Capitalismo e sociedade

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1 CAPITALISMO E SOCIEDADE Fernando Pedrão 2009

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             CAPITALISMO E SOCIEDADE Fernando Pedrão 2009

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SUMÁRIO

Introdução

1. O processo desigual da produção capitalista

2. Os movimentos de formação de sociedades nacionais

3. O contraponto teórico: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio

4. O movimento interno do processo: concentração do capital e mobilidade do

trabalho

5. O movimento externo: o controle político da formação de capital

6. Contradições do processo de hegemonia mundial

7. Alienação, ideologia e captação de valor

8. Perda e recomposição da totalidade social

9. O humanismo negativo da sociedade do capital

10. Acumulação geral e restrita

Referências analíticas

Referências bibliográficas

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INTRODUÇÃO O capitalismo é o sistema econômico e político da sociedade regida pelo capital e o

esclarecimento do que seja o capitalismo voltou a ter interesse quando se considera que

o capitalismo é um sistema plenamente mundializado, que significaria que abrange o

mundo, ou que o sistema do capitalismo é um modo de dominação mundial que envolve

diferentes modos de organização, compreendendo o domínio de sociedades não

capitalistas.

vive da totalidade atual do mundo social, que é uma negação radical da historicidade do

todo social. A totalidade do mundo do capital é o resultado de movimentos de inclusão

e exclusão que resultam em uma totalização seletiva. A totalização do capitalismo se

realiza mediante uma progressão de contradições entre formas de capital que cristalizam

formas de produção articuladas com formas de consumo e perfis de qualificação do

trabalho que são continuamente desafiadas a se superarem. O sistema de exploração que

começou com a escravização jamais abriu mão do uso maciço de trabalho dominado,

encontrando sempre novas formas de arregimentação de trabalhadores, desde as

encomiendas aos bóias frias. A exclusão de trabalhadores encaminha um processo de

substituição de formas de trabalho que retira a funcionalidade dos trabalhadores que se

tornam arcaicos desde o momento em que são contratados. A exploração se realiza de

fato em dois planos, naquele interno em cada fábrica , que sustentou a teoria de Marx, e

naquele outro, externo, que trata da exploração no sistema produtivo em seu conjunto.

A exploração cria diferentes situações de inclusão de grupos, desde os padrões coloniais

de distinção entre cidadãos metropolitanos e coloniais e entre os diferentes grupos de

excluídos. O sistema da exploração vive a contradição de que precisa incluir todos para

explorar a todos, mas precisa discriminar para poder mandar.

O reconhecimento do histórico como totalidade representa o ato de recuperar a

pluralidade essencial desse todo. A questão que se coloca hoje sobre o capital e o

capitalismo é o modo de colocar todo o relativo aos destinos da sociedade moderna em

termos de objetivos de lucro deshumanizados. Esta é a grande força legitimadora do

trabalho de Marx, que se destacou por se colocar de frente para a realidade social. Marx

é o herdeiro de uma linhagem de pensadores da realidade, especialmente de Aristóteles

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e de humanistas éticos como Maimônides. Diante dessa vocação para tratar diretamente

com o mundo social, choca ver como a maioria dos que se ocupam do pensamento do

real substitui a nódoa do real pela dobra da teoria e transformam a dura análise do

capital de Marx em vaporosa teia de entrecruzamentos idealistas de conceitos. São três

grandes reflexos do pensamento teórico. A sociologia que evade as questões centrais da

alienação e da exploração para dar prioridade a uma variedade de questões colaterais. A

economia que dá as costas ao eixo acumulação de capital e concentração de renda para

se ocupar de temas do interesse do capital. A política que trata de questões da forma dos

sistemas e abandona os temas da concentração e redução de poder e subjugação das

nações mais fracas. Estes movimentos de desqualificação das ciências sociais para

lidarem com a condição histórica do mundo social levou a uma fratura do trabalho

teórico, entre o que procura responder aos desafios da realidade e o que se realiza na

própria polêmica conceitual, ou quando muito, nos percalços das sociedades européias e

norte-americanas. O desafio da ciência social é histórico, no que a história contém a

vida social e não pode ser substituída pelas representações conceituais de processos

sociais que se tornam indeterminados. A teoria social que se voltou para discutir

conceitos, que se separou de seu próprio fundamento nas experiências em que se

fundamenta, torna-se incapaz de avaliar sua aplicabilidade em outras situações.

A opção de olhar diretamente para a realidade se identifica com a perspectiva histórica

da análise social que precisa tratar com o mundo do prático vivo, ou com as práticas

vigentes na sociedade. O prático vivo aparentemente se contrapõe ao prático inerte, que

é o mundo das práticas do passado, mas na realidade tem ele incorporado, com seus

significados originais modificados. A praxis na verdade é algo sempre composto, em

que se entrelaçam movimentos de reafirmação e de superação de práticas socialmente

necessárias.

A tradição dos estudos da periferia da acumulação mundial aponta a necessidade de

substituir o conceito genérico de periferia pelo de uma pluralidade de situações

periféricas que respondem à diversidade de condições da colonização. Observe-se que a

noção geral de periferia da acumulação representou uma vantagem conceitual, no que

qualificou as condições concretas do subdesenvolvimento, mas tornou-se um entrave no

que passou a representar uma simplificação indevida das condições históricas dos

países.

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O estudo do capitalismo em perspectiva histórica impõe a necessidade de reconhecer as

condições concretas da exploração, o que, na prática, significa trabalhar com categorias

representativas da dominação e com uma base factual da exploração. Trabalha-se com a

vocação do capitalismo para subordinar as demais formas de produção, mas não para

excluí-las. O sistema social do capitalismo apóia-se em três processos entrelaçados, que

são o de alienação, exploração e controle da força de trabalho. A ação combinada desses

princípios determina as condições da acumulação de capital e de mobilidade social dos

trabalhadores, assim como estabelece os rumos da renovação tecnológica e as políticas

de distribuição de recursos entre setores da produção e entre regiões. A grande

contribuição de Marx consistiu em apresentar o sistema do capitalismo como uma

totalidade que se transforma continuamente, expandindo-se em seus aspectos

quantitativos e qualitativos, com um componente de criação que subentende destruição

e regeneração.

O sistema se alimenta de um mecanismo geral de captação de valor que depende de uma

sustentação ideológica – os impérios acham normal sua condição de impérios – e de

duas formas de instrumentação que são as de organização técnica e institucional da

produção e de comando de oportunidades de aplicação de recursos. Tomando como

referência a abordagem de Marshall, diremos que o capital se realiza e reproduz em um

determinado ambiente de negócios que é, também, odos modos de engajamento de

pessoas como trabalhadores. O sistema prático do capital 1, que inclui empresas e

capitalistas independentes 2, deriva entre os pólos de sua auto-reprodução e de sua

capacidade de obter lucros. A solução desse dilema se coloca na relação custos/riscos,

pelo que a capacidade de controlar as oportunidades de aplicar capital vem a ser

decisiva ao sistema. E como as oportunidades de aplicação surgem quando há

expectativas de demanda, isto é, quando prevalece um ambiente de expectativas

positivas, infere-se que há um jogo de efeitos cumulativos que vincula a progressão dos

investimentos com as expectativas de retorno e de risco. Se não fazer nada é uma

                                                                                               1   Por   sistema   prático   do   capital   se   entende   o   modo   como   se   fazem   as   tarefas   próprias   do  funcionamento  do  capital  incorporado  ao  sistema  produtivo.  Compreende  os  processos  sociais  de  uso   de   técnicas   conhecidas   e   de   crítica   de   desempenho,   isto   é,   uma   apropriação   reflexiva   da  tecnologia.  2   A   digilitalização   do   sistema   de   capital   financeiro   facilitou   a   participação   de   investidores  individuais   e   em   grupos   que   representam   um   segmento   de   elevada   volatilidade   do   mercado  financeiro.  

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situação de risco total para o capital, as escolhas entre situações de risco são datadas e

correspondem a situações em que se escolhem os riscos.

As tendências objetivamente registradas das transformações do sistema produtivo

compõem uma combinação de efeitos inerciais e de margens de autonomia de decisão

que são aproveitadas segundo as condições em que operam os diversos capitais. O

passado é um lastro do presente, que também funciona como baliza na identificação de

possibilidades futuras. Os capitalistas se movem entre opções de lucros e riscos e de

escalas de investimentos que lhes permitam esgotar pendências de aplicação de seus

capitais. Os responsáveis do capital preferirão aplicar onde têm lucros garantidos e

baixo risco; e a busca de opções mais arriscadas geralmente está ligada ao esgotamento

de opções garantidas ou à necessidade de aplicar novos lucros. Será simplismo

injustificado supor que o sistema evolui de modo determinístico ou aceitar que as novas

decisões de investir ignoram completamente as anteriores. Teremos que distinguir as

oportunidades de investimento que estão garantidas por um mercado estabilizado e as

que dependem de mercados novos. A experiência mostra que a participação no mercado

depende muito mais de controle político que de diferenciais de eficiência em cada

projeto. Neste contexto, aceitar que existem efeitos em progressão no sistema não se

parece com a tese dos efeitos em cadeia trabalhados por Hirschman, porque se refere às

condições de incerteza do sistema e de erraticidade das grandes variáveis que regulam

sua determinabilidade. O objetivo incoercível da acumulação é inerente ao sistema do

capitalismo, que, entretanto, tropeça com aquela instabilidade crescente que foi

mapeada por Marx no Livro III de O Capital. Mas a irracionalidade que se encontra na

mecânica econômica do sistema converte-se em autofagia no plano social da política. O

sistema político “ desenvolve mecanismos de auto-proteção onde se alinham alianças de

interesse e de defesa de status com o conhecido controle de cargos públicos, de

estabilidade de renda e de mobilidade social.

O contexto histórico significa a pluralidade de causas que interagem em determinados

momentos e lugares, convergindo na determinação de tendências e contrapondo-se em

conflitos de interesse. Ao colocar o problema da reprodução no contexto histórico das

transformações do sistema produtivo, torna-se necessário considerar as condições

históricas concretas em que se realiza a reprodução do capital. Trabalhar com o tempo

histórico é uma opção que gera compromissos de reconhecer a correspondência entre os

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momentos quando os eventos acontecem e sua posição no encadeamento de eventos do

processo social. Ninguém escolhe quando e onde nasce e a possibilidade de escolher

onde viver são muito limitadas. Também é um compromisso de recuperar a história

como e enquanto fluxo de acontecimentos intencionais representativos de condições

econômicas e de situações ideológicas. Se “a poesia é uma arma carregada de futuro”3 a

história dá o significado do futuro pela memória do passado.

Historicamente, o capitalismo depende da capacidade de regeneração do capital e esta,

das condições de mercado em que ele atua. Para sobreviver, o capital precisa se

reproduzir e isso se faz em condições de crescente incerteza. A reprodução do capital e

a do sistema produtivo em seu conjunto são inseparáveis, porque as duas dependem

igualmente de como a sociedade gera força de trabalho e como o sistema produtivo

absorve trabalhadores e como o capital capta valor. O capital precisa controlar a força

de trabalho e esta precisa encontrar seus meios de independência e de gestão de sua

criatividade. Sem ela o capital é inerme e incapaz de visualizar suas próprias

alternativas. Em tempo histórico não há como separar a reprodução e a acumulação do

capital, entendendo-se que esta última envolve sempre uma mudança da composição do

sistema produtivo em seu conjunto. O problema com que nos deparamos é o de

identificar e tratar com o que há de específico no processo de produção. Onde há

história há especificidade e todos os processos são determinados, como professou

Hegel. O reconhecimento da especificidade é característico da análise que Marx

desenvolveu sobre este tema desde suas teses sobre Feuerbach. Quem faz a reprodução

do capital são os trabalhadores, porque ela se realiza em condições específicas que

demarcam a capacidade dos trabalhadores de manejarem o capital existente.

                                                                                               3 Verso do poeta espanhol Gerardo Diego

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1. O PROCESSO DESIGUAL DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

Desenvolvimento como atributo civilizacional.

Em seu significado radical, desenvolvimento é um movimento que se dá no interior de

sistemas existentes e na criação de novos sistemas, modificando as dimensões de

abrangência dos relacionamentos e de sua intensidade (MARCHAL, 1955) 4. Em seu

sentido mais amplo, a noção de desenvolvimento pressupõe a de expansão de sistemas,

que por sua vez envolve conotações de densidade e de extensão. Será preciso considerar

se os sistemas se expandem mantendo sua densidade, mudando de consistência ou

perdendo densidade. Sobre qual espaço o sistema se expande e como evolui sua coesão

interna. O desenvolvimento que nos interessa pertence ao mundo social. Nele, essa

ampliação compreende aumentos numéricos e qualificação da população, aumento dos

meios de produção a sua disposição e aumento dos usos de recursos, correspondendo

tudo a desgaste dos sistemas de recursos físicos.

O desenvolvimento compreende mudança nas condições de participação dos

trabalhadores no sistema produtivo em geral e em suas diversas formas, em que mudam

os requisitos de qualificação do sistema produtivo, ao tempo em que mudam as

iniciativas de qualificação, tanto daquelas conduzidas pelo sistema educativo como

daquelas outras empreendidas pelos próprios trabalhadores. Há uma questão

fundamental a ser esclarecida acerca dos papéis dos capitalistas e dos trabalhadores na

condução e na realização da qualificação e na intencionalidade das qualificações,

apontando aos processos de poder envolvidos no direcionamento dos processos de

qualificação.

Na trajetória da formação da teoria há uma bifurcação entre uma tendência à

simplificação formal da economia pura e a captação da realidade por parte da economia

aplicada. Há uma questão sem resposta por parte da economia pura, relativa à validade

                                                                                               4 Abrangência entendida como extensão do campo dos relacionamentos, tal como eles são percebidos ou como são impostos por uns povos sobre outros e como intensidade, compreendendo regularidade e freqüência. Aquela diferença entre relatos de viajantes e rotas de comércio e entre trocas de mercadorias que são fabricadas e indução da fabricação de novas mercadorias.

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material de suas observações e outra questão igualmente nebulosa para a economia

aplicada positivista, relativa a sua fundamentação teórica. Os modos como se realiza o

desenvolvimento do sistema contêm elementos de certeza e previsibilidade e outros

elemento s de incerteza e imprevisibilidade. A instabilidade e a incerteza que

prevalecem hoje no mundo do capital e seu condicionamento à ascensão de novos

grandes participantes tornaram obrigatório rever o significado das mudanças em curso

no processo econômico da produção. Se não se pode pensar em um único modo de se

desenvolver do sistema, é preciso reconhecer que as nações que constituem o grupo dos

mais ricos ou mais internacionalizados passam a ser mais sensíveis a mudar seu perfil

de alianças.5

A produção capitalista se realiza mediante a reinserção sistemática de valor no sistema

produtivo, o que envolve dois problemas técnicos simultâneos, o de encontrar soluções

técnicas para aplicações que tendem a ser progressivamente maiores e de garantir

demanda para a produção crescente. Adicionalmente, esses dois problemas devem ser

resolvidos em um ambiente em que a concentração social do capital resulta em

concentração de renda, portanto, em uma demanda socialmente concentrada. A questão

do desenvolvimento liga os problemas orgânicos da expansão do sistema aos problemas

sociais resultantes da concentração da demanda. Será necessária uma revisão da

conceituação de desenvolvimento para situá-la frente ãs condições das econômicas

periféricas.

Nos meios acadêmicos e da política econômica formou-se uma conceituação de

desenvolvimento que se dividiu entre o mecanicismo neoclássico, a dinâmica linear

keynesiana e a crítica histórica marxista. Em nome de uma unificação teórica

identificada com a globalização conservadora, descartam-se como antiquados os

padrões teóricos básicos sobre os quais se sustenta a teoria da economia especulativa

praticada pela ortodoxia formal. Basicamente, colocou-se desenvolvimento como um

problema da sociedade do capital ou do capitalismo industrial. Significaria desconhecer

processos de desenvolvimento que se esgotaram ou interromperam em civilizações

temporalmente anteriores ou historicamente defasadas frente ao desenvolvimento da

                                                                                               5   A   recente   reviravolta   política   no   Japão   –   que   interrompeu   50   anos   de   governos   liberais  conservadores   -­‐   sinaliza   um   deslocamento   da   sua   aliança   coagida   com   os   EUA   para   uma  aproximação  com  as  demais  nações  asiáticas.  

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civilização da tecnologia mecânica. Por extensão, significa desconhecer a complexidade

histórica da produção mundial, onde interagem segmentos de alto capitalismo com

outros aparentemente não capitalistas e outros ainda, excluídos dos circuitos do capital.

Hoje, torna-se necessário ver desenvolvimento como algo que se atribui como

possibilidade de transformação socialmente positiva em um dado contexto civilizacional

e não somente como um processo inscrito no contexto da sociedade do capital. As

diferentes civilizações se desenvolveram com uma combinação de sua organização

social e seu controle de técnicas e visualizaram seus objetivos de desenvolvimento

como de poder concentrado ou de condições de equivalência entre pessoas e grupos. A

inter-relação entre a esfera coletiva e a da individualidade aparece através da outra de

aliteração entre o sagrado e o profano e entre os ritos e os mistérios das religiões.

A ideologia da colonização deu lugar ao pressuposto de uma superioridade da

civilização industrial capitalista sobre todas as demais, anteriores e atuais sustenta-se em

uma comparação entre seus meios técnicos e seu próprio juízo sobre as oportunidades

que oferece para mobilidade social para as maiorias. Prevaleceu sempre a presunção de

que ela poderia perpetuar-se ou manter-se em muito longo prazo, isto é, que seus

fundamentos em organização social e técnica permaneceriam. No entanto ela criou

novas ondas de empobrecimento que se identificaram na escassez de meios de

subsistência para as maiorias.

Desde logo, está claro que é um julgamento apoiado em bases ideológicas, que

envolvem uma combinação de juízos éticos com critérios de poder. Estas foram

seguidamente reclassificadas, quando foram atingidas pelo chamado desemprego

tecnológico. Quando Marx diz que a sociedade capitalista liberou energias da sociedade

logicamente se referia ao feudalismo europeu com sua rigidez social e seus preconceitos

religiosos. Essa mesma observação deve levar em conta que o feudalismo foi uma

involução em relação com diversas outras formas sociais tanto de suas contemporâneas

como de civilizações anteriores. A avaliação do desenvolvimento como essencialmente

social envolve uma crítica dos usos sociais das tecnologias disponíveis e das condições

de modernização da sociedade do capital, como parte dos processos que podem levar a

sua superação.

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Para dar conta do que acontece hoje precisa-se de uma visão histórica mais ampla em

tempos e espaços. Os horizontes culturais e os bloqueios de cada civilização demarcam

possibilidades de movimentos de emancipação material e ideológica, com soluções de

sobrevivência e de acumulação de riqueza que se estendem a segmentos mais ou menos

numerosos da sociedade. Pode-se aceitar de modo não crítico a visão capitalística de

desenvolvimento que se identifica com a melhora das condições materiais de vida das

maiorias, ou considerar o significado desse processo em termos de ampliação das

possibilidades de escolher estilos de vida ou de apropriar-se de uma capacidade de

pensar por conta própria. Nesse contexto, desenvolvimento se identifica como um

movimento de emancipação material e ideológica que se torna uma consciência social

critica do processo do capital. A visão civilizacional do desenvolvimento dará

referências para comparar os resultados alcançados pela sociedade em diferentes

momentos da história, portanto, de relativizar criticamente os resultados alcançados em

diferentes momentos e lugares. Nas condições de colonialismo e exploração da primeira

revolução industrial haveria mais desenvolvimento que nos séculos anteriores? A

alternativa será de distinguir o desenvolvimento das forças produtivas e o

desenvolvimento de condições de vida autônomas. De qualquer modo, trata-se de uma

relação entre as condições materiais de vida e as de emancipação de grupos e de

indivíduos. É o fundamento da noção de desenvolvimento na de progresso.

Para tratar com ela é preciso ir além da separação entre igreja e Estado e reafirmar a

secularização da ideologia. A noção de progresso é terrenal e de superação da dicotomia

religiosa entre o inferno e o céu e o bem e o mal, que é substituída por progressões

positivas e negativas da vida material neste mundo. O recrudescimento de religiões sem

teologia é um sinal inconfundível de novas modalidades de alienação, que servem à

dominação tecnificada. A incorporação da noção de progresso corresponde a uma

ruptura ideológica com a prevalência de uma ordem secular avalizada por uma

autoridade divina. A noção de progresso está separada da raiz teológica do poder e a

possibilidade de progresso é associada à de uma mudança socialmente significativa,

onde os protagonistas do processo têm suas posições definidas por situações

materialmente estabelecidas. Por isso, ela está sujeita aos retrocessos do

recrudescimento de fanatismos, desde os religiosos aos políticos. A alegação de Marx

relativa à precedência da esfera material sobre a ideológica e a institucional descreve o

movimento interno do processo do capitalismo, seguindo a reprodução do sistema

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sócio-produtivo e sócio-político através da reprodução do capital. Não exclui o

movimento concomitante e reverso de ação da esfera sócio-política sobre a esfera sócio-

econômica.

Uma visão histórica crítica do mundo atual impõe-se como necessária como e enquanto

totalidade, com suas dimensões, sócio-econômica e política e espaço-temporal, é

necessária para situar as possibilidades de desenvolvimento. O tratamento da categoria

desigualdade no plano da sociedade moderna, com seus fundamentos na formação das

classes e suas expressões na renovação das estruturas de poder, exige uma percepção do

processo social como totalidade, com sua conjugação de movimentos desde dentro e

desde fora da esfera econômica à esfera política e vice versa. A perspectiva

civilizacional permite-nos ultrapassar o horizonte da produção capitalista, por vê-la

como uma imanência da civilização ocidental. O engajamento de outras civilizações,

notadamente das asiáticas, na mesma corrida materialística empreendida pelo mundo

ocidental, é um resultado indireto do próprio impulso colonizador das nações européias

e de seus seguidores norte-americanos, que instigaram projetos nacionais de poder com

voracidade semelhante à ocidental e maiores escalas de mercado e de exploração do

trabalho. Mas a combinação dos diversos movimentos de emergência de nações que

foram colônias ou que foram ocupadas pelos ocidentais, na Ásia, na América e na

África tornou inevitável rever o sentido de finalidade da formação de riqueza. Esta nova

pluralidade certamente levanta uma questão essencial relativa ao significado do

desenvolvimento como parte do que acontece no âmbito da modernização do capital ou

como parte dos processos que podem levar a sua superação.

Colonialismo e barbárie

A verdadeira barbárie com que a civilização se defronta é o colonialismo, cuja história

desmonta a aura de liderança dos países capitalistas. Há uma diferença essencial entre as

análises do desenvolvimento e do subdesenvolvimento que se restringem ao âmbito da

produção capitalista moderna e as que reportam ao fundamento do capitalismo no

colonialismo. O sistema capitalista se formou sobre um amplo e complexo mecanismo

de apropriação violenta de riqueza que se realizou sobre as duas grandes linhas do

colonialismo e do controle financeiro e cultural de povos dominados, onde se

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desenvolveram mecanismos de renovação do colonialismo, identificados com uma

modernização controlada e seletiva. Ao longo dos dois grandes movimentos de

colonização, começados respectivamente no século XV e no século XIX, as nações

colonizadoras exerceram um poder irrestrito sobre as pessoas e os recursos naturais,

inclusive substituindo os valores e a cultura dos povos colonizados e transformando-os

em agentes de seu próprio poder. A colonização foi o pano de fundo dos maiores

massacres da história, com conseqüências que se estendem até hoje. A colonização

constitui uma responsabilidade social que não pode ser desculpada sob pretexto algum e

que certamente tem que ser cobrada das nações responsáveis.

A colonização encaminhou os dois grandes movimentos de escravização e de alienação,

que cumpriram os dois papéis de apropriação e de controle da força de trabalho,

dirigindo ou pondo limites a sua qualificação. No entanto, a colonização requer um

esforço constante de dominação que gera forças favoráveis dos grupos que são

alienados e movimentos contrários de revolta daqueles outros cuja situação de classe é

esclarecida pela própria colonização. Historicamente a manutenção de sistemas

coloniais demandou políticas repressivas crescentes que deram lugar a processos de

enfrentamento que levaram a rupturas irreversíveis, mas com interações mais complexas

através de movimentos migratórios.

O aperfeiçoamento das relações de poder que acompanha o desenvolvimento do sistema

capitalista de produção deu lugar a modificações decisivas na dominação de uns países

por outros. A difusão de novas práticas de domínio internacional praticadas igualmente

pelas nações mais poderosas e pelas que funcionam como suas seguidoras configura um

novo momento das relações econômicas e políticas internacionais em que as nações

periféricas ascendentes como o Brasil têm que definir novos modos de participação.

O colonialismo é um antecedente essencial da identidade coletiva das nações ibero-

americanas, cujo significado deverá ser, necessariamente, exposto m qualquer esforço

de explicação das transformações da produção capitalista 6. A produção capitalista é

                                                                                               6  O  papel  do  fundamento  ideológico  medieval  na  formação  das  Américas  ainda  precisa  ser  melhor  avaliado.  Esse  lastro  medieval  pesou  mais  na  América  ibérica  e  o  atraso  na  invasão  de  holandeses  e  ingleses  no  norte  teve  a  vantagem  de  ter  sido  conduzida  por  sociedades  mercantis  depredatórias  que   já   tinham   se   desfeito   do   lastro   medieval.   Surgiram   daí   diferenças   no   relativo   ao   modo  

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diferentemente desigual, segundo é olhada por nações e grupos que exerceram e

exercem papéis de colonizadores ou pelos que são ou foram colonizados. Tratando-se

da América, que já foi um dos continentes mais isolados do globo, é preciso rever o

conceito de desigualdade. O caminho para o debate sobre o desenvolvimento das nações

que se encontram em situações desfavoráveis no quadro mundial da acumulação de

capital encontra processos contraditórios e incertos, com aspectos positivos e negativos

na relação entre formação de riqueza material e bem estar das pessoas. Por isso, tem

que contemplar os aspectos positivos e os negativos da concentração de riqueza e de

poder político com mobilidade seletiva de alguns grupos e a falta de mobilidade das

maiorias.

A América entrou no sistema do capital através da colonização realizada por algumas

nações européias em duas grandes etapas, respectivamente, da colonização empreendida

pelo capital mercantil e pela identificada com a expansão da industrialização. O sistema

da colonização, ou a colonização sistêmica no século XVI representou um sistema de

uso de força de trabalho composto de capítulos interativos que foram o emprego livre de

comerciantes e auxiliares diretos e indiretos, o emprego do aparelho burocrático legal e

militar, o emprego da força de trabalho escravizada e o de trabalhadores não

incorporados pela produção mercantil internacionalizada, que tiveram que sobreviver

mediante práticas de trabalho que se resolvem em circuitos variados de sobrevivência,

desde alguns que se mantiveram em formas rudimentares até outros, que preservaram

técnicas artesanais pré-coloniais, ou que encontraram formas de troca que se

sustentaram em escala regional. Por todas razões a questão da colonização com as

nações que foram colonialistas fundadoras, como Espanha e Portugal, não pode ser

considerada como página virada do passado, se não deve ser revista à luz das recentes

investidas de capitais ibéricos na economia brasileira. Não se trata somente de constatar

que a esfera da sobrevivência foi assaz complexa e capaz de se reproduzir, senão de

questionar o papel da esfera de sobrevivência depois do holocausto do primeiro século

de colonização e através das interações que foram acionadas pelo próprio sistema

colonial. A expansão do capital usou força de trabalho transferida, tanto da escravização

como da força de trabalho localmente reproduzida nos sistemas de produção

camponesa. No Brasil a industrialização usou força de trabalho legada pela escravidão e

                                                                                                                                                                                                                                                                                   comercial   de   conduzir   a   escravização   e   à   formação   de   grupos   de   pequenos   propietários   nas  “novas”colônias.  

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força de trabalho de migrantes que não tinham sido escravos, mas cuja transferência

deixou uma população localmente organizada que continuou operando uma pequena

produção de pobres que abasteceu o mercado regional de alimentos.7 No México, onde

essa população rural foi mais densa que no Brasil, a estratégia de sobrevivência

sustentou os fundamentos insurrecionais que levaram à derrota do império de

Maximiliano de Habsburg e à Revolução Mexicana. No Brasil essa estratégia alternativa

de força de trabalho engajada por trabalhadores revelou-se em sua maior dramaticidade

no movimento de Canudos, que criou uma cidade camponesa de 30.000 habs.. Trata-se,

portanto, de uma questão muito mais profunda , relativa ao espaço social de condições

de uso de força mobilizada por trabalhadores. Ao questionar a exclusividade do capital

como empregador, coloca-se a questão da possibilidade de uma subjetividade não

dominada que pode representar a consciência crítica do processo de poder no

capitalismo.

Se a análise do capital em geral começa pela alienação do trabalho e pela propriedade

da terra, a análise do capitalismo na periferia da acumulação começa com a introdução

da categoria colonização, que estabelece um ponto de partida para nações novas e um

ponto de ruptura para nações antigas, mas que em todo caso significa a ruptura com um

isolamento continental para todas as nações americanas. Colonização não se refere

apenas aos processos iniciados no começo do século XVI. Compreende a complexidade

de todos os movimentos que surgiram nos séculos seguintes e que reúnem as

empreitadas de colonialistas europeus e norte-americanos até hoje. A colonização

reveste-se de diversas formas, desde os movimentos abertamente conduzidos por

Estados nacionais desde o século XV até movimentos não oficiais nos séculos seguintes

e até as empreitadas de Theodore Roosevelt e de Walker no século XX, representando

essas duas tendências. O colonialismo carrega uma versão extrema de desigualdade,

que, entretanto, incide sobre ambientes sobre ambientes sociais que, em muitos casos,

também foram radicalmente desiguais, ou em todo caso, que carregaram suas próprias

escalas de desigualdade.

                                                                                               7   Em   2005   um   esforço   combinado   de   professores   pesquisadores   da   Associação   Brasileira   de  Pesquisadores  em  História  Econômica,  a  partir  de  uma  iniciativa  de  Tamás  Szmrecsányi,    tentou  levantar   a   produção   de   alimentos   na   Primeira   República,   encontrando   diferenças   insuperáveis  entre  os  registros  de  estados  do  sul  e  de  estados  do  nordeste.  

Page 16: Capitalismo e sociedade

 

16    

A colonização deu lugar ao maior holocausto da humanidade8 e encaminhou os dois

grandes movimentos de escravização maciça e de alienação dos novos espaços sociais

de trabalho, estabelecendo os modos de apropriação e de controle da força de trabalho,

manipulando a qualificação como instrumento de poder. Portugal e Espanha através de

suas respectivas composições de feudalismo e mercantilismo, instituíram sistemas

diferenciados de poder, em que a gestão da esfera internacional dos sistemas coloniais

contrastava com modos autoritários de comando de cada colônia. O estatuto colonial

deu lugar a uma ambivalência entre um poder local quase ilimitado dos grandes

proprietários e o poder da administração das colônias, cujos conflitos de interesses

alimentariam as lutas de independência.

A grande preocupação com a colonização hoje refere-se ao recrudescimento de relações

de poder apoiadas em vestígios de ideologia colonialista. Quanto mais se reúnem

elementos de informação sobre os diversos movimentos de colonização mais ressalta a

necessidade de substituir as versões tradicionais da colonização do modo de agir das

grandes potências e passam por alto as empreitadas de países de menor porte. Não só

Portugal no século XV como até países como a Belgica e a Dinamarca sentiram-se na

condição de colonizar outras nações em diversas partes do mundo, onde a Bélgica e

Portugal protagonizaram algumas das histórias mais sinistras do colonialismo moderno.

No essencial, os métodos do colonialismo variaram pouco desde o século XVI, tanto em

violência direta como em manipulação ideologia, tal como descrevem os relatos de Vo

Nguyen Giap sobre a segunda ocupação dos franceses no Vietnam 9.

Para captar o significado histórico do colonialismo, com seu papel na formação do

capitalismo capaz de se reproduzir, é preciso distinguir as versões de colonialismo pré-

industrial, daquele. outro instigado pela demanda de matérias primas para a indústria e

do que se expandiu entre o fim das guerras napoleônicas e a primeira guerra mundial. O

colonialismo respondeu aos projetos de poder das nações que se industrializavam e

demandavam maiores quantidades de matérias primas e de trabalho qualificado. Esse

colonialismo foi parte de um movimento mais amplo de disputa por espaços de mercado

que, entretanto, se desenvolveram desigualmente e principalmente nos próprios países                                                                                                8 As estimativas de extermínio de indígenas desde a América do Norte até a Patagonia somadas à mortandade de africanos escravizados superam quaisquer cifras de massacres até a Primeira Guerra Mundial. 9 Refere-se a relato concedido a jornalista e publicado com o nome de Vitoria a qualquer preço.

Page 17: Capitalismo e sociedade

 

17    

industriais. O carro chefe do sistema, formado por siderúrgica e metalurgia expandiu-se

através da diversificação da produção e do consumo nos países mais ricos que se

industrializaram primeiro. O sistema colonialista criou uma economia

internacionalizada bifásica, com segmentos complementares que se desenvolviam

segundo diferentes dinamismos e que somente em parte se comunicavam. Se a lã do

Afganistão e do Uruguai era necessária para uma indústria de tecidos vendendo para o

mercado europeu, o elenco de maquinaria que os países europeus vendiam para os

produtores de matérias primas era muito limitado. A busca de minerais em grandes

minas em países da América Latina começou desde a década de 1860, alcançou um

auge entre 1890 e 1914, coincidindo com a expansão de interesses internacionais no

controle da expansão da produção de mercadorias da agropecuária. A substituição do

velho sistema colonial iniciado no século XVI por um sistema de controle capitalista da

produção criou as condições para um notável aumento da produção de matérias primas,

tanto agrícolas como mineiras, ampliando a massa de trabalhadores contratados, ao

tempo em que criando novas elites associadas, que se tornaram guardiãs do novo pacto

de poder. A formação de mercados internos nos países periféricos surgiu, portanto,

mediante um mecanismo dividido de expansão da demanda, com uma grande distância

entre os circuitos de produção para exportação e de produção para consumo interno e

entre o consumo dos grupos de altas rendas e o consumo das maiorias.

Esse sistema representou uma determinada modernização frente às economias coloniais,

identificando-se com os valores da industrialização e da urbanização industrializada. Os

privilégios aos exportadores tornaram-se o pivô central das políticas econômicas, com

situações extremas no Brasil, no Chile, na Argentina e no Uruguai que funcionaram em

detrimento da produção de alimentos e que deram lugar a novos conflitos de interesse

no próprio mundo da produção rural. A novidade técnica na combinação da esfera

econômica com a esfera política foram composições de poder civil com controle militar,

que asseguraram a continuidade do sistema. De fato, a sustentação militar do sistema

formou-se internamente em cada país e só passou a sofrer pressões externas

significativas depois da Segunda Guerra Mundial. A base econômica do sistema esteve

formada por um pequeno número de mercadorias exportáveis, ficando a diversificação

por conta dos pequenos espaços de mercado interno.

Page 18: Capitalismo e sociedade

 

18    

O controle ideológico do sistema econômico ficou por conta da alienação das elites

associadas que passaram a tomar iniciativas de liderança subordinada e a defender o

bloco de poder dominante com o denodo de quem sabe não ter para onde recuar. Os

valores culturais se projetaram na construção dos sistemas educativos nacionais que

afirmaram como estrangeirizantes, que na prática significou copiar modelos culturais e

educativos franceses e ingleses e finalmente modelos norte-americanos. É revelador que

alguns dos movimentos mais festejados de modernização do sistema educativo foram,

na realidade, cópias de propostas de política educativa de países mais ricos, como os

EUA e a França e que jamais puderam ser eficientemente implantados no Brasil. Os

movimentos de afirmação nacional sempre foram vistos com suspeição, geralmente

reduzidos a nacionalismo e a estreiteza de visão, tal como aconteceu com as tentativas

representadas pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros.

Essas formas de colonialismo sutil persistiram, mas tornaram-se incapazes de proteger

adequadamente os interesses do capital, assim como não foi capaz de resistir às pressões

dos movimentos nacionalistas que ele mesmo despertou. Mas resistira até quando as

bases do poder na Europa burguesa foram sacudidas pelo nazismo e pelo socialismo.

Entretanto, o realinhamento mundial do poder abriu espaço para novas formas de

controle internacional, mais indiretas, entretanto, baseadas na supremacia norte-

americana, com papéis de coadjuvantes para os países europeus, onde alguns deles

desenvolvem investimentos e protagonizam a expansão de algumas empresas líderes,

assim como o Japão. Na nova ordem de poder internacional, simbolizada pela

globalização financeira e pela concentração do grande capital nas multinacionais

encontram-se combinações complexas de organização de capitais de base nacional com

empresas multinacionais, onde a relação entre o mercado de capital e o de trabalho

continua sujeito a grandes restrições internas e onde as estratégias de sobrevivência dos

trabalhadores passaram a se valer mais da mobilidade sinalizada pelas migrações.

A produção social de escassez

No mundo do capital de hoje pode-se ver a escassez como uma situação inicial de falta

de elementos para a produção necessária para sobreviver e como uma situação de falta

determinada pelo rumo seguido pela produção capitalista, com suas implicações de uso

Page 19: Capitalismo e sociedade

 

19    

de tecnologia. Como mostrou Marx, a produção capitalista tende à superprodução por

uma contradição entre os interesses individuais dos capitalistas e os movimentos dos

capitais em seu conjunto. A superprodução do capitalismo consiste em abundancia de

mercadorias para as quais se supõe que há procura e para cuja produção canaliza os

recursos disponíveis, produzindo escassez dos bens e serviços necessários para as

maiorias que não têm capacidade de demandar em mercado. A superprodução de

mercadorias demandadas em momentos anteriores do mercado indica escassez em

momentos futuros. O movimento geral de expansão da produção capitalista se realiza

em resposta a estímulos de demanda surgidos de compras induzidas pelos capitalistas

que assumem o papel de produtores e decorrem da defesa da taxa de lucros dos

capitalistas individuais e que entra em contradição com a lógica da reprodução do

sistema. Como a renda se concentra em segmentos restritos da sociedade mundial, a

demanda que pode ser esperada de consumo essencial será proporcionalmente menor

que a requerida pelo capital para se reproduzir. Este mecanismo, que foi percebido por

Ricardo, põe a reprodução do capital na dependência da demanda do clube formado

pelos grupos de maior renda e consigna aos mais pobres o papel de garantir uma

demanda básica de produtos de baixo valor por peso. Esta observação apresentada por

Ricardo e desenvolvida por Marx indica o rumo da produção social de escassez. O

capital se concentra entre alguns a expensas de descapitalização de outros. A

abundância em processos desiguais torna-se a fonte de uma escassez que atinge algumas

partes da sociedade enquanto outras enriquecem.

O sistema todo se move mediante um mecanismo que converte desejos em decisões de

compra, portanto, que depende de que haja pessoas e instituições dispostas a

comprometer renda com a compra das mercadorias a serem vendidas. A necessidade de

manter em operações um sistema cada vez maior e mais complexo faz com que haja

uma diferença essencial entre os circuitos de transações que respondem pelo consumo

essencial à sobrevivência e o que se desenvolve com as necessidades que são criadas

pelos meios de publicidade e pelos estímulos dos ambientes de consumo. Dadas as

interações entre interesses genuínos em itens e formas de consumo ligados com

sobrevivência e o consumo induzido só se pode separar consumo necessário de

desnecessário com um critério de classes sociais que distinga sobrevivência física de

defesa de posições de consumo já alcançadas.

Page 20: Capitalismo e sociedade

 

20    

Ao ver o consumo como um processo que é conduzido pelas expectativas criadas pelo

capital para gerar a demanda que viabiliza sua reposição, introduz-se um ajuste nos

pressupostos da teoria econômica, onde os dados de consumo geral têm que ser

corrigidos por indicadores da composição do consumo por grupos de renda e condições

de acesso a bens e serviços. Na sociedade capitalista não há, praticamente, como isolar

comportamentos do consumo que não estejam articulados pela produção industrializada

e não estejam sujeitos à influência da mídia. O controle do consumo se realiza sobre os

atos atuais e sobre as perspectivas de consumo futuro, tal como elas são parte do

planejamento da produção. As preferências dos consumidores são direcionadas

mediante mecanismos sutis de controle ideológico que transcendem o escopo do

marketing e se confundem com uma manipulação de marcas que se tornou parte

essencial da operacionalidade do capital financeiro e de transmissão de experiências e

de expectativas entre consumidores. O consumo induzido torna-se a mola mestra do

formato da demanda efetiva. Mesmo os modos mais simples de consumir estão

impregnados da complexidade da produção capitalista. Uma teoria econômica

atualizada do consumo terá que contemplar as condições sociais de realização do

consumo entre sociedades desigualmente industrializadas e comunicadas.

Para manter a pressão da demanda o sistema precisa passar aos detentores de renda a

consciência de uma necessidade de consumir que se torna o grande diferencial entre as

sociedades que acumulam e as que continuam presas às restrições da sobrevivência. A

escassez é o retrato em negativo dessa pressão social de demanda, que se amplia junto

com a acumulação e se torna um fator de diferenciação social em cada região e entre

países. A escassez se torna progressivamente maior com o crescimento da demanda

induzida e representa uma rigidez do sistema produtivo para reagir às crises

econômicas.

Ao reconhecer que a atual crise da economia mundial altera, de modo irreversível, os

padrões de consumo da sociedade norte-americana, coloca-se na verdade que a

contração de emprego e renda no topo mundial da renda pessoal tem efeitos negativos

diferenciados ao longo das escalas de renda e de condições de consumo das diversas

populações nacionais. A desigualdade essencial do sistema tem feito com que a

progressão da escassez induzida avance junto com o aumento das situações de pobreza

extrema e de recrudescimento de situações de pobreza crítica em regiões

Page 21: Capitalismo e sociedade

 

21    

predominantemente pobres e nas metrópoles dos países periféricos ascendentes como a

Índia, o México e o Brasil e em situações de pobreza aguda crônica em metrópoles dos

países mais ricos como nos EUA, no Reino Unido e na França, sempre em

correspondência com situações de discriminação étnica. Trata-se, portanto, de que há

uma pluralidade de relações causais e de situações históricas em torno da produção

social de escassez que precisam ser esclarecidas. A escassez de bens e serviços a serem

distribuídos corresponde à desigualdade na distribuição da renda, com seus

desdobramentos na escala de cada país e através da distribuição do trabalho. Há uma

escassez que surge da concentração das rendas do trabalho em menor número de

empresas e de postos de trabalho e outra escassez que surge da insuficiência do sistema

produtivo para absorver a força de trabalho disponível na sociedade.

Historicamente, o problema social da escassez surge do próprio sistema colonial de

produção, que jamais absorveu a força de trabalho com salários suficientes para sua

reprodução e canalizou a força de trabalho controlada para produzir mercadorias para

exportação, em detrimento de satisfazer as necessidades existenciais da população de

trabalhadores. O esgotamento dos sistemas coloniais tradicionais deu lugar a novas

formas de extração internacional de valor que se atualizaram junto com a renovação

tecnológica. O processo da escassez ganha novos mecanismos de propagação ao

aumentar a variedade de técnicas que se combinam. Desfaz-se o argumento defensivo

de que o transbordamento de efeitos da riqueza acumulada aumenta o poder de compra

dos mais pobres mitigando a escassez social.

Esse estilo de economia foi objeto de sucessivos movimentos de modernização que

representaram substituições de trabalho mediante mudanças de organização que

limitaram ou reduziram o papel do trabalho frente ao desempenho da maquinaria. Trata-

se de uma modificação estrutural no papel do trabalho na produção, pela qual se

desatrelam os ganhos de salários dos trabalhadores dos ganhos de eficiência do trabalho.

A escassez resulta da redução do papel ativo do trabalhador na gestão do trabalho.

Através desse descolamento entre o trabalhador e o trabalho incorporado na produção

surge uma esterilização do trabalho diretamente ligado ao trabalhador, que é substituído

por trabalho administrado através da gestão da maquinaria.

Page 22: Capitalismo e sociedade

 

22    

A conceituação positivista de economia é de uma ciência cujo objetivo é a melhor

distribuição possível de recursos escassos 10, onde se presume que a escassez é um dado

inicial do problema econômico, mas onde não se discute como esse problema evolui

com a acumulação e com a concentração do capital. A perspectiva histórica da

economia faz o percurso contrário, seguindo a pista dos processos criadores de escassez,

procurando as linhas de desenvolvimento desse problema no contexto da acumulação.

Certamente, há uma escassez básica das situações primitivas de vida identificadas com

os problemas de sobrevivência. Mas a escassez no sistema capitalista é uma

conseqüência do controle progressivo dos recursos para atender a uma produção

direcionada para maximizar lucros. Na perspectiva do pequeno capital, o avanço do

capital monopolista aprofunda diferenciais de lucro entre empresas que limitam os

lucros e os salários e as possibilidades de aumento de renda, pelo contrário acumulando

riscos de falência e desemprego.

A autofagia do poder prevalecente

O poder do capital é um novo Conde Ugolino que devora seus próprios filhos. A

concorrência irrestrita é um movimento defensivo que abrange os planos da economia e

da política e que em seu sentido pleno descreve uma autofagia do sistema produtivo tal

como advertido por Ricardo no começo da caminhada do capitalismo. As estratégias

auto-destrutivas de mercado empreendidas pelo grande capital compreendem aspectos

explícitos do jogo de poder econômico e aspectos velados do poder político e das inter-

relações entre os dois, criando limites dessa autodestruição, estabelecendo princípios de

auto-preservação. Os capitalistas se ocupam de que a sociedade do capital não os

exclua. Na caminhada da formação do poder econômico no capitalismo avançado

aumentam os aspectos comuns a todos e diminuem as peculiaridades do funcionamento

dos sistemas nacionais cada vez mais sensíveis a tensões de identidades regionais e a

pressões de interesses e de cultura internacionalizadas. Na América espanhola, que se

diferenciou das demais partes da América, por implantar-se sobre civilizações

                                                                                               10  Uma  definição  de  Lionel  Robbins  que  foi  adotada  pela  economia  burguesa  como  a  conceituação  básica  desta  ciência  social  e  que  foi  secundada  por   Joan  Robinson  ao  definir  a  teoria  econômica  como  uma  caixa  de  ferramentas.  

Page 23: Capitalismo e sociedade

 

23    

autóctones, as tensões regionais se identificaram com as identidades pré-hispânicas e

passaram a criar novas sínteses culturais 11.

Segundo a lógica de sua reprodução, o movimento geral do capital resulta de uma

pluralidade de iniciativas de produção baseadas em previsões de demanda que são

elaboradas sobre uma perspectiva geral de consumo que jamais pode ser abastecida por

um único produtor em condições de concorrência 12. A suposição de combinação é

necessária, mas, logicamente, qualquer produtor concorrerá toda vez que tiver a

oportunidade de fazê-lo. Será preciso superar essa barreira de generalidade e passar das

condições específicas da reprodução do capital, que logicamente variam em tempo e

espaço, e levam a cogitar de condições e movimentos restritos de acumulação.

Falta esclarecer alguns pontos sobre os efeitos da concentração do poder econômico nas

condições históricas do mercado. O poder econômico significa a capacidade de decidir

sobre tecnologia, financiamento e emprego, isto é, conduzir a produção sobre opções de

linhas de produção. A concentração da capacidade de controlar a renovação tecnológica

deu novas qualificações à concorrência, onde se distinguem espaços de concorrência e

capacidade de concorrer em cada um deles. Não há como simplificar a capacidade de

concorrer em uma competitividade indiscriminada, que aparece como uma propriedade

geral das empresas, senão é preciso ver a competitividade como uma capacidade de

concorrer em determinados ambientes econômicos. A competitividade é relativa tanto

como são relativos os controles sobre tecnologia e como são sólidos os fundamentos

financeiros do comando da tecnologia.

Alguns estudos de inspiração weberiana, como os de Chandler sobre a operacionalidade

da indústria, sinalizam essa distinção entre o ambiente da concorrência e a capacidade

das empresas para concorrerem, que tem muito a ver com vantagens de curta e de longa

duração e com vantagens circunstanciais e vantagens conquistadas. A análise                                                                                                11 É um processo progressivo, regressivo, convergente e dispersivo que compreende substituições, adições, inclusões e exclusões, configurando novos sujeitos históricos. 12     Este   pressuposto   tem   diferentes   condições   de   aplicabilidade   na   indústria   de   transformação,  onde   os   lucros   de   monopólio   são   obtidos   em   concorrência   entre   empresas   em   condições   de  concorrerem  umas  com  as  outras,    e  no  mercado  urbano,  onde  há  uma  distinção  entre  produção  industrializada,   produção   artesanal   capitalista   e   produção   comunitária,   apesar   de   que   as   três  operam  sobre  um  mesmo  mercado  de  terras  e  de  alguns  materiais.      A  questão  de  efeitos  de  graus  de   monopólio   trabalhada   por   Kalecki   considera   sistemas   unificados   onde,   em   todo   caso,   as  empresas  e  os  trabalhadores  participam  de  mercados  de  capital  e  de  trabalho  comuns  a  todos.

Page 24: Capitalismo e sociedade

 

24    

econômica ortodoxa ficou presa na armadilha de trabalhar com empresas genéricas e

trabalhadores individuais genéricos, desconsiderando os coletivos historicamente

formados, portanto, sem penetrar na capacidade de desempenho das empresas em suas

condições específicas de mercado. Reconhecendo que a duração das empresas

individuais é apenas um dado circunstancial do sistema capitalista, onde algumas delas

podem ter vida muito longa enquanto a maioria pode desaparecer na concorrência ou

por fusões é preciso admitir que a captação de vantagens de monopólio é do sistema do

alto capitalismo, mas não necessariamente fica restrita a um mesmo elenco de empresas.

Pelo contrário, é uma propriedade estrutural do sistema que as ações individuais dos

capitalistas operam como uma contradição da reprodução do sistema do capital,

acionando modos desiguais de concorrer. Significa levar a tese da destruição criadora a

suas verdadeiras conseqüências, de destruição de empresas e de perdas de capitalistas

em períodos de mudança de composição do sistema produtivo. Ganhos e perdas de

posições de países podem ser tomados como uma extensão desse mesmo quadro.

Esse endurecimento da concorrência se projeta desde o plano da produção

mundializada, mas convive com salvaguardas que as empresas antepõem, através de

suas relações com a esfera política, pelo que se realiza com diversos graus de

intensidade, abrindo espaço para iniciativas do bloco político de poder para se apropriar

de parte dos ganhos de monopólio, mediante participação em empresas ou através de

corrupção. Esta, portanto, é fruto de uma relação espúria mas previsível, de relações de

poder não controladas entre a esfera política e a econômica e que se tornou orgânica ao

sistema político. Neste outro plano a autofagia do sistema ultrapassa o âmbito da

contradição entre o individual e o coletivo para esta outra escala de relação entre o

político e o econômico. A movimentação da esfera política resume o processo do poder,

injetando uma racionalidade formal aparente montada sobre uma irracionalidade

substantiva essencial. A reprodução do sistema político, ou do bloco histórico de poder,

é um fator de imobilização da vida social, portanto, um veículo de atraso,

principalmente por criarem novos vínculos de dependência dentro da classe dominante e

em relação com os trabalhadores, portanto, de bloquear a mobilidade social. O controle

de cargos públicos por parte de partidos políticos, de grupos dentro dos partidos e de

líderes de diversos níveis que derivam sua importância de sua capacidade de articular

recursos. A experiência do Brasil mostra uma notável capacidade de auto-preservação

desse modo de poder que se transferiu do ambiente social do capital mercantil para o do

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25    

capital industrial e fez o caminho de volta desde a esfera política usando os meios

tradicionais de favorecimento de contratos, de empregos a familiares e agora, de

controle da administração de fundos públicos.

2. Formação e contradições das sociedades nacionais Movimentos positivos e negativos

O avanço do capitalismo nos séculos XIX e XX deu lugar a movimentos de

fortalecimento dos Estados nacionais poderosos, ao tempo em que desencadeou

movimentos internos e externos dos países, que levaram a tensões no contexto de

muitos países, à fragmentação de vários deles e ao cerceamento dos movimentos das

pessoas, migrantes e mesmo de não migrantes. Mais pessoas pretendem passar a países

ricos, cujo acesso se tornou penoso e humilhante. O aprofundamento do capitalismo

deu-se sob as formas de controle do capital financeiro, de internacionalização de

capitais sob o escudo de expansão milita e subordinando as condições locais de vida aos

interesses internacionalizados das empresas e determinando usos crescentes e

irreversíveis de energia. A reação à concentração do poder do capital surgiu com

argumentos nacionalistas e regionalistas, sob formas racionais de lutas por emprego e

renda e formas irracionais de religiões, mas em todo caso, mobilizando reações que se

opõem à lógica do grande capital. No essencial, o movimento geral de acumulação e

concentração induzido pelo grande capital mobilizou forças que o apóiam de modo

organizado ou por assimilação e forças que lhe resistem. Revelam-se os traços

contraditórios dos diversos processos que levaram à formação dos Estados nacionais e

às contradições que eles enfrentam. A dificuldade vem de que a mundialização do

capital no último quarto do século XX pôs fim aos projetos de capitalismo nacional

entrevistos pelas revoluções burguesas em países que alcançaram condições econômicas

e políticas para que elas acontecessem e estabeleceu novos parâmetros de

internacionalidade em que todos os países envolvidos na industrialização tiveram que

operar, inclusive a potência norte-americana hegemônica. As transformações do

mercado estão ligadas ao aumento do número das empresas que operam com a lógica do

capital financeiro, portanto, em que a maior agilidade do capital que opera em bolsa tem

os dois aspectos de volatilidade da formação de capital e de vulnerabilidade dos

sistemas produtivos nacionais, com vantagens para os que comandam mercados

Page 26: Capitalismo e sociedade

 

26    

próprios maiores, mas com maior dependência do suprimento de energéticos. Isso

significa que os projetos de economia nacional baseados em internalização de

economias externas perdiam vigência frente ao cálculo de captação de vantagens

nacionais por parte dos capitais internacionais. É um desafio para rever o significado de

desenvolvimento nacional com que se trabalhou desde o fim da segunda guerra

mundial, assim como denunciar as intenções de poder subsumidas na internacionalidade

burguesa.

No ambiente político posterior à Segunda Guerra Mundial apresentou-se como opção

social viável a da revolução burguesa que se afirmava como de um capitalismo

nacional. No entanto, a crise de mudança do padrão de acumulação mundial do capital

da década de 1960, mostrou que esses projetos de capitalismo “nacional” tornaram-se

menos verossímeis e que o objetivo de combinar a extração de mais valia com o de

controle do trabalho enfrentava dificuldades crescentes, em parte pelo peso das

multinacionais e em parte pela fragilidade dos integrantes tradicionais do bloco de

poder. Por isso, a formação de sociedades nacionais pôde parecer uma tendência

inexorável do capitalismo moderno, mas revelou-se como um movimento sujeito a

importantes qualificações no relativo ao continente americano, em relação com as

condições internacionais prevalecentes ao longo do tempo e com as tensões que têm se

formado nos campos sociais dos quais surgiram estes Estados.

Houve frustração, total ou parcial, de projetos nacionais como da República Guaraní e

surgiram novos projetos como os do Panamá e das ex-colonias inglesas. As sociedades

nacionais surgem realmente de projetos qualitativamente diferentes dos das regiões, tal

como ficou evidente na formação polêmica da Argentina. No movimento geral de

formação de sociedades nacionais na América distinguem-se movimentos gerados pelas

contradições do sistema colonial, outros movimentos conduzidos pelos interesses de

burguesias locais, com variadas alianças externas, e, finalmente, movimentos que

decorrem de novo equacionamento da estruturação interna com as demais nações. No

que corresponde aos projetos burgueses de formação nacional, a nacionalidade

corresponde a uma territorialidade do poder econômico representada pela noção de

mercado interno e de protecionismo, ligado a subsídios diretos e indiretos ao capital.

Configuravam-se projetos de poder baseados na formação do poder da burguesia

(FERNANDES, 2007) combinando controle social interno com relações internacionais

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27    

pactuadas, compreendendo subalternidade externa. Os projetos de poder da burguesia

apoiaram-se sempre em pressupostos de prosperidade que significam que haja um

número crescente de compradores com mais dinheiro. Essa prosperidade seria

conduzida pelo capital em ascensão, que aproveitaria sua capacidade de transformar em

negócios a expansão do consumo. Haverá uma relação incidental provável entre esse

movimento de ascensão do capital e o aumento da massa total de riqueza em mãos dos

trabalhadores, mas não há relação orgânica entre o aumento da riqueza total e a

participação remuneração do trabalho na renda total.

No continente americano destacam-se a diferença entre o processo dos EUA e os dos

países latino-americanos e a distância entre os países de grande e de pequeno porte, em

que o fim das colônias se traduziu no aparecimento de um grande número de nações

minúsculas, ainda presas ao manto europeu, que passam ao domínio norte-americano

através de mecanismos de substituição do Império Britânico. Na região em seu

conjunto, a Revolução Cubana é o movimento que se afirmou frente a um conjunto de

fracassos, desde a ascensão de governos socialistas na Guatemala, na Jamaica e na ex-

Guiana Inglesa até as tentativas de Granada e do Panamá. Mas a grande região insular

sempre foi o lugar de inquietação política que se manifestou em diversos momentos,

nos movimentos de independência de Trinidad e de Barbados. Na América Central há

uma longa tradição de luta que culminou com o Sandinismo na Nicaragua, que

compreende uma complexa luta política no Panamá desde Torrijos.

Divisão e unidade

O sentimento de divisão da América, entre a latina e a saxônica, junto com a

identificação da segunda como uma unidade no centro da economia mundial, e a

segunda como uma pluralidade periférica, contribuiu para que faltassem visões de

conjunto da formação dos Estados nacionais americanos. Já fosse porque a própria

noção de Estado nacional vem de origens diversas e representa situações diferentes de

coesão social, ou porque o ambiente externo da formação nacional fosse diferente, as

questões internamente levantadas sobre o Estado em cada país procedem de doutrinas e

posturas incomparáveis no relativo a territorialidade, que passariam à esfera

internacional. Os Estados Unidos da América do Norte surgiram em 1776 como uma

Page 28: Capitalismo e sociedade

 

28    

proposta expansionista13 enquanto os Estados latino-americanos assumiram a base

territorial das anteriores colônias. Assim, é preciso reconhecer os fundamentos coloniais

dos Estados nacionais como parte ativa da constituição dos novos Estados

independentes.

O declínio do sistema colonialista deu lugar a movimentos de conversão de interesses

econômicos locais em núcleos de expressão política que passaram a representar os

grupos sociais organizados das colônias. A passagem do local ao nacional não foi linear

e em vários casos jamais se completou. O aparecimento de projetos de unidade nacional

na América variou, desde os mais prematuros no Chile e no Uruguai até os mais

retardatários, como a Colombia, o México e o Brasil. É um problema que o Canadá

jamais resolveu e evoluiu para um estado multinacional e uma nação pluri-regional. Os

Estados Unidos, pelo contrário seguiram um modelo político bipartite que se

desembocou em contradições de interesses profundas, entre o projeto expansionista da

Revolução Americana perfilhado pelos estados do norte e a economia do sul, periférica

da inglesa. A expansão realizada desde 1870 resultou em um Estado centralista que

combinou a unificação interna com um projeto imperialista iniciado por volta de 1850 14

e confirmado pela guerra com a Espanha em 1895 que desembocou na tomada das

Filipinas. No fim do século XIX definia-se uma política norte-americana de controlar

diretamente o Caribe, onde se completou a construção do canal de Panamá com a

secessão dessa então província da Colômbia. O imperialismo norte-americano ganhou

alento definitivo com a Primeira Guerra Mundial que os tornou protagonistas do cenário

europeu, na qualidade de herdeiros presumidos do Império Britânico, com o qual de fato

concorriam. A concorrência entre os dois já se fazia sentir desde a Guerra de Secessão

norte-americana e esteve acirrada até o início da Segunda Guerra Mundial, em torno da

liderança financeira. Por questionável que seja a legitimidade dessa herança cultural e

política, não há como esquecer que os norte-americanos foram beneficiados pela

identificação do idioma e pela imagem de uma sociedade socialmente aberta com uma

revolução democrática, que atraíram um grande número de trabalhadores qualificados.

A formação do Estado nacional norte-americano ganhou um reforço decisivo com a

                                                                                               13 A Constituição norte-americana não fala em fronteiras senão em expansão segundo necessidades. 14 Em 1847 tropas norte-americanas invadiram o México, que voltaram a invadir em 1856 e em 1854 uma esquadra norte-americana forçou a entrada da Baía de Tóquio. A intenção de controlar o Pacífico é anterior à chegada da estrada de ferro à Califórnia.

Page 29: Capitalismo e sociedade

 

29    

integração do modelo econômico da Segunda Revolução Industrial, em que foram

fundamentais sua composição de recursos naturais e a expansão do seu mercado interno.

Torna-se evidente que falta uma visão sintética do processo econômico norte-

americano, capaz de retratar os saltos qualitativos e quantitativos desse sistema, que se

desdobraram desde o fim da Guerra Civil. Numa grande simplificação, pode-se

considerar que a economia norte-americana de um grande salto após a Guerra Civil,

quando articulou a consolidação do modelo industrial sobre os três portos de Nova

York, Boston e Chicago com a expansão territorial. A seguir que deu outro salto de

mudança de escala, quando combinou esse novo modelo com o acesso ao Pacífico.

Finalmente, quando passou a se beneficiar da constituição do capital financeiro. O

início da Primeira Guerra Mundial já encontrou os EUA prontos para desempenhar seu

papel de potência internacional de primeira linha. Primeiro, será preciso distinguir entre

a expansão do sistema econômico em seu conjunto e a do sistema produtivo, portanto,

registrando o papel alternativo do comércio.

A consolidação do Estado nacional imperialista norte-americano se anuncia como uma

ideologia de confronto com o mundo hispânico, mas tem fundamentos muito anteriores

na ligação do conservadorismo protestante com uma noção de superioridade racial

desenvolvida pelo escravismo inglês. A expansão está justificada por um salvacionismo

que, para surpresa dos latinos, tem respaldo em princípios morais que valorizam

virtudes individuais como norma essencial de vida. A ambivalência entre

individualismo e responsabilidade social seria um traço essencial de uma cultura que

cobra obediência ao poder oficial e toma a hierarquia como um dado, mas que se aferra

a direitos individuais socialmente contraditórios, como o uso de armas. Ao longo de sua

vida como nação independente tem absorvido custos sociais de guerras que seguramente

seriam resistidos em muito outros países.

A política exterior ficou impregnada dessa mistura de boas intenções e efeitos

negativos, quando foi mobilizada para justificar ditaduras tais como as de Trujillo e

Somoza dentre as mais truculentas e simples até os mais sofisticados como Lanusse e

Castelo Branco. Curiosamente, quando comparado com a desfaçatez explicita do

Império Britânico, o imperialismo norte-americano teve que se explicar perante uma

classe média ascendente, que ficou frustrada quando da morte de Kennedy mas que

Page 30: Capitalismo e sociedade

 

30    

elegeu Obama. O sistema de poder norte-americano trabalhou com a presunção de que

poderia manter separados o olhar soteriológico das igrejas que decidem o certo e o

errado através da Bíblia, que justifica sua ingerência no Estado e o olhar pragmático que

se estende desde a filosofia simplificadora de Dewey e James até a ideologia das

business schools. Em seu desenvolvimento o projeto norte-americano revelou um

surpreendente simplismo frente à intelectualidade européia, mas teve a capacidade de

atingir o sistema educativo da burguesia européia, fazendo-a copiar os mesmos padrões

de eficiência mecânica e reducionismo ideológico.

O final do século XX trouxe algumas surpresas no relativo ao desempenho do sistema

mundializado, no relativo a perda de controle sobre as principais economias periféricas.

O mundo ficou irremediavelmente fragmentado e o que pareceu a novidade pós-

moderna é um retorno às condições de divisão entre cristãos e não cristãos e entre os

diversos tipos de cristãos. A exacerbação das divisões recorre a argumentos religiosos,

tal como na Baixa Idade Média, quando o alinhamento dos grupos urbanizados exigia

uma identificação ideológica além do escopo político indireto (Le GOFF, 1986).

O novo pós-modernismo significa uma ruptura com o sentido de totalidade da teoria,

cujas raízes deixam de ser relevantes e cedem espaço para a pluralidade incontrolada do

rizoma e para o labirinto. A superação da modernidade “clássica” mundo industrial não

é a afirmação de um sistema novo, limita-se a mostrar a incongruência do anterior. Mas

só mostra até certo ponto, porque só atinge as manifestações conseqüenciais da

modernidade, isto é, da produção até o consumo e não se envolve com os processos que

vão desde a necessidade do capital de se reproduzir até o controle do consumo. Isso fez

do pós modernismo uma crítica superficial da sociedade do capital, por;em jamais uma

crítica orgânica do sistema do capitalismo. A estética do conflito tomou o lugar da

ontologia da realidade com suas derivações na crise de finalidade e nas identidades

flutuantes dos participantes temporários e dos engajamentos parciais. Alguém decide

morar na Itália ou em Portugal e sente-se solidário com políticas ambientais, mas não

frente aos problemas de desemprego ou com a queda de qualidade da educação formal

como tampouco italianos e portugueses se solidarizam com a crise social transferida

para o sistema educativo. O pós-modernismo se apresenta como um programa de

visões parciais em que a noção histórica foucaultiana de ruptura é substituída por uma

pulverização incidental.

Page 31: Capitalismo e sociedade

 

31    

Sobre essa trilha de aplicação do esforço de quebrar o enigma de sistemas atingidos por

interrupções de processos criadores, torna-se necessário rever a formação do sistema

mundial de hoje com suas novas desigualdades entre nações capazes de crescer mais e

nações que enfrentam dificuldades crescentes para continuarem a crescer. Não há como

ignorar que a crise mundial do capitalismo toma certas direções nacionais e tende a se

concentrar em países cujo mercado não cresce ou cresce menos que o necessário para

reproduzir o capital atual 15. Por isso, é preciso rever a formação do sistema desigual

ultra-moderno, distinguindo os processos que são introjetados nos sistemas nacionais e

os que se fortalecem como partes do mundo da internacionalidade. Não que os sistemas

nacionais sejam diluídos pelos internacionais, mas porque se desenvolvem sobre os dois

planos e deixam como marca principal a ligação entre os dois.

Construções interrompidas ou processos constrangidos?

A hipótese que as sociedades periféricas no movimento mundial de acumulação são

construções inacabadas, sugerida por Raimundo Faoro, tacitamente subentende que há

padrões fixos de progresso – estabelecidos pelas nações-do-mar-do-norte – que

permitem classificar todos os demais. As nações periféricas seriam projetos inacabados

de países ocidentais. A responsabilidade de insuficiências e inadequações seria deles. É

uma visão tipicamente weberiana, que contrasta tipos ideais com situações reais. Uma

perspectiva histórica crítica tende a separar processos e responsabilidades e a tomar

como decisivo o papel do movimento do poder central, com seus aspectos de

concentração de poder econômico e de modulação política do poder em seu conjunto.

No final do século XX a nova teoria ortodoxa, que já se converteu em teoria monetária

do capital, foi posta diante de uma nova realidade da economia mundial que é uma nova

segunda revolução industrial, de maior escala que a anterior, agora conduzida pela

ascensão de países periféricos à condição de potencias mundiais. Está claro que a

ascensão da China, da Russia e da Índia a essas posições não é somente uma questão de

escalas de mercado nem de vantagens de baixos salários, senão de outros valores no

relativo a qualificação, controle de tecnologia e controle do capital financeiro. O Brasil

                                                                                               15 O atual rebatimento da crise mundial na Europa do sul, que faz sua grande vitima na Grécia sinaliza uma divergência dos rumos dos países que aponta ao fim do euro, a moeda alemã transnacionalizada.

Page 32: Capitalismo e sociedade

 

32    

entra nesse contexto ainda sem resolver essa equação básica, precisando superar

tendências dispersivas e de alargamento de desigualdades sociais.

Page 33: Capitalismo e sociedade

 

33    

3. O contraponto interno: a teoria do alto capitalismo e do capitalismo tardio

O lastro da teoria grandiosa Na perspectiva de uma leitura crítica da teoria social é preciso partir aqui da premissa de

que a teoria econômica, como toda a teoria social, surge em resposta de problemas da

realidade, já seja para resolvê-los ou para evadi-los, segundo os interesses que

representa de modo explícito ou velado. A teoria sempre carrega uma intencionalidade

que, por sua vez, reflete interesses concretos. Como mostrou Godelier (1966), o

tratamento dos problemas de método em economia exige uma decodificação histórica

da teoria que envolve, necessariamente, um exame da relação entre a racionalidade e a

subjetividade.

Responder ao desafio da teoria resulta em um programa de trabalho sem final feliz

garantido, que termina por encarar o problema central, hoje mascarado, do

desenvolvimento. A teoria econômica se formou gerando sucessivas respostas às

transformações do sistema produtivo, ao qual olha através de seu aspecto econômico. O

centro do debate teórico é a teoria do valor que é a pedra angular da teoria do capital,

isto é, de como se acumula valor socialmente produzido. Há uma escolha entre discutir

valor como tal ou através de seu reflexo em preços; e há uma escolha subseqüente entre

tratar como o trabalho cria valor socialmente aceito ou tratar das condições em que as

pessoas, na condição de representantes do capital ou na de trabalhadores, promovem a

produção ou são engajadas nela. A primeira destas opções traduziu-se na teoria do valor

trabalho e a segunda formalizou-se como teoria dos preços. A segunda disjuntiva deu

lugar a uma teoria do capital que trata com a heterogeneidade do capital e a uma teoria

do capital homogêneo, que é o mesmo que dizer que é uma teoria monetária do capital.

Admitir a homogeneidade significa aceitar uma perfeita equivalência entre os diversos

ativos integrantes do capital, ou ainda, que o valor social não depende do modo como o

capital é usado na produção. Não há dúvida que os rumos da teoria do capital dependem

dos da teoria do valor e que esta recebe diferentes leituras das principais correntes de

pensamento. Com outra denominação que não a de oposição formal entre a teoria do

valor trabalho e a da utilidade marginal, focaliza na totalidade do capital, com a

heterogeneidade do real e a expressão financeira do dinheiro capital.

Page 34: Capitalismo e sociedade

 

34    

Em alguns momentos a teoria tratou com o processo social em sua totalidade, mas em

muitos outros momentos focalizou em aspectos ou em partes dessa realidade. A

totalidade apareceu como uma situação como em Walras ou como a cara atual de um

processo histórico, tal como em Marx. A adoção de estratégias simplificadoras tem sido

uma prática generalizada, que por vezes tem o objetivo de buscar especificidades, mas

que, em muitas outras, constitui uma manobra lógica cuja sustentação não fica clara ou

simplesmente não é satisfatória. Se no contexto da teoria se pode distinguir o arcabouço

conceitual e o aparelho analítico, deve-se, por extensão, distinguir a consistência formal

e a consistência material da análise, ou sua pertinência frente aos processos e as

condições da realidade. É sempre uma teoria que é um corpo teórico e não é um

conjunto de teoremas, em que se pode agregar ou retirar um teorema sem modificar o

poder interpretativo do corpo teórico. Os eixos que ligam a totalidade e os aspectos e o

tempo e o espaço são as categorias da reflexão teórica que dão a ordem e o significado

do discurso teórico do mundo social. Os diferentes níveis de abstração em que se

desenvolve o discurso teórico são situações interdependentes do movimento dialético

do pensar teórico, tal como maneja Marx e não são quadros redutíveis a uma situação de

generalizações 16.

A percepção do aspecto econômico da realidade definiu-se frente à materialidade da

primeira economia mercantil17, justamente quando o reconhecimento da diferença entre

a esfera pública e a privada e o reconhecimento da internacionalidade essencial da vida

econômica revelaram o significado da economia como fonte de poder. Os grandes

                                                                                               16 As implicações mais profundas de dialética da análise social foram levantadas por Marx mas se tornaram uma excentricidade para a análise ortodoxa, que considerou ser opcional ignorá-la, desde Böhm-Bawerk a Keynes. Para estes autores o mundo do trabalho não tem uma personalidade independente, pelo que a análise do emprego é apenas reflexa da do capital. A análise da acumulação na perspectiva do trabalho tem que considerar não só a relação atual entre emprego e renda como as condições de acesso a renda, que incluem a expectativa de vida útil profissional e as tendências inerentes aos processos de qualificação dos trabalhadores. 17 Uso a expressão primeira economia mercantil para designer o sistema mercantil da antiguidade, que atingiu seu apogeu no Império Romano e que combinou uma comunidade política com um sistema de compensações de compras, tendo como eixo o núcleo central do império, que foi o grande centro comprador do sistema. Entendo que o sistema mercantil do Império Bizantino jamais alcançou a capilaridade do Império Romano do Ocidente, mesmo tendo sido um desdobramento dele. Veremos que a primeira economia mercantil foi superada por uma economia mercantil madura, que se formou desde a alta Idade Média e que se expandiu com um uso sistemático de dinheiro. Toda a produção mercantil apoiou-se numa exploração profunda da força de trabalho, já fosse na forma de apropriação da escravidão ou na de desvalorização dos trabalhadores, que caracterizou a servidão, tanto nas colônias antigas como nas da América. O grande diferencial entre a produção mercantil antiga e a dos Tempos Modernos foi o modo de uso de dinheiro, que passou a ser de dinheiro capital.

Page 35: Capitalismo e sociedade

 

35    

achados de Aristóteles sobre economia situam-se na relação entre a definição das

esferas pública e privada e a da medida de valor a partir de referências do cotidiano da

esfera privada que se projetam à configuração da esfera pública. A esfera pública da

vida econômica estaria constituída das ações de sujeitos privados legitimados.

Registram-se os atos dos homens livres e o trabalho dominado, das mulheres e dos

escravos fica subsumido.

Evidentemente, ficou um vazio no relativo à compreensão do mundo do capital

mercantil, que precisa ser esclarecido para poder-se avançar na explicação do mundo do

capital industrial. O mundo da produção mercantil se estruturava sobre o controle

irrestrito da força de trabalho, combinando escravidão com controle militar. As

possibilidades de expansão da produção mercantil dependeriam de sua capacidade de

reincorporar valor à produção, gerando maior capacidade de produzir, mas o controle da

força de trabalho é um processo social que se torna contraditório ao desenvolvimento do

sistema, porque inibe o desenvolvimento do componente de valor – isto é, de

qualificação dos trabalhadores – da composição do capital e limita o alcance social da

tecnologia. Desde então, a escravização será um divisor de águas na configuração do

sistema produtivo, onde a relação entre a expansão do mercado e a inclusão social cruza

com a relação entre o desenvolvimento de tecnologias e o de modos de uso das técnicas

incorporadas. Como disse Marx, a conversão de trabalhadores dependentes em

trabalhadores contratados significa a liberação de forças sociais que realizam o

incentivo para consumir mercadorias18 em vez de produtos da esfera doméstica. A teoria

econômica precisou resolver o primeiro problema de explicar a formação dessa oferta

previsível de mercadorias padronizadas e em seguida de resolver os problemas

operacionais de medir os custos sociais dessa oferta e os preços a que ela pode ser

demandada. A indagação da teoria abrange as condições sociais da produção, pelo que

se realiza sobre o eixo produção-distribuição, tal como trabalhado por Ricardo e Marx e

jamais pela separação da teoria da produção como foi empreendido pelos marginalistas.

A teoria da produção depende de como se resolvem os problemas de definição de custos

fixos e variáveis, o que significa, de como se introduzem as escalas de tempo no ajuste                                                                                                18 Mercadoria será tudo que é produzido para ser vendido, mas para vender é preciso ter um sistema de comercialização, pelo que é o que é vendido por meio do sistema capitalista de produção. O conceito de mercadoria é inseparável do de valor de troca, mas é preciso introduzir uma distinção entre o valor de troca em produção localmente definida e em produção capitalista que se dirige a um mercado que transcende o local. A substituição de valor de troca local restrito por valor de troca irrestrito internacional é a mola central da formação da produção capitalista unificado.

Page 36: Capitalismo e sociedade

 

36    

de oferta e demanda. Parafraseando – e negando – Say, pode-se dizer que a atual oferta

cria sua própria demanda, porque a procura anterior justificou a oferta atual. Como, em

todo caso, a oferta está composta de mercadorias realizadas em diferentes períodos de

produção, a possibilidade de equilíbrio dessa oferta temporalmente desigual com uma

demanda formalizada em um único período é remota ou impraticável. Será preciso rever

o conceito de equilíbrio, entendendo que o equilíbrio em curto prazo na versão de

Marshall - Walras – Wicksell é sempre uma simplificação 19. Se por equilíbrio se

entende uma situação de equivalência entre oferta e demanda ela tem que considerar a

composição de uma e da outra, pelo que, tem que admitir que a oferta está constituída

de bens produzidos sobre diferentes períodos e com duração variada, ao tempo em que a

demanda se realiza sobre prazos de compra, não podendo ser reduzida a uma demanda

unificada instantânea. Noutras palavras, o curto prazo contém uma variedade de prazos

que só se revelam quando se explica o prazo do fechamento dos negócios. Assim, o

equilíbrio instantâneo é um pseudo-equilíbrio, que deve ser substituído por um

equilíbrio real que considera tempo.

O paradigma do equilíbrio ocupa um lugar especial na formação da teoria que exige um

esclarecimento preliminar. A noção de equilíbrio entra na teoria através da visão

macroeconômica, possivelmente a dos Fisiocratas, representando uma relação causal

dinâmica entre o que se produz e o modo como o produto se distribui. Observe-se que

no Tableau Économique a distribuição compreende a monetária e a dos produtos in

natura. Há um princípio de equilíbrio entre lucros e salários que define aquela

remuneração mínima do capital que justifica o investimento. Em Ricardo isto

fundamentou a hipótese do estado estacionário e com Marx trata-se do equilíbrio

instável que caracteriza um sistema progressivamente mais instável, tendencialmente

sujeito a crises de superprodução e de desajustes de composição entre a reprodução do

capital aplicado e a dos novos investimentos. Trata-se de equilíbrio ao nível do sistema

produtivo em seu conjunto e não só de equilíbrio monetário. O foco no equilíbrio

                                                                                               19 É preciso admitir que há uma questão pendente relativa à leitura de Marshall projetada pela economia ortodoxa, que se limita ao aspecto descritivo de análise marginalista e ignora os elementos contraditórios da análise de Marshall, no que ela se refere a situações transitórias e a deslocamentos graduais, especialmente a equilíbrio temporário, trata o mercado como um ambiente de negócios e vê o equilíbrio sempre como uma situação transitória. Uma revisão da obra de Marshall mostra que ele tem maior sensibilidade a mudança que Keynes e que sua opção pela economia apolicada representa uma teoria industrial da produção comparada com a teoria monetária da produção apresentadapor Keynes.

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37    

monetário – central para a corrente keynesiana – é uma indiscutível redução temática

frente à proposta dos Clássicos.

A noção de equilíbrio descobre a necessidade de um esclarecimento da dimensão tempo

como ordem histórica dos acontecimentos. O questionamento do tempo está

solidamente instalado no fundamento filosófico das ciências sociais através da pesquisa

categorial de Kant e da formação existencial do conhecer em Hegel. Em seus inícios a

Economia Política, com Adam Smith, enfrentou os problemas relativos à ligação entre

os fundamentos conceituais e o manejo operacional do tempo. O marginalismo

construiu uma teoria formalmente sofisticada, alicerçada em estática, em ausência de

tempo. Descartou o tempo quando a teoria ainda se pautava pelo paradigma da Física

Clássica, mas quando o desenvolvimento do capitalismo obrigava a reconhecer as

diferenças entre o tempo inserido nos diversos setores da produção e quando já estavam

claras as diferenças entre o previsível e o imprevisível, bem como se definiam novos

parâmetros de uniformização da medição de tempo. Será, portanto, inevitável inferir que

o progresso formal correspondeu a um retrocesso conceitual da teoria ortodoxa. Isto

significou simplesmente que a “grande” teoria econômica simplesmente ignorou o

tratamento do tempo dado pela filosofia de Hegel. Ora em Hegel o tempo é o da ordem

da criação, que comanda o processo da vida. Para Hegel a ordem do tempo é uma ordem

viva, que pertence ao mundo da praxis. O tempo conta pelo que há nele que pode ser

imposto pelo passado ao presente e que é o projeto de futuro contido no que está em

curso. Esse enquadramento do tempo pode ser a ordem que se projeta do passado ao

futuro, ou que pode ser uma nova ordem que surge e modifica as condições de

continuidade da anterior. A vida acontece em tempo e a ciência da vida social não

poderia se separar da filosofia do mundo vivo20. Por isso o tempo social está aderido á

práxis e difere do tempo do mundo natural em que não há trabalho.

Mas o tempo é essencial na análise de Marx, para quem o sistema capitalista de

produção consiste em uma multiplicidade de movimentos com diferentes velocidades e

durações. A percepção social do tempo muda em consonância com os modos práticos de

uso de tempo para satisfação própria ou para mercantilização. O significado social dos

usos do tempo representa o conflito de classes em torno da capacidade do capital de

                                                                                               20 Ver a leitura de Hegel feita por Jacques d´Hondt em seu Hegel filosofo do ser vivente

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38    

controlar o tempo ou de ter que se adaptar a ele. Os diferentes capitais aplicados

representam diferentes modos de uso de tempo do processo produtivo, do uso de

dinheiro capital e de controle da força de trabalho. O modo operacional da concorrência

se concretiza em controle do tempo de produção e as estratégias de resistência dos

trabalhadores se definem em termos de defesa de usos de seu tempo não controlado por

seus contratos de trabalho.

O apogeu do marginalismo se identifica com o imperialismo naquilo em que ele é

motivado pelo ideal de uma unificação do sistema de análise econômica para a

unificação política do mundo econômico. Simplificando um pouco, pode-se pensar que

o marginalismo foi a doutrina econômica do imperialismo europeu, que foi contestada

pela esquerda pelo socialismo e pela direita pelo keynesianismo, onde a doutrina

econômica do socialismo não ficou restrita ao socialismo real, mas o keynesianismo foi

a resposta burguesa da crise do capitalismo. A seguir a corrente neoclássica é a doutrina

da supremacia norte-americana, com sua subordinação da esfera do capitalismo e a

corrente do desenvolvimento econômico é uma contestação do poderio norte-americano.

Logicamente, todos esses sistemas tiveram seus desdobramentos e contra-correntes e o

marginalismo europeu teve influência decisiva na formação das correntes neoclássicas

norte-americanas, assim como uns e outros exerceram – e exercem – uma influência

profunda no pensamento econômico que aparece nas nações emergentes,

principalmente, através da cooptação de suas elites.

A transformação de uma pluralidade de sistemas de produção mistos em sistemas

unificados pelo critério de lucro individual do capital tornou necessária uma teoria que

explicasse a continuidade do valor socialmente criado, com o que impôs o objetivo de

contar com uma teoria do valor e do capital. Este seria o alicerce de toda uma

construção teórica que deveria acompanhar as transformações do sistema produtivo, em

sua extensão e em sua complexidade, desde as teorias do comércio às da produção

industrial avançada. Para cumprir seu papel, a teoria teria que registrar as

transformações do sistema produtivo, isto é, teria que manter sua representatividade

frente à realidade social da economia. Precisamente, aí se encontra um problema

fundamental da teoria, que é o de definir sua base histórica de referência. Nesse

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39    

contexto situa-se a proposta de Maurice Dobb21 de integrar, ou de não separar, a teoria

do valor e a da distribuição, no que converge com a revisão da distribuição feita por

John Maurice Clark22. De fato, toda vez que se transcendem os limites do curto prazo, a

distribuição é peça fundamental na explicação da dinâmica, tal como aparece na

passagem da reprodução simples para a reprodução ampliada em Marx. Se os modos de

crescimento e as formas de organização variam no tempo e no espaço a teoria terá que

registrar quaisquer variações na relação entre a formalização teórica e a capacidade

explicativa da teoria.

No relativo à teoria do capital propriamente dita, vê-se que sobre as duas grandes linhas

de uma abordagem histórica (Marx) e de outra positivista ou neo-kantiana? 23(Böhm-

Bawerk) há um desenvolvimento conceitual que segue linhas cada vez menos

intercomunicadas, que enfrentam problemas semelhantes colocados pelo

desenvolvimento do sistema de produção, mas que divergem, essencialmente, no

relativo a três pontos, que são: (a) a heterogeneidade do capital ou a homogeneidade de

sua representação financeira; (b) a endogeneidade da moeda ou sua função como

reserva de valor; e (c) o reconhecimento da existência de conflitos de interesse,

principalmente representados por conflitos de classe, mas ligados ao problema essencial

de controle da força de trabalho por parte dos capitalistas. A trajetória do debate sobre

capital é muito extensa mas compreende discussões superficiais junto com

questionamentos profundos e com variada capacidade de influir no rumo da teoria. No

campo böhm-bawerkiano destaca-se Lachmann com seu foco em aspectos estruturais.

No campo keynesiano a maior contribuição sem dúvida é de Joan Robinson, que

assume a tarefa improfícua de estudar a acumulação num ambiente de equilíbrio a curto

prazo 24, apesar de investir na análise da heterogeneidade. No campo marxista, as

principais contribuições são as de Rosa Luxemburgo e de Ernest Mandel, mas ficaram

aquém da proposta teórica de Marx, que envolve a relação entre a esfera econômica e a

política e que contempla uma transformaçã0o imanente do sistema produtivo.

Tentativas de mapeamento deste debate, como a de Harcourt e Laing (1967) ficam auto-

                                                                                               21 Maurice Dobb, Theories of value and distribution 22 J.M.Clark, Distribuição, 2323 É preciso ressaltar a diferença de origem entre o empirismo inglês de Locke a Marshall e o positivismo austríaco, que tem conseqüências decisivas no tratamento do relativo a racionalidade. A pretensão de Milton Friedmann de representar a linha de trabalho de Böhm-Bawerk desconhece a raiz filosófica dessa opção de método, em sua raiz kantiana. 24 Joan Robinson, The production function and the theory of capital,(1953-1954)

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40    

limitadas ao diálogo entre ingleses e norte-americanos, que não sai do “círculo de giz

caucasiano” da perspectiva burguesa da economia.

Uma observação preliminar é que a teoria mais avançada do capital é mesmo a do

próprio Marx. Ao reincorporar a dimensão tempo situada em história, torna-se

inevitável considerar os desdobramentos da teoria do capital frente aos problemas

representados por alterações de composição do capital. Logicamente, esses problemas

são aprofundados pelos efeitos cumulativos do acelerador da despesa, que funciona

como transmissor de renovação tecnológica. A teoria do capital não pode, portanto, se

omitir de considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se

apropriar de novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia

keynesiana consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se

generaliza de modo homogêneo, ou que se explica por razoes exclusivamente técnicas e

da rentabilidade de cada técnica e não do conjunto alterado pela entrada e saída de

técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso técnico na

determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade na renovação de

técnicas que não é compatível com a pluralização inerente ao desenvolvimento da

ciência. Um ajuste na teoria econômica da tecnologia exige hoje que se substitua o

tratamento genérico do progresso técnico por outro historicamente qualificado.

A urgência da temática estabelece as prioridades de método. Este é um ponto que supera

os aspectos imediatos da disputa entre a rigidez de uma abordagem normativa e a

fluidez de uma análise histórica e que se apresenta como o problema de método. Esses

elementos apontam a uma problemática básica de método que é respondida de diversos

modos pelas várias correntes, mas onde sempre há opções acerca de como organizar a

análise econômica. A teoria teve que optar entre condições de análise instantânea e de

curto prazo, generalizando para o curto prazo condições que só se aplicam plenamente

no ambiente atemporal da análise instantânea, tais como a suposição de custos fixos

invariantes e a de falta de diferença entre salários nominais e salários reais. O desafio da

teoria seria tanto maior quanto fosse sua aspiração a refletir a totalidade do sistema

produtivo, com sua estruturação e seu modo de mudar. Ao revisar o movimento geral da

teoria percebem-se alguns focos de atenção e alguns fios condutores do raciocínio

teórico, que permitem pensar em termos de uma progressão da teoria, cuja cobertura

temática e cuja densidade conceitual variam, mas que, em momento algum, desconhece

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41    

o caminho já percorrido. Os espaços de individualidade, os interesses coletivos

aparecem na propriedade privada, na formação do valor da troca, no controle da força

de trabalho e no capital acumulado. Na verdade, significa que a formalização econômica

surge de uma percepção da totalidade social e que, ao ser acionada pela análise, dá lugar

a outra percepção da articulação do plano econômico com o institucional. Ao avaliar a

explicação econômica

Por isto, será preciso começar a introduzir neste raciocínio uma visão crítica da

macroeconomia de hoje, no que ela representa uma ruptura dessa visão de totalidade e

passou a depender de simplificações que não se sustentam na prática. Apresento de

modo preliminar duas críticas à suposta igualdade entre poupança e investimento, onde

a primeira surge das incertezas da realização do não consumo em dinheiro e deste em

capital; e a segunda crítica surge da pluralidade de períodos de poupança e dos tempos

de realização do investimento. Ambas, portanto, são inspiradas por uma condução

realista do tempo na visão do processo de produção, como particularização da situação

do tempo na vida social em geral. Os problemas de divisibilidade do tempo, que já

tinham sido colocados pela análise marginalista, reaparecem por conta do

escalonamento dos investimentos segundo seu momento inicial e seu tempo de

maturação. O tempo passa a ser uma referência que combina a variável monetária – a

taxa de juros – com a produção industrial. Este problema foi enfrentado pela análise

marginalista numa perspectiva consistentemente simplificadora, que caracterizou as

propostas de Hicks e Hansen bem como as de Hecksher e Olin para a análise

internacional. Em seu epicentro britânico a teoria moveu-se numa perspectiva

epistemológica empirista que fez caso omisso de quaisquer diferenças de classe,

portanto, sem considerar rupturas de comportamento de consumo, nem de opções de

investimento.

A mais notória exceção no campo da economia ortodoxa é Pigou, que entretanto dá uma

leitura conservadora ao tema da renda dos trabalhadores, propondo que as forças do

mercado levam a pleno emprego em longo prazo. É o contrário da teoria da exploração,

que vê uma persistente compressão da renda dos trabalhadores, atingida pelo poder do

capital de conduzir a extração de mais valia através do controle da mais valia relativa. A

identificação da questão social com a disputa salarial é uma grande simplificação que

desconhece as limitações relativas a ingresso no mercado de trabalho e a condições de

Page 42: Capitalismo e sociedade

 

42    

entrada e de permanência no mercado de trabalho 25. O salário nominal é apenas uma

sombra do salário real, que deve ser julgado pela coleção específica de bens e serviços

que ele pode comprar e não como um montante abstrato. Ora, tal elenco de bens e

serviços à disposição dos detentores de salários muda, segundo o estilo de

transformação da economia nacional a que eles pertencem e segundo os preços relativos

das mercadorias. Daí, a leitura do problema social dos salários configura dois campos

temáticos que se tornaram essenciais na superação da teoria marginalista,

respectivamente, o eixo salários – distribuição da renda e o eixo tecnologia-formação de

capital. O grande problema que se apresentou a seguir foi que o questionamento

keynesiano do marginalismo ortodoxo – denominado por Keynes de clássico – foi feito

em termos de uma explicação monetária da produção, isto é, sobre a suposição de que

os movimentos da esfera monetária são contínuos com os da produção industrial, pelo

que a determinabilidade da esfera financeira equivale a uma determinação da produção.

A suposição de que a moeda é apenas “um ativo financeiro usado como meio de

troca”26 descarta que o valor social da moeda esteja associado ao papel dela na produção 27, tanto como reserva de valor, como viabilizadora da diversidade de matérias primas e

de produtos como por sua capacidade de representar o capital. Ao excluir estas

qualificações a teoria monetária da produção – tanto a neoclássica como a keynesiana -

se coloca exclusivamente como uma teoria da representação dos interesses do capital

através de sua forma mais depurada que é a teoria da esfera financeira.

Dados estes argumentos, torna-se inevitável considerar os desdobramentos da teoria do

capital frente aos movimentos de alteração de composição do capital que surgem de sua

reprodução. Logicamente, esses problemas são diferentes segundo o estilo de

desenvolvimento da economia e segundo o acelerador das despesas inerentes a esse

desenvolvimento, que funciona como transmissor da renovação tecnológica. Não se

trata somente de passar da macroeconomia simples de valores agregados para os

problemas de coerência interna do sistema – que seria o território da análise de Leontief

                                                                                               25 A comparação da renda atual com a renda total das pessoas considerando sua expectativa de duração de sua vida profissional. A expectativa de duração da vida profissional tem uma conotação adicional como indicativo da qualidade de vida que se tem durante os anos de vida ativa. 26 Fernando Holanda Barbosa, O valor da moeda e a teoria dos preços dos ativos, 2005. 27 Karl Marx, Grundrisse, vol I, 1984. O tratamento da moeda em Marx é parte essencial da teoria do capital e encontra-se mergulhada na relação entre a reprodução simples e a reprodução ampliada do capital. Aparece em forma conceitual preliminar nos Manuscritos econômicos e filosóficos de 1844, reaparece como um discurso detalhado nos Grundrisse e tem seu pleno papel no movimento do sistema capitalista em O Capital.

Page 43: Capitalismo e sociedade

 

43    

– senão de ligar as alterações ao rumo da composição do capital, numa combinação de

fatores em que a renovação tecnológica aparece como uma variável dependente das

expectativas de demanda. A teoria do capital não pode, portanto, se omitir de

considerar as diferenças de condições estruturais de capacidade para se apropriar de

novas tecnologias. Entendo que o principal ponto fraco da macroeconomia keynesiana

consiste em presumir que o progresso técnico seja um movimento que se generaliza de

modo homogêneo, que se explica apenas por motivos exclusivamente técnicos e da

rentabilidade de cada nova técnica e não do conjunto constantemente alterado pela

entrada e saída de técnicas. A invocação de Joan Robinson de uma função do progresso

técnico na determinação da acumulação de capital depende de uma linearidade da

substituição de técnicas que não se encontra na realidade do mundo da economia.

O conflito ideológico sob a neutralidade

Os economistas ortodoxos preocuparam-se muito com elaborações elegantes de

problemas secundários, problemas estes que desviam a atenção de seus

discípulos das duras realidades do mundo moderno e o desenvolvimento da

argumentação abstrata foi muito além de qualquer possibilidade de verificação

empírica. Joan Robinson

O debate entre as correntes keynesianas e as neoclássicas ocupou as atenções da

economia oficial, onde a expressão Economia Política passou a acolher trabalhos

marginalistas e a reunir subcorrentes de pensamento mecanicista que continua aderido

ao formalismo da chamada “síntese neoclássica pós keynesiana”. Esta, no essencial,

continua andando em círculos sobre as idéias de Walras – Pareto – Marshall,

modernizada pela linguagem de Samuelson, Solow e outros. O aparelho neoclássico

está constituído de artefatos de análise que se agregam mediante procedimentos de

lógica proposicional, com o pressuposto que essa agregação não cria

incompatibilidades. A neutralidade axiológica, importada da sociologia de Weber, tem

um lugar essencial nesse conjunto.

A referência de neutralidade divide positivistas e historicistas e é um fundamento

essencial da sociologia e da economia positivista. Em seu desenvolvimento, a teoria

Page 44: Capitalismo e sociedade

 

44    

marginalista em economia, que veio a constituir o núcleo central da ortodoxia

econômica, adotou uma postura epistemológica que antecedeu ou que aderiu ao modo

positivista de teoria. O problema de tratamento da neutralidade, isto é, do papel da

ideologia na teoria, apresenta-se em economia de modo diferente ao de outras ciências

sociais porque envolve uma escolha de método que condiciona o tipo de pesquisa e de

resposta que se pode obter. A produção de teoria é um trabalho que é realizado

principalmente nos meios acadêmicos, carregando as idiossincrasias dos círculos

universitários com suas ligações entre universidades e com ligações com instituições

patronais ou com partidos políticos e sindicatos. Carrega as identificações e os

compromissos de classe e culturais com que se dedicam ao estudo da teoria e que

raramente se expõe. A construção de um aparelho teórico reflete sempre referências de

interesses que se projetam em objetivos que não podem ser ignorados. Assim, não se

trata apenas de explicitar uma tendenciosidade como colocou Myrdal (1968), senão de

trabalhar sobre essa fundamentação de interesses, para extrair o significado da teoria.

Não há porque supor que todos os envolvidos na produção de pesquisas ou na de textos

teóricos obedecem a interesses econômicos e políticos imediatos, mas tampouco há

como supor que o trabalho teórico esteja imune a preceitos e preferências estabelecidos

no corte civilizacional em que se situa a teoria. A teoria dos verdadeiros Clássicos 28 foi

produzida por pensadores independentes, enquanto a teoria dos marginalistas foi quase

toda construída por professores que representaram um pensamento de elites

comprometidas com a sustentação do sistema de poder liderado pelo Império Britânico

e corroborado pela ascensão dos Estados Unidos. Com seu grande contraponto

austríaco, por sua vez representando a ideologia imperial da Europa central, o sistema

de pensamento marginalista caminhou na direção de uma integração progressiva,

conduzida pelas contribuições de Wicksell e Walras e com a síntese de Marshall. A

dissidência de Myrdal, marcada pelo Equilíbrio monetário(1932) precedeu criticamente

a ruptura analítica de Keynes e demarcou uma linha de pensamento que restaura a

relação entre o modo de produzir e a ordem do tempo, mas o sistema caminhou para

uma nova ortodoxia, que seria uma recomposição neo-marginalista, indevidamente

auto-denominada de neo-clássica, que veio à luz através da combinação progressiva dos

trabalhos de Hicks, Hansen, Samuelson e Solow. Os argumentos que levaram Hicks a                                                                                                28 Refiro-me aos economistas de Adam Smith a Marx que procuraram uma lei geral explicativa do funcionamento do sistema de produção, descartando como imprópria a designação dada por Keynes e Hicks que usam essa expressão para se referirem aos autores da teoria marginalista especialmente a Marshall.

Page 45: Capitalismo e sociedade

 

45    

considerar que trabalhava numa perspectiva de retorno aos clássicos significava

simplesmente que ele aceitava a designação de Keynes, que considerava Marshall um

clássico e que em momento algum questionou a relação entre a estruturação da teoria e

a do sistema produtivo.

A emergência de uma consciência social ativa 29 relativa aos problemas sociais

enfeixados sob a designação geral de desenvolvimento revela o contexto de conflitos

que permeia o mundo social. O conflito entre racionalidade e irracionalidade precisa ser

qualificado, distinguindo-se a racionalidade superficial ou aparente da essencial ou

substantiva, onde as condições efetivas de racionalidade são antecedentes necessários

que ligam os movimentos de infra-estrutura com os de superestrutura. Volta-se ao

questionamento de Myrdal sobre sentido de finalidade, contrastando a irracionalidade

da acumulação com a emancipação da condição humana. Conflitos e ajustes acontecem

no contexto de uma totalidade social que se transforma continuamente onde, portanto,

muda o modo de participar dos agentes envolvidos. Se a teoria econômica trabalha com

pressupostos de comportamento tem que situar um modo de agir na trajetória de

formação do mundo social, reconhecer seu estatuto histórico e incorporar as mudanças

como partes integrantes das referências que ligam os movimento s de infra-estrutura

com os de superestrutura. A opção do sentido de finalidade responde pela

fundamentação ideológica da teoria. A quais interesses ela serve, de modo deliberado ou

por adesão passiva? As contribuições à teoria integram correntes de pensamento ou são

manifestações isoladas que passam a refletir indagações já representativas de interesses

socialmente significativos. Em todo caso correspondem a pontos de vista historicamente

situados. Assim, numa revisão secular dos encaminhamentos da teoria econômica pode-

se argumentar que o objetivo de encontrar leis gerais explicativas do funcionamento do

mundo social corresponde a um determinado momento da constituição de uma ordem

mundial que combinou o modo de organização dos impérios coloniais modernos com a

produção industrial, quando os interesses dos grandes capitais se alinharam com os

projetos de poder político da burguesia européia ascendente. Naquelas condições, a

racionalidade da ordem no plano nacional passou a ter que coincidir com a ordem                                                                                                29 Distingo consciência social ativa como aquela que se identifica com modos de agir, isto é, que não se fecha na esfera da subjetividade. Seu contrário é uma consciência social passiva, que representa a adaptação do agir social a condições reinantes de alienação, que podem ser determinadas por uma subalternização imposta pela colonização ou por uma subalternização consentida ou consensual, realizada pelas elites das nações dominadas. .

Page 46: Capitalismo e sociedade

 

46    

internacional, onde a supremacia militar das nações industriais não era questionada. O

colonialismo patrocinado pelo imperialismo (Hobsbawn, 1987) foi uma contradição

aparente da expansão do trabalho assalariado, que, entretanto, se explica pelo que ele

viabilizou de incorporação de trabalho subalternizado, tanto de trabalho não qualificado

como de trabalho qualificado, ao trabalho diretamente realizado no espaço social da

produção industrial. Assim, a racionalidade da ordem do sistema torna-se um paradigma

da síntese teórica. Entretanto, distinguiremos dois planos de racionalidade, que não

necessariamente são compatíveis um com o outro. O primeiro é o da racionalidade de

uma ordem mundial assentada sobre desigualdades e processos diferenciadores,

enquanto o segundo é o da racionalidade da ordem dos espaços econômicos

subordinados. As duas interdependem, mas a condição de dominação fez com que os

interesses organizados nos centros do poder mundial tivessem a iniciativa de gerar

referências de ordem, que passaram aos demais países como se fossem igualmente

válidas para eles.

As contradições sistêmicas da ordem burguesa tardaram em ser reconhecidas, mas

tornaram-se os fundamentos de uma teoria burguesa do desenvolvimento, que continuou

aceitando pressupostos inadequados para refletir os problemas dessas outras nações,

uma das quais, incidentalmente, é a nossa. Um exemplo clamoroso dessa situação é a

suposição de escassez de poupança, que foi aceita pela quase totalidade dos economistas

latino-americanos que se ocuparam dos temas do desenvolvimento econômico 30, mas

que desconhece os fatos de que as riquezas geradas pelos países periféricos têm sido

transferidas sistematicamente para os países dotados de sistemas industriais e

financeiros avançados.

As revoluções tecnológicas que se concentraram no último quarto do século XX

puseram em evidência a improcedência desses pressupostos, começando pelas

simplificações da inter-relação entre a esfera real e a financeira, prosseguindo com o

relativo à relação entre produção e distribuição e chegando ao papel do trabalho na

sustentação da reprodução do capital. A crítica dos pressupostos é um passo

fundamental da teoria, em que no século XX tiveram um papel especial figuras como                                                                                                30 É um ponto no qual convergiram economistas com posições tão diferentes como Celso Furtado, Roberto Campos, Raul Prebisch e muitos outros. Será preciso distinguir entre um problema macroeconômico genérico de escassez de recursos para investimento no sistema produtivo nacional e a geração de riqueza do país em seu conjunto.

Page 47: Capitalismo e sociedade

 

47    

Joan Robinson, Roy Harrod e Gunnar Myrdal, cujas contribuições, no entanto, não

distinguem as mudanças nas condições de validez das afirmações téoricas 31. O

caminho da renovação da teoria econômica continua sendo o de uma volta constante aos

seus fundamentos, que é onde se coloca todo o relativo às premissas com que se

trabalha. A ortodoxia reconstruída depois da rebelião keynesiana voltou a pressupostos

de racionalidade não criticada, que representam as condições de um cálculo econômico

compatível com a sustentação da ordem econômica da segunda revolução industrial. Os

pressupostos que justificaram a hipótese de concorrência perfeita já tinham se esvaído

sob os efeitos da Primeira Guerra Mundial e da concentração do capital industrial, assim

como não se poderia usar uma teoria monetária restrita à remuneração do capital

aplicado. Os novos grandes investimentos em infra-estrutura, necessários para a

renovação da tecnologia e para adaptar a escala de produção, significavam

adiantamentos de capital que só poderiam ser realizados com o mercado de títulos. São

os novos modos de uso de capital que determinam a mudança da proposta de

desenvolvimento da teoria, assim como que impõem os argumentos da dissidência. Em

1920 não havia mais condições históricas objetivas para uma teoria que se obstinava em

raciocinar em termos de concorrência perfeita e continuava presa a uma análise estática.

O próprio projeto de uma teoria monetária da produção era contraditório com as

transformações da economia monetária e financeira. As rachaduras do edifício

apareciam antes que terminasse sua construção.

Os alicerces da teoria

O ritmo do processo repousa sobre relações funcionais das estruturas

econômicas formando uma totalidade unificada, mas na realidade

histórica concreta o tempo possui duas direções: uma ordem sucessiva e

uma ordem simultânea Maurice Godelier

O ponto de partida da opção teórica marginalista é a noção de escassez relativa, que

permite reduzir os valores de todas as mercadorias a uma escala unificada, como se

todas elas pudessem ser usadas em um mesmo sistema de tecnologias. A escassez

relativa ignora o fato de que o sistema sempre dependeu de mercadorias obtidas da

                                                                                               31 A principal contribuição à critica dos fundamentos da teoria continua sendo a de Marx

Page 48: Capitalismo e sociedade

 

48    

mineração, onde prevalece a escassez absoluta e o sistema como um todo dependeu de

água, cuja ausência representa a maior escassez de todas. A escassez de bens específicos

de fato varia ao longo do tempo segundo a reprodução do capital se realiza com

tecnologias e escalas de produção que são determinadas pelas necessidades de

reprodução do capital.

A originalidade da teoria é que seus fundamentos devem se renovar continuamente; e

que é justamente esta renovação de alicerces que alimenta o dinamismo na ponta da

teoria. A hipótese de escassez relativa sustenta a da utilidade margina, que por sua vez

permite pensar em ambientes de mercado efetivamente livres. A escassez, ou mais

precisamente a raridade, é socialmente produzida, constituindo uma falta social que não

pode ser reduzida à escassez de recursos físicos. Por isto mesmo há uma circularidade

em falar de escassez como de um fenômeno exógeno à formação do capital. Se vamos

aos fundamentos práticos da teoria teremos que isolar as hipóteses relativas ao processo

de produção das que reportam a racionalidade da teoria. Como a percepção do processo

se encontra no circuito de relações entre a produção social de escassez e a produção das

mercadorias que atendem a essa escassez, torna-se inevitável pensar que o processo do

capital na realidade consiste em criar e administrar escassez e não em atendê-la, pelo

que o consumo socialmente organizado é o que é planejado para acionar esta escassez.

A retomada da questão técnica da escassez como uma questão social desencadeia uma

série de compromissos da análise com o reconhecimento do real. À parte dos aspectos

éticos, há uma questão material relativa a como a sociedade do capital cria essa escassez

e a como ela é administrada. O controle da escassez é parte da racionalidade do capital

privado, cuja referência individual impede que se veja o problema coletivo. A escassez

se forma pela lógica individual do lucro, mas se converte em problema coletivo no que

constitui uma condição do consumo socialmente necessário 32.

A noção de utilidade depende da de escassez. A utilidade dos diversos bens e serviços

surge de como eles atendem a esse consumo socialmente necessário. O erro de

composição do marginalismo, introduzido por Jevons, consistiu em supor condições

individuais de utilidade que não dependem de restrições coletivas de consumo.

Obviamente, trata-se de uma simplificação que passa por alto as condições sociais de

                                                                                               32 Uso aqui o conceito de socialmente necessário para designar aquele consumo que habilita as pessoas como trabalhadores, portanto, onde se incluem despesas com saúde e educação.

Page 49: Capitalismo e sociedade

 

49    

controle da produção que produzem escassez. Ao reconhecer que o programa de

produção do capital envolve um compromisso com a composição dos investimentos,

que é contraditória com a hipótese de decisões de aplicação de recursos guiadas apenas

por dados relativos a novos investimentos, revela-se insustentável pensar que a função

de investimento no sistema de produção corresponda apenas a critérios bancários.

O progresso da teoria ficou por conta do potencial da teoria marginalista para chegar a

explicações satisfatórias e não só à confecção de modelos elegantes. A teoria

marginalista não conseguia realizar seus objetivos como e enquanto teoria monetária,

porque não tinha logicamente como separar seu objetivo de vir a ser uma teoria

monetária da produção de sua necessidade mais imediata de explicar o papel da moeda

na realização da produção. Se Keynes rompe com essa tradição mas trata a moeda

apenas como mercadoria bancária e não como ingrediente da produção industrial, deixa

sem resposta a questão levantada por Marx de uma comparação entre os custos da

imobilização do capital frente aos retornos, certos e incertos, dos investimentos. A

questão subjacente é que a economia monetária tem um fundamento real que regula as

condições de rentabilidade do dinheiro. O lucro que se verifica na operação do capital

fictício depende de uma combinação de fatores de valorização e desvalorização de

ativos em que intervêm fatores de velocidade de rotação e de regulamentação

institucional que são parte da totalidade do sistema.

A substância teórica do problema é a visão histórica do mercado. A economia ortodoxa,

desde Marshall a Labini, fala de formas de mercado e não de processos formadores de

mercado. Por isso, a substituição da concorrência perfeita pelo oligopólio é uma

manobra necessária mas incompleta, porque se refere aos fatos do oligopólio e não ao

processo que modifica a estruturação do mercado e cria diferentes tipos de oligopólio,

assim como não resolve a indefinição entre a formação de oligopólios e de monopólios.

A substância do problema são as tendências de ampliação ou de redução do número de

produtores e de diferenciação de produtos. Nos grandes setores da economia mundial,

tais como siderúrgica, metalúrgica avançada automotores, aviões, há uma clara

concentração do número de produtores e uma diversificação superficial que dissimula o

fato de que na maioria dos casos são simples maquiagem de produtos ditada por

marketing e não por necessidades de consumo. Será, portanto, preciso partir de uma

Page 50: Capitalismo e sociedade

 

50    

teoria da formação do mercado como ponto de partida de uma revisão das condições de

concorrência no alto capitalismo e no capitalismo em suas versões tardias.

A formação do mercado acontece mediante uma composição das compras

intermediárias e de compras finais, onde as primeiras se identificam principalmente com

as de empresas e as segundas com as de consumidores. À medida que a produção de

bens finais se torna mais indireta, portanto, que encobre um aumento progressivamente

maior das compras de empresas que de consumidores finais, as vendas das empresas

dependem proporcionalmente mais das transações entre empresas, que se realizam sobre

expectativas de lucros e de custos de investimentos. Isto importa em considerar que se

está diante de uma pluralidade de transações, que não pode ser descartada em função da

elegância de uma simplificação macroeconômica. São, portanto, dois aspectos

mutuamente complementares a serem levados em conta. Os sistemas de interesses

incorporados na relação geral de classes e as relações localizadas de interesses que se

incorporam nesse conjunto, confirmando ou alterando os perfis de racionalidade que

conduzem o desempenho objetivo do consumo e não seus fundamentos subjetivos tais

como propensão a consumir.

Estas peculiaridades do consumo teriam que ser revisadas como modo de aproximação

da diferença entre a esfera de funcionamento dos circuitos do velho capitalismo

avançado, do novo capitalismo avançado e das variedades do que se tem denominado de

capitalismo tardio. Na teoria do capitalismo central da acumulação mundial, que é,

também, o avançado, prevaleceu a suposição de que o consumo pode se expandir

indefinidamente, com a única restrição de renda. A teoria do subdesenvolvimento pôs

por terra esse pressuposto, ao mostrar o significado do controle dos recursos e do

controle da comercialização na formação da acumulação do capital.

Page 51: Capitalismo e sociedade

 

51    

3. O MOVIMENTO INTERNO: CONCENTRAÇÃO DO CAPITAL E MOBILIDADE DO TRABALHO NO SUBDESENVOLVIMENTO NA AMÉRICA LATINA O processo em seus começos

A teoria econômica sempre oscilou entre o objetivo de explicar o melhor possível o que

aconteceu e o de explorar alternativas do que pode ser feito pelos participantes da vida

social. A teoria desenvolvida na tradição clássica examinou as condições para a

realização dos capitais.

Retoma-se aqui um esforço empreendido na década de 1970, quando tivemos o

benefício de comentários de Raul Prebisch e de Aníbal Pinto Santa Cruz. Aquela

reflexão foi interrompida, tal como diversas outras, direta ou indiretamente, ligadas ao

grande projeto empreendido por Prebisch em 1970, de realizar um trabalho coletivo de

grande porte, que substituísse a teoria da relação centro-periferia apresentado no

Estudo da América Latina de 1949. O debate sobre as condições históricas do

intercâmbio desigual produzira trabalhos defensores de posições que não podiam ser

ignoradas, como as de Amin 33, Emmanuel 34 e Palloix35 . Esse esforço, revelador das

insatisfações acumuladas com o aumento do conhecimento da realidade social do

continente, foi atropelado pelas circunstâncias políticas explicitas e por outras veladas

da vaga de golpes de Estado da época.36 Estava clara a necessidade de romper com os

limites internos de uma teoria burguesa do desenvolvimento e de remontar os alicerces

de uma explicação histórica do processo do subdesenvolvimento. Começava então um

período de grande turbulência política, que foi seguido, quinze anos depois, por um

período de hegemonização da interpretação neoliberal da economia e da afirmação de

                                                                                               33  Samir  Amin,  La  acumulación  mundial  del  capital,  México,  Siglo  XXI,  1972  34  Arghiri  Emmanuel,  El  intercambio  desigual,  México,  Siglo  XXI,    35  Christian  Palloix,  A    economía  mundial  capitalista,  2  vols.,Lisboa,  Estampa,  1972.  36    Esse  trabalho,  comandado  por  Raul  Prebisch  e  desenvolvido  no  ambiente  do  Instituto  Latino-­‐americano   de   Planejamento   Econômico   e   Social   (ILPES)   durante   o   primeiro   semestre   de   1970,    contou  com  uma  numerosa  equipe,  pretendeu  combinar  uma  revisão  dos  principais  paradigmas  teóricos   do   desenvolvimento   com   um   exame   da   experiência   dos   países   latino-­‐americanos.  Destacava-­‐se   a   necessidade   de   aprofundar   a   fundamentação   histórica   dos   estudos   de  desenvolvimento  e  de  realizar  um  esforço  de  incorporar  criticamente  as  contribuições  de  outros  grupos  e  autores  de  diversas  partes  do  mundo,  assim  como  de  avaliar  criticamente  as  políticas  de  desenvolvimento.  

Page 52: Capitalismo e sociedade

 

52    

um discurso unificado e ideologicamente subalternizado da análise econômica. Esta

linha de trabalho se retoma no ponto onde foi interrompida, isto é, no questionamento

das diferenças entre o movimento mundial de acumulação de capital e as condições

restritas de acumulação em cada país, que se refletem no modo de controle da realização

de trabalho. Entende-se, desde então, que as sociedades latino-americanas enfrentam

pressões de subdesenvolvimento e que o desenvolvimento aqui é a superação e reversão

desses processos.

Tornou-se logicamente necessário trabalhar em uma teoria da acumulação restrita de

capital, que estaria determinada pela duração de determinados padrões de acumulação

de capital, que seguem certos percursos da formação de capital, com suas contradições

internas e seus bloqueios, operando com certos conjuntos de tecnologias básicas e

perfis da qualificação dos trabalhadores. A acumulação de capital não acontece in vitro,

senão nas condições praxeológicas da vida social e acontece em tempo e espaços

determinados. Se o capital é esse Proteu de mil caras, as pessoas que vivem os

processos do capital são pessoas concretas, que participam de algumas de suas

peripécias, mas não de todas e que, freqüentemente, são descartadas pelos movimentos

destruidores de capital, de trabalhadores e de recursos físicos. O capital contrata

aqueles trabalhadores que lhe são necessários em determinados momentos e em certos

lugares. Os trabalhadores podem ser necessários segundo sua qualificação, o momento

em que seu trabalho é requerido e a duração do tempo em que são requeridos. As

circunstâncias das políticas econômicas respondem por sua pertinência, assim como as

condições em que funciona o modo de produção capitalista37

Há, portanto, uma questão fundamental relativa à qualificação dos trabalhadores. A

rigor todos trabalhadores têm alguma qualificação, o que faz com que muitas vezes não

sejam plenamente substituíveis uns pelos outros. Algumas dessas qualificações passam

despercebidas, tal como acontece com as dos camponeses, cujos conhecimentos

localmente especializados geralmente são descartados como inferiores. A visão seletiva

e discriminativa das qualificações – nunca de uma única qualificação universalmente

comparável – é um poderoso mecanismo de controle da força de trabalho. Mas, a

                                                                                               37   Eduardo   Fioravanti,  El   capital  monopolista   internacional,  Barcelona,   Península,   1975.Uma   das  mais  completas  análises  da  monopolização  do  capital,  que  trabalha  com  a  interação  entre  Estado  e  empresa  na  era  da  supremacía  norte-­‐americana.  

Page 53: Capitalismo e sociedade

 

53    

qualificação das pessoas para trabalhar é transitória e corresponde a situações

específicas de composição do capital. Os requisitos de qualificação de trabalhadores

evoluem de modo independente das suas necessidades de renda. De fato, não há relação

alguma entre os requisitos de trabalho para reprodução do capital e as necessidades de

renda dos trabalhadores. Durante os processos de urbanização e de industrialização

dependente encontra-se que os diversos grupos de trabalhadores realizam esforços

ingentes para se qualificarem e terem acesso a elevações de renda que somente em

pequena parte são recompensados. No essencial, os custos sociais da qualificação da

força de trabalho são transferidos pelo sistema de poder ao Estado e aos trabalhadores,

onde as pressões sobre as finanças públicas para cobrir os setores de energia e

transportes levam a transferir a maior parte dos custos da educação aos próprios

trabalhadores. Este tem sido um dos principais mecanismos de reprodução da

desigualdade de renda, que assume sucessivas e diferentes formas, mas drena uma parte

importante da taxa de salário para financiar o sistema educativo.

A combinação de movimentos irregulares de valorização e de desvalorização se

materializa na relação entre os sistemas de serviços sociais de utilidade pública, que

passaremos a chamar de capital indireto, e a capacidade direta de produção, que

acontece no contexto do movi mento geral de acumulação de capital.. Essa característica

faz com que os reajustes da capacidade de produção sejam irregulares, no relativo ao

grande e ao pequeno capital, levando os sistemas produtivos a mudarem sempre de

composição. As posições relativas dos diversos capitais são favorecidas ou dificultadas

segundo sua capacidade para captar renda através de contratos de infra-estrutura e

através dos usos do sistema de infra-estrutura.

Estes dados devem ser avaliados na presunção de que as nações desejam se desenvolver

e que os Estados nacionais têm uma responsabilidade nesse terreno. É preciso

reconhecer que isso nem sempre tem sido verdade e que a vontade de se desenvolver

emana sempre de uma ideologia de classe, refletida de algum modo no discurso oficial.

Sem dúvida há uma luta em torno da decisão de desenvolver, onde confrontam a

ideologia nacional do desenvolvimento e os interesses internacionais do capital. É

preciso lembrar que as políticas de auto contenção, sob diversos nomes, foram

empreendidas em países latino-americanos muito antes do Consenso de Washington, tal

como aconteceu com as políticas contracionistas e desestatizantes conduzidas pelos

Page 54: Capitalismo e sociedade

 

54    

ministros Aleman e Alsogaray na Argentina, Simonsen e Nóbrega no Brasil, Marshall

no Chile e Ortiz Mena, Lopez Portillo e Gortari no México, para só citar alguns. Uma

retrospectiva das décadas de 70 e 80 mostra um encurtamento claro dos objetivos de

política econômica, quando se tratou de financiamento público e crescimento tolerado.

A linguagem oficializada de trocar as políticas de substituição de importações por

estímulo a exportações – que ignorava os efeitos indiretos na composição das

exportações, além de bloquear a renovação tecnológica da indústria – de fato montava

um estilo de expansão econômica ajustada ã concentração do capital. Longe, portanto,

de pretender explicar a guinada das economias latino-americanas rumo à

desindustrialização e à reprimarização, é preciso situar o contexto de interesses que

prevaleceu na montagem das políticas econômicas. Os planos econômicos tornaram-se

cada vez menos de desenvolvimento e os ministérios de planejamento deixaram de

formular propostas de desenvolvimento e foram reduzidos à elaboração e ao controle

dos orçamentos. É sintomático que em todos esses países os ministérios da fazenda

tornaram-se mais poderosos que os ministérios de planejamento.

Na longa história da luta pelo desenvolvimento, ou para compreender e superar o

subdesenvolvimento – na América Latina há diversas vertentes de análise, que, em seu

conjunto, acentuam a fratura básica entre as análises históricas de processos que

reproduzem a subordinação do continente, ou que contribuem para sua emancipação e

as análises descritivas de situações de produtividade, de desigualdade, ou mesmo apenas

de custos. Não é um processo linear, é oscilatório e está sujeito aos efeitos de

irreversibilidade nas perdas dos sistemas de recursos físicos e na perda de

compatibilidade entre os equipamentos e a competência para usá-los, Os progressos no

desenvolvimento estão sujeitos a retrocessos em ciclos negativos e as condições

ambiente em que os sistemas se recuperam nunca são as mesmas, tal como mostrou

Haberler em um clássico da análise dos ciclos 38. Na segunda metade do século XX a

contenda com o subdesenvolvimento ficou às vezes de pé ou de cabeça para baixo e

desenvolvimento voltou a ser o desenvolvimento dos interesses do capitalismo a la

Schumpeter, ou veio a ser a busca de negócios, na linguagem palaciana dos governos

mais recentes da mediocracia latino-americana. A ascensão dos setores de rendas

                                                                                               38  Gottfired  Haberler,  Prosperidad  y  depresión,  México,  Fondo  de  Cultura  Económica,  1956.    

Page 55: Capitalismo e sociedade

 

55    

médias na América Latina, objeto de análise comparativa de Johnson 39, representava

novos âmbitos de socialização do poder, mas ao mesmo tempo novas aspirações de

enriquecimento individual e de subalternidade, interna e externa.

Nas diversas variantes de uma teoria social burguesa o significado social do

desenvolvimento ficou restrito a questões terminais de distribuição da renda, que jamais

penetram nos problemas mais profundos de concentração do capital – determinam a

referida distribuição da renda - portanto, dando lugar a uma brecha entre a análise

conjuntural da distribuição e a análise estrutural da concentração da formação de

capital. Daí, que a expressão social, portanto, ideológica e política, do

desenvolvimento da economia ficou reduzida ao que se passou a denominar de o social,

que nada mais é que o conjunto das despesas mitigadoras da desigualdade de

distribuição da renda, as quais, obviamente, se deixam de questionar. Isso, na prática

significa que a teoria do desenvolvimento fica apenas como uma teoria da expansão dos

sistemas produtivos, sem jamais penetrar nas relações de causalidade que permitem ou

impedem a continuidade desse processo, menos ainda na inter-relação entre crescimento

e distribuição de renda. Faltou incluir outros ingredientes negativos ao processo, tais

como os efeitos cumulativos do fisiologismo na política, ligado à reprodução da

corrupção.

Ficam, portanto, de fora os problemas de falta de desenvolvimento, expressos em

situações de marasmo40 ou de anomia 41 – e os processos de retrocesso ou mesmo de

decadência, que são parte essencial dos movimentos de expansão do capital. Ignoram-se

todas aquelas pessoas que jamais foram incluídos pelo sistema produtivo do capital, que

são não incluídos antes de serem excluídos. Descartam-se as contradições da

acumulação e da concentração do capital. No entanto, como os aspectos negativos da

                                                                                               39  John  J.Johnson,  Political  change  in  Latin  America,  Stanford,    Stanford  University  Press,  1965.  40      Há  diversos  exemplos  na  América  Latina  da  situação  de  marasmo,  de   regiões  que   ficaram  à  margen   da   estruturação   do   sistema   produtivo   e   de   regiões   que   passaram   –   ou   passam   –   por  procesos   prolongados   de   decadencia   e   que   se   tornam   representativas   de   uma   cultura   de  decadência.  Por  exemplo,  a  região  do  Recôncavo  da  Baía  de  Todos  os  Santos  na  Bahia,  que  foi  a  maior   produtora   de   açúcar   durante   o   período   colonial   e   caiu   nesse   marasmo   econômco,  tornando-­‐se  área  de  extração  de  recursos  naturais  e  de  emigração.      41   Em   trabalho   anterior   procurei   ressaltar   o   significado   histórico   da   aparente   neutralização  econômica   do   marasmo,   mostrando   que   ele   é   uma   forma   de   representação   do   movimento  negativo  de  dissolução  do  sistema  produtivo  escravista,  e  que,  necessariamente  daria  lugar  a  um  novo  dinamismo  político  e  econômico  da  região.  No  entanto,  a    falta  de  crescimento  não  foi  tema  da  teoria  que,  desse  modo,  pôde  abster-­‐se  de  estudar  decadência.  

Page 56: Capitalismo e sociedade

 

56    

acumulação tornam-se mais importantes que os positivos, os recuos têm que ser

reconhecidos como parte essencial do movimento geral da acumulação de capital e

devem ser explicados como parte do funcionamento do sistema capitalista de produção.

Em vez de falar em uma destruição criadora, cabe pensar em termos de movimentos de

destruição que têm que ser compensados por outros movimentos de criação, sem relação

alguma com os anteriores, que os superam em extensão e complexidade.

Isso tudo, na prática, significou que a teoria do desenvolvimento econômico ficou

imobilizada nos aspectos superficiais da mecânica do desenvolvimento dos sistemas

produtivos e que não se enfrentou com o dilema de emancipação ou subalternidade,

mesmo quando pretendeu tornar-se uma teoria social. A dimensão de emancipação ficou

restrita a uma parte bem definida das correntes de teoria social que se envolvem com

essa temática. Tivemos uma teoria weberiana da dominação, com o nome de teoria da

dependência, e ficamos à espera de uma conexão histórica entre os fenômenos locais de

dependência e os processos planetários do capital. Por isso, foi possível falar de fim do

colonialismo, como se fosse apenas aquele praticado pelos impérios formados no século

XIX e não compreendesse as formas atualizadas de colonialismo aberto, nem as

modalidades mais sutis de colonialismo conduzido pelo controle da produção de

tecnologia, da qualificação dos trabalhadores, e, acima de tudo, pelo controle ideológico

do progresso material. Nesse último sentido, por exemplo, há um amplo e profundo

colonialismo interno na potência hegemônica, que compreende uma exploração desigual

de imigrantes indocumentados e tolerados, junto com uma maciça desinformação da

maioria dos grupos de baixa renda e de setores dos grupos médios de renda.

Certamente, é um quadro que se repete no Brasil, onde reaparecem práticas de

escravização de trabalhadores, onde persistem condições de contratação de trabalho

originadas na sociedade escravista e que continuam quase inalteradas, e onde,

finalmente, apenas uma pequena parte da população tem acesso a meios de informação.

Grande parte do que se diz ou escreve sobre desenvolvimento não tem sido mais que

operacionalizações de processos de produção, ou mesmo, apenas, de expansão do

sistema produtivo na tradição de desenvolvimento em Schumpeter 42. A realização de

                                                                                               42     Joseph   Schumpeter,   Teoria   del   desenvolvimiento   económico,   México,   Fondo   de   Cultura  Económica,  1958.  Muito  festejado  como  precursor  das  teorías  do  desenvolvimento,  Schumpeter  na  

Page 57: Capitalismo e sociedade

 

57    

programas de pesquisa nesse campo temático encontra-se na disjuntiva de questionar as

conseqüências do movimento de formação, acumulação e concentração do capital, ou de

simplesmente referir-se à relação entre formação de capital e determinação de

investimentos. Por isso, o estudo do desenvolvimento hoje carrega o peso de um

progressivo reconhecimento dos conteúdos subjacentes na análise e da experiência

acumulada ao longo das inúmeras tentativas de análise e de políticas nacionais e

regionais de desenvolvimento.

O aparecimento da teoria dos termos desfavoráveis de intercâmbio, ou teoria da relação

centro – periferia em 1949, apresentada por Raul Prebisch em 194943 foi um grande

salto na direção da construção de uma teoria do subdesenvolvimento, que se passou a

ver como um processo negativo (Furtado, 1959) correspondente ao da formação de

capital dos países industrializados. A subseqüente teoria da dependência e da

marginalização, que se identififcou com Cardoso e Faletto 44 e com Quijano 45 assinalou

aspectos da formação social e da estrutura institucional do subdesenvolvimento

econômico, que foram, adiante, explorados como parte de uma explicação da

concentração mundial de poder, como em Anibal Pinto 46 . Os fundamentos do sub-

desenvolvimento nas condições concretas da acumulação a escala mundial foram,

enfim, revelados como eixo central da explicação do processo desigual do

desenvolvimento capitalista por Prebisch 47, quando essa análise passava a incorporar a

dimensão sócio-cultural como Myrdal 48 e quando se tornava evidente a necessidade de

                                                                                                                                                                                                                                                                                   verdade  apresenta  uma  abordagem  microeconómica  da  expansão  dos  negocios  que  nada  tem  a  ver  com  as  preocupações  sociais  com  o  desenvolvimento.  43  As   idéias   de  Prebisch   foram   apresentadas   no  Estudio   Económico   de  América   Latina,   1949   das  Nações  Unidas  (E/CN.12/164/  de  1951  e  representaram  uma  ruptura  com  as  doutrinas  em  voga,  de  que  o  desenvolvimento  poderia  ocorrer  por  transbordamento  de  efeitos  do  crescimento  dos  países  mais  ricos.  44  Fernando  Henrique  Cardoso  e  Enzo  Faletto,  Dependencia  e  desenvolvimento  na  América  Latina,  Rio  de  Janeiro,  Zahar,  1970.  45     Anibal   Quijano,   “Dependencia,   cambio   social   y   urbanización   en   Latinoamérica”.   In   F.C.  Cardoso   e   outros,   America   Latina,   ensayos   de   interpretación   sociológico-­‐política,   Santiago,   Ed.  Universitaria,  1970.  46  Anibal  Pinto,  Distribuição  da  renda  na  América  Latina  e  desenvolvimento,  Rio  de  Janeiro,  Zahar,  1979.  47   Raul   Prebisch,   Capitalismo   periférico,   crisis   y   transformación,   México,   Fondo   de   Cultura  Económica,  1987.  48     Gunnar   Myrdal,   Asian   dramma,   an   inquiry   into   the   poverty   of   nations,   3   vols.  Nova   York,  Random   House,   1968.A   obra   monumental   de   Myrdal   representa   um   esforço   de   situar   a  problemática  do  desenvolvimento  como  uma  ruptura  com  as  condições  de   subdesenvolvimento  impostas  pela  colonização,  que  torna  necessário  reverter  os  conteúdos  de  dominação  embutidos  

Page 58: Capitalismo e sociedade

 

58    

uma análise histórica capaz de ligar os processos do capital em sua totalidade com os

processos local e temporalmente situados. As diferenças de abordagem e de objetivos

de análise tornavam-se completamente claras, quando as abordagens de fundo marxista

se confrontavam com a ortodoxia neoliberal, respaldada pela onda de golpes de Estado

de 1964 a 1976, e quando a própria crítica dos processos de subdesenvolvimento se

partia entre o discurso único do chamado Consenso de Washington e a recusa de muitos

em admitir que haja um problema de subdesenvolvimento diferente dos aspectos

negativos da concentração de capital e da globalização financeira.

Uma escolha de armas

A experiência mostrou ser imperativa uma escolha de fundamentos conceituais e de

método para uma teoria econômica que saía da crise do marginalismo evidenciada pela

opção de Marshall por uma economia da prática. Além disso, o gradualismo de

Marshall impugnava os desdobramento paretianos da teoria trazidos por Hicks. A

análise do desenvolvimento é incompatível com o mecanicismo da economia

marginalista. A inadequação da teoria neoclássica é evidente, mas ela continuou sendo

aceita simplesmente porque representa a perspectiva dos interesses do capital

financeiro. A tudo isso, a versão keynesiana do marginalismo continuou sendo

esgrimida como opção válida, apesar das críticas ao monetarismo e ao “curtoprazismo”

de Keynes. Numa visão em retrospectiva de todo esse processo, verifica-se que tem

havido uma progressiva incorporação de aspectos temáticos, que qualifica e aprofunda a

discussão do subdesenvolvimento. Desde a inclusão da dimensão sócio-cultural à do

ambiente e desde o reconhecimento da questão energética à das alterações dos padrões

de consumo, os processos de desenvolvimento e de subdesenvolvimento tornaram-se

mais carregados de significado, tanto em seus aspectos internacionais como nos

aspectos internos a cada país. Mas, quanto dessa abordagem se faz em diálogo com a

realidade social latino-americana? A necessidade de situar-se frente às raízes históricas

do processo econômico foi uma das principais reivindicações do pensamento da CEPAL

em seu período criativo, quando se pretendeu que as políticas públicas se construíssem

sobre os fundamentos de uma análise social e institucional, do feitio da registrada pelo

                                                                                                                                                                                                                                                                                   nos   projetos   de   modernização.   No   relativo   às   inter-­‐relaçoes   entre   esse   trabalho   e   a   obra   de  Wicksell  ver  meu  livro  intitulado  Uma  introdução  à  pobreza  das  nações,  Petrópolis,  Vozes,  1991.  

Page 59: Capitalismo e sociedade

 

59    

ILPES 49. A dificuldade prática de incorporar a dimensão ideológica do processo deveu-

se, sem dúvida, ao vezo de tentar comprimir as contradições do processo no espaço das

contradições da reprodução dos grupos dominantes, em vez de considerar o contexto

maior de contradições do processo social em sua totalidade. As análises sociológicas de

então organizaram-se para explicar problemas da estruturação social dos segmentos

superiores da sociedade, tomando sua relação com os segmentos de rendas inferiores e

com os segmentos excluídos como aspectos suplementares da reprodução do sistema em

seu conjunto.

Assim, a análise dos processos de desenvolvimento e de sub-desenvolvimento passa a

ter que se ver com um significado mais amplo e mais complexo de ideologia, próprio do

contexto da totalidade social. Isso envolve os aspectos ideológicos desse

enriquecimento temático e das opções que se encontram entre discutir o que há de

essencial das transformações econômicas das sociedades e confrontar os diversos

aspectos superficiais e transitórios desses movimentos. O foco da análise varia segundo

se absorvem novas bifurcações da análise social, mas há um núcleo central temático que

se mantém, justamente porque essa absorção de aspectos novos resulta em

reconsideração dos temas que sempre foram essenciais.

Isso nos leva a rever tudo que tem sido dito e feito na análise do desenvolvimento no

relativo à relação entre os componentes materiais e os componentes ideológicos do

processo econômico. As transformações do sistema produtivo são tão materiais quanto a

própria produção. O que está em pauta não é a perda de importância da esfera da

materialidade do sistema, senão o modo como ela é percebida e integrada pelas

estruturas ideológicas. As ideologias devem ser reconhecidas como as expressões de

interesses de classe embutidos na formação da sociedade política e da sociedade

econômica, que se manifestam mediante uma linguagem indireta do poder. Não há

porque trabalhar a dimensão ideológica como um espaço de atributos de cada classe

social, senão como algo que surge da própria relação entre as classes.

                                                                                               49   No   período   de   1970   a   1972   Prebisch   realizou   ou   induziu   uma   série   de   debates   destinados   a  alimentar  uma  renovação  das  idéias  da  CEPAL  sobre  desenvolvimento.  Cita-­‐se  aquí  o  volumen  do  Instituto  Latinoamericano  de  Planificación  Económica  y  Social,  Dos  polémicas  sobre  el  desarrollo  de  América  Latina,  Santiago,  Editorial  Universitario,  1970.  

Page 60: Capitalismo e sociedade

 

60    

Entende-se, portanto, que a montagem de uma análise do eixo concentração de capital –

mobilidade do trabalho partirá da mesma relação básica entre composição e velocidade

do capital, mas deverá registrar as condições sociais em que essa relação se efetiva, isto

é, deverá situar os processos do capital no tempo dos processos históricos. A análise dos

processos do capital na América Latina sempre padeceu dessa separação gnoseológica

entre a duração dos processos específicos de produção e o tempo dos grandes

movimentos em que eles estão inseridos. Por exemplo, o tempo dos processos de

produção de açúcar no século XVI e no século XIX e a velocidade de circulação do

dinheiro na economia mundial. Pode-se especular que o aumento de velocidade na

produção do açúcar tenha sido maior que a média da velocidade dos capitais aplicados

na produção em geral, tanto agrícola como industrial, e que a maior velocidade do

capital financeiro seja ilusória, porque na realidade ela é uma síntese das velocidades

dos capitais aplicados na produção.

Trata-se, portanto, de examinar o que há de substancial do processo econômico e de sua

expressão em relações sociais. Tal como no tempo de Marx, o que há de substancial no

sistema de produção é um problema de diferenciais de velocidade e de alterações nas

velocidades dos capitais, que permitem ou impedem que os capitais específicos mudem

de forma de aplicação, portanto, que se reproduzam ou sejam absorvidos por outros.

Hoje, como ontem, há uma questão a ser enfrentada, relativa à capacidade do sistema

produtivo para alterar as velocidades da esfera da circulação. E o que há de substancial

nas relações sociais que envolvem a atividade econômica é a relação de classe entre os

que detêm capital e os que dependem de vender tempo para obter renda.

Assim, o programa da Economia Política não pode continuar sob a influência do

projeto de unificação da teoria marginalista como bem colocou Shackle 50, e

especialmente ao mostrar que Myrdal já havia estabelecido objeções mortais ao projeto

de Keynes de uma teoria monetária da produção. A ancoragem histórica da economia

significa trabalhar sobre colocações atualizadas no relativo à engrenagem do sistema de

produção, centradas em três relações essenciais, que são as seguintes: (a) a relação

entre o crescimento do produto e a composição do capital; (b) a relação entre a

intensidade do crescimento do produto social e a duração dos movimentos de expansão

                                                                                               50  G.L.S.  Shackle,    The  years  of  high  theory,  Cambridge,  Cambridge  University  Press,  1983.  

Page 61: Capitalismo e sociedade

 

61    

do capital; (c) a relação entre os movimentos de expansão do capital e a mobilidade do

trabalho, nela incluídas a renda e a qualificação dos trabalhadores. A questão geral da

relação entre produção e distribuição fica como o grande pano de fundo desse conjunto,

na definição de um programa de trabalho para a Economia Política, tal como

visualizado por Dobb 51 quando levanta os compromissos da teoria do valor com uma

teoria da distribuição.

O crescimento do produto e a composição do capital. A questão da composição do

capital traz a assinatura de Marx e define as limitações da macroeconomia

simplificadora. A relação capital/produto que está na base da análise do

desenvolvimento econômico não adere à simplificação neoclássica de olhar o capital

como uma magnitude financeira, mas não entra no mérito da composição do capital que

permite que a produção aconteça. O crescimento do produto social é a representação

sintética de um conjunto de componentes interdependentes de capital, cujo valor

depende do modo como eles se combinam e do modo como os interesses que

comandam o capital manejam suas opções de tecnologia. O que choca na análise de

alguns autores, como Sraffa 52 , é que tratem do capital apenas como manifestação

mecânica e não explicitem os interesses do capital, tal como faz Marx em seu

tratamento do grande capital e da maquinaria.53 O capital se reproduz mediante um

movimento de reposição que se dá sobre a trajetória de sua composição, de que sua

composição atual é apenas a face mais recente. O efeito multiplicador do emprego está

historicamente situado com a composição do capital por Kahn 54 e não pode ser

esvaziado como a mecânica linear da versão convencional do multiplicador que

descarta os efeitos de composição do acelerador da demanda. Na versão inicial de

Harrod 55 o efeito de acelerador da demanda contempla que a substituição de

equipamentos gastos significa uma troca de tecnologias, com efeito final de

reorganização da composição da oferta. A questão fundamental a esclarecer refere-se a

como se determina o rumo dessa trajetória da composição do capital e esta não poderia

                                                                                               51    Maurice  Dobb,  Theories   of   value   and   distribution   since   Adam   Smith,  Cambridge,   Cambridge  University  Press,  1973.    52  Piero  Sraffa,  Production  of  commodities  by  means  of  commodities,  Cambridge,  Cambridge  Press,  1961.  53    Karl  Marx,  El  capital,  México,  Fondo  de  Cultura  Económica,  3  vols,  1956.  54    Richard  Kahn,  Selected  essays  on  employment  and  growth,  Cambridge,  Cambridge  University  Press,  1972.  55    Roy  Harrod,  Toward  a  dynamic  economics,  Londres,  Macmillan,  1960  

Page 62: Capitalismo e sociedade

 

62    

ser representada sem distinguir as diferenças entre grande e pequeno capital, como fez

Steindl 56 e sem considerar os deslocamentos na divisão do trabalho e na distribuição

social da renda.

A intensidade do crescimento do produto e a duração dos movimentos do capital. Uma

observação fundamental sobre a produção capitalista é que ela tem se acelerado em seu

conjunto, tanto pela mobilização de pesquisa científica e tecnológica como pela

capacidade de encomendar equipamentos que refletem as preferências dos capitalistas

na organização da produção. Essa aceleração aparece como uma pressão sobre a

substituição de maquinaria e como um encurtamento dos lapsos de tempo entre

inovação e difusão. Distinguiremos uma visão interna e uma visão externa dos

movimentos do capital, entendendo que a descrição das variações na relação

capital/produto a la Kuznets 57 corresponde à visão externa, enquanto a perspectiva de

Marx é a da visão interna do processo. O capital é datado e historicamente situado, isto

é, tem um momento em que surge e outro em que se esgota ou que é absorvido por

formas mais novas e isso acontece em ambientes históricos definidos, com certas

condições de desenvolvimento das forças produtivas. Isso significa que o capital se

reproduz mediante movimentos que se realizam em certos tempos, que se alteram ao

longo do tempo. Na essência da análise de O capital está a identificação desse

entrecruzamento de movimentos com diferentes velocidades e durações. O crescimento

do produto social se realiza no nível de desenvolvimento das forças produtivas, que se

altera continuamente, pelo que é sempre um processo que se realiza num contexto de

novos dados do sistema produtivo. Tais novos dados ficam por conta das iniciativas dos

detentores do capital, mesmo em situações em que a inovação surge de práticas do

cotidiano dos trabalhadores. O controle do processo de produção também é o das

inovações, que são reguladas pelos objetivos da reprodução do capital. A aceleração dos

processos do capital não necessariamente se traduz em incrementos do produto, porque

as velocidades dos processos do capital são internas ao processo de produção, enquanto

o crescimento do produto social mostra os resultados finais desse processo. Não há

como pensar em movimentos de crescimento do produto social que não correspondam a

                                                                                               56    Joseph  Steindl,  Pequeno  e  grande  capital,  São  Paulo,  Hucitec,  1986.  57    Simon  Kuznets,  Postwar  economic  growth,  Cambridge,  Harvard  University  Press,  1964.  

Page 63: Capitalismo e sociedade

 

63    

deslocamentos na composição do capital e não contemplem as condições de

aproveitamento da capacidade produtiva tal como insistiu Baran 58.

A expansão do capital e a mobilidade do trabalho. Uma questão central da continuidade

do sistema capitalista de produção consiste em saber se o capital pode continuar a se

expandir e a quais custos essa expansão pode ser alcançada. Para o próprio capital esses

custos são contabilizados segundo eles são percebidos pelos empreendimentos e são

internalizados como gastos de capital que não se recuperam, como custos de recursos –

que aparecem apenas como custos ambientais – e como custos de trabalho, que são os

custos diretos e indiretos com força de trabalho, em pagamento de salários, treinamento

de trabalhadores e gastos com saúde. O que está em jogo é a diferença entre os custos

percebidos pelos empreendimentos e os custos sociais da irreversibilidade do processo;

e que os interesses do capital em evadir ou transferir custos caminham no sentido

oposto ao daqueles para os quais esses custos são transferidos. Os resultados do

processo de produção aparecerão na forma de renda e de acesso à formação de capital, a

qual pode assumir outras formas não monetárias. Por exemplo, uma teoria monetária da

produção não tem como registrar um aumento da capacidade de alguns grupos de

trabalhadores para operarem com novas tecnologias, nem pode escolher entre projetos

cujos efeitos se realizam mediante interações crescentes com outros projetos. A

concentração exige grandes aplicações do capital concentrado que funcionam como

buracos negros do sistema produtivo, atraindo e neutralizando investimentos de

pequenos capitais que são induzidos a opções menos rentáveis e mais arriscadas.

A expansão do capital tem efeitos inevitáveis na capacidade dos trabalhadores para se

moverem entre diferentes posições no sistema para defenderem seus interesses. O

capital se expande mediante variações nos requisitos de trabalho vivo, em suas

combinações com o trabalho acumulado, com alterações na totalidade dos usos de força

de trabalho. É o movimento da totalidade do trabalho empregado que responde pela

criação de valor. A renovação tecnológica altera a relação de composição entre o

conjunto do trabalho vivo e o conjunto do trabalho acumulado. O controle do sistema

surge em dois momentos, que são o controle direto do trabalho acumulado por parte dos

capitalistas e o controle indireto das oportunidades de qualificação dos trabalhadores.

                                                                                               58  Paul  Baran,  La  economia  política  del  crecimiento,  México,  Fondo  de  Cultura  Económica,  1959.

Page 64: Capitalismo e sociedade

 

64    

Na perspectiva da reprodução do sistema produtivo, os requisitos de trabalho variam em

quantidade e em qualificações, enquanto a busca de renda por parte dos trabalhadores

determina estratégias de deslocamento entre empregos e entre localizações. A

expectativa de vida profissional dos trabalhadores completa e corrige dados sobre sua

qualidade atual de vida e seus horizontes de mobilidade. Assim a mobilidade dos

trabalhadores se materializa em oportunidades diferenciadas de progresso material e

liberdade de escolha.

A seqüência inevitável da polêmica

Há uma crise de paradigmas no desenvolvimento do alto capitalismo, que se revela no

fundamento ontológico da teoria, levando a manobras de evasão de problemas e em sua

relação com a irracionalidade no campo social. A aceitação da síntese neoclássica pós-

keynesiana como ortodoxia econômica, junto com a condução da análise de matriz

keynesiana por suas variantes mais conservadoras deram lugar a uma análise restrita

aos preceitos neoclássicos, infensa ao desafio do desenvolvimento. Por muitos meios,

nesse campo da economia procurou-se demonstrar que o debate sobre o

desenvolvimento tornou-se inútil com a progressão da mundialização do capital. Faltou

dizer que é um debate inevitável, simplesmente porque é o pleito de uma vida

independente. Não se discute desenvolvimento para atender aos interesses do capital

senão para confrontá-los com os da sociedade. Nesta diferença de sentido de finalidade

a teoria do desenvolvimento tacitamente rompe com o marginalismo e tem que olhar

para os resultados das últimas décadas. Não se trata de ter uma teoria latino-americana

do desenvolvimento, porque os problemas são de todos, mas se os latino-americanos

não se fizerem representar dificilmente terão uma teoria de sua emancipação produzida

pelos que os subordinam.

O desenvolvimento de uma linha de trabalho – pesquisa, debate e ações - sobre a

temática de desenvolvimento e do subdesenvolvimento representa uma definição de

campo temático quee exige uma abordagem capaz de refletir esses conteúdos e indicar o

caminho de análise a ser seguido. As referências históricas têm que ser atualizadas

porque as pressões de subdesenvolvimento se renovam e porque os efeitos das políticas

econômicas se incorporam no quadro objetivo do sistema de produção. A tese que surge

do embate das tendências de subdesenvolvimento e de superação via concentração de

Page 65: Capitalismo e sociedade

 

65    

capital é que as condições ambiente da aplicação do capital e do controle da força de

trabalho se deslocam, progressivamente, acompanhando rumos específicos da divisão

do trabalho e da tecnologia. Assim, a polêmica sobre as perspectivas e restrições das

transformações do sistema produtivo envolve, igualmente, o modo social de distribuição

da renda, cujos efeitos na reprodução do sistema produtivo se realizam através da

composição e da magnitude de demanda. O papel dos trabalhadores na sociedade do

capital se define por sua capacidade de participar da vida econômica, que se dá por sua

capacidade de comprar e de obter rendas indiretas através do Estado. A reinserção da

distribuição na explicação do desenvolvimento é um passo necessário para uma

valorização social da teoria do desenvolvimento.

Page 66: Capitalismo e sociedade

 

66    

4. O MOVIMENTO EXTERNO: CONTROLE POLÍTICO DA ECONOMIA NO ALTO CAPITALISMO

Preliminares

O debate em torno das possibilidades de auto-regulação do sistema capitalista de

produção por meio do funcionamento de um mercado em expansão, que muda em

termos de composição da demanda, enfrenta condições diferenciadas entre o que ocorre

nas nações que combinam o controle da renovação tecnológica, com posições de

preeminência no mercado financeiro e as nações cuja economia anda a reboque dessas

condições. Neste ensaio, propõe-se examinar o significado do controle político nas

economias detentoras dessa posição vantajosa em tecnologia e financiamento, que

denominamos de economia do alto capitalismo59. Trata-se de avaliar as condições

diferenciadas de acumulação nesses dois tipos de nações, distinguindo os movimentos

de expansão de trabalho e recursos físicos, que são os de extroversão do

desenvolvimento e os movimentos de encolhimento dos sistemas atingidos por crises

quando passam a viver de capital acumulado. A questão central é a relação entre os

movimentos dos ciclos e a superação do subdesenvolvimento60.

Erupção e expansão da crise

Estamos hoje diante de novos fatos e tendências da política econômica que mostram a

necessidade de uma retomada da reflexão teórica e prática sobre esse tema. Desde

alguns textos clássicos das décadas de 50, como os de Bettelheim (1951) e de Nurkse

                                                                                               59  Em  livro  recente,  Economia,  política  e  poder  (2009)  apresento  uma  análise  da  territorialidade  do  poder   na   economia   globalizada   de   hoje,   distinguindo   a   especificidade   da   reprodução   do   poder  econômico  na  periferia  industrializada.    60  A  questão  geral  de  superação  do  subdesenvolvimento  sempre  distinguiu  uma  abordagem  crítica  do   problema   do   desenvolvimento,   que   se   vê   como   um   impulso   inserido   nos   movimentos  contraditórios   do   capital   na   periferia   da   economia  mundial   e   não   como  um  projeto   humanista  compartilhado   pelas   elites   dos   países   centrais   com   as   elites   dos   países   periféricos.   O  desenvolvimento  na  escala  nacional  envolve  uma  visão   igualmente  crítica  do  papel  da   ideologia  na  transformação  social  (Pedrão,  2004),  onde  é  inevitável  uma  análise  das  relações  de  classe  e  da  divisão  internacional  do  trabalho.  

Page 67: Capitalismo e sociedade

 

67    

(1955), e da década de 60, como os de Tinbergen (1961) e Myrdal (1968), tem havido

poucas contribuições significativas ao pensamento da política econômica para o

desenvolvimento. Além do velho debate entre crescimento com equilíbrio ou sem

equilíbrio, que envolveu diversos autores, ligado ao terror da inflação, oo ao debate

recorrente da conversão de valor em preços, a política econômica tornou-se um campo

de mecânica de modelos estáticos repetitivos, que esquivam o substrato de conflito

social de interesses das sociedades de hoje. A mudança de atitude dos países mais ricos

diante desta nova crise demonstra a fragilidade dos pressupostos de política

imobilizados pelos objetivos de equilíbrio macroeconômico. As novas políticas

européias primam por falta de originalidade e o que há de mais novo ao norte do Rio

Grande é a volta dos arquitetos da Era Reagan.

Certamente, há uma questão relativa à capacidade de cada país para decidir sobre sua

política econômica e, como extensão desse ponto, um problema operacional relativo à

capacidade dos países para pensarem em termos de longo prazo. A Europa ocidental,

que é hoje um conceito impreciso, procura soluções defensivas que conciliem projetos

de poder tão diferentes, uns dos outros, quanto os da Alemanha e da França. A

articulação de um espaço econômico germânico fica mais longe, dados o aumento da

influência da Rússia e o surpreendente desempenho do grande capital italiano. Há

muito, a Europa deixou de ser um aliado constante dos Estados Unidos e agora procura

de modo exposto alianças internacionais que a libertem da supremacia norte-americana.

O fim da “era” Blair também significa que o Reino “Unido” está menos preso ao redil

dos norte-americanos. Esta fluidez de alianças pode explicar diversos aspectos menos

claros das políticas anticíclicas, inclusive o fato de que os europeus reagiram mais

rápido e de modo mais profundo à crise do que os norte-americanos. Esse super-

realismo político europeu está bem descrito por Grabendorff e Seidelman (2005) em sua

análise dos dilemas e das antinomias da União Européia.

A crise obriga a rever o significado das esferas de poder e, especialmente, o da

supremacia norte-americana. A supremacia econômica e política de cada país contém

elementos culturais e técnicos que a identificam em seu tempo61. Não se pode pensar na

                                                                                               61     Essa   concretude   do   tempo   histórico   como   época   e   como  modo   de   situar   historicamente   o  capital   foi   tratado   por  Mészáros   (2007)   como   “a   tirania   do   imperativo   do   tempo   do   capital”   e  

Page 68: Capitalismo e sociedade

 

68    

supremacia britânica sem sua ligação com a vitória ideológica da combinação de

utilitarismo da classe dominante e de seus mecanismos ideológicos e religiosos de

legitimação. O mesmo aconteceu com o projeto de poder norte-americano, que realizou

o controle ideológico de uma maioria socialmente fluida, impregnada dos efeitos

combinados de escravidão e de integração maciça de trabalhadores destituídos de seus

mecanismos originais de defesa. O fator integração interna dessas nações poderosas

continuou a afetar as modificações do conjunto, mas foi oportunamente absorvido pelo

sistema de poder ao qual passou a contribuir. O componente de religião desempenhou

um papel crucial nessa amálgama política, para isso bastando ver que a ocupação inicial

das terras62 e os posteriores movimentos de emancipação dos negros nos EUA foram

canalizados através de lideranças religiosas, com a mesma indefectível Bíblia e com o

mesmo culto do individualismo operoso e antípoda de quaisquer movimentos de classe.

O controle do sistema de poder se realizou mediante mecanismos de flexibilização

controlada na esfera política, permitindo absorver as tensões que se formam na esfera

econômica. A expansão do comércio desempenhou um papel fundamental, fazendo a

ponte entre uma economia rural dispersa e uma produção industrial regionalmente

concentrada. O controle do sistema se manteve sólido mediante a incorporação de

vantagens que se obtêm através da expansão dos interesses de grande capital, no país e

no exterior. A concentração do capital tornou-se um fato da economia mundial que deu

a sustentação necessária para a internacionalização do dólar. A religião entrou nesse

conjunto como uma referência unificadora, uma ideologia acima de qualquer suspeita de

ser desagregadora, ou que não contribua para a perpetuação do sistema. Não há,

portanto, porque se surpreender que a ofensiva do sistema de poder na geopolítica da

energia se fizesse, justamente, sobre a base do fundamentalismo. O fundamentalismo

surge, no fim do século XX, como uma expressão que designa irracionalismos políticos

com fundamentos mais ou menos religiosos, com uma linguagem religiosa.

Diferentemente do ocorrido nos primeiros cem anos de formação do sistema capitalista

de produção, a partir da década de 1920, houve uma inversão da racionalidade

                                                                                                                                                                                                                                                                                   adiante   (2008)   colocando   a   formação   da   consciência   de   classe   como   uma   decorrência   de   uma  inserção  histórica  específica.  62   O   ideal   de   um   sistema   de   pequenas   e   médias   propriedades   –   farms   –   e   de   seus   ocupantes  dedicados  a  trabalho  familiar  –  homestead  –  correspondeu  a  uma  imagem  de  uma  sociedade  pré-­‐industrial,  tal  como  bosquejada  por  Benjamin  Franklin,  baseada  em  trabalho  árduo  e  frugalidade.    

Page 69: Capitalismo e sociedade

 

69    

instrumental63 inicial do sistema, quando a mecânica da racionalidade da produção foi

transformada em artefato político pelos autoritarismos, especialmente pelo nazismo, e

utilizada como mecanismo de poder com uma teleologia de poder supra-econômico. A

expansão do poder de monopólio e a subseqüente formação de redes mundiais,

combinando sistemas de produção e distribuição, colocaram o tema da eficiência como

de eficiência de cada sistema, ignorando os fatores de racionalidade do sistema

produtivo em seu conjunto. Há uma nova trajetória de irracionalismo64, que escolhe

símbolos próprios, tal como fez o nazismo, ou que cria versões simplificadas das

referências religiosas das nações triunfantes e desempenha uma função fundamental de

controle político dos grupos ideologicamente mal estruturados, majoritários na

sociedade de consumo de massa. A trajetória ideológica do novo irracionalismo

arrebanha o poder da mídia sobre esta sociedade de massas, onde se substituem os

valores de coletivos locais – a partir dos familiares – por valores do individualismo.

A individualidade indiferenciada dá suporte à visão de Negri e Hardt (2005) sobre a

multidão, que rematam uma longa trajetória de percepção e de crítica da sociedade de

massas, desde Ortega y Gasset (1960) a Elias Canetti e a estes novos pós-anarquistas e

quase-marxistas. A invocação da categoria massa social em lugar de classes revela uma

dificuldade orgânica em reconhecer o trabalho como categoria ordenadora do mundo

social. Quanto dessa rejeição procede de observação da realidade social e quanto é

projeção de intenções ainda está por esclarecer. A sociedade nacional de classes está

fragilizada diante da internacionalização da divisão do trabalho, mas isso significa

apenas que há novos dados sobre o modo de alinhamento das classes e não quer dizer

que a condição de classe tenha sido revogada. Desviar a atenção do conflito de

                                                                                               63  Neste   excurso   precisaremos   revisar   o   significado   praxeológico   de   racionalidade   instrumental,  distanciando-­‐nos  do  significado  original  dado  por  Habermas  a  esse  termo  em  sua  Teoria  da  ação  comunicativa   (1987,   vol   I),   para   nos   ocuparmos   da   racionalidade   enquanto   princípio   de   uso   da  faculdade  da  razão,  como  ocorreria  na  tradição  kantiana.  Habermas  já  tinha  se  colocado  perante  a  historicidade  do  discurso  em  seu  Dialética  e  hermenêutica  (1987),  em  seu  debate  com  Gadamer,  mas   não   tinha   superado   o   viés   de   substituir   o   tempo   genuinamente   histórico   pelo   tempo  contextual  da  subjetividade.    64   Precisamos   retomar   o   desafio   levantado   por   Lúkacs   (1964)   em   sua   análise   histórica   do  irracionalismo,   para   mostrar   que   ele   foi   capaz   de   encontrar   novos   modos   de   reprodução,  utilizando  a  combinação  de  mídia  e  marketing  como  as  armais  mais   letais  do  grande  capital  no  controle   do   consumo.   O   irracionalismo   se   desenvolve,   simultaneamente,   no   plano   de   uma  negação   do   fundamento   histórico   em   favor   de   um   pragmatismo   imediato   e   no   espaço   em  expansão  ocupado  pela  mídia  vulgarizadora.  

Page 70: Capitalismo e sociedade

 

70    

interesses entre classes pode ser mais uma manobra sutil a favor da famosa harmonia

social dos ideólogos do Ancien Régime.

A crise simplesmente revela tensões longamente fermentadas, que se precipitam sobre o

tecido social. Mais que a crise, o realinhamento do poder mundial detonou uma revisão

do princípio de poder hegemônico, que se identificou com a supremacia norte-

americana. A suposição de unipolaridade ou de poder incontestável passou a se

enfrentar com áreas políticas impenetráveis65 e com esferas de poder econômico e

político, dotadas de dinamismo próprio, que geram relações de complementaridade fora

do alcance do poder do bloco hegemônico66. O poder hegemônico passou a ser um

poder restrito, que tem que reconhecer limites e negociar, inclusive com países mias

fracos. Esses deslocamentos de poder aparecem com sinais inesperados para o mundo

do capital, tais como são o poderio de empresas públicas e a intervenção do Estado nas

grandes empresas dos países mais ricos. Desses eventos e da compreensão de seu

significado como reversão da visão neoliberal parte uma leitura de desmonte da

economia neoclássica e, com ela, de todo o paradigma marginalista.

As novas iniciativas de saneamento de grandes corporações deficitárias por parte do

governo norte-americano e dos europeus desvelam a verdadeira linha de defesa do

sistema central do capitalismo, que é a posição das megaempresas, tanto daquelas

emblemáticas como a General Motors, como de outras desconhecidas do público no

controle do processo de acumulação de capital. A aliança Estado-empresa, que conduziu

a etapa superior da segunda revolução industrial e transferiu para os pequenos capitais e

para os trabalhadores uma noção mecânica de eficiência baseada em aproveitamento

indireto do trabalho foi instrumental para sustentar os objetivos de uma acumulação

sacralizada, mas encontrava seu fosso na contradição entre a centralidade do lucro

financeiro e a eficiência na esfera da produção. Que significa um equilíbrio entre fundos

para investimento e liquidez, senão um cálculo bancário do custo do pleno emprego?

                                                                                               65    O  conceito  de  áreas  de  poder  impenetráveis  vem  a  ser  necessário  para  explicar  o  mundo  atual  do  poder  mundial,  em  que  há  países  que  não  poderiam  derrotar  o  poder  principal,  mas  tampouco  poderiam  ser  derrotados  ou  invadidos  por  ele.  Não  são  simplesmente  territórios  identificados  com  uma   presença   social   contínua.   São   manifestações   territorializadas   de   poder   que   se   revelam  imunes  à  supremacia  política  e  militar.    66    O  exemplo  mais  recente  e  mundialmente  mais  expressivo  é  a  formação  do  bloco  apelidado  de  BRIC,   que   reúne   China,   Índia,   Rússia   e   Brasil,   com   maior   capacidade   de   crescimento   no   PIB  mundial  e  que  considera  operações  financeiras  fora  da  esfera  do  dólar.  

Page 71: Capitalismo e sociedade

 

71    

Como se sustenta eticamente uma aliança entre Estado e empresa em que os critérios

privados de emprego dos capitais têm como regra básica o desemprego como custo

social necessário para preservar a taxa de lucro? Espera-se que o crescimento do PIB

crie novos postos de trabalho, mas a demissão de trabalhadores é uma parte essencial

reconhecida da estratégia do grande capital para preservar sua taxa de lucro. O conflito

entre investir e empregar e desempregar acontece na economia real, longe da lógica

financeira do capital.

Essa constatação obriga a revisar um problema teórico básico. Há uma diferença

fundamental entre uma teoria da produção formada na perspectiva do desenvolvimento

econômico e uma teoria monetária da produção. A primeira considera a relação entre a

taxa de crescimento do produto e as variações na distribuição da renda. A teoria

monetária da produção reflete apenas interesses do capital e observa a demanda como a

um requisito da reprodução do capital. O principal pressuposto de uma teoria monetária

da produção – do qual não escapou Keynes – é que ela considera modos definidos e

invariantes de relacionamento do sistema bancário com a produção, onde a rentabilidade

dos ativos financeiros é plenamente comparável com a da produção. Por extensão,

entende-se que se trata de um sistema de ativos equivalentes, cuja gestão pode ser

apenas financeira, independente das condições operacionais da gestão industrial. A

eficiência do grande capital poderia ser aferida pelo desempenho na bolsa de valores e

seus grandes referenciais seriam: (a) uma relação custos/riscos onde os riscos são

expurgados por contratos públicos e por estratégias de ampliação do grau de monopólio;

e (b) uma relação lucros/riscos, onde a eficiência marginal do capital é, de fato,

estabelecida pelos rendimentos garantidos oferecidos pelo sistema financeiro.

No marginalismo keynesiano, a intervenção do Estado seria aferida por efeitos globais

para ativar a demanda efetiva. Não considera a composição da demanda nem a

distribuição da renda, que são aspectos que mereceram a atenção de Kaldor e de

Robinson, no campo keynesiano e de Prebisch e Aníbal Pinto, dentre diversos

economistas latino-americanos. Os efeitos dinâmicos dos investimentos são vistos

através do mecanismo do multiplicador, que considera a propensão a consumir como

variável indicativa da disponibilidade de renda. Na prática, o multiplicador do emprego

seria um pseudo-efeito na formação de capital, que é o verdadeiro sustentáculo de sua

Page 72: Capitalismo e sociedade

 

72    

reprodução, mas não contempla o papel do Estado nas transformações estruturais da

indústria67.

O modo de ver a dinâmica da economia também tem um significado ideológico que

agora deve ser explicitado. A diferença entre a percepção do dinamismo do sistema

através do multiplicador e não do acelerador tem como conseqüência sacrificar a

complexidade real pela simplificação financeira e em adotar a igualdade entre poupança

e investimento sem questionar a realização do dinheiro engajado no financiamento da

produção. A brilhante síntese do desenvolvimento contraditório da teoria oferecida por

Shackle (1981) recupera a substância polêmica da contribuição de Myrdal em sua etapa

“ortodoxa”, mas ignora totalmente o giro dado por ele ao procurar realizar uma pesquisa

econômica socialmente realista e socialmente significativa68. Assim, a leitura reflexiva

do movimento keynesiano pára um passo antes de ter que reconhecer o papel da análise

social da economia em Marx. A nova grande questão, que se encontra nos fundamentos

da crise hoje em curso, resulta da separação dos interesses da reprodução do grande

capital frente aos da sustentação da base nacional hegemônica.

Numa visão em retrospectiva do processo recente de formação da crise no alto

capitalismo, pode-se admitir que a versão fundamentalista da irracionalidade,

característica da década de 1990, apenas dava foros de geopolítica a objetivos de uso

militar para sustentar hegemonia econômica. Esse fundamentalismo corresponde a

algumas organizações sócio-políticas norte-americanas dificilmente explicáveis, tais

como a John Birch Society ou a Daughters of American Revolution. Certa literatura do

período entre guerras, onde se incluem as obras de Sinclair Lewis, Erskine Caldwell e

John dos Passos, constitui um testemunho de uma sociedade com uma juventude à

deriva e sem absorver as novas manifestações do individualismo da pequena classe

média. O reconhecimento recente por parte do governo norte-americano, de que não

                                                                                               67  Este  aspecto  foi  trabalhado  por  Hollis  Chenery  em  seu  Structural  change  and  development  policy  (1979).  A  indústria  tem  que  ser  vista  como  um  campo  estruturado  da  produção  e  não  como  cifras  de   produto   e   coeficientes   extraídos   do   desempenho   de   fábricas.   Entristece   ver   que   a   análise  industrial  recuou  de  modo  inescusável  rumo  a  pseudo  problemas  de  competitividade  que  vão  na  direção  oposta  de  enfrentar  a  complexidade  do   sistema  e  de  chegar  a  políticas  para  a  produção  industrial  em  seu  conjunto.    68    A  obra  principal  de  Myrdal,  o  “Drama  Asiático”  (1968)  ficou  até  hoje  ignorada  no  Brasil,  onde  ele  é  conhecido  por  suas  obras  menores,  ou  lembrado  por  monetaristas,  aparentemente  sem  que  se   perceba   que   o   grupo   sueco,   de   que   ele   foi   o   mais   famoso,   representa   uma   discordância  antecipada  e  radical  com  os  pressupostos  da  Teoria  Geral  de  Keynes.    

Page 73: Capitalismo e sociedade

 

73    

havia armas nucleares no Iraque e que Saddam Hussein nada teve a ver com o ataque de

11/9/2001 corrobora esta observação. Objetivamente, a política externa do

fundamentalismo mobiliza argumentos do irracionalismo medieval, como o curioso

“creacionismo”, com teses tais como intervenções defensivas, ou como a “expansão

natural” de Israel69. São argumentos que não se sustentam perante o racionalismo

operacional do capital, mas que não podem ser ignorados, dados seus efeitos finais na

reprodução política do poder.

A introversão do processo

O processo do capital se extroverte ao incluir mais pessoas e mais recursos e ao

impulsionar a produção e a ampliar os usos de recursos e tecnologia. As turbulências do

processo da formação do capital alteram a relação entre incorporação e valorização e

exclusão e desvalorização, fazendo com que o sistema viva de suas próprias forças. A

substituição de movimentos de crescimento pela queima de recursos acumulados leva a

outra disputa de poder, qual seja, de decidir quem paga a conta da crise. A crise se

desenvolve segundo reações dos participantes do processo econômico que agem

racionalmente em função de seus interesses, criando, entretanto, contradições quando

são consolidadas para a sociedade em seu conjunto.

Historicamente, as políticas econômicas tornam-se parte integrada dos processos da

economia porque seus efeitos se fundem com os processos do capital e do trabalho,

determinando novos modos específicos de participação para os diversos agentes sociais

e alterando horizontes de renda e de mobilidade com que cada um deles trabalha. A

política econômica surgiu como um campo de interesse quando se tomou a organicidade

da presença do Estado na economia, isto é, quando se identificou o agir do Estado como

um modo de planejar. Na raiz da lógica da política econômica está o pressuposto de um

Estado interventor, que se considera como protagonista do processo econômico e não só

como participante compensatório. Encontram-se teóricos da política econômica entre

reformistas como Tinbergen (1961), Prebisch (1949) e entre os responsáveis do

planejamento estatal soviético, mas onde sempre foi necessário o questionamento dos

                                                                                               69  Pelo  que  se  pode  ler,  não  há  diferenças  significativas  entre  essa  doutrina  de  expansão  natural  e  as  doutrinas  de  espaço  vital  adotadas  por  regimes  autoritários  europeus.  

Page 74: Capitalismo e sociedade

 

74    

objetivos a serem alcançados, que é uma tarefa que, na prática, só pôde ser enfrentada

em regimes políticos onde foi possível discutir objetivos.

Como são processos que se renovam e mudam de feição, distinguiremos as diferenças

entre os efeitos iniciais propostos das políticas econômicas e seus efeitos finais, que

surgem depois que elas são aplicadas e refletem as idiossincrasias e os defeitos de

competência. Vista na distância do tempo e lida através de seus próprios depoimentos, a

teoria econômica se apresenta como um movimento intelectual espontâneo, que se

realizou por obra e graça da genialidade de alguns pensadores e não pelo fato de que

eles tivessem que responder a problemas concretos de seu tempo. No entanto, a crise

econômica que eclodiu em 1929 foi cultivada pelos resultados da Primeira Guerra

Mundial, que alteraram o sistema mundial de trocas, enfraqueceram os centros europeus

do capitalismo e deixaram um espaço que foi ocupado pelos Estados Unidos, mas sem

absorver a crise de demanda no mercado internacional. O desastre das economias do

Conesul, nessa época, é um testemunho irrefutável dessa brecha. A virtual falência da

orgulhosa economia argentina teve sua correspondência na crise da economia baiana,

que não tinha mais a quem vender fumo nem cacau.

O tema para uma teoria da recuperação da demanda internacional estava colocado pela

incapacidade do marginalismo positivista para enfrentar processos determinados por

causas indiretas. A magia de um mercado auto-regulado, explicado pela lei de Say, se

desvanecia nas novas condições de funcionamento da economia internacional. Além

disso, o mundo da regulação financeira do mercado encontrava as novas opções de

política representadas pelas variedades do planejamento, especialmente do

planejamento econômico soviético, que foram olimpicamente ignoradas pelas potências

ocidentais. Definiam-se os contornos de uma economia de guerra, que se tornaria

imperativa a partir de 1939.

No relativo à recomposição da economia internacional, formara-se uma brecha

conseqüente da substituição de uma economia líder que operava com um elevado

coeficiente de importação por outra que importava relativamente muito pouco enquanto

absorvia vultosos investimentos de outros países. A crise se reproduzia como uma

queda irrefreável da demanda internacional esfriando as iniciativas de industrialização

periféricas. Nos anos que se seguiram à eclosão da crise de 1929, houve uma busca de

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75    

políticas eficientes para compensar esse fosso70 por parte de vários países integrados aos

circuitos internacionais com variados resultados, que assinalaram uma guinada na

direção da industrialização. Suas políticas contradizem a imagem difundida de que os

norte-americanos foram os únicos inovadores com políticas keynesianas. A

instrumentalização para enfrentar a depressão começou na América Latina antes que

Keynes aparecesse e mediante políticas inspiradas na necessidade. Em 1930, os chilenos

criaram a Corporação de Fomento, os argentinos criaram o Banco Industrial da

República Argentina e o México criou a Nacional Financeira. Os norte-americanos

incorporaram os preceitos da política de emprego de Keynes sem questionar a ligação

entre essa dimensão social da política econômica e a visão monetária do sistema de

produção a que se filiava Keynes. Mesmo Hansen (1954), que tinha uma visão prática

de homem da pequena produção, caiu nessa armadilha teórica de generalizar sobre o

sistema produtivo com a visão dos banqueiros. Não poderia confundir a liquidez geral

no sistema financeiro com a disponibilidade de crédito para produção.

Trata-se, portanto, de definir como o governo intervirá e não se ele intervém. A

suposição de que o governo deveria reativar o sistema produtivo significava realmente

que a parte do Estado na aliança política do poder econômico deveria ser realizada de

modo direto, injetando poder de compra no sistema, além dos contratos que ofereceria

às empresas. O mecanismo considerado é um dispositivo global de intervenção

financeira, que se orienta pelo volume de operações financeiras, isto é, que é atraído

pela atividade bancária e financeira, tendo sempre os bancos como referência

institucional. É inevitável considerar que essa perspectiva monetária, trabalhada por

Keynes desde seu Tratado da moeda, se formula sobre uma concepção de capital

homogêneo e onde o epicentro da teoria é uma teoria monetária da produção.

Na perspectiva teórica do problema, portanto, faltam dois elementos essenciais a essa

política de multiplicador, que são os de composição do capital e de distribuição da

renda. São referências que levam a distinguir entre modelos simplificados de

crescimento econômico e planos de desenvolvimento. Sempre e quando se revelam as

conseqüências dos desdobramentos no tempo das políticas públicas, torna-se inevitável

considerar que os impulsos de dinâmica do sistema produtivo envolvem diferenças de

                                                                                               70    É  oportuno  mencionar  que  no  Brasil  o  governo  de  Epitácio  Pessoa,  na  década  de  1920,  adotou  as  primeiras  medidas  que  podem  ser  reconhecidas  como  de  substituição  de  importações.    

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76    

composição dos novos investimentos frente ao capital em operação e que a distribuição

de seus resultados altera a repartição da renda em seu conjunto. As diferenças de

composição entre o capital investido e o dos novos investimentos se convertem em

correspondentes situações de tecnologia, que representam custos e demanda de crédito.

Por sua vez, o efeito distribuição da renda embutido na concentração do capital e na

precarização do emprego se traduz em variabilidade da demanda que só pode ser

apreciada quando se comparam períodos, isto é, quando se examinam as limitações de

representatividade da análise quantitativa do processo. A conclusão inevitável é que as

alterações na distribuição da renda resultam em efeitos na composição e na magnitude

da demanda que se transmitem através das modificações na composição do capital.

Com estes elementos de experiência, vê-se porque as políticas anticíclicas não podem

ser concebidas sobre o curto prazo e porque devem apoiar-se em referências realistas

atualizadas do funcionamento do sistema produtivo, onde os efeitos na composição do

capital e na distribuição da renda responderão por possíveis alterações do consumo em

médio prazo. Assim, não há como ignorar a necessidade de rever a teoria do consumo

para colocá-la em termos compatíveis com a explicação do ciclo e a do

desenvolvimento.

Trata-se, no essencial, de reconhecer o fundamento objetivo do comportamento do

sistema correspondente a seu modo e nível de organização frente a fatores impregnados

de subjetividade, tais como a preferência por liquidez ou a propensão a consumir.

Quando se escolhe e aplica uma política econômica, enfrentam-se condições ambiente

concretas dentro das quais se colocam os elementos de subjetividade dos agentes

econômicos. Certamente, há uma cultura de expectativa de lucros do grande capital,

mas tal como a experiência mostra, também há uma cultura de supor que os governos

serão constrangidos a transferir os recursos que forem necessários para salvar as grandes

corporações, simplesmente porque elas são a espinha dorsal da economia mundializada.

No entanto, as mesmas disputas de defesa da taxa de lucro se reproduzem na esfera do

grande capital e as compras de participação e as disputas por fatias de mercado

prosseguem, inclusive, ultrapassando os objetivos das políticas públicas de salvaguarda

das empresas.

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77    

Uma hipótese a considerar é que a reprodução do grande capital, na qual já se

incorporaram os desígnios do capital especulativo, depende do que Mészáros (2007)

denomina de imperativo do tempo do capital, que é o que surge da imposição à

sociedade do tempo da reprodução do capital incorporado no sistema de produção. A

reprodução do grande capital envolve complexas cadeias de decisões e, freqüentemente,

faz com que as grandes empresas controlem empresas de menor porte, que são parte dos

grandes interesses. A mobilização da sociedade para garantir a reprodução do capital

resulta em exaurir o tempo próprio da vida das pessoas, que são coagidas a um esforço

conducente a um vazio ontológico. As pessoas trabalham para sua própria negação, em

um sistema cuja lógica orgânica consiste em rejeitá-las.

No que a sociedade descobre a negatividade da salvaguarda do grande capital,

desenvolve-se uma introversão do processo social da política econômica, cuja

tecnicidade deixa de poder ocultar seu significado ideológico. Volta a ser necessário

explicar quais são os destinatários dos benefícios da política econômica, que também se

explicita como uma ação pública. Subrepticiamente, volta-se a enfrentar a questão

ideológica relativa ao sentido de finalidade da ação pública: proteger o grande capital, o

pequeno capital e setores médios de renda ou os trabalhadores em geral? A

complexidade da composição social dos países mais ricos não permite conduzir este

argumento sobre uma relação geral de classes, mas tampouco dá lugar para

desconsiderar seu papel na estruturação das relações de poder. Tudo isso envolve um

problema prático relativo a como projetar efeitos em mais longo prazo de políticas

anticíclicas, isto é, a como convertê-las em políticas de desenvolvimento.

A dialética do ciclo e a do desenvolvimento

Nos parágrafos anteriores procuramos expor as ligações entre os ciclos e as condições

de desenvolvimento, por extensão, levantando as correspondentes conexões entre as

políticas controladoras dos ciclos e as políticas propulsoras do desenvolvimento. As

motivações da luta contra o movimento depressivo do ciclo e da luta para superar o

subdesenvolvimento procedem de diferentes condições de classe. Tradicionalmente, as

chamadas políticas cíclicas são desenhadas para enfrentar os movimentos negativos do

ciclo. São políticas compensatórias, organizadas sobre condições operacionais definidas

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78    

em curto prazo, mesmo quando reconhecem que a gênese dos ciclos ocorre em períodos

em que se sobrepõem oscilações de curta e de média duração e em que a visibilidade do

processo diminui sobre o horizonte de tempo, mas onde a visão em longo prazo se

ajusta continuamente.

Em cada momento da trajetória do sistema econômico coincidem movimentos

engendrados em diferentes momentos, que também interagem de diferentes modos uns

com os outros. É a leitura dinâmica da interposição dos prazos com que operam os

diversos componentes do capital. Também, é a lógica de compensar movimentos

negativos, mas não é a de gerar novos movimentos positivos que alterem a capacidade

das economias nacionais para mudarem. Por isso, a necessidade de trabalhar sobre os

nexos entre as conseqüências das políticas anticíclicas e das políticas de

desenvolvimento é um tema que ocupa os momentos de insônia mais profundos dos que

tratam dos problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento.

Um argumento que se impõe reconhecer neste campo é que as sucessivas ações em

curto prazo têm efeitos cumulativos que fazem delas verdadeiras políticas de maiores

efeitos sobre durações mais longas. O curto prazo não está constituído de ações

esporádicas senão de ações que integram efeitos em prazos mais longos. A acumulação

de efeitos introduz um argumento relativo a dispersão ou a convergências das ações em

economia. Nelas, a questão do desenvolvimento fica latente como um problema que não

se nega, mas que não se tem como tratar. No entanto, a questão do desenvolvimento se

manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e com seus efeitos

acumulados e não previstos. Nelas, a questão do desenvolvimento fica subsumida, como

um problema que não se nega, mas que não se tem como tratar. O desafio do

desenvolvimento se manifesta através das conseqüências das políticas anticíclicas e de

seus efeitos acumulados e não previstos. Na realidade, o movimento negativo da

economia pode ser visto como um problema de conjuntura ou como uma tendência que

afeta negativamente as perspectivas de desenvolvimento, portanto, cujo significado só

se percebe quando é colocado segundo o modo como afeta ao futuro da economia.

Uma rápida revisão dos aspectos de transformação social que estão subentendidos na

dinâmica manejados pela teoria indica alguns princípios de dinâmica do mundo da

economia que não se pode deixar de considerar. Seriam eles o multiplicador do

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79    

emprego, o acelerador da despesa, a causação circular cumulativa dos efeitos de

dinâmica e a entropia do sistema produtivo. A eles somaremos os efeitos da

concentração do capital na continuidade da acumulação, que é o modo de ver como os

diferentes efeitos da mecânica do processo deságuam em um processo econômico e

político, em que favorecem algumas mudanças necessárias ao desenvolvimento,

enquanto cerceiam outras e, em todo caso, que modificam as condições sociais e

políticas do processo de desenvolvimento.

O problema todo gira em torno da continuidade da acumulação, que é um pressuposto

inerente ao sistema do capital. A suposição que o processo de desenvolvimento pode

prosseguir é compatível com essa premissa de uma acumulação sem prazo para

terminar, mas é negada ou questionada pelo pressuposto de comportamento cíclico, que

acarreta aceitar como natural a hipótese do ciclo negativo que interrompe a acumulação.

A seguir, trata-se de estabelecer o desenvolvimento como movimento de auto-superação

da sociedade. Se esse processo consiste em superar inércias e reverter movimentos

negativos, desenvolvimento será superar tendências do subdesenvolvimento, onde os

ciclos negativos operam como vetores dissonantes do movimento geral do capital. As

crises obstruem ou tergiversam a trajetória do capital. Com essa percepção da realidade,

será preciso ver a gestão anticíclica da economia como uma dimensão inseparável da

política de desenvolvimento. Se o crescimento é oscilatório, se está sujeito a

movimentos de irreversibilidade e de entropia, a gestão da crise atual é parte de uma

política concebida em longo prazo. Além disso, se as crises apontam a novas condições

e objetivos para o crescimento da economia obrigam a refazer os horizontes de

desenvolvimento com que se trabalha.

Nesse contexto colocam-se os espaços de manobra em que opera a política econômica

reconhecendo um papel ativo ao Estado na fiscalização e na participação em grandes

empresas e estabelecendo padrões de eficiência junto com argumentos éticos que são

contraditórios com a premiação pela concentração do capital. O poder de fiscalizar tem

um aspecto aparente, mas pertence a uma realidade em que disputam espaço forças

políticas que controlam os meios formalizados da política.

Page 80: Capitalismo e sociedade

 

80    

Volta-se a uma questão essencial da dialética do desenvolvimento, que é a de combinar

os objetivos de aumentar o produto e distribuir a renda com os outros objetivos de criar

condições sociais e políticas compatíveis com esse objetivo. Será preciso colocar as

políticas anticíclicas como parte de políticas de desenvolvimento em longo prazo.

Este objetivo principal exige que se considerem quatro referências essenciais do

funcionamento do sistema produtivo, que são as de: (a) modificações nas condições

técnicas de uso do capital disponível; (b) modificações no quadro da ocupação total,

compreendendo a composição de empregos regulares e ocupações precárias; e (c)

modificações no contexto das relações de poder na condução da economia. Em síntese,

os obstáculos e as vantagens com que se conta para superar o subdesenvolvimento

mudam ao longo dos tempos da formação do capital e da conseqüente composição das

relações de classe. A análise das relações entre o poder econômico e o político envolve

uma dimensão de previsão que é incompatível com a visão mecanicista da economia

(Badaloni, 1989). Se, por um lado, as políticas determinadas pela compensação dos

ciclos geram efeitos que condicionam as políticas de desenvolvimento, estas, por sua

vez, causam efeitos sobre a composição da demanda, onde o acelerador da despesa

influi no comportamento cíclico da produção. As interdependências entre estas duas

abordagens de política dão um sentido historicamente novo à intervenção dos governos

nacionais na condução do grande capital. Torna-se, portanto, necessário examinar o

potencial destas novas políticas como instrumentos anticíclicos e de desenvolvimento.

Tanto as políticas anticíclicas como as de desenvolvimento são complexas e geram

alguns resultados previstos e outros inesperados, mas que em seu conjunto

correspondem a novos padrões de possibilidades de agir do Estado.

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81    

5. Alienação e ideologia na formação do capital.

As idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época. Marx71

Passaram os tempos em que a força de trabalho se submetia incondicionalmente às leis de mercado e também os tempos em que o Estado era prescindente em matéria de distribuição da renda. Raul Prebisch72

Preliminares

Esta pesquisa começa com a observação de que a alienação não é um estado senão é um

processo que desenvolve seus próprios modos de reprodução, incorporando e

modificando as instituições e as relações reais entre os capitais e os trabalhadores. À

medida que as relações de trabalho se tornam mais indiretas elas também desenvolvem

mecanismos diretos de controle que podem ser comunitários ou de auto controle. A

vigilância mútua entre os membros de corporações, a censura da mídia, o sentimento de

culpa promovido pelas religiões, são mecanismos eficazes para promover novos modos

e instâncias da alienação, que deverão ser examinados numa perspectiva emancipatória

não européia.

Os processos históricos da alienação

A alienação é o processo pelo qual se faz a ponte entre os modos de controle social da

sociedade patrimonial pré-capitalista e a sociedade capitalista avançada. Evoluem as

condições concretas e as referências simbólicas da alienação. Desse modo se constroem

as condições objetivas pelas quais se realiza a exploração do trabalho na produção

capitalista. Nas transformações do capitalismo e da sociedade moderna as condições da

alienação mudam junto com a organização social do capital, portanto, em consonância

com as condições objetivas de sobrevivência dos trabalhadores. No bojo dos

movimentos de assalariamento e de desassalariamento, foram quebradas as referências

de responsabilidade do Estado pelo emprego e pela renda dos trabalhadores e a filosofia

do neoliberalismo simplesmente deu uma explicação doutrinária para uma tendência

generalizada do grande capital de se desentender da renda da classe dos trabalhadores.

                                                                                               71  Karl  Marx,  A  ideología  alemã  72  Discurso  de  despedida  no  XXI  período  de  sessões  da  CEPAL,  México,  24  de  abril  de  1986.  

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82    

A alienação quebra o sentido de solidariedade de classe dos trabalhadores, tornando-os

individualmente mais expostos às pressões do capital.

O reconhecimento da objetividade da alienação torna necessária uma revisão da teoria –

em seu sentido mais amplo de filosófica e social – pelo menos desde os rumos postos

pela obra de Hegel e seguindo pela de Marx para registrar os elementos concretos das

relações de produção que surgem nas transformações das sociedades de hoje. A

originalidade das novas sociedades ascendentes envolve composições do antigo com o

moderno, que não são parte dos processos das sociedades européias.. As condições

especiais de diferenciação social criadas pela colonização fizeram com que a alienação

se processasse concomitantemente de distintos modos, no plano da produção simples e

no da produção de alta tecnologia. A articulação entre as esferas da produção de alta

tecnologia e as de baixa tecnologia é a marca mais nova do modo operacional do grande

capital, que transfere custos e riscos para a produção periférica e garante lucros elevados

a baixo risco. Mas é preciso registrar a originalidade do grande capital que aproveita

vantagens das situações modernas e das arcaizadas.

Os processos da alienação são movimentos que se renovam, que mudam de forma

segundo o controle dos interesses do capital se traduz em novos elementos ideológicos

da produção capitalista avançada. Não se trata de mapear o mecanismo original da

alienação que sustentou as formas básicas de exploração na produção capitalista

industrial, senão de ligar a progressão dos movimentos de alienação com os da

organização social da produção. Deste modo define-se um tratamento não ideológico da

alienação, ou de ver a alienação como um componente de um processo histórico

concreto de formação de capital. Se ela começa como uma operação que se realiza no

plano da subjetividade, imediatamente se resolve objetivizada como uma estratégia de

luta pelo poder político na economia.

Ao ver a alienação como processo objetivo de poder torna-se necessário segui-la como

ela se realiza nos diferentes ambientes da produção, como se converte no circuito

economia->política->economia. Começamos por reconhecer que a alienação passa por

sucessivas e diferentes formas ao longo da história, correspondendo a diferentes

condições de organização social da economia e da política. Primeiro foi conduzida pelos

processos da colonização, passando de formas impostas pela força, pela dominação da

Page 83: Capitalismo e sociedade

 

83    

exploração econômica privilegiada a formas mais sutis de controle ideológico, com

mecanismos de valorização tais como símbolos de status da combinação de elementos

da política e da religião. Em diferentes dosagens, segundo o componente religioso foi o

catolicismo ou foi alguma das diversas variedades de protestantismo, em todo caso foi a

combinação de política e religião sempre o caldo básico da construção das estruturas de

poder que conduziu a alienação, operando principalmente sobre grupos sociais

ascendentes, que são os mais expostos a novas influências. O panorama social da

alienação torna-se e mesmo as formas tradicionais de alienação, como o trabalho

subjugado do meio rural, são penetradas de separação, tal como acontece com a difusão

de novos meios de comunicação sobre os grupos de baixa renda. O recrudescimento de

religiões sem teologia, ou de religiões involucionistas, constitui uma demonstração das

novas formas de irracionalidade que surgem nas brechas da racionalidade instrumental

do capitalismo desigual.

Esses movimentos de irracionalidade representam contradições da racionalidade

operativa com que opera o capital tecnicamente avançado mas que são funcionais à

racionalidade da reprodução orgânica do capital. Servem aos objetivos implícitos do

sistema de poder econômico e político, traduzindo-se em uma mobilização ideológica

que alcança os mecanismos de reprodução do poder. Nesse ponto não há como separar a

racionalidade econômica do capital de sua racionalidade política.

A alienação herdada

Há uma diferença insuperável entre o discurso da luta pelo desenvolvimento que brota

da consciência social da periferia do sistema mundial de acumulação de capital e o que

se forma como concessão, ou mesmo como cessão dos países detentores das posições

centrais dos movimentos de acumulação e de concentração do capital. O movimento

geral de acumulação e concentração do capital não só é desigual em tempo e espaço,

como e principalmente se realiza mediante a construção de diferenças sociais mais ou

menos prolongadas. A consciência social do desenvolvimento é a de uma luta pertinaz

para superar os processos do subdesenvolvimento, que ressurgem através do controle da

renovação tecnológica e do capital financeiro e resistem a interpretações simplificadoras

enquanto mudam constantemente de forma. A referência inevitável é a trajetória das

origens até o quadro de hoje. Significa tratar com as marcas das diversas versões de

Page 84: Capitalismo e sociedade

 

84    

colonialismo e dominação, compreendendo a escravidão, a servidão e a pobreza aguda

crônica generalizada.

Este sistema de poder opera através de um conjunto de mecanismos de alienação que

separam os trabalhadores de seu contexto original de identidade. O atual sistema de

poder representa a substituição do velho colonialismo por um sistema complexo de

dominação, cujo eixo é uma aliança do grande capital com os Estados nacionais

poderosos, com uma adesão das elites dos diversos países e um controle institucional do

poderio militar. A concentração internacional de poder se traduz em formações

nacionais interdependentes, que operam de modo interligado. Esta nova aliança torna

necessária uma criticas das estruturações políticas a partir do desempenho econômico.

A questão social da ideologia pertence à problemática da reprodução do mundo material

da produção. É um problema central do capitalismo numa época em que os modos de

funcionamento da sociedade do capital mostram maiores e mais complexos mecanismos

de irracionalidade. Como em tempo percebeu Lukacs, há uma trajetória do

irracionalismo, que se move desde um terreno filosófico até o da gestão direta dos

capitais aplicados. A rigor, há trajetórias interligadas entre tudo que se processa no

plano dos conceitos e da linguagem e o que se desenvolve no da realização de mais

valia e no que impacta na distribuição da renda. Se são as idéias da classe dominante

que predominam, é preciso perguntar quanto a classe dominante é consciente de seus

interesses, quanto seus integrantes agem como classe e quanto têm as competências

necessárias para cuidar de seus interesses.

A explicação histórica do processo do capital não pode prescindir dos componentes de

alienação e de ideologia, porque eles são os determinantes dos processos de poder que

ligam a esfera da economia com a da política e se tornam as âncoras de uma análise

social que com freqüência acede aos riscos e encantos do personalismo. Tampouco

pode substituir a análise do poder historicamente construído pela dos modos de

vivenciar o poder. Por isso não se irá muito longe se em vez de tratar de situações

históricas concretas de poder e dominação se desenvolve um raciocínio limitado a

referencias entre autores, onde a crítica é apenas uma discordância. Assim como a teoria

da Física se distanciou de experimentos concretos, a teoria do mundo da economia se

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85    

separou da ancoragem de referências a processos concretos e se satisfez com criticar

pensadores contraditórios com esse processo ou se refugiou em modelos simplificantes.

Ao reconhecer o papel ativo da ideologia na formação do sistema de produção a teoria

deve tomá-la como parte integrante da realidade social histórica, segundo ela está

integrada no mundo da economia e da política. Justamente, o que se cobra da

explicação da ideologia é estabelecer sua função na realização da esfera material e não

só na reprodução da própria esfera ideológica. Se a ideologia é o campo de

manifestação de idéias de classe, a alienação é o mecanismo que transforma as idéias de

classe em ferramentas de poder, que dão ao capital a capacidade de conduzir o processo

de captação de valor, isto é, de converter a mais valia em parte integrada do sistema

operacional do capital. Esse processo se realiza segundo a maturidade dos capitalistas e

de suas instituições para combinar a gestão do capital acumulado com a busca de novas

oportunidades para aplicar capital novo. Em todos lugares e momentos a ideologia

reúne os dois aspectos de refletir o conhecimento de um momento anterior do mundo

social e de reagir ao funcionamento do mercado onde operam. A ideologia é um reflexo

de condições de vida historicamente identificadas, pelo que não pode ser apenas o

discurso do campo imaterial da vida social, desprendido da movimentação do sistema

produtivo. O que liga os movimentos da ideologia com o plano das condições

individuais das pessoas é a alienação.

Neste esforço precisamos mais de uma análise do contexto histórico que das teorias,

mas não podemos prescindir de uma revisão delas, porque finalmente elas situam nossa

capacidade de ver os processos históricos. A reflexão sobre este tema traduz-se em um

exercício de análise comparada das obras de Hegel e de Marx e não na de um ou do

outro. O propósito de convalidação de Marx filósofo através de uma crítica

desqualificadora de Hegel perde a riqueza dessa complementaridade inerente ao

desenvolvimento da obra de Marx. São dois projetos pessoais de trabalho, em que o

segundo não poderia acontecer sem o primeiro, mas onde o primeiro construiu uma

noção de totalidade que jamais foi superada. A explicação da materialidade nas

transformações da sociedade moderna levou Marx a desenvolver uma crítica da teoria

de Hegel sobre o Estado, como parte de uma colocação maior da dialética da formação

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86    

social do poder, compactada em sua filosofia do Direito73. A descoberta da

complexidade do sistema socioprodutivo só se realizaria plenamente no primeiro

volume de O Capital, quando Marx inverteu a ordem ontológica da exposição em favor

de uma ordem categorial, numa manobra aristotélica, de apoiar-se na categoria

mercadoria que encerra duas armadilhas mortais. Primeiro, porque não existem

mercadorias individuais, senão elencos de mercadorias, onde o valor de cada uma delas

depende do das demais. Segundo, porque o conteúdo de trabalho de cada mercadoria

muda de modo inevitável, segundo o sistema incorpora tecnologia. Criticar Hegel seria

um passo necessário na direção de uma maioridade ontológica. Marx centrou sua crítica

nesse texto, mas não desconhece outras formulações anteriores de Hegel.74 Tornou-se

consensual entre os leitores de Marx que a afirmação do rumo de suas pesquisas começa

com uma ruptura com o idealismo de Hegel, de quem, entretanto, absorve o método

dialético e a visão histórica. A crítica de Marx a Hegel envolve uma combinação de

elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito central da dialética

hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão aufheben, que se

encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a contradição dada pela

inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o processo do Estado do

processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos Manuscritos depende

desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de Hegel, de 43, em que a

disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre a historicidade da

sociedade e do Estado. Nada a ver com a versão popularizada de uma inversão

superficial do uso do método dialético.

A querela de Mézsáros sobre a alienação

A categoria da alienação ocupa um determinado espaço na doutrina de Marx, que

recebeu diferentes leituras no campo marxista, divergentes mesmo quando parecendo

semelhantes. Desde logo, é preciso entender que a alienação em Marx é uma síntese

conceitual de um processo de desligamento do trabalhador com sua condição de

produtor, onde se registram a fragilidade de sua posição no mercado de trabalho.

Apresentam-se aqui comentários à Teoria da Alienação em Marx por Istvan Meszáros,

                                                                                               73    G.W.F.Hegel,  Elementos  preliminaries  de  uma  filosofia  do  Direito,    Lisboa,  Presença,  1984.  74    Marx  conhecia  a  Fenomenologia  do  Espitito  e  a  Ciência  da  Lógica,  mas  devemos  entender  que  não  conheceu  as  Lições  de  História  Universal,  que  só  foram  publicadas  depois  de  sua  morte.    

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87    

que se coloca na chamada corrente historicista do marxismo, basicamente, seguindo a

obra de Georg Lukács, centrando esforços na explicação da ideologia na sociedade de

hoje. O objetivo destas reflexões é a teoria da alienação e não uma exegese da obra de

Meszaros, mas convém esclarecer que seu ensaio sobre a teoria da alienação em Marx

ocupa um lugar significativo numa seqüência de análise sobre o componente ideológico

do sistema social, que marca uma diferença fundamental frente a outras correntes de

pensamento que separam a subjetividade do sujeito historicamente consistente. Esse

debate tem uma trajetória especial no contexto do marxismo, que está em torno do

reconhecimento do sujeito como ser social e da determinação da personalidade como

decorrência do sistema em que a vida social se realiza.

Lukács geralmente é identificado como fundador do marxismo ocidental com seu ensaio

História e consciência de classe, mas é autor de uma notável leitura de Hegel 75 e de

uma importante análise crítica da ideologia enquanto parte do sistema social do

capitalismo. Especialmente, em seu último trabalho, que foi a Ontologia do ser social,

Lukács oferece uma análise da historicidade na análise de Marx, que envolve a

interação entre os componentes materiais e os ideológicos do processo social e que

desqualifica qualquer análise separada da ideologia. Meszáros retoma uma parte

importante da proposta de Lukács, mas se separa dessa tradição, na medida em que

omite uma análise histórica concreta. Usar experiências concretas, ou referir à

pluralidade histórica do capital, não significa sucumbir à maré da “economia nacional”,

que significa descartar a própria pluralidade da história e supor que todos os

movimentos do capital podem ser percebidos desde o centro mundial da acumulação. 76

Logicamente, toda essa especulação se remete à obra de Marx, em que se destaca a

importância de seus primeiros trabalhos na construção da crítica do sistema capitalista

de produção. Marx identifica o problema da alienação em dois momentos especiais e

diferentes de suas primeiras obras, que são sua crítica da filosofia do direito de Hegel e

o Manifesto Comunista. As teses desenvolvidas na crítica da filosofia do direito de 1843

foram resumidas e integradas no corpo analítico mais complexo que são os Manuscritos

                                                                                               75    Georg  Lukács,  El  joven  Hegel,    Barcelona,  Ariel.  1967.  76  A  economia  ortodoxa  está,  toda  ela,  fundada  em  pressupostos  da  economia  nacional  e  trata  dos  temas   da   economia   internacional   a   partir   de   uma   visão   de   economia   nacional.   A  internacionalidade  do  capital  e  a  mobilidade  do  trabalho  entram  como  campos  adicionais  que  se  exploram,  mas  cuja  exploração  não  muda  em  nada  a  perspectiva  da  análise.    

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88    

Econômicos e Filosóficos de 1844, que, por isso, passaram a constituir o corpo de

análise – sistema em status nascendi, como o denomina Meszaros – apesar de ainda não

terem incorporado a crítica histórica da materialidade do sistema do capital, que surgiria

com os Grundrisse. Nos Manuscritos já se encontram os elementos básicos de uma

teoria da exploração, que, entretanto, passa a incorporar os elementos daquela dimensão

histórica que permitirá contrastar o sistema capitalista de produção com seus sistemas

antecessores. A alienação passa a ver-se como elemento essencial da produção

capitalista, que se aprofunda à medida que a produção se torna mais indireta. Desde aí

fica superada a idéia de uma análise da alienação que não se fundamente em dados da

história e que não trate especificamente do capitalismo. Já no Manifesto o tema central é

a alienação imposta pelo capital, onde por um lado os trabalhadores são isolados como

pessoas e por outro lado são agrupados como operários. A alienação converte-se em

controle social.

Em ambos momentos, a noção de alienação surge como detecção de um processo social

concreto, que tem um pé no controle dos trabalhadores e outro pé no controle de umas

seções do capital por outras com a ajuda dos próprios trabalhadores. As duas formas de

controle variam ao longo do processo de acumulação, compondo situações em que as

posições das pessoas são incomparáveis com momentos anteriores do processo e onde

as pessoas são desvestidas de seu caráter histórico e podem ser substituídas ou terem

sua identidade apagada. A alienação atinge ao sistema socioprodutivo em seu conjunto e

não só àqueles que estão trabalhando hoje. No que pode ser o contrário da alegada

empregabilidade, o que há realmente é que as pessoas se tornam descartáveis, que sua

qualificação pode ser anulada, e junto com ela sua capacidade de pensar e agir de modo

autônomo.

A alienação é o processo que torna possível a exploração, portanto, não se limita à

esfera da ideologia. A grande força da alienação é que ela explica a energia que conduz

a produção capitalista através do sem sentido da acumulação. Istvan Meszáros realiza

uma exaustiva revisão dos fundamentos civilizatórios da alienação, reunindo suas raízes

ideológicas junto com suas pistas nos processos concretos da produção burguesa.

Constrói um importante modelo explicativo, que foi recolhido em suas obras

posteriores, especialmente em O Poder da Ideologia. É uma contribuição inestimável,

que, entretanto, nos deixa diante do problema crucial de distinguir as diferenças entre

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89    

identificar ideologia como parte da construção ideológica da produção capitalista, ou

como parte da progressão das contradições da organização social da produção burguesa.

Teremos que ver a alienação como uma força que encontra novas formas de expressão

no ambiente da produção moderna e no da produção ultra moderna.

O propósito de explicar a explicação da materialidade da sociedade moderna levou

Marx a desenvolver uma crítica da teoria de Hegel sobre o Estado, que é parte de uma

colocação maior do mestre da dialética sobre a formação social do poder, que está

compactada em sua filosofia do Direito77. Com o conhecimento que se tem hoje do

pensamento de Hegel em seu conjunto, que não estava disponível para Marx, impõe-se

visualizar o projeto de Hegel, em sua forma final, tal como se vê hoje. O objetivo final

de Hegel é uma teoria do poder na formação da sociedade moderna que passa por uma

economia política, mas que é, essencialmente, uma filosofia do poder. É necessário

ressaltar que Marx centrou sua crítica nesse texto, mas que não desconhece outras

formulações anteriores de Hegel.78 Tornou-se consensual entre os leitores de Marx que

a afirmação do rumo de suas pesquisas começa com uma ruptura com o idealismo de

Hegel, de quem, entretanto, Marx absorve o método dialético e a visão histórica, que

aplica a sistemas historicamente situados. No entanto, costuma haver muita

simplificação nesse argumento, atribuindo a Marx um tipo de crítica muito inferior ao

escopo de seu projeto intelectual. Pode-se identificar a raiz dessa crítica em um ponto na

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em que diz Marx “ A subjetividade éuma

determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de

concebe-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza seus predicados e logo

os transforma em forma mística em seus sujeitos. [...] Hegel autonomiza os predicados,

os sujeitos, mas ele os autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito”79

A nosso ver, a crítica de Marx a Hegel é muito mais complexa que isso e envolve uma

combinação de elementos positivos e negativos, em que sua crítica parte do conceito

central da dialética hegeliana, a superação/subsunção representada pela expressão

aufheben, que se encontra no prólogo da Fenomenologia; e que se defronta com a

contradição dada pela inter-relação do raciocínio dialético, quando Hegel separa o                                                                                                77    G.W.F.Hegel,  Elementos  preliminaries  de  uma  filosofia  do  Direito,    Lisboa,  Presença,  1984.  78    Marx  conhecia  a  Fenomenologia  do  Espitito  e  a  Ciência  da  Lógica,  mas  não  poderia  conhecer  as  Lições  de  História  Universal,  que  só  foram  publicadas  depois  de  sua  morte.    79    Karl  Marx,  Crítica  da  filosofía  do  Direito,  São  Paulo,  Boitempo,  2005,  pp.44.  

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90    

processo do Estado do processo da sociedade civil. A argumentação desenvolvida nos

Manuscritos depende desse salto de raciocínio despregado na Crítica da filosofia de

Hegel, de 43, em que a disputa conceitual na verdade se revela como uma querela sobre

a historicidade da sociedade e do Estado. Na abordagem de Marx as transformações que

acontecem na esfera do Estado são parte integral das transformações da sociedade em

seu conjunto, inclusive, porque somente através da análise das interações entre o Estado

e a sociedade civil é possível penetrar na metamorfose política do capital.

Numa leitura linear da crítica de Marx, dir-se-ia que o Estado hegeliano separado da

sociedade reduz-se a uma realidade positiva, cujo único produto é a burocracia. De fato,

nesse momento do pensamento de Marx surge uma identificação crítica da burocracia,

cujo sentido de finalidade se diferencia do modo histórico do Estado e se torna um

aparelho da burguesia. Marx dedica algumas páginas à burocracia na Crítica da filosofia

em que se antecipou à temática de Weber, vendo, entretanto, o papel da burocracia

como instrumento de poder do capital. Mas não se pode esquecer que foi justamente

Hegel quem rompeu com o jus naturalismo 80 para erigir o direito como formalização

histórica. Qual será, então, o processo que desveste a condição histórica do Estado?

Marx focaliza sua crítica na objetivização do predicado feita por Hegel, que permitiu a

este último tratar o Estado como sujeito do poder, com um sentido de finalidade que é a

reprodução do poder do soberano, isto é, do monarca, por separado da legitimidade que

lhe é dada pelo povo.

\

Assim, essa crítica que começa como uma análise do processo da análise, torna-se uma

reivindicação do fundamento antropológico de processo do poder, onde surge o povo

como presença essencial da sociedade. O povo é o princípio ativo da dialética do poder.

Mas o povo não é uma entidade amorfa, não é uma multidão regida apenas por

solidariedades momentâneas, senão carrega uma história com processos próprios de

coesão e de conflito. O povo brasileiro interage com a história do Brasil. Faltará,

portanto, resolver o problema de ligar essa crítica do processo político do poder com a

materialidade da economia. Esta se transforma junto com a composição do capital e

com a das forças do sistema político.

                                                                                               80    Ver  Norberto  Bobbio,  Quatro  ensaios  sobre  Hegel  

Page 91: Capitalismo e sociedade

 

91    

Esse será o programa de trabalho da crítica da Economia Política, que não pode se

eximir de enfrentar a inter-relação entre os processos pretéritos e os atuais. A

historicidade da análise social da economia é uma qualidade a ser preservada e que

permite acompanhar as mudanças de composição e de rumo do sistema produtivo.

Há uma diferença radical entre o papel do descobrimento da teoria da alienação na

formação do corpo de idéias de Marx e o significado que lhe é atribuído na leitura de

Meszáros. A proposta de Meszaros compreende uma identificação do sujeito da análise,

que, afinal, é sujeito do processo de reflexividade que surge no contexto da sociedade

burguesa, que é esta consciência social crítica. A identificação do sujeito é um processo

que extroverte as diferenças de situação das pessoas por sua identidade como

trabalhadores ou simplesmente como pessoas – o que remete essa análise ao corte

antropológico do contexto social. Para Marx, tal como ele coloca em sua crítica da

filosofia do direito de Hegel e como desenvolve na Ideologia alemã, o sujeito se realiza

mediante a práxis e esta é a matriz de que parte Lúkacs na sua História e consciência de

classe. A derivação constante de práxis – identidade – práxis é o fundamento dialético

do movimento ideológico contra-hegemônico que situa a representação do trabalho no

processo do capital

A questão é que nessa análise social há um humanismo que é mais que um humanismo

ético, porque qualifica o humanismo de processos sociais específicos. Nessa qualidade,

entra o trabalho de Meszáros sobre a questão do judaísmo , que ele trata como uma

marginalidade e como uma tradição de individualismo e independência. Observe-se que

no estudo de Meszáros se cruzam duas vertentes de leitura dessa marginalidade, que lhe

permitem tratar o judaísmo como fonte de liberdade. A cultura oficial será uma prisão

cultural, porque se converte em imposição irracional de uma determinada forma. Por

exemplo, o formalismo metrificado da poesia francesa, ou o viés empirista da filosofia

inglesa. Marginalidade significa dispor de liberdade para pensar os processos sociais

além de seu enquadramento atual, por isso, em condições de expor seus fundamentos

ideológicos.

Com a teoria da alienação se questiona a combinação do movimento concreto de

separação do trabalhador do processo de produção com o movimento de transfiguração

ideológica do processo produtivo em seu conjunto, que reverte sobre todos seus

Page 92: Capitalismo e sociedade

 

92    

participantes e não só sobre os trabalhadores, que são vitimados por essa separação. A

alienação compreende processos da produção material e processo simbólicos, em que o

controle do universo simbólico passa a ser manejado como uma mercadoria colateral

que se torna essencial ao capital, que é a publicidade. A alienação é um movimento

gerado pela transposição do poder do capital para a esfera do trabalho, onde ele passa a

reger o modo como as pessoas vêm a ser trabalhadores funcionais à reprodução do

capital, ou como protagonizam comportamentos de resistência e procuram se emancipar

da tutela do capital.

A renovação do debate sobre a alienação

O trabalho de Meszaros mostrou a necessidade de reconstruir o debate sobre a

alienação, agora, dizemos, incorporando-o à critica da colonização. O essencial do

processo da alienação é que o envolvimento progressivo da alienação supera os

horizontes de percepção dos participantes do processo de poder, dando-se que o escopo

da alienação é o do nível histórico do processo e não o da situação de cada trabalhador

no processo. As condições de alienação variam segundo os integrantes da sociedade são

atingidos por movimentos gerais do capital, tal como pela difusão da mídia eletrônica,

ou por estratégias específicas do grande capital. Logicamente, pesam as iniciativas dos

diversos grupos para ampliarem seus espaços de poder, tal como acontece com os

grupos de rendas superiores, que usam sua educação e sua mobilidade para se

associarem ao bloco de poder. Em síntese, o processo de alienação é um aspecto

essencial da sociedade do capital não se restringe às condições de pessoa alguma em

particular. Trata-se de um traço essencial da sociedade do capital e não de pessoas.

Por isso, e não por se tratar em geral de um contexto histórico em que mudam os

significados das relações de produção, é preciso não perder de vista as alterações

dialéticas do arcabouço conceitual, que tornam necessário reconhecer que acontecem

mudanças de significado de conceitos aparentemente invariantes. Conceitos tais como o

de indústria, usado por Meszaros como invariante, deve ser substituído pelos conceitos

de grande capital e de pequeno capital e com uma extensão da análise do aparelho

produtivo, que reconstrua a ligação entre as formas de produção e os mecanismos

políticos e operacionais do capital. Ao escolher a denominação indústria Meszaros cai

na armadilha que foi evitada por Marx, que consiste em confundir o modo técnico com

o modo de organização social.

Page 93: Capitalismo e sociedade

 

93    

O modo técnico, que é a produção industrial, se resolve mediante diferentes escalas de

tamanho dos diversos capitais, cuja organização é a produção industrializada. A

organização social é a que liga a grande indústria ao grande capital e ao capital

financeiro e que gera relações de trabalho que aprofundam a alienação. Cabe aqui,

portanto, a observação de Sartre, que demarcou a diferença entre a visão progressiva-

regressiva, que está no centro da prática da dialética desde Hegel; e a visão geométrica

da estrutura conceitual, que se reporta apenas a um movimento do processo. 81 No

mesmo caminho, Maurice Godelier lembra que “ os conceitos de economia são,

segundo Marx, representações do visível”. 82 Na economia crítica os conceitos

aparecem com seus contrários: emprego vs desemprego, lucro vs salário etc. O que não

é visível são as relações sociais de produção, que estão por trás do emprego e do salário.

A distinção aristotélica entre aparência e essência está na raiz desse pensamento crítico.

A critica de Marx é uma combinação do que é visível com o que não é visível.

Ao procurar explicar o processo de alienação através de um jogo de posições

aparentemente fixas, Meszáros revela situações de contradição, mas compromete o

poder explicativo da análise e deixa em aberto uma questão, de método e de

interpretação, relativa à relação entre os níveis de abstração com que se desenvolve a

análise e a generalidade dos problemas. Assim, diante dessa percepção dos problemas

históricos da alienação, cabe indagar quanto se pode generalizar sobre a questão da

alienação na sociedade de hoje sem perder a capacidade de registrar a pluralidade de

situações concretas em que ela se apresenta? Esse é um problema ao qual

inevitavelmente se chega quando se reconhece que Marx desenvolveu seus conceitos

sobre uma fundamentação histórica concreta. A essência da teoria marxista da alienação

é a captação desse movimento histórico que substitui posições e erode a identidade do

ser social.

A renovação das condições históricas da alienação

                                                                                               81    “  Desde  que  se  introduz  a  temporalidade,  deve  considerar-­‐se  que  no  interior  do  processo  temporal  o   conceito   se   modifica.   A   noção,   pelo   contrário,   pode   definir-­‐se   como   o   esforço   sintético   para  produzir  uma  idéia  que  se  desenvolve  a  si  mesma  por  contradições  e  superações  sucessivas,  e  que  é,  pois,   homogênea   ao   desenvolvimento   das   coisas.”       (1965).  Cabe   agregar   que   as  modificações  no  quadro  conceitual  alcançam  o  significado  ou  alcançam  o  conceito  enquanto  significante.  82      Maurice  Godelier,  (1965).  

Page 94: Capitalismo e sociedade

 

94    

O tempo da cooptação local e direta de trabalhadores e demais participantes mal

definidos do mundo da produção por parte de representantes simples do capital já

passou e os processos de alienação passaram a ser conduzidos por sistemas complexos

que operam de modo indireto. A renovação dos mecanismos de alienação corre por

conta de transformações do sistema produtivo em seus aspectos organizacionais e

operacionais. No decorrer da segunda metade do século XX os movimentos do grande

capital alteraram os processos de alienação. A universalização de procedimentos que

veio junto com a globalização financeira e com a condução da hegemonia pelas

multinacionais, impôs padrões culturais que se identificam com os das nações que

lideram no eixo tecnologia-financiamento. Os sistemas e as organizações que se

distanciam desses padrões passam a ver-se como desvios de uma racionalidade

inquestionável que deve ser incorporada por todos. Daí surge uma suposta reversão da

alienação, em que ser alienado é não estar incorporado na alienação geral de todos 83.

                                                                                               83 Nada  mais  oportuno  para  descrever  essa  inversão  da  alienação  que  o  Ensaio  sobre  a  cegueira    de  José  Saramago.  

Page 95: Capitalismo e sociedade

 

95    

6. Criação, perda e recuperação da totalidade social

No todo nada há de vazio ou de supérfluo. Empédocles

Os modos do todo

Como colocou sinteticamente Aristóteles, o que se cria já nasce com a marca da

corrupção, pelo que o que se detecta como definido do futuro já é parte integrante do

passado. A imanência da destruição é o que assegura O mundo social representa um

desafio ao conhecimento nos dois sentidos de penetrar na problemática da sobrevivência

e de auto-descobrimento do sujeito do processo social. Perante esse amplo desafio, as

ciências sociais se dividem em torno do tempo e de uma visão do mundo social que se

forma desde as diferentes perspectivas daqueles que se identificam mediante projetos de

poder sobre outros e dos que não participam desse tipo de projeto de poder. A totalidade

será um atributo de um determinado espaço de tempo histórico e corresponderá a

situações históricas específicas. Por isso, as tentativas de síntese ficam do processo

social ficam aprisionadas em um determinado projeto de história de época, como

aconteceu com Polanyi (2000) e com Elias (1994), apesar de que o primeiro pretendeu

oferecer uma ancoragem genuinamente secular para a atualidade enquanto o outro

procurou renovar no mapeamento da pluralidade de dimensões fugazes do que é secular.

A indagação sobre o significado de totalidade no campo social existe desde que há

grupos estáveis, mas a ascensão da burguesia projetou um novo conceito de totalidade

que se realiza sem rupturas sociais iniciais. A compreensão do mundo social sugere uma

incursão nos conceitos de todo e totalidade historicamente construída que é a grande

definição do esforço critico de Marx, corporificada no conceito lukacsiano de histórico

concreto. O mundo social é uma totalidade ou é uma totalização parcial e provisória que

se modifica? Ou é uma totalidade composta de totalidades e insondável, como

infinitude, como propôs Nicolas de Cusa. É preciso começar por distinguir o todo em

sua objetividade e a totalidade como uma propriedade do todo. O todo é móvel porque

se auto-renova e seus elementos se repõem e suas perdas de energia sempre se

compensam ou ele não será o todo. O acesso ao todo é sempre parcial e diferente para

uns e outros e segundo onde eles se encontram. Todos são iguais no caminho ao todo,

mas alguns sabem disso e outros ainda não. A totalidade é a qualidade do todo, mas ele

Page 96: Capitalismo e sociedade

 

96    

mesmo não tem qualidades nem atributos, que seriam sinais de parcialidade. O contrário

do todo seria o nada, mas como o nada só pode existir como conceito o todo não tem

contrário.

Na esfera social o caráter seletivo das totalizações dá lugar a uma totalidade positiva, de

tudo e todos que são reconhecidos como incluídos e seu negativo, que é a totalidade dos

excluídos. O progresso do capitalismo produz diferentes momentos de exclusão, com

diversos tipos de excluídos e uma ordem do mundo da exclusão que se passa a ver como

o mundo da informalidade. Os excluídos não são um universo pulverizado de

indivíduos, mas controlados pela ordem oficial e e carregam ordens anteriores ou criam

sua própria ordem como meios de defesa.

A totalidade social como parcialidade e como circunstância

Como mostrou Lucien Goldmann (1967) a noção moderna de totalidade foi gerada pela

sociedade urbana ascendente do capital, correspondendo à presença da burguesia como

principal força unificadora dos espaços nacionais. A totalização burguesa ligou a noção

de sociedade à de mercado. Associou as liberdades civis a participação no mercado,

logo convertendo os cidadãos em consumidores, isto é, transferindo os direitos das

pessoas às mercadorias. Desse modo definem-se pautas de ação com noções próprias de

tempo.

O reconhecimento da categoria colonização impõe considerar uma totalidade a ser lida a

partir da separação essencial entre os componentes da sociedade partida que se reproduz

a partir de sua divisão interna inicial. O movimento da colonização se fundamenta em

um principio separador que supõe diferentes condições de tempo para colonizadores e

colonizados. A noção moderna de totalidade foi gerada pela sociedade urbana

ascendente do capital, que ligou a noção de sociedade à de mercado e associou as

liberdades civis à participação no mercado e onde se definem suas pautas de ação, com

sua própria noção de tempo. É uma totalidade da sociedade burguesa, onde prevalece o

pressuposto de participação universal na produção e no consumo. Uma totalidade que

surge de um ambiente de conflitos e consensos de interesses. O mercado é o ambiente

dos negócios mediante os quais esses interesses se comunicam. O mercado

perfeitamente livre seria tão utópico como uma sociedade sem pressões de poder. As

Page 97: Capitalismo e sociedade

 

97    

desigualdades de poder não seriam um desvio nessa realidade senão um traço essencial

do mundo da economia burguesa, na qual os processos do capital são sempre

temporários.

A distinção entre o que é permanente e o que é temporário denota sempre o

reconhecimento de diferentes escalas de tempo, com processos cuja duração pode

revelar-se maior ou menor que o previsto, em função do aparecimento de imprevistos.

Por exemplo, o uso maciço de carvão continua por muito mais tempo depois que esse

combustível foi declarado técnica e ambientalmente inadequado.

A formação de uma totalidade social é um processo sujeito a avanços e retrocessos, em

que os modos de incluir e de excluir pessoas estão expostos a alterações em um mesmo

padrão de organização, tal como aconteceu no contexto do escravismo, com o aumento

do número de escravos que se tornaram trabalhadores a soldo e na produção industrial,

que passou a substituir salários por contrato por peça. Dessa realidade surge a

percepção de uma totalidade de processo e não de estado, de uma totalidade constituída

de combinação de movimentos e não de situações.

A apresentação de um conceito de totalidade social tem duas raízes. A visão de uma

totalidade cósmica copernicana, que transmite um sentido de unidade de corpos

diferentes e uma totalidade no princípio de autoridade, onde o fundamento religioso

cedeu ao político e onde o centro do poder monárquico entrava um crescente conflito

com os interesses do capital. A secularização do poder resulta em uma requalificação do

tempo (MARRAMAO, 1995) que praticamente exclui as perspectivas de futuro

indeterminado e inclui uma continua transformação do passado. Trata-se da mais

profunda revolução do mundo moderno, que além de apresentar novas categorias do

tempo desenvolve nova relação entre o tempo e o ser, tanto no plano do ser puramente

ser, como em Heidegger (1974) como no plano do ser social como no hegelianismo de

Lúkacs 84. Há, portanto, uma diferença entre aquela percepção de totalidade emanada da

harmonia celeste e a do meio social conflitivo.

                                                                                               84 O fundamento hegeliano da Ontologia do ser social não só não pode ser negado como deve ser explorado como uma dimensao do discurso de Lukacs que começa com seu monumental Jovem Hegel.

Page 98: Capitalismo e sociedade

 

98    

A noção de totalidade se forma do reconhecimento de elementos de solidariedade que

garantem a coesão do conjunto social. Na América em geral ela se forma através de um

processo colonial que se faz às custas da destruição das sociedades indígenas

(RIBEIRO, 1996), com uma gradual diferenciação do projeto original de poder e

adotando modos de organização pré-determinados pelas formas de produção, mineiras

ou rurais, com suas correspondentes formas de comércio. Historicamente, surgiram

núcleos que combinaram uma organização local com uma articulação externa e as

sociedade “regionais” evoluíram para situações nacionais através de processos de

supremacia interna de poder econômico e controle institucional, que representaram

novos modelos políticos diferentes dos europeus colonizadores. A totalidade nacional

demandou soluções de composição de regiões fortemente diferenciadas, tal como

aconteceu nos países de grande extensão territorial e de hegemonia de cidades nos

países de pequena extensão territorial.

A construção de uma totalidade social no ambiente latino-americano correspondeu a

uma variedade de possibilidades de Estados nacionais, com as peculiaridades de

sistemas de poder econômico e social. O principal esteio do sistema político foi o poder

rural que sustentou uma classe dirigente, diferentemente do sistema da mineração que

permaneceu sob controle de interesses internacionais. Essa classe internamente

poderosa mas dependente do comércio internacional teve que se adaptar a mudanças no

esquema do mercado e na conseqüente estruturação do poder político. Oportunamente a

classe dos proprietários teve um papel decisivo na produção de uma ideologia de

conservadorismo tradicionalista que se projetou nas forças armadas, transformando-as

em tropas de ocupação internas, identificadas com as grandes potências. Esse processo –

que ainda está a espera de uma explicação mais completa – foi o retrato fiel dos

movimentos autoritários das décadas de 1960 a 1980.

Historicamente, a classe dos proprietários tornou-se o eixo de um processo de extensão

dos interesses do grande capital mercantil, com seu projeto de induzir a produção das

mercadorias que pretende trocar. Os proprietários desempenham o papel primordial de

controlar a força de trabalho necessária ao funcionamento do sistema. No

desenvolvimento do sistema mercantil o papel dos proprietários teve que mudar para se

adaptar às transformações do sistema de financiamento e às mudanças nas condições de

mobilidade dos trabalhadores. Assim será preciso distinguir entre o papel funcional dos

Page 99: Capitalismo e sociedade

 

99    

proprietários e o rentismo no sistema produtivo em seu conjunto. A classe dos

proprietários torna-se o lócus de um processo de diferenciação de interesses no bloco

dominante porque detém os meios políticos do controle do poder, porém perde espaço

para os interesses mercantis que, além de deter as vantagens de controle do

financiamento da produção ficam com o controle dos acessos a mercado. A classe dos

proprietários gera a elite que adiante conduz a atualização do bloco de poder, mas cria

também representantes contestatórios, estimulados pelas crises, pela espoliação do

comércio

A percepção de totalidade sempre foi o ponto de partida de um pensar independente e a

totalidade social, desde o logos à energéia e à praxis, é a marca de pensar o mundo

social como um coletivo dotado de vida própria e de uma subjetividade construídas na

história. A totalidade social se forma continuamente através dos mecanismos de

inclusão e de exclusão de pessoas e de grupos segundo eles ganham ou perdem posições

no sistema de relacionamentos que perfazem esta totalidade denominada de sociedade.

Primeiros os bruxos, depois os artesãos especializados e mais tarde os operários

perderam posição, salário e status na sociedade industrial moderna. A ruptura entre

capital e trabalho estabelece uma distinção entre as pessoas que são identificadas como

detentoras de controle de capital e que dependem de sua capacidade de ofertar trabalho

desejado pelo capital. A estruturação do mundo social em classes estabelece uma

abrangência e regras de inclusão, segundo os grupos realizam a passagem desde os

movimentos mecânicos do trabalho repetitivo para as inferências em defesa de

interesses e a conseqüente formação de consciência social.

A consciência do trabalho é uma forma de subjetividade que se desprende da esfera

mais simples da sobrevivência e que se projeta como potencialidade sobre os

relacionamentos que se definem sobre as progressivas situações de necessidades e de

escolhas criativas de tempo retirado das tarefas de sobrevivência. Assim como o

trabalho simples não é comparável com o complexo em momento algum do processo

produtivo, as situações do trabalho tornam-se incomparáveis ao longo do tempo.

O potencial de autonomia do trabalho negado ao capital é um aspecto essencial para

quem trata de transformações atingida por formas de dominação coletiva como a

colonização. A observação cobre iniciativas na esfera da economia doméstica e que

Page 100: Capitalismo e sociedade

 

100    

transcendem à escala de mercado local em feiras livres e em artesanato, assim como

empreendimentos que se convertem na esfera local articulada com escalas mais amplas

de mercado, portanto, que em seu conjunto representam trajetórias de formação do

sistema produtivo na perspectiva do trabalho que interagem na totalidade social. O

capital trouxe um sentido de totalidade forçada em que todos são constrangidos a estar

à disposição das opções de emprego oferecidas pelas iniciativas do capital, o que

significa que estão igualmente expostos ao desemprego determinado pelas opções de

tecnologia e organização preferidas pelos capitais e não têm como se protegerem das

tendências de desemprego seletivo e dirigido. É uma redução do problema da ocupação

aos termos da produção capitalista. Mas como os rejeitados pelo sistema não se

autoeliminam – exceto quando emigram – o que acontece de fato é uma outra regra

geral do sistema, pela qual a perda de uma ocupação remunerada leva a estratégias de

busca de renda real alternativa.

No entanto, como essas estratégias divergem da lógica da reprodução conduzida pelo

capital, têm que prosperar segundo outras trilhas de formação de renda e patrimônio. A

análise urbana de cidades latino-americanas mostra como se organizam processos de

formação de patrimônio a partir de moradias mínimas em favelas, tanto pela expansão

dessas habitações como pelos negócios imobiliários que se desenvolvem nos circuitos

de baixa renda 85. A tendência a que as coisas se processem desse modo é reforçada

pela concentração do capital que condiciona o nível e a composição do emprego nos

diversos setores da economia à demanda de força de trabalho pelo grande capital. As

relações técnicas entre indústrias exprimem interdependências de emprego que indicam

como as indústrias de grande porte e de alta tecnologia transmitem impulsos diretos às

demais indústrias ou como induzem seu comportamento através de controle financeiro.

O campo social é sempre uma totalidade governada pela experiência, onde a

identificação do homem surge de sua dupla relação direta com os demais e de sua

relação indireta com o conjunto das experiências reconhecidas. A vida social envolve

construção e desconstrução constantes, e quem o domínio da memória é uma vantagem

                                                                                               85 Há muitas referências a serem aduzidas sobre experiências de pesquisas em cidades latino-americanas. Começamos por referir ao trabalho pioneiro de Larissa Lomnitz sobre os modos de sobre vivência de grupos marginalizados em poblaciones na Cidade do México e vamos referir também a pesquisas em Salvador em bairros como em Pau da Lima e Suçuarana na década de 1990, quando pudemos constatar esses circuitos de negócios.

Page 101: Capitalismo e sociedade

 

101    

e um modo de poder. O reconhecimento da totalidade é um movimento positivo que,

entretanto, revela suas contradições no que limita a totalidade ao horizonte da

totalização realizada pela expansão desigual do capitalismo. Como pensar uma

totalidade social que decreta a inutilidade dos rejeitados? A crítica do desenvolvimento

desigual é a mesma do modelo de civilização que se fez sobre essas progressões de

desigualdade. Conduzir a polêmica sobre o desenvolvimento como um problema da

civilização moderna do capital envolve o compromisso implícito de ir ao fundo dos

processos geradores de desigualdade.

O fundamento da questão é o controle da força de trabalho, que tem sido alcançado

mediante a desorganização dos sistemas anteriores e a pilhagem do trabalho. A

totalidade no universo da burguesia seria necessariamente contraditória e conteria o

germe do conflito de interesses que em primeira mão seria entre capital e trabalho, mas

que se manifestaria em conflitos de interesses entre os capitais sempre em pugna por

posições vantajosas em mercado. Nesse movimento, o concurso do Estado foi essencial

desde os governos conservadores da era pós-napoleônica até os atuais neoliberais sob a

mesma fórmula de contratos públicos para empresas com influência política.

A questão efetivamente consiste em que o nível e a composição do emprego formal

estão determinados pelo mecanismo do emprego criado pelo capital, onde há uma

relação orgânica entre o emprego formal e o universo das demais atividades que se

designa como informais. Logicamente, para aqueles classificados como informais essas

atividades não são informais nem dispensáveis. A informalidade é uma falsa definição,

que deve substituída por outra, que seja capaz de reconhecer a diferença entre o que se

apresenta como custo social da reprodução da mão de obra para a economia na visão do

capital e o que se enfrenta como custo da defesa da renda familiar para os trabalhadores.

A dominância é a função do poder extravasado sobre outros, pelo que é uma situação

temporária de poder, de duração e formas variáveis, que se assenta sobre uma

combinação de imposição e subserviência, decorrente de uma composição de meios

materiais e ideológicos com que se constitui o sistema produtivo. A dominância está

sempre sob a pressão das contradições de interesse incorporadas no modo de

funcionamento do sistema. No mundo contemporâneo a dominância é resultado de uma

combinação de poder econômico e político, conduzida por uma aliança de interesses

Page 102: Capitalismo e sociedade

 

102    

privados com os Estados nacionais, que torna ingênuas as chamadas políticas de

privatização.

A recuperação da totalidade social Nada muda mais depressa que o passado. William Waak

A rigor, a recuperação da totalidade social surge da eclosão de movimentos sociais que

concretizam a presença de segmentos sociais alijados do cenário do poder pelo

colonialismo e por suas derivações. Significa uma totalização que inclui a pluralidade

antes negada. A atualização do sistema mundial do capital tem se feito às custas de

enormes perdas em guerras e em crises de ajuste entre a reprodução do sistema

produtivo e do capital financeiro especulativo. A transferência de custos sociais aos

trabalhadores – na forma de contenção dos salários e de desemprego – veio

acompanhada de contradições no centro da supremacia mundial, com diferenças de

interesses entre os EUA e os países europeus, que já se definia no relativo aos conflitos

do Oriente Médio, mas que se tornaram ostensivos no relativo a relações com nações

ascendentes, especialmente com a China. A unidade do sistema torna-se, de repente,

questionável quando há divisões de nações reconhecidas e quando as condições de

associação entre nações mudam, oscilando entre relações diretas e o uso de órgãos

internacionais que funcionam como espaços de negociações indiretas. Segundo

situações transitórias que aparentemente são flutuantes, mas que estão ancoradas em

preceitos de longo prazo, as nações variam entre uma ordem colegiada como a União

Européia e uma imposição regional como são as relações dos EUA no hemisfério norte.

Conceitos tais como os de Europa e de América Latina designam realidades em que a

totalidade nacional se vê como um contexto processual, em que conflitam forças

unificadoras e forças dispersivas, portanto, cuja solidez varia de um caso a outro.

A substituição do mundo colonial por um mundo pós colonial é muito recente e não se

completou, já que o sistema de poder pós-colonial, chame-se de hegemonia ou de

supremacia, herdou vários dos elementos de controle do trabalho gerados naquele

ambiente mas voltou-se contra eles quando passou a exercer poder em demitir e em

conter os salários dos grupos de média e baixa renda, ao tempo em que defende

ostensivamente o direito de pagar quaisquer cifras que julgue conveniente aos gestores

do grande capital.

Page 103: Capitalismo e sociedade

 

103    

O movimento de recuperação da totalidade social é produto das alterações do mundo

político que se desdobraram a partir das guerras de independência, tanto das bem

sucedidas como das mal terminadas, que deram voz a povos até então percebidos apenas

como reservatórios de força de trabalho. Nesse contexto as propostas de políticas de

desenvolvimento apareciam como outorgas dos países desenvolvidos, dirigidas para

resolver problemas de bem estar mas não contemplam realmente a rejeição da

desigualdade e preservam os mecanismos de dependência ideológica. O “perigo” latente

representado pelas ex-colônias – países que foram criados como colônias ou que foram

colonizados – apresenta-se de diferentes modos segundo são aliados cronicamente

convenientes como a Índia ou nações essencialmente suspeitas como qualquer nação

islâmica, dadas as tradições do medo medieval da expansão islâmica. A grande fratura

da totalidade ocidental que se formou da quebra do princípio do poder imperial romano,

que jamais foi completamente apropriado pelos projetos medievais de poder de

inspiração germânica (D’Hondt, ; Le Goff, ) deixou o espaço o espaço que foi invadido

pelo impulso unificador islâmico. A referência unificadora representada pela Igreja

tornou-se logo contraditória com os projetos nacionais de poder referendados por direito

divino e em conflito com a religião oficial organizada. A principal ameaça representada

pelo islamismo é justamente sua unidade interna, que permite tratar com uma totalidade

de todo o corpo social.

O colonialismo criado pelo capital ascendente desenvolveu formas de separação social

que se projetaram ao mundo do capital industrial através das diferenças entre o centro e

a periferia da acumulação, onde o centro é conduzido pelo grande capital de alta

tecnologia e a periferia é comandada por uma composição de grande capital de baixa

tecnologia com Estados nacionais fracos. O mundo pós colonial torna-se a um tempo

uma transição entre o mundo politicamente ungido pela religião e o mundo pós

Revolução Francesa, legitimado pela sociedade de classes e despojado da legitimação

religiosa. Mas sua autenticidade fica em jogo e a consistência dessa totalidade torna-se

incerta. O mundo do colonialismo do capital industrial veio a configurar uma ordem

internacional conduzida por uma tensão entre interesses de grande capital das

metrópoles e sistemas pré-industriais de produção de matérias primas que envolveram

combinações de produção primária – extração, agricultura ou mineração – com negócios

Page 104: Capitalismo e sociedade

 

104    

que combinavam indústria e comércio 86. A nova totalidade social é a dos processos da

nova sociedade desigual, que gerou suas próprias regras de inclusão e de exclusão. Os

trabalhadores de classe média não são mais obrigados a permanecer em seus empregos

iniciais, mas passaram a lutar para preservar seus salários e seus postos de trabalho, para

permanecerem em empresas que cobram lealdade de seus empregados, mas trabalham

com estratégias de contenção de salários e controle do tempo de permanência dos

empregados na empresa. Na nova totalidade social a incerteza se distribui

desigualmente, junto com diferenças do sistema educativo, que funcionam como

divisores de águas dos movimentos de inclusão e de inclusão nos circuitos de altos

salários e empregos garantidos.

O processo da desigualdade opera simultaneamente no plano internacional e no plano

interno de cada país, configurando uma separação entre os que têm renda e e mobilidade

para obterem renda e os que estão constrangidos a aceitar as opções de trabalho

disponíveis. Há uma questão relativa a uma totalidade definida pela impossibilidade de

poder concomitante com outra, formada a partir das contradições e convergências da

formação social. Nada mais longe da macroeconomia baseada em cifras globais de

procura e oferta.

                                                                                               86 Inserir nota sobre a visão marshalliana de negócios em diversos setores

Page 105: Capitalismo e sociedade

 

105    

7. O humanismo negativo do capital

Uma antropologia da história

Assim como a visão dialética da história tornou inevitável uma sociologia como disse

Marcuse, a visão histórica do mundo social levou a uma antropologia crítica que nada

tem a ver com a antropologia cultural nem com a do resgate de etnias. A construção do

alto capitalismo é um processo de despersonalização das decisões que em seus últimos

resultados é um movimento de desumanização do mundo do capital. A antropologia

imanente em Marx de que nos dá conta Mészaros, é a resposta da história de classes que

se abalança no interior dos movimentos do capital para desenhar as grandes

insatisfações e decepções da época do alto capitalismo e do capitalismo avançado.

A distancia entre o capital e o trabalho

As atividades em sociedade são realizadas por pessoas que nem sempre são percebidas

ou reconhecidas com o significado pleno que esse termo representa. No mundo

econômico do capital há uma série de processos que desmontam o significado histórico

da pessoa como e enquanto representativa de humanismo, que é substituído por aspectos

funcionais dos indivíduos ou por sua afiliação a aparelhos ideológicos tradicionais, tais

como igrejas ou partidos políticos fisiológicos. Estes funcionam como sistemas de

poder e de reconhecimento, enquanto os anteriores são como aparelhos de resistência à

perda de identidade conduzida pelos processos de controle social realizado pelo capital.

As referências pessoas ou indivíduos são pólos de significância na sociedade do capital,

onde os aspectos externos e os internos da individualidade são reduzidos por critérios de

classe social utilizando argumentos estamentais associados a preconceitos herdados do

colonialismo escravista. A grande contradição do capitalismo de priorizar o

individualismo e cercear a individualidade impregna o sistema em seu modo

operacional e em sua ideologia de poder. Falta voltar a sua base material que são

pessoas.

A atividade econômica é realizada por pessoas que aparecem como integrantes de

diversos grupos com variados graus de permanência, com condições pré-determinadas

Page 106: Capitalismo e sociedade

 

106    

de associação das quais se separam quando alcançam condições favoráveis de

mobilidade. A identidade das pessoas na qualidade de trabalhadores depende de

condições internas e externas a suas atividades; e sua continuidade na qualidade de

trabalhadores depende de uma relação incerta e obscura entre a situação de estar

ocupado ou desempregado, bem como de depender de situações erráticas de mercado

para planejar a vida profissional. Na relação entre identidade e consciência de classe a

precariedade do emprego tem um papel decisivo na determinação de formas básicas de

solidariedade e a sobrevivência é atribuída ao sucesso individual. Não é que haja

relações líquidas entre pessoas sólidas, senão que os traços de identidade das pessoas se

tornam menos nítidos e que as relações entre as pessoas reflitam o clima defensivo em

que elas vivem.

A questão relativa aos interesses aflora através da erraticidade da renda. No atual

mundo desigual e disperso do capital, a preservação dos interesses do capital em seu

conjunto e independente de quem sejam seus integrantes, depende de uma centralidade

do interesse individual que corresponde a uma identificação da esfera privada com a da

individualidade e sublima a qualificação da condição das pessoas pela exploração delas

mesmo como trabalhadores.

A continuidade do capital depende de uma apropriação maciça de valor, que tem sido

obtida mediante exploração, que é uma captação de valor que não beneficia os

trabalhadores na escala de seu esforço. As duas leis básicas de alienação e exploração

constituem um conjunto que é administrado através da divisão do trabalho e do controle

dos usos de dinheiro e de tecnologia. Subjaz que o processo do capital trata com a

individualidade genérica mas ignora pessoas e empresas concretas. Significa, também,

que a sobrevivência de uns e outros só é necessária no que eles são funcionais à

reprodução do sistema.

Irracionalidade e crise. Os efeitos da concentração de capital em termos de uma

crescente instabilidade do sistema socioprodutivo significam uma exposição inevitável a

tendência à crise, levando a uma nova leitura do problema da irracionalidade do

movimento do capital. Nessa perspectiva, são dois aspectos complementares de crise

que se cruzam: a intermitência ou o encadeamento de movimentos cíclicos e o perfil

estrutural da instabilidade do sistema, evidenciado pelos momentos de queda da

Page 107: Capitalismo e sociedade

 

107    

demanda, mas que devem ser procurados no modo como as crises se formam, que no

perfil de cada uma delas em particular. A diferença entre eventos específicos de crise e

processos geradores de crise está na raiz do funcionamento do sistema, em que a lógica

da reprodução do capital financeiro tende a reduzir a pluralidade de problemas

concretos da indústria nos de gestão financeira do capital. Ao revisar os principais

movimentos de capital na esfera mundializada nos últimos decênios vê-se que há

principalmente dois grandes padrões de mobilidade do capital. Um deles é conduzido

pela mobilidade financeira garantida por grandes massas de liquidez, que é a marca dos

grandes operadores de capital financeiro, tanto de operadores individuais como de

bancos, e opera sobre a expansão do terciário no mundo ocidental. Mas não se pode

descuidar que esse movimento tem se abastecido de contratos que dependem da

economia real e em grande parte em países periféricos. Por isso, contém ligações

profundas com os movimentos da economia real, com sua pluralidade de mercados e de

localizações. O outro movimento mundial é o que vem de novas formas de economia

real, com novas escalas de demanda e capacidade de processar tecnologia. O fenômeno

China mostra que há em marcha um movimento de escala mundial que segue um

caminho alternativo de superação da segunda revolução industrial, realizando o

movimento contrário, de expandir a esfera financeira na proporção da necessidade da

produção real, ao invés da licença incontrolada do capital financeiro no Oeste.

A distância entre o controle direto do trabalho nos locais de produção e o controle

indireto, que se realiza através do controle das oportunidades de emprego dos

trabalhadores, veio a sustentar o discurso da “sociedade do conhecimento”, que é um

eufemismo da diluição da responsabilidade do Estado perante a regularidade da renda

dos trabalhadores e seu acesso a emprego. Nesse ambiente de queima de perspectivas de

renda dos trabalhadores, há, de fato, novas condições de exploração, que põem em

relevo a necessidade de ver o movimento da produção em seu conjunto, entendendo a

exploração indireta como um aspecto essencial do modo de acumulação do capital

avançado e ainda, reconhecendo que a destruição de empregos regulares é um custo

social de certa etapa da acumulação do capital, que pode prosseguir ou ser revertida. As

condições de mobilidade do trabalho surgem por contraste desse movimento e da

capacidade acumulada dos trabalhadores de representarem seus próprios interesses.

Page 108: Capitalismo e sociedade

 

108    

A polêmica sobre a mobilidade do trabalho abre horizontes para diversas abordagens,

que batem de frente com os problemas de organização social da produção, ou que roçam

com as manifestações de irracionalidade embutidas nos comportamentos dos

capitalistas. 87 A mobilidade em seus dois aspectos, de capacidade de mudar de emprego

e de capacidade de migrar, também deve ser vista como a materialidade da condição

social dos trabalhadores. Por isso mesmo, pode dar lugar a pesquisas sobre os processos

materiais da produção e sobre os processos ideológicos do controle da produção. Há um

componente de controle social – resultando em dominação - e um componente de

resistência à dominação, que surge como as contra-estratégias mencionadas por nosso

autor. Esses dois componentes se desenvolvem segundo as condições objetivas em que

se encontram em cada sociedade. São diferentes condições de resistência em sociedade

unificadas por um processo de capital que envolve a todos e em sociedades em que há

fraturas, como a da escravidão, que resultam em processos diferentes e interligados.

O trabalhador integrado ao capitalismo surge como ser social quando assume sua

consciência de classe (Lúkacs, 1926) e quando se torna membro desse sistema de

controle, apropriação e alienação. Nestas notas coloco-me na perspectiva da questão

humanista, ou da questão do fundamento social, tal como visto através do capitalismo.

Quando exclui, o capitalismo, induz uma estratégia de resistência por parte dos

trabalhadores, que compreende luta por salário, por redução da jornada de trabalho e

migrações, que em seu conjunto refazem o caminho da restituição da identidade, que é o

caminho da contraposição à dialética da civilização, tal como denunciado por

Marcuse.88

A estratégia de De Gaudemar, de valer-se de um longo prólogo, que funciona como um

similar do VI Capítulo Inédito do Livro I de Marx, isto é, de um texto que antecipa o

trabalho e adianta inferências do conjunto, tem um papel especial, que, adiante, ressurge

no capítulo 3, intitulado O conceito marxista de mobilidade do trabalho, que é o centro

teórico do estudo. De fato, em Marx, a produção da força de trabalho, isto é, quando o                                                                                                87 A questão da irracionalidade – um contraste entre uma racionalidade superficial e instrumental – e uma irracionalidade essencial, inerente ao sem sentido da acumulação de poder, é um aspecto que liga a acumulação de capital à concentração de poder político, portanto, que é uma chave da análise das contradições da concentração do grande capital. A partir do trabalho seminal de Lukács – O assalto à razão, trajetória do irracionalismo de Schelling até Hitler – desenha-se uma linha de reflexão, que virá a ser uma crítica interna da sociedade econômica e da sociedade política de hoje. 88 O discurso da dialética da civilização é parte da leitura freudiana de Marcuse do capitalismo. Ver Eros e civilização ( Rio de Janeiro, Zahar, 1981).

Page 109: Capitalismo e sociedade

 

109    

trabalhador mercantiliza seu tempo, é o momento em que se define o trabalho

socialmente necessário. 89 A pesquisa teórica transcende os objetivos imediatos de

explicar as condições atuais de determinados tipos de trabalhadores, para ter que se

referir aos trabalhadores em geral e a trabalhadores específicos.

Nessa orientação há, portanto, um viés inconfesso, de procurar legitimidade mediante

um retorno aos fundamentos filosóficos do debate, pelo que, assumindo os termos e os

modos de diálogo entre Sartre e Althusser. Nada de errado com isso, mas, na

perspectiva de uma leitura realizada no Brasil de hoje, torna-se imperativa uma

atualização ideológica. Aquilo que depois ficou definido como Marxismo Ocidental não

seria um cacoete saxão, mas um sinal da transferência do debate dos sindicatos para as

universidades, ou seria uma desvinculação de pensar e agir. Neste último sentido,

tornaria necessária uma revisão do próprio conceito de agir, se apenas como ação

partidária ou se como um agir nas diversas dimensões da vida social. A rigor, o ser

social não tem como não agir.

Primeiro, é preciso dar conta do imperativo do humanismo embutido no conflito da

mobilidade, que, de fato, descreve o mecanismo de sujeição do trabalhador ao controle

do capital. Não há como escapar de um humanismo, do mesmo modo como não há

como escapar de ter uma ética, seja um humanismo conducente a uma superação de

condições que descrevem a todos, ou seja um humanismo que convive com as

separações do campo social, que são aceitas como “naturais”, tais como foram nas

sociedades escravistas, desde a antiguidade até hoje. A questão do humanismo não

esgota o problema social da emancipação, já que o humanismo pode ficar num plano

genérico, sem entrar no miolo da questão da relação de classes.

O fundamento humanista da mobilidade do trabalho está ligado à condição da relação

entre classes, isto é, um humanismo que deve enfrentar a realidade do conflito social em

sua variedade e profundidade, que não pode ficar no plano indeterminado de uma ética

separada da situação social histórica.90 Tal situação é o ambiente da participação dos

                                                                                               89 É preciso lembrar que o trabalho socialmente necessário é o tempo médio de trabalho necessário a um dado nível de desenvolvimento do sistema produtivo. O trabalho socialmente necessário diminui nos setores que incorporam tecnologia e onde a força de trabalho se qualifica mais. 90 Distinguimos a discussão de uma ética socialmente representativa de uma ética abstrata socialmente indeterminada de expoentes da filosofia idealista, tais como Appel e Jonas. A questão levantada por

Page 110: Capitalismo e sociedade

 

110    

diversos integrantes do processo, que podem mudar de posição, tal como mudar de sua

posição específica como e enquanto trabalhadores, tanto como podem passar de

capitalistas a trabalhadores, ou de trabalhadores a capitalistas, entretanto, sempre

mediante processos que estão integrados nessa situação.91

Entre a mobilidade forçada e uma mobilidade autônoma, há uma diferença fundamental

de condição social, dos diversos tipos de trabalhadores nas diversas sociedades

nacionais. Precisamos extrair o que há de universal – dentro da produção capitalista –

no relativo a condições de autonomia de decisão dos trabalhadores, e o que há de

circunstancial. Entendo que as diferenças de autonomia são registros claros das

diferenças de condições de classe. O argumento levantado por muitos dos que

integraram a chamada teoria da dependência, de que as diferenças são antes de raça e

cultura que de classe, constitui uma simplificação histórica surpreendente, porque

pressupõe que as relações de raça e cultura não foram geradas em um sistema de

controle internacional do capital, que, justamente, fundamentou o projeto europeu de

dominação. Tal simplificação não registra as diferenças étnicas só existem para fins

práticos no capitalismo como meio de dominação, e que foram usadas do mesmo modo,

nos países europeus e em suas aventuras coloniais na América.

Segundo, não há como separar o processo de produção da força de trabalho das

condições de mobilidade dos trabalhadores concretos. Vale sublinhar, com De

Gaudemar, que a força de trabalho é a mercadoria do trabalhador, que é ele próprio, mas

que é uma alienação de sua pessoa. Assim, quando ele desenha o fundamento de

mercantilização da força de trabalho, termina por chegar ao conceito – a meu ver

duvidoso – de liberdade positiva e de liberdade negativa (pp.131). A liberdade negativa

é o negativo da versatilidade do trabalhador. A perda dos instrumentos de trabalho, ou a

inviabilização da pequena produção rural determinam essa perda de mobilidade própria,

que constrange o trabalhador a aceitar assalariamento, mesmo quando em condições

extremamente desfavoráveis. Nesse sentido, o mapeamento das condições de

mobilidade depende do mapeamento do processo de produção da força de trabalho.

                                                                                                                                                                                                                                                                                   Lukács na sua crítica do irracionalismo ganha atualidade frente aos desafios da sociedade periférica fraturada. 91

Page 111: Capitalismo e sociedade

 

111    

Estamos, portanto, diante de uma ética do individualismo, que pretende se legitimar,

alegando que todos têm direitos iguais de tentar enriquecer. Essa ética admite os

desastres das maiorias, do mesmo modo como as forças de segurança hoje falam em

danos colaterais, quando erram alvos e atingem inocentes. Depois de se ter trabalhado

com os desastres sociais causados pela escravidão e pela colonização, essa igualdade de

oportunidades parece tão real como a concorrência perfeita. A questão ética ressurge de

modo mais radical que quando foi exposta por Adam Smith.

B.

O processo social de produção de força de trabalho é aquele mesmo processo que induz

deslocamentos dos usos do tempo das pessoas, para que elas se tornem trabalhadores a

serviço do capital. Esses deslocamentos jamais foram espontâneos. Foram induzidos ou

foram conduzidos pelo poder do capital associado a força militar. Sua forma extrema

obviamente é a escravidão, mas é preciso ter claro que ela sempre esteve associada a um

grande número de formas de dominação que têm permitido reduzir as pessoas livres a

trabalhadores, tal como indica a própria denominação de reduções indígenas. Não se

pode ir muito mais longe nesta reflexão sem tratar do papel da escravidão na formação

do capitalismo moderno. Ver Marx em Miséria da Filosofia.

A produção social da força de trabalho tem aspectos quantitativos e aspectos

qualitativos, onde os primeiros abrangem o número de pessoas e seu vigor físico e os

segundos tratam da qualificação atual e da capacidade de atualizar a qualificação. A

produção de força de trabalho, portanto, gera uma magnitude variável, cuja capacidade

de decidir com autonomia varia segundo se forma sua consciência social e segundo ela

é atingida por novas estratégias de dominação do capital.

A variação quantitativa da força de trabalho resulta dos dois grandes fatores, que são a

pressão do capital em expansão sobre populações de sociedades pré-industriais e de

migrações, que refletem a variedade das condições objetivas de mobilidade dos

trabalhadores. O papel dos bandeirantes na formação do contingente de trabalho

dominado no período colonial no Brasil, forçando a entrada dos índios no sistema

produtivo e o papel das migrações forçadas de nordestinos, são fundamentais na

provisão de força de trabalho na formação da economia de São Paulo. As subseqüentes

Page 112: Capitalismo e sociedade

 

112    

variações quantitativas, tais como aquelas representadas pelo deslocamento maciço de

trabalhadores na corrida da borracha, foi alcançada por conta de fatores da expulsão de

trabalhadores, de regiões que não eram capazes de absorver seu próprio crescimento

demográfico.

Observa-se que esses movimentos, que se apresentam como quantitativos, têm uma

expressão qualitativa, no fato de que em todos os casos os grupos de trabalhadores

deslocados, especialmente os indígenas, dispunham de um conhecimento prático e

tradicional incomparável, que veio a ser a principal base da adaptação do sistema

produtivo, cuja mecânica foi européia, mas cuja fisiologia foi americana.92 Em resumo,

não há movimentos puramente quantitativos, ou todo movimento quantitativo que

representa trabalho simples contém um traço distintivo de qualidade.

No relativo aos aspectos qualitativos propriamente ditos, há um significado adicional

relativo à não substutibilidade dos recursos humanos qualificados e à oportunidade em

que eles entram no sistema produtivo. A qualificação é um atributo volátil, que se repete

mudando sempre de composição, que pode incorporar valor indefinidamente, mas que

está sujeita a rupturas tais como aquelas determinadas por mudanças nas tecnologias

básicas.

O resultado final desse processo é a historicidade da força de trabalho, que por sua

transformação substancial, não pode ser considerada como uma mercadoria comparável

com as demais. As máquinas são projeções de trabalho acumulado, mas que passou para

o controle do capital. O que se coloca com a disputa sobre a substituição de trabalho

atual por trabalho anterior, é que o aumento do controle do capital sobre o valor social

produzido torna-se maior que a mais valia extraída. Nesta etapa da acumulação, a

estratégia do capital ultrapassa o objetivo de aumentar a quantidade de mais valia

extraída e vai ao objetivo de aumentar a capacidade de extrair mais valia.

                                                                                               92 Sem a contribuição dos indígenas como poderiam os negros se adaptarem ao novo continente? A história oficial não se ocupa muito das relações entre os dominados e não dá muito peso às comunicações entre os diferentes grupos de africanos e entre eles e os índios e mestiços no ambiente complexo da colônia. No entanto, esse outro lado da formação sócio-cultural tem um papel insubstituível na explicação das camadas sociais dos que buscam e ampliam espaços nos espaços de trabalho contratado na sociedade pós colonial, como artesãos e como donos de oficinas tais como de alfaiates, barbeiros, instrumentistas etc.

Page 113: Capitalismo e sociedade

 

113    

C

O que dá crédito ao gênio de Aristóteles é ter descoberto na

expressão de valor das mercadorias uma relação de igualdade. Foi

a limitação histórica da sociedade de seu tempo que lhe impediu

desentranhar em que consistia a rigor essa relação de igualdade.

Marx, L. I pp.26

A compenetração da história leva-nos a ver a sociedade em geral através de sociedades

concretas. Assim, nossa sociedade é nosso objeto inevitável, que define nossas

limitações para entender o mundo. Temos uma sociedade ex-escravista, marcada por

relações de dominação quase escravistas, penetrada pelos aspectos mais sombrios da

Inquisição e do Estado expropriador, que sempre teve um componente

internacionalizado e um componente isolado, genericamente definido como restrito a

circulação local.

O fundamento ideológico é o mesmo da alienação! Como a maior parte das leituras

desta sociedade se faz mediante visões que representam preferências ideológicas de se

identificar com nações mais avançadas, isto é, como são visões das elites condutoras

dos movimentos de modernização, tendem a suavizar esse subsolo sombrio da formação

da sociedade brasileira. Essa manobra de suavização retarda a compreensão objetiva do

processo. Essa manobra de suavização retarda a compreensão do processo que

dependeu, justamente, do exercício da violência, tanto da violência física como da

violência ideológica, que consistiu em negar a capacidade de desenvolver um nova

identidade que nega o colonialismo apenas por se afirmar.

De Gaudemar trabalha com as referências do Marxismo Ocidental através das leituras

de Althusser, mas, a nosso ver, deixa escapar o sentido histórico do debate, que,

justamente através de Althusser se transforma em discussão categorial. Esse é o desvio

do debate que o torna separado da realidade de que tratamos. Para captar este contexto,

a análise filosófica tem que recuperar seu caráter de análise social, para perceber o

estatuto histórico das sociedades onde acontece o relativo aos trabalhadores. A categoria

de prático inerte trabalhada por Sartre refere-se exatamente ao contexto do trabalho

anterior realizado, que não pode voltar ao sistema em sua forma inicial, mas que pré

Page 114: Capitalismo e sociedade

 

114    

condiciona o trabalho atual. Por isso, a nossa leitura dessa questão remete-se à relação

orgânica entre esse prático inerte de o prático ativo, isto é, a relação orgânica entre a

esfera do trabalho anterior e a do trabalho atual, que é por onde se realiza o mecanismo

social da acumulação.

No entanto De Gaudemar nos oferece uma leitura criativa de Adam Smith, que nos leva

de volta à abordagem de Marx da obra do escossês, mas que, para nós tem um escopo

muito mais amplo, que coloca a complexidade do tratamento da combinação dos

aspectos éticos com os das práticas da sociedade econômica. Como já tinha assinalado

Dobb 93 , o fundamento ético da doutrina de Smith garantia a integração da justificativa

individual com a justificativa coletiva e via a divisão do trabalho como um dispositivo

de liberação de opções de participação no sistema produtivo. A ponte entre Smith e

Marx, descuidada pela maioria, em favor das referências a Ricardo, opõe-se exatamente

a essa redução da análise a um cruzamento de conceitos. O contraste com a análise

atemporal de Ricardo torna-se mais claro e significativo. A polaridade entre leis naturais

e leis institucionais, levantada por Smith, obriga a trabalhar com referências históricas

do processo social, numa posição que seria, adiante, confirmada pela filosofia da

História e do Direito de Hegel.

A oposição de Sartre a Althusser está nesse ponto, onde o Marxismo Ocidental se revela

como exercício intelectual daquele ocidente europeu, 94 que não se resigna a ter deixado

de ser colonialista e que continua a produzir novas modalidades de racionalização para

uma posição de predomínio em suas relações com os latino-americanos.

Temos aqui uma questão relativa à validade do intelectual como tal, como representante

de uma visão sintética do mundo social e como integrante de uma posição de classe,

Deter uma visão sintética do mundo social é uma situação que, inevitavelmente,

qualifica a visão de classe, mas não a substitui. Pelo contrário, representa uma

responsabilidade adicional, de atualizar a crítica ao nível da complexidade da época.

                                                                                               93 Maurice Dobb, Theories of production and distribution since Adam Smith , idelology and economic theory, Cambridge, Cambridge University Press, 1973. 94 Uma referência necessária nesse ponto é o trabalho de Perry Anderson Considerações sobre o marxismo ocidental (Boitempo, 2004), onde se vê que, ao tornar-se uma disciplina acadêmica o marxismo perde seu compromisso com uma teoria do conflito social. Nestas notas encontramos a necessidade de rever o próprio conceito de Ocidente, ressaltando como as potencias ocidentais de fato são impérios baseados no controle de territórios fora dessa parte do mundo.

Page 115: Capitalismo e sociedade

 

115    

Isso é o que diferencia O Capital das obras que refletem sobre os dados de época de

outros textos. A crítica da Economia Política aponta, justamente, ao fato de que ela, em

seu desenvolvimento, passou de ser uma teorização historicamente consciente, para ser

uma teoria separada da experiência histórica. Essa separação culminaria com a

economia neoclássica, que procurou construir uma análise formalmente consistente,

entretanto desprendida de qualquer compromisso com consistência material. Suas

referências empíricas fenômenos isolados, que, por isso, podem ser denominadas de

estudos de casos. A crítica de De Gaudemar ao empobrecimento da fundamentação

histórica da análise espacial, teria que ser estendida à análise neoclássica em geral,

entendendo que, na perspectiva neoclássica a análise territorializada é sempre uma

aplicação de princípios analíticos gerais e o espaço é sempre um objeto, cujas alterações

são externamente determinadas, mas que não devolvem efeitos aos movimentos do

capital. A grande questão está em que se o espaço é alterado por uma atividade social

ele é, em essência, social e não pode ser reduzido a uma condição historicamente

inespecífica. Esse é o ponto crucial da separação das heranças kantiana e hegeliana. Na

última espaço e tempo são dimensões da história e não são princípios atemporais

explicativos, nem são categorias ahistóricas. Estão conjugados no percurso das

experiências da sociedade, que tem seu próprio espaço-tempo. Por isso, tampouco essas

dimensões podem ser reduzidas à generalidade da Física, onde a vida surge apenas

como um dado biológico e não como vida social.

A originalidade da vida social e sua tendência a gerar modos e formas de organização

que sustentam trajetórias próprias que se distanciam de suas situações iniciais. As

grandes linhas da dinâmica do poder mundial combinam a concentração de capital com

a atualização de um bloco histórico de poder. O desenvolvimento do sistema moderno

de produção não está restrito às perspectivas dos países mais ricos de hoje, senão que

compreende mudanças nas relações entre os países que chegaram a posições de

liderança internacional, os que têm alcançado situações de maior poderio econômico e

os que permanecem relegados a posições de completa dependência. Pelo contrário,

vemos que a dinâmica da concentração de capital desenvolve efeitos contrários de peso,

tais como o aumento da competitividade dos grandes países periféricos, que passam a se

beneficiar da exportação de empregos dos países mais ricos. A originalidade desse novo

movimento é que ele absorve essa faixa de mercado, mas que não depende de capitais

ocidentais, por mais que um grande número de empresas ocidentais cria empresas na

Page 116: Capitalismo e sociedade

 

116    

China para captar aquele mercado interno. Tudo nos mostra que há uma maior

exploração dos trabalhadores nos países orientais, mas que é um movimento de

acumulação que escapa do controle do Ocidente. Trata-se, portanto, da relação entre

exploração e acumulação, ou de como o movimento da exploração confirma ou

modifica o movimento da acumulação.

O que dá unidade a esta parte da análise é a hipótese que a exploração seja equivalente

num sistema socioprodutivo onde coexistem capitais que operam diferentes taxas de

lucro. Será preciso substituir aquela análise do capital que se apóia numa visão de

indústria que confunde empresa com indústria, ou que não distingue a mobilidade do

capital entre empresas e entre empreendimentos, que, portanto, não pode perceber que

uma parte fundamental da exploração consiste, justamente, em administrar essa

pluralidade de situações.

A exploração é como se materializam relações contratuais de trabalho muito desiguais e

onde os trabalhadores são compelidos a trabalhar mais por remuneração equivalente. A

teoria da exploração é o grande tema do Livro III de O Capital, que ao desenhar os

movimentos dos capitais específicos em busca de sua reprodução, explica as condições

de exploração que se instalam em cada uma delas. A polêmica sobre a exploração ganha

novos matizes quando se situa nos termos da atualidade do sistema produtivo, que é

algo que foi feito por Paul Sweezy há cinqüenta anos e que tem que ser reavaliado hoje,

quando a análise do capital monopolista ressurge como a análise de uma economia

mundializada e que opera mediante oligopólios e com a prevalência da lógica do capital

financeiro. Seus desdobramentos tornam-se referências necessárias de uma análise

regional que supere a análise organicista tradicional.

As condições sociais variam entre diferentes sociedades nacionais. Historicamente,

sociedades que foram escravistas, tal como a sociedade brasileira, herdaram formas de

controle dos trabalhadores fundadas no autoritarismo patriarcal. A análise da exploração

no capitalismo avançado seguiu o rumo da explicação do capital monopolista e do

debate sobre o papel do oligopólio na acumulação do capital integrado em alta

tecnologia e no capital financeiro. Exploração aí consiste em como aumentar a massa de

lucro numa economia cuja demanda é bloqueada por uma distribuição desigual da

renda. A dissolução do emprego formal, com as estratégias de defesa da renda dos

Page 117: Capitalismo e sociedade

 

117    

trabalhadores, não supera o fato de que há fossos entre grupos de renda que não se

explicam somente como falta de mobilidade vertical, senão como separação entre

grupos sociais, e que apontam a novas formas de conflito, que estão bem representadas

pela articulação de uma sociedade econômica criminal paralela e pela desvalorização da

vida humana em geral.

A análise da exploração atual no Brasil tem que reconhecer a pluralidade de formas de

controle social com que opera essa economia desigual e que se atualizam mediante

diferentes regras para o grande e para o pequeno capital.

O segundo ponto que nos interessa é a situação histórica da exploração, com seus

fundamentos no controle da força de trabalho e dos mecanismos de comercialização das

diversas formas de trabalho. A extração de mais valia está historicamente limitada pelas

condições materiais do desenvolvimento da produção, mas a exploração sempre pôde

manter seus termos de exploração absoluta, que é a escravidão. Isso acontece com a

proliferação de atividades em que há monopólio das oportunidades de emprego, mesmo

quando são atividades aparentemente avançadas. A exploração se desenvolve como um

atributo do sistema do capital e depende da combinação do controle do trabalho no local

e tempo da produção, com o controle fora do processo de produção, que é onde no

essencial, o capital assume o risco de converter o produto físico da produção em

dinheiro. Nas condições de hoje, a questão da exploração tem que ser revisada, porque

a concentração da comercialização na esfera internacional representa uma separação

entre as condições de contrato de trabalho nos estabelecimentos produtivos e o modo de

contratar trabalho na comercialização,, que permite ao grande capital operar com uma

segmentação das condições de contrato de trabalho, assim como dá ao capital uma

vantagem especial sobre a organização territorial dos negócios.

As condições sociais e técnicas da exploração mudam, junto com as transformações da

produção industrial. Na expansão da segunda revolução industrial, a exploração

avançou de modo linear, isto é, acompanhou a seqüência da renovação tecnológica que

se dava, principalmente, de modo previsível, seguindo padrões de transformação

gradual do sistema produtivo. Mas, com o aprofundamento desse processo, e com a

conseqüente expansão da comercialização da produção industrial, os controles indiretos

do trabalho tornam-se predominantes. A queda do emprego formal e a desqualificação

Page 118: Capitalismo e sociedade

 

118    

de treinamento, praticamente retiraram a capacidade de reivindicação dos movimentos

sindicais, que passaram a funcionar como um recurso residual, ou foram simplesmente

desqualificados.É preciso ter clara a diferença entre o controle da força de trabalho, que

se organiza a partir do processo produtivo e o controle da comercialização, que se

desenvolve sobre a gestão do capital imobilizado, que opera de fora para dentro do

sistema produtivo. O controle da comercialização torna-se um controle sistêmico, capaz

de determinar o próprio programa de produção.

Entre a produção e a comercialização há diferentes condições objetivas de realizar esse

controle do trabalho, em que o controle na produção compreende o controle permanente

ou o controle temporário dos trabalhadores, enquanto o controle da comercialização é

indireto e permite operar com diferentes condições de contratação de trabalhadores. Está

claro que a linha divisória entre escravidão e trabalho assalariado não dá conta da

complexidade do problema, onde há uma variedade de movimentos de aumento do

controle e de lutas de independência, e onde aumentam as formas de controle indireto

do trabalho sobre as formas de controle direto.

Como nos mostrou Marx, a mola central da produção capitalista consiste em

transformar a força de trabalho em mercadoria. Mas essa é uma mercadoria especial,

que está submetida a processos simultâneos de valorização, que oscilam segundo

evoluem as condições de captação e de controle de recursos físicos. A discussão da

mobilidade do trabalho que cabe na realidade do Brasil tem que levantar uma questão

fundamental, relativa ás rupturas das condições de mercantilização da força de trabalho,

que não se limita às condições de mercado de trabalho, senão que abrange todas as

condições sociais e psicológicas da auto compenetração dos trabalhadores, em sua

qualidade de proprietários de sua força de trabalho. A peculiaridade da força de trabalho

é que ela pode, ao mesmo tempo, ser mobilizada para objetivos diferentes daqueles do

capital, configurando condições de resistência, que se manifestam, principalmente, em

relação com o Estado. As duas tendências, de controle e de resistência, se desenvolvem

segundo a capacidade dos gestores do capital para desenvolverem processos de

apropriação que envolvem os recursos naturais e o uso espoliativo do trabalho, assim

como incluem a capacidade dos trabalhadores para resistirem.

Page 119: Capitalismo e sociedade

 

119    

Uma rápida revisão dos processos de apropriação espoliativa 95 no Brasil de hoje mostra

que há uma atualização e um aperfeiçoamento dos mecanismos de captação de recursos

naturais e de trabalho, que precisa de mais recursos e de mais trabalho para reproduzir o

capital já acumulado. A presunção de que o crescimento da economia acontece sempre

em seus segmentos mais modernos não procede, já que há um aumento generalizado de

atividades extrativas, causado pelo aumento da população marginalizada, assim como

há um uso cada vez maior dos segmentos mais atrasados da economia por parte de

empresas acionadas por capital financeiro perfeitamente integrado no mercado.

A captação de trabalho combina a manutenção de salários baixos, na esfera pública e na

privada, com um controle político dos cargos melhor remunerados e da corrupção, junto

com um controle combinado dos preços. Avançou nos últimos tempos, combinando o

controle dos sistemas de previdência na parte avançada da economia com a apropriação

mais brutal na parte que usa trabalho não qualificado, desde a reincidência de

escravização dos trabalhadores até a manutenção de setores que se reproduzem em

condições técnicas superadas, mas que são funcionais à reprodução dos setores mais

avançados. Assim, a produção rural familiar realiza a tarefa de reproduzir aquela força

de trabalho que oferece mão de obra barata para as tarefas mais desqualificadas e pior

pagas do sistema, como substituta do trabalho escravo, antes que como exército de

reserva de operários. A questão que se apresenta no Brasil é que a inclusão não é uma

mudança de status, senão uma fronteira entre uma esfera de funcionamento do

efetivamente assalariado a preços de mercado e o trabalho submetido pela falta de

opção de contrato. A submissão causada pela falta de opção de emprego gera uma

paralisação dos trabalhadores, que em nada se parece com a mobilidade que pode ser

atribuída ao espaço de mercado desigual de trabalho. Temos, portanto, uma situação

própria do desenvolvimento histórico desta sociedade, que deverá ser atacada por uma

análise interna do problema de dominação das oportunidades de emprego. Resumindo, é

preciso garantir o caráter histórico da análise.

B.

                                                                                               95 Vamos preferir essa expressão a acumulação primitiva, por entender que ela melhor descreve o modo de apropriação e que se atualiza com a modernização do sistema produtivo

Page 120: Capitalismo e sociedade

 

120    

O modo de converter força de trabalho em mercadoria é que distingue as condições de

desigualdade de renda das condições sociais de ruptura de classe. A sociedade

tradicional usou combinações de trabalho escravizado com trabalho dominado em

diversas situações e com pequenos componentes seletos de trabalho livre, em diversas

formas de associação e de subordinação. Ao ampliar-se a esfera da produção capitalista

e aumentar o componente de trabalho contratado, ampliou-se, também, o campo social

sobre o qual o capital passou a poder extrair mais valia. Subsequentemente, como esse

componente de produção capitalista passou a incorporar renovação tecnológica, criou,

também, a base material sobre a qual tornou-se possível extrair mais valia relativa. O

trabalho escravizado seria cada vez menos atrativo para o capital , porque seria

incompatível com a renovação tecnológica.

Para o capital que se expande na economia pós escravista, o problema consiste em

garantir as condições adequadas para prosseguir na captação de mais valia, o que só se

dá quando ele abre novas fontes de produção que absorvem mais trabalhadores,

portanto, que ampliam a extração de mais valia, assim como aumentam as compras

locais de bens salários e de serviços aos trabalhadores. Isso foi o que a economia

brasileira fez, com a expansão dos segmentos tradicionais de exportações, agrícolas e

mineiras, tais como o café, o cacau, o fumo e o minério de ferro pouco elaborado. A

massa de salários pagos converteu-se em compras locais, enquanto as rendas dos

proprietários fluíam no sentido da concentração do capital. Finalmente, a substituição de

trabalho escravo por trabalho contratado significou que o trabalho passou a ser

apropriado junto com sua mobilidade, isto é, que a mobilidade se tornou um elemento

adicional da produção de mais valia. Esta é a tese principal que sai desta segunda parte

da revisão do tema.

A originalidade da América Latina é que a mercantilização da força de trabalho tem se

feito conduzida por uma combinação do segmento exportador do sistema produtivo com

a operacionalização do Estado, como responsável dos serviços sociais de utilidade

pública, compreendendo a construção e a operação dos sistemas de infra-estrutura e dos

serviços prestados com ela. O sistema produtivo “moderno” surge como um objetivo de

Estado, já seja de iniciativas promovidas pelo Estado ou apoiadas por ele, em todo caso,

por associação do Estado com os proprietários da terra. Isso aconteceu no Segundo

Império no Brasil e no Porfiriato no México. Na maior parte dos casos, as indústrias

Page 121: Capitalismo e sociedade

 

121    

surgiram aproveitando espaços de mercado criados pela demanda controlada por essa

combinação. A expansão do mercado interno é um processo indiretamente subordinado

ao segmento internacionalizado da economia, pelo que o mercado de trabalho está

subordinado à dinâmica da exportação, e, através deste, ao modo de relacionamento

com a economia mundial, que é onde se realizam os conflitos essenciais entre a

dinâmica do poder econômico e político, que tem lugar na esfera da hegemonia, mesmo

que em posições secundárias; e os países periféricos, mesmo quando são mais

poderosos que essas nações secundárias da hegemonia.

Essa peculiaridade do bloco hegemônico hoje merece atenção especial. Precisamos

situar historicamente o bloco histórico, em sua internacionalidade, como primeiro passo

para entender que ele compreende uma combinação de nações, do mesmo modo como

compreende uma composição de classes, instituições e etnias. A nação hegemônica

sustenta sua hegemonia num tecido de interesses que envolvem outras nações ricas e

segmentos de classe de nações que são classificadas como periféricas. A hegemonia

torna-se uma empresa coletiva do capitalismo, onde são os grandes interesses comuns

do grande capital, especialmente o controle da energia e dos minerais estratégicos que

dão sentido à coesão do bloco mundial de poder.

Daí , que um aspecto fundamental da composição do poder mundial de hoje é a série de

transformações ocorridas no contexto do bloco mundial de poder, com alterações na

relação entre a nação hegemônica e seus aliados, onde há interesses convergentes e

divergentes, e onde questões como comércio e energia têm sido fundamentais na

definição do quadro de referencias em que se coloca a condução do capital financeiro.

Ao longo da Guerra Fria formou-se um sistema de lideranças, que foi aperfeiçoado no

modelo de uma OTAN que passou a incluir nações que antes foram contendoras e que

substitui o poder político efetivo das Nações Unidas. Nesse ambiente, países tais como a

Bélgica, a Holanda, Portugal e mesmo a Espanha, são beneficiados de disporem de

condições privilegiadas de financiamento no contexto da União Européia e voltam a

exibir um desempenho de expansão de capital - que não se confunde com exportação de

capital, já que captam capital nos países onde investem – que lhes dá um novo perfil

expansionista que seria impossível em suas reais condições de economias nacionais de

pequena escala e sem crescimento significativo de seu próprio mercado. Está claro que

são movimentos subordinados ao aval da relação da União Européia com os Estados

Page 122: Capitalismo e sociedade

 

122    

Unidos, mas são parte de uma estratégia defensiva ofensiva, porque são países que

dependem da demanda de outros países para reproduzirem seu capital.

Por oposição desses movimentos, a reprodução da periferia é um dado essencial do

problema, que tem seu próprio modo de acontecer. Nas nações que surgiram como

periféricas e que continuam nessa condição, há um encontro dos interesses dos grupos

locais dominantes com os interesses dos capitais dos países do bloco hegemônico, cuja

principal explicação é que a sustentação da dominação interna se faz sobre as premissas

de um sistema de poder baseado no controle das oportunidades de lucrar, que envolvem

controle de privilégios e exclusão das maiorias. Longe de ser uma simples subordinação

aos interesses dos capitais das nações mais ricas, trata-se de um mecanismo de aliança

dos dirigentes dos países periféricos, que procuram sua identidade mimetizando-se com

as sociedades mais ricas e prósperas.

C.

Ao descobrir a relação entre a mobilidade do trabalho e a captação de mais valia,

encontra-se com que esta análise se remete à questão que foi primeiro levantada por

Adam Smith, relativa à necessidade dos capitalistas individuais, de garantirem a

disponibilidade de oportunidades de investimento, suficientes para realizar a reprodução

do capital acumulado. De fato, os capitalistas precisam dispor de força de trabalho

suficiente e com as qualificações adequadas, e precisam dispor dessa força de trabalho

sem incorrer nos custos de sua formação. Isso significa que na dinâmica do capital é

sempre a etapa anterior que sustenta a seguinte e que a superação da etapa anterior é

administrada em função dos resultados da seguinte. Essa é a manobra que o capital tem

feito para viabilizar o passo seguinte de cada movimento da acumulação, que depende

de que o bloco de poder mantenha o controle sobre os recursos humanos engajados na

etapa anterior de acumulação.

No contexto político do movimento de acumulação, o grande capital controla as opções

de investimento, 96 já seja pelos mecanismos de oligopólio, ou seja pelo controle da

                                                                                               96 A suposição de mobilidade irrestrita do capital, que é essencial à teoria marginalista em suas diversas correntes, não contempla o fato de que as oportunidades de investimento são controladas pelo grande capital em geral, ou por capitalistas que dispõem de vantagens especiais de posição social. A capacidade

Page 123: Capitalismo e sociedade

 

123    

tecnologia e do financiamento. A partir desse dado, há distribuição dos espaços de

mercado, por associação com o grande capital ou por vantagens locais do poder político.

As condições para ocupar esses espaços são fundamentais. De fato, o capitalismo cria

escalas diferenciadas nos modos de usar a força de trabalho, com diferentes regras

contratuais, desde o mercado de trabalho de que participam as elites internacionalizadas

até os mercados locais em que ficam confinados os trabalhadores menos favorecidos do

sistema. O operário, identificado com trabalho manual em fábricas, torna-se uma

minoria, não só porque o assalariamento é reduzido, como porque há maior pluralidade

de formas de trabalho.

A diferenciação dá lugar ao aparecimento de regras de adequação entre esses diferentes

patamares, que são indicativas de desigualdade de renda ou de rupturas na estruturação

social. Substitui-se a visão estritamente econômica da renda por uma visão social, em

que a renda se vê por sua capacidade de escolha entre possibilidades de consumo. Como

fica a liberdade de decidir dos consumidores que cujas compras são programadas pelo

capital e cujas opções são pré-definidas pela vigilância da sociedade da obediência? A

questão que nos defrontará a seguir será a de examinar essas regras de adequação, de

como elas surgem, como se renovam e como são administradas, portando, como se

convertem em meios de poder.

Por aí se encontra como se desenha o perfil da exploração no mundo desigual da

periferia do capitalismo avançado. A diversidade de condições de capitalização coincide

com uma pluralidade de condições de qualificação real do trabalho, 97 portanto, de

condições objetivas para manejar a razão entre o número de pessoas que precisam

trabalhar para sobreviver e o número dos que constituem um verdadeiro exército de

reserva do sistema produtivo. A captação de trabalho se efetiva sobre uma existência de

trabalhadores dotados de qualificações que os separam entre os que podem efetivamente

vir a participar de contratos de trabalho suficientes para garantir subsistência familiar e

os que não têm condições de aspirar a esses contratos de trabalho. Mas, como a

demanda de trabalho qualificado não se amplia sequer na escala do contingente de

novos trabalhadores com maior formação, há uma pressão crescente para a emigração                                                                                                                                                                                                                                                                                    de garantir a reprodução do capital depende do acesso a aquelas oportunidades de aplicação de capital que permitem produzir em escala e que podem conviver com as taxas de juros disponíveis no mercado. 97 Diferente da qualificação formal dada pelo sistema de educação, que não mede seus resultados em termos de capacidade de participar do sistema produtivo.

Page 124: Capitalismo e sociedade

 

124    

de trabalhadores qualificados, o que vem a ser um modo indireto de subsidiar o

crescimento das economias mais ricas, especialmente a dos Estados Unidos.

Page 125: Capitalismo e sociedade

 

125    

8. Acumulação geral e restrita

As questões gerais da acumulação

A dimensão regional da análise social expõe as combinações de condições sociais e de

restrições de recursos físicos da produção capitalista, que situam o desenvolvimento dos

meios de produção e que são dados que antecedem e situam a determinação das escalas

de mercado. Assim, a dimensão regional do processo social leva a discutir as condições

concretas da acumulação na sociedade de hoje, reconhecendo que as possibilidades de

acumular são restritas e desiguais em cada situação no tempo e no espaço, para todas as

economias nacionais, desde a economia hegemônica, que reúne as maiores condições

para acumular, até as economias periféricas mais pobres. No capitalismo avançado no

mundo contemporâneo o essencial é que a acumulação de capital muda de mãos, sejam

nações ou particulares, e se realiza mediante maior fluidez dos mercados.

Estas colocações logicamente envolvem uma conceituação de dinâmica

econômica. Há duas grandes matrizes da compreensão de dinâmica, que correspondem,

respectivamente, à mecânica e à genética do capital, e que aparecem como uma teoria

do crescimento do produto social e como uma teoria do desenvolvimento do sistema

produtivo. A mecânica da economia (Hicks, 1965) trata do crescimento do produto

social, considerando as grandes variáveis que participam desse crescimento e

registrando as inter-relações entre elas, bem como as inter-relações entre o produto e o

capital. Não considera as relações sociais subjacentes nos movimentos do produto. A

genética do capital vê o produto como um resultado dos movimentos e das

transformações do capital e de suas relações com o trabalho. Vê a composição do

produto social como interdependente da composição do capital.

Uma primeira observação de que todas as economias operam com limitações,

torna necessário explicar em que consistem essas limitações e de que modo elas

interagem com as transformações do sistema de produção em sua escala mundial,

portanto, que se trabalhe com uma teoria da acumulação restrita e desigual.

Logicamente, são diferentes limitações que afligem economias em diferente situação de

Page 126: Capitalismo e sociedade

 

126    

desenvolvimento. Há restrições para que as sociedades simplesmente se reproduzem,

desde as simples às mais complexas, bem como há restrições para que se consolidem e

ganhem em complexidade e restrições para que se mantenham em determinadas

posições no concerto mundial.

Uma segunda observação, depois de verificar que a acumulação acontece num

quadro de condições restritivas, é que essas restrições variam ao longo do tempo, isto é,

que a capacidade de acumular aumenta ou diminui ao longo do tempo. As variações na

capacidade de acumular envolvem elementos dos recursos físicos, da composição e

magnitude do capital, bem como elementos culturais e institucionais. O jogo de tensões

internas e externas, que se apresentam em cada situação específica, reflete as condições

de estruturação dos Estados nacionais e das regiões em seu conjunto e ao mesmo tempo.

Em resumo, as variações na capacidade de acumular estão associadas à capacidade de

usar efetivamente o capital, o que significa uma combinação de controle de variáveis

locais e variáveis representativas de condições de mercado.

As posições das economias nacionais variam ao longo do tempo, segundo elas

ganham ou perdem capacidade para produzir atrair e reter capitais e trabalho

qualificado, portanto, segundo o desempenho de cada uma delas se situa no processo do

capital em seu conjunto. Tal participação muda segundo varia a capacidade de atrair e

reter capital e trabalho, já que o poder de concentrar capacidade de produzir depende da

capacidade de produzir mercadorias que o mercado pode absorver. Há condições

diferenciadas de acumulação, que decorrem das diferenças de escala de capital, das

estruturas de mercado – tais como oligopólio e monopólio – e das condições de

transformação do trabalho.

A análise do sistema capitalista de produção em seu conjunto trata com um

movimento geral de formação de capital, que se torna progressivamente mais complexo

e que desenvolve interdependências também cada vez mais complexas, substituindo

formas de capital e substituindo modos de engajamento de trabalho. A leitura

desenvolvida por Marx trata do sistema capitalista em seu conjunto, assim como as

teorias macroeconômicas desde então subentendem uma economia mundial – quando

não mundializada – que não é mais que a produção capitalista em seu conjunto.

Page 127: Capitalismo e sociedade

 

127    

Isso significa, no essencial, que a teoria macroeconômica presume: (a) condições

simétricas de acumulação para todos os capitais que estão integrados no processo

produtivo, (b) condições equivalentes de todos os mercados – nacionais e por produtos

– para sustentarem um movimento geral e integrado de acumulação e (c) capacidade dos

capitais e dos trabalhadores para se adaptarem às modificações na composição técnica

do capital.

Isso mostra que a teoria macroeconômica convencional opera com uma

simplificação incompatível com a realidade. Primeiro, porque na prática, diferentes

capitais têm diferente capacidade de acumular, já que têm diferentes condições para

participar do mercado. Segundo, porque a capacidade das pessoas de participarem do

processo produtivo na qualidade de trabalhadores depende da atualização do trabalho,

isto é, que eles tenham a capacidade de realizar aqueles trabalhos requeridos pela

composição do capital. Terceiro, porque a capacidade dos capitais e dos trabalhadores

para se adaptarem à atualidade da acumulação é inevitavelmente desigual, em função de

diferenças de qualificação, de informações e de capital para realizarem essa atualização.

As simplificações da análise macroeconômica refletem a perspectiva

mecanicista da teoria marginalista, que considerou (a) condições invariantes de mercado

e (b) diferenças de escala das empresas, que não alteram seu comportamento no relativo

à composição de seu capital. Essas simplificações são perfeitamente aceitáveis quando

se trata de problemas que podem ser colocados de modo representativo num quadro de

análise instantânea ou de análise a curto prazo. Mas levam a erros crescentes e cada vez

menos previsíveis, quando os períodos de análise se estendem, ou quando é preciso

considerar margens crescentes ou variáveis de incerteza.

No relativo ao campo regional, a análise macroeconômica faz duas opções, sobre

a comparabilidade dos agentes e das transações, que significaram que a economia

mundial opera segundo os mesmos padrões, no centro e na periferia, com diferenças

que se limitam às escalas do capital, e com desigualdades que podem ser explicadas

mediante diferenças de renda. A dificuldade é que as desigualdades ficam

indeterminadas, já que esse esquema de raciocínio não prevê de onde surgem as

desigualdades nem como elas se eternizam. Pelo contrário, a principal questão

macroeconômica a ser preservada pela análise do sistema produtivo em seu conjunto,

Page 128: Capitalismo e sociedade

 

128    

consiste na continuidade do sistema produtivo em seu conjunto, apesar da incidência de

fatores erráticos 98 e de alterações nos padrões comportamentais dos fatores

incorporados no sistema.

Além disso, a teoria macroeconômica corrente, mesmo aquela que se distancia

da ortodoxia neoclássica, tem dificuldade para registrar que as mudanças de velocidade

do processo econômico são concomitantes com alterações irreversíveis na composição

do capital. Entretanto, esse é um aspecto que deverá ser pesquisado com cuidado, dada

sua posição central numa teoria da acumulação restrita.

A teoria geral da acumulação

A afirmação da produção capitalista enquanto modo operacional da sociedade

moderna tornou necessária uma explicação do sistema produtivo em seu conjunto, com

seu modo de funcionamento e suas contradições. O trabalho de Marx expõe a

fundamentação histórica do capitalismo. Mostra como ele se afirma, através da

superação de formas de capital que não foram capazes de incorporar sistematicamente

os resultados econômicos do controle da tecnologia aos resultados políticos do controle

do trabalho. Ao realizar essa ligação, o capitalismo canalizou as forças da captação de

trabalho compatível com a reprodução e ampliação do sistema de produção, definindo

as contradições de interesse entre capitalistas e proprietários de um lado e trabalhadores

e excluídos de outro lado.

A teoria geral da acumulação visualiza o conjunto dos movimentos de

recomposição e de expansão do capital – composição e mudança – que viabilizam a

acumulação, tratando com as escalas operacionais do capital em seu conjunto. Presume-

se que o horizonte efetivo de acumulação está dado pelo conjunto dos elementos

técnicos, culturais e institucionais com que o sistema econômico opera.

A teoria geral da acumulação apóia-se em alguns pressupostos que devem ser

explicitados. Primeiro, que sempre há oportunidades de investimento acessíveis

                                                                                               98     A   erraticidade   é   um   aspecto   essencial   do   sistema   produtivo,   segundo   ele   tem   que   registrar   e  incorporar  outras  experiências.  

Page 129: Capitalismo e sociedade

 

129    

suficientes para sustentar a reprodução do capital em sua totalidade. Segundo, que essas

oportunidades de investimento sempre estão reguladas pelas tecnologias mais

avançadas. Terceiro, que sempre há mobilidade dos capitais entre as oportunidades de

aplicação, suficientes para compensar as diferenças de escala entre grande e pequeno

capital e entre as diferenças de tecnologia. 99

Esse é o ambiente da economia articulada na esfera mundial, em que os

capitalistas operam de modo equivalente e em que as diferenças de escala dos

capitais não alteram o elenco das aplicações. Isso significa que os diversos capitalistas

têm acesso efetivo à totalidade das opções de acumulação.

Marx não cai nesse erro de simplificação, porque considera diferenças de

composição de capital no sistema em seu conjunto e entre empresas específicas. Mas a

questão não está superada, porque as diferenças de acessibilidade dos diversos capitais

não se restringem a um dado conjunto de capitais, senão a uma relação entre a formação

de empresas e a proliferação de oportunidades de investimento. Essa questão só se

revela em sua real complexidade quando se consideram processos de adequação e de

desadequação dos capitais ao ambiente tecnológico em que o mercado opera.

Esses processos só podem ser percebidos por uma teoria da ação social,

entretanto, por uma teoria que ligue as ações aos grupos sociais que as realizam, isto é,

de uma teoria histórica do agir social.

Elementos de uma teoria da acumulação restrita e desigual

                                                                                               99    O  trabalho  de  Marx  pode  ser  visto  como  uma  teoria  geral  da  acumulação,  que  trata  do  movimento  do  capital  em  seu  conjunto,  tomando  como  principal  referência  histórica  a  formação  do  capital  n  o  centro  da  economia  mundial.  O  significado  dessa  teoria  é  a  explicação  da  materialidade  da  sociedade  moderna,  que  é,  essencialmente,  a  sociedade  do  capitalismo.  Essa  teoria  contém  os  elementos  necessários  para  acompanhar  os  modos  e  as  tendências  da  produção  capitalista  como  tal,  e  para  situar  as  contradições  acarretadas   pela   produção   capitalista   na   sociedade   em   seu   conjunto.   O   registro   da   experiência   dos  países   periféric   os   obriga   a   pensar   na   diversidade   de   condições   históricas   em   que   a   acumulação  acontece,  que  ,  justamente,  revelam  seus  limites.  Para  as  sociedades  periféricas,  faz-­‐se  necessária  uma  teoria  da  acumulação  que  represente  as  condições  históricas  em  que  elas  funcionam.  

Page 130: Capitalismo e sociedade

 

130    

O tratamento dos problemas do desenvolvimento econômico e social, ou do

desenvolvimento desigual, ou da perpetuação de uma periferia sub-industrializada,100

obriga a rever esses pressupostos, indicando a necessidade de contar-se com uma teoria

da acumulação capaz de refletir as condições concretas em que se realizam movimentos

específicos de acumulação no contexto de cada economia nacional.

Há várias razões para entender que se precisa de uma teoria da acumulação

restrita e desigual, começando pelas condições cíclicas em que se dão os dados

mundiais da acumulação em geral, continuando com os dados representativos dos

sistemas produtivos específicos e dos dados da mobilidade do capital e do trabalho em

cada um deles e entre eles. A produção capitalista funciona mediante sistemas

desigualmente capitalizados e com diferente capacidade de se capitalizarem, que, por

isso, só podem se desenvolver alterando suas condições atuais de funcionamento.

As desigualdades na capacidade de se capitalizarem decorrem de progressões de

fatores favoráveis e desfavoráveis, que aparecem de modo cumulativo ou de modo

incidental, resultando em padrões que têm componentes previsíveis e componentes

erráticos. Previsibilidade e erraticidade são atributos do sistema produtivo que resultam

de combinações de ações socialmente desenvolvidas com dados básicos da dinâmica da

natureza, com a peculiaridade de que a dinâmica da natureza se manifesta sobre uma

variedade de escalas de tempo e as ações sociais se desenvolvem na escala de tempo da

ação social.

Assim, as perspectivas de mudança do sistema em seu conjunto e dos sistemas

que o compõem, jamais podem ser atribuídas a uma única causa, nem a uma única causa

dominante. A leitura da ascensão das grandes potências, e, principalmente, a leitura do

declínio dos impérios (Cipolla, 1987) mostra conjuntos de relações causais, que se

alternam e substituem, que obrigam a admitir que há uma variedade de situações em

                                                                                               100  Neste  trabalho  trataremos  apenas  de  modo  preliminar  um  aspecto  essencial  do  problema  que  são  as  filtrações   de   capital   dos   países   periféricos   para   os   centrais,   que,   finalmente,   tem   sido     o  mecanismo  central   do   colonialismo   e   foi   incorporado   pelo   capitalismo   avançado.   A   filtração   de   capitais   acontece  porque  membros  integrantes  das  economias  mais  poderosas  transferem  recursos,  ou  porque  membros  integrantes   das   economias   periféricas   vão   investir   seus   capitais   nas   economias   centrais.   Mas,   no  conjunto,   há   um   mecanismo   geral   que   transfere   uma   parte   da   formação   de   capital   dos   países  subdesenvolvidos  para  os  desenvolvidos.  

Page 131: Capitalismo e sociedade

 

131    

cada experiência de expansão ou de declínio, com alguns traços comuns no relativo a

controle dos recursos naturais e controle do trabalho.

A explicação da acumulação restrita passa por uma leitura da reprodução do

capital. A reprodução do capital na prática é a reprodução do sistema do capital, isto é, é

a reprodução do capital em seu conjunto e igualmente a reprodução do sistema

produtivo do capital. O sistema do capital compreende o capital diretamente engajado

no processo de produção e o capital em forma financeira. Tal como mostrou Marx, a

proporcionalidade entre esses dois componentes é determinada na esfera da produção,

mas a capacidade do componente financeiro de se mover fora do sistema de produção

tem, de volta, a capacidade de influir na esfera da produção, já com a lógica da

comercialização e não mais com a lógica da produção.

Isso quer dizer que o capital só pode acumular na extensão em que o

desenvolvimento do sistema permite. Isso também significa quanto o sistema precisa

acumular para se manter. Mas que só pode acumular daqueles modos permitidos pela

composição do capital.

O que discutimos aqui como uma teoria da acumulação restrita é a parte da

teoria que trata dessa combinação de possibilidades e restrições que estabelecem a

situação histórica atual do sistema, com sua situação histórica e suas restrições

institucionais.

A noção de acumulação restrita vem de que o sistema pode ampliar ou restringir

suas possibilidades de acumular, segundo se alargam ou estreitam as capacidades dos

participantes do processo, para participarem de novas condições de controle sobre a

formação de capital.

A acumulação restrita trata dos processos que se realizam em cada economia

nacional e que não necessariamente se propagam a outros países ou regiões. A

suposição de que o processo de acumulação não necessariamente é contínuo, ou que

está sujeito a fatores de descontinuidade, que podem ser predominantes, e que os

resultados que são efetivamente alcançados são o saldo de sucessos e fracassos de

inclusão e exclusão, de períodos seguidos de variada duração.

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132    

Como, na prática, todos países funcionam com dotações limitadas de recursos e

com oferta e demanda em escalas também limitadas, o ambiente atual da formação do

capital é sempre o da acumulação restrita. Nesse caso o que se entende como

acumulação restrita não é uma situação limitada da acumulação geral, senão é uma

instância do processo de acumulação. Assim, para os fins da teoria, é parte da

construção da teoria geral, da acumulação e é um componente essencial de uma visão

crítica da acumulação em seu conjunto.

Assim, a teoria da acumulação é uma dimensão do corpo teórico que explica o

conjunto dos movimentos de transformação do capital e do trabalho na economia

moderna.

O mecanismo que caracteriza a acumulação restrita pode ser exposto nos

seguintes passos.

a. A relação entre uso potencial e uso atual de recursos comparada com as

tendências de uso dos recursos incorporados na relação entre tecnologias velhas

e tecnologias novas.

b. A relação entre usos de tecnologia e usos de trabalho, tal como registrado na

relação entre qualificações velhas e qualificações novas.

c. A relação entre os usos de recursos e a aplicação de capital necessária para

realizar o produto social compatível com a reprodução do capital em seu

conjunto.

d. A relação entre a produção do capital e a configuração do mercado,

compreendendo a composição das compras efetivamente realizadas.

O mecanismo da acumulação restrita pode ser descrito a partir do uso efetivo de

recursos para produzir, ou através da demanda social que determina o uso de recursos.

A segunda opção parte da esfera das trocas, por isso refere-se a uma situação

circunstancial que não necessariamente se mantém ou se repete. Essa impossibilidade

de ligar organicamente a situação com o processo de que ela é parte, torna inprofícua

Page 133: Capitalismo e sociedade

 

133    

essa abordagem, que pode ser útil apenas para examinar situações hipotéticas de

conjuntos de alternativas.101

A primeira opção, isto é, de partir de condições concretas de uso de recursos. O

controle da acumulação coloca-se perante situações históricas de disponibilidade de

recursos e de tecnologia, portanto, considerando as condições técnicas de uso dos

recursos.

Essas condições técnicas representam, portanto, a escala de viabilidade conferida

pelo perfil da demanda. O capital será atraído a gastar com tecnologia na medida em

que essas tecnologias foram absorvidas pelo mercado . Conseqüentemente, a

acumulação só poderá prosseguir em cada país e em cada região se houver uma

expansão de demanda suficiente para sustentar a reprodução de capital suficiente para

manter o capital acumulado.

Na prática esse mecanismo não pode ser tomado em sua forma genérica, porque

os movimentos de acumulação acontecem em países que são incorporados ao sistema

mundial de produção em posições desiguais no relativo a controle sobre o destino da

renda que geram, portanto, de controle sobre sua formação de capital. Nunca houve,

realmente, um problema de escassez de poupança nos países e nas regiões que

acumulam pouco, senão um problema geral de saída de riqueza, que vem desde as

formas mais simples de pilhagem sos sistemas coloniais até as modalidades mais

modernas de controle dos sistemas de comercialização. A periferia do sistema

capitalista está constituida de nações que foram e são objeto de uma acumulação

depredatória, que tem impedido sua emancipação econômica.

Nessas condições, a acumulação surgirá do controle da formação de renda antes

que da formação de renda; e não poderá jamais ser tratada como um problema apenas

técnico de quantitativos de crescimento, senão como o resultado de produção e

comercialização. A produção de riqueza será apenas um dado preliminar de um

problema muito mais complexo, que se resolverá na esfera da comercialização,

compreendendo o controle político da circulação.

                                                                                               101    É  o  espaço  da  teoria  dos  jogos  em  que  as  alternativas  podem  ser  temporais  mas  não  são  históricas.  Trata-­‐se  com  séries  temporais  mas  não  com  progressões  históricas.  

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A acumulação restrita é, também, irregular, porque em cada país depende mais

de fatores externos que de fatores internos e porque essa dependência tem mudado de

forma, mas, substancialmente, tem tido a mesma importância para as atuais periferias,

desde sua anterior situação de colônias até sua atual condição de economicamente

dependentes.

As teorias do desenvolvimento que se desenvolveram nas décadas de 1940 a

1960 focalizaram em mecanismos do comércio e em condições da formação do capital.

Por decisão própria ou como desdobramento da matriz teórica com que trabalhavam,

ativeram-se à perspectiva de produção, que trataram por separado da perspectiva da

distribuição e sem levar em conta o papel do controle político da esfera da

comercialização. Observe-se que há uma aparente contradição entre o tratamento dado

por Prebisch, Myrdal e outros, às políticas de desenvolvimento, em que procuraram

criar mecanismos contrapostos ao controle político do comércio; e a concepção

fundamental do eixo análise-política, que continuou preso aos preceitos de uma teoria

da produção, razão que levou a aceitar a premissa da falta de poupança – suficiente e

oportuna – para uma acumulação historicamente suficiente.

A perspectiva de análise da acumulação restrita torna logicamente necessário

considerar o papel do controle político da comercialização na fixação da formação de

capital, que é o movimento prévio da continuidade da acumulação. O foco da análise

desloca-se para a internacionalidade do controle político dos mecanismos que ligam o

controle político da comercialização com o controle financeiro da mobilidade do capital.

O que limita os horizontes da acumulação em cada país é a internacionalidade desses

controles financeiros. O pacto implícito do capital financeiro com a estruturação do

controle político da comercialização tem a aparência de uma sólida estabilidade, mas

não é mais estável que um vento constante. A polêmica histórica descobre que a

racionalidade separada de sua raiz ontológica torna-se uma perversão. A teoria da

acumulação precisa de uma teoria histórica da ação social, isto é, de uma teoria que

relacione as ações com os grupos que as realizam. A questão teórica levantada pela

Economia Política Crítica consiste em situar as ações como conseqüência do modo

como os grupos se formam e desenvolvem.

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