cada vez mais
que houvesse menos Estado e mais mercado, mais concorrência,
mais competitividade. E infeliz daquele que ousasse contrariá-lo!
56
Ninguém se dignava sequer a ouvir, rejeitavam de modo imediato
e com uma autoridade de argumentos de peso quem tentasse
desacreditar a lógica económica estabelecida, ridicularizando-os
como se fossem uns tolos e com insultos supremos que eram
habitualmente reservados para os ímpios: “utópico irresponsável,
estalinista tacanho, esquerdista irrealista, nostálgicos ou ingénuos
hippies, perigoso sonhador, retardado, fora de moda frustrado,
dinossauro, etc”.
É esta a razão pela qual eu decidi fazer um filme não sobre a
economia global — até já havia vários —, mas sim sobre a
globalização de um sistema de pensamento. Um filme sobre o
controlo das mentalidades, sobre a lavagem dos cérebros, sobre o
conformismo ideológico, sobre a omnipresença indiscutível de um
novo monoteísmo, com suas tábuas de mandamentos, os arbustos
em chamas e os bezerros de ouro.
Como no meu filme anterior, é através da palavra que eu
decidi expressar a minha revolta. Uma palavra forte, franca,
rigorosa, cuidada, conhecedora e livre para se exprimir
demoradamente ao longo do filme de modo a tornar claras todas
as suas ideias. Além disso, estava para mim fora de questão travar
este discurso ou adaptá-lo ao modelo televisivo habitual
insuflando-lhe um dinamismo artificial através de uma montagem
rápida, dando-lhe um ar de falsa objectividade, ignorando as
questões complexas. Também não queria usar muito lubrificante
visual, ou seja, imagens de arquivo ou ilustrativas que afectaria a
coesão do filme e que teriam manchado as intervenções do filme.
57
Eu só fiz uso delas quando foi absolutamente necessário. Para
mim, era fundamental que a palavra cativante e perspicaz destes
eminentes pensadores pudesse ter todo o espaço do ecrã e que o
público se deixasse ficar com eles, como eu, com o fascínio de os
ouvir.
Comecei a desenvolver uma proposta de cinema fortemente
singular, tanto na forma como no conteúdo. Assim, o meu filme
resulta sobretudo de várias opções estéticas. Por exemplo, é
filmado em 16mm, a preto e branco, numa época em que só se
aposta no digital. Porquê? Em primeiro lugar, simplesmente
porque acho que é belo. Em seguida, porque o preto e branco
parece conferir uma espécie de intemporalidade ao filme. E,
depois, força-me a uma disciplina que nos obriga a uma maior
concisão, a uma maior precisão. Porque, bem vistos os custos, é
necessário utilizar menor tempo de rodagem e garantir que o
importante é dito em 11 minutos (o tempo de uma bobina).
Por outro lado, o uso da voz em off incomodava-me. Então
decidi usar legendas como separadores. Tudo isto me permite ao
mesmo tempo estruturar o filme, dar explicações que não são
dadas pelos intervenientes, tomar uma posição pessoal e abrir a
porta para um segundo nível de significados, mais emocional,
através da música. Uma música que, embora sendo rica e ousada,
não interfere com a leitura de textos.
Finalmente, decidi não identificar os intervenientes no filme,
como se tornou habitual na televisão. Muitas pessoas me
criticaram, mas eu mantive, teimosamente, o relativo anonimato
58
porque acho que este concentra a atenção do espectador sobre as
palavras e não sobre as pessoas.
Depois de ter tido esta ideia, levei quase doze anos para
concluir este filme. É verdade que eu sou uma pessoa bastante
dispersa, que gosta de mexer em tudo e de se envolver em todos
os tipos de causas. Mas também é verdade que eu gosto de ter o
tempo necessário para evoluir com uma obra a fim de a
aprofundar. E o que ainda é mais fantástico, é que o filme O
Cerco, doze anos mais tarde, é agora ainda muito mais actual e
inquietante do que antes. A actual crise económica mundial é o
resultado directo das reformas neoliberais guiadas pela ideologia
do mercado livre, do laissez-faire. Mas, infelizmente, eu não creio
que esta esteja a dar os seus toques de finados, não creio que
esteja a dar os últimos sinais de vida. O actual sistema financeiro
e monetário, herdado de Nixon, está muito longe de ser alterado,
de ser reformado; tenho dificuldade em imaginar que se deixe de
ter a pletora das privatizações e da desregulamentação que se tem
estado a passar em todo o mundo. Em vez disso, continua-se a
privatizar as empresas que dão lucros, enquanto se nacionalizam
as que dão prejuízos e continua-se a apelar a uma maior
intensificação da livre-troca.
Desejo, pelo menos, que o meu filme vá contribuir bem
humildemente para questionar os fundamentos dessa ideologia
nefasta e para reduzir a sua importância.
59
Porquê o título O cerco: Democracia nas redes do
neoliberalismo (L’encerclement: la démocratie dans
les rets du néolibéralisme)
A palavra rets vem do latim rete e significa literalmente
rede. Ela expressa a ideia de uma armadilha, tanto quanto a ideia
de rede (aliás, rete deu origem à palavra francesa reseau que
significa rede). Além disso, a Internacional Neoliberal criou uma
rede extensa, complexa e interligada que lhe permite fazer ouvir a
sua voz polimorfa simultaneamente em todas as tribunas
imagináveis, a saber: os grupos de reflexão, os think tanks, o
sistema de ensino, os meios de comunicação, os partidos políticos,
os mercados financeiros, as organizações intergovernamentais
(Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Organização
Mundial do Comércio, etc.), as empresas transnacionais, os
fundos de pensões e vários outros gestores de poupança e de
fortunas (as companhias de seguros, os bancos, os fundos mútuos,
etc.), fundos comuns de aplicações financeiras, etc. Cada elo desta
vasta cadeia encarrega-se de retransmitir a doutrina ou para outro
elo ou ainda e mais directamente para o público.
Esta circulação da ideologia neoliberal através de todos os
meios de transmissão possíveis confere-lhe uma espécie de
“monopólio da aparência” (para usar a feliz expressão de Guy
Debord), o que lhe garante a sua perpetuação e facilita a
doutrinação das massas.
60
Mas debitando esse fluxo constante de propaganda, os
ideólogos neoliberais servem a causa dos poderosos. Pois, ao
denunciar a ineficiência do Estado e os programas sociais, ao
elogiar a eficiência e a infalibilidade dos mercados, ao exaltar as
virtudes da concorrência, a desigualdade social e o direito à
propriedade privada que, segundo as suas pretensões, prevalece
sobre todos os outros direitos, os ideólogos neoliberais legitimam
as reformas que constituem a base onde assenta o poder dos mais
ricos. Estas reformas foram aprovadas em vagas repentinas em
todo o mundo desde o início dos anos 80 e ainda continuam,
apesar da crise económica mundial que demonstra a falência do
sistema neoliberal. No Ocidente, elas levaram os estados a
abandonar grande parte da sua economia nacional. Desde a
independência dos bancos centrais presididos por funcionários
não eleitos que determinam a política monetária até à privatização
crescente dos sistemas de saúde pública, educação, transporte,
energia e recursos naturais, etc., tudo foi feito para retirar das
mãos dos cidadãos o controlo sobre o seu próprio destino
económico. Mas nos países em desenvolvimento, a situação é
muito pior. Os elos fundamentais do sistema neoliberal, o FMI
e o Banco Mundial iniciaram, através das políticas de ajusta-
mento estrutural, pacotes de reformas que devastaram os estados,
deixando-os completamente exangues. Impotente, a maior parte
da humanidade viu instalar nos seus países um novo tipo de
colonialismo, de um género novo, que, fingindo altruísmo, tem
um nível de depredação fenomenal. Embora se avancem fortes
61
elogios ao livre-comércio, procede-se à delapidação em boa e
devida forma dos recursos naturais de vastos territórios e a
subjugação de populações inteiras.
E é assim que o pensamento e a democracia, cercados por
todos os lados pela propaganda e pelas reformas, se sentem presos
nas malhas, nas redes do neoliberalismo.
Estrutura do filme O Cerco
O filme tem dez capítulos e é dividido em duas partes principais.
Parte I: A visão histórica da ideologia neoliberal
Capítulo 1: Introdução
Ignacio Ramonet retoma os seus dois editoriais publicados no Le
Monde Diplomatique em meados dos anos 90 e que resumem bem
as questões levantadas pelo filme: “Regimes globalitaires” e “La
pensée unique”.
Capítulo 2: Origens
Francis Denord explica as origens da ideologia neoliberal.
Centrando-se primeiramente nas condições que favoreceram o seu
62
aparecimento, fala-nos de seguida do que constitui os dois
documentos fundadores do movimento neoliberal: o Colóquio
Walter Lippmann (1938) e a fundação da Sociedade Mont Pelerin
(1947) que se tornou a casa-mãe da International Neoliberal.
Capítulo 3: Os think tanks no centro da rede neoliberal
Francis Denord descreve como é que a Mont Pelerin tem fundado
várias organizações e grupos de reflexão, cuja principal função é a
de difundir a ideologia neoliberal na esfera pública, a fim de que
esta seja aceite pelo maior número de pessoas. Noam Chomsky
explica como é que o aparecimento dos think tanks contribuiu
para reposicionar à Direita a opinião pública que, na década de 60,
se estava a tornar cada vez mais reivindicativa. Depois, somos
levados para um seminário organizado por alunos do Instituto
Fraser Institute e do Institut Economique de Montreal onde
ouvimos Filip Palda que enuncia o que devem ser os limites do
Estado e Donald J. Boudreaux que nos explica como é que o
capitalismo industrial contribuiu para despoluir o meio ambiente.
Capítulo 4: Pequena antologia liberal — Libertários e a teoria da
escolha pública
Martin Masse desenvolve a sua visão do libertarismo, filosofia
que defende e que se concentra totalmente na liberdade
individual, enquanto defende ao mesmo tempo uma extrema
63
limitação dos poderes do Estado. Jean-Luc Migue, por seu lado,
traça as linhas gerais da teoria da escolha pública que afirma que a
adopção das políticas governamentais não é motivada pelo
interesse colectivo, mas sim pelos interesses dos diferentes grupos
sociais. Migue e Missa revezam-se a denunciar a ineficiência do
Estado e a injustiça que é gerada com as suas acções coercivas, ao
mesmo tempo que elogiam sempre o direito à propriedade privada
e à eficiência do mercado livre.
Capítulo 5: Comentários
Normand Baillargeon, Noam Chomsky, Susan George, Bernard
Marris e Omar Aktouf sucedem-se no ecrã para construir uma
crítica das teorias liberais clássicas que são retomadas pelos
neoliberais: a teoria da mão invisível, de Adam Smith, a teoria das
vantagens comparadas, de David Ricardo, a teoria sobre a
propriedade, de John Locke, etc. Defendem, entre muitos outras
coisas, que estas teorias, desenvolvidas nos séculos XVII e XVIII,
tinham o seu sentido no contexto da economia de então, hoje já
distante, mas que não se podem aplicar à economia
contemporânea.
64
Parte II: O cerco ao pensamento e à democracia
pelo neoliberalismo
Capítulo 6: Propaganda e doutrinação — a Educação
Normand Baillargeon fala-nos sobre as diversas mudanças na
Educação que abandonou o seu papel de preparação para a
cidadania ao tornar-se um sistema de formação profissional ao
serviço das empresas. Depois, chama a atenção para o
descomprometimento ou redução do papel do Estado na
Educação, o que nos Estados Unidos permitiu que várias
empresas começassem a entrar nas escolas, sob o pretexto de
oferecer programas educacionais ou materiais didácticos para
difundir a sua propaganda a públicos ingénuos e de fácil captação.
Omar Aktouf discute a ideia de uma ausência de perspectiva que
atravessa actualmente toda a sociedade e retorna à questão da
mudança de rumo do ensino, hoje centrado no mercado de
trabalho, o que faz dos alunos apenas criados e reprodutores do
sistema.
Capítulo 7: Propaganda e doutrinação — os media
Normand Baillargeon de novo e agora sobre a Comissão Creel,
que está na origem das modernas técnicas de formação e da
moldagem da opinião pública que conseguiu impor uma visão de
mundo, um vocabulário, uma maneira de pensar, etc. François
65
Brune mostra como a ideologia dominante consegue estabelecer-
se como sendo natural, como sendo indiscutível, evidente. Ignacio
Ramonet, por fim, explica como é que os media são capazes de
criar a verdade, estabelecendo a "equação que repetição é igual a
demonstração".
Capítulo 8: Neoliberalismo ou neocolonialismo — o poder de
imposição dos mercados financeiros
Noam Chomsky mostra-nos como é que os mercados financeiros
são capazes de construir um "senado virtual" que é capaz de ditar
aos vários governos do mundo as políticas que estes devem
adoptar. Bernard Marris, em seguida, descreve-nos as derrapagens
das operações fora de balanço dos bancos privados que assim
escapam ao controlo do Estado. Depois, aborda de seguida o tema
dos produtos derivados, sublinhando que uma das características
fundamentais do capitalismo contemporâneo é a de manter a
existência de risco para o poder negociar. Depois, Michel
Chossudovsky explica-nos de uma forma muito visual como é que
são conduzidos os ataques especulativos contra as moedas
nacionais e dá como exemplo o que se passou com a moeda da
Coreia, o Won, durante a crise asiática de 1997. Faz-nos
compreender que, com esses ataques, os especuladores
pretendem, na verdade, dominar toda a economia, pretendem
tomar o controlo e a posse de toda a economia dos países
atacados.
66
Capítulo 9: Neoliberalismo ou neocolonialismo — o poder de
imposição das Instituições de Bretton Woods e o Consenso de
Washington
Omar Aktouf descreve seis medidas, entre as mais importantes
dos planos de ajustamento estrutural do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial: a redução dos gastos públicos,
as privatizações, a desvalorização da moeda, a reorientação da
economia para as exportações, a verdade dos preços, assim como
a liberalização dos investimentos e a verdade dos salários. A
seguir, analisa e em detalhe os efeitos concretos e nefastos destas
medidas para as populações dos países em desenvolvimento.
Susan George, explica-nos, em seguida, como é que a
Organização Mundial do Comércio está acima de todas as leis e
convenções internacionais para ditar a sua própria lei e impor a
desregulamentação económica que beneficia sobretudo as
empresas multinacionais.
Capítulo 10: Neo-liberalismo ou neo-colonialismo — o poder de
imposição do humanismo militar ou "a guerra é a paz"
De novo Michel Chossudovsky, mas agora a falar-nos sobre os
Acordos de Dayton, que puseram fim à guerra da Bósnia. Ele
lembra-nos que em anexo a estes acordos, os militares americanos
tinham eles próprios elaborado a Constituição da Bósnia-
Herzegovina, e como esta Constituição, que não tinha nenhuma
67
base de cidadania na Bósnia Herzegovina, instalava um governo
colonial, entregando as rédeas da economia aos estrangeiros.
Noam Chomsky conclui, recordando que "o humanismo militar"
contemporâneo, com as suas missões de paz e de libertação que se
pretendem altruístas e humanistas esconde, na verdade,
verdadeiras guerras de conquista.
Comentários sobre o filme O Cerco
O Cerco: a ideologia por detrás da crise económica mundial Cyrille Souche
Através da reflexão e da análise de vários intelectuais de
esquerda, este documentário traça-nos um retrato da ideologia
neoliberal e examina os diversos mecanismos postos em marcha
para que fosse imposta à escala mundial.
Desregular, reduzir a dimensão e funções do Estado,
privatizar, controlar sobretudo a inflação, em vez de desemprego,
em suma, financiarizar e despolitizar a economia: os diferentes
dogmas desse pensamento pronto-a-usar são bem conhecidos. E
lentamente estes invadem a nossa consciência porque são
divulgados através de uma vasta e intrincada rede de propaganda.
De facto, desde a fundação da Sociedade Mont Pelerin em
1947, os organismos e institutos de investigação neoliberais, estes
68
think tanks financiados por empresas multinacionais e pelas
grandes fortunas propagam incansavelmente o pensamento neo-
liberal nas universidades, nos meios de comunicação, junto dos
deputados, etc.
Essa ideologia que se quer de uma validade a toda a prova, a
toda evidência, fortalecida pela sua sanção histórica e científica
que parece ter alcançado com a queda da URSS foi uma lavagem
ao cérebro de todos os governos, tanto à esquerda como à direita.
Desde o fim da Guerra Fria, o ritmo das reformas neoliberais tem
vindo a aumentar constantemente. Muitas vezes imposta pela
força quer ainda através de planos de ajustamento estrutural do
FMI e do Banco Mundial, sob a pressão dos mercados financeiros
e das empresas multinacionais ou mesmo pela guerra, a doutrina
neoliberal estende-se então a todo o mundo.
Mas por detrás da cortina de uma ideologia, por detrás destes
belos conceitos de ordem espontânea e de harmonia de interesses
num mercado livre, para além da panaceia da “mão invisível” o
que é que, de facto, se esconde por detrás de tudo isto?
69
“O cerco neoliberal” analisado no Festival de
Berlim Malik Berkat
CINEMA — O Festival de Berlim apresenta um documentário
canadense que honra a tradição social e política. Fascinante.
Alguns vêem-no apenas como um acaso, outros vêem-no como a
prova de uma sensibilidade particular dos artistas face ao meio em
que vivem. O facto é que muitos filmes apresentados no 59.º
Festival Internacional de Cinema de Berlim são filmes sobre o
sistema económico global, sobre os danos e as mentiras da
globalização, sobre as suas consequências para as populações dos
países em desenvolvimento — e tudo isto mostrado por diferentes
abordagens fílmicas: com humor ou pela tragédia, pela ficção ou
pelo documentário. De entre todos eles, um filme sobressaiu — O
Cerco: a democracia nas malhas do neoliberalismo, de Richard
Brouillette; é um verdadeiro curso magistral sobre os
fundamentos do neoliberalismo. Ele vem do Quebec, foi filmado
a preto e branco e tem uma duração de 160 minutos!
70
O tempo da palavra
Obviamente, à primeira vista, isso pode assustar um pouco:
quarenta e duas entrevistas com economistas, defensores e
opositores da ideologia neoliberal, e também com neoliberais
radicais, os libertários, um grupo pouco conhecido na Europa. No
entanto, o aspecto, um pouco estático, sem intervenções orais do
realizador mas com textos de ligação dando mais informações,
possibilita sequências de longos planos que permitem que as
partes interessadas comentem e expliquem coisas complexas.
Richard Brouillette considera-se “impermeável aos
documentários feitos pela televisão, uma espécie de clips com
planos de corte em cada 30 segundos”. Este quis pois afastar-se
deste género de filme e deixar as pessoas falar, com o mínimo de
intervenção possível, até mesmo na montagem. “Não sou elitista,
diz ele, mas eu acho que é importante para as pessoas verem
filmes como o meu, que exigem um nível de atenção e reflexão
bem mais acima do que o do padrão da TV”. Levou doze anos
para completar o filme, filmou este pequeno tratado de economia
em dez capítulos, inspirado por um editorial de Ignacio Ramonet
sobre o pensamento único, publicado no Le Monde Diplomatique.
71
Pagar para poluir
No final, ouvir esses especialistas de uma clareza espantosa
a desvendarem-nos as raízes do neoliberalismo, os mecanismos de
sua expansão e as ideias que este veicula é uma experiência
fascinante. Tal como ouvir um libertário tentar demonstrar a
aberração do sistema dos monopólios sobre o tema dos rios: o
Estado é responsável pela sua poluição, enquanto se fossem de
propriedade privada estes assumiriam os necessários cuidados ou
fariam pagar ao poluidor por estar a poluir!
Este exemplo oferece-nos uma representação radical da
situação dos monopólios estatais, tais como a saúde e a educação,
cujo desmantelamento feito durante estas últimas décadas é
apresentado como normal e inevitável. O domínio da educação,
crucial para condicionar as crianças desde a escola primária e para
completar o “Cerco” do pensamento, é também longamente
analisado e são claramente explicadas as suas implicações.
72
A finta do neoliberalismo é que, afinal, também é
imposto Hugo Torres
A cultura neoliberal chegou a todos os cantos do mundo.
Disseminada em grande parte com a fragmentação da União
Soviética e o final da Guerra Fria, por vezes imposta mesmo à
força, por norma de acordo com os planos do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial, a ideologia foi fortemente
impulsionada com a fundação da Sociedade Mont Pèlerin, em
1947. Os think tanks neoliberais, fortemente financiados por
multinacionais, geraram uma vaga propagandística que vai dos
media às universidades, imiscuindo-se até em governos (tanto de
direita como de esquerda), tornando-a quase invulnerável — um
dogma — perante a opinião pública. A base ideológica é bem
conhecida e passa pela despolitização dos mercados, promovendo
a ausência de regulação, deixando tudo nas mãos das classes
financeiras e minimizando o papel dos estados. O que o
documentário propõe é, com a ajuda de prestigiados intelectuais
dos dois lados do debate aceso sobre o neoliberalismo, uma
esclarecedora visão sobre a história e a implantação actual desta
doutrina económica.
NOTA: Todos os textos sobre o filme estão disponíveis em
http://encerclement.info.