Capítulo 1, 2, 3

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CAPÍTULO 1 CONHECIMENTO Uma das grandes preocupações contemporâneas, dentro do pensamento epistemológico, diz respeito a uma definição satisfatória de conhecimento. Não pretendemos estabelecer essa definição aqui, deixando-a para os intelectuais da área. O que desejamos é situar o leitor na problemática em jogo e refletir sobre os reflexos dessa problemática na formulação de um projeto de pesquisa. Para tanto, vamos procurar entender o alcance do problema do conhecimento. 1.1 Problema do conhecimento Podemos situar a dificuldade de dar uma definição de conhecimento em dois momentos: na tradição grega e na época contemporânea. Na tradição grega, houve pelo menos duas tentativas de definir conhecimento. Não seguindo uma ordem cronológica, mas sim de importância, a primeira definição de conhecimento que queremos referir é a de Aristóteles (384-322 a.C.). Pela tradição aristotélica, o conhecimento é adquirido. O conhecimento adquirido depende, no entanto, de algumas condições que Aristóteles julgava necessárias e suficientes para que houvesse conhecimento. Essas condições necessárias e suficientes significariam que o conhecimento adquirido fosse certo, seguro, definitivo e conclusivo. Enfim, o conhecimento para a tradição aristotélica tem um caráter dogmático, isto é, de certezas que são inabaláveis, indubitáveis e inquestionáveis. Esse caráter dogmático do conhecimento era garantido por suas condições necessárias e suficientes. Mas quais seriam essas condições necessárias e suficientes que garantiriam um conhecimento certo e seguro para Aristóteles? As condições necessárias e suficientes são as seguintes: (1) Para que haja conhecimento é necessário identificar o sujeito do conhecimento, isto é, a consciência. Isso é fácil de ser justificado, uma vez que é o sujeito que assimila o conhecimento e é ele que transmite o conhecimento. (2) É preciso que haja um objeto a ser conhecido pelo sujeito, isto é, que seja assimilado pelo sujeito. Esse objeto tem que ser observável pelos sentidos. (3) Por fim, para que possamos dizer que adquirimos conhecimento, é preciso haver uma ponte entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido. Essa ponte é o conceito. O conceito supre a necessidade que o sujeito tem de assimilar o objeto, uma vez que é impossível colocá-lo fisicamente dentro da cabeça do sujeito. Pelo pensamento de Aristóteles, podemos inferir que todo objeto possui uma essência, isto é, uma causa formal. Essa essência é captada por uma intuição intelectual. A intuição intelectual é um dos três princípios explicativos (os outros dois são a dedução e a indução científica) que dependem de um processo de abstração para concretizar-se. Contudo, para que possamos dizer que conhecemos uma essência é preciso que esta possa ser comunicada a outros sujeitos. O sujeito só pode comunicar a essência de um objeto, captado por abstração, mediante a linguagem. Ora, a linguagem é construída por meio de proposições. Assim, para Aristóteles, a estrutura gramatical das proposições simples é: sujeito (gramatical, e não

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CAPÍTULO 1

CONHECIMENTO

Uma das grandes preocupações contemporâneas, dentro do pensamento epistemológico, diz respeito a uma definição satisfatória de conhecimento. Não pretendemos estabelecer essa definição aqui, deixando-a para os intelectuais da área. O que desejamos é situar o leitor na problemática em jogo e refletir sobre os reflexos dessa problemática na formulação de um projeto de pesquisa. Para tanto, vamos procurar entender o alcance do problema do conhecimento.

1.1  Problema do conhecimento

Podemos situar a dificuldade de dar uma definição de conhecimento em dois momentos: na tradição grega e na época contemporânea. Na tradição grega, houve pelo menos duas tentativas de definir conhecimento. Não seguindo uma ordem cronológica, mas sim de importância, a primeira definição de conhecimento que queremos referir é a de Aristóteles (384-322 a.C.).

Pela tradição aristotélica, o conhecimento é adquirido. O conhecimento adquirido depende, no entanto, de algumas condições que Aristóteles julgava necessárias e suficientes para que houvesse conhecimento. Essas condições necessárias e suficientes significariam que o conhecimento adquirido fosse certo, seguro, definitivo e conclusivo. Enfim, o conhecimento para a tradição aristotélica tem um caráter dogmático, isto é, de certezas que são inabaláveis, indubitáveis e inquestionáveis. Esse caráter dogmático do conhecimento era garantido por suas condições necessárias e suficientes.

Mas quais seriam essas condições necessárias e suficientes que garantiriam um conhecimento certo e seguro para Aristóteles? As condições necessárias e suficientes são as seguintes: (1) Para que haja conhecimento é necessário identificar o sujeito do conhecimento, isto é, a consciência. Isso é fácil de ser justificado, uma vez que é o sujeito que assimila o conhecimento e é ele que transmite o conhecimento. (2) É preciso que haja um objeto a ser conhecido pelo sujeito, isto é, que seja assimilado pelo sujeito. Esse objeto tem que ser observável pelos sentidos. (3) Por fim, para que possamos dizer que adquirimos conhecimento, é preciso haver uma ponte entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido. Essa ponte é o conceito. O conceito supre a necessidade que o sujeito tem de assimilar o objeto, uma vez que é impossível colocá-lo fisicamente dentro da cabeça do sujeito.

Pelo pensamento de Aristóteles, podemos inferir que todo objeto possui uma essência, isto é, uma causa formal. Essa essência é captada por uma intuição intelectual. A intuição intelectual é um dos três princípios explicativos (os outros dois são a dedução e a indução científica) que dependem de um processo de abstração para concretizar-se. Contudo, para que possamos dizer que conhecemos uma essência é preciso que esta possa ser comunicada a outros sujeitos. O sujeito só pode comunicar a essência de um objeto, captado por abstração, mediante a linguagem. Ora, a linguagem é construída por meio de proposições. Assim, para Aristóteles, a estrutura gramatical das proposições simples é: sujeito (gramatical, e não epistemológico) + verbo SER + o predicado (qualidade inerente ao sujeito gramatical). Por exemplo: “A bola de futebol é redonda.” A definição (ou conceito) é expressa por meio de uma proposição. Mas para definirmos algum conceito, perguntamos sempre: O QUE É X? Assim, perguntou-se Aristóteles: O que é o homem? A resposta já foi por nós todos escutada alguma vez: O homem é um animal racional. Assim, o que expressa uma essência de um objeto é a sua definição. A essência do homem é a racionalidade.

Enfim, como o estudo do conceito ou definição constitui-se a primeira parte da lógica de Aristóteles, sendo que a segunda parte é o estudo das proposições ou juízos e a terceira parte o estudo do argumento ou raciocínio, conclui-se que, em Aristóteles, todo conhecimento depende da lógica ou do que é fundamentado por esta. A lógica sempre foi, em toda história do pensamento humano, fonte de certezas e confiabilidade.

A segunda tentativa de definir o conhecimento surgiu antes de Aristóteles, isto é, pelo seu mestre Platão (428-347 a.C.). Essa definição parece ser a mais importante, porque sua influência foi decisiva para o século XX e seguramente o será para o século XXI. Assim como Aristóteles fez uma divisão tripartida das condições necessárias e suficientes para adquirirmos conhecimento, Platão já o tinha feito antes dele. Para Platão, o conhecimento só é possível se as condições forem necessárias e suficientes. Essas condições, segundo Platão, são:

1.1.1  Crença

Não há conhecimento que antes não tenha sido crença (ou opinião, do grego doxa). Melhor ainda: todo conhecimento foi, em algum momento, crença.

Contudo, é importante entender qual é o objeto de crença. O objeto de crença são proposições que existem independentemente de o sujeito estar pensando nelas. A atitude do sujeito de crer é uma atitude

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proposicional que envolve certo grau de confiança. Em resumo, a crença é uma questão de disposição psicológica, isto é, o sujeito concorda com uma proposição sob certas condições.

1.1.2  Verdade

Há um abismo entre a crença e o conhecimento, porque podemos ter uma crença que não seja verdadeira. Por exemplo: “João acredita em unicórnios.” A crença de João não é verdadeira. João tem crença, mas a sua crença precisa ser verdadeira. Por exemplo: “João acredita em cachorros.” Agora, o sujeito pode ter crenças verdadeiras, mas ainda não ter conhecimento. Por exemplo: “João acredita que vai ganhar na loteria.” Ora, se tal proposição ocorre antes do sorteio da loteria será uma crença que não é verdadeira nem mesmo falsa. Mas, se depois do sorteio da loteria, o número sorteado for o de João, então teria tido ele uma crença verdadeira? O certo é que a justificação ou explicação é estranha: o que justifica a crença verdadeira de João é a mera adivinhação ou sorte.

1.1.3  Justificação

Daí a necessidade de uma terceira condição que daria um conhecimento certo e seguro ao sujeito: a justificação. A justificação ou explicação tem que ser plausível. João tem que ter crença, verdadeira e tem que estar justificado em acreditar. Assim, por exemplo, João está justificado em acreditar que o sol nascerá no horizonte amanhã. Por quê? Ora, em todos os dias no passado, ele acordou cedo e viu o sol nascer no horizonte. Também os pais dele, os avós dele, os tios, todos contaram que sempre foi assim. Dessa forma, não há motivos para João acreditar que vá ser diferente! Sua crença: o sol nascerá amanhã. É verdadeira, porque é possível; é justificada, porque se baseia em testemunhos e na sua observação. João acredita que o sol nascerá amanhã  porque ou visto que ele observou o nascer do sol e ouviu o testemunho de seus pais, tios e avós. Portanto, irá dizer Platão por meio do jovem Teeteto em seu diálogo:

Sócrates, fiquei agora a pensar em uma coisa que tinha esquecido e que ouvi alguém dizer que o saber [conhecimento] é opinião [crença] verdadeira acompanhada de explicação [justificação] e que a opinião carente de explicação se encontra à margem do saber. E aquilo de que não há explicação não é suscetível de saber – é assim que se referia a isto –, sendo, pelo contrário, cognoscível aquilo de que há explicação (PLATÃO, 2005 p. 302).

Historicamente, ambas as definições dominaram o cenário da epistemologia. Somente no século XX, precisamente em 1963, a definição platônica foi posta em dúvida por um pensador norte-americano chamado E. Gettier (1927-). Conta-se que Gettier em um café com Plantinga teria acertado fazer um artigo de três páginas para fechar a edição de uma revista. Daí teria saído o famoso artigo: “É crença verdadeira justificada conhecimento?” de Gettier. Neste artigo, aparecem os contraexemplos do tipo Gettier que tem unicamente a função de questionar que crença verdadeira justificada seja conhecimento. Assim, João pode ter crença verdadeira justificada e não ter conhecimento. Quais são as possíveis soluções para uma situação dessas? A primeira solução seria retomar o conceito de justificação e a segunda perspectiva, procurar uma quarta condição. É o caso da análise de John Pollock (1986), que diz:

A mais simples consistirá em adicionar uma quarta condição requerida desde que não surjam verdadeiras condições de anulabilidade. Pode ser alcançada da seguinte forma: Não há uma proposição verdadeira Q tal que se Q fosse adicionada às crenças de S [João], este não estaria justificado em acreditar em P (POLLOCK, 1986, p. 8-10).

Mas, há um argumento cético por detrás de tudo isso. Argumento que nos leva a conclusão de que não temos uma definição precisa do que venha a ser conhecimento. Poderíamos dizer que o argumento cético fosse o seguinte:

Se João acredita que “o sol nasce todos os dias no horizonte”, é explicado por X (observação e testemunhos).

Se X produz crenças que não são verdadeiras (note que é difícil saber quantas crenças estão envolvidas em X).

Então, João acredita que “O sol nasce todos os dias no horizonte” é produzida por crenças não verdadeiras.

O que podemos pensar em relação ao nosso projeto de pesquisa? O que é fundamental aqui é a nossa atitude perante o conhecimento. Ora, podemos tomar três atitudes perante o conhecimento e, portanto, perante o nosso projeto de pesquisa:

Uma atitude dogmática (a): a atitude dogmática é aquela atitude de quem não aceita questionamento a respeito de seu trabalho. Em geral, quem toma esta atitude vive rodeado de certezas que não gostaria que ninguém

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as colocasse em dúvida. Em nosso projeto, aquele sujeito que afirma ter um conhecimento indubitável, é justamente aquele que acredita ter um conhecimento irrefutável. O próprio dogma é uma proposição irrefutável. Portanto, objeto de fé. Assim, o dogmático não aceita crítica, não aceita um exame de suas ideias e não aceita ser negado. Vocês já conheceram pessoas deste tipo? Pois então sabem do que estamos falando, não? Não é a melhor atitude que podemos tomar perante nosso projeto de pesquisa. Contudo, precisamos ser um pouco dogmáticos com as nossas ideias, para não correr o risco de deixá-las sucumbir diante de qualquer crítica boba. Por fim, o dogmatismo se opõe ao ceticismo e aqui está a segunda atitude que podemos ter em relação ao conhecimento e em relação ao nosso projeto: a atitude cética (b). O ceticismo é a atitude daquele que descrê em tudo.

Se o dogmático é aquele que acredita em um conhecimento universal e verdadeiro, o cético, por sua vez, acredita em um conhecimento particular e relativo. Tudo é motivo de dúvida, o que até certo ponto não está errado, mas ficar na dúvida e de lá não sair é problemático. É uma atitude que parte da ideia de que nunca vamos atingir certezas universais no conhecimento. Em nosso projeto de pesquisa, a atitude cética pode ser destruidora, porque nunca chegaremos a conclusões. Além de tudo, a posição daquele que não acredita em nada é contraditória, pois se ele não acredita em nada, portanto em alguma coisa ele já acredita: em nada. Um exemplo ilustrativo, dizia Sócrates: a única coisa que sei é que nada sei. Portanto, já sei de alguma coisa, que nada sei. Entenderam?

A terceira atitude perante o conhecimento e que você pode ter perante o seu projeto de pesquisa é a atitude crítica (c). Ser crítico é saber selecionar as melhores ideias. Mas como podemos selecionar as melhores ideias? Ora, em meio ao caos de ideias que há por aí, nosso cérebro sabe ser seletivo. As ideias que mais nos interessam normalmente são aquelas que necessitamos em determinada situação ou circunstância. Pensem em uma situação de sobrevivência, por exemplo. Por isso, o que está sujeito à crítica não são somente nossas ideias, mas também a maneira como raciocinamos. Portanto, deveremos estar sempre alertas para selecionarmos as melhores ideias para escrever nosso projeto. Não basta ter boas ideias, é preciso melhorá-las.

1.2  Origem do conhecimento

Mas de onde provém as nossas ideias? De onde se origina o nosso conhecimento? Não podemos exigir de nós mais do que somos. O nosso conhecimento provém apenas de duas fontes: da razão e/ou da experiência. Muita coisa se disse a respeito disso até hoje. Por exemplo, para Platão as ideias são originadas na razão, de onde são inatas, isto é, nascem dentro de cada um de nós. As ideias foram contempladas uma vez por nós em toda a sua pureza e verdade, mas não aqui neste mundo. As ideias foram contempladas em outro mundo, que Platão chamou de mundo inteligível ou das formas puras. Neste mundo, nós só copiamos ou imitamos as ideias puras que um dia contemplamos lá longe! Ora, como Platão sabe disso? Platão nos convida a olhar ao nosso redor e ver que todas as coisas ou objetos são cópias ou imitações de formas puras. Mas, então, quais são as formas puras? Responde Platão: as da Matemática e as da moral. Por exemplo: da Matemática temos o triângulo, o quadrado, a circunferência etc. E da moral nós temos o mais puro amor, beleza, justiça, verdade etc. Assim, um prato redondo é uma cópia ou imitação da forma pura da circunferência.

Para Aristóteles, as ideias são adquiridas. De que maneira as ideias são adquiridas? As ideias são adquiridas a partir da experiência dos sentidos, primeiramente. Todas as coisas ou objetos estão à nossa volta afetando os sentidos (paladar, visão, tato, odor e audição), dando origem a sensações. Assim, temos sensações visuais, auditivas, táteis, odoríficas e gustativas. Mas como essa “afetação” é constante e nunca para, o cérebro só seleciona as mais importantes para aquela determinada situação que estamos enfrentando. Portanto, não são todas as ideias que se tornam conscientes. Somente depois de percebidas, as ideias se tornam conscientes. Ora, quando a sensação é repetida inúmeras vezes, acompanhada pela percepção, essa ideia fica armazenada na memória.

Por fim, falaremos de Kant,(1985) que foi um pensador que imaginou que poderia juntar a razão com a experiência, para evitar o dogmatismo e o ceticismo, ou seja, a atitude cética no conhecimento, porque representavam extremos. Ora, tudo isso porque aqueles que, com o passar do tempo, seguiram as ideias de Platão como, por exemplo, Descartes, acreditavam que a melhor atitude que podemos ter perante o conhecimento é a dogmática, porque não podemos viver sem certezas. Por outro lado, aqueles que, como D. Hume, seguiram o pensamento de Aristóteles ao longo da história, defenderam que a nossa melhor atitude perante o conhecimento só poderia ser cética, porque não temos certeza de nada nesta vida, na medida em que tudo muda e nada permanece como é.

Assim, para Kant, todo o conhecimento é uma conjunção da razão com a experiência. Ora, a razão fica desorientada sem a experiência, e a experiência fica cega sem a razão. A melhor atitude perante o conhecimento é a crítica. A atitude crítica significa manter a razão dentro de limites, para não se tornar abstrata e vazia. Então, ser crítico é saber como a razão obtém o conhecimento.

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1.3  Formas de conhecimento

A definição de conhecimento, como vimos, é incompleta e insuficiente para responder como obter conhecimento de uma maneira completa e segura. Uma análise das formas de conhecimento poderá nos dar uma visão mais ampla do que está em jogo quando falamos de conhecimento. Como há diversas formas de conhecimento, vamos abordar as formas básicas, a saber: (a) conhecimento científico; (b) conhecimento vulgar ou de senso comum; (c) conhecimento intuitivo ou artístico; (c) conhecimento teológico, religioso e mítico; (d) conhecimento filosófico. Agora, a questão que devemos parar para pensar é: Por que distinguimos formas de conhecimento? Ora, a resposta começa com a ânsia e o desejo de colocar o conhecimento científico como uma forma superior a qualquer outra forma de conhecimento. Seria como se pudéssemos estabelecer uma linha divisória entre conhecimento científico, de um lado, e conhecimento não científico, de outro. Isso é problemático! Há autores que concordam e há outros que discordam. Os autores que concordam dizem que a melhor resposta que podemos dar para o problema deve se fundamentar na lógica e na metodologia. Então, a ciência seria uma forma superior de conhecimento, porque é orientada pelas regras da lógica e possui um método. Os autores que discordam que o conhecimento científico seja uma forma superior de conhecimento ou, ainda, a melhor forma de conhecimento existente, aquela que podemos confiar, afirmam que a lógica e o método são necessários, mas não suficientes para comprovar essa superioridade. Contudo, também há a radicalização por parte de alguns autores que alegam que a lógica e a metodologia não são necessárias nem suficientes para justificar a superioridade da ciência. Os autores que discordam dizem que fatores extracientíficos influenciam na maneira de como fazer ciência. Por exemplo: leis governamentais, distribuição de verbas para pesquisa, formação educacional do cientista etc.

Há toda uma caracterização nos livros de metodologia que tentam justificar essa superioridade do conhecimento científico em relação a outras formas de conhecimento. Vejamos! O conhecimento científico é organizado, isto é, possui um método; é hierárquico, isto é, classifica o conhecimento; é sistemático, isto é, é lógico na medida em que apresenta os conhecimentos com coerência; é racional, exclui todo conhecimento que dependa de crenças subjetivas; é acumulativo, isto é, o conhecimento científico é produto de um conhecimento que foi se somando ao longo dos tempos, havendo entre os diversos conhecimentos considerados científicos uma relação de consequência lógica. Uma teoria científica antiga é uma consequência lógica da teoria mais nova; é replicabilidade, isto é, o conhecimento científico pode ser reproduzido quando o cientista quiser. Assim, se as condições iniciais são as mesmas, os resultados serão os mesmos. Neste sentido, temos as teorias universais e não apenas exceções; generalização. O conhecimento científico pretende formular teorias que possam ser generalizadas, isto é, que sejam aplicáveis para todas as ocorrências de determinado fenômeno da mesma espécie; falseabilidade. No conhecimento científico, não há a pretensão de confirmar ou provar uma teoria como verdadeira, mas sim de tentar falsificá-la, isto é, de demonstrar a sua não validade; probabilístico. O conhecimento científico baseado na experiência fundamenta-se na probabilidade, apesar da margem de erro que sempre existirá.

Por outro lado, temos o conhecimento não científico, representado aqui por todas as outras formas de conhecimento que não são científicas. Ora, há certas características que são comuns a todas essas formas, mas que não são científicas. Assim, temos como características das formas de conhecimento não científicas: o objeto de estudo. No conhecimento científico, o objeto de estudo são os fenômenos naturais, isto é, o comportamento da natureza. No caso das formas de conhecimento não científicas, o objeto de estudo pode mudar. Por exemplo, no conhecimento teológico, são os livros sagrados; no intuitivo, temos desde o gosto pelo estético até descobertas científicas etc.; a realidade. A ligação com a realidade do conhecimento científico é factual, pelos fatos. Já nas formas de conhecimento não científicas, é valorativa; origem do conhecimento. Comentamos antes que o conhecimento advém de duas faculdades: a sensitiva (experiência dos sentidos) e a intelectiva (razão). Porém, algumas formas de conhecimento não científicas posicionam a origem do conhecimento de outra maneira. Por exemplo, o conhecimento teológico situa o conhecimento como originado da fé ou inspiração, o conhecimento intuitivo da inspiração etc. O conhecimento científico advém da observação e da experimentação; atitude. O conhecimento científico requer uma atitude crítica. Contudo, constatamos o comportamento de cientistas que são dogmáticos ou até céticos. E também no conhecimento não científico, a atitude requerida é crítica, também havendo pensadores com visões dogmáticas e céticas da realidade. Apesar disso, a maioria dos conhecimentos não científicos é descritiva e não normativa. Por outro lado, o conhecimento científico se figura como normativo e não descritivo. Em resumo, do ponto de vista metodológico, esta divisão entre conhecimento científico e não científico origina o problema da demarcação, que discutiremos a seguir no Capítulo 2.

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CAPÍTULO 2

CIÊNCIA

É preciso inicialmente fazer uma distinção entre dois contextos da ciência que nos levam para o problema da demarcação, que, por sua vez, poderá clarear o nosso horizonte conceitual. Estamos falando da distinção do contexto de descoberta e do contexto de justificação. A palavra contexto vai significar aqui situação. Assim, a ciência tem duas situações bem distintas que nos preparam para entender o problema da demarcação como um dos principais problemas do conhecimento. Essa distinção foi feita pela primeira vez por um positivista lógico do Círculo de Viena, por volta de 1961. Hans Reichenbach (1961, p. 6-7) disse: “Eu introduzirei os termos contexto de descoberta e contexto de justificação para marcar a bem conhecida diferença entre o modo como o pensador descobre seu teorema e a sua maneira de apresentá-lo ao público.”

Mas vamos definir esses contextos mais de perto para começar a entender o que é ciência. Ora, em primeiro lugar, o contexto de descoberta pode ser descrito como uma situação pré-científica ou, como diria T. S. Kuhn, uma situação pré-paradigmática. O que importa neste contexto é o modo de o cientista conceber uma teoria científica. O ato de conceber carrega em si toda uma carga subjetiva e psicológica. Portanto, o ato de conceber é descrito como produto da imaginação, da criatividade, da intuição, uma arte, a própria genialidade. Em segundo lugar, o contexto de descoberta incentiva o cientista a pensar a ciência a partir de fatores extracientíficos como o caso de leis governamentais, verbas para pesquisa, ideologias políticas, valores pessoais e profissionais dos cientistas e da sociedade etc. Todos esses fatores influenciam no modo como o cientista faz ciência. Por isso que o contexto de descoberta tem o seu referencial mais forte na Psicologia e na História. Daí o terceiro ponto: o contexto de descoberta está preocupado com o sujeito que faz ciência, com o sujeito que quer conhecer e com o sujeito que quer aprender. A subjetividade do sujeito, a sua história, a sua formação, determinam toda a situação de descoberta. Aqui o acidental, o acaso, o talvez, são marcas caracterizadoras da descoberta. Quarto ponto: o contexto de descoberta enfatiza a produção do conhecimento ou, como diria Feyerabend, a proliferação de teorias, sem se preocupar com a sua verdade ou falsidade, sem se preocupar se são defensáveis ou não.

Por outro lado, temos o contexto de justificação. No contexto de justificação, descrevemos aquilo que é científico. Neste contexto, o que é importante são as boas razões ou a justificação da aceitação de uma teoria. O ato de justificar é objetivo e lógico. Assim, o ato de justificar é descrito como uma exigência tornar claro e comunicável aquilo que foi há algum tempo alvo de descoberta. Em segundo lugar, o que interessa na justificação é a estrutura interna ou lógica de uma teoria para que ela seja aceitável, portanto, científica. O referencial do contexto de justificação é a lógica e a metodologia; em terceiro lugar, o objeto da ciência, isto é, a teoria. A objetividade da ciência passa pela estrutura lógica e metodológica da teoria. A história que interessa aqui é a história da ciência ou a história das teorias. O método que deu origem a elas. A validade das teorias por meio de argumentos lógicos, demonstrações matemáticas e verificações experimentais; Em quarto lugar, a validade do conhecimento é o ponto de chegada da justificação. O conhecimento é validado pela argumentação dedutiva ou indutiva, e pelo método, dedutivo ou indutivo. Mais adiante trabalharemos essas diferenças.

Por último, chamaremos a atenção para um equívoco comum em muitos pensadores: a falácia genética. Uma falácia ou sofisma consiste em um erro na formação do raciocínio ou do argumento (genético = formação). O erro que aqui nos referimos é de transmitir ou passar elementos do contexto de descoberta para o contexto de justificação. O que ocorre é que muitas vezes, na falta de argumentos lógicos, usa-se “justificações” psicológicas para solucionar um problema (veja o caso do problema da indução mais adiante!). Ou ainda, justificamos a atitude de um cientista perante sua teoria por sua formação educacional ou por suas ideologias. Assim, não posso dizer que a teoria de Einstein é falsa por causa de sua descendência, ou qualquer coisa do gênero! Ou que a ciência é uma forma superior de conhecimento devido à propaganda que fazem em seu favor etc. Há consequências para um projeto de pesquisa cometer esse erro. Muitas vezes há justificações de temas e projetos que afirmam coisas do tipo “eu gostei” até “eu achei interessante” até situações mais graves como é o caso das argumentações com uma carga emocional, relativista, e até mesmo ideológica.

Chegamos no momento de tentar definir o que é ciência. Até agora reparamos em inúmeros esforços para colocar a ciência em primeiro plano no cenário. Vimos que não há uma definição precisa de conhecimento, sendo que, aqui, mostraremos a mesma hipótese: não há uma definição precisa de conhecimento. O que torna essa hipótese bastante clara é o chamado problema da demarcação, um dos principais problemas daquele que pensa a ciência como atividade humana. Portanto, a questão é a seguinte: se conseguirmos demarcar o que é científico do que não é científico, então conseguimos mostrar, nem que seja parcialmente, a superioridade da ciência sobre outras atividades humanas. Se não houver um critério que cumpra esse papel, então a ciência não é superior a nenhuma atividade humana, isto é, estará no mesmo nível que outras atividades humanas.

2.1  Problema da demarcação

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O problema da demarcação é o problema de definir um critério que separasse claramente o que é científico do que não é científico. Tal critério deixaria claro, ou seja, justificaria a superioridade da ciência como forma de conhecimento em relação a tudo aquilo que não é científico (pseudociências, formas de conhecimento etc.). Ademais, um critério deveria colocar bem claro o caráter definidor do que é científico: o caráter progressivo e racional da ciência, ou seja, do conhecimento científico.

Ora, ampliando a descrição do problema da demarcação, diríamos que a ciência e o cientista devem assumir uma atitude crítica perante o conhecimento. Mas, essa atitude crítica pode ser resumida em uma pergunta fundamental elaborada por Karl Popper (1902-1994): em que condições você admitiria renunciar as suas ideias? Essa pergunta faz com possamos diferenciar o pensamento crítico do pensamento dogmático e cético. Essa pergunta nos leva ao problema da demarcação: se separarmos a ciência (Física, por exemplo) das pseudociências como, por exemplo, psicanálise, marxismo (Ciências Sociais) e a metafísica (na Filosofia), é porque a ciência tem como responder a pergunta colocada, enquanto as pseudociências, não. As pseudociências querem falar sobre tudo e acabam não dizendo nada. Aqueles que não querem assumir um caráter científico para o seu conhecimento, acabam assumindo uma posição de imunizar-se contra a crítica. Imunizar-se contra a crítica significa proteger-se da refutação, ou seja, de renunciar as próprias ideias. Em resumo, ou temos uma visão científica do mundo expondo nossas ideias à crítica ou não aceitamos a refutação de nossas ideias e fechamo-nos em nós mesmos.

Assumindo essa visão crítica, inúmeros critérios podem e foram tomados para separar o que é científico do que não é científico. Contudo, a linha evolutiva do século XX aponta um início otimista e próspero para a ciência até um final melancólico e obscuro, em que a atitude cética passou a ser predominante. Um desses critérios em evidência foi o do positivismo lógico do Círculo de Viena, que teve seu ponto culminante em 1924 até 1936.

Para o positivismo lógico, há dois critérios de demarcação entre o que é científico e o que não é científico (metafísico): o critério de verificabilidade empírica e o critério de significatividade lógica. Pelo critério de verificabilidade, as proposições seriam verificáveis e não verificáveis e pelo critério de significatividade, as proposições seriam com sentido ou sem sentido. Em resumo, o que é científico são as proposições verificáveis e com sentido e o que não é científico seriam as proposições não verificáveis e sem sentido. Esse critério foi importante para tentar se distinguir o que é científico e o que não é, mas falhou em pontos importantes.

Em primeiro lugar, se o que é científico é aquilo que está contemplado no critério de demarcação, então a Matemática não é ciência. Em segundo lugar, se a ciência são todas proposições verificáveis e que possuem sentido, e se proposições verificáveis dependem do método indutivo, e se o método indutivo não tem uma justificação lógica, então a ciência não tem uma justificação lógica. Em suma, o problema está na indução como método indutivo, porque é um procedimento que não possui justificação ou validade lógica.

Em vista desta dificuldade metodológica, em 1934-35, Karl Popper escreveu o livro A Lógica da Pesquisa Científica, no qual expôs um novo critério de demarcação não só para separar ciência e metafísica, mas também para separar ciência e pseudociência. Diria Popper a respeito do conhecimento em seu livro Autobiografia Intelectual (1976) comentando o que já estava na “Lógica”: “Para mim, contudo, o conhecimento era um sistema de enunciados – teorias apresentadas à discussão. O ‘conhecimento’ neste sentido, é objetivo; e é hipotético ou conjectural” (POPPER, 1976, p. 93). Popper diz que os dois grandes problemas do conhecimento são: o problema da indução e o problema da demarcação. Ao contrário dos positivistas lógicos, Popper acreditava que não há justificação lógica para a indução científica e que o melhor seria propor um novo método para fazer ciência, com uma nova lógica de funcionamento para a produção do conhecimento científico. O critério de demarcação de Popper é o critério de falseabilidade. A lógica da falseabilidade é a seguinte: enquanto pelo método indutivo procuramos passar de proposições elaboradas a partir de casos observados particulares para teorias universais, por meio de uma generalização, obtendo assim um conhecimento certo, seguro e comprovado por verificação, a falseabilidade parte de generalizações do tipo: “Todos os metais são sólidos” para a falsificação por meio de proposições particulares como “O Hg é líquido em tais e tais condições.” Com essa lógica de funcionamento da ciência, Popper assume que as proposições científicas são de dois tipos: a proposições lógicas e as proposições empíricas ou derivadas da experiência. Quanto às proposições lógicas elas seriam falseáveis e não falseáveis; e as proposições empíricas seriam testáveis ou refutáveis e não testáveis ou irrefutáveis. As ciências naturais seriam compostas por todas as proposições testáveis e falseáveis e a Matemática seria composta por proposições não testáveis, mas falseáveis pela lógica. A metafísica tradicional, a psicanálise, o marxismo, teriam proposições não falseáveis pela lógica e não testáveis. Uma parte da metafísica que é mais estável, porque serve ao período pré-científico de descoberta de teorias científicas, é considerado por Popper como não testável e falseável pela lógica, tal como a Matemática.

Bem, desta parte podemos concluir que não poderia haver a produção de um conhecimento científico, se não houvesse um critério de demarcação para a ciência. Por outro lado, precisamos entender que essa ideia foi usada para justificar a pretensão de a ciência se promover como a única forma de conhecimento que deveria

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receber credibilidade. Mas se essa é a nossa terceira conclusão, está longe de ter uma solução o problema da demarcação. E isso torna instável a definição de ciência.

2.2  Como forma de conhecimento

A ciência é uma forma de conhecimento ou de pensamento, não é a única e não é a melhor, afirma P. Feyerabend. Diz Feyerabend (1977, p. 447): “Dessa forma, a ciência se aproxima do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor.” A própria definição de ciência passa por uma instabilidade, se essa tese for levada a sério. Por que promovemos e confiamos na ciência, então? Poderíamos perguntar. Feyerabend é um pensador irreverente e ele não vê futuro para a ciência se a educação dos cientistas continuar seguindo os moldes tradicionais. Os moldes tradicionais: o que devemos entender por isso? Ora, se a ciência é dependente da lógica e da metodologia e, se sua superioridade se sustenta por isso; se a sua promoção e a confiança que todos nós temos nela advém disso, então nunca conseguiremos ter certeza do que é ciência e de como devemos fazer ciência. Nem a lógica nem a metodologia conseguem responder o que é a ciência, afinal. Diz uma vez mais Feyerabend em seu livro Contra o Método (1977 de maneira irreverente e crítica:

A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo, define-se um campo de pesquisa; esse campo é desligado do resto da História (a Física, por exemplo, é separada da metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo, neste tipo de ‘lógica’, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniformes as ações de tais pessoas, e ao mesmo tempo em que congela grandes porções do processo histórico. ‘Fatos’ estáveis surgem e se mantêm, a despeito das vicissitudes da História. Parte essencial do treinamento, que faz com que os fatos dessa espécie apareçam, consiste na tentativa de inibir intuições que possam implicar confusões de fronteiras. A religião da pessoa, por exemplo, ou sua metafísica ou seu senso de humor (seu senso de humor natural e não a jocosidade postiça e sempre desagradável que encontramos em profissões especializadas) devem manter-se inteiramente à parte de sua atividade científica. Sua imaginação vê-se restringida e até sua linguagem deixa de ser própria. E isso penetra a natureza dos ‘fatos’ científicos, que passam a ser vistos como independentes de opinião, de crença ou de formação cultural (FEYERABEND, 1977, p. 21).

Muitas questões dessa citação podem servir de reflexão para nós a respeito de como educar jovens aspirantes ao conhecimento e à ciência. Há uma oposição clara entre uma educação tradicional preocupada com o cumprimento de regras da lógica e da metodologia e, com a validade do conhecimento, e, por outro lado, a nova educação do cientista que destaca pontos como a intuição, a imaginação, a história e a formação cultural em geral. Enfim, de não impor limites quando se trata de adquirir ou produzir conhecimento. Completa Feyerabend o seu pensamento contra a metodologia da seguinte maneira:

É possível, assim, criar uma tradição que se mantém una, ou intacta, graças à observância de regras estritas, e que, até certo ponto, alcança êxito. Mas será desejável dar apoio a essa tradição, em detrimento de tudo o mais?Devemos conceder-lhe direitos exclusivos de manipular o conhecimento, de tal modo que quaisquer resultados obtidos por outros métodos sejam, de imediato, ignorados? (FEYERABEND, 1977, p. 21-2)

A ciência como forma de conhecimento deve ser olhada por outro viés. Essa perspectiva é histórica e psicológica. Há muitos fatores extracientíficos que influenciam a maneira de pensar e fazer ciência. Mas como resolver o problema da demarcação a partir dessa perspectiva? Para Feyerabend, não precisamos de um critério de demarcação, porque a ciência é uma forma de conhecimento como qualquer outra. O argumento é o seguinte: se há um critério de demarcação, então a ciência é superior a outras formas de conhecimento; ora, não há uma superioridade da ciência como forma de conhecimento, logo não há um critério de demarcação. O objetivo da ciência é o seu progresso. Para o progresso da ciência vale qualquer tipo de conhecimento, pois tudo pode corroborar para o avanço do conhecimento científico. A ciência pode aproveitar qualquer método para o progresso. O cientista deve seguir as suas tendências intuitivas e inatas. Vale tudo!

Em resumo, apresentamos todo esse contexto histórico para mostrar a instabilidade da busca de uma definição para a ciência. E a questão fica no ar: Por que os cientistas continuam crendo e fazendo ciência da mesma maneira de sempre? A resposta talvez seja a seguinte: não há uma melhor maneira de fazer ciência precisando de resultados. Contudo, o que permanece é a falta de precisão e clareza para uma definição de ciência como forma de conhecimento. Como poderemos definir a ciência incluindo todo o relativismo da História e o subjetivismo da Psicologia? Esse é o desafio de hoje!

CAPÍTULO 3

MÉTODO: DISTINÇÃO ENTREMÉTODO E ARGUMENTO

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Método é o terceiro conceito teórico que vamos abordar. Contudo, algumas notas iniciais são importantes para não causar confusão e mal entendidos em nossa compreensão. O que estamos a nos referir é a distinção entre método e argumento. Isto é importante para depois podermos distinguir entre métodos científicos e não científicos. Segundo Wesley Salmon, um argumento significa justificar uma conclusão. Portanto, o significado do termo argumento não é aquele da linguagem comum. Na linguagem comum, argumento significa discutir, contender. Em lógica, o significado de argumento ganha outro alcance. Para a lógica não interessa o poder da persuasão. A persuasão define argumento do ponto de vista psicológico. “Um argumento é uma conclusão que mantém certas relações com as provas que a confirmam e evidenciam. Em termos mais precisos, o argumento é uma coleção de enunciados que se relacionam mutuamente” (SALMON, 1993, p. 2). Assim, um argumento é um conjunto de proposições ou enunciados, e uma proposição ou enunciado é chamado de premissa de um argumento.

 

A partir daqui um método deverá ser entendido como um procedimento. E a pergunta fundamental aqui é: como funciona o método científico? Quando se trata de um argumento, a pergunta principal será: como um argumento pode ser considerado válido? Continuaremos a explicar o argumento. Um argumento pode ser dedutivo e indutivo. O método também pode ser chamado de dedutivo e indutivo.

Podemos exemplificar um argumento dedutivo por meio do argumento silogístico de Aristóteles. Para Aristóteles, o argumento silogístico era o único argumento dedutivo. Sabemos hoje que existem vários. O silogismo se define como a concatenação de três termos ou conceitos em três proposições. As duas primeiras são chamadas de premissas e a última, de conclusão. Assim, temos:

Premissa 1: todos os metais são sólidos.

Premissa 2: o mercúrio é um metal.

Conclusão: o mercúrio é sólido.

Neste exemplo, temos três termos ou conceitos que se encadeiam. O termo médio (M), que é aquele que se repete na premissa maior e na premissa menor. No caso, metal. O termo maior (TM), que é o de maior extensão lógica e aparece na primeira premissa. O TM, no caso, é sólido. E temos ainda o termo menor (tm), porque é o de menor extensão lógica. No caso, é o termo mercúrio. Pois bem, esse encadeamento dos termos e das premissas se dá por meio de determinadas regras da lógica. Essas regras dizem respeito aos termos e às premissas.

Um argumento indutivo por ser exemplificado da seguinte maneira:

Todos os metais observados até agora são sólidos,logo, todos os metais são sólidos.

Obviamente, o que menos interessa é o conteúdo das premissas. O que interessa aqui é a validade do argumento. Ou o argumento é válido ou o argumento não é válido. O argumento é válido quando as premissas são verdadeiras e a conclusão é verdadeira. Isso se aplica a um argumento dedutivo. Mas para um argumento indutivo, mesmo que as premissas sejam verdadeiras, a conclusão poderá ser falsa. Por quê? Porque o argumento indutivo baseia-se na probabilidade, que sempre terá uma margem de erro, como sabemos! É preciso registrar outro aspecto diferenciador de um argumento dedutivo e de um argumento indutivo: a função. O argumento dedutivo só serve para elucidar ou esclarecer o conhecimento, porque todo o conhecimento que queremos fazer referência já está inserido na relação das premissas com a conclusão. No caso do argumento indutivo, um conhecimento novo surge. Na conclusão, aparece uma informação que não estava contida nas premissas. Por isso, iremos dizer que o argumento indutivo é ampliador. Ora, é claro que da argumentação indutiva é que depende o progresso da ciência. Mas vamos aprofundar a nossa noção de método.

3.1  Métodos científicos

Já ouvimos alguém dizer que o conhecimento é um labirinto. Queremos com isso deixar claro toda a complexidade que há em dizer que temos conhecimento de algo ou de alguma coisa. Mas, neste momento, a nossa pergunta é outra: será que com o método essa complexidade pode ser amenizada ou até mesmo desaparecer? A metáfora do labirinto pressupõe pelo menos uma condição.

Há a suposição de que exista outra saída que não seja a entrada. É claro que em meio ao labirinto não sabemos se há uma saída que não seja a entrada. Será que não andamos em círculos? E se todos os caminhos não levam a saída alguma? Como poderíamos saber disso? É tudo uma questão de perspectiva: se o sujeito está envolvido no processo de conhecer, ele terá uma visão limitada. Assim também com quem está dentro do labirinto. Quem está no labirinto não tem um olhar mais amplo, mais olímpico, isto é, um olhar de cima do labirinto. Assim, estamos nós no conhecimento. Não temos uma perspectiva completa ou total de todo o

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conhecimento. A nossa perspectiva é muito especializada. O método nunca nos dará uma perspectiva completa do conhecimento. O método especializa o cientista. O método fragmenta o conhecimento. O conhecimento científico é fragmentado e fragmenta a realidade. Portanto, não temos um conhecimento completo da realidade. É da natureza do método fragmentar a realidade e o conhecimento. Mas podemos atingir esse olhar de cima em relação ao conhecimento? Por meio de métodos, não! Por meio do conhecimento científico, não! Ora, se entendermos que esse olhar olímpico é um olhar de superioridade, então não há superioridade nenhuma da ciência em relação às outras formas de conhecimento ou pensamento, porque esse olhar é inatingível.

Como diz Popper é uma tensão entre conhecimento e ignorância. Apesar de conhecer muito, temos sempre que lidar com nossa ignorância. Por isso, a nossa atitude perante o conhecimento é a conclusão da metáfora do labirinto. Temos que ser mais humildes e estar dispostos a corrigir os nossos erros, se quisermos aumentar nosso conhecimento.

Diz Popper que com a honestidade, a retidão e simplicidade com que atacamos estes problemas, pois nossa vida se resume em solucionar problemas, estaremos enfrentando a tensão entre conhecimento e ignorância.

3.1.1  Método dedutivo

Nosso objetivo aqui é expor o funcionamento do método dedutivo. Ora, sabemos muito bem que o método é um procedimento. Portanto, o que queremos é descrever o método científico enquanto procedimento lógico. O método dedutivo é um método científico que vai de uma hipótese, lei ou teoria universal para uma proposição particular que servirá para refutá-la. O método dedutivo não serve para confirmar uma teoria como verdadeira, mas sim para falsificá-la. Mas como funciona o método dedutivo? Se seguirmos a descrição de Karl Popper teremos o seguinte quadro: o método dedutivo começa pela elaboração de um problema em forma de pergunta. Em geral, essa pergunta será sobre o comportamento da natureza, se forem às ciências naturais ou empíricas ou sobre o comportamento humano, se forem às ciências humanas. Diz Popper: “Pois cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinando logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos” (POPPER, 1978, p. 14).

Elaborado o problema, formula-se a hipótese que deverá ser universal para ser falsificável. A hipótese deverá passar por testes, por bateria de testes. Daqui decorrerão dois caminhos possíveis: ou a hipótese resiste aos testes, ou a hipótese não resiste aos testes. Se a hipótese resistir à bateria de testes se dirá que ela foi corroborada, isto é, a hipótese aumentou o seu conteúdo lógico e empírico. Portanto, essa hipótese é uma boa candidata para responder ao problema. O próximo passo será preparar uma nova bateria de testes mais rigorosa e severa, mais proibitiva. Em segundo lugar, se a hipótese não resistir à bateria de testes, então ela deverá ser abandonada, porque a hipótese foi refutada. Significa dizer que essa hipótese não serve mais para responder ao problema apresentado. O passo seguinte, portanto, será a formulação de uma nova hipótese. Dessa forma, fecha-se o círculo.

Qual é a crítica que se faz a esse procedimento? Ora, se considerarmos que uma teoria é um conjunto de proposições; e, se o que é refutado é a proposição, então o que podemos fazer se somente algumas proposições, e não todas, foram refutadas? A teoria foi refutada ou ainda não? A falta de uma resposta a essa dificuldade pode levar alguns teóricos a pensar que a imunização contra a refutação é natural. Não há uma refutação completa de uma teoria. Teríamos que falar de graus de refutabilidade. Portanto, de probabilidade. Ora, não seria isso retornar à indução? O método dedutivo é estimulador para o conhecimento, mas possui imperfeições.

3.1.2  Método indutivo

O método indutivo é um método científico. Portanto, um procedimento. Mas como funciona o método indutivo? O método indutivo é um procedimento que começa pela observação, ao contrário do método dedutivo, que começa pela exposição de um problema. A ideia é a de que o conhecimento começa por percepções, observações, coleção de fatos ou números. Assim, podemos imaginar um cientista que vai fazer um trabalho de campo. Ele sai para observar. Ora, mas é claro que ele precisa saber o que vai observar. Vamos supor que nosso cientista vai observar corvos. Mas, o que lhe interessa em relação aos corvos? Portanto, alguma coisa é pressuposta antes da observação. Um cientista não vai fazer um trabalho de campo sem saber o porquê de sua observação. Ele vai fazer uma observação porque tem um problema elaborado anteriormente a sua observação. Essa é a visão de quem defende o método dedutivo.

Bem, o método indutivo está baseado na experiência enquanto o método dedutivo está baseado na razão. A experiência nos permite fazer generalizações a partir de casos particulares observados. A experiência tornar-se uma manipulação e um controle sobre os fenômenos naturais (e até mesmo mentais) com o propósito de produzir observações que confirmem para chegar-se a uma teoria ou hipótese. As ciências empíricas que derivam da experiência procuram, como nos diz Carl Hempel, descobrir, descrever, explicar e predizer as ocorrências do mundo em que vivemos. Portanto, as proposições são confrontadas com os fatos e estes confrontados com uma

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evidência. A evidência é obtida por experimentação, observação, entrevista ou levantamentos, exames psicológicos ou clínicos, estudo de relíquias arqueológicas, documentos, inscrições etc.

Em resumo e de maneira sistemática, poderíamos apontar os seguintes passos em um possível procedimento indutivo: (1) observação e registro de todos os fatos; (2) análise e classificação desses fatos; (3) derivação indutiva de generalizações deles; (4) verificação adicional das generalizações. Hempel chama esse esquema de concepção indutiva estreita da investigação científica. Diz Hempel como crítico do procedimento indutivo:

A indução é não raro concebida como um método para passar dos fatos observados aos princípios gerais correspondentes por meio de regras mecanicamente aplicáveis. Segundo esta concepção, as regras da inferência indutiva forneceriam cânones eficazes para a descoberta científica; a indução seria um procedimento mecânico análogo à familiar rotina para multiplicação de inteiros, que leva, em número finito de passos predeterminados e executáveis mecanicamente, ao correspondente produto. Na realidade, não se dispõe até agora de nenhum procedimento geral e mecânico de indução; se assim não fosse, dificilmente se compreenderia, por exemplo, por que ficou até hoje sem solução o ultraestudado problema da causa do câncer. Nem há que esperar pela descoberta de um tal procedimento (HEMPEL, 1981, p. 26 – grifo nosso).

A partir desta citação bem ilustrativa sobre o procedimento indutivo, as conclusões são duas: em primeiro lugar, não existe um lógica indutiva, assim como podemos dizer que há uma lógica dedutiva. Em segundo lugar, não existe um procedimento indutivo que nos leve efetivamente de casos particulares observados para generalizações indutivas garantidamente válidas. Mas por que não há esse procedimento? Porque toda generalização indutiva não possui uma justificação lógica em seu procedimento que vai de casos particulares observados até uma teoria universal.

Para fechar essa parte, encontrei uma história muito interessante no livro de Appolinário (2004, p. 176) de metodologia – que nunca havia encontrado em outros – sobre a experiência da observação de um dado. Começa mais ou menos com a seguinte questão: em vez de se submeter a regras rígidas da lógica e a procedimentos intocáveis para obter conhecimento certo e seguro, não seria preferível tentar a serendipidade? Serendipidade é um termo cunhado por Horace Walpole, em 1754, no conto The Three Princes of Serendip, que era o nome do antigo Ceilão, hoje Sri Lanka. Eram três príncipes que viviam encontrando coisas agradáveis e valiosas por puro acaso. O exemplo da descoberta acidental da peniculina por de Flemming, seria outro bom exemplo.

Em metodologia, o termo passou a significar os três qualificativos da experiência da observação de um dado, que são: (a) imprevisto; (b) anômalo; (c) estratégico. Segundo Merton (1970), são imprevistos, porque é fruto de uma descoberta inesperada; anômalo, porque era um subproduto fortuito do trabalho de pesquisa e, estratégico, porque obriga a modificação da teoria. Aqui outra conclusão importante para a nossa perspectiva metodológica: a indução científica tem tudo haver com o contexto de descoberta, e não apenas com o contexto de justificação.

3.1.2.1  O problema da indução

Há um problema que deriva da aplicação do método indutivo: o problema da indução. A razão disso parece simples: toda a generalização indutiva não possui uma justificação lógica. Mas o que significa dizer isso? E quais as consequências dessa ideia? Ora, para entendermos o problema da indução, podemos dizer que tal problema é fruto de uma confusão entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação. Portanto, produto de uma falácia genética. Popper, em sua solução para o problema, acena neste sentido. O certo é que isso dificulta o nosso entendimento a respeito do que deva ser considerado científico. Vamos analisar!

Tradicionalmente, diz Popper, o problema da indução foi enunciado da seguinte maneira: “Qual é a justificativa para a crença de que o futuro será (amplamente) como o passado? Ou, talvez, qual é a justificativa para as inferências indutivas?” (POPPER, 1975, p.14). É evidente a mistura de elementos de descoberta e de justificação nesse enunciado: justificação/crença; justificação/ inferência. É importante atentarmos para o fato de que inferir é uma atividade psicológica. A lógica preocupa-se com a justificação. Como lógica não é Psicologia, então inferir não é justificar uma teoria científica ou uma proposição ou enunciado. A inferência está ligada à descrição e explicação de processos mentais que se manifestam no ato de inferir. A inferência é uma crença ou opinião. Agora, podemos perceber a mistura de elementos psicológicos e lógicos no enunciado do problema da indução.

Para começar esclarecer o problema, Popper vai propor que entenda o problema da indução dividido em duas ramificações: primeiro, enunciando-o como um problema lógico; depois, enunciando-o como um problema psicológico. Portanto, separar os dois contextos que se mesclam no enunciado tradicional. Segundo Popper, Hume já teria feito essa separação em vista dessa confusão! Assim, o problema lógico de Hume poderia ser enunciado da seguinte maneira, segundo Popper: “Somos justificados em raciocinar partindo de exemplos (repetidos), dos quais

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temos experiência, para outros exemplos (conclusões), dos quais não temos experiência?” (POPPER, 1975, p. 15). E podemos comparar com o problema psicológico que Hume referiu, assim expresso por Popper: “Por que, não obstante, todas as pessoas sensatas esperam e creem que exemplos de que não têm experiências conformar-se-ão com aqueles de que têm experiência? Isto é: Por que temos expectativas em que depositamos grande confiança?” (POPPER, 1975, p. 15). A resposta de Hume para a primeira pergunta é que não há justificação lógica para a indução, por maior que seja o número de casos observados. E a resposta para a segunda pergunta é: pelo hábito e pelo costume somos levados a esperar que o futuro seja semelhante ao passado. Pense no seguinte exemplo da figura a seguir:

Se não há uma justificação lógica para dizer que o futuro será semelhante ao passado, então gatos futuramente poderão andar de bicicleta, apesar do nosso hábito e costume de esperar que as coisas no futuro serão exatamente como foram no passado! E que gatos no futuro deverão continuar a andar sobre quatro patas e sem andar de bicicletas. Mas como Popper trata o problema da indução? Popper faz uso do princípio de transferência que reza: o que é verdadeiro em lógica é verdadeiro em Psicologia. E, também, o que é verdadeiro em lógica é verdadeiro em metodologia e na história da ciência. Com isso, Popper acaba com a confusão entre os contextos de descoberta e justificação. Resolvido o problema no nível lógico, podemos transferi-lo para o nível psicológico. Então, de acordo com esse princípio, a formulação lógica do problema da indução ficaria da seguinte maneira: “Pode a alegação de que uma teoria explanativa universal é verdadeira ser justificada por ‘razões empíricas’; isto admitindo a verdade de certas asserções de teste ou asserções de observação (que, pode-se dizer, são ‘baseadas em experiência’)?” (POPPER, 1975, p. 18). A resposta de Popper é a de que não há uma justificação lógica para a indução. Mas há uma generalização do primeiro problema: “Pode a alegação de que uma teoria explanativa universal é verdadeira, ou é falsa, ser justificada por ‘razões empíricas’; isto é, pode a admissão da verdade de asserções de teste justificar a alegação de que uma teoria universal é verdadeira, ou a alegação de que é falsa?” (POPPER, 1975, p.18). Portanto, uma hipótese universal não pode ser exclusivamente verdadeira, mas pode ser verdadeira ou falsa. No primeiro ponto, não há justificação lógica em dizer que proposições de observação levem a uma generalização; mas no segundo ponto, há justificação lógica em dizer que proposições de observação possam servir para que a generalização seja falsa. Esse é o caráter conjectural de todas as teorias, pois a verdade das teorias é provisória.

As conclusões sistematicamente seriam as seguintes: Para Hume: (1) a ciência é indutiva; (2) a indução científica não tem justificação lógica; (3) logo, a ciência não tem justificação lógica. Dizendo mais claramente: os cientistas não tem como justificar o quê eles fazem, o seu procedimento. Para Popper, a situação é diferente: (1) a ciência é dedutiva e não é indutiva; (2) a dedução tem uma justificação lógica e a indução não tem uma justificação lógica; (3) a ciência tem justificação lógica – a falseabilidade.

3.2  Métodos não científicos

Ao contrário dos métodos científicos que fragmentam a realidade para obter conhecimento, dando importância à justificação do conhecimento, os métodos não científicos procuram abarcar a realidade como um todo. Abarcar como um todo significa captar o sentido. Por exemplo, em relação a um texto, os métodos não científicos pretendem captar o sentido do texto e não o conteúdo expresso nas linhas. Portanto, os métodos não científicos não fragmentam a realidade para obter conhecimento. Contudo, há um paradoxo aqui: se todo método fragmenta a realidade e, se falamos de métodos que não são científicos, então mesmo estes fragmentariam a realidade para chegar ao conhecimento. O que se quer com os métodos não científicos é descrever o processo de obtenção do conhecimento e não aplicar mecanicamente regras para obter um conhecimento. Mas isso não resolve o paradoxo que subsiste dentro das ciências humanas. Vamos analisar agora exemplos de métodos não científicos e tentar compará-los aos métodos científicos.

3.2.1  Método hermenêutico

Uma definição bastante direta de hermenêutica é a seguinte: “o estudo dos princípios metodológicos de interpretação e de explicação” (PALMER, 1986, p.16). Essa definição nos deixa bastante intrigados no entendimento da hermenêutica como método não científico. A razão é simples: a própria definição é carregada de cientificismo. Reparem: se por estudo entendermos uma parte de como a realidade pode ser vista, então estamos perante a fragmentação da realidade. Ora, sabemos muito bem que isso é característica de uma visão cientificista da realidade. Mas, o que queremos aqui é avançar caracterizando a hermenêutica em oposição ao cientificismo.

Em primeiro lugar, a hermenêutica dificilmente pode ser entendida como uma disciplina ou método distante da teologia. As raízes da hermenêutica estão na teologia de Schleiermacher (2010).

Aí a hermenêutica ganha um status de ciência ou arte da compreensão. Não esqueça que as humanísticas são ciências. Isto nos leva a perguntar pela falta de solidez na definição de ciência. Para o autor alemão, a hermenêutica não é um conjunto de regras, mas cita a hermenêutica como “uma ciência que descreve as condições

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de compreensão, em qualquer diálogo” (PALMER, 1986, p. 50). Portanto, para Schleiermacher, a hermenêutica é uma ciência da compreensão linguística.

Essa questão histórica nos leva para uma segunda característica da hermenêutica: a hermenêutica se opõe à ciência na medida em que a ciência vai procurar sempre explicar os fenômenos naturais. A hermenêutica se interessa por compreender o sentido do texto. A explicação e a compreensão não nos dão o mesmo enfoque da realidade. A explicação nos coloca perante a análise e a compreensão perante a síntese. A síntese do todo está no sentido do texto. A explicação é cientificamente definida como acontecimentos subordinados às leis da natureza, ou seja, sua ocorrência é dedutível dessas leis e de um conjunto de condições iniciais. Em uma visão hierárquica, as leis seriam explicadas por outras de um nível mais elevado. Chega-se, assim, ao nível mais elevado baseado na probabilidade, ou seja, em leis estatísticas. Para o positivismo lógico, uma explicação histórica deveria seguir o mesmo rumo que uma explicação científica. Mas para Dilthey (2010) e Collingwood (1986) as explicações históricas são de natureza distinta, porque dizem respeito a acontecimentos que são incapazes de se repetir.

Em terceiro lugar, o conceito de experiência. Cientificamente pensando, experiência envolve repetição. Neste sentido, dadas as condições iniciais obtêm-se determinados resultados. Dessa forma, outro cientista pode repetir o mesmo experimento sob as mesmas condições e obterá os mesmos resultados. Em laboratório, o cientista reproduz essas condições iniciais e alcança os mesmos resultados. Por outro lado, a experiência hermenêutica tem outro entendimento. Esse entendimento não passa por uma definição fechada, mas sim por uma caracterização. Vamos ver!

Primeiro ponto: a experiência hermenêutica é histórica, isto é, envolve uma consciência histórica. Contudo, é difícil precisar o que se pensa sobre isso. Algo, contudo, parece pontual: a experiência hermenêutica não se repete, porque a ação humana nunca é a mesma. Mesmo que tivéssemos as mesmas condições iniciais, o resultado seria outro, porque o indivíduo humano não age da mesma maneira. Essa certamente é a dificuldade de se precisar uma experiência hermenêutica.

Segundo ponto: a experiência hermenêutica é linguística. Há um mundo que se apresenta à nossa frente e dentro de nós, como afirma Palmer (1986). A linguagem traduz esse mundo para nós, colocando-o dentro de nós, isto é, há uma interiorização da realidade por meio da linguagem.

Terceiro ponto: a experiência hermenêutica é dialética, se serve da dialética enquanto uma negação da realidade, possibilitando ampliar o nosso horizonte de compreensão e autocompreensão. A dialética possibilita a superação da concepção de mundo que temos desenhado em nós através da história.

Quarto ponto: a experiência hermenêutica é ontológica. Significa que a experiência hermenêutica quer desvelar o que está por detrás do texto. A experiência hermenêutica pretende revelar o ser das coisas por meio da linguagem. O que interessa não está nas linhas do texto, mas por detrás do texto. O que se revela não está no texto, mas o que se revela é o sentido do texto. E o sentido do texto está encoberto pelo próprio texto. O sentido é o que o texto pretende ser.

Quinto ponto: a experiência hermenêutica é “objetiva”, mas não no sentido científico deobjetiva. A objetividade científica, conforme diz Palmer (1986), é o “meio pelo qual obtemos um conhecimento preciso, claro, conceptual, não influenciado por preconceitos subjetivos.” Sendo assim, a objetividade científica se garante pela verificação empírica e pela demonstração matemática. A “objetividade” da experiência hermenêutica é histórica, isto é, estamos perante um mundo ou realidade que nunca modelamos, não controlamos nem mesmo o formamos. A história nos põe perante os modos de ver o mundo e de compreendê-lo. Esse é o tripé: linguagem, mundo e história. E o sujeito faz parte dele.

A objetividade da ciência está na repetição. O fundamento da objetividade está na realidade que se exprime na e pela linguagem. E a linguagem revela o modo como o ser aparece na história.

Sexto ponto: a experiência hermenêutica é encontro. O encontro hermenêutico. Esse encontro é a abertura de nosso horizonte superando a alienação da separação do sujeito e do texto (objeto). A fusão de dois horizontes: a do sujeito e a do texto (objeto) ocorre pela linguagem, pelo mundo e história, revelando-se o ser por completo em sua finitude. Como diz Palmer (1986): “a interpretação obriga-nos a construir uma ponte que una a distância histórica entre o nosso horizonte e o horizonte do texto.”

Sétimo ponto: a experiência hermenêutica é a revelação da verdade. A revelação da verdade somente na medida em que temos um novo conceito de objetividade – antes descrito. E novamente aqui o choque da concepção cientificista e hermenêutica. Para a ciência, a verdade é correspondência entre o que o sujeito pensa e o que a coisa é. Esse conceito aristotélico foi aperfeiçoado no século XX por A. Tarski (2006). A verdade não é um fato, mas o que acontece. E o que acontece é dinâmico. A dinamicidade é característica da dialética. A dialética com sua negatividade fundamenta a verdade. A verdade não é conceitual. Conceitual é o conhecimento científico, mas não a verdade para a experiência hermenêutica.

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Em quarto lugar, a superação do esquema sujeito-objeto. Anteriormente comentamos o esquema tradicional de Aristóteles para definir conhecimento. Esse esquema que envolve o sujeito e o objeto intermediado pelo conceito é duramente criticado pelos defensores da hermenêutica. A razão é clara. O esquema aristotélico de explicar o conhecimento fundamentou todo o cientificismo da época moderna e do iluminismo. A hermenêutica pretende superar esse esquema. O próprio enunciado indica que seria pela dialética. Diminuir o distanciamento entre sujeito e objeto imposto pelo conceito formal e abstrato. O objeto não é uma coisa passível de análise. Quando temos pessoas envolvidas, estas não podem ser analisadas de tal maneira.

Em quinto lugar, sobre o método. Pelo esquema tradicional aristotélico, o método serve de controle e manipulação exercida pelo sujeito sobre o objeto. É a maneira com que o sujeito tem de manter em seu poder o objeto (seja uma coisa ou uma pessoa). O método faz com que o sujeito do conhecimento assuma uma atitude dogmática e efetiva em relação à separação do sujeito do objeto (o texto, por exemplo). Como o conceito é manejado pelo método, e estes se interpõem entre o sujeito e o objeto, o sujeito acaba não experenciando o objeto ou o texto em toda a sua plenitude. Então, qual conhecimento pode advir dessa relação? Pouco ou nada! A experiência hermenêutica é avessa à visão analítica da ciência. O formalismo lógico cega a compreensão do sujeito. A separação do sujeito do objeto é o resultado da perspectiva analítico-formal. Na visão cientificista, o objeto deve ser atacado por regras lógicas e metodológicas e dominado para que haja conhecimento. O método possibilita o controle e o conhecimento do sujeito sobre o objeto. Para a hermenêutica, o ponto de partida do conhecimento é o que o objeto diz ou o que ele tem a dizer. O que o objeto tem a dizer só vai ser desvelado pelo sujeito quando houver o encontro hermenêutico de fusão dos horizontes. Aí começa a se efetivar o conhecimento! O método impõe um domínio por meio do conceito, o que torna o conhecimento limitado e desprovido do gosto pela sua busca permanente. Somos sujeitos envolvidos no labirinto do conhecimento. Não somos como sujeitos privilegiados por um olhar olímpico. Nós estamos no labirinto do conhecimento e dele não podemos sair. Não há um método universal e absoluto, há caminhos que podemos seguir e caminhos que devemos evitar. Essa é a heurística. Há experiências vivenciadas e a serem vivenciadas. As experiências vivenciadas são uma ruptura e uma ampliação do tradicional modo de ver o objeto por parte do sujeito. Se esse modo de ser do objeto escapa do método, então os resultados do método são discutíveis. Conhecer seria, para a hermenêutica, aprender algo que não poderíamos antecipar por meio do método ou da lógica, portanto, que não poderíamos prever. E aprender algo que não poderíamos antecipar ou prever é olhar aquilo que está por detrás do objeto, objeto que aparece à frente dos olhos do sujeito. Olhar o que está por detrás da obra é desvelar o ser do objeto em sua plenitude. É muito mais do que o método científico pode fazer.

Não só os métodos científicos são prejudiciais na compreensão do objeto por meio da experiência hermenêutica, mas também os métodos de compreensão. Os métodos de compreensão tentam definir compreensão e, com isso, prejudicam o alcance da experiência hermenêutica. Os métodos de compreensão acabam na análise lógico-formal aristotélica, em que categorias estão previamente marcadas para que a análise seja realizada. A hermenêutica prefere andar em círculos dialéticos espirais.

O espiral substitui o labirinto. As experiências hermenêuticas são vivências que envolvem o sujeito em toda a sua plenitude no desvelamento do ser que está por detrás do objeto superando a sua aparência. O conhecimento anda em espiral. É o movimento dialético de perguntas e respostas. Essa é a base da racionalidade das ciências humanas. A essa altura, e para finalizar, é bom contextualizar a situação atual da hermenêutica. Com pensadores como W. Dilthey (2010) e Max Weber(1986) houve uma necessidade de diferenciar o método das ciências naturais do método das ciências humanas ou sociais. Assim, o termo compreensão passou a figurar entre as ciências humanas e fenômenos diferenciados dos ditos fenômenos naturais puderam ser estudados especificamente pela hermenêutica. Uma divisão ocorreu: o tratamento ontológico por M. Heidegger (1969) e Hans Gadamer (1998) ao qual enfatizavam o acesso difícil do sujeito ao objeto por falta de objetividade. Esse acesso aconteceria pela hermenêutica, na medida em que o sujeito interpreta e compreende a realidade, mas não a percebe objetivamente. Por outro lado, temos Schleiermacher (2010) e W. Dilthey(2010), que consideram a hermenêutica constituidora de princípios metodológicos que estão por detrás da interpretação.

3.2.2  Método dialético

O segundo exemplo de métodos não científicos é o método dialético. Quando enfocamos a hermenêutica como exemplo de método não científico, já traçamos muitas características do método dialético. Contudo, precisamos detalhar alguns pontos. Há muitos significados do termo dialético. Nicola Abbagnano (1982) fala de quatro significados: (a) dialética como método da divisão, defendido por Platão; (b) dialética como lógica do provável, definido por Aristóteles; (c) dialética como lógica, definido assim pelos estoicos; (d) Dialética como síntese dos opostos, defendido por Hegel(1983). Aqui procuraremos distinguir a dialética como método e a dialética como lógica. Como método, a dialética inclui os significados (a) e (d) de Abbagnano; e como lógica, inclui os significados (b) e (c) de Abbagnano. Vamos nos referir aqui apenas à dialética enquanto método. Portanto, somente aos significados (a) e (d).

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Quanto à dialética como método de divisão. Apesar do nome estranho, esse método é conhecidíssimo por ser, segundo Platão, “uma técnica de pesquisa associada que se efetua através da colaboração de duas ou mais pessoas com o processo socrático do perguntar e responder.” Penso que há questões importantes aqui: Como perguntar? Como responder? Sócrates, que foi o mestre de Platão, sempre esteve preocupado com o ensino. Sócrates ensinava por meio de uma conversação dirigida, isto é, um diálogo. Ele ia de pergunta em pergunta levando o seu interlocutor à conclusão que ele desejava. Assim, a dialética socratiana consistia em perguntar e responder. O dialético é o sujeito que sabe perguntar e responder. A dialética é a arte de saber perguntar bem.

Por Aristóteles, sabemos que Sócrates foi indutivo. Ele partia daquilo que era mais corriqueiro na vida das pessoas de sua época até conseguir elevá-las a conceitos universais e definições. Observava as atividades de ferreiros, carpinteiros, sapateiros, militares etc. Levava assim essas pessoas a distinguirem o que muda do que não muda; o confuso do claro; o acidental do substancial; o contingente do permanente. Contudo, Sócrates especializou-se no campo da ética e da moral. Aristóteles, cujo pensamento é a base do cientificismo contemporâneo, via em Sócrates alguém que descobriu o procedimento científico da indução. Sócrates nunca teve interesse em projetar conceitos e definições em uma realidade ontológica ou metafísica. Essa é a visão de Aristóteles. Sócrates, no máximo, acreditava que seus conceitos e definições fossem inatos aos homens. Vamos concluir com um exemplo: Objetivo: definir o que é justiça; Procedimento: convencer o interlocutor do que é não mentir; do que é não causar dano ao outro; de não tornar os outros escravos etc., até chegar à definição de que justiça é dar a cada um o que lhe pertence.

Nos “diálogos” de Platão, o seu procedimento metodológico não permite uma conclusão fechada sobre o assunto, enquanto no procedimento de Sócrates o objetivo é que o interlocutor chegue a um conceito que seja comum, isto é, que supere e implique todas as diferenças particulares e que, por fim, possa ser expresso por uma definição. Ora, esse procedimento socrático é denominado maiêutica. A maiêutica é o procedimento para chegar a um conceito universal e a uma definição. A maiêutica é a própria dialética socratiana. Consiste em fazer com que o próprio interlocutor conceba o conceito universal em sua mente, isto é, em parir as suas próprias ideias. Diz Sócrates no diálogo do “Teeteto” de Platão: “Os que se associam a mim sofrem algo idêntico às mulheres que estão a dar à luz: de facto, têm dores de parto e ficam cheios de dificuldades, durante noites e dias, e muito mais do que elas; mas a minha arte tem o poder de provocar essa dor de parto e de a fazer parar” (PLATÃO, 2005, p. 203).

Esse procedimento pressupõe que Sócrates aceitasse o inatismo de ideias ou conceitos universais. O procedimento socratiano consistia apenas em despertar essas ideias e conceitos universais adormecidos na mente de seu interlocutor. O método maiêutico é acompanhado pela atitude de ironia. A atitude de ironia deixa clara a tensão existente entre conhecimento e ignorância. Não humilhava para deprimir, mas para educar. Superar os seus próprios erros pela aceitação da correção, eis a atitude perante o método. Eis o dito: A única coisa que sei é que nada sei!

Mas com os seus adversários a atitude de ironia é mais humilhante e cruel. O procedimento consistia em escolher um tema, muitas vezes dado pelo próprio adversário, e levá-los habilmente, por meio de perguntas inocentes e sem um efeito nocivo, a uma contradição em relação ao que tinham dito. Com isso ficava clara a ignorância de seu adversário sobre determinado assunto. A humilhação sempre ocorre quando insistimos em ter razão e não aceitar a correção do erro. Ficamos presos a nossa mentirosa certeza!

Quanto à dialética como síntese de opostos. Em Sócrates, Platão e Aristóteles, a dialética tem um caráter estático, imutável e verdadeiro. Já a dialética como procedimento tem suas origens com Heráclito. Neste sentido, a realidade é dinâmica e contraditória e o procedimento dialético consistiria em unificar as contradições da realidade. A realidade está em constante transformação e daí a necessidade de se ter um método que capturasse essa mudança.

Ora, no método dialético temos três momentos: a tese, a antítese e a síntese. A síntese será a tese do próximo movimento. A antítese é um momento ascendente. É o momento de negação da tese. A síntese será a negação da negação, que é a antítese. A tese, portanto, é uma afirmação que já contém em si a sua contradição. Por exemplo, todo o amor contém em si as raízes do ódio, a vida o prenúncio da morte etc.

Agora, esse movimento, segundo o pensamento de Heráclito, se aplica a todos os fenômenos naturais. A grande novidade de G. W. F. Hegel (1983) foi aplicá-lo a ideias ou conceitos. Portanto, algo bem óbvio ganhou um acabamento extraordinário: as ideias estão em movimento, assim como todas as coisas da natureza. Em resumo: enquanto os métodos científicos estavam preocupados com o progresso da ciência, o método dialético ficou preocupado em diferenciar-se dos métodos científicos, dando um método para o progresso das ciências históricas, mais ainda, das ciências humanas. Para ilustrar o processo dialético em Hegel, citamos Nérici (1985, p. 97):

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E raciocinar ou pensar é formular mentalmente uma afirmação (tese). Mas no mesmo instante em que isso ocorre, começa a razão a encontrar defeitos na mesma, a fazer-lhe objeção através de outra afirmação também racional, mas contraditória (antítese). Essa afirmação contraditória, no entanto, cria uma situação insustentável para a razão, pelo que ela realiza um esforço para alcançar uma terceira posição que unifique as duas posições anteriores (síntese).

A dialética possui três regras gerais que se aplicam tanto as ciências naturais como às ciências humanas, conforme pensavam Marx e os marxistas. Essas leis são as seguintes: (1) lei da mudança dialética; (2) lei da ação recíproca; (3) lei da contradição. Vamos analisar essas leis para entender o funcionamento do método dialético. G. Politzer (1946), em seu livro clássico Princípios Fundamentais de Filosofia, é bastante claro em suas explicações.

Quanto à primeira lei, ela é enunciada da seguinte maneira: Tudo é movimento. Tudo está em transformação. A natureza está em constante mudança. Não permanece como é. O movimento de tudo é absoluto. Nada está parado. Assim, termos como movimento, mudança, desenvolvimento, processo, progresso, evolução etc. são muito familiares para os defensores do método dialético. Esse movimento e essa transformação não somente explicam a natureza ou os fenômenos naturais, mas também o pensamento, ou seja, as ideias. Portanto, as nossas ideias estão em constante transformação. Na natureza, as pessoas nascem, vivem, envelhecem e morrem. As nossas ideias também sofrem um processo semelhante. Diz Politzer (1946): “De fato, a mudança é tão inerente à realidade social quanto à natureza, mas as sociedades evoluem muito mais depressa do que o universo físico.”

Quanto à segunda lei, ela pode ser dita da seguinte forma: A natureza é interação e ação recíproca. Tudo na natureza está interligado. A ciência expressa uma unidade fundamental ou universal. A realidade é um todo que tem suas partes interagindo juntas. Nada está isolado. Nada pode ser explicado isoladamente. Tudo interage mesmo se considerarmos como partes de um todo: “[…] Como um todo unido, coerente, em que os objetos e os fenômenos são organicamente ligados entre si dependendo uns dos outros, e se condicionando reciprocamente” (POLITZER, 1946, p. 37). Não há ideias sem que haja o cérebro. As ideias interagem com os fenômenos físicos, com o meio. Complementa Politzer (1946): “É por isso que o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido, quando encarado isoladamente, fora dos fenômenos circundantes […]” (POLITZER, 1946, p. 37). Portanto, a segunda lei é clara: “todos os aspectos da realidade prendem-se por laços necessários e recíprocos” (POLITZER, 1946, p.43). Queremos construir um exemplo: Vamos considerar uma situação de sala de aula. O aluno e o professor estão constantemente interagindo. Há o meio, o ambiente, influenciando nessa relação: os colegas, a posição que ocupam professor e aluno; e também, suas condições físicas e de saúde de todos os sujeitos envolvidos (se estão cansados, estressados, preocupados, mal alimentados etc.), condições econômicas (se os pais estão desempregados, endividados etc.); se os professores são bem remunerados, se têm condições de trabalho, se têm boa formação etc. Em resumo: todos estes aspectos interagem formando um todo que é a realidade (segunda lei). Ao mesmo tempo, tudo está mudando nesta relação a todo o momento (primeira lei).

A terceira lei é a mais importante. A terceira lei é a luta dos contrários. A influência direta é de Heráclito de Éfeso (570-476 a.C.). Há uma tensão entre os contrários na natureza. Acrescente-se, não só na natureza, mas também na sociedade. Considera Politzer e todos os dialéticos, a luta dos contrários é o motor de toda a mudança na natureza e na sociedade. E, por que não dizer também, nas ideias? As ideias também estão em movimento, ou seja, mudam. Há três características da contradição para Politzer: Primeira: a contradição é interna. Só há mudança porque há contradição. Se não houvesse contradição, não haveria mudança. A mudança ocorre porque as coisas não só são elas mesmas, mas também algo além delas. Por exemplo, uma semente, além de ser ela própria, é a planta em potencial. O aluno pode ser, além dele próprio, um professor em potencial. Assim, temos as condições externas (ação recíproca) e as condições internas (contradição) em todas as coisas da natureza e da sociedade.

Segunda: a contradição é inovadora. A contradição é produto de uma luta intensa entre o velho ou o tradicional e o novo ou inovador. Dentro do tradicional há as contradições internas que, na superação do inovador sobre o tradicional, se mostram estimuladores. O passado é superado, pelas suas contradições internas, pelo futuro. Há quem queira manter o antigo e tradicional menosprezando o novo e inovador. Neste sentido, querem evitar toda mudança, porque a mudança representa uma ameaça ao seu modo de ser. Na ciência, para haver progresso, tem que se reconhecer a contradição interna e a fecundidade da contradição. A história da ciência está inundada de exemplos deste tipo. Veja, por exemplo, o conceito de mudança de paradigma em T. S. Kuhn (1987).

Terceira: a contradição é unidade. A contradição é unidade dos contrários. Para os opositores da dialética, a realidade é feita de contradições que não se unificam, não se superam. Isso não ocorre no método dialético, porque os contrários se unificam. Não há entendimento absoluto nem mesmo ignorância absoluta. O que há é superação dos contrários, na medida em que eles se digladiam na natureza e na sociedade. Por exemplo, é impossível pensar a vida sem a morte ou pensar a morte sem a vida. Assim, os contrários se convertem um no outro, em uma legítima transformação. A morte deixa de ser somente a morte e a vida deixa de ser somente a vida,

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dessa forma formam ou se unificam um no outro. Esse é o movimento dialético que também explica a educação e o ensino.

Podemos examinar criticamente a dialética enquanto método. Essa crítica pode ser referida da seguinte maneira: enquanto a dialética se apresentar como método, é inevitável que surja um círculo vicioso. A que círculo vicioso essa crítica está se referindo? Não há livro de lógica que se preze que não faça referência a esse círculo vicioso. Os críticos que falamos aqui são os defensores de uma lógica formal e os metafísicos. Esse círculo vicioso pode ser definido da seguinte maneira, segundo Caio Prado Júnior (1963): “A grande dificuldade que apresentam a análise e exposição da Dialética materialista está em que tal análise e exposição giram aparentemente à luz da Lógica formal clássica […] giram em círculo vicioso: para compreender a Dialética é preciso pensar dialeticamente, isto é, conhecer a Dialética para conhecê-la; […] Em suma, qualquer assunto pode ser considerado metafisicamente ou dialeticamente” (JÚNIOR, 1963, p. 9).

Como pensam os dialéticos em escapar deste círculo vicioso? Para Caio Prado Júnior, o círculo vicioso é uma posição lógico-metafísica. Assim, o círculo só existe se olharmos a dialética com os olhos de um lógico-metafísico. Ora, mesmo assim fica a pergunta: com que olhos os dialéticos veem a dialética? Resposta: com os próprios olhos. O dialético só pode conhecer a dialética sendo dialético. A dialética olhada por ela mesma é de origem histórica. A gênese histórica significa aqui seguir uma experiência vivida. Mas olhar a dialética com os olhos de um dialético não seria incorrer da mesma maneira em um círculo vicioso? O dialético (sujeito) para conhecer a dialética precisa conhecer a dialética, mas isto é o que ele justamente almeja. Isso, em outras palavras, seria um círculo vicioso. O círculo vicioso não ocorre devido à posição do lógico-metafísico, mas independentemente dele também. O círculo vicioso continua existindo mesmo que o dialético use somente termos dialéticos para dizer o que é dialética.

Mas há outro problema aqui. Para dizer o que é dialética, o dialético precisa usar um vocabulário que, conforme a definição de metafísica que temos, é tão metafísico quanto o vocabulário do metafísico. Mais um agravante: conforme o ponto de vista hermenêutico – que não é cientificista e muito menos lógico-formal, tudo passa pelo fato de definirmos o lugar de que estamos dizendo algo. Qual é o lugar que o dialético ocupa para dizer algo sobre a própria dialética? Diz Caio Prado Júnior (1963, p. 12): “Essa circularidade do pensamento dialético é inevitável, porque resulta da própria natureza do assunto.”

Outro ponto: criticar a metafísica por seu estaticismo é um equívoco. Ora, dialeticamente se diz que tudo está em movimento, isto é, nunca nada está parado em nenhum instante. Mas, e isto é sabido, para podermos conhecer alguma coisa – um fenômeno natural ou um fenômeno social – terá que fazer uma fotografia instantânea da realidade, isto é, deveremos parar no tempo e no espaço para poder conhecê-la em todos os seus detalhes. Poderia a dialética nos dizer o quanto perdemos em uma descrição de um fenômeno natural ou social? Não, mas é muito! Mesmo a descrição de um fenômeno natural ou social como um processo, deixa muito a desejar. Há muitos detalhes que escapam a aplicação de qualquer método que seja.

Em resumo, a solução de Caio Prado Júnior ao longo de seu livro é a seguinte: quem não pensa dialeticamente não pode criticar a dialética, porque não pensa dialeticamente, e quem pensa dialeticamente não critica, porque já aceita e usa a própria dialética. Essa tese, na verdade, é a mais nova forma de dogmatismo.