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CAPITAL SOCIAL E DILEMAS DE AÇÃO
COLETIVA
ESTUDO DE CASO EM UM PEQUENO ASSENTAMENTO RURAL
DE MINAS GERAIS
ANA PAULA WENDLING GOMES
NEWTON PAULA BUENO
R E S U M O O objetivo deste trabalho é avaliar a importância de dilemas de
ação coletiva como um fator de inibição à ação cooperativa em um assentamento
rural – Assentamento Primeiro de Junho, Tumiritinga (MG) – em que o pequeno
tamanho e a relativa homogeneidade econômica e social de seus membros sugeriria,
de acordo com a teoria da ação coletiva, que eles não são muito relevantes. O
principal resultado foi o de que, apesar da relativa disponibilidade de capital
social que em princípio tenderia a favorecer a ação coletiva, persistem problemas
que sugerem a presença de dilemas sociais de ordem superior no assentamento.
Uma implicação importante da presença desse tipo de problema de ação coletiva
para efeito de política de desenvolvimento é a de que, para romper a estagnação
econômica vigente, uma das condições necessárias, embora não suficiente, é a
substituição de instituições tradicionais de estímulo ao trabalho cooperativo por
incentivos seletivos, como o pagamento por produtividade.
P A L A V R A S - C H A V E Nova economia institucional; dinâmica de sistemas;
dilemas sociais; Minas Gerais.
A B S T R A C T The purpose of this article is to evaluate how collective action
dilemma can be an inhibition factor to cooperative action in a rural community,
Assentamento Primeiro de Junho, located in Tumiritinga, Minas Gerais state.
The small size and the economic and social homogeneity of their members would
suggest, in agreement with the theory of the collective action, that dilemma would
not be relevant. However, the main result was that in despite of the availability of
social capital, which in theory could favor collective action, there were problems
suggesting the presence of social dilemmas of superior order in the community.
Collective action dilemma have important implication on development policies.
For instance, it has to be implemented selective incentives, such as payment for
productivity to overcome economic stagnation.
K E Y W O R D S New institutional economics; system dynamics; social dilemmas;
Minas Gerais.
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INTRODUÇÃO
Dilemas de ação coletiva são situações em que comunidades
são incapazes de se desenvolverem economicamente não
porque necessariamente lhes faltem recursos físicos ou mesmo
monetários, mas porque seus membros não conseguem
organizar-se para realizar tarefas que não podem ser feitas por
indivíduos isolados. O porquê disso freqüentemente acontecer em
comunidades pobres é um dos temas de fronteira de uma das áreas
mais promissoras em termos de pesquisas diretamente aplicáveis
da economia moderna: a nova economia institucional. Este
trabalho resume algumas das principais conclusões e prescrições
mais recentes dessa área de estudo para o desenvolvimento de
pequenas comunidades rurais pobres, aplicando a teoria, em
caráter ilustrativo, para o assentamento rural Primeiro de Junho
em Tumiritinga, município localizado no Vale do Rio Doce, em
Minas Gerais. Essa comunidade foi escolhida por apresentar
uma série de características que a tornam um estudo de caso
extremamente instrutivo para a teoria que iremos examinar. As
principais são:
1) o assentamento resultou da ação coletiva de ocupação liderada
pelo Movimento Sem Terra;
2) situa-se numa região em que recursos naturais como água e
terra não se constituem em um impedimento óbvio para o
desenvolvimento;
3) é uma comunidade pequena (83 famílias);
4) seus membros, apesar de em sua maioria terem participado da
ação coletiva prévia de ocupação da terra, organizam o trabalho
de duas formas distintas: parte coletivamente, como seria de
esperar de pessoas que têm um histórico de cooperação, e
parte individualmente.
O artigo está organizado em três seções. Na primeira,
esclarece-se os conceitos de capital social e de dilemas de ação
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coletiva de primeira, segunda e terceira ordens, mostrando que em
geral eles estão presentes em comunidades como a que está sendo
estudada e que um dos principais fatores que permitem algumas
dessas comunidades superar esses dilemas é a presença de capital
social. Na segunda seção, procura-se verificar se a deficiência em
termos desse fator – isto é, a deficiência de capital social – pode
ser considerada um fator explicativo importante para a ausência
de ações cooperativas relevantes no assentamento estudado. A
terceira seção conclui o trabalho.
CONCEITUAÇÃO
Dilemas de ação coletiva e pobreza
Diz-se que existe um dilema de ação coletiva quando uma
sociedade se encontra em uma situação em que cada um de seus
membros poderia melhorar suas condições de vida sem que outros
tenham de piorar. Em economia, denomina-se essa situação de
uma posição pareto-ineficiente. Isso pode acontecer pela razão
evidente de que as pessoas não percebem os potenciais efeitos
benéficos da cooperação, mas também pela razão menos óbvia
de que elas considerem pouco inteligente, de seu ponto de vista,
participar efetivamente de ações coletivas. Cada um desses casos
tem implicações muito diferentes para a formulação de políticas
de estímulo a ações cooperativas. Para entender esse ponto,
considere as duas situações de interação social abaixo, em que as
letras em cada célula representam os pay-offs de cada agente para
cada estratégia, de modo que, se, por exemplo, ambos os agentes
cooperam um com o outro, ambos recebem como prêmio o valor
(financeiro ou medido em termos de alguma outra unidade de
utilidade) a.
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Na primeira situação, pode-se inferir que há uma boa
probabilidade de que a cooperação entre os agentes se desenvolva
espontaneamente, na medida em que eles percebam os benefícios
mútuos, os quais podem ser alcançados e consigam coordenar suas
ações para superar os obstáculos existentes à ação cooperativa.
Observe-se, por exemplo, que, embora a solução cooperativa seja
um equilíbrio de Nash, a confiança mútua é um pré-requisito
indispensável ao processo, visto que, se apenas um dos agentes
decidir cooperar, ele terá seu pay-off reduzido em relação à
situação inicial, enquanto o outro terá seu pay-off aumentado. É
razoável afirmar que a nova economia institucional em sua versão
custos de transação enfatiza esse tipo de situação, denominada de
dilema social de primeira ordem, ou seja, as condições necessárias
para que os agentes superem os obstáculos macroinstitucionais
à cooperação (como nos trabalhos de Douglass North), ou a
resistência à cooperação no nível das estruturas de governança
(como na obra de Williamson e seguidores1). Mas a segunda
situação, que representa o dilema do prisioneiro clássico, é bem
diferente. A estratégia dominante para ambos os agentes é não
Jogo da confiança
Agente 2
Coopera Não coopera
Coopera aa bc
Agente 1
Não coopera cb dd
a>d, d<c<a e b<d
Dilema do prisioneiro
Agente 2
Coopera Não coopera
Coopera aa bc
Agente 1
Não coopera cb dd
a>d, c>a e b<d
1 Os desenvolvimentos teóricos obtidos pela nova teoria institucional nessa versão desdobram-se em duas direções principais complementares. Em uma delas, a preocupação central é analisar as mudanças no meio ambiente institucional geral das economias, isto é, no conjunto de regras polí-ticas, sociais e legais funda-mentais, por exemplo, nas regras regulando os direitos de propriedade e os contra-tos, que estabelecem a base para a produção, troca e distribuição de mercadorias em uma certa sociedade. A segunda corrente, por sua vez, ocupa-se basicamente do estudo da interação entre as unidades econômicas no processo de produção, troca e distribuição, enfatizando a forma como surgem e se de-senvolvem instituições que asseguram a cooperação en-tre as unidades econômicas nesses processos. A primei-ra dessas correntes deriva fundamentalmente dos tra-balhos de Douglass North, cuja principal preocupação é entender de que forma as macroinstituições de um país afetam seu desempenho econômico no longo prazo, identificando aquelas que são mais propícias ao de-senvolvimento econômico e mostrando por que em alguns países as instituições mais adequadas não são adotadas, eternizando uma situação de subdesenvolvi-mento econômico; alguns dos trabalhos recentes mais representativos a respeito são de North (1991, 1994, 1996). A segunda corrente, que versa basicamente sobre o comportamento de firmas e indivíduos, origina-se com o famoso trabalho de Ro-nald Coase (1937), mas só vem a frutificar mais tarde com base nas contribuições de Oliver Willianson (1979, 1985, 1996). O objetivo principal dessa corrente é entender como se formam e como se modificam as estru-turas de governança para de-terminadas transações; isto é, o conjunto de instituições que permite que um deter-minado tipo de transação se realize de forma contínua.
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cooperar e assim a cooperação não deixa de ocorrer simplesmente
porque os agentes não consigam coordenar suas ações, devido,
por exemplo, aos elevados custos de transação envolvidos. Mas
porque, se decidirem cooperar unilateralmente, o outro terá
incentivos para deixar de cooperar. Isto é, a solução cooperativa
não é um equilíbrio de Nash, e assim não tem a estabilidade da
solução anterior; diz-se que, nesse caso, ocorre um dilema social de
segunda ordem. Para confirmar esse resultado, observe que o pay-
off do agente 1 será maior se ele não cooperar quando o agente 2
cooperar, do que se ele agir com reciprocidade (c contra a). Em
grandes grupos, isso significa que será uma estratégia racional
tentar “pegar carona” nos benefícios da cooperação, em vez de
contribuir para alcançar essa situação. Nessas condições, em
um mundo em que os agentes agem racionalmente (da forma
como se define no presente trabalho), a estratégia dominante
para cada agente será não cooperar (atuando como free rider
ou rent seeker) e o equilíbrio ineficiente em termos de Pareto
da não-cooperação prevalecerá. Estudos mais recentes por
teóricos de jogos (ver, por exemplo, AXELROD, 1997, cap. 1) e
autores neo-institucionalistas (ver entre outros PUTNAM, 1993;
OSTROM, GARDNER e WALKER, 1999; OSTROM, 2000) têm
demonstrado que em grupos relativamente pequenos, em que
os agentes interagem repetidamente por longos períodos de
tempo, esse tipo de obstáculo à cooperação pode ser superado
por meio da confiabilidade interpessoal acumulada pelo grupo
ou comunidade.
A confiança mútua que uma comunidade acumula ao longo
do tempo – que se pode denominar de capital social – constitui-
se assim em um insumo produtivo pelo menos tão importante
como as máquinas, equipamentos e instalações do capital
físico (COLEMAN, 1990) e expressa o grau de competência
em se organizar para realizar empreendimentos cooperativos
(BIALOSKORSKI NETO, 2003).
Mas nem todas as comunidades em que as pessoas
interagem repetidamente conseguem agir coletivamente em
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empreendimentos que exigem um comprometimento maior dos
indivíduos. O motivo é que, após solucionar os dois primeiros
dilemas, a comunidade precisa ainda desenvolver meios de
garantir a aplicação das normas que punem os indivíduos que
se esquivam de cumprir os acordos coletivos, isto é, insistem em
se comportar como free-riders nas comunidades. Ela precisa,
em outras palavras, não apenas desenvolver instituições (regras
formais e sanções informais) a fim de dar os incentivos para
os indivíduos agirem coletivamente, mas criar mecanismos
que possam solucionar dilemas sociais de terceira ordem,
isto é, determinar quem irá fiscalizar a obediência às normas
estabelecidas. O que caracteriza essa situação como um dilema
social é o fato de que, embora uma monitoração adequada das
normas seja do interesse da comunidade, para cada indivíduo
isolado interessa que os demais, e não ele próprio, façam o
serviço. A literatura internacional demonstra que esse tipo de
dilema é difícil de resolver em comunidades em que os agentes
não participam da elaboração das normas institucionais e nem
da concepção e da implementação das ações, como costuma
acontecer, por exemplo, na implantação de projetos de irrigação
por governos de países em desenvolvimento (BARDHAN, 2000;
BECKER e OSTROM, 1995; TANG, 1991).
A conclusão é que, para que uma comunidade se envolva
crescentemente em empreendimentos coletivos, ela precisa
superar pelo menos três tipos de dilemas sociais. A acumulação
de capital social pode ajudar a superar esses dilemas, mas a
literatura internacional indica que, para que isso de fato aconteça,
uma série de outras condições, como pequeno tamanho e
condições de participação efetiva dos agentes no processo, têm
que estar presentes. Na próxima seção, procura-se, em primeiro
lugar, estimar a disponibilidade de capital social no assentamento
Primeiro de Junho; em seguida procura-se avaliar em que medida
essa disponibilidade parece suficiente para solucionar dilemas de
ação coletiva de ordem superior.
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Capital social
Atualmente, a Nova Economia Institucional tem ressaltado a
relevância de uma maior cooperação entre os indivíduos e grupos
como agentes importantes para promover o desenvolvimento
socioeconômico de uma sociedade. A ação coletiva é capaz
de gerar novas possibilidades de integração e transformação
econômica e social.
Para tanto, é preciso haver relações sociais que tornem
possível a ação coletiva. Coleman (1990) chama de capital social
o conjunto das relações sociais em que um indivíduo se encontra
inserido e que o ajudam a atingir objetivos que, sem tais relações,
seriam inalcançáveis ou somente alcançáveis a um custo de
transação mais elevado. Entre os vários tipos de relações sociais
geradoras de capital social, encontram-se a existência de grupos
e redes formais e informais, as relações de confiança mútua, a
presença de normas e sanções, as relações que envolvem autoridade
ou capacidade e as relações que permitem aos indivíduos obterem
informações por baixo custo.
Nessa linha de pensamento, o capital social é visto como
um argumento adicional na função de produção, juntamente
com os outros fatores. Como o capital físico, ele é produtivo
(guardando evidentemente suas especificidades), gerando um
fluxo de rendimento para os indivíduos ou sociedades que a ele
obtêm acesso. Coleman (1990) considera que o capital social está
sujeito a uma lógica de acumulação e reprodução, determinada
por escolhas racionais dos atores sociais no estabelecimento de
estruturas de relações, instrumentalmente associadas à eficácia
da ação coletiva. Estruturas que podem ser criadas a partir
da confiança mútua entre os indivíduos e que se traduzem na
estabilidade das instituições, normas e obrigações recíprocas,
garantindo a eficiência do esforço coletivo e a eficácia dos
investimentos individuais.
O conceito de capital social como um fator de produção se
tornou empírico e historicamente relevante, no momento em que
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se deu a ruptura na teoria econômica clássica, que considerava
como fatores de produção apenas as variáveis terra, trabalho,
capital físico e humano. Nas últimas décadas, o capital social
passou a ser incorporado aos modelos que buscam explicar o
crescimento e o desenvolvimento econômico, tornando-se um
objeto de estudo na comunidade científica. Porém, existem ainda
várias reflexões em relação ao conceito no que tange às suas
implicações no desenvolvimento socioeconômico.
O aspecto recente do tema está relacionado à própria evolução
da teoria de crescimento e desenvolvimento econômico, em que
novos fatores de produção foram continuamente adicionados, no
intuito de explicar as causas do desenvolvimento. Foi assim com
o capital humano, a tecnologia endógena e, agora, com o capital
social. Embora as idéias que envolvem o conceito sempre tenham
estado presentes na literatura econômica como na obra de Adam
Smith, The theory of moral sentiments, e também em obras de
grandes sociólogos, como Durkheim e Parsons.
A abordagem mais conhecida em estudos acerca do capital
social refere-se à natureza e extensão do envolvimento de um
indivíduo em várias redes informais e organizações cívicas
formais. Essa abordagem foi utilizada por Robert Putnam ao
estudar as regiões da Itália, examinando questões fundamentais
atinentes à vida cívica. Segundo Putnam (1993), o capital social
entendido como o estoque de redes de engajamento cívico e de vida
associativa nas comunidades, tem sido o elemento determinante
para a performance dos governos regionais na Itália e, portanto,
uma pré-condição para o desenvolvimento efetivo.
Em sua elaboração sobre desempenho institucional,
eficiência governamental, democracia e participação cívica,
Putnam (1993) procura confrontar a noção hobbesiana de
que os indivíduos, numa comunidade humana, são incapazes
de colaborar em benefício mútuo, sem que haja uma atuação
coercitiva por parte de um terceiro ator, no caso o Estado. O autor
procura demonstrar que alguns contextos históricos favoreceram
o surgimento e amadurecimento de laços de confiança e
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reciprocidade entre os indivíduos, o que os torna habilitados para
a cooperação em benefício coletivo. Por outro lado, “quando os
atores são incapazes de assumir compromissos entre si, eles têm
que renunciar – pesarosamente, porém racionalmente – a muitas
oportunidades de proveito mútuo” (PUTNAM, 1993, p. 174).
Levi (1996) reconhece a relevância do trabalho de Putnam
para as ciências sociais ao mesmo tempo em que realiza uma
crítica a esse trabalho sob o ponto de vista teórico. Para essa
autora, Putnam levanta uma questão crítica para o debate sobre
democracia: Quais são as dinâmicas de construção e desconstrução
do engajamento cívico democrático? Porém, de uma maneira geral,
a argumentação teórica de Putnam demonstraria uma visão
romântica da comunidade, além de não oferecer uma explicação
mais aprofundada sobre as origens do capital social e sobre a
amplitude do conceito de confiança:
[...] Putnam never offers a precise definition of trust. He
effectively treats a whole range of relationships and expecta-
tions under the one title of trust, but there are different kinds
of trust: interpersonal, organizational, governmental. He has
since clarified that he is not addressing trust in government
or other institutions but only trust among persons. This is
only a partial clarification, serving to restrict the domain but
not elucidate the concept (LEVI, 1996, p. 46).
[...] we need a more complete theory of the origins, main-
tenance, transformation, and effects of capital social (LEVI,
1996, p. 52).
Ainda segundo Levi (1996), não haveria em Putnam uma
explicação mais detalhada sobre a relação entre participação
cívica e governos democráticos, já que as associações podem
promover a defesa de interesses individuais e específicos que não
necessariamente vão redundar em democracia. A preocupação da
autora está voltada para um aprofundamento teórico das questões
levantadas por Putnam.
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Harris e Renzio (1997) também alertam para o fato de que
o uso generalizado do conceito de capital social pode criar uma
certa confusão, já que esse termo foi usado originalmente para
se referir a redes e conexões inerentes à família e organização
comunitária. Os autores identificam seis significados diferentes
para o termo capital social, o que evidencia a referida confusão
conceitual.
Já Fine (1999) fornece uma crítica ainda mais rígida, ao
afirmar que, do ponto de vista conceitual, a contribuição de
Robert Putnam é mínima e que seu estudo sobre a diferenciação
do desenvolvimento econômico italiano de acordo com o contexto
político local está aberto a questionamentos. Além disso, o autor
alerta para a imprecisão com a qual as noções de “social” e “capital”
vêm sendo utilizadas de forma combinada, demonstrando a
ambigüidade e inconsistência da noção de capital social.
Outro aspecto criticado por Fine (1999) está relacionado com
o uso do conceito de capital social por parte do Banco Mundial,
no quadro das macrorrelações de poder no nível internacional,
em que os Estados Unidos assumem uma posição hegemônica.
Depois da implementação do chamado Consenso de Washington,
o Banco Mundial teria escolhido o capital social como um
elemento-chave de suas proposições acerca de uma segunda
geração de reformas para os países em desenvolvimento.
What is good enough for the United States is good enough
for the rest of the Word. In short, as it is being deployed, so-
cial capital allows the Word Bank to broaden its agenda whist
retaining continuity with most of its practices and prejudices
which include neglect of macro-relations of power, preference
for favoured NGOs and grassroots movements, and decen-
tralized initiatives (FINE, 1999, p. 12).
Ao final de todas essas considerações, tem-se verificado
nos últimos anos um crescimento de estudos enfocando o
capital social como mais uma ferramenta teórica, para explicar
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o desenvolvimento econômico e social. Eis a ótica que parece
motivar muitas instituições, inclusive o Banco Mundial, a eleger
o capital social como tema prioritário de estudos e publicações,
como uma evolução da tendência anterior do planejamento
participativo que empolgou os consultores e a cooperação
multilateral de todo o mundo nas décadas de 70 e 80.
O fato é que a noção de capital social pode hoje ser entendida
como o estoque de normas de reciprocidade e cooperação que
pode existir em diferentes graus e nos contextos mais específicos,
sendo este o enfoque principal do conceito na literatura sobre
desenvolvimento.
Desse ponto de vista, segundo Nascimento (2000), o capital
social constitui-se de características da estrutura social que
equivaleriam a um “ativo social” de capital, ou seja, à capacidade
coletivamente adquirida de poder mobilizar recursos sociais na
ausência de outros recursos normalmente considerados (matéria-
prima, insumos, capital bancário, capital humano etc.). Nessa
formulação, o capital social pode ser adicionado na equação do
desenvolvimento, ou seja:
D = f(Ke, Kn, Kh, Ks),
em que D = desenvolvimento, Ke = capital econômico,
Kn = capital natural, Kh = capital humano e Ks = capital social.
ESTIMATIVA DO NÍVEL DE CAPITAL SOCIAL EXISTENTE NO ASSENTAMENTO
Metodologia de cálculo e de amostragemCálculo do Índice de Capital Social
A disponibilidade de capital social nos dois grupos de produtores analisados – em que predominam o trabalho coletivo ou o trabalho
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individual – foi estimada a partir dos seguintes indicadores:
– Participação em associações: em que se quantifica a participação do assentado ou algum outro membro da família em associações de produtores, sindicato de trabalhadores, movimentos políticos e associação de pais e professores.
– Percepções subjetivas de confiança: em que se avalia o grau de confiança entre o produtor entrevistado e outros assentados.
– Presença de redes de conexões e solidariedade: em que se procura captar a freqüência na qual os assentados se ajudam entre si em casos de emergência.
– Inclusão social: em que se quantifica a freqüência na qual os entrevistados conversam com seus vizinhos e desenvolvem atividades recreativas.
– Ação voluntária: em que se mede a freqüência na qual o entrevistado ou outro membro de sua família participa de tais atividades.
A escolha desses indicadores deveu-se ao fato de o capital social estar relacionado a aspectos da organização social, tais como características dos grupos envolvidos, redes, normas e confiança, que facilitam a constituição e a cooperação para benefício mútuo. A concepção desses indicadores foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores do Banco Mundial. O trabalho original do Banco Mundial sugere adaptações às condições locais e características próprias de cada estudo, as quais foram realizadas visando atribuir
especificações de assentamento rural.
Selecionadas e quantificadas as variáveis representativas de
cada indicador de capital social, o próximo passo consistiu em
calcular o índice que mede o capital social no assentamento. Esse
índice permite identificar a participação relativa de cada variável
em sua composição final.
Para construir o índice, foi necessário estabelecer um valor
para cada resposta atribuída pelo entrevistado às perguntas.
Em outras palavras, em uma pergunta qualquer o entrevistado
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pode responder “sim”, “às vezes” e “não”. Com isso, foi necessário
estabelecer qual o valor de cada alternativa para construir o índice.
Optou-se por utilizar a seguinte classificação das respostas: zero
para “não”; um para “às vezes”; e dois para “sim”.
O Índice de Capital Social das famílias assentadas será
calculado da seguinte forma:
∑∑
∑=
=
=
=n
1jm
1iimáx
m
1iij
E
E
n1ICS
(1)
A contribuição de cada indicador no ICS por sua vez dada
por:
=
∑
∑
=
=m
1iimáx
n
1iij
i
En
EC
(2)
Em que:
ICS = Índice de Capital Social;
Eij = escore do i-ésimo indicador, alcançado pelo j-ésimo
produtor;
Emáx i
= escore máximo atingível pelo indicador i;
i = 1, ..., m número de indicadores;
j = 1, ..., n número de produtores;
Ci = contribuição do indicador i no ICS do grupo.
Técnica de análise
No presente estudo, foi utilizada a técnica de análise discriminante
para calcular esse impacto (ver, por exemplo, HUBERTY, 1994;
MANLY, 1994; MALHOTRA, 2001). O objetivo da análise
foi avaliar se os indicadores do capital social são importantes
para classificar o indivíduo como participante de grupos que
normalmente resolvem problemas de ação coletiva. Como
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exemplo de problema típico de ação coletiva será considerado o
grau em que os indivíduos se dispõem a economizar água, que é um
recurso comum, em momentos de dificuldade de abastecimento.
As variáveis explicativas utilizadas para discriminar os grupos
serão as mesmas usadas na composição do Índice de Capital
Social, exceto as relacionadas à participação em associações.
A análise estatística multivariada utilizando funções
discriminantes foi inicialmente aplicada por Fischer (1936) para
decidir à qual dos dois grupos pertenceriam indivíduos sobre
os quais tinham sido feitas diversas e idênticas mensurações.
De modo geral, podem-se definir os seguintes objetivos para a
análise discriminante:
– Estabelecer funções discriminantes ou combinações lineares
das variáveis que melhor discriminam as categorias da variável
dependente.
– Verificar se existem diferenças significativas entre os grupos, em
termos das variáveis independentes.
– Determinar as variáveis dependentes que mais contribuem para
que os grupos sejam diferentes.
– Classificar os casos em grupos, com base nos valores das
variáveis dependentes.
– Avaliar a precisão da classificação.
A análise discriminante, conhecida como Discriminante
Linear de Fisher, reduz o número de variáveis para um número
menor de parâmetros, que são funções discriminantes linearmente
dependentes das variáveis originais. Os coeficientes das funções
discriminantes indicarão a contribuição das variáveis originais
para cada função discriminante.
Um método comum na análise discriminante é o Stepwise,
que seleciona as variáveis para entrar na análise, baseando-se nas
suas capacidades de discriminação. O processo inicia selecionando
a variável que apresenta maior valor de discriminação. Essa
variável é pareada com as demais variáveis, uma de cada vez, e o
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critério de seleção é novamente comparado. A variável que, em
conjunto com a primeira selecionada, produzir o melhor valor
para o critério, é a segunda variável escolhida para entrar na
análise. Essas duas variáveis selecionadas são combinadas com as
demais remanescentes, e a combinação que apresentar o maior
valor para o critério de seleção determinará a terceira variável a
entrar na equação. Do mesmo modo, todas as demais variáveis
são testadas através do critério de seleção, até que todas sejam
ordenadas pelas suas capacidades de discriminação.
Formalmente, para o caso de dois grupos, o método de
decisão estatística designa uma observação para o grupo 1, se
( )( )
+
+≥
12Cp21Cpln
2ZZZ
1
221 (3)
E uma observação é classificada no grupo 2, se
( )( )
+
+<
12Cp21Cpln
2ZZZ
1
221 (4)
Em que:
Z = escore discriminante para uma dada observação;
Zj = escore discriminante médio para o grupo j;
pj = probabilidade prévia do grupo j;
C(i/j) = custo de classificação incorreta dentro do grupo i de uma
observação que pertence ao grupo j.
O método utilizado para identificar o poder de discriminar
de uma variável é o teste de Lambda de Wilks (L*). Esse teste
considera como critério de seleção de variáveis o valor da
Estatística F Multivariada para o teste da diferença entre os
centróides dos grupos.
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Fonte de dados
Para a realização da pesquisa, foram utilizados dados primários
coletados por meio da aplicação de um questionário integrado
desenvolvido pelo Banco Mundial para medir capital social. O
questionário foi adaptado, sendo perguntas complementares
inseridas, de acordo com os objetivos específicos do presente
estudo.
A amostra foi escolhida aleatoriamente, em função da
homogeneidade da população. O questionário foi aplicado em
uma amostra de 39, em um total de 83 famílias, sendo 19 famílias do
grupo de produtores que não trabalham coletivamente e 20,
do grupo que o faz.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participação dos indicadores na composição do Índice de Capital
Social
No Quadro 1, apresenta-se o Índice de Capital Social (ICS) para
todo o assentamento, isto é, envolvendo tanto os produtores do
grupo coletivo, quanto os da produção individual.
O ICS de 0,7077 pode ser considerado relativamente
elevado, na medida em que seu valor máximo de 1 somente seria
alcançado se todos os entrevistados respondessem “sim” a todas as
perguntas. Conforme discutido anteriormente, existe a tendência
de o entrevistado responder “às vezes” para perguntas pessoais.
Com isso, apesar de não responder negativamente, esse tipo de
resposta intermediária reduz o valor final do ICS.
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Observando-se a participação individual de cada variável no
ICS, percebe-se que as maiores freqüências de respostas positivas
ocorreram nas variáveis “conversa com vizinhos” e “participação
em sindicato de trabalhadores”, cujas contribuições foram de
13,41% e 13,04%, respectivamente. A elevada contribuição dessas
variáveis no ICS explica-se pela trajetória de vida dos assentados.
O longo convívio entre eles antes de serem assentados estabeleceu
laços de amizade, os quais são refletidos em conversas freqüentes
com os amigos (vizinhos). Além disso, a conquista conjunta
da terra despertou a necessidade de união, refletida na elevada
participação em sindicatos e similares.
De acordo com os dados, o nível de capital social no grupo
coletivo (0,73) é maior do que na produção individual (0,6842).
Além disso, o peso das variáveis na composição do ICS também
é diferente. No ICS do grupo coletivo, a variável que teve maior
participação foi “conversa com vizinhos”, com peso de 13,01%,
seguida pela variável “participação em sindicato de trabalhadores”,
com 12,33%. Já no sistema de produção individual, as variáveis
“participação em sindicato de trabalhadores” e “conversa com
vizinhos” tiveram influência idêntica no ICS final. De modo geral,
os produtores que trabalham coletivamente, comparativamente
aos que adotam o sistema individual, participam mais de
movimentos políticos e de associações de pais e professores,
têm mais confiança nas pessoas e participam um pouco mais
de trabalho voluntário. Mas, estranhamente em vista da teoria,
tendem a apresentar um comportamento menos solidário em
situações de emergência. Retornaremos a esse ponto na subseção
seguinte.
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Quadro 1: Índice de capital social para cada grupo de produtores
e da população total do assentamento Primeiro de Junho
Fonte: Dados da pesquisa.
IndicadorColetivo Individual População
Valor % Valor % Valor %
1)Participação em associações
Associações de produtores 0,0850 11,64 0,0895 13,08 0,0872 12,32
Sindicato de Trabalhadores 0,0900 12,33 0,0947 13,85 0,0923 13,04
Movimento político 0,0800 10,96 0,0526 7,69 0,0667 9,42
Associação de Pais e Professores
0,0400 5,58 0,0263 3,85 0,0333 4,71
2) Confiança
Confiança entre as pessoas
0,0525 7,19 0,0474 6,92 0,0500 7,07
3) Redes e solidariedade
Ajuda em caso de emergência 0,0700 9,59 0,0711 10,38 0,0705 9,96
Empréstimo de dinheiro 0,0650 8,90 0,0711 10,38 0,0679 9,60
4) Inclusão e sociabilidade
Conversa com vizinhos 0,0950 13,01 0,0947 13,85 0,0949 13,41
Atividades recreativas 0,065 8,90 0,0579 8,46 0,0615 8,70
5)Ação voluntária
Trabalho voluntário 0,0875 11,99 0,0789 11,54 0,0833 11,78
TOTAL 0,7300 100,0 0,6842 100,0 0,7077 100,00
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Problemas de ação coletiva detectados no assentamento rural e
percepções dos assentados quanto às atitudes coletivas
De acordo com os dados levantados, infere-se que os relativamente
elevados indicadores de capital social não foram suficientes para
resolver dilemas sociais de ordem superior na comunidade. Uma
manifestação desse tipo de dilemas no assentamento refere-se ao
abastecimento e uso da água. Ao investigar sobre as percepções
dos assentados sobre o comportamento das pessoas, caso houvesse
algum problema no abastecimento da água, constatou-se que
os entrevistados, em sua maioria, achavam que poucas famílias
economizariam água, conforme os dados do Quadro 2 abaixo.
A análise a partir da opinião do indivíduo sobre o outro foi para
não constranger os respondentes a dizer que eram free-riders.
Quadro 2: Percepções dos assentados sobre o comportamento
das pessoas na possibilidade de problemas de abastecimento de
água
Especificação Coletivo Individual Média
A maioria economizaria água 35,00 50,00 42,11
Poucos economizariam água 65,00 50,00 57,89
TOTAL 100,00 100,00 100,00
Fonte: Dados da pesquisa.
De acordo com os dados, verifica-se que, embora com
estoque de capital social elevado, cerca de 58% dos entrevistados
afirmaram que poucos economizariam água. Ainda mais
surpreendente é a maior freqüência de pessoas do grupo coletivo
que acha que as outras não economizariam água (65%). Em outras
palavras, apesar de maior Índice de Capital Social, as famílias do
grupo coletivo têm maior desconfiança na solução de problemas
de ação coletiva do que as da produção individual.
Segundo relatos dos entrevistados, a percepção negativa
quanto ao racionamento de água procede de um problema
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ocorrido no passado. De acordo com os depoimentos, no início
do assentamento havia apenas um cano de água que abastecia
todas as casas. Algumas famílias que moravam mais próximas à
fonte não limitavam o consumo, ocasionando a falta de água para
as famílias que moravam mais distante.
A explicação para o comportamento dessas famílias era que,
caso as demais respeitassem o consumo da água, o fato de só ela
não economizar não faria diferença na quantidade da água (o que
claramente caracteriza uma situação de dilema do prisioneiro).
Esse procedimento perdurou até a instalação do saneamento de
água nas casas, realizado pela Copasa, a qual passou a cobrar pelo
serviço. Somente após essa intervenção foi possível solucionar
o problema da água. Assim, foi preciso adotar um incentivo
negativo (a cobrança pelo consumo da água) para solucionar o
comportamento oportunista das pessoas.
Para testar a existência de problemas de ação coletiva
independentemente da presença de capital social, utilizou-se a
técnica multivariada de análise discriminante. Tal técnica permite
identificar se os indicadores que compõem o Índice de Capital
Social discriminam os indivíduos como participantes de grupos
que normalmente resolvem dilemas de ação coletiva de ordem
superior.
A variável dependente utilizada foi o comportamento das
pessoas diante do problema de abastecimento de água. Para se
realizarem os testes, foram construídos dois grupos: no primeiro
grupo estavam os entrevistados que achavam que a maioria das
pessoas economizaria água; e, no segundo grupo, aqueles que
acreditam que poucos ou ninguém economizaria água perante
um problema de abastecimento. Para discriminar os grupos, as
variáveis explicativas utilizadas foram aquelas que fizeram parte
do cálculo do ICS, exceto as relacionadas à participação em
associações.
As variáveis explicativas foram testadas individualmente
para verificar sua capacidade de discriminar os grupos. Para isso,
utilizou-se o teste de Wilks’ Lambda, que varia de 0 a 1. Quanto
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menor o valor do teste de Wilks’ Lambda, maior é a probabilidade
de que a variável explicativa em questão seja estatisticamente
significativa para discriminar entre os grupos. Os resultados dos
testes encontram-se no Quadro 3 abaixo.
Quadro 3: Resultado do modelo de análise discriminante para o
problema de abastecimento de água
Indicador Teste de Wilks’ LambdaTrabalho voluntário 1,000Conversa com vizinhos 0,915Empréstimo de dinheiro 0,965Ajuda em emergência 0,983Confiança entre as pessoas 0,996Atividades recreativas 0,992
Fonte: Dados da pesquisa.
De acordo com o modelo utilizado, todas as variáveis
possuem valor do teste de Wilks’ Lambda superior a 0,9, ou seja,
superior ao limite máximo de significância estatística de 0,1. Isso
significa que nenhuma variável tem capacidade de discriminar
os grupos de pessoas. Esses resultados indicam a hipótese de que
os elevados Índices de Capital Social não são suficientes para
resolver dilemas de ação coletiva de ordem superior.
Duas outras observações de campo parecem sugerir essa
conclusão. A primeira foi a constatação de menor produtividade
de alguns assentados, relativamente a outros. Esse problema parece
decorrer do fato de que os trabalhadores recebem (alimentos ou
dinheiro) por horas trabalhadas. A fiscalização ocorre somente
no critério tempo trabalhado, mas não no volume produzido por
cada trabalhador. Isso significa que uma pessoa que trabalhou o
mesmo tempo que outra, porém produziu o dobro, receberá a
mesma quantidade.
Nessas situações é racional para cada indivíduo adotar
a postura de free-rider, esperando a contribuição alheia para a
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provisão de um bem que beneficie o grupo como um todo, visto
que, embora eles não produzam como deveriam, não contribuindo
para a provisão dos bens, o fato de apenas cumprirem o horário
de trabalho já os autoriza a usufruir dos benefícios.
A segunda situação detectada no grupo coletivo que parece
refletir a presença de um dilema de ação coletiva é a patente
falta de interesse dos trabalhadores em algumas atividades.
Sendo a atividade leiteira a que mais exige esforço, pois é preciso
trabalhar todos os dias do ano, além de “plantões” esporádicos
para cuidar dos animais (parto de bezerros, animais doentes
etc.), e a remuneração da mão-de-obra a mesma em todas as
atividades, não é surpreendente que os produtores se esquivem
dessa tarefa, se não houver outros incentivos para sua realização.
No assentamento Primeiro de Junho, a presença de capital social
em níveis razoáveis por si só não parece estar suprindo esses
incentivos, já que os produtores contrataram um vaqueiro para
realizar a tarefa.
CONCLUSÃO
Procurou-se neste trabalho identificar a presença de dilemas
de ação coletiva em um assentamento rural, em que o pequeno
tamanho e a relativa homogeneidade econômica e social de seus
membros sugeriria, de acordo com a teoria da ação coletiva,
que eles não são muito importantes. O principal resultado foi o
de que, apesar da relativa disponibilidade de capital social que
em princípio tenderia a favorecer a ação coletiva, persistem
problemas que sugerem a presença de dilemas sociais de ordem
superior no assentamento. Uma implicação importante da
presença desse tipo de problema de ação coletiva para efeito de
política de desenvolvimento é a de que, para romper a estagnação
econômica vigente, será provavelmente necessário substituir
práticas tradicionalmente adotadas pelos produtores que
trabalham coletivamente, como a de definir remunerações por
tempo de trabalho, por incentivos seletivos, como o pagamento
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por produtividade. Observe-se, entretanto, que esta é apenas
uma das condições necessárias; a literatura internacional tem
acumulado evidências de que, para superar os obstáculos ao
desenvolvimento em comunidades rurais, uma série de outras
condições, como a definição de tecnologia apropriada e desenho
institucional consistente com as realidades locais, têm que ser
preenchidas simultaneamente.
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AnA PAULA WEnDLinG GOMES é economista doméstica, mestre em extensão rural – Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural – UFV, <[email protected]>.
nEWTOn PAULA BUEnO fez doutorado em economia – Unicamp, é professor de eco-nomia da UFV, <[email protected]>.