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    Capitalismo, escravidoe a economia cafeeira do Brasil no longo sculo XIX *

    Rafael Marquese

    Universidade de So Paulo

    International ConferenceNew Perspectives on the Li fe and Work of Er ic Wi ll iams

    St. Catherine's CollegeOxford University

    September 23-26, 2011

    * Este texto faz parte de um projeto mais amplo financiado pelo CNPq.

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    Eric Williams e a historiografia sobre a escravido brasileira

    A publicao deCapitalism & Slavery foi contempornea ao aparecimento deuma obra cannica para a compreenso do passado brasileiro. Com efeito, apenas doisanos antes da edio do livro de Eric Williams, veio a lume Formao do BrasilContemporneo, de Caio Prado Jr. No obstante suas diferenas, ambos os livrosapresentavam vrios pontos em comum: a importncia conferida s economias dasregies tropicais do Novo Mundo para a formao do capitalismo europeu, o pesodecisivo da escravido negra nelas, os impactos negativos da herana colonial escravista para as formaes nacionais no Caribe e na Amrica Latina (Williams 1994; Prado Jr.1987). As convergncias entre as perspectivas de Williams e Prado Jr podem seraquilatadas pelo trabalho pioneiro de Alice P. Canabrava (1981) sobre a indstriaaucareira antilhana na primeira metade do sculo XVIII: finalizado em 1945, semtempo hbil, portanto, para tomar cincia deCapitalism & Slavery, a tese de Canabravase aproximava notavelmente das concluses a que havia chegado Eric Williams, valendo-se para tanto do modelo analtico de Caio Prado Jr. e da prtica de uma histriaeconmica associada, naquele momento, primeira gerao da Escola dos Annales.

    No surpreendente, assim, a recepo positiva que a obra de Williamsencontrou nas cincias sociais brasileiras a partir de fins da dcada de 1950, impacto

    que se prolongou por duas dcadas.Capitalism & Slavery foi relevante tanto para CelsoFurtado (2009), economista filiado ao pensamento da CEPAL, como para o grupo desocilogos da Universidade de So Paulo associados a Florestan Fernandes e RogerBastide (1955), que dele se utilizaram para reavaliar e criticar teses consagradas sobre ademocracia racial brasileira. A perspectiva analtica de Williams, enfim, casava-se bemcom uma tradio que vinha ganhando corpo no Brasil e na Amrica Latina em geral, eque logo desembocaria na teoria da dependncia (Bosch Jr 1997; Sheridan 1987: 323-

    39). O melhor exemplo disto est na tese de doutorado de Fernando Henrique Cardoso,ex-aluno de Fernandes: seu enquadramento para compreender o problema da transioda escravido para o capitalismo na economia pecuarista do Rio Grande do Sul, um dos pontos de partida de suas posteriores investidas sobre o problema da dependncia naAmrica Latina, escorou-se inteiramente nos pressupostos do livro de Eric Williams(Cardoso 1962; Cardoso & Faletto 1969).

    Os trabalhos que mais se valeram do esquema interpretativo de Eric Williams,

    no entanto, foram elaborados por historiadores igualmente vinculados Universidade deSo Paulo. Dois deles tornaram-se matriciais para a historiografia brasileira, referncias

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    obrigatrias em seus respectivos domnios. O primeiro foi a tese de livre-docncia deEmlia Viotti da Costa, de 1964, tratando da crise da ordem escravista nas regiescafeeiras do centro-sul do Brasil (Costa 1989); o segundo foi a tese de doutorado deFernando Novais, de 1973, que examinou a crise do colonialismo portugus na Amricana virada do sculo XVIII para o XIX (Novais 1979).

    O livro de Viotti da Costa o que nos interessa de perto. Com base em umavasta pesquisa sobre a escravido negra nas provncias cafeeiras do Rio de Janeiro, deMinas Gerais e de So Paulo ao longo do sculo XIX, que dava conta das mltiplasdimenses econmicas, sociais, polticas e ideolgicas do fenmeno, Emlia Viotti daCosta ofereceu um tratamento sofisticado da abolio da escravido no Brasil. No livro,o evento foi compreendido como resultado de um processo de longa durao queenvolveu mudanas estruturais, situaes conjunturais e uma sucesso de episdios queculminaram na Lei urea. Nessa perspectiva, o exame do movimento abolicionistaeda ao escrava, decisivos para o trmino da instituio, foi articulado anlise dastransformaes que criaram as possibilidades para a vitria de 1888: o fechamento dotrfico transatlntico de escravos, em 1850; as primeiras experincias com trabalholivre; a montagem do trfico interprovincial; a ladinizao da populao escrava; oavano da cafeicultura para novas reas de fronteira do Oeste de So Paulo; o impacto

    das ferrovias sobre a economia cafeeira, que trouxe racionalizao dos meios detransporte, estmulo s novas atividades econmicas e urbanizao, e que criou novas possibilidades para o emprego do trabalho livre; a crescente ciso nas classes senhoriais, polarizando os fazendeiros das reas mais antigas do Vale do Paraba (profundamenteapegados escravido) e os das reas pioneiras (menos compromissados com ela). Oesquema analtico de Viotti da Costa, como se pode perceber, partilhava integralmente oquadro geral de interpretao de Eric Williams a respeito da contradio entre

    desenvolvimento capitalista e escravido (Costa 1989: 28, 30). Nos anos seguintes sua publicao, a interpretao que Emlia Viotti da Costa

    exps em Da Senzala Colniaobteve grande ressonncia. A contraposio entre osfazendeiros do Vale do Paraba e os do Oeste de So Paulo, por exemplo, foiincorporada por Eugene Genovese (1979) em sua anlise comparada sobre os sistemasescravistas americanos, por Robert Toplin (1975), em seu livro sobre a abolio daescravido no Brasil, e por Warren Dean (1976), em sua monografia sobre o municpio

    cafeeiro de Rio Claro. Em outro registro, o ensaio de Joo Manoel Cardoso de Mello(2009) sobre o capitalismo tardio brasileiro valeu-se amplamente dos delineamentos

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    de Williams. Mesmo os historiadores que procuraram, nos anos 1970, dar consistnciaterica ao conceito de modo de produo escravista colonial, portanto sendo crticos domodelo, no deixaram de reconhecer em seu trabalho e nos que, a exemplo de Novaise Viotti, seguiram-no de perto as marcas da referncia fundadora (Cardoso 1975;Cardoso 1979; Gorender 1978; Lapa 1980).

    Mas, com o avano da New Economic History, o tipo de anlise que EricWilliams propusera em 1944 paulatinamente perdeu espao. Ainda na segunda metadeda dcada de 1970, os trabalhos inovadores de Pedro Carvalho de Mello e Robert Slenesreviram muitos dos pressupostos que haviam norteado a historiografia sobre aescravido brasileira do sculo XIX inspirada emCapitalism & Slavery. Com as lentesvoltadas ao perodo posterior abolio do trfico negreiro transatlntico, Mello eSlenes demonstraram a lgica econmica do investimento em escravos nas fazendas emcaf do centro-sul do Brasil at a dcada de 1880; apontaram para a inexistncia de umacontraposio essencial entre a mentalidade empresarial dos senhores de escravos doVale do Paraba e a dos fazendeiros do Oeste de So Paulo; acima de tudo,argumentaram que os fundamentos da crise da escravido brasileira deveriam ser buscados no no avano das foras produtivas do capitalismo, mas, antes, na perda delegitimidade poltica da instituio em razo da presso abolicionista (Slenes 1976;

    Mello 1977; Slenes & Mello 1980; Slenes 1986; Mello 1992).Para aferir o peso do abolicionismo, a perspectiva analtica escorada nos

    pressupostos terico-metodolgicos da New Economic History o tratou como fatorexgeno esfera econmica (Mello 1978: 26-28), assim cindido o que, na anlise deEmlia Viotti da Costa, constitua uma unidade contraditria1. Viotti procurou responderao desafio da reviso historiogrfica dos anos 1970 em um longo prefcio segundaedio de seu livro, em que respondia s crticas endereadas ao seu livro (Costa 1989:

    25-54). No entanto, em que pese tal esforo, o tema foi dado por resolvido aps adcada de 1980, tornando-se corrente a avaliao de que os achados da New Economic Historyrepresentavam ltima e definitiva palavra a respeito da natureza das foraseconmicas na crise da escravido brasileira (Slenes 2010:124). No deixa de serirnico que, no exato momento em que a histria econmica perdia espao para a

    1 Nas palavras dela, partindo do pressuposto de que so os homens (e no as estruturas) que fazem ahistria, se bem que a faam dentro de condies determinadas, procurei analisar o processo[de crise daescravido] nos vrios nveis: o econmico, o social, o poltico e o ideolgico, reconhecendo que, embora

    esses nveis tenham uma relativa autonomia e uma dinmica que lhes prpria (no sendo possvel, porexemplo, reduzir o ideolgico ou o poltico ao econmico), todos eles esto profundamente inter-relacionados (Costa 1989: 30).

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    histria social e a histria cultural nos ambientes acadmicos internacionais, no casoespecfico da historiografia sobre a crise da escravido brasileira os prprios avanos da primeira tenham estimulado o desenvolvimento das outras duas: denominado por Slenes(2005:17-18) como um novo paradigma, ou linguagem terica , tal revoluohistoriogrfica se assentou na substituio de uma viso economicista, segundo aqual o escravismo definha com o sur gimento do capitalismo, por outra poltica;economicamente vigoroso, o escravismo agora destrudo por uma luta entre sujeitoshistoricamente constitudos.

    Tomado por esse novo paradigma, ou linguagem terica, como umacategoria abstrata, incapaz de conferir inteligibilidade a processos vividos por sujeitosde carne e osso, o conceito de capitalismo acabou por ser abandonado nas ltimas duasdcadas pelos historiadores que escreveram sobre o passado escravista brasileiro (Slenes1986: 142; Lara 1995: 45; Chalhoub & Silva 2009). Temas como os padres culturaisde escravos e afro-descendentes livres, a resistncia escrava, o imaginrio sobre onegro, o trabalhador nacional e o imigrante, ou, ento, as lutas jurdicas e polticas emtorno da legitimidade da escravido passaram a ocupar o primeiro plano da ateno dosespecialistas. A despeito dos inegveis mritos dessa historiografia, cuja contribuio para o melhor entendimento da histria da escravido no Brasil definitiva, ela

    conduziu a um descaso como os processos histricos de longa durao e os quadrosglobais mais amplos nos quais se inscreveu o sistema escravista brasileiro. Adotandouma concepo de histria que a encara como um vasto campo de indeterminaoresultante de mltiplas agncias locais equivalentes, os historiadores que trataram acrise da escravido brasileira sob o prisma da histria social e cultural acabaram por seaproximar, talvez de modo inadvertido, de alguns dos pressupostos tericos da New Economic History, em especial seu individualismo metodolgico (Piqueras 2009;

    Johnson 2003; Tomich 2004: 3-31; Weistein 2001: 81-85).Voltar proposta avanada originalmente por Eric Williams e por aqueles que

    compartilharam seus pressupostos tericos ainda pode render bons frutos. Para isso, noentanto, os limites de sua obra devem ser levados em conta, notadamente odescompasso que ela apresenta entre uma conceituao do capitalismo como umfenmeno nacional, confinado ao avano da industrializao, do trabalho livre e do livrecomrcio britnicos, e uma concepo mais ampla da economia capitalista como um

    fenmeno transnacional, algo que seu prprio livro sugere (Tomich 2004: 101; Tomich2011). Com efeito, ao longo de toda a segunda parte deCapitalism & Slavery, Williams

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    ressaltou a estreita articulao da economia industrial britnica com a economiaalgodoeira escravista norte-americana, uma articulao que se estendia (em grau menor,claro, mas com implicaes semelhantes) s economias escravistas de Cuba e do Brasil.Se, por um lado, as foras da industrializao haviam destrudo a escravido nas possesses britnicas, por outro lado elas estimularam a expanso da escravido negranesses outros espaos. Nos termos de Williams (1994: 176), British capitalism haddestroyed West Indian slavery, but it continued to thrive on Brazilian, Cuban and American slavery.

    O objetivo do presente texto explorar as descontinuidades das relaes entre aeconomia-mundo capitalista e a escravido negra nas Amricas a partir do exame daeconomia do caf no longo sculo XIX. O foco do debate sobre a dupla tese de EricWilliams2 sempre recaiu no Imprio Britnico e no acar. O procedimento continua aimperar. Basta lembrarmos o livro recente de David Beck Ryden (2009) sobre aabolio do trfico britnico, que retoma a validade geral da tese dois de Williams,concentrando-se no exame da economia britnica. Mesmo no livro de Joseph Inikori(2002), que alargou o escopo da discusso sobre a tese um ao tratar o conjunto docomrcio internacional da Europa entre o sculo XVI e o XIX, as maiores atenesincidem sobre trocas e produo dentro do universo ingls.

    So duas as razes para deslocar o foco para o caf e, por extenso, para oBrasil. A primeira de que se trata de um tema e de um espao praticamente ignoradosnos principais debates internacionais sobre as teses de Eric Williams. A segunda razo mais relevante e se reporta centralidade da economia cafeeira para a escravido brasileira e para a economia atlntica no sculo XIX. O Sul dos Estados Unidos e oBrasil foram as duas maiores sociedades escravistas do hemisfrio americano. O trficotransatlntico negreiro para o Brasil entre as dcadas de 1820 e 1840, sobretudo no

    perodo de 1835 a 1850, foi o mais intenso da histria do infame comrcio para asAmricas, estando diretamente articulado montagem da economia cafeeira brasileira.Ainda que o Brasil no se resumisse aos cafezais do Vale do Paraba, eles representaramo principal esteio da economia do Imprio brasileiro, e promoveram, igualmente, a profunda transformao no mercado mundial do artigo. Entre 1790 e 1888, isto , doincio da Revoluo de Saint-Domingue abolio da escravido no Brasil, a produo

    2 A escravido das plantationse o trfico negreiro transatlntico, articulados ao mercado metropolitano

    por meio do comrcio triangular, tiveram peso decisivo para a acumulao de capitais que levou eclosoda Revoluo Industrial (tese um), que, ao vingar, exigiu a abolio do monoplio, do trfico negreiro eda prpria escravido como condies necessrias para sua expanso (tese dois).

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    mundial de caf aumentou dez vezes. At 1790, a colnia francesa produzia cerca de50% do caf mundial, sendo seguida de longe pelas colnias holandesas do Suriname ede Java. Na esteira da revoluo escrava, apareceram no mercado novos produtores emlarga escala do artigo, como Jamaica e Cuba. As posies que iriam vigorar durantetodo o sculo XIX foram logo decididas: como se pode observar pelogrfico 1 , depoisde 1830 o Brasil passou a dominar de forma inconteste a produo mundial de caf,secundado apenas por Java.

    Grfico 1: Exportaes mundiais de caf em toneladas mtricas, 1823-1888

    Coffee Exports, 1823-1888

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    Brazil Cuba Jam aica Ha iti Indone sia Fonte : Mario Samper & Radin Fernando, Historical Statistics of Coffee Production and Trade from1700 to 1960, in: W.G. Clarence-Smith & S. Topik (org.),The Global Coffee Economy in Africa, Asia,and Latin Amrica, 1500-1989.Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp.411-62.

    Essa polarizao perdurou sem questionamentos at a dcada de 1880, quando vrios pases latino-americanos (Colmbia, Guatemala, Costa Rica, Mxico) entraram nomercado mundial, sem, contudo, ameaarem o lugar do Brasil. Por fim, vale destacarcomo a passagem de Saint-Domingue para o Brasil envolveu modificaes substantivasnos padres de explorao da fora de trabalho. Na colnia francesa havia, em 1790,cerca de 158.000 escravos trabalhando em suas plantationscafeeiras, que produziramnaquele ano cerca de 34.500 toneladas mtricas (Dubois 2004: 24-28; Geggus 1993:76). Quase cem anos depois, o agrnomo holands C.F. van Delden Larne estimou que

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    284.000 escravos trabalhavam nas fazendas de caf das provncias do Rio de Janeiro,So Paulo e Minas Gerais, produzindo, no entanto, perto de 350.000 toneladas mtricas(Larne 1885: 119-124). Ou seja, enquanto em Saint-Domingue obtinha-se 0.22toneladas mtricas / ano por escravo, no Brasil essa proporo era de 1.23, uma produtividade, portanto, quase seis vezes maior.

    Eis o argumento do texto: no perodo de 1790 a 1888, possvel identificar trsmomentos distintos na relao entre a economia-mundo capitalista e a produoescravista de caf, nos quais as interaes entre foras globais e foras locais passaram por transformaes substantivas. O primeiro momento (dcadas de 1790 a 1820) foimarcado pela crise da economia cafeeira construda na base caribenha durante o sculoXVIII; o segundo momento (dcadas de 1820 a 1860) testemunhou o arranque docomplexo cafeeiro no Brasil, diretamente conectado consolidao da nova ordemindustrial no Atlntico Norte; o terceiro momento foi travejado pela crise da economiaescravista cafeeira brasileira, resultante da Guerra Civil norte-americana (1861-1865) eda reorganizao da economia-mundo capitalista durante a chamada Grande Depresso(1873-1896). Para analisar esses movimentos, pretendo seguir a proposta de AntonioBarros de Castro para compreender a lavoura do caf em trs tempos e trs espaos:

    a caracterstica que no apenas diferencia profundamente o chamadociclo cafeeiro, como constitui, a nosso ver, uma chave para a interpretaodo significado desta lavoura na histria econmica brasileira, suamarcante mobilidade. O caf foi, entre ns, uma cultura itinerante. Naexpanso como na crise, devemos analis-la como uma atividade emmovimento. Dada esta caracterstica, a lavouraem expansocompreendia:uma faixa ou zona pioneira, onde o caf est penetrando; uma regio emque ele se encontra consolidado e plenamente produtivo; uma regiodecadente, onde a cultura se encontra em regresso. (Barros de Castro1971: II, 60-61)3

    Em cada um dos momentos acima assinalados, observam-se relaes especficas entreas zonas pioneiras, as zonas maduras e as zonas decadentes na arena mundial, que muitoiluminam as dinmicas contraditrias entre os ritmos da economia-mundo capitalista e a produo escravista de caf.

    3 Antonio Barros de Castro (1984: 46) sugere, em outro texto, que seu modelo dos trs tempos inspirou-se

    na anlise de Eric Williams sobre a lei da produo escrava. Um trabalho que se aproxima do que prope Castro tratando neste caso da mobilidade espacial da lavoura algodoeira nos Estados Unidos o de Gavin Wright (1978; 1987).

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    Comparada com artigos tropicais como o acar e o tabaco, a produo em largaescala de caf sob comando europeu para o abastecimento dos mercados consumidoresmetropolitanos foi uma criao relativamente tardia. Dos primeiros contatos doseuropeus com a bebida, em fins do sculo XVI e incios do sculo XVII, implantaodos cafezais na Indonsia (pelos holandeses) e na Amrica (por franceses e holandeses)entre 1690-1730, a oferta coube exclusivamente aos produtores rabes do Yemen(Tuchscherer 2003). Quando, aps a dcada de 1730, as potncias europiasconseguiram montar bases cafeeiras permanentes no ndico e no Atlntico, o complexoeconmico da mercadoria passou a ser regulado pelo sistema mercantilista. Seusresultados para as metrpoles do noroeste europeu, no entanto, foram desiguais. AFrana foi, no sculo XVIII, a maior beneficiria dele, convertendo-se no centro daeconomia cafeeira mundial; no que se refere Inglaterra, a poltica adotada pela East Indian Companytornou o mercado britnico de bebidas estimulantes cativo do chembarcado em Canto, ao passo que a produo holandesa de caf em Java foi constrita pela ao monopolista da VOC (Vereenigde Oost-Indische Compagnie), que a tratoudurante todo esse perodo como especiaria, no como artigo a ser granjeado em largaescala (Smith 1996; Cowan 2005: 75-77; Elson 1994: 24-25; Clarence-Smith 1994:

    241-3; Arrighi & Barr & Hisaeda 2001: 117).A produo da Amrica no demorou a suplantar a da sia. Em que pese a

    relevncia do Suriname, as possesses francesas no Caribe foram as que se destacaramcomo zonas cafeeiras no perodo compreendido entre 1730 e 1790. Houve nelas umarelativa complementaridade entre as reas aucareiras, que ocupavam terras baixas, plancies e fundos de vales, e as reas cafeeiras, montadas nas terras altas, maisadequadas aos arbustos do caf. Essa conjugao encontrou solo perfeito em Saint-

    Domingue, sobretudo aps a Guerra dos Sete Anos (1755-1763). Como se pode ler naTabela 1 , que sumaria o desempenho dos maiores produtores mundiais entre 1755 e1790, no incio do conflito a Martinica se encontrava frente dos demais competidores,mas, logo ao trmino dele, tanto o Suriname como Saint-Domingue tomaram adianteira. Rapidamente, no entanto, Saint-Domingue descolou-se do Suriname,convertendo-se na principal zona de fronteira do caf. Na dcada que se seguiu Guerrados Sete Anos, sua produo triplicou. Um novo salto se deu na dcada de 1780, para o

    4 Retomo, neste item, a interpretao que desenvolvi com Dale Tomich em outro artigo (2009).

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    que certamente contribuiu o incremento do trfico transatlntico de escravos para acolnia, com cerca de 222.000 africanos desembarcados somente entre 1784-17905. Talcomo o acar, a pujante produo de caf de Saint-Domingue permitiu Frana manterum lucrativo comrcio de reexportao, estruturado em torno dos portos de Nantes,Bordeaux e Marselha. Os consumidores do artigo francs eram representados, emgrande parte, pelas camadas endinheiradas do norte da Europa, e, para tanto, Amsterddesempenhava importante papel como ponto de entroncamento na distribuio paraaqueles mercados (Trouillot 1982; Braudel 2005: I, 231).

    Tabela 1: Produo de caf em toneladas mtricas, 1755-1790Java Suriname Saint-Domingue Martinica Jamaica

    1755 1.512 2.423 3.150 5.517(1753 )

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    1764 1.731 6.160 6.750 3.157(1765 )

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    1774 2.284 7.615 18.000 6.771 5851790 1.678 5.143 34.650 4.404 1.035

    Fontes: Java/Suriname : Samper & Fernando 2003: 412;Saint-Domingue : Trouillot 1982: 337;Martinica : May 1972 (1753, 1765, 1774); Gonzlez Fernandz 1989: 153 (1790);Jamaica : Smith 1998:71-73.

    A revoluo escrava iniciada em 1791 no norte de Saint-Domingue, que

    culminaria, em 1804, na declarao de independncia do Haiti, alterou por completo acomposio da economia mundial do caf. Em uma conjuntura de curva ascendente deconsumo, a retirada brusca de Saint-Domingue do mercado rapidamente impactou asdemais zonas cafeicultoras mundiais. De incio, foram as Antilhas britnicas quem maisse aproveitaram desse vcuo, sobressaindo-se a Jamaica, at ento produtora marginal.Valendo-se de terras no utilizadas para a cultura da cana no interior da ilha, sua produo saltou para 6.000 toneladas nos anos finais do sculo XVIII, atingindo, em

    1808, o pico histrico de 13.500 toneladas (Smith 1998: 73; Higman 2001: 159-91).Demerara, incorporada ao Imprio britnico no curso dos conflitos inaugurados pelaRevoluo Francesa, tambm verificou notvel salto em sua produo de caf. Em1810, chegou a 8.640 toneladas mtricas, volume mximo obtido durante a vigncia daescravido (Viotti da Costa 1994: 317).

    Como ressalta Seymor Drescher, during the fifteen years from the beginning ofthe Anglo-French wars in 1793 to British abolition of the slave trade, coffee was the

    5 Todos os dados aqui citados sobre o trfico transatlntico de escravos foram retirados dewww.slavevoyages.org.

    http://www.slavevoyages.org/http://www.slavevoyages.org/http://www.slavevoyages.org/
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    most rapidly expanding commercial crop in the British colonies. Nos primeiros anosdo sculo XIX, afirma ele, o montante produzido nas possesses britnicas teria seaproximado a metade da oferta mundial de caf; contudo, the significance of Britishcolonial output as a share of total world production diminished almost as rapidly as ithad grown. In the period 1821-1825, the British West Indian share of the combinedCuban, Brazilian, and British Caribbean coffee exports was 37 percent. By 1830 the British colonial share had dropped below 22 percent. Segundo Drescher, a queda na produo britnica de caf deveu-se basicamente abolio do trfico negreirotransatlntico para o Imprio britnico e interdio legal do deslocamento de escravosentre suas diferentes colnias. Forados a escolher em que atividade alocar uma fora detrabalho decrescente e cada vez mais velha, os plantadores das ndias Ocidentaisoptaram pelo acar, cuja rentabilidade era maior que o caf. Caso o trfico negreiro permanecesse aberto, especula Drescher, possivelmente os britnicos seriam capazes demanter sua posio no mercado cafeeiro mundial (2004: 245-246).

    A composio da oferta mundial aps 1815, isto , aps a volta da paz aoAtlntico Norte, parece corroborar o argumento de Drescher. Como se pode notar nogrfico 1 , na dcada de 1820 a Jamaica ainda a maior produtora britnica foiultrapassada por Java, pelo Haiti independente (ambas, zonas sem escravido) e pelos

    novos produtores escravistas de Cuba e do Brasil. At 1807, a produo cubana foi pequena, no atingindo a faixa de 1.000 toneladas, mas o plantio em larga escalaefetuado a partir de 1804 permitiu que, em 1810, esse nmero saltasse para 4.600toneladas. Em 1821, chegou a 10.000 toneladas. Nesta altura, a produo cubana eraequivalente da Jamaica, sendo ambas superiores javanesa. Na dcada de 1820,enquanto a produo jamaicana estacionou, as de Cuba e de Java cresceram de formasubstantiva, a primeira mais que a segunda: a produo cubana triplicou entre 1822 e

    1830, atingindo, em 1833, cifra prxima de Saint-Domingue em 1790, isto , cerca de29.500 toneladas. Mais incrvel, contudo, foi o que ocorreu com o Brasil: o volume decaf exportado pelo pas quadruplicou, indo de 13.500 toneladas, em 1821, para 67.000toneladas, em 1833 (Marquese & Tomich 2009: 351-6).

    Em uma primeira leitura, esses nmeros sugerem que, sem o concurso do trficonegreiro transatlntico, os produtores jamaicanos de fato no tinham como competircom brasileiros e cubanos. Porm, destaca-se o salto do Brasil em relao a Cuba na

    dcada de 1820, tanto mais notvel se lembrarmos que, de acordo com o censo cubanode 1827, era empregada nos engenhos aucareiros daquela colnia uma fora de

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    trabalho equivalente de suas fazendas de caf, algo como 50.000 escravos em cadaqual (Marrero 1984: XI, 114). Como entender o descolamento da cafeicultura brasileiraem relao s suas competidoras caribenhas?

    Neste ponto, importante prestar ateno ao peso da varivel ambiental, ou,noutros termos, a conformao da cafeicultura como uma atividade em trs tempos etrs espaos. Vejam-se, na tabela 2 , as estimativas de produtividade dos arbustos decaf no Caribe e no Brasil em dois momentos distintos, isto , na dcada de 1790,quando Saint-Domingue e Jamaica estavam na fronteira da mercadoria, e na dcada de1820, quando esse lugar era ocupado por Cuba e pelo Brasil.

    Tabela 2: Estimativa de produtividade dos cafeeiros por mil ps em arroba (@).

    Suriname Saint-Domingue

    Jamaica Cuba Brasil(Vale do Paraba)

    1790s 45@(1780s )

    31@ 33@

    1820s 27@ 91@Fontes: Suriname : J-B.Guisan (1788: 131); Saint -Domingue : P.J. Laborie (1798: 152);Jamaica : BryanEdwards (1793: II, 279-81);Cuba : Levi Marrero (1984: 5, 110-1);Vale do Paraba : Auguste de Saint-Hilaire (1974:101). 1@ = 14,7 kg.

    A produtividade dos arbustos de caf no Vale do Paraba era, no momento doarranque da cafeicultura brasileira, trs vezes superior aos do Caribe e o dobro dasGuianas. Ou seja, mesmo se o Imprio britnico houvesse mantido o trficotransatlntico e o trnsito de escravos entre suas colnias, muito provavelmente elas noconseguiriam fazer frente produo brasileira. Como exps Kathleen Monteith (2002) para o caso jamaicano, o estancamento e o declnio da produo cafeeira aps 1808 noforam resultado exclusivo das aes do movimento antiescravista metropolitano: devidos tcnicas agronmicas ento empregadas que acarretavam rpida exausto dos solosem razo do processo erosivo nas encostas plantadas com o arbusto e a ofertarelativamente restrita de terras no interior montanhoso da ilha, a cafeicultura jamaicanaem pouco tempo atingiu seu limite produtivo mximo. Um argumento semelhante podeser aplicado ao caso de Cuba que, ao contrrio das colnias britnicas, teve livre acessoao circuito transatlntico de escravos at a dcada de 1860. Disputando palmo a palmo a preferncia dos consumidores de artigos tropicais nos mercados do Atlntico Norte comseus rivais brasileiros, desde os anos vinte os cafeicultores cubanos enfrentaram, noocidente da ilha, a competio dos produtores aucareiros pelos mesmos recursos em

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    termos de terras e trabalho. A produtividade sensivelmente mais elevada do acar cujas vantagens comparativas tornaram-se evidentes na medida em que a malhaferroviria cobriu grande parte da zona ocidental da ilha trouxe a crise definitiva dacafeicultura cubana na dcada de 1840 (Marquese & Tomich 2009: 362-63).

    Tais observaes no visam reduzir a explicao do surgimento do Brasil comogrande produtor no mercado mundial de caf s excepcionais condies geoecolgicasde que gozava sua regio centro-sul para o granjeio do artigo. A construo do Vale doParaba como a fronteira da mercadoria nas dcadas de 1820-1830 isto , como a nova zona pioneira mundial do caf dependeu da desmontagem dos travejamentos dosistema colonial portugus que, durante o sculo XVIII, dificultaram seu deslanche.

    A medida mais relevante nesse sentido foi, sem sombra de dvidas, a aberturados portos brasileiros s ditas naes amigas, promovida pela Coroa portuguesa assimque chegou ao Brasil, em 1808, fugindo das tropas napolenicas. Em primeiro lugar, osbito aumento do contingente populacional da cidade do Rio de Janeiro, agora sede doImprio portugus, ampliou substancialmente a demanda por gneros de primeiranecessidade. Para atend-la, a administrao de D. Joo buscou aprimorar a rede decaminhos que cortavam o centro-sul da colnia, estimulando a construo de estradas para ligar diretamente a zona produtora de mantimentos do sul de Minas Gerais nova

    corte. Duas dessas novas estradas, as da Polcia e do Comrcio, concebidas pararegularizar o fluxo de mercadorias de Minas ao Rio, seriam absolutamente centrais parao deslanche da cafeicultura no mdio Vale do Paraba, cujo povoamento fora barradodurante todo o sculo XVIII para impedir o contrabando de ouro. A operao dessasduas vias gerou intensa febre fundiria, e em suas margens seriam em breve fundadosdos dois maiores municpios cafeeiros mundiais do sculo XIX, Vassouras e Valena(Lenharo 1992: 47-59). Em segundo lugar, a abertura dos portos permitiu a conexo

    direta dos senhores de escravos da Amrica portuguesa com o mercado mundial. Emconjuno com o crescimento demogrfico da corte, o decreto de livre comrcio teveimpacto imediato sobre a demanda de escravos: na dcada de 1800, desembarcaram aliuma mdia anual de 10.000 cativos africanos. No decnio seguinte (1811-1820), sob onovo regime de comrcio, a cifra praticamente duplicou: cerca de 19.000 africanosaportaram anualmente como escravos no Rio de Janeiro (Florentino 1995: 74). Partedesses escravos obtidos a baixo custo no trato atlntico bilateral com Angola foi

    destinada s crescentes lavouras de caf de serra acima, cujos proprietrios tinham suadisposio, no porto carioca e em seus satlites ao longo do litoral at Santos, todo um

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    sistema comercial (armazns, casas mercantis etc) montado h tempos para a exportaode acar, couros, algodo e outros gneros (Fragoso 1992; Luna & Klein 2005: 58-59).

    A independncia do Brasil, em 1822, sedimentou o quadro institucionalfavorvel expanso cafeeira que vinha sendo construdo desde 1808. Nesse ponto, acapacidade que os cafeicultores do Vale do Paraba demonstraram para ditar a polticada escravido no novo Estado nacional revelou-se decisiva. De incio, eles nocontrolaram a matria, como o prova a abolio do trfico transatlntico para o Brasil,em 1831, fruto das presses britnicas sobre o primeiro imperador brasileiro, D. Pedro I.Durante o perodo de menoridade de D. Pedro II (1831-1840), no entanto, oscafeicultores conseguiram articular um programa poltico e econmico inteiramentefavorvel ao trfico negreiro. De 1835 em diante, uma ampla coalizo de ex-liberaismoderados, ex-partidrios de D. Pedro I e grandes proprietrios de escravos do centro-sul do Brasil base da formao do futuro Partido Conservador passou a advogar aanulao da lei de 1831. Nesse movimento de mo-dupla entre as demandas da classesenhorial e os esforos de arregimentao de eleitores por parte de uma nova fora poltica, os fazendeiros de caf do Vale do Paraba (j ento a zona econmica maisdinmica do Imprio do Brasil) desempenharam papel fulcral, ao exigirem por meio de presso poltica direta e de aes no espao pblico a reabertura do trfico

    transatlntico. Ao tornarem a matria, desde 1835, pauta de campanha poltica, osagentes do Regresso Conservador (conhecidos pela alcunha de saquaremas) acenaramaos traficantes e cafeicultores que dariam sinal verde retomada do infame comrcio. Aestratgia funcionou muito bem, pois, na segunda metade da dcada de 1830, enquantodesembarcavam nos portos do centro-sul do Brasil quase 240.000 africanos ilegalmenteescravizados, nmero que subiu para mais de 300.000 nos anos quarenta, os saquaremas umbilicalmente ligados cafeicultura do Vale do Paraba conseguiram impor

    integralmente sua agenda poltica imperial (Parron 2011).A correspondncia entre o volume do trfico negreiro transatlntico aps 1835 e

    o crescimento das exportaes brasileiras de caf, toda oriunda do Vale do Paraba, clarividente. O hiato entre o plantio do arbusto e a venda de gros beneficiados nomercado de, no mnimo, trs anos, sendo que a planta s entra em produo plena aoscinco anos de idade. Assim sendo, a incorporao de um dado nmero de trabalhadoresna lavoura do caf teria que esperar meia dcada para obter resultados concretos. Os

    dados da tabela 3 expressam as linhas gerais esta correlao:

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    Tabela 3

    Ano Desembarques deafricanos nos portos do

    centro-sul do Brasil

    Exportaes de caf emmilhares de toneladas

    mtricas, Brasil 1835 30000 60.661836 46000 58.861837 46000 61.771838 42800 74.461839 46000 81.481840 27309 78.661841 17264 78.061842 16451 84.211843 30000 89.551844 19500 91.981845 16000 97.441846 42499 123.30

    1847 49000 141.811848 52000 133.381849 46000 106.771850 19400 118.141851 4264 144.661852 984 143.011853 --- 136.801854 --- 159.601855 --- 181.29

    Fontes: www.slavevoyages.org; Samper & Fernando (2003: 432)

    Adquirindo grande parte dos escravos desembarcados no centro-sul do Brasilentre 1835-1850, o volume que os fazendeiros do Vale do Paraba passaram a ofertar nomercado mundial partir da dcada de 1830 ultrapassou em muito o padro caribenho dosculo XVIII, o que implicou modificaes substantivas nas duas pontas da cadeia damercadoria. De um lado, a planta de suas unidades cafeeiras foi indita, commodalidades de administrao da paisagem e do trabalho concebidas para dar conta deuma escala inaudita de produo (Marquese 2008; 2009a; 2009b; 2010). Do outro lado,a nova zona pioneira atrelou-se a um novo mercado consumidor. Ao longo do sculoXIX, a demanda nos mercados tradicionais da Europa continental cresceu de formacontnua, mas, em meados do sculo, o principal sorvedouro passou a estar na Amricado Norte (Greenhill 1992: 156). O envolvimento dos norte-americanos nos circuitoscaribenhos datava da dcada de 1770, acentuando-se aps a independncia, quando seuscomerciantes desenvolveram uma complexa rede de re-exportao de caf, responsvel,em 1804, por cerca de 10% dos ganhos dos Estados Unidos com bens exportveis

    (McDonald 2005: 15). Com a normalizao dos mercados atlnticos aps as guerras

    http://www.slavevoyages.org/http://www.slavevoyages.org/http://www.slavevoyages.org/http://www.slavevoyages.org/
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    napolenicas e o fim de seu papel como intermedirio neutro, os Estados Unidos passaram da condio de re-exportadores para a de importadores de caf. A demandainterna do produto, cujo consumo associou-se de modo indelvel prpria identidadenacional (McDonald & Topik 2008), cresceu exponencialmente a partir da dcada de1820, para o que a poltica de tarifao livre adotada em 1832 certamente muitocontribuiu. A varivel decisiva, no entanto, esteve do lado da oferta: entre 1821 e 1848,os preos nominais e reais do caf no mercado norte-americano tiveram queda contnua,claramente determinada pela massa crescente de produto brasileiro, o que, por sua vez,facultou a amplas parcelas da populao norte-americana a aquisio do hbito de seuconsumo (Bacha 1992: 20; Topik 2003: 37-40). Vemos, aqui, o clssico mecanismodescrito pela Lei de Say, de induo do consumo pela oferta. Nos termos de JooManoel Cardoso de Mello (2009: 48), a prpria expanso da oferta brasileira que permite, em ltima instncia, que a demanda se amplie constantemente e, ao mesmotempo, estimule novamente, dentro de certas condies, o crescimento da oferta.

    Aps a dcada de 1830, Brasil e Estados Unidos dominaram as duas pontas dacadeia da mercadoria do caf, em uma rede transformada pela massificao em todas assuas etapas e pela excluso de antigos produtores, como a Jamaica e o Suriname, e denovos, como Cuba (Monbeig 1984: 105; Carvalho Franco 1983: 172-3). Java, a outra

    grande produtora que destacou no mercado mundial nos anos trinta do sculo XIX, nofoi capaz de romper essa associao. Em vista de um acelerado crescimento entre 1833e 1840, congruente com o que estava se passando no Brasil, a interrupo na curva dasexportaes de Java na segunda data notvel, o que se torna ainda mais surpreendentediante de sua estabilizao em um patamar por volta de 75.000 toneladas que seriamantido at o final do sculo XIX. Como compreender a inelasticidade da produocafeeira de Java?

    A divergncia muito revela sobre a natureza complexo cafeeiro escravista doVale do Paraba. A economia de Java passou por srias atribulaes na virada do sculoXVIII para o XIX. Os esforos de reforma posteriores ao fim da VOC levaram, nadcada de 1830, construo de um novo modelo de explorao colonial, o KultuurStelsel , ou sistema de cultivo. Seu elaborador, Johannes Van den Bosch, avaliava que,diante da proximidade com os mercados europeus e o baixo custo do trabalho proporcionado pela escravido negra nas Amricas, seria impossvel a Java competir no

    mercado mundial valendo-se unicamente do emprego de trabalho livre em grandesunidades pertencentes a investidores privados. Em resposta ao problema, Van den

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    Bosch props um esquema logo implementado pelo Estado holands no qual oscamponeses indonsios seriam compelidos a pagarem seus tributos em espcie, e noem dinheiro. Sob o Kultuur Stelsel , os camponeses deveriam alocar um quinto de suasterras para o granjeio de artigos determinados pelo governo, fornecendo-os a preosfixos aos armazns oficiais sem serem supervisionados no processo de produo. O cafse tornou a espinha dorsal do sistema e a principal fonte de rendas para o Estadocolonial. Os preos pagos aos camponeses no seguiam os valores do mercado mundialdo caf, o que resultava em uma imensa transferncia de excedentes para os poderescoloniais. Os ganhos se ampliavam com as operaes da Nederlandsche Handelmaatschappij, uma companhia semi-monopolista que remetia o artigo paravenda no mercado de Amsterd. O sistema de cultivo permitiu um notvel aumentoda produo de caf de Java em relao ao sculo XVIII, levando-a a oferecer partesignificativa do volume importado pela Europa no sculo XIX. O produto javans,entretanto, s poderia crescer caso ocorresse o mesmo com sua populao camponesa,mais preocupada com a combinao de atividades econmicas que garantiam o provento de suas famlias do que com a maximizao da produo cafeeira, vista comouma imposio do Estado colonial (Marquese & Tomich 2009: 372; Fasseur 1992).

    No reverso da medalha, os fazendeiros brasileiros contaram com a elasticidade

    propiciada pelo trfico transatlntico de escravos e com a possibilidade de criarem umanova planta produtiva em uma zona de fronteira aberta. Mesmo que tenham sidoforados, em 1850, a abdicar do infame comrcio, pode-se afirmar que a classesenhorial do Vale do Paraba acumulava, no incio daquela dcada, uma histria degrandes sucessos. Contra os inimigos internos: entre 1835-1845, com os recursos fiscaisofertados pela exportao de caf, os poderes centrais do Imprio do Brasil conseguiramderrotar grupos provinciais que a eles se opunham; do mesmo modo, as poucas aes de

    resistncia escrava coletiva que eclodiram no Vale do Paraba durante o arranque dacafeicultura foram facilmente esmagadas pela represso dos fazendeiros (Mattos 1987;Gomes 2006). Contra o inimigo externo: o estoque de africanos ilegalmenteescravizados aps 1835, a contrapelo da lei de 1831 e da fortssima presso diplomticae naval britnica que sustentaria os altos patamares da produo cafeeira do Vale doParaba at o final da dcada de 1860. Aps encerrar o trfico em 1850, o Estadoimperial brasileiro em momento algum colocou em risco os direitos de propriedade dos

    fazendeiros de caf sobre a enorme massa de trabalhadores que eles mantinham, emcativeiro ilegal, dentro de suas propriedades (Parron 2011).

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    Nos municpios do Vale do Paraba ocidental, mais prximos divisa das provncias do Rio de Janeiro e de So Paulo (Areias, Queluz, Bananal, Resende, BarraMansa, So Joo Marcos, Pira, Vassouras, Valena, Paraba do Sul), a cafeicultura era,nos anos cinqenta, uma atividade que contava com quase trs dcadas de exploraocontnua. Na conceituao de Antonio Barros de Castro, esses municpios haviam seconvertido ento em zona madura, bem abastecida de escravos pelo incremento dotrfico transatlntico nos anos quarenta (Salles 2008; Moreno 2011). As novas zonas pioneiras se encontravam agora no Vale do Paraba mineiro (regio de Juiz de Fora),nos municpios orientais do Vale fluminense (regio de Cantagalo), e no chamadoOeste Velho de So Paulo, isto , na regio de Campinas e municpios vizinhos. Nesteltimo caso, notam-se os efeitos da reorganizao do mercado mundial de artigostropicais ocorrida sob o regime de livre comrcio na economia-mundo industrial. A produo avassaladora de caf do Vale do Paraba nas dcadas de 1830 e 1840 colocouem xeque a cafeicultura cubana, cujas reas no ocidente da ilha acabaram sendodefinitivamente revertidas para a produo aucareira. Por sua vez, o crescimentoexponencial do acar cubano nas dcadas de 1840-1850 retirou do mercado reasmenos competitivas, como era o caso do chamado quadriltero do acar, a macro-regio de Jundia-Campinas-Piracicaba-Itu que entrara no mercado mundial do acar

    na esteira da Revoluo de Saint-Domingue: incapazes de competir com os rivaiscubanos, seus senhores voltaram-se para o caf na virada da dcada de 1840 para a de1850 (Tomich 2004; Moreno Fraginals 1989: II; Bergad 1990; Petrone 1968).

    Em todas as novas zonas pioneiras do centro-sul do Brasil, o recurso ao trficointerno de escravos para a expanso das lavouras cafeeiras se fez necessrio j nos primeiros anos da dcada de 1850; at a dcada seguinte, esclarece Robert Slenes (2004:346), o movimento intraprovincial de escravos superou o interprovincial para o

    abastecimento delas. Porm, na fronteira do Oeste Velho, alguns de seus fazendeirosse sentiram estimulados a testar um caminho alternativo para a recomposio de forade trabalho, paralelo aquisio de escravos no mercado interno. A despeito de seu pequeno peso demogrfico e seu fracasso como alternativa vivel escravido, oepisdio do sistema de parceira com o concurso de trabalho migrante europeu acabariase revelando crucial. Os esforos de terreno para a reconfigurao das relaes detrabalho na cafeicultura produziriam um acmulo de experincias que dariam origem,

    no correr da dcada de 1870, a um novo modelo de engajamento de trabalho livre no-assalariado (Dean 1977; Stockle & Hall 1983; Costa 1989). Como veremos logo abaixo,

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    tal arranjo de trabalho, criado na fronteira cafeeira de So Paulo, pde ser facilmenteempregado na crise terminal da escravido.

    Em fins da dcada de 1850, todavia, com a incapacidade demonstrada de osistema de parceira funcionar como alternativa concreta para a mobilizao em larga deescala de trabalhadores para a cafeicultura, tanto os fazendeiros das zonas madurascomo os das zonas pioneiras entenderam que sua prosperidade dependeria por um largotempo do trabalho escravo. Os riscos do fim do trfico negreiro transatlntico para umaeventual politizao da instituio haviam sido vencidos; o Sul dos Estados Unidos passava a indicar o caminho para o futuro da escravido brasileira. O trfico interno deescravos e o crescimento vegetativo da populao escrava, os fundamentos da incrvelexpanso da economia algodoeira do Baixo Sul norte-americano nos anos quarenta ecinqenta, prefiguravam um quadro muito promissor para a expanso da cafeicultura brasileira, tanto mais que, desde 1848, os preos internacionais do artigo vinhamdemonstrando forte tendncia ascensional (Parron 2011; Bacha 1992: 20).

    A curva positiva nos preos do caf, na verdade, fez parte de um processo maisamplo de valorizao dascommoditiestropicais no correr da dcada de 1850. A alta nos preos do caf, do acar e do algodo, por seu turno, trouxe a alta nos preos dosescravos no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos (Bergad 2007: 161; Versiani &

    Vergolino 2002). Os fazendeiros das zonas maduras, possuidores de amplos estoques deescravos, viram o valor de seu capital aumentar de um momento para outro, ao passoque aqueles que estavam adquirindo novos escravos nas zonas pioneiras nutriam aexpectativa de um rpido retorno do investimento em cativos. O crescimento no volumedo caf produzido e o avano espacial da fronteira da mercadoria, no entanto, gerou presso crescente sobre o sistema de transporte ento disponvel. Contando com umavasta rede de criao no Sul do Brasil e capazes de ultrapassar com sucesso a barreira da

    topografia montanhosa que se interpunha entre o Vale do Paraba e os portos litorneosde So Paulo e do Rio de Janeiro, as mulas foram plenamente operacionais no perodode montagem e expanso da lavoura cafeeira. Na dcada de 1850, entretanto, odeslocamento da fora de trabalho para o cultivo do caf gerou presso inflacionriasobre os mantimentos, dentre os quais assomava o milho, que competia diretamentecom terras cafeeiras e constitua o combustvel das tropas de mulas (Ribas 1989). Otempo de deslocamento entre o interior cada vez mais distante e o litoral ameaava

    tornar proibitivo o uso do sistema tradicional das mulas. A nica soluo possvel ao problema estava nas ferrovias, como bem sabiam os contemporneos (Werneck 1855).

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    No incio dos anos cinqenta, finalmente consolidou-se oknow-hownecessrio para a construo de linhas ferrovirias capazes de atravessar grandes obstculostopogrficos como serras e cordilheiras, no exato momento em que os capitais britnicos estavam procurando oportunidades de investimento mundo afora (Hobsbawm2000: 88). As ferrovias D. Pedro II e So Paulo Railway, concebidas para servir sreas cafeeiras do centro-sul do Brasil e cujas construes comeariam na segundametade da dcada de 1850, muito iriam se valer do novo saber tecnolgico e desseafluxo de capitais (El-Kareh 1982; Nogueira de Matos 1990: 65-8; Saes 1981: 38-41).

    A crise mundial da escravido e as novas fronteiras do caf no Brasil

    Se, na dcada de 1850, oboomdas commodities trouxe grande prosperidade parao Imprio do Brasil, por outro lado ele esteve nas razes do conflito blico que, nos anossessenta, alteraria por completo as perspectivas de futuro da escravido brasileira. Aescalada das tenses que levaram ecloso da Guerra Civil norte-americana muitodeveu aos xitos da economia algodoeira no decnio anterior. Verificando forte curvaascendente em seus preos internacionais desde 1847, o sucesso econmico do algodoaguou a presso sulista por terras e trabalho, que se expressou politicamente na questodo estatuto da escravido nos territrios conquistados na guerra contra o Mxico; no

    problema do comprometimento dos Estados do Norte com a captura e o retorno deescravos fugitivos do Sul; nas campanhas pela reabertura do trfico transatlntico deescravos e pela anexao (por compra ou conquista) de territrios no Caribe, Cuba emespecial. Diante da crescente animosidade ao que era denominado, nos Estados do Norte, deSlave Power Conspiracy, e do colapso do sistema partidrio construdo nadcada de 1820, os senhores de escravos do Sul e seus representantes polticos se fiaramcada vez mais na crena do poder do King Cotton para contrabalanar o avano da

    plataforma antiescravista no Norte ou, no limite, para afianar o movimento deindependncia dos Estados do Sul. Em 1860, nove dcimos do algodo bruto importado pela Gr-Bretanha foram produzidos nos estados escravistas do Sul dos Estados Unidos:ao se lanar Guerra Civil, o campo escravista confederado foi impulsionado pelo prognstico de que o conflito seria rapidamente resolvido em vista da dependncia doscentros industriais da Europa em relao oferta sulista da matria-prima (Bruchey1967; Takaki 1971; May 2002; Sinha 2000: 173-180; Richards 2000; Schoen 2009).

    Como demonstrei em outro lugar e em parceria com um colega meu, o Sul dosEstados Unidos representavam, nas dcadas de 1840 e 1850, o muro de conteno

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    poltica e ideolgica da escravido brasileira e, tambm, da escravido cubana(Marquese & Parron 2010). No foi acaso, portanto, que o incio da crise da escravidonesses dois pases coincidiu com o resultado final da Guerra Civil. A dinmica doconflito norte-americano, alm de ter interditado de forma definitiva o trficotransatlntico de escravos para Cuba, relacionou-se ao surgimento do movimentoantiescravista em Porto Rico e na Espanha, ecloso da primeira guerra deindependncia de Cuba e, conseqentemente, ao processo que conduziu aprovao daLei Moret, em 1870 (Guerra 1971: 589-90; Murray 1980: 298-326; Scott 1991: 65-6;Schmidt-Nowara 1999). No Brasil, o evento norte-americano estimulou diretamente oincio dos debates que levaram elaborao do projeto de libertao do ventre escravo,convertido em lei imperial em 1871 (Conrad 1977: 88-100; Pena 2001: 276-79;Chalhoub 2003: 139-42; Salles 2008: 79-110; Drescher 2009: 337-354).

    Logo veremos como a Lei do Ventre Livre representou o ponto de virada daescravido brasileira, iniciando a cadeia de eventos que, em menos de duas dcadas,dariam cabo a uma instituio secular. No plano econmico imediato, contudo, oresultado da Guerra Civil teve resultados positivos para a cafeicultura brasileira.Durante o conflito, a demanda norte-americana por caf retrocedeu, o que foicontrabalanado pela quebra temporria da produo brasileira nas safras de 1861-1862

    pela praga da borboletinha. Em razo do bloqueio naval, Nova Orleans, at ento a principal praa para o caf brasileiro nos Estados Unidos, perdeu a posio para NovaIorque, doravante a principal praa cafeeira mundial; no entanto, apenas dois anos apsa vitria da Unio, os preos pagos ao caf brasileiro na nova praa explodiram, emuma forte tendncia de alta que se prolongaria at 1878. A conjuntura positiva se deveuao aumento substancial da demanda nos Estados do Norte e do Meio-Oeste, fruto tantodo crescimento do consumo per capita como do crescimento demogrfico (Bacha 1992:

    20-21; Delfim Netto 1966: 16; Thurber 1884: 130; Greenhill 1992: 157). No exato momento em que os preos internacionais do caf decolavam, os

    trilhos da D. Pedro II e da So Paulo Railway finalmente chegavam serra acima, aoVale do Paraba e ao Oeste Velho de So Paulo. Nos anos seguintes, diferentes ramaisferrovirios entrariam a fundo nas zonas cafeeiras do centro-sul do Brasil. Encampada pelo governo imperial, a D. Pedro II rapidamente cobriu toda a parte ocidental do Valedo Paraba (zona madura a caminho da regresso), avanando tambm em direo ao

    Vale do Paraba mineiro (zona pioneira convertida em madura). Nova companhia,composta por capitais dos prprios fazendeiros da regio de Cantagalo, a Estrada de

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    Ferro Cantagalo ligando Niteri quela cidade foi construda entre 1860-1873 paraatender o que, no seu incio de sua montagem, ainda era uma zona pioneira. O mesmomodelo serviu para as companhias ferrovirias criadas na provncia de So Paulo aps achegada dos trilhos da Santos-Jundia (aSo Paulo Railway, companhia pertencente aosingleses) ao planalto: a Paulista (1869) e a Mogiana (1872) foram montadas comcapitais dos fazendeiros da fronteira, sendo, at as primeiras dcadas do sculo XX, asduas principais artrias de expanso da cafeicultura pelo interior paulista (Monbeig1984: 174-6; Nogueira de Matos 1990: 78-90).

    A confluncia entre a alta dos preos internacionais e a chegada das ferrovias szonas maduras e pioneiras trouxe impulso renovado para a expanso da cafeicultura brasileira. Todavia, nas novas condies advindas da aprovao da Lei do Ventre Livre,essa confluncia colocou em movimento um conjunto de foras que, ao levarem aescravido nas zonas cafeeiras aos seus limites ecolgicos, sociais e polticos, acabaria por acelerar os vetores da crise da instituio em escala nacional.

    A Lei do Ventre Livre foi aprovada em setembro de 1871 contra o voto de todasas bancadas das provncias cafeeiras do centro-sul do Imprio do Brasil (Conrad 1977:362). Frente a esta clara derrota poltica, os fazendeiros do Rio de Janeiro, de MinasGerais e de So Paulo procuraram nos anos seguintes se recompor do revs, silenciando

    quaisquer possibilidades de avano na plataforma antiescravista que se arriscoudesenhar em 1869-1871. No curto prazo, a estratgia foi bem sucedida: tal comoocorrera aps a abolio do trfico transatlntico em 1850, sufocou-se em 1871 a potncia abolicionista contida nos debates sobre a libertao do ventre escravo comocaminho para o fim gradual da escravido. No surpreende, assim, que a medidalegislativa no tenha sido capaz de quebrar com a alta dos preos dos escravos,notavelmente estimulada pela tendncia positiva dos preos do caf que vinha de 1848

    e que ganhou novo impulso aps 1868 e pelo rebaixamento do custo do frente, com oaumento da capacidade de transporte de grandes volumes de caf propiciado pelasferrovias que adentravam em novas reas mais produtivas.

    A dcada compreendida entre 1872-1881 representou o pico do trfico internode escravos no Brasil, com quase 100.000 escravos deslocados para as zonas cafeeirasdo centro-sul, com claro predomnio das transferncias interprovinciais sobre osintraprovinciais (Slenes 2004: 331). A distribuio regional desses cativos no foi

    uniforme. Ainda que fazendeiros de todo o centro-sul tenham adquirido escravos nomercado interno, os principais plos compradores estavam nas zonas de fronteira

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    recm-atendidas pelas ferrovias. Tal foi o caso de Cantagalo: entre 1873 (ano dachegada da ferrovia ao municpio) e 1882, sua populao escrava saltou de 17.562 para21.621. Padro anlogo pode ser observadoem todos os municpios do Oeste Novode So Paulo (isto , para alm da regio de Campinas), cobertos pelos trilhos da Paulista e da Mogiana: no perodo de 1874 a 1882, seu nmero de escravos aumentoude 26.282 para 38.242 (Conrad 1977: 355-6). J nos municpios de explorao maisantiga do Vale do Paraba ocidental, entre 1872 e 1884 a populao escrava ouestacionou (casos de Valena e Barra Mansa, no Rio de Janeiro), ou regrediu(Vassouras e Pira, no Rio de Janeiro, Bananal, em So Paulo) (Salles 2008: 258-9).

    Esses nmeros do a ver os impactos diferenciados das ferrovias e da Lei doVentre Livre nos trs espaos da cafeicultura brasileira na dcada de 1870. O Vale doParaba ocidental, regio dominara o mercado mundial do caf a partir da dcada de1830, apresentava na dcada de 1870 uma populao escrava estabilizada, e, conformesugere o estudo recente de Ricardo Salles sobre Vassouras (2008), tendente a umcrescimento vegetativo moderado. Faltam pesquisas sobre esse assunto para os demaismunicpios da regio, mas a hiptese de que neles haveria uma tendncia estabilidadedemogrfica escrava consistente ( importante lembrar que, nos movimentosassinalados no pargrafo anterior, no entram no cmputo os chamados ingnuos, isto

    , os filhos de mes escravas nascidos depois de 1871 e formalmente livres conforme alei imperial). Toda essa zona, no entanto, verificava rendimento decrescente de seuscafezais. A chegada da ferrovia D. Pedro II na conjuntura econmica favorvel dadcada de 1870 estimulou a acelerao da explorao de seus recursos naturais ehumanos, com a alocao de mais ps de caf por escravo em idade produtiva ideal e aderrubada de suas ltimas reservas florestais beira da completa exausto, comorevelam os valores crescentes das terras em mata em relao s terras plantadas com

    caf, das terras abandonadas para capoeiras ou convertidas em pasto com vistas reposio do grande nmero de arbustos improdutivos (Stein 1990: 264-5; Slenes 1986:139-40; Fragoso 1983; Marquese 2008).

    Situao bem distinta da que enfrentavam os fazendeiros das zonas de fronteira.Ao visitar o centro-sul do Brasil entre os meses de setembro de 1883 e abril de 1884, oagrnomo holands C.F. van Delden Larne recolheu informaes detalhadas de 44fazendas, relativas composio da fora de trabalho, maquinrio, extenso territorial,

    produtividade do trabalho e dos arbustos de cada qual. Reagrupando os dadosconcernentes produtividade dos ps e projetando-os sobre o belo mapa inscrito no

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    livro, que destaca em vermelho as zonas tributrias do porto do Rio de Janeiro (Vale doParaba ocidental regio de Vassouras a Bananal; Vale do Paraba mineiro regio deJuiz de Fora; Vale do Paraba oriental regio de Cantagalo) e, em amarelo, as zonastributrias do porto de Santos (Oeste Velho regio de Campinas; Oeste Novo,regio servida pelas redes das ferrovias Paulista e Mogiana), notamos claramente ocontraste entre os trs espaos, e em que medida o Vale do Paraba ocidental seencontrava na posio que, em 1820, coubera aos espaos cafeeiros do Caribe:

    Fonte: Larne (1885: 328-335). 15@: estimativa de fazendas em Vassouras/Valena (RJ); 20@:estimativa de fazendas em Juiz de Fora (MG); 30@: estimativa de fazendas em Cantagalo (RJ); 50@:estimativa de fazendas em Campinas (SP); 60@: estimativa de fazendas em Limeira/Rio Claro (SP);70@: estimativa de fazendas em Araras (SP). No mapa, bem evidente como as ferrovias do centro-sul(assinaladas pelas linhas pretas) foram construdas para atender s diferentes zonas cafeeiras.

    Na zona de fronteira do Oeste Novo, a produtividade do solo e o preo da terrafuncionaram, na virada da dcada de 1870 para a de 1880, como poderoso atrativo paraa migrao de cafeicultores. Na imprensa peridica de Resende, municpio do Vale doParaba ocidental fluminense, noticiava-se, em fevereiro de 1878, que em So Simo[municpio ao norte de Araras, na provncia de So Paulo]diminutas reas esto ali jcultivadas e o todo ainda est coberto de pujantes e esplndidas matas(...); as terras para caf, livres da geada, ainda esto por preo moderado, pois que se tem vendido,

    preo mdio, a 40$000 o alqueire. Em Resende, o alqueire da terra virgem cada vezmais escassa era ento cotado a 400$000, e produtividade dos cafezais novos era ainda

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    mais frustrante, apenas 16@ por mil ps em So Simo, ela estava em 100@ (Whately1987: 47-61). Em 1878, a Estrada de Ferro Mogiana atingira o municpio de CasaBranca, a cerca de 60 km em linha reta de So Simo (Nogueira de Matos 1990: 91). Aexpectativa da chegada dos trilhos da Mogiana promoveu intensa especulao fundiria,com a conseqente elevao do preo da terra: a extenso da ferrovia at Ribeiro Preto, primeira estao aps So Simo, fez os preos mdios do alqueire subirem, em 1884, para 115$000, ou seja, quase o triplo de seis anos antes. Mesmo assim, o preo da terrana fronteira do caf era, ento, bem inferior ao dos solos virgens em Vassouras, sendoequivalente aos preos de terras esgotadas ou em vias de naquele municpio do Valedo Paraba ocidental (Bacellar 1999a: 111; Stein 1990: 264).

    Em um importante artigo no qual reavaliou criticamente a interpretao deStanley Stein (1990) sobre a decadncia de Vassouras na dcada de 1870, RobertSlenes argumentou convincentemente que o investimento em escravos e caf era,naquele tempo e espao especficos, racional do ponto de vista contbil, algo que corroborado pela avaliao de Pedro Carvalho de Mello (1978: 44) sobre a lucratividademdia da empresa cafeeira escravista de ento. Com base nessas constataes, Slenes(1986: 135) afirmou que, se a sbita ascenso de So Paulo pode parecer inevitvelao historiador, com sua viso retrospectiva, provavelmente apanhou os

    contemporneos do processo desprevenidos. A hiptese no se sustenta. Amanuteno dos padres de administrao da paisagem e do trabalho que, em dcadasanteriores, constituram a base do sucesso do Vale do Paraba no mercado mundial,empurrou seus fazendeiros para o esgotamento ecolgico de suas unidades nas dcadasde 1870 e 1880, em um processo que era de pleno conhecimento dos atorescontemporneos: a paisagem destruda das zonas decadentes do Vale lhes mostrava istotodo dia; a imprensa local discutia com freqncia o assunto; quando faleciam, seus

    inventrios anotavam o diferencial crescente de preos entre terras esgotadas, cada vezmais dominantes, e matas virgens, cada vez mais raras (Stein 1990: 254-65; Marquese2007). Se a mecnica da economia cafeeira na virada dos anos setenta para os oitentaconduzia rapidamente ao colapso ambiental do Vale, ela tambm indicava as possibilidades de um crescimento exponencial no Oeste Novo de So Paulo.

    Em resumo, as ferrovias, ao promoverem a explorao mxima das zonasdecadentes do Vale do Paraba e ao estimularem a valorizao fundiria nas zonas de

    fronteira do Oeste paulista, aprofundaram a separao entre elas. A demanda portrabalho desempenhou papel central nessa discrepncia crescente (Stolcke & Hall 1983:

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    102-3; Cardoso de Mello 2009: 68). Para a realizao do capital invertido em fazendasformadas nas zonas de fronteira, a presso por mais trabalhadores acentuou-se. Nadcada de 1870, a demanda foi atendida pelo trfico interprovincial; em 1883, ano emque Laerne copilou os dados citados h pouco e os trilhos chegaram ao Potos docaf, como os coevos denominavam a regio de Ribeiro Preto, isso j no mais era possvel, muito em razo dos prprios efeitos das ferrovias sobre a economia cafeeira e, por conseguinte, sobre os fluxos negreiros internos ao Imprio do Brasil.

    As compras de cativos no circuito interprovincial ps-1871 tiveram perfildistinto do que vigorara nos Estados Unidos antes da Guerra Civil. No Brasil, o trficointerno no procurou resguardar a capacidade reprodutiva dos escravos com comprasequilibradas de jovens cativos de ambos os sexos (Tadman 1989), mas sim explorar, atos limites colocados pela Lei do Ventre Livre, o estoque da populao escrava brasileira. De acordo com o estudo de Robert Slenes (2004: 338-40), as provncias que,entre 1872-1881, mais perderam escravos para o caf foram as que prosperaram com oalgodo durante a Guerra Civil norte-americana: com a recuperao da economia do Sulnorte-americano ainda durante a Reconstruo, os pequenos produtores de algodo e demantimentos do nordeste brasileiro se viram compelidos a vender seus cativos para ocentro-sul (e no para os engenhos de acar da regio, acuados pela competio

    cubana), movimento agravado com a grande seca que os afligiu entre 1877-1880.Processo correlato ocorreu no Rio Grande do Sul: face maior competitividade doscriadores de gado do rio da Prata, servidos por uma crescente malha ferroviria, os pecuaristas e charqueadores rio-grandenses em crise tambm passaram a remeterescravos para as provncias cafeeiras.

    Encerrada a perspectiva de manuteno da escravido com base na reproduovegetativa, o trfico interprovincial da dcada de 1870 incidiu sobre jovens do sexo

    masculino, nascidos no Brasil, apartados de redes familiares consolidadas e provenientes de regies cujos padres de trabalho eram muito diferentes das realidadesdas fazendas de caf do centro-sul (Motta 2010: 147-50; 351-2; Graham 2004: 311;Slenes 2004: 351). Ao chegarem nelas, viram-se forados a residir em senzalas emquadra, obedecer rgidos protocolos disciplinares e cumprir uma enorme carga detrabalho. No por acaso, as reas que mais adquiriram escravos no trficointerprovincial foram as que verificaram maior aumento nas tenses escravistas, o que

    ressalta uma diferena importante entre o Vale do Paraba ocidental e as zonas defronteira do Vale oriental e do Oeste (Velho e Novo) de So Paulo. Ainda que em todas

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    essas regies no fossem raros, na dcada de 1870, os casos de prepostos senhoriaisassassinados por escravos que haviam sido transacionados no trfico interprovincial,uma das formas mais agudas de expresso da insubordinao escrava, a percepo dosriscos representados pela introduo de grupos crescentes de cativos desenraizados eramais aguda nas zonas que mais dependiam deles para a expanso de seus cafezais(Andrade 1989: 87-88; Mattos de Castro 1995: 137-188).6 Com efeito, a sobre-explorao do trabalho escravo no Vale do Paraba ocidental, com escravariassedimentadas em comunidades relativamente coesas, no produziu tenses como as quegalvanizaram as regies de fronteira do caf (Machado 1987; Gomes 2006: 257; Dean1977: 135; Marquese 2008).

    O novo padro de resistncia escrava quebrou com a experincia histrica doVale do Paraba nas dcadas de 1830-1840, cujos fazendeiros controlaram as tentativasde ao de escrava coletiva, impulsionadas, naquela ocasio, por uma escravariamajoritariamente africana e que caminhava sozinha (Gomes 2006: 144-247; Slenes2000). Na virada da dcada de 1870 para a de 1880, a estratgia de conteno da plataforma antiescravista posterior aprovao da Lei do Ventre Livre naufragou com aarticulao do movimento abolicionista brasileiro em bases nacionais e, sobretudo, comas novas modalidades de resistncia coletiva de uma escravaria que, agora, era

    esmagadoramente crioula e contava com suporte fora das senzalas. A primeira vitriaveio com as leis aprovadas em So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro em 1881,interditando o trfico interprovincial por meio da imposio de taxas que o tornavam proibitivo. Na gnese da lei paulista em 1878, ressalta Clia Maria Marinho Azevedo,seus proponentes esgrimiram trs conjuntos de argumentos: 1) a Lei do Ventre Livrecausara efeitos profundamente danosos sobre a disciplina escrava, diante da percepogeral de eroso da legitimidade da instituio com a impossibilidade de sua reproduo

    no tempo; 2) o trfico interprovincial vinha acirrando de modo perigoso as relaesescravistas, com a introduo constante, nas fazendas paulistas, de escravosdesenraizados do norte do Brasil; 3) a polarizao entre um norte sem escravos e um sulescravista prefigurava a experincia pregressa da Guerra Civil norte-americana, sendonecessrio manter o comprometimento nacional com a instituio para evitar que umresultado daquela natureza se repetisse no Brasil. A essas variveis somou-se, em 1881,

    6 No caso especfico de Campinas, escreve Slenes (1986: 136), h indcios de que a incidncia de fugas de escravos era maior em fazendas recm-formadas (com muitos escravos importados de outras

    regies) do que em fazendas mais velhas com plantis relativamente estveis.

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    os receios dos efeitos que a agitao abolicionista teria para a disciplina dentro dasfazendas (Azevedo 1987: 114-58). Ou seja, os atores polticos que promoveram a leicontra o trfico interprovincial na Assemblia de So Paulo apresentaram uma leituramuito clara de todas as presses sociais e polticas produzidas pela expanso cafeeira docentro-sul durante a dcada de 1870.

    Ao contrrio das expectativas dos cafeicultores que deram suporte suspensodo trfico interprovincial em 1881, as tenses escravistas no arrefeceram. Pelocontrrio, s aumentaram. Sinais disso comearam a surgir em 1882, com rumores dearticulao entre agitadores abolicionistas e escravos das fazendas de caf, mas queadquiram maior concretude aps 1885, com o cruzamento real entre o movimentoantiescravista e a ao coletiva dos escravos na luta pela abolio imediata. Os eventos principais da revoluo abolicionista que sacudiu o Brasil entre 1887-1888 cujoepicentro esteve justamente na fronteira cafeeira de So Paulo so bem conhecidos.Para encerrar esse item, gostaria de lembrar o outro lado das ferrovias: o mesmo meiode transporte que, na dcada de 1870, fora responsvel pelo aumento da demanda deescravos (e, portanto, pela piora nas suas condies de existncia) serviu, nos anosfinais da escravido brasileira, como um dos principais canais para a fuga coletiva dasfazendas e, portanto, para o colapso da instituio (Machado 1994; Toplin 1975;

    Gorender 1990).

    A abolio da escravido e o mercado de trabalho internacional

    Como se leu na introduo deste texto, a historiografia revisionista das dcadasde 1980 e 1990 questionou a contraposio fazendeiros do Vale do Paraba / fazendeirosdo Oeste de So Paulo como uma chave analtica capaz de explicar o encaminhamento poltico da escravido em sua crise final. Os historiadores da gerao anterior

    argumentavam que, em quadro de crescente incompatibilidade entre o desenvolvimentodas foras produtivas capitalistas e as relaes sociais de produo escravistas, osfazendeiros progressistas do Oeste, dispondo de condies adequadas para empregar otrabalho livre ou em busca de trabalhadores assalariados afinados a uma racionalidadede mercado que eles prprios j portavam, encontraram na imigrao uma soluoinovadora ao escravismo, caminho este bloqueado aos fazendeiros tradicionalistas doVale. Para os crticos dessa explicao, ambos os grupos estiveram comprometidos com

    a instituio at as vsperas da abolio: em seu apego ao trabalho escravo, os senhoresdo Vale responderam s mesmas foras do mercado que moldaram a atuao dos

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    malha ferroviria que desembocava no porto do Rio. Contando com uma basedemogrfica considervel e, em especial, com grandes reservas de matas virgens aindano exploradas, os fazendeiros do Vale do Paraba mineiro (ou Zona da Mata)atravessaram a crise da escravido sem grandes perturbaes e sem a necessidade deaporte externo de mo-de-obra. Sua produo cafeeira continuou a se expandir na viradado sculo XIX para o XX valendo-se de trabalhadores livres nacionais, muitos dos quaisex-escravos (Lana 1988; Pires 1993; Guimares 2009: 60).

    Situao bem distinta da vivida pela zona de Santos, que englobava o OesteVelho e o Oeste Novo esta ltima, uma regio de baixa densidade demogrfica. Acrescente exportao posterior a 1881, resultado de arbustos plantados nas novas reasde expanso cafeeira durante o pice do trfico interprovincial de escravos, acirrou a presso por mais trabalhadores. Outro salto notvel no volume da produo escoada porSantos ocorreu em 1887, fruto de cafezais plantados depois de 1883, ou seja, aps ofechamento do trfico interprovincial, quando restava aos cafeicultores da fronteiraapenas o recurso do trfico intraprovincial de escravos (Motta 2010: 274-345). Assim procedendo, os fazendeiros do Oeste Novo, bem servidos pela Paulista e pela Mogiana, estavam obedecendo aos estmulos do mercado: entre 1878-1885, os preos pagos em dlar na praa de Nova Iorque sofreram sensvel queda, contrabalanada, no

    entanto, pela desvalorizao da moeda brasileira; entre 1886-1892, os preos em dlarduplicaram, em uma situao cambial que permaneceu favorvel aos exportadores brasileiros (Bacha 1992: 334, 341). Os movimentos dos preos nessa conjuntura, alis,demonstram, uma vez mais, a estreita articulao entre as duas pontas da cadeia damercadoria do caf na era do consumo de massa (Delfim Netto 1966: 21; Topik 2003:31). A resposta dos fazendeiros do Oeste Novo foi imediata: em 1889-1890, 112.000toneladas saram por Santos; em 1890-1891, 176.700; em 1891-1892, 220.000. O

    aumento desse volume resultou de cafezais plantados entre 1886-1888, durante o augedo movimento abolicionista e da revolta das senzalas. Como explicar o comportamentoempresarial dos fazendeiros da fronteira, em uma situao to crtica como esta, quandosuas perspectivas em relao permanncia da escravido por mais do que cinco anoseram praticamente nulas (Carvalho de Mello 1978: 57)?

    Para obter uma resposta, temos que voltar aos debates iniciados na AssembliaProvincial de So Paulo em 1878 que conduziram, em 1881, aprovao da lei

    interditando o trfico interprovincial de escravos. A historiadora Clia Maria MarinhoAzevedo (1987: 113-25), ao tratar do tema, no prestou ateno devida atuao do

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    proponente do projeto de lei contra o trfico interprovincial o republicano MartinhoPrado Jr. na zona pioneira. Em 1877, ele comeara a investir seus capitais naaquisio de terras em Ribeiro Preto, constituindo, em poucos anos, os fundosterritoriais da famosa e enorme fazenda Guatapar; em 1878, ano em se noticiava naimprensa de Resende (RJ) as potencialidades da regio, ele fazia o mesmo nas pginasd A Provncia de So Paulo. Ainda em 1878, a Mogianaobtivera autorizao paraalongar seus trilhos de Casa Branca a Ribeiro Preto, entrando em disputa com a Paulista (da qual Martinho Prado Jr era um dos fundadores) pelos direitos sobre a rea(Monbeig 1984: 140-1; Bacellar 1999b: 118-21; Nogueira de Matos 1990: 91). Entre1878 e 1881, portanto, j se encontrava desenhada a nova escala que a cafeicultura poderia assumir na zona de fronteira do Oeste Novo. Desde, claro, que fossesolucionado o problema crucial da oferta de trabalho. Larne (1885: 272-3) percebeucom clareza o ponto de vista dos que estavam investindo naquela regio, encampando-oem seu relato:nesse pas, a produo de caf passa por uma crise, que, como todos sabem, ameaa sua prpria existncia. Mas, no o sistema de cultivo adotado queocasiona a crise: a necessidade cada vez mais urgente de trabalhadores. Se essademanda for suprida, o Brasil poder enviar mais de dez vezes o volume atual aosvrios emprios do mundo.

    A nova classe de fazendeiros qual pertencia Martinho Prado vinha articulandodesde o final dos anos setenta esquemas para a imigrao em massa, em uma preparaoque correu paralela e em reforo mtuo com a crise da escravido, e que muito se valeude experincias acumuladas com o fracasso do sistema de parceria. As potencialidadesdo imigrante europeu ou asitico para a demanda cafeeira por trabalho foi umavarivel em jogo durante toda a crise da escravido brasileira, bastando lembrar o papelque ela ocupou nos debates do Congresso Agrcola de 1878 (Eisenberg 1989: 150-9). Se

    os proprietrios da fronteira no tinham como prefigurar, no incio dos anos setenta, aviabilidade da soluo italiana (at ento, a Itlia pouco havia perdido gente para osfluxos migratrios transocenicos), eles como outros atores coevos no Brasil vinhamobservando atentamente, e h bastante tempo, o enorme fluxo de trabalhadores do norteda Europa para os Estados Unidos. Naquela dcada, tambm puderam acompanhar aexperincia da Reconstruo norte-americana e a recomposio da produo algodoeirado Sul; porm, aos seus olhos uma soluo como a do sharecroppingno teria como ser

    aplicada em So Paulo, em razo da baixa densidade demogrfica da fronteira cafeeira edo prprio malogro do sistema de parceira (Stolcke & Hall 1983).

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    Justamente em 1878, Antonio de Queiroz Telles visitou oito pases da Europaocidental para verificar quais ofereciam as melhores perspectivas para o recrutamentode trabalhadores braais. De volta ao Brasil, reportou aos seus pares que a misria donorte da Itlia apontava um caminho promissor (Alvim 1986: 47). Noutras palavras, asatenes dos cafeicultores da fronteira se voltaram para os italianos no exato momentoem que Martinho Prado Jr. primo de Queiroz Telles comprava terras em RibeiroPreto, promovia a expanso dos trilhos da Paulista e propunha, na AssembliaProvincial de So Paulo, o fim do trfico interprovincial de escravos. Aps a aprovaodessa ltima medida, Martinho Prado Jr e seu irmo Antonio da Silva Prado promoveram gestes para preparar todo o quadro institucional da imigrao em massa:transporte subsidiado s famlias de trabalhadores rurais europeus, aprovado pelaAssemblia Provincial de So Paulo em maro de 1884; obrigatoriedade de osimigrantes passarem pela triagem de uma hospedaria em So Paulo (1885), de ondeseriam diretamente encaminhados, novamente com passagem subsidiada, para asfazendas de caf; criao, em 1886, de umaSociedade Promotora da Imigrao (SPI) para coordenar o recrutamento, o transporte e a distribuio de mo-de-obra imigrante. No ano de sua fundao, a SPI anunciava em brochuras no norte da Itlia o modelo deimigrao para as reas cafeeiras que vigoraria at a crise mundial dos anos 1930

    (Holloway 1984: 64-116).Em duas palavras, a articulao da imigrao em massa foi parte constitutiva

    essencial da crise da escravido brasileira, da multiplicao das alternativas de futurodisponveis aos contemporneos, o que demonstra a ausncia de sentido de seestabelecer correlaes antagnicas comoimigrantismo-> abolio X resistnciaescrava -> abolio-> imigrao. Porm, como devemos avaliar o comprometimentodos fazendeiros da fronteira com a escravido at o incio de 1888 no caso de Antonio

    Prado, at os primeiros dias de maio? Afora certa solidariedade com seus velhoscompanheiros de classe, o comportamento traduzia a tentativa de administrar o fim daescravido, postergando ao mximo a abolio para garantir o bom andamento datransio para um novo regime de trabalho. Para os fazendeiros das zonas decadentes,com terras esgotadas, no restava outra opo que a de apegar-se instituio e esperara eventualidade de uma indenizao pela libertao compulsria de seus escravos. Nahora da verdade da revoluo de 1887-1888, os fazendeiros da fronteira puderam mudar

    de roupa sem problemas, em uma atitude tpica dos political chameleons, na precisaexpresso de Robert Toplin (1975: 229-33). No desenho imigratrio por eles elaborado,

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    garantiu-se, entre 1886-1892, o aporte de 192.000 trabalhadores italianos para a lavouracafeeira paulista. Tendo-se em conta o volume do trfico interprovincial de escravosentre 1872-1881 (100.000 cativos para o conjunto das trs provncias cafeeiras),observa-se como o suprimento de trabalho fornecido pela imigrao em massarapidamente atendeu demanda prvia, trazendo a soluo para a crise da escravidonas reas de fronteira e criando a base para a espetacular expanso de seus cafezais nosanos seguintes abolio (Holloway: 60-102).

    Os historiadores que tratam da crise da escravido brasileira em geral explicam o problema da imigrao sob a tica da demanda, isto , privilegiam os fatores de atrao.Foi o que fiz at este momento. Os especialistas em migrao, contudo, apontam, nocaso especfico do engate do deslocamento em massa de italianos para o Brasil, para aimportncia da oferta, isto , para os fatores de expulso dos emigrantes. Emcomparao com os demais fluxos migratrios europeus, o fenmeno da emigrao emmassa de italianos s Amricas foi relativamente tardio (Hobsbawm 2000: 274). Omovimento somente adquiriu vulto aps a unificao do pas. At 1886, o destino principal estava em outros pases europeus, e, no caso da emigrao para o NovoMundo, nos Estados Unidos. Entre aquela data e 1896, entretanto, quando a origem dosmigrantes foi predominantemente veneta, o Brasil se tornou o principal receptador de

    italianos, suplantando todos os destinos europeus bem como os outros dois grandesdestinos do Novo Mundo, os Estados Unidos e a Argentina (Faini & Venturini 1994:76; Franzina 2006; Alvim 1986).

    Podemos ver, agora, o outro lado da reconfigurao dos circuitos globais detrabalhadores e de mercadorias que esteve nas prprias origens da crise da escravido brasileira. A proletarizao de pequenos proprietrios e arrendatrios rurais e a pauperizao dos chamadosbraccianti do Vneto italiano7 foram resultado direto das

    transformaes econmicas e agrrias sofridas pelo norte da Itlia aps a unificao do pas. A eliminao de posses coletivas, a abolio do uso comunal da terra, o avano dadrenagem das plancies, ou seja, as foras que promoviam uma transformaocapitalista do campo no Vneto tiveram por efeito a expulso dos trabalhadoresrurais de suas seculares zonas de fixao; onde a propriedade rural se encontrava bastante dividida, as condies miserveis(...) no eram (...) apangio somente de

    7 Como esclarece Zuleika Alvim (1986: 29), essa categoria, a mais explorada de todos os trabalhadores

    braais, apresentava uma diferena sutil entre os bracciantiobrigados ou fixos, que estavam ligados propriedade mediante um contrato anual, e os bracciantitemporrios, que s trabalhavam nos momentosde grande necessidade de mo-de-obra, recebendo por dia ou por cota.

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    bracciantie assalariados, mas constituam a norma mesmo para a grande fileira de pequenos proprietrios, colonos e meeiros. Os impactos negativos das alteraes promovidas pelas transformaes institucionais que se seguiram unificao italiana,no entanto, foram potencializados pelo que Emilio Franzina e outros especialistasconsideram como a varivel central da crise agrria italiana: a drstica quedainternacional dos preos do trigo, cujas primeiras vtimas no eram os camponeses pobres, mas os pequenos arrendatrios, os pequenos proprietrios, ou seja, os pequenos produtores capazes de inserir-se no mercado por si mesmos, mas incapazes, por causa da sua objetiva fragilidade, de resistir violncia das crises conjunturais.Em meados da dcada de 1880, com a acelerao da crise pela diminuio contnua dos preos do trigo, os grandes arrendatrios capitalistas reduziam a demanda de braos e os j escassos ganhos dosbraccianti foram ainda mais comprimidos, restando-lhes comosada a emigrao. Esses trabalhadores rurais, com famlias numerosas, sem quaisquerrecursos, acabaram sendo facilmente arregimentados aps 1886 pelo esquema desubveno integral de passagens transatlnticas criado pelo governo de So Paulo. O perfil do imigrante estrangeiro desejado pelos cafeicultores que enfrentavam a crise daescravido brasileira era a de um trabalhador rural em trnsito com sua famlia edisciplinado pela pregao catlica, exatamente o que seus emissrios haviam

    encontrado no Vneto em 1878 (Franzina 2006: 39; 144-45; 217; 264).Essas informaes exigem que desloquemos nosso foco ainda que de forma

    sucinta para as modificaes que se verificaram, no tero final do sculo XIX, nomercado mundial do trigo, haja vista que as transformaes agrrias no norte da Itliaestiveram diretamente relacionadas invaso de gros (ORourke 1997) na Europaque se seguiu dcada de 1870, fruto da produo do Meio-Oeste dos Estados Unidose, aps 1880, das estepes russas.

    As foras que levaram reconfigurao do mercado mundial do trigo vinhamsendo gestadas desde antes da Guerra Civil norte-americana. Elas incluram, nas duas pontas da cadeia da mercadoria, a abertura do mercado britnico ao produto norte-americano (com a derrubada dasCorn Laws, em 1846) e a ascenso de Chicago como o ponto nodal de toda a agricultura do Meio-Oeste. A infra-estrutura composta porferrovias, elevadores mecnicos, sistemas de avaliao e inspeo dos gros de trigo emercado de futuros que notabilizaria mundialmente o complexo agrrio doGreat West

    norte-americano, encontrava-se pronta em 1861 (Rothstein 1960; Meinig 1993: 323-34;Cronon 1991: 65-70). Ao mesmo tempo, era nos estados de Indiana, Illinois, Michigan,

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    Wisconsin e Ohio que estavam as bases do novo Partido Republicano. Nas eleies de1856, a agremiao firmou-se como partido nacional, porm sem nenhuma penetraonos Estados do Sul. Desde seu surgimento, o Partido Republicano encampou sua plataforma eleitoral o programa do free soil , isto , a necessidade de se abrir o povoamento dos territrios a Oeste aos trabalhadores do Leste e aos imigranteseuropeus despossudos, plataforma que se casava com o complexo de interesseseconmicos comandados a partir de Chicago. O projeto do Free Homesteadtornou-seuma de principais bandeiras do Partido Republicano e motivo da ampliao de sua baseeleitoral nas cidades manufatureiras da Costa Leste. Seu contedo antiescravista, que procurava livrar os territrios a oeste da presena da escravido, chocou-se frontalmentecom o projeto do expansionismo escravista advogado pelos senhores do algodo do Sul.Como se sabe, na questo territorial e em suas interseces com o problema daescravido encontram-se os fundamentos do colapso do segundo sistema partidrionorte-americano, que conduziu, em 1860, eleio de Abraham Lincoln e ecloso daGuerra Civil ela prpria passvel de ser lida como um grande choque entre doisexpansionismos, o do trigo livre contra o do algodo escravo (Ashworth 2008; Drescher2009: 317-25; Fogel 1989: 302-52; Shoen 2009: 237-59). As condies polticasinauguradas pela secesso dos Estados Confederados permitiram, em 1862, a fcil

    aprovao do Homestead Act pelo Congresso Federal (Viotti da Costa 1987: 153). Avitria da Unio acelerou o processo de consolidao do mercado nacional norte-americano, impulsionando a abertura de vastas reas aos agricultores familiares atrados pela promessa de terra livre nas pradarias nos novos estados do Kansas, Nebraska,Minnesota e Dakota do Sul e do Norte e, assim, facultando o arranque definitivo docomplexo cerealfero comandado a partir de Chicago (Cronon 1991; Wolf 2009: 376-83; Arrighi 1996: 300).

    Dado o montante de produto remetido pelos Estados Unidos Europa, em1894, o preo do trigo era apenas pouco mais de um tero do que fora em 1867 . Com base nessa constatao, Eric Hobsbawm (1988: 60-61) argumenta que a chave para secompreender a chamada Grande Depresso (1873-1896) no consiste em conceitu-lacomo um perodo de retrao no volume global da produo