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Agradecimentos

Na minha dissertação de mestrado, ao fazer os agradecimentos, disse que aquele trabalho

estava relacionado, em grande medida, ao acidente que sofri em 1995 quando me tornei

tetraplégico, em função dos desdobramentos e questões emocionais que tal situação provoca.

Como o tema desta tese é a inclusão social das pessoas com deficiência, poderia ir pelo mesmo

caminho, mas vou fazer o contrário.

O amor que compartilho com Regina, minha esposa, nada tem a ver com minha

deficiência. O que sentimos um pelo outro decorre de coisas muito mais profundas do que a

existência ou não de uma limitação física. São sentimentos que dizem respeito a seres humanos,

pessoas que se encontraram nesta vida – talvez antes – e querem seguir juntas até o fim.

Agradeço a ela por sempre me apoiar e continuar comigo, sempre em frente e procurando ser

feliz, por mais que a vida queira nos dizer não.

Agradeço enormemente aos meus pais, Ruy e Lúcia, que muito antes da minha deficiência

cuidaram de mim, me tratando com carinho, amor e atenção, foram e são pais maravilhosos, que

eu pretendo ser um dia. Ter uma deficiência ou não, como vejo por meio do meu querido irmão,

Bruno, pouco importa nesta relação, pois ela é verdadeira, profunda, visceral, como deve ser

entre pais e filhos. Através dos meus pais e meu irmão agradeço também a minha estimada

família, vó Diva, vó Namélia (sempre), meus tios, tias, primos e primas, além, é claro, dos meus

sogros, cunhadas e cunhadas.

Por fim, a relação de amizade, respeito e admiração que eu tenho com o professor Waldir

Quadros seria desta forma mesmo se eu estivesse andando por aí! É verdade, porém, que ele me

ajudou num momento decisivo, pouco depois do meu acidente, quando eu queria desistir de

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estudar por não ser aprovado em nenhuma disciplina na graduação em Economia. Na dele, eu

passei e fui em frente. E agora, depois de dez anos, ele fez de novo. Em função dos problemas de

saúde com os quais tenho convivido, quis desistir da tese, mas o professor Waldir não deixou, e

aqui estamos.

Portanto, relações humanas verdadeiras independem da deficiência, da cor do cabelo, da

pele, da opção sexual e de tudo mais que é secundário. Elas se dão entre pessoas, seres humanos

imperfeitos, com uma série de problemas e limitações, mas capazes de amar, ouvir o próximo,

compartilhar sonhos e frustrações. Agradeço a todos que estão comigo nessa jornada!

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“Pessoas com Deficiência e o Mercado de Trabalho – Histórico e o Contexto Contemporâneo”

Resumo: Este estudo tem como objetivo contextualizar e avaliar o processo de inclusão das

pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal no Brasil. Parta tanto, primeiramente

realiza um panorama acerca da trajetória das pessoas com deficiência na História, mostrando

como foi evoluindo o “significado social” deste contingente populacional, tido anteriormente

como “inválido” ou “incapaz”. Realiza também uma apresentação sobre as principais legislações

nacionais que versam sobre a temática da deficiência, além de estimar, com base nos dados do

último Censo Demográfico, a população com deficiência em idade produtiva que estaria apta a

fazer jus da chamada “Lei de Cotas”. Este instrumento de ação afirmativa é avaliado quanto à

sua efetividade, concluindo-se que, para além da legislação, é preciso avançar na inclusão escolar

das pessoas com deficiência, melhorar as condições gerais de acessibilidade nos municípios e

reafirmar paradigmas que não reforcem mitos e estereótipos associados a estas pessoas. Somente

assim poderá avançar o ainda restrito acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho

formal, no qual estão apenas uma minoria – em torno de 10% - daqueles com diferentes níveis de

limitação física, sensorial ou cognitiva.

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Persons with Disabilities and the Labor Market – Historical and Contemporaneous Context.

Abstract: This study aims to contextualize and evaluate the process of inclusion of persons with disabilities

in the Brazilian formal labor market. Therefore, first an overview of the situation of disabled

people throughout history is presented in order to show how the "social significance" of a

populational group, taken previously as "invalid" or "incompetent, had changed. Next, the main

national laws that deal with disability issues are analyzed. Then, based on data from the last

demographic census, it is also estimated the population of the working age population whose

disabilities may give them the rights provided by the so-called "Law of Quotas". Evaluating the

effectiveness of such instrument of affirmative action, one conclude that, in addition to

legislation, it is imperative to strengthen people educational inclusion, to improve general

accessibility in the counties and to favor paradigms that do not reinforce stereotypes and myths

associated with these people. Thereby one can advance the still limited access of disabled people

to formal labor market, in which only a minority - around 10% - of those with different levels of

physical, sensory or cognitive impairment are.

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Índice

Índice .............................................................................................................................................. vii

Introdução ........................................................................................................................................ 1

Capítulo 1 – Contexto Histórico e Mudanças de Paradigmas ............................................................ 9

1.1 – O Contexto Histórico ............................................................................................................... 9

1.1.1 – Panorama histórico geral: a epopéia ignorada ......................................................................11

1.1.2 – Caminhando no Silêncio: pessoas com deficiência na História do Brasil ..............................22

1.2 – Mudanças de Paradigmas ........................................................................................................30

1.2.1 – O AIPD e sua importância como marco histórico ................................................................31

1.2.2 – O paradigma da “inclusão social” ..........................................................................................34

1.2.3 – As mudanças na terminologia...............................................................................................44

Capítulo 2 – Legislação e Políticas Públicas .....................................................................................53

2.1 – O Welfare State e as transformações no campo dos direitos sociais ........................................55

2.1.1 – O arranjo político e econômico pós-1945 .............................................................................56

2.1.2 – A “revolução social” no contexto da era dourada .................................................................61

2.2 – O Contexto sócio-político nacional e a Constituição “cidadã” de 1988 ...................................67

2.2.1 – Premissas e características gerais da política social no período pós 1964..............................68

2.2.2 – A Constituição de 1988 – Antecedentes e resultados ...........................................................73

2.3 – A política nacional de integração e principais legislações sobre pessoas com deficiência .......79

2.4 – A Convenção Internacional e as perspectivas para a Inclusão ............................................... 102

Capítulo 3 – O Mercado de Trabalho e as Pessoas com Deficiência ............................................... 117

3.1 – Economia Brasileira: visão panorâmica do período recente .................................................. 119

3.2 – O trabalho das pessoas com deficiência na literatura ............................................................ 126

3.3 – A população com deficiência no Censo de 2000 .................................................................... 141

3.4 – Dados recentes da inclusão formal das pessoas com deficiência no mercado de trabalho ..... 157

Considerações finais ....................................................................................................................... 175

Referências bibliográficas .............................................................................................................. 179

Anexo I – Legislações Selecionadas ................................................................................................ 185

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Introdução

Este trabalho busca contribuir para a discussão sobre um tema que, felizmente, deixou de

ser tratado pela ótica do assistencialismo e passou a ser visto sob o paradigma dos direitos

humanos. Ao longo deste estudo, vamos procurar avaliar o quanto dessa afirmação se confirma

na prática. A inclusão social das pessoas com deficiência, mais especificamente, o acesso dessa

parcela da população ao mercado de trabalho, é o tema central desta tese. Acreditamos que, de

início, será necessário apresentar algumas definições e premissas, pois a temática da deficiência,

embora tenha ganhado espaço no debate público e mesmo na agenda política nacional nos

últimos anos, ainda suscita uma série de dúvidas e inseguranças na maioria das pessoas.

Em primeiro lugar, quando falamos “pessoas com deficiência”, a quem estamos nos

referindo? Como esta questão foi tratada historicamente? Qual a terminologia adequada para

descrever esse segmento populacional? Tais questionamentos iniciais possibilitam um debate

interessante e que será feito, em alguma medida, com base na experiência pessoal do autor, que

possui uma deficiência física e desde 1997 participa do movimento social e político das pessoas

com deficiência, dialogando com setores empresariais e do poder público. É claro que

utilizaremos também as referências bibliográficas disponíveis, mas esse caráter empírico pode

enriquecer o trabalho na medida em que diferentes atores (e “discursos”) sociais serão

apresentados.

Uma premissa importante do nosso estudo é não desvincular a questão da deficiência do

contexto socioeconômico brasileiro (e internacional) mais geral. Em outras palavras, sem

desconsiderar as especificidades do tema, é fundamental que se discuta a qualidade de vida, o

acesso aos serviços públicos e a inserção no mercado de trabalho das pessoas com deficiência,

dentre outros aspectos, numa perspectiva ampliada, não de maneira isolada. Somente assim

poderemos avançar na direção daquilo que, paradoxalmente, será o êxito e, ao mesmo tempo, o

fim, ou a diminuição, por haver se tornado desnecessário, do trabalho daqueles que atuam nesta

área: uma sociedade plenamente acessível e inclusiva, que permita às pessoas com algum tipo de

deficiência a convivência sem barreiras físicas e comportamentais. Em síntese, uma sociedade

que respeite a diversidade, ou melhor, as diferenças humanas1.

1 Dado o envolvimento do autor com o tema, durante o desenvolvimento do trabalho foi possível conversar e receber

orientações de pessoas com grande conhecimento e vivência (prática e acadêmica) na área. Dentre elas, a professora

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Quando atingirmos a meta da construção de uma sociedade inclusiva, o que já é uma

realidade em vários países avançados, provavelmente o trabalho das associações, grupos de

apoio, organizações de pessoas com deficiência ou órgãos específicos do poder público no Brasil

será menor do que é atualmente. Exemplificando, uma luta que já vem ocorrendo há vários anos

por um sistema de transporte acessível será arrefecida, ou se encerrará, quando, de fato, tivermos

à disposição de toda a população meios de transporte que não restrinjam o acesso dos

passageiros.

A questão que se coloca, entretanto, é que nesse processo de modificação da sociedade

brasileira, caracterizada por sua heterogeneidade e elevados níveis de desigualdade, são

necessários e faz sentido que existam, temporariamente, instrumentos ou políticas focalizadas e

específicas para grupos populacionais socialmente vulneráveis. Essa opinião pode parecer

controversa para aqueles que enxergam nesses instrumentos, em si mesmos, uma forma geradora

de discriminação ou segregação, defendendo apenas os programas de cunho universal. Vamos

apresentar tais argumentos, como também os daqueles que, de maneira oposta (e equivocada, em

nossa opinião), somente defendem as virtudes das políticas e ações particularizadas, entendendo

as pessoas com deficiência como um grupo à parte da sociedade.

Nesse debate, adiantando a posição que nos parece correta, deveria prevalecer um

equilíbrio no sentido de que, com base na experiência prática das próprias pessoas com

deficiência, identifiquem-se instrumentos específicos de fato necessários e que devam ser

utilizados em paralelo às políticas universais2. É preciso deixar claro, inclusive, o caráter

transitório das políticas e ações específicas, pois a sua perpetuação, ao contrário do sucesso,

tornará evidente a ineficácia destes instrumentos e da política social mais geral.

Essa “sintonia fina” entre ações focalizadas e universais não é facilmente obtida e muito

menos consensual dentre aqueles que atuam nessa área, mas, através de exemplos concretos e da

discussão teórica, pretendemos dar subsídios, principalmente, para o movimento organizado das

Maria Teresa Égler Mantoan, da Faculdade de Educação da Unicamp. Foi ela quem nos chamou a atenção sobre o

caráter estático e finito do termo “diversidade”, que pressupõe determinadas categorias pré-existentes. Voltaremos a

esse aspecto mais à frente. 2 Sobre esse aspecto, a professora Maria Teresa Égler Mantoan argumenta que a inclusão escolar, laboral ou social

das pessoas com deficiência é uma proposta que nos faz andar no “fio da navalha”, pois temos, de um lado, o direito

à igualdade, e de outro, o direito às diferenças. Estabelecer os mecanismos adequados para viabilizar esse processo

passa pela consideração da seguinte máxima do sociólogo e humanista português Boaventura de Souza Santos: “temos o direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza; e o direito à diferença, quando a igualdade nos

descaracteriza” (Santos, 2006).

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pessoas com deficiência. Naturalmente, não vamos obter uma receita pronta e acabada, mas é

sempre importante refletirmos sobre nossas ações, projetos e programas, pois a relação entre

conceitos como igualdade e diferença, ou direitos e privilégios, é bastante complexa e pode

resultar em injustiças.

Em termos da estrutura do trabalho, no capítulo 1 pretende-se discorrer sobre as questões

teóricas, que vão desde um panorama histórico da trajetória da luta por inclusão das pessoas com

deficiência, até os diferentes paradigmas com os quais esse tema foi tratado, abordando também a

questão das mudanças na terminologia utilizada para se referir a estas pessoas. O contexto

histórico será pautado, fundamentalmente, por duas obras que se preocuparam com esta temática,

sobre a qual ainda hoje não existe um aprofundamento maior. Trata-se da “Epopéia Ignorada – A

História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje”, escrita por Otto Marques da Silva

em 1987; e “Caminhando em Silêncio – Uma introdução à trajetória das pessoas com deficiência

na História do Brasil”, de Emílio Figueira, publicada em 2008.

Os títulos sugestivos desses trabalhos, realizados com um intervalo de praticamente vinte

anos, revelam uma característica marcante do que foi a luta pela sobrevivência e cidadania deste

grupo populacional: a invisibilidade3. Acreditamos que, em grande medida, essas obras se

completam e fornecem uma visão histórica que pode nos servir de maneira bastante satisfatória

como introdução e “pano de fundo” das discussões posteriores, basicamente circunscritas ao

período recente/contemporâneo.

Nossa trajetória histórica marcada pela invisibilidade se encerrará no ano de 1981, que foi

escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional da Pessoa

Deficiente (AIPD). Os autores citados anteriormente não hesitam em identificá-lo como um

marco histórico na luta pelo reconhecimento e cidadania desse contingente populacional. É claro

que “a história não começou” em 1981, mas foi a partir dali que se formou uma identidade de

interesses e aspirações das pessoas com deficiência enquanto grupo social organizado no Brasil e

em outros países.

3 O movimento de vida independente, criado e difundido por veteranos da Guerra do Vietnã na década de 1970 nos

EUA, teve como principal bandeira o protagonismo das próprias pessoas com deficiência, contra essa invisibilidade

muitas vezes manifestada pela tutela institucional e familiar a que estavam submetidas (Sassaki, 2003). Este

movimento inspirou a criação dos Centros de Vida Independente (CVI’s), organizações não-governamentais que

atuam nessa área e tem como característica básica a participação direta das pessoas com deficiência em suas ações e projetos. O autor participou da fundação do CVI-Campinas em 1997 e, atualmente, é um dos diretores dessa

Organização Não-Governamental.

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Ainda no capítulo 1, o chamado “paradigma da inclusão”, adotado atualmente por setores

progressistas que atuam nessa área, será apresentado com base na formulação de um dos seus

principais expoentes, Romeu Kazumi Sassaki, autor de “Inclusão: construindo uma sociedade

para todos”, de 1997. Neste livro, o autor relata sua experiência com a questão da deficiência nos

EUA e Canadá, tendo sido pioneiro em trazer para o Brasil a idéia-força do conceito de inclusão:

a sociedade e suas barreiras, mais do que as limitações físicas, sensoriais ou cognitivas, é que

excluem as pessoas com deficiência do convívio social e dos serviços públicos, impedindo ou

limitando seu pleno desenvolvimento. Será também abordado o aspecto da terminologia e como,

ao longo da segunda metade do século XX até os dias atuais, a temática da deficiência transitou

do campo do assistencialismo para a esfera dos direitos humanos (evoluiu, assim, o “significado

social” das pessoas com deficiência, vistas e identificadas anteriormente como “inválidas” ou

“incapazes”).

No capítulo 2, a idéia é trabalhar o contexto nacional recente a partir da legislação

existente – considerada uma das mais avançadas no mundo – e das políticas públicas

implementadas. Em particular, nossas referências principais serão a chamada “Lei de Cotas”

(8.213/91), o Decreto Federal 5.296/04 que versa sobre a acessibilidade (conceito-chave na nossa

discussão) e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).

Esta Convenção foi aprovada em Assembléia Geral das Nações Unidas em Dezembro de 2006,

sendo o primeiro tratado internacional sobre direitos humanos do século XXI. O Brasil

internalizou esse documento e o aprovou com quorum qualificado no Congresso Nacional,

conferindo-lhe assim um status de emenda constitucional (Decreto Legislativo 168/2008).

Sobre as políticas públicas, propõe-se uma análise com base na atuação da Coordenadoria

Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), criada no final da

década de 80 pela Lei 7.853/89 e regulamentada pelo Decreto 3.298/99, instrumentos legais que

balizam a “política nacional para integração da pessoa portadora de deficiência”. Atualmente, a

CORDE é vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da

República, e teve recentemente elevado o seu status institucional (deixando de ser uma

Coordenadoria e passando ao papel de Subsecretaria).

Tendo em vista a premissa de procurar entender a questão da deficiência no bojo das

transformações sociais e políticas mais gerais, a discussão da legislação específica será precedida,

no capítulo 2, por dois itens: a) panorama sobre a formação e o desenvolvimento do Welfare State

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(Estado de Bem-Estar Social) nos países europeus; b) contexto político brasileiro na década de

1980 e promulgação da Constituição de 1988. Busca-se, assim, situar a temática da deficiência

dentro de um movimento mais amplo, que no contexto internacional ocorreu por meio da luta

pelos direitos humanos depois da II Guerra Mundial, tendo no Welfare State uma manifestação

clara de políticas públicas inclusivas. No plano interno ou nacional, a Constituição “cidadã” de

1988 incorpora formalmente tais elementos, embora sua efetividade tenha sido prejudicada pelo

ideário neoliberal que prevaleceu no país durante a década de 1990, período de regulamentação

da Constituição.

Assim sendo, depois de apresentar as características gerais da “era dourada” do

capitalismo – onde se formou e desenvolveu-se o Estado de Bem-Estar Social – e da década de

1980 no Brasil – período da redemocratização que culmina com a Constituição 1988 – trataremos

das legislações e políticas específicas sobre pessoas com deficiência, muitas delas influenciadas

por esses processos político-sociais internacional e nacional.

Sobre as legislações citadas anteriormente, importante observar que, ao tratar da “Lei de

Cotas” ou da atuação da CORDE, por exemplo, estaremos abordando temas que, no momento

atual, provocam intensos debates entre o movimento das pessoas com deficiência, a classe

política e outros segmentos da sociedade. Estamos nos referindo, dentre outros, ao projeto de lei

do Estatuto da Pessoa com Deficiência que tramita no Congresso Nacional, bem como ao debate

em torno da flexibilização da referida “Lei de Cotas”, defendida por setores empresariais, ou à

proposta de criação de um “Ministério dos Deficientes Físicos”, aventada pelo candidato à

presidência José Serra (PSDB4). A dinâmica dessas discussões vai ser incorporada, na medida do

possível, ao conteúdo do trabalho. Nosso objetivo maior é entender aspectos da motivação e do

significado prático dessas legislações e propostas de política pública, as quais expressam

diretrizes de ação que o país vem adotando nesse campo.

O capítulo 3 constitui-se no cerne desta tese e buscará, através de dados oficiais e

estatísticas fornecidas por órgãos públicos, mapear o processo de inserção das pessoas com

4 “Serra diz que vai criar Ministério para atender deficientes físicos” – Folha de São Paulo, caderno Brasil, 18 de

Abril de 2010 (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1804201006.htm). Adiantando nossa posição, nos parece

correto e necessário que nos três níveis da administração pública existam órgãos ou coordenadorias específicas para

tratar da temática da deficiência (interagindo com os demais entes da administração e preferencialmente tendo a

mesma vinculação institucional de outros grupos populacionais historicamente discriminados). Porém, a criação de Secretarias municipais ou estaduais, e mais ainda de um Ministério específico, trata-se de um exagero e de um

equivoco na medida em que reforça a idéia de segregação e particularização das pessoas com deficiência.

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deficiência no mercado de trabalho formal no Brasil e, particularmente, no Estado de São Paulo e

no município de Campinas. Observando a realidade no Estado mais rico da Federação e num

município reconhecido como pólo tecnológico e educacional, poderemos ter uma idéia de como

essa questão vem sendo trabalhada numa área onde há acúmulo de conhecimento sobre ela

(supostamente tal experiência poderia servir de exemplo para as demais regiões do país). É claro

que devem existir experiências positivas fora do Estado de São Paulo e de Campinas, mas optou-

se também por essa Unidade da Federação e município pelo envolvimento do autor com o tema.

O contexto recente da economia brasileira será apresentado, enquanto item introdutório do

capítulo 3, através da evolução recente dos seus principais indicadores. Tal panorama é

necessário porque boa parte dos dados disponíveis sobre a contratação de pessoas com

deficiência no mercado formal referem-se a um período de crescimento da economia brasileira,

com expansão do emprego formal como um todo. Vamos procurar discutir em que medida a

dinâmica de emprego das pessoas com deficiência é influenciada por este desempenho geral, ou

se realiza com “propulsores” próprios a partir da determinação legal que exige sua contratação.

Para tanto, realiza-se na seqüência uma revisão bibliográfica acerca dos estudos recentes

que buscaram debater o acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, com ênfase

para uma avaliação crítica sobre a “Lei de Cotas”. De maneira geral, tais estudos chamam

atenção, a partir de diferentes perspectivas, para os limites deste instrumento legal, elencando

outros aspectos que seriam importantes para o aumento da participação das pessoas com

deficiência no mercado formal de trabalho.

Os dados do Censo Demográfico de 2000, que pela primeira vez pesquisou de forma mais

abrangente o tema das pessoas com deficiência, serão utilizados como referência para alguns

indicadores sócio-econômicos a nível nacional e estadual. Porém, conforme será apresentado, é

preciso cuidado na utilização desses dados porque o questionário do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) incluiu um espectro maior de pessoas ao inquirir também sobre

diferentes graus de incapacidade para andar, ouvir e enxergar. Em outras palavras, apurou-se um

número maior de pessoas do que aquele que seria obtido com critérios mais rigorosos para

definição das deficiências, como os existentes nos Decretos Federais 3.298/99 e 5.296/04, que

servem de parâmetro para a “Lei de Cotas” e concursos públicos.

Feita esta observação, é preciso dizer que os resultados do Censo, embora defasados, são

úteis por terem identificado, pela primeira vez, o contingente da população com limitações

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físicas, sensoriais e cognitivas. Ademais, se adéquam a padrões internacionais de pesquisa nesta

área (o percentual encontrado de “pessoas com deficiência ou incapacidade” no Brasil – 14,5%

da população – é compatível e comparável com dados de outros países).

Realizado o panorama com os dados do Censo, com destaque para as informações

relativas ao Brasil, ao Estado de São Paulo e ao município de Campinas, o quarto e último item

do capítulo 3 trará a apresentação dos dados obtidos junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e

à Gerência Regional de Campinas. Desde já, é importante deixar claro que tais dados advêm de

duas fontes distintas de informação: a) aqueles apurados pelo trabalho de fiscalização das

Superintendências e Gerências Regionais do Trabalho; b) os números oficiais disponíveis na

Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Os valores encontrados nessas bases de

informação não são coincidentes porque os primeiros indicam o volume de contratações, ano a

ano, das pessoas com deficiência nas empresas com 100 ou mais empregados (obrigadas a

cumprir a “Lei de Cotas”). A RAIS, por sua vez, nos fornece uma radiografia do número de

postos de trabalho ocupados por pessoas com deficiência trabalhando no mercado formal num

determinado período (último dia do ano), no conjunto total de empresas (independentemente do

seu porte).

Ao final deste último item do capítulo 3, será feita uma comparação entre o número de

pessoas com deficiência trabalhando formalmente (RAIS) e o total estimado desta população

(com base nos dados do Censo), inferindo-se, assim, a condição atual de acesso ao mercado

formal deste contingente populacional.

A expectativa que temos ao iniciar este estudo é de confirmar aquilo que sentimos na

prática: é necessária uma articulação entre o Poder Público, as empresas privadas e o terceiro

setor para que possa haver uma inserção, com dignidade e qualidade, das pessoas com deficiência

no mercado de trabalho. Este aspecto é decisivo para que essas pessoas possam, de fato, superar

uma condição de dependência e assumir o controle sobre suas próprias vidas. Até mesmo porque,

para todas as pessoas, com ou sem deficiência, é fundamental realizar uma atividade “produtiva”,

que possibilite relações pessoais e sociais, contribuindo para o amadurecimento, formação

individual e uma melhor qualidade de vida.

Além disso, deve-se registrar que, ao propor uma avaliação sobre a efetividade “Lei de

Cotas” estamos cientes, desde logo, das limitações desse instrumento de ação afirmativa para

viabilizar o acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho. Basta dizer que, mesmo

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se fosse integralmente cumprida, esta legislação ainda deixaria de fora do emprego formal mais

de 5 milhões de pessoas com deficiência, conforme estimativas que serão apresentadas. Portanto,

para além da determinação legal, é preciso pensar nas políticas públicas universais, na inclusão

escolar, no pleno acesso aos meios de transporte, edificações e formas de comunicação; e na

sensibilização da sociedade (inclusive das famílias onde estão as pessoas com deficiência5) para

que se desfaçam, definitivamente, estereótipos e características negativas associadas a esse

segmento populacional.

5 “Pais barram filho deficiente na escola”. Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, 16 de Agosto de 2010.

(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/inde16082010.htm). A matéria apresenta pesquisa realizada pelo

Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) com famílias que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos e deficientes de baixa renda familiar. De acordo com a pesquisa, 53% dos pais disseram

que os filhos com deficiência não estavam na escola por considerá-los “incapazes de aprender”.

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Capítulo 1 – Contexto Histórico e Mudanças de Paradigmas

Neste capítulo, busca-se traçar um panorama da temática da deficiência para responder a

alguns questionamentos básicos, tais como: quem são as pessoas com deficiência? Qual é a

terminologia correta (como a nomenclatura evoluiu) para se referir a esse grupo populacional?

Historicamente, como foi tratado esse tema? Qual é o paradigma atual com que se tem trabalhado

esta questão? Na medida em que abordarmos esses aspectos, será construído um referencial para

os capítulos seguintes, onde a discussão estará direcionada para a apresentação da legislação e

políticas públicas (capítulo 2) e para as questões relativas ao mercado de trabalho e inserção das

pessoas com deficiência (capítulo 3). Dessa forma, pretende-se que o conjunto da tese reflita uma

determinada visão sobre este tema. Tal visão entende as pessoas com deficiência como sujeitos

ativos no seu processo de conquista da cidadania, superando uma fase de tutela ou subordinação

institucional e familiar que caracterizou durante muitas décadas a situação do indivíduo com

algum de tipo de deficiência.

A afirmação anterior, entretanto, não pretende atribuir responsabilidades exclusivas às

próprias pessoas com deficiência para o êxito da sua reabilitação e inserção social. Como

veremos, essa forma de abordagem foi superada a partir do momento em que se constatou que,

para além de histórias de “superação individual”, é a sociedade que precisa estar preparada para

respeitar e acolher as diferenças humanas. Esse debate será feito mais adiante, na segunda parte

deste capítulo, no item sobre o paradigma da inclusão. Por ora, vamos iniciar apresentando um

percurso histórico que pretende enfatizar, de maneira pontual, mudanças nas formas de

“aceitação” e inserção da população com algum tipo de deficiência. Esse exercício se dará com

referência à chamada História Geral e, em seguida, destacando a História do Brasil.

1.1 – O Contexto Histórico

As pessoas com deficiência, via de regra, receberam dois tipos de tratamento quando se

observa a História Antiga e Medieval: a rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção

assistencialista e piedosa, de outro.

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Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar os

filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Da mesma forma que, em Esparta, os bebês e

as pessoas que adquiriam alguma deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios. Já em

Atenas, influenciados por Aristóteles – que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que

tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça – os deficientes eram amparados e

protegidos pela sociedade.

Assim sendo, nas palavras de Fonseca (2000):

“Na Antigüidade remota e entre os povos primitivos, o tratamento destinado aos portadores de deficiência assumiu dois aspectos básicos: alguns os exterminavam por

considerá-los grave empecilho à sobrevivência do grupo e, outros, os protegiam e

sustentavam para buscar a simpatia dos deuses, ou como gratidão pelos esforços dos que

se mutilavam na guerra” (Fonseca, 2000, p.482).

Na Idade Média, em função da influência do Cristianismo, os senhores feudais adotaram,

na maioria das vezes, um tratamento de amparo aos doentes e deficientes. Paulatinamente, foi

sendo percebido que essas pessoas poderiam realizar atividades de trabalho e produção, ainda que

para isso fosse exigida uma contribuição da sociedade. Somente a partir do Renascimento e da

chamada Era Moderna, que se inicia depois das Revoluções Industrial na Inglaterra (1760) e

Francesa (1789), é que começam a aparecer com mais freqüência registros de trabalho produtivo

de pessoas com deficiência. Para isso, foi fundamental o desenvolvimento de equipamentos como

as cadeiras-de-rodas, bengalas e próteses. No início do século XIX, na França, Louis Braille cria

e aperfeiçoa o código Braille, que permitiu a integração dos cegos a uma linguagem escrita.

Esse processo revela um percurso histórico no qual, gradativamente, pessoas com

limitações físicas, sensoriais ou cognitivas foram sendo incorporadas ao tecido ou estrutura

social. É claro que se tratou de um movimento errático, não-linear, marcado, na grande maioria

das vezes, por trajetórias individuais. Não se pode visualizar um processo contínuo e homogêneo

de integração, pois os sentimentos e a maneira pela qual a sociedade enxergava as pessoas com

deficiência variavam também de um país para o outro num mesmo período. Durante o século XX,

por exemplo, pessoas com deficiência foram submetidas a “experiências científicas” na

Alemanha nazista de Hitler. Ao mesmo tempo, mutilados de guerra eram considerados heróis em

países como os EUA, recebendo honrarias e tratamento em instituições do governo.

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Mesmo assim, utilizando como referência o clássico trabalho de Silva (1987), vale a pena

descrever aquilo que este autor chamou de “epopéia ignorada”, ou seja, a trajetória das pessoas

com deficiência desde os primeiros registros históricos. No subitem seguinte, este caminhar será

feito na História do Brasil, através da contribuição recente de Figueira (2008).

1.1.1 – Panorama histórico geral: a epopéia ignorada

A trajetória histórica das pessoas com deficiência deve se iniciar pela constatação de que

este grupo populacional, entendido como indivíduos com algum tipo de limitação física, sensorial

ou cognitiva, sempre existiu. Como afirma Silva (1987): “anomalias físicas ou mentais,

deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências

incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria

humanidade” (Silva, 1987, p. 21). Esta afirmação, que pode parecer óbvia ou desnecessária, é

válida no sentido de reconhecer que nos grupos humanos, desde o mundo primitivo até os dias

atuais, sempre houve pessoas que nasceram com alguma limitação ou durante a vida deixaram de

andar, ouvir ou enxergar. Tragicamente, durante muitos séculos, a existência destas pessoas foi

ignorada por um sentimento de indiferença e preconceito nas mais diversas sociedades e culturas.

Pode ser feito um exercício com o intuito de retroceder no tempo e imaginar como viviam

pessoas com deficiência desde o mundo primitivo, utilizando-se também de registros históricos

que fizeram menção a essas pessoas. Silva (1987) realizou essa tarefa de maneira exemplar,

apresentado detalhadamente uma série de fatos e personagens que evidenciam a existência de

indivíduos com deficiência ao longo da história.

Iniciando seu percurso pelo mundo primitivo – relativo aos períodos conhecidos como

Paleolítico, Mesolítico e Neolítico – correspondentes, estes dois últimos, há 10.000 anos antes da

Era Cristã até 2.500 a.C, o autor observa que: “seja pelos dedos amputados, que podem ser

notados nos desenhos das cavernas habitadas, seja pelo exemplo de incrível calosidade óssea com

grande desvio da linha do fêmur e evidente encurtamento da perna, tivemos na Pré-História

pessoas deficientes que sobreviveram por muitos anos” (Silva, 1987, p. 34). A paleopatologia,

especialidade que estuda os ossos pré-históricos, afirma com convicção que doenças

incapacitantes e deficiências físicas são tão antigas quanto a própria vida sobre a Terra.

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Ao mesmo tempo, é razoável supor que praticamente a totalidade das crianças nascidas

com algum tipo de deficiência não sobrevivia, pois não havia condições de assistência

necessárias (o que também ocorrerá durante muitos séculos seguintes). Fazendo conjecturas sobre

esse período primitivo, o autor assinala que, numa caçada ou conflito entre diferentes grupos ou

tribos, adultos poderiam se machucar e sobreviver com seqüelas físicas. Relata-se então que

foram encontrados urnas e vasos provenientes da Era Neolítica que continham ossos com

evidentes sinais de deformidade física, comprovando a sobrevivência de indivíduos com essas

limitações.

Não é possível saber de que maneira sobreviveram e de quais atividades se ocuparam

depois de adquirir uma limitação física. Porém, o autor sugere que, além da caça e da guerra, o

lento progresso da humanidade e o gradativo domínio da natureza proporcionaram certas funções

como os fabricantes de cestos ou armadilhas, os preparadores de peles para vários fins, os

fabricantes de vasos para armazenamento de água, entre outras. Estas funções devem ter

permitido o trabalho, de forma permanente ou temporária, das pessoas com algum tipo de

limitação física. É evidente que esse é um exercício de suposição, até porque existem dúvidas e

incertezas quanto ao meio de vida do homem primitivo de maneira geral.

A partir de 2.500 a.C., com o aparecimento da escrita no Egito Antigo, há indicativos

mais seguros quanto à existência e às formas de sobrevivência de indivíduos com deficiência.

Dentre os povos da chamada História Antiga, os egípcios são aqueles cujos registros são mais

remotos. Os primeiros indícios da cultura egípcia datam de 5.000 a.C., enquanto que os da cultura

grega aparecem bem depois (2.000 a.C). A cultura romana, por sua vez, apenas floresceu a partir

do século VIII a.C. As razões pelas quais houve uma evolução maior e mais rápida do povo

egípcio estão ligadas, fundamentalmente, à grande fertilidade das terras banhadas por rios

generosos naquela região.

Se de um lado os ossos pré-históricos nos asseguram quanto à existência de males ou

situações incapacitantes nos muitos milênios de vida do homem primitivo, os remanescentes das

múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito seguros não só da

antiguidade de alguns males, como também das diferentes formas de tratamento que

possibilitaram a sobrevivência de indivíduos com algum grau de limitação física, intelectual ou

sensorial.

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O autor cita, por exemplo, a Escola de Anatomia da cidade de Alexandria, que existiu no

período de 300 a.C. Dela ficaram registros da medicina egípcia para o tratamento de males que

afetavam os ossos e os olhos das pessoas adultas. Existem até passagens históricas que fazem

referência aos cegos do Egito e ao seu trabalho em atividades artesanais. As famosas múmias do

Egito, que permitiam a conservação dos corpos por muitos anos, possibilitaram o estudo dos

corpos de faraós e nobres do Egito que apresentavam distrofias e limitações físicas, como Sipthah

(séc. XIII a.C.) e Amon (séc. XI a.C.). Dada a fertilidade das terras e as diferentes possibilidades

de trabalho, não é difícil imaginar alternativas para ocupação das pessoas com deficiência no

Egito Antigo.

Antes de tratar da Grécia e da Roma Antiga, Silva (1987) faz menção aos hebreus,

destacando que: “para os antigos hebreus, tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou

mental, e mesmo qualquer deformação que menor que fosse, indicavam certo grau de impureza

ou de pecado” (Silva, 1987, p. 82). Interessante a relação da deficiência com a religião, que se

manifesta de formas diferentes e mesmo contraditórias ao longo da história, misturando

sentimentos como a caridade, a rejeição, a solidariedade e a culpa. Como veremos, o

Cristianismo teve papel fundamental na “humanização” ou não-rejeição das pessoas com

deficiência (embora proibisse, e continue impedindo, o exercício do sacerdócio pelas mesmas).

Na Grécia Antiga, particularmente em Esparta, cidade-estado cuja marca principal era o

militarismo, as amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com freqüência no

campo de batalha. Dessa forma, identifica-se facilmente um grupo de pessoas que adquiriu uma

deficiência e permaneceu vivo. De maneira similar, o autor cita registros sobre a Grécia que

mostram a existência de indivíduos civis que, por doenças congênitas ou adquiridas, sofreram

seqüelas de ordem física, sensorial ou cognitiva. Assim sendo, “na História Grega existem

citações relativas à assistência destinada a pessoas deficientes que são muito mais claras e

específicas do que aquelas encontradas em culturas anteriores, contemporâneas ou posteriores”

(Silva, 1987, p. 98).

O costume espartano de lançar crianças com deficiência em um precipício se tornou

amplamente conhecido por aqueles que estudaram este tema numa perspectiva histórica. De

acordo com registros existentes, de fato, o pai de qualquer recém-nascido das famílias conhecidas

como homoio (ou seja, “os iguais”) deveria apresentar seu filho a um Conselho de Espartanos,

independentemente da deficiência ou não. Se esta comissão de sábios avaliasse que o bebê era

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normal e forte, ele era devolvido ao pai que tinha a obrigação de cuidá-lo até os sete anos; depois

o Estado tomava para si esta responsabilidade e dirigia a educação da criança para a arte de

guerrear. No entanto, se a criança parecia “feia, disforme, franzina”, indicando algum tipo de

limitação física, os anciãos ficavam com a criança e, em nome do Estado, a levavam para um

local conhecido como Apothetai (que significa “depósitos”). Tratava-se de um abismo onde a

criança era jogada, “pois tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a

república que ela vivesse, visto que desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser

forte, sã e rija durante toda a vida” (Licurgo de Plutarco apud Silva, 1987, p. 105).

Esta prática deve ser entendida, naturalmente, de acordo com a realidade histórica e social

da época. É claro que hoje nos parece algo repugnante e cruel, mas na cidade-estado de Esparta,

no ano de 400 a.C., tal conduta “justificava-se” para o bem da própria criança e para a

sobrevivência da república, onde a maioria dos cidadãos deveria se tornar guerreiros. Em outros

estratos sociais que não os homoio esse tipo de restrição não ocorria, podendo haver a

sobrevivência de uma criança “defeituosa”, como no caso dos periecos, dedicados aos trabalhos

da lavoura e do gado.

Também na Grécia Antiga, em Atenas, as práticas e costumes em relação aos deficientes

eram distintos. Aristóteles, um dos grandes filósofos gregos, que viveu entre 384 e 322 a.C.,

abordou explicitamente o tema quando escreveu para a formulação da Constituição de Atenas.

Dirigindo-se aos membros do Conselho Ateniense, afirmou:

“(...) o Conselho passa agora a examinar o problema dos deficientes. Existe, de fato, uma lei que estabelece que todo ateniense cujos bens não ultrapassarem três minas e cujo corpo

esteja mutilado ao ponto de não lhe permitir qualquer trabalho, seja examinado pelo

Conselho e que seja concedido a cada um deles, às expendas do Estado, dois óbulos por

dia para sua alimentação. E existe um tesoureiro dos deficientes, designado para tal”. (Aristóteles apud Silva, 1987, p. 118).

Muito provavelmente esta é a primeira referência história a uma “política pública” voltada

para pessoas com deficiência. Interessante notar a proposta de análise caso-a-caso para concessão

do “benefício” (para alimentação), além do critério de renda na definição do mesmo (priorizando

os deficientes carentes). A idéia original do Conselho Ateniense era atender aos mutilados de

guerra, mas esse benefício teria sido gradativamente estendido a outras pessoas portadoras de

deficiência ou de incapacidade para o trabalho, independentemente da causa do problema.

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Depois da queda de Esparta, em 371 a.C., as tradições atenienses passaram a ser

difundidas e aplicadas em toda Grécia Antiga. Nessa transição para uma visão mais humanista e

solidária com relação à pessoa com deficiência, conforme já observamos, o Cristianismo teve

papel fundamental. Sob sua influência, nos primeiros séculos da era Cristã, na Grécia, foram

criados lares para deficientes (paramonaria), lares para pessoas cegas (tuflokoméia) e instituições

para pessoas com doenças incuráveis (arginoréia). Mas antes de avançarmos nesse percurso

histórico, vale à pena fazer menções a Roma Antiga.

Diferentemente da Grécia Antiga e do Egito, no que diz respeito a pessoas com

deficiência, não é fácil localizar referências precisas ao tema na Roma Antiga. Mas existem

citações, textos jurídicos e mesmo obras de arte que aludem a essa população. Assim como

ocorria em Esparta, o direito Romano não reconhecia a vitalidade de bebês nascidos

precocemente ou com características “defeituosas”. Entretanto, o costume não se voltava,

necessariamente, para a execução sumária da criança (embora isso também ocorresse). De acordo

com o poder paterno vigente entre as famílias nobres romanas, havia uma alternativa para os

pais: deixar as crianças nas margens dos rios ou locais sagrados, onde eventualmente pudessem

ser acolhidas por famílias da plebe (escravos ou pessoas empobrecidas).

A utilização comercial de pessoas com deficiência para fins de prostituição ou

entretenimento das pessoas ricas manifesta-se, talvez pela primeira vez, na Roma Antiga.

Segundo o autor: “cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas

nascidos com má formação eram também, de quando em quando, ligado a casas comerciais,

tavernas e bordéis; bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes

humilhantes” (Silva, 1987, p. 130). Tragicamente, esta prática repetiu-se várias vezes na história,

não só em Roma.

O advento do Cristianismo significou, em diferentes aspectos, uma mudança na forma

pela qual as pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela sociedade em geral. É claro que,

como alertamos no início desse item, esse não é um processo linear e homogêneo, de maneira que

estamos apenas apresentando algumas tendências gerais, sem ter a pretensão de definir com a

exatidão histórica, a cada momento, a situação das pessoas com deficiência (que é um grupo

heterogêneo entre si).

Feita esta ressalva, podemos afirmar que, de maneira geral, a mudança acima referida

deveu-se ao próprio conteúdo da doutrina cristã, que foi sendo difundida a partir de um pequeno

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grupo de homens simples, num momento em que o Império Romano estava com seu poderio

militar e geopolítico consolidado. Entretanto, Silva chama atenção para o “lamentável estado

moral da sociedade romana”, especialmente da nobreza, que demonstrava total falta de

preocupação com a proliferação de doenças e o crescimento da pobreza e da miserabilidade

dentre boa parte da população. Nesse contexto, vai ganhando força o conteúdo da doutrina cristã,

voltado para a caridade, humildade, amor ao próximo, para o perdão das ofensas, para a

valorização e compreensão da pobreza e da simplicidade da vida. Estes princípios encontraram

respaldo na vida de uma população marginalizada e desfavorecida, dentro da qual estavam

aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais.

A minoria cristã foi, assim, crescendo e recebendo novos adeptos, sendo que já no século

III a doutrina era majoritariamente adotada na Europa. A solidificação do Cristianismo trouxe um

novo e mais justo posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a importância

devida a cada criatura como um ser individual e criado por Deus. Dessa nova perspectiva teriam

se beneficiado grupos anteriormente marginalizados, como os portadores de deficiência,

considerados por muitos, até então, como pecadores ou pagadores de malefícios feitos em vidas

passadas.

Como vimos, embora não fosse uma “obrigação legal” como em Esparta na Grécia

Antiga, havia também em Roma a tradição e o costume de eliminação sumária, ao nascer, de

crianças com defeitos físicos. No século IV, por influência do Cristianismo, o Imperador

Constantino editou, no ano 315, uma lei que considerava este costume como um crime

(“parricídio”). Esta determinação ou lei do Imperador teria sido publicada em todas as cidades da

Itália e da Grécia, no intuito de disseminar a idéia de que não era moralmente correta a

eliminação de filhos nascidos com deficiência.

Ainda sob a influência cristã e seus princípios de caridade e amor ao próximo, a partir do

século IV começam a surgir registros mais freqüentes de hospitais voltados para o atendimento

dos pobres e marginalizados, dentre os quais indivíduos com algum tipo de deficiência. No

século seguinte, o concílio da Calcedônia (em 451) aprovou a diretriz que determinava

expressamente aos bispos e outros párocos a responsabilidade de organizar e prestar assistência

aos pobres e enfermos das suas comunidades. Desta forma, foram criadas instituições de caridade

e auxílio em diferentes regiões, como o hospital para pobres e incapazes na cidade de Lyon,

construído pelo rei franco Childebert no ano de 542.

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Interessante notar que, ao mesmo tempo em que avança um tratamento, ao menos,

caridoso em relação aos deficientes, a Igreja Católica continuava reafirmando a impossibilidade

de que eles atuassem como padres. Segundo historiadores, “já nos chamados Cânones

Apostolorum, cuja antiguidade todos desconhecem e que, no entanto, foram elaborados no correr

dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles

candidatos que tinham certas mutilações ou deformidades” (Silva, 1987, p. 166). Gelásio I, papa

que reinou entre 492 a 496, reafirmou a orientação contrária à aceitação de sacerdotes com

deficiência ao afirmar que os postulantes não poderiam ser analfabetos nem ter “alguma parte do

corpo incompleta ou imperfeita”.

A justificativa oficial da Igreja Católica buscou demonstrar que as restrições ao

sacerdócio visavam um benefício maior da própria Igreja e não por considerar as pessoas com

deficiência como indignas ou manchadas pelo pecado. De qualquer forma, fica evidente certa

contradição, embora os dogmas que impediam (e continuam impedindo até o hoje) o sacerdócio

não tratassem especificamente dos deficientes (se aplicam também às mulheres, por exemplo).

Deve-se registrar, porém, que se a deficiência for adquirida por um pároco ao longo da vida, a

Igreja usa de benevolência e em geral não impede o sacerdote de exercer suas funções básicas.

Em síntese, nos primeiros séculos da Era Cristã houve, pelos registros históricos, mesmo

com as restrições acima, uma mudança no olhar em relação não só aos deficientes, mas também

às populações humildes e mais pobres. Os hospitais e centros de atendimento aos carentes e

necessitados continuaram a crescer, impulsionados muitas vezes pelo trabalho dos bispos e das

feiras nos mosteiros.

Avançando na nossa trajetória histórica6, o período conhecido como Idade Média, entre os

séculos V e XV, traz algumas informações e registros (preocupantes) sobre pessoas com

deficiência. Continuaram a existir, na maioria das vezes controlados e mantidos por senhores

feudais, locais para o atendimento de doentes e deficientes. As referências históricas enfatizam,

porém, o predomínio de concepções místicas, mágicas e misteriosas sobre a população com

deficiência. Além disso, é preciso lembrar que o crescimento dos aglomerados urbanos ao longo

desse período criou dificuldades para a manutenção de patamares aceitáveis de higiene e saúde.

6 Na apresentação da “epopéia ignorada” das pessoas com deficiência, Silva (1987) trata também do Império Bizantino e faz referências ao Oriente. Nesse trabalho, optamos por fazer esse panorama histórico somente a partir

do referencial Ocidental, mais próximo da nossa realidade.

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Durante muitos séculos, os habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente receio

das epidemias ou doenças mais sérias.

As incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas eram

considerados, quase sempre, como sinais da ira divina, taxados como “castigo de Deus”. A

própria Igreja Católica adota comportamentos discriminatórios e de perseguição, substituindo a

caridade pela rejeição aqueles que fugiam de um “padrão de normalidade”, seja pelo aspecto

físico ou por defenderem crenças alternativas, em particular no período da Inquisição nos séculos

XI e XII. Hanseníase, peste bubônica, difteria e outros males, muitas vezes incapacitantes,

disseminaram-se pela Europa Medieval. Muitas pessoas que conseguiram sobreviver, mas com

sérias seqüelas, passaram o resto dos seus dias em situações de extrema privação e quase que na

absoluta marginalidade.

Conforme afirma o autor:

“(...) a crença generalizada nas maldições e nos feitiços, na existência das doenças e das

deformidades físicas ou mentais como indícios da ira de Deus, ou como resultado da atuação de maus espíritos e do próprio demônio, sob o comando direto das bruxas, era às

vezes levada a extremos. Acreditava-se, por exemplo, que a epilepsia era conseqüência de

uma possessão instantânea por um espírito maligno e o remédio era o exorcismo por ritual

ou pela tortura” (Silva, 1987, p.215).

O costume e a prática de eliminar crianças que nasciam com membros disformes

difundiu-se novamente, principalmente porque esta condição passou a estar diretamente

associada às crenças negativas e de punição divina. Aqueles que sobreviviam eram, na sua

maioria, ridicularizados ou desprezados. Existem vários registros de anões e corcundas que

estiveram nesta situação ao longo do período medieval. Ao mesmo tempo, anões e corcundas,

principalmente no final da Idade Média, passaram a ter acesso aos ambientes da nobreza e dos

senhores feudais, pois eram vistos como pessoas que traziam sorte e afastavam os demônios,

“podendo inclusive participar de todas as conversas e falar o que bem entendessem, pois

supostamente eram tolos, divertidos e inconseqüentes” (Silva, 1987, p. 216).

Essa conotação diferente e misteriosa dada aos deficientes durante boa parte da Idade

Média tinha, sem dúvida, com os olhos de hoje, um caráter vexatório e cruel. De maneira geral,

acreditava-se que um corpo deformado somente poderia abrigar uma mente também deformada.

Assim, dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios para garantir sua

sobrevivência de maneira digna, restou ao portador de defeitos físicos ou sensoriais a posição de

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elemento marginalizado e o recurso à esmola diária para com isso ganhar seu sustento. A imagem

de pedintes pobres, com deficiência física ou com suas feridas à mostra, é recorrente em filmes

ou livros que retratam a Europa Medieval.

No final do século XV, a questão das pessoas com deficiência estava completamente

integrada ao contexto de pobreza e marginalidade em que se encontrava grande parte da

população, não só os deficientes. É claro que exemplos de caridade e solidariedade para com eles

também existiram durante a Idade Média, mas as referências gerais desta época situam pessoas

com deformidades físicas, sensoriais ou mentais na camada de excluídos, pobres, enfermos ou

mendigos.

O período conhecido como “Renascimento” não resolveu, naturalmente, esta situação de

maneira automática. Mas, como veremos a seguir, marca uma fase mais esclarecida da

humanidade e das sociedades em geral, com o advento de direitos reconhecidos como universais,

a partir de uma filosofia humanista e com o avanço da ciência.

Antes de avançarmos, porém, vale registrar que a situação das pessoas com deficiência

visual, desde a Idade Média, revela uma característica particular no sentido do agrupamento

destes indivíduos. No ano de 1337, na cidade de Pádua, na Itália, surgia a Congregação de Santa

Maria dos Cegos. A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações foi algo

freqüente, muitas vezes realizado por intermédio ou com o apoio da Igreja Católica. São

inúmeros os registros de sacerdotes que atuaram nesse sentido, sendo que os cegos tinham, por

exemplo, autorização expressa para esmolar nas escadarias e nas portas das igrejas, como

também podiam vender grinaldas e flores nesses recintos. Percebe-se, assim, que a relação entre

deficiência e mendicância ou “trabalho informal”, facilmente percebida nos dias de hoje, é muito

antiga e decorre da condição de pobreza associada à deficiência7.

Entre os séculos XV e XVII, no mundo europeu cristão, ocorreu uma paulatina e

inquestionável mudança sócio-cultural, cujas marcas principais foram o reconhecimento do valor

humano, o avanço da ciência e a libertação quanto a dogmas e crendices típicas da Idade Média.

De certa forma, o homem deixou de ser um escravo dos poderes naturais ou da ira divina. Esse

novo modo de pensar, revolucionário sob muitos aspectos, “alteraria a vida do homem menos

privilegiado também, ou seja, a imensa legião de pobres, dos enfermos, enfim, dos

7 Na verdade, sem desconsiderar a pobreza ou mesmo a miserabilidade em que podem estar inseridas as pessoas com deficiência e sua família, o recurso à mendicância pode ser algo apelativo ou até oportunista em função do

sentimento de pena e caridade que a deficiência provoca.

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marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemas

físicos, sensoriais ou mentais” (Silva, 1987, p. 226).

A partir desse momento, não só para os cegos, fortalece-se a idéia de que o grupo de

pessoas com deficiência deveria ter uma atenção própria, não sendo relegado apenas à condição

de uma parte integrante da massa de pobres ou marginalizados. Isso se efetivou através de vários

exemplos práticos e concretos. No século XVI foram dados passos decisivos no atendimento às

pessoas portadoras de deficiência auditiva que, até então, via de regra, eram consideradas como

“ineducáveis”, quando não possuídas por maus espíritos.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, em diferentes países europeus, foram sendo

construídos locais de atendimento específico para pessoas com deficiência, fora dos tradicionais

abrigos ou asilos para pobres e velhos. A despeito das malformações físicas ou limitações

sensoriais, essas pessoas, de maneira esporádica e ainda tímida, começaram a ser valorizadas

enquanto seres humanos. Entretanto, além de outras práticas discriminatórias, mantinha-se o

bloqueio ao sacerdócio desses indivíduos pela Igreja Católica.

Chegando ao século XIX, interessante registrar a forma como o tema das pessoas com

deficiência era tratado nos EUA. Neste país, já em 1811, foram tomadas providências para

garantir moradia e alimentação a marinheiros ou fuzileiros navais que viessem a adquirir

limitações físicas. Depois da Guerra Civil norte-americana foi construído, na Filadélfia, em 1867,

o Lar Nacional para Soldados Voluntários Deficientes, que posteriormente teria outras unidades8.

Na Europa do século XIX, também surgiam, cada vez mais, locais específicos para o

atendimento dos cegos, surdos ou mutilados de guerra. Essas novas organizações não se

destinavam apenas à assistência ou à proteção desses indivíduos, mas realizavam também estudos

e pesquisas para definir formas mais adequadas de atuação com esse grupo de pessoas. Embora

no século XIX ainda não se pensasse na integração da pessoa com deficiência à sociedade aberta:

“ela passou a ser vista como um ser humano (infeliz, desafortunado e coitado para aquela

época, é evidente) dono de seus sentimentos e capaz de viver ou de pretender levar uma

8 Interessante registrar que, depois de praticamente um século desde a criação deste primeiro centro de atendimento para mutilados de guerra, em 1972, em Berkeley, na Califórnia, veteranos da Guerra do Vietnã se rebelam contra a

tutela e institucionalização a que eram submetidos e criam o movimento de vida independente.

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vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso. Para um bom volume de casos

a questão acabava restringindo-se à redução de uma situação de miserabilidade a um

mínimo suportável, dando ao indivíduo atingido um restante de vida mais tranqüilo, desde que possível” (Silva, 1987, p. 263).

Em alguns países nórdicos, a partir da segunda metade do século XIX, surgiram

preocupações e iniciativas quanto ao potencial produtivo das pessoas com deficiência. No ano de

1872, na Dinamarca, a Sociedade e Lar para Deficientes (Society and Home for Cripples) foi uma

das pioneiras, ao ampliar a linha de atendimento para além das questões médicas, incentivando o

trabalho manual e cooperativo entre os pacientes com deficiência. A idéia era que, trabalhando no

artesanato ou na produção de bens simples, essas pessoas poderiam encontrar uma maneira

autônoma para, pelo menos, garantir o seu sustento.

A assistência e a qualidade do tratamento dado não só para as pessoas com deficiência

como para população em geral tiveram um substancial avanço ao longo do século XX. No caso

das pessoas com deficiência, o contato direto com elevados contingentes de indivíduos com

seqüelas de guerra exigiu uma gama variada de medidas. A atenção às crianças com deficiência

também aumentou, com o desenvolvimento de especialidades e programas de reabilitação

específicos. É fato notório que nos países europeus do pós II Guerra Mundial formou-se o Estado

de Bem-Estar Social, cujos programas e políticas incluíam também pessoas com deficiência, em

particular as vítimas ou mutilados de guerra.

Mas, já no início do século XX, entre 1902 e 1912, na Europa, existem registros da

existência de pelo menos vinte instituições destinadas ao exclusivo atendimento de pessoas que

apresentavam algum tipo de deficiência. As primeiras campanhas para arrecadação de fundos e

recursos para o auxílio dos portadores de deficiência datam deste período, num movimento

associado a campanhas do mesmo tipo voltadas para proteção e atendimento básico de pessoas

pobres, idosos ou crianças carentes.

Nos EUA, em 1904, realizou-se na cidade de Saint Louis o primeiro congresso mundial

destinado a estudar todos os problemas relacionados à educação e saúde das pessoas surdas.

Também no início do século XX, o Estado de Minessota é pioneiro em fazer uma dotação

orçamentária específica para a assistência de “crianças defeituosas”. Na cidade de Boston, em

1907, a Goodwill Industries desenvolve um plano de inserção profissional de pessoas com

deficiência física, que trabalhavam no recondicionamento de roupas, sapatos, móveis e outros

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artigos usados. O projeto previa que estes artigos fossem revendidos a preços menores, com os

recursos revertidos para os trabalhadores com deficiência.

No período entre Guerras é característica comum nos países europeus – Grã-Bretanha e

França, principalmente, e também nos EUA – o desenvolvimento de programas, centros de

treinamento e assistência para veteranos de guerra. Na Inglaterra, por exemplo, já em 1919 foi

criada a Comissão Central da Grã-Bretanha para o Cuidado do Deficiente. Depois da II Guerra,

esse movimento se intensificou no bojo das mudanças promovidas nas políticas públicas pelo

Welfare State. Dado o elevado contingente de amputados, cegos e outras deficiências físicas (e

transtornos mentais) o tema ganha relevância política no interior dos países e também

internacionalmente, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). A “epopéia” das

pessoas com deficiência passaria a ser objeto do debate público e ações políticas, assim como

outras questões de relevância social, embora em ritmos distintos de um país para o outro.

Em suma, nesse panorama histórico buscamos resgatar elementos para uma visão geral

acerca da temática das pessoas com deficiência. Da execução sumária ao tratamento humanitário

passaram-se séculos de história, numa trajetória irregular e heterogênea entre os países (e entre as

próprias pessoas com deficiência). Apesar disso, é possível visualizar uma tendência de

humanização desse grupo populacional. É verdade que, até nos dias de hoje, existem exemplos de

discriminação e/ou maus-tratos, mas o amadurecimento das civilizações e o avanço dos temas

ligados à cidadania e aos direitos humanos provocaram, sem dúvida, um novo olhar em relação às

pessoas com deficiência9.

1.1.2 – Caminhando no Silêncio: pessoas com deficiência na História do Brasil

As doenças graves, os acontecimentos trágicos ou fatalidades, os mais variados

infortúnios e, naturalmente, o nascimento de crianças com deficiência, como vimos nessa breve

trajetória histórica, sempre ocorreram. Essa verdade foi válida em diferentes períodos históricos e

regiões, e não poderia ser diferente quando consideramos o processo que levou à formação do

Brasil. Sejam para os índios nativos, escravos africanos ou colonizadores europeus, colocou-se,

9 Neste trabalho não tivemos a oportunidade de pesquisar a situação das pessoas com deficiência em países com alto

grau de subdesenvolvimento e pobreza, como em algumas regiões da África, ou, por exemplo, países envolvidos em

confrontos militares, como o Iraque ou o Afeganistão. Tais contextos extremos certamente trazem dificuldades adicionais para as pessoas com deficiência, obrigadas a conviver com situações desumanas e não muito diferentes

das que viviam aqueles com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas em períodos remotos da nossa História.

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de alguma forma, a questão das pessoas que adquiriram ou nasceram com algum tipo de

limitação física, sensorial ou intelectual.

Os arquivos da nossa História registram referências variadas a “aleijados”, “enjeitados”,

“mancos”, “cegos” ou “surdos-mudos”. No entanto, assim como ocorria no continente europeu, a

quase totalidade dessas informações ou comentários está diluída nas menções relativas à

população pobre e miserável. Ou seja, também no Brasil, a pessoa deficiente foi considerada por

vários séculos dentro da categoria mais ampla dos “miseráveis”, talvez o mais pobre entre os

pobres (Silva, 1987). Ilustrativa a observação deste autor:

“(...) os mais afortunados que haviam nascido em berço de ouro ou pelo menos

remediado, certamente passaram o resto dos seus dias atrás dos portões e das cercas vivas das suas grandes mansões, ou então, escondidos, voluntária ou involuntariamente, nas

casas de campo ou fazendas de suas famílias. Essas pessoas deficientes menos pobres

acabaram não significando nada em termos da vida social ou política do Brasil,

permanecendo como um peso para suas respectivas famílias” (Silva, 1987, p. 273).

Tanto na população indígena como na de escravos africanos, registram-se referências a

pessoas com deficiência. Na primeira, tal condição, quando congênita, recebia diferentes

tratamentos dependendo dos costumes de cada tribo, indo desde a execução sumária (mais

freqüentemente) até a supervalorização deste indivíduo. Dentre os escravos, inúmeras vezes a

situação de deficiência decorreu dos castigos físicos a que eram submetidos.

Em 1835, teria ocorrido a primeira tentativa de legislação para atender pessoas com

deficiência no país. A idéia, que não foi concretizada, encontra-se nos anais da câmara dos

deputados do Rio de Janeiro. Trata-se de um projeto de lei datado de 29 de Agosto de 1835,

assim redigido: “art. 1 – Na Capital do Império, como nos principais lugares de cada Província,

será criada uma classe para surdos-mudos e para cegos”. A autoria é do deputado Cornélio

Ferreira França, cuja motivação é desconhecida (supõe-se que o deputado tinha na família

alguém com deficiência auditiva ou visual).

Todas as informações até aqui apresentadas tiveram como fonte o clássico trabalho de

Otto Marques da Silva. Esse livro foi escrito em 1987, período em que prevalecia o “paradigma

da integração”, segundo o qual a pessoa com deficiência precisava ser reabilitada e preparada

para, a partir deste esforço individual, inserir-se ou reintegrar-se na sociedade. Em 2008, o

historiador Emílio Figueira produz a obra “Caminhando no Silêncio – Uma introdução à

trajetória das pessoas com deficiência na história do Brasil”. Na apresentação do seu livro, o

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autor faz referência ao trabalho de Otto Marques da Silva e chama atenção para o fato de que o

tema não tenha sido aprofundado nesses vinte anos, destacando também a importância de sua

retomada.

Neste subitem, além de “emprestar” o sugestivo título (assim como fizemos no anterior),

vamos utilizar o livro de Figueira (2008) como referência fundamental. Trata-se de uma obra

recém concluída e já elaborada na vigência do “paradigma da inclusão”, que enfatiza a

importância de uma sociedade acessível para além do empenho e características individuais como

fator preponderante na inclusão social das pessoas com deficiência. Figueira foi muito feliz ao

escolher a epígrafe do seu livro, que tomamos a liberdade de reproduzir abaixo:

“Para compreender qualquer fenômeno humano complexo, temos que reconstruir suas

formas mais primitivas e simples e acompanhar seu desenvolvimento até o estado atual –

em outras palavras, estudar-lhe a história”. E. Durkheim (grifos nossos; Os pensadores. São Paulo; Abril Culturas, 1983).

É exatamente nesse sentido que estamos desenvolvendo o capítulo 1 dessa tese. Como

alertamos no início, a temática da deficiência requer uma contextualização, isto é, não pode ser

tomada de maneira isolada. Não pretendemos com isso supervalorizar este tema, mas apenas

reiterar seu caráter complexo e ainda relativamente pouco estudado. Tanto é assim que, na

apresentação do seu trabalho, Figueira (2008) assinala que ninguém voltou a pesquisar a questão

da pessoa com deficiência na história brasileira depois da publicação de Epopéia Ignorada em

meados dos anos 80.

Dito isto, esse autor propõe que seu livro marque apenas uma introdução à história das

pessoas com deficiência no Brasil, definindo também sua tese principal, com a qual concordamos

integralmente: “(...) as questões que envolvem as pessoas com deficiência no Brasil – por

exemplo, mecanismos de exclusão, políticas de assistencialismo, caridade, inferioridade,

oportunismo, dentre outras – foram construídas culturalmente” (grifos nossos. Figueira, 2008,

p.17). Assim sendo, importante termos em mente que “questões culturais demoram a ser

revertidas”, mas este é o movimento que tem sido priorizado pelas pessoas com deficiência nas

últimas décadas.

Tendo em vista essa perspectiva geral, assim como fez Silva (1987) em relação à História

Geral, Figueira (2008) inicia seu percurso com os primeiros ecos históricos da formação do

Brasil. Através deles é possível identificar aspectos importantes, como a política de exclusão ou

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rejeição das pessoas com algum tipo de deficiência praticada pela maioria dos povos indígenas;

os maus-tratos e a violência como fatores determinantes da deficiência nos escravos africanos; e

como, desde os primeiros momentos da nossa história, consolidou-se a associação entre

deficiência e doença.

Sobre o primeiro aspecto, são reproduzidos relatos históricos obtidos em especial por

antropólogos que atestam condutas, práticas e costumes indígenas que significavam a eliminação

sumária de crianças com deficiência ou a exclusão daqueles que viessem a adquirir algum tipo de

limitação física ou sensorial. Mais uma vez cabe destacar que não podemos julgar tais práticas

com os olhos de hoje, o que levaria a uma análise pejorativa e até mesmo preconceituosa em

relação à população indígena.

Feita essa observação, interessante notar que uma das provas da eliminação, ao nascer,

das crianças com deficiência nas tribos é a absoluta inexistência de referências a índios com

algum tipo de limitação. Ao contrário, praticamente a totalidade dos registros enaltece os

atributos físicos e de saúde dessa população. Na verdade, mesmo com o costume da execução

sumária, seria muito difícil imaginar a sobrevivência de crianças com deficiência nas condições

de vida da população indígena. Aqueles que adquiriam ferimentos de guerra ou durante uma

caçada poderiam até sobreviver, mas em geral eram desvalorizados pelo restante da tribo e,

“quando desenganados pelo pajé, o indígena via-se abandonado à própria sorte e morria sem

assistentes ao redor. Nu, como estava, ou envolto em panos de algodão, era enterrado de cócoras,

a cabeça entre os joelhos, de frente para o nascente” (Santos Filho apud Figueira, 2008, p.24).

Dentre as populações indígenas que existiam no território que viria a ser o Brasil, parece

ter predominado, portanto, uma prática de exclusão das crianças e abandono daqueles com

deficiência. Tais costumes não diferem muito daqueles também observados em outros povos da

História Antiga e Medieval, onde a deficiência, principalmente quando ocorria no nascimento de

uma criança, “não era vista com bons olhos”, mas sim entendida como um mau sinal, castigo dos

deuses ou de forças superiores.

Nos primeiros séculos após a descoberta das terras no novo continente, foi marcante a

presença dos jesuítas e suas missões catequizadoras. Através de registros da época, em particular

das doenças e suas conseqüências nas pessoas, é possível presumir a existência de pessoas com

deficiências congênitas ou adquiridas entre os assistidos pelos jesuítas. O autor destaca as cartas

de José de Anchieta (1534-1597), jesuíta e escritor espanhol, que relatou a existência de alguns

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poucos “cegos, surdos, mudos e coxos” dentre a incipiente população da colônia portuguesa na

América no século XVI.

As crendices e superstições associadas às pessoas com deficiência continuaram a se

reproduzir ao longo da história brasileira. Assim como os curandeiros indígenas, os “negro-

feiticeiros” também relacionavam o nascimento de crianças com deficiência a castigo ou punição.

Na verdade, mesmo para doutrinas religiosas contemporâneas, até as deficiências adquiridas são

vistas como previamente determinadas por forças divinas ou espirituais. Não vamos explorar essa

questão, mas vale o registro desse aspecto que, de certa forma, é uma contradição com o

paradigma social e dos direitos humanos com que se tem tratado esse assunto.

Longe de ser um mal sobrenatural, a deficiência física ou sensorial nos negros escravos

decorreu, inúmeras vezes, dos castigos físicos a que eram submetidos. De início, a forma como se

dava o tráfico negreiro, em embarcações superlotadas e condições desumanas, já representava um

meio de disseminação de doenças incapacitantes, que deixavam seqüelas e não raro provocavam

a morte de um número considerável de escravos.

Os documentos oficiais da época não deixam dúvidas quanto à violência e crueldade dos

castigos físicos aplicados tanto nos engenhos de açúcar como nas primeiras fazendas de café. O

rei D. João V, por exemplo, em alvará de 03 de março de 1741, define expressamente a

amputação de membros como castigo aos negros fugitivos que fossem capturados. Uma

variedade de punições, do açoite à mutilação, eram previstas em leis e contavam com a permissão

(e muitas vezes anuência) da Igreja Católica. Talvez o número de escravos com deficiência só

não tenha sido maior porque tal condição representava prejuízo para o seu proprietário, que não

podia mais contar com aquela mão-de-obra.

A disseminação das doenças nos navios negreiros repetia-se nas senzalas em função de

condições insalubres e desumanas. Qual o destino dado aos escravos com deficiência, disformes

ou mutilados? Quase sempre eram abandonados, vivendo na miséria e recorrendo à esmola

sistemática ou, eventualmente, contando com a caridade alheia. Deve-se registrar que, depois da

Abolição em 1888, como nos ensina Florestan Fernandes (1965), este também foi o destino,

independentemente da deficiência, da imensa maioria dos negros. Esse fato, aliado a outras

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características da sociedade brasileira e do processo de formação do nosso mercado de trabalho,

ajuda a explicar a origem da exclusão social baseada na raça10

.

Os colonos portugueses, desde o momento em que chegaram ao território descoberto por

Cabral, sofreram com as condições climáticas, como o forte calor, além da enorme quantidade de

insetos. Estas características tropicais repercutiram na saúde e bem-estar dos europeus, sendo que

“algumas dessas enfermidades de natureza muito grave chegaram a levá-los a aquisição de

severas limitações físicas ou sensoriais” (Figueira, 2008, p. 55). Observando a formação da

população no Brasil Colonial, o historiador da medicina Licurgo Santos Filho acentua que: “tal e

qual como entre os demais povos, e no mesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de

deformidades congênitas ou adquiridas. Foram comuns os coxos, cegos, zambros e corcundas”

(Santos Filho apud Figueira, 2008, p. 56). As condições de tratamento da maioria das

enfermidades não eram adequadas e continuariam assim por várias décadas. O mesmo historiador

cita, por exemplo, a ocorrência de inúmeras amputações em função de cirurgias ou intervenções

precárias.

Já no século XIX, a questão da deficiência aparece de maneira mais recorrente em função

do aumento dos conflitos militares. A história registra uma série de levantes armados, como a

Setembrada e Novembrada (Pernambuco, 1831), a Revolta dos Malés (Bahia, 1835), a Guerra

dos Farrapos (Rio Grande do Sul, 1835-1845) e a Balaiada (Maranhão, 1850), além de conflitos

externos, como a Guerra do Paraguai (1864-1870). Segundo citações e cronistas da época, o

general Duque de Caixas externou ao Governo Imperial suas preocupações com os soldados que

adquiriam deficiência. Foi então inaugurado no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1868, o “Asilo

dos Inválidos da Pátria”, onde “seriam recolhidos e tratados os soldados na velhice ou os

mutilados de guerra, além de ministrar a educação aos órfãos e filhos de militares” (Figueira,

2008, p. 63). Apesar da intenção humanitária, as referências históricas expressam um quadro de

extrema precariedade no funcionamento da instituição durante o período colonial. Mesmo assim,

10 Na dissertação de mestrado, o autor teve a oportunidade de trabalhar questões de gênero e raça como dimensões da

desigualdade social brasileira. No momento da formação do mercado de trabalho nacional, com o advento do

trabalho assalariado, a população negra foi preterida ou teve uma assimilação precária e irregular em função do

legado da escravidão e da política imigratória (Fernandes, 1965). Mesmo na fase de crescimento econômico das

décadas de 50, 60 e 70, o acúmulo de “desvantagens competitivas” e a concentração da população negra em regiões

menos dinâmicas resultaram na permanência de grandes disparidades sócio-econômicas entre as populações brancas

e negras no país (Hasembalg, 1978). No período de baixo crescimento econômico entre 1980 e 2004, essas

disparidades não foram revertidas, com uma participação mais do que proporcional dos negros, aqueles que se declaram “pretos” ou “pardos” pela classificação do IBGE, nas faixas de pobreza e miserabilidade; além da

concentração das mulheres negras em ocupações mal remuneradas e de baixo prestígio social (Garcia, 2005).

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e certamente com alguma melhora nas condições de atendimento, o Asilo Inválidos da Pátria

permaneceu funcionando por 107 anos, somente sendo desativado em 1976.

O avanço da medicina ao longo do século XX trouxe consigo uma maior atenção em

relação aos deficientes. A criação dos hospitais-escolas, como o Hospital das Clínicas de São

Paulo, na década de 40, significou a produção de novos estudos e pesquisas no campo da

reabilitação. Nesse contexto, como não poderia ser diferente, havia uma clara associação entre a

deficiência e a área médica. Na verdade, ainda em meados do século XIX, com a criação do

Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854), ficava explícita uma relação entre doença e

deficiência que, sem exagero algum, permanece até os dias atuais (em que pese, como veremos, a

luta do movimento organizado das pessoas com deficiência a partir de 1981 pelo chamado

“modelo social” para tratar dessa questão, em oposição ao modelo “médico-clínico”).

O fato é que, ao longo de nossa história, assim como ocorreu em outros países, a

deficiência foi tratada em ambientes hospitalares e assistenciais. Ao estudar o assunto, os

médicos tornavam-se os grandes especialistas nessa seara e passavam a influenciar, por exemplo,

a questão educacional das pessoas com deficiência, tendo atuação direta como diretores ou

mesmo professores das primeiras instituições brasileiras voltadas para a população em questão.

O grau de desconhecimento sobre as deficiências e suas potencialidades, porém,

permaneceu elevado na primeira metade do século XX, o que se percebe pelo número

considerável de pessoas com deficiência mental tratadas como doentes mentais11

. A falta de

exames ou diagnósticos mais precisos resultou numa história de vida trágica para milhares de

pessoas nesta condição, internadas em instituições e completamente apartadas do convívio social.

Antes da existência das instituições especializadas, as pessoas com deficiência tiveram,

em grande medida, sua trajetória de vida definida quase que exclusivamente pelas respectivas

famílias. O Imperial Instituto dos Meninos Cegos (185412

), que citamos acima, marca o momento

a partir do qual a questão da deficiência deixou de ser responsabilidade única da família,

11 Mais adiante, ainda no capítulo 1, trataremos da questão da terminologia adequada para se referir às pessoas com

deficiência. Mas, sobre este aspecto, a confusão entre pessoas com deficiência mental (síndrome de down e outras

patologias identificadas desde o nascimento) e doença mental (esquizofrenia, psicose e outros distúrbios ocorridos já

na vida adulta) foi tão grande que, hoje em dia, utiliza-se o termo deficiência intelectual (ou cognitiva) para fazer

distinção quanto à doença mental. 12 Depois da proclamação da República, em 1890 a entidade passou a se chamar Instituto Nacional dos Cegos e, em

homenagem a Benjamin Constant, que foi diretor da instituição, foi rebatizado como Instituto Benjamin Constant (IBC), nome que permanece até hoje. O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) também existe atualmente,

tendo sido criado originalmente com o nome de Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, em 1856.

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passando a ser um “problema” do Estado. Mas não enquanto uma questão geral de política

pública, pois o que ocorreu foi a transferência desse problema para instituições privadas e

beneficentes, eventualmente apoiados pelo Estado. Estas instituições ampliaram sua linha de

atuação para além da reabilitação médica, assumindo a educação das pessoas com deficiência.

Até 1950, segundo dados oficiais, havia 40 estabelecimentos de educação especial somente para

deficientes mentais (14 para outras deficiências, principalmente a surdez e a cegueira).

Na década de 40, cunhou-se a expressão “crianças excepcionais”, cujo significado se

referia a “aquelas que se desviavam acentuadamente para cima ou para baixo da norma do seu

grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais” (Figueira, 2008, p.

94). O senso comum indicava que estas crianças não poderiam estar nas escolas regulares, do que

decorre a criação de entidades até hoje conhecidas, como a Sociedade Pestallozzi de São Paulo

(1952) e a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE do Rio de Janeiro (195413

).

Essas entidades, até hoje influentes, passaram a pressionar o poder público para que este incluísse

na legislação e na dotação de recursos a chamada “educação especial”, o que ocorre, pela

primeira vez, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 4.024, de 20 de dezembro

de 1961.

Felizmente, percebeu-se com o tempo que, assim como acontecia em outros países, as

pessoas com deficiência poderiam estar nos ambientes escolares e de trabalho gerais,

freqüentando também o comércio, bares, restaurantes ou prédios públicos, enfim, não precisavam

estar sempre circunscritas ao espaço familiar ou das instituições especializadas. Esta percepção

está refletida na expansão de leis e decretos sobre os mais variados temas a partir, principalmente,

da década de 80. Embora, como discutiremos no capítulo 2, algumas iniciativas legislativas,

mesmo sendo mais recentes, mantenham um caráter assistencialista ou são “tímidas” na defesa da

inclusão social plena das pessoas com deficiência.

A nossa trajetória histórica, em que as pessoas com deficiência eram “ignoradas” ou

“caminhavam em silêncio”, se encerra no ano de 1981, declarado pela ONU como Ano

Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD). De acordo com Figueira (2008):

13 Atualmente, ganhou destaque o tema das APAEs e seu financiamento quando o candidato José Serra (PSDB)

questionou a candidata governista, Dilma Roussef (PT), sobre a diminuição dos recursos destinados a estas

entidades. O debate de fundo, que não foi abordado pelos candidatos, é a ênfase correta dada pelo Ministério da Educação (MEC) a inclusão escolar das crianças e jovens com deficiência no sistema regular de ensino.

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“Se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em

entidades, a partir de 1981 – Ano Internacional da Pessoa Deficiente -, tomando

consciência de si, passou a se organizar politicamente. E, como conseqüência, a ser notada na sociedade, atingindo significativas conquistas em pouco mais de 25 anos de militância”

(grifos nossos. Figueira, 2008, p. 115).

O percurso histórico das pessoas com deficiência no Brasil, assim como ocorreu em

outras culturas e países, foi marcado por uma fase inicial de eliminação e exclusão, passando-se

por um período de integração parcial através do atendimento especializado. Estas fases deixaram

marcas e rótulos associados às pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou

doentes crônicas. Romper com esta visão, que implica numa política meramente assistencialista

para as pessoas com deficiência, não é uma tarefa fácil. Mas, como veremos, isto vem sendo

tentado nas últimas décadas. Tal esforço ajuda a produzir mudanças de paradigmas, ou seja,

modificações na forma pela qual a sociedade e seus membros entendem e lidam com

determinadas questões.

1.2 – Mudanças de Paradigmas

A segunda parte desse capítulo continuará apresentando a trajetória e os acontecimentos

históricos relacionados às pessoas com deficiência no Brasil, mas numa nova etapa. Assim como

aconteceu com outros movimentos sociais, que ganharam força por meio de bandeiras

relacionadas à auto-afirmação ou auto-representação, as pessoas com deficiência assumiram um

novo posicionamento político e social, falando por si mesmas. Vamos tratar desse processo nos

próximos três subitens, que abordam os seguintes temas:

1.2.1) O Ano Internacional da Pessoa Deficiente (AIPD) e sua importância como marco histórico;

1.2.2) O paradigma da “inclusão social”;

1.2.3) As mudanças na terminologia e no “significado social” das pessoas com deficiência.

Ao final, estará completo o “pano de fundo” sobre o qual discutiremos as políticas

públicas e, principalmente, a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Este

último aspecto, o acesso ao trabalho, representa uma face decisiva no processo de inclusão social

e conquista da cidadania da pessoa com deficiência. Mas, antes disso, foi preciso “abrir

caminhos” e o Ano Internacional é um marco importante deste movimento.

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1.2.1 – O AIPD e sua importância como marco histórico

Durante o século XX, ocorreram dois processos simultâneos que acabaram por levar o

tema das pessoas com deficiência para discussões no âmbito internacional. De um lado, a

ocorrência de duas grandes guerras e uma série de outros conflitos armados, resultando num

número crescente de portadores de deficiência física, sensorial ou múltipla (seja entre os

combatentes ou na população civil). De outro, o avanço da medicina e dos programas de

reabilitação, permitindo que um número cada vez maior de pessoas com deficiência

permanecesse vivo, tanto aquelas que adquiriam esta condição como as que possuíam deficiência

congênita. Dessa forma, no ano de 1971 é proclamada uma resolução de alto significado para as

pessoas com deficiência da época: a Declaração das Pessoas com Retardo Mental. No ano de

1975, buscando um texto mais abrangente, a ONU aprova a Declaração dos Direitos das Pessoas

Deficientes (Silva, 1987; Figueira, 2008).

Interessante observar o primeiro parágrafo desta última Declaração, segundo o qual “o

termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou

parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma

deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais” (grifos nossos. Silva,

1987, pg. 328). A ênfase está, claramente, nas capacidades inerentes à pessoa com deficiência, ao

contrário da recém aprovada Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência (CDPD), que afirma: “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de

natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem

obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (artigo 1º, CDPD,

ONU, 2006). Portanto, deste ponto de vista, as barreiras arquitetônicas, comunicativas e culturais

é que impedem uma vida com qualidade das pessoas com deficiência. Mais à frente, no subitem

sobre terminologias, retomaremos este ponto; por ora, fica evidente o contraste entre a

Declaração de 1975 e a Convenção de 2006, apontando para uma mudança de paradigma.

De volta à década de 70, em 1976, no dia 16 de dezembro, a ONU aprova a resolução n.

31/123, proclamando o ano de 1981 como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes

(Internacional Year for Disable Persons). A palavra-chave que definiria as ações em 1981 era

conscientização, isto é, a tomada de conhecimento por parte dos países membros deste tema e das

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suas implicações sociais. No documento que estabelecia as recomendações para 1981 já aparece

o termo “participação plena”, que seria retomado pela Convenção de 2006.

No Brasil, um pequeno grupo de pessoas trabalhou para que o ano de 1981 se

concretizasse como um marco na trajetória de luta desse contingente populacional. Silva (1987)

relata encontros reunindo cerca de trinta pessoas, primeiramente em São Paulo, que discutiram a

documentação prévia da ONU sobre o Ano Internacional, incluindo declarações e relatórios sobre

a temática da deficiência a nível mundial. Esse material foi traduzido para o português e

difundido através de figuras chaves, como Dorina de Gouvêa Nowil. Através dessa senhora, com

deficiência visual, que posteriormente criou um Instituto para o atendimento de pessoas cegas, foi

convocada no mês de julho de 1980 uma reunião que constituiu um grupo conhecido como “de

apoio e estímulo ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes”. Segundo Silva (1987):

“(....) logo após a primeira reunião desse grupo foi tomada a deliberação de remeter ao Senhor Presidente da República ofício co-assinado por entidades participantes para que

ele desse ao Ano Internacional o nome correto, ao assinar o decreto criando a Comissão

Nacional ao mesmo destinada. Ouvia-se falar de traduções inaceitáveis, tais como Ano

Internacional do Incapacitado, Ano Internacional do Excepcional e outros nomes que estavam sendo fortemente tentados” (Silva, 1987, p. 336).

A mensagem chegou ao então presidente Figueiredo, que ainda em 1980 assinou o decreto

criando a “Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes”, vinculando-a ao

Ministério da Educação e Cultura. Foram também criadas comissões estaduais, que discutiram,

em 1981, proposições e diretrizes para o estabelecimento de uma política de ação para toda

década de 80. Para o acompanhamento desta política, a comissão de São Paulo propunha a

criação de um “órgão de caráter inter-secretarial, contando com representação não só das

Secretarias de Estado envolvidas, mas também de entidades de pessoas deficientes14

” (Silva,

1987, p. 337).

Tais relatos mostram como, paulatinamente, as pessoas com deficiência começaram a

enxergar-se enquanto um grupo detentor de direitos, assim como outros segmentos socialmente

vulneráveis, tais como as mulheres, os idosos ou os negros. É claro que todos estes atributos

podem “se misturar” e a precariedade ou não da condição de vida individual depende, em última

instância, da situação sócio-econômica de cada pessoa. Mas, de maneira geral, tais características

14 Posteriormente, a Constituição de 1988 viria a definir o papel dos Conselhos de Direitos como órgãos de

participação e controle social nas diferentes instâncias (municipal, estadual e nacional).

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trazem consigo dificuldades adicionais para o exercício da cidadania; dificuldades essas

construídas culturalmente e que, portanto, não são facilmente revertidas.

Em grande medida, alterar esse quadro depende do envolvimento direto daqueles que são

vítimas da exclusão social ou do preconceito. Isso começou a ocorrer no Brasil, para as pessoas

com deficiência, de maneira mais efetiva e coordenada, a partir de 1981.

No Estado de São Paulo, Silva (1987) destaca dois grandes encontros regionais nas

cidades de Bauru e Ourinhos. Como a prioridade do Ano Internacional era a conscientização,

deu-se grande importância para confecção de materiais que difundissem as propostas discutidas

nesses encontros. Dessa forma, o AIPD cumpriria sua função de ser um “grito de alerta” quanto à

situação de milhões de pessoas com deficiência no Brasil e no mundo, apartadas do convívio

social, sofrendo discriminações e sem acesso aos direitos básicos dos cidadãos. Tais

reivindicações convergiram para um grande Encontro Nacional, realizado na cidade mineira de

Contagem, entre 23 e 26 de março, já no ano de 1982.

Dentre vários pontos, chama atenção o segundo item do documento final gerado neste

Encontro, segundo o qual: “há necessidade de mudança de atitudes visando eliminar estereótipos

e preconceitos que impedem a consecução dos ideais de igualdade e plena participação das

pessoas deficientes”. Este trabalho continua sendo feito até hoje, inclusive pela ONG da qual faz

parte o autor, o que mostra o quanto é difícil, apesar dos avanços, reverter imagens negativas,

construídas ao longo da história15

. Além da questão da imagem da pessoa com deficiência, o

Encontro em Contagem apontou uma série de aspectos relacionados à plena participação das

pessoas com deficiência na educação e no trabalho, como também o acesso à saúde e ao

transporte.

Em que pesem as críticas e relatos eventuais de descontentamento, o fato é que, para a

maioria daqueles que estiveram envolvidos, o Ano Internacional cumpriu o seu papel de chamar a

atenção da sociedade para a questão da deficiência. Como afirma Figueira: “boa ou má, a

15 O Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas) promove, desde 2004, para empresas privadas e

órgãos públicos, o curso de sensibilização intitulado vivendo a diferença, valorizando a diversidade. Nosso principal

objetivo é justamente desfazer mitos e estereótipos em geral associados às pessoas com deficiência. Vale registrar

que, durante o ano de 2008, a realização desses cursos ocorreu de maneira regular por meio de uma parceria entre o

CVI e a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PREAC) da Unicamp. Nesse particular, gostaríamos de

destacar a participação da professora Beatriz Jansen e do servidor Afonso Von Zuben, então membro da diretoria do

CVI. Sem essas pessoas não teria sido possível realizar mensalmente os cursos, com a participação de centenas de pessoas da comunidade acadêmica e da sociedade em geral.

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situação das pessoas com deficiência começou a ser divulgada a partir de 1981. Inclusive, elas

mesmas começaram a tomar consciência de si como cidadãos, passando a se organizar em grupos

ou associações” (Figueira, 2008, p. 119).

Em outras palavras, é claro que anteriormente tivemos inúmeros casos de êxito individual

de pessoas com deficiência, mas 1981 marca um reconhecimento mútuo e coletivo da situação

em que se encontravam muitos portadores de deficiência. Um mundo “obscuro” ou “ignorado”,

nas palavras de publicações da época, não poderia mais ser escondido da sociedade, do poder

público, continuando somente como “um peso ou fardo individual e/ou familiar”. Concordamos,

assim, com a posição de Figueira (2008) que resume o significado do Ano Internacional:

“(...) há quem afirme que o AIPD não valeu de nada, o que não acreditamos. 1981 foi sim

um marco significativo que mudou a experiência das pessoas com deficiência no mundo, como por exemplo, deixaram de ficar à margem dos acontecimentos. Mudando seu lugar

social, viram-se divididas entre passado e futuro, entre memória e projeto de vida – da

morte ou isolamento à presença no mundo, do infantilismo socialmente construído à maturidade possível a cada um em função de um movimento histórico e irreversível que

acenou, e continua acenando, com o ideal de cidadania” (grifos nossos. Figueira, 2008, p.

123).

Superada a invisibilidade, que caracterizou a trajetória histórica das pessoas com

deficiência, abriram-se novas perspectivas, desenvolveram-se outros conceitos para o trabalho de

todos envolvidos com este tema. Nesse novo contexto que, a seguir, apresentam-se os princípios

do paradigma da “inclusão social” (aplicada, digamos, à questão das pessoas com deficiência).

1.2.2 – O paradigma da “inclusão social”

O conceito de “inclusão”, quando se fala da história das pessoas com deficiência e outros

grupos historicamente discriminados, tem uma forte relação com outro termo: diversidade

humana16

. Neste item, tendo como norte o livro de Romeu K. Sassaki (1997), realiza-se um

resumo sobre os principais conceitos relacionados ao paradigma da inclusão social, cuja

16 Retomando as observações feitas pela professora Maria Teresa Égler Mantoan, devemos ter em mente que o

conceito de diversidade, embora seja amplamente utilizado e difundido, tem, de fato, um caráter estático. Em outras

palavras, a diversidade existe e está dada pelas características de cada um. Nesse sentido, numa perspectiva de constantes mudanças e variações nos atributos pessoais e nas formas de agir e pensar, é mais correto falarmos em

“diferenças humanas”.

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finalidade básica é a construção de uma sociedade para todos, sejam pessoas com deficiência,

negros, mulheres ou idosos, enfim, uma sociedade que respeite as diferenças humanas.

De acordo com este autor, a sociedade, nas mais variadas culturas, passou por fases

distintas no que se refere às práticas sociais e às chamadas “minorias”. Desde a exclusão social

até o seu oposto (inclusão), passamos, no caso das pessoas com deficiência, pelo “atendimento

segregado” dentro de instituições e pela prática de “integração social”, que antecede e, em certo

sentido, abre caminho para a “inclusão social”. Conforme afirma Sassaki (1997):

“Evidentemente, essas fases não ocorreram ao mesmo tempo para todos os segmentos populacionais. Ainda hoje vemos a exclusão e a segregação sendo praticadas em relação a

diversos grupos sociais vulneráveis, em várias partes do Brasil assim como em

praticamente todos os outros países. Mas também vemos a tradicional integração dando

lugar, gradativamente, à inclusão”. (Sassaki, 1997, p. 17).

Na trajetória histórica que fizemos na primeira parte deste capítulo, não faltaram registros

de total exclusão ou mesmo rejeição sumária das pessoas com deficiência. A segregação em

instituições, embora superada hoje, foi o caminho “natural” para que se começasse a dar alguma

atenção a estas pessoas. Nas décadas de 60 e 70, fortalece-se a “integração”, que pressupunha a

preparação do indivíduo com deficiência para a convivência social. O movimento de “inclusão

social”, por sua vez, começou na segunda metade dos anos 80 nos países mais desenvolvidos,

difundiu-se apenas na década de 90 para outros países, mas sem ser dominante, como se espera

que ocorra para os períodos contemporâneo e vindouro. Este movimento, que visa a construção

de uma sociedade para todas as pessoas, baseia-se, observa Sassaki (1997), em alguns princípios

fundamentais:

celebração das diferenças;

direito de pertencer;

valorização da diversidade humana;

solidariedade humanitária;

igual importância das minorias;

cidadania com qualidade de vida.

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Na verdade, são princípios positivos e necessários não especificamente para os portadores

de deficiência, mas para a sociedade em geral. A observância de valores solidários e a

preocupação quanto à cidadania, por exemplo, devem fazer parte de um projeto nacional17

.

Em relação ao “paradigma da inclusão” propriamente dito, Sassaki (1997) destaca a

importância dos conceitos na definição das atividades e ações que realizamos. Em suas palavras,

“os conceitos são fundamentais para o entendimento das práticas sociais. Eles moldam nossas

ações e nos permitem analisar nossos programas, serviços e políticas sociais, pois os conceitos

acompanham a evolução de certos valores éticos, como aqueles em torno da pessoa com

deficiência” (Sassaki, 1997, p. 27).

Assim sendo, o autor passa a apresentar uma série de conceitos pré-inclusivistas e

inclusivistas, construídos no processo histórico de atenção, atendimento e, posteriormente, auto-

afirmação das pessoas com deficiência.

Conceitos pré-inclusivistas

O chamado modelo médico da deficiência é um dos principais conceitos pré-inclusivistas,

tendo sido assim definido por um dos fundadores da Cooperativa de Vida Independente de

Estocolmo, na Suécia:

“(...) uma das razões pelas quais as pessoas deficientes estão expostas à discriminação é

que os diferentes são freqüentemente declarados doentes. Este modelo médico da

deficiência nos designa o papel desamparado e passivo de pacientes, no qual somos

considerados dependentes do cuidado de outra pessoa, incapazes de trabalhar, isentos dos deveres normais, levando vidas inúteis, como está evidenciado na palavra ainda comum

inválido” (Still apud Sassaki, 1997, p. 28).

A força deste conceito é tão grande que, mesmo entre defensores da causa das pessoas

com deficiência, ele aparece em declarações e tratados citados por Sassaki durante as décadas de

70 e 80. Como vimos, no Brasil e em outros países, os médicos, detentores do conhecimento

17 Sobre este tema, Sicsú (2008) observa que, depois de praticamente 25 anos de baixo crescimento econômico, entre

1980 e 2004, ficou evidente que a doutrina neoliberal não conseguiu promover o desenvolvimento social e a melhora

na qualidade de vida das pessoas; pelo contrário, houve regressão em diversos aspectos (como o aumento do

desemprego e da violência urbana). Nesse contexto, tendo como meta um país tecnologicamente avançado, com

justiça social, respeito ao meio ambiente e com serviços públicos de qualidade, dentre outras características, propõe-

se uma estratégia de desenvolvimento viabilizada a partir de uma determinada trajetória macroeconômica, possibilitando o avanço das políticas públicas, com o envolvimento da sociedade. Mais à frente, no capítulo 3,

retomaremos este debate sobre alternativas de desenvolvimento social.

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técnico, extrapolaram suas funções e passaram a intervir em questões como a educação e o

trabalho das pessoas com deficiência, mas sem deixar de considerá-los como doentes.

Este tipo de visão entendia que somente depois de “curada” a pessoa, se conseguisse,

poderia realizar as atividades sociais “normais”. É claro que existe uma fase de reabilitação,

como no caso de uma deficiência adquirida, mas o problema é que o “modelo médico” continua a

enxergar permanentemente aquele indivíduo como um paciente, colocando em segundo plano

questões como a sexualidade, a educação e o trabalho da pessoa com deficiência. Os centros de

reabilitação foram durante muito tempo os maiores disseminadores deste modelo de atendimento,

sem compreender que a verdadeira qualidade de vida vai muito além da recuperação clínica. Nas

palavras de Araci Nallin, psicóloga que fez uma profunda análise da prática institucional no

interior de um centro de reabilitação:

“Se, por um lado, o discurso dominante em reabilitação enfatiza a necessidade de se incrementar as capacidades restantes do cliente, por outro lado, a sua análise revela um

enfoque no distúrbio, na doença, na deficiência. É o modelo médico aplicado a

reabilitação. Existe o diagnóstico, o tratamento e a cura, como se a complexa questão da

integração social das pessoas deficientes pudesse ser resolvida por uma operação, uma prótese, ou seja lá o que for” (Nallin apud Sassaki, 1997, p. 30).

Em síntese, o “modelo médico” da deficiência – expressão natural de um processo

histórico onde, de fato, era necessária a reabilitação deste contingente populacional – mostrou-se,

ao longo do tempo, insuficiente (e equivocado) para promover a inclusão social efetiva das

pessoas com deficiência. Todos nós que adquirimos uma deficiência ao longo da vida, ou

também no caso da deficiência congênita, deparamo-nos com profissionais da área de saúde que

só tinham olhos para a questão clínica, queriam curar uma disfunção ou um órgão, mas se

esqueciam da totalidade da pessoa, do ser humano. É evidente que, como todas as pessoas,

precisamos estar bem de saúde, mas isso não pode ser um fim em si mesmo, é preciso abrir

perspectivas para uma qualidade de vida melhor.

Dentre outros conceitos pré-inclusivistas, gostaríamos de destacar a idéia de integração

social e o princípio da normalização, para então chegarmos aos conceitos que compõem o

paradigma da inclusão.

Sobre a “integração social”, deve-se enfatizar que ela surgiu para derrubar a prática de

exclusão social a que estavam submetidas às pessoas com deficiência. Possui, assim, um aspecto

positivo no sentido de que, por muitas décadas e até séculos, como vimos, pessoas com algum

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tipo de deficiência foram consideradas totalmente incapazes, sem qualquer tipo de “utilidade”

para a sociedade. Como afirma Sassaki: “se algumas culturas simplesmente eliminavam as

pessoas deficientes, outras adotaram a prática de interná-las em grandes instituições de caridade,

junto com doentes e idosos” (Sassaki, 1997, p. 31).

Há um lado humanitário nesta conduta, pois estas instituições, basicamente, serviam para

dar abrigo, alimentação e algum tipo de atenção médica a indivíduos que, invariavelmente, eram

abandonados por suas famílias. Porém, com o passar do tempo e a especialização do atendimento

aos portadores de deficiência, perpetuou-se uma institucionalização que, vista em perspectiva, era

desnecessária e até mesmo cruel com estas pessoas.

No Brasil, a década de 60 marcou o boom das instituições especializadas, tais como:

escolas especiais, centros de reabilitação, oficinas protegidas ou clubes e associações especiais.

Estes espaços e serviços, com base, principalmente, no princípio da “normalização”, passaram a

procurar inserir algumas pessoas com deficiência nos sistemas sociais gerais.

A idéia do conceito pré-inclusivista de “normalização” materializava-se no trabalho

intensivo para que a pessoa com deficiência pudesse se aproximar, o máximo possível, de um

padrão “normal” do ser humano em suas funções físicas, sensoriais e cognitivas. Dessa forma, e

somente a partir daí, ela estaria apta a freqüentar os ambientes sociais gerais. Como se vê, trata-se

de uma visão de atendimento diretamente relacionada ao já mencionado conceito de “integração

social”, que pressupõe a preparação dos indivíduos, em estruturas segregadas, para evitar a

exclusão social.

Para dar um exemplo extremo do significado destes conceitos pré-inclusivistas, pode-se

pensar num trabalho de recuperação física, dentro de um Centro de Reabilitação, que busca

incessantemente o andar do paraplégico. À medida que conseguir se movimentar, aproximando-

se do que faz uma pessoa normal, ele poderia se arriscar nas calçadas ou tentar pegar um ônibus.

Este tipo de conduta representa o “paradigma da integração social”. Porém, o fato é que nem

todos conseguirão essa evolução física. Assim sendo, sob o paradigma da “inclusão social”, como

veremos, a reabilitação deve cuidar da saúde do indivíduo e o quanto de ganho for obtido,

melhor; mas a cidade deve ter calçadas e ônibus acessíveis para todos, inclusive os usuários de

cadeiras-de-roda.

De qualquer forma, especialmente nas décadas de 70 e 80, é inegável que a prática da

“integração’ acabou por abrir caminho para o surgimento do conceito de inclusão. Ela se fazia

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não só nas instituições, mas também pela luta individual de pessoas com deficiência que

enfrentavam barreiras físicas e atitudinais. Ao contornar tais obstáculos, estas pessoas

contribuíram, e ainda o fazem, para o amadurecimento de uma visão inclusivista.

Conceitos inclusivistas

Passemos então à apresentação dos conceitos inclusivistas, que compõem este paradigma.

Sassaki destaca, em primeiro lugar, as idéias de autonomia e independência, que embora sejam

sinônimas nos dicionários convencionais, têm significados diferentes dentro do movimento das

pessoas com deficiência (Sassaki, 1997). De acordo com este autor:

“Autonomia é a condição de domínio no ambiente físico e social, preservando ao máximo

a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. (...) Ter maior ou menor autonomia significa que a pessoa com deficiência tem maior ou menor controle nos vários ambientes

físicos e sociais que ela queira e/ou necessite freqüentar para atingir seus objetivos”

(Sassaki, 1997, p 36).

O conceito de “independência”, por sua vez, está ligado ao poder de decidir sem depender

de outras pessoas. Trata-se da atitude da pessoa com deficiência frente às situações cotidianas e

às decisões que se tomam em termos de educação, trabalho, relacionamentos, etc. Em particular,

a “independência” verifica-se em relação à tutela familiar e institucional (dos profissionais da

área de saúde), que muitas vezes decidem ou fazem as escolhas pela pessoa com deficiência.

Assim sendo, conforme relata Sassaki (1997), uma pessoa com deficiência pode não ter

total “autonomia” num ambiente com barreiras arquitetônicas, mas exercerá sua “independência”

ao solicitar ajuda e explicar a esta pessoa a melhor forma de conduzir sua cadeira-de-rodas, por

exemplo18

. No processo de inclusão, a busca pela “autonomia” – condição de domínio do espaço

físico e social – e pela “independência” – poder decisório do indivíduo com deficiência – é de

fundamental importância.

Diretamente ligado à idéia de “independência”, encontra-se outro conceito inclusivista: o

empowerment (ou “empoderamento”). Por mais que dependa de terceiros para suas atividades

18 Dhanda (2008), numa abordagem mais recente, também trata dos conceitos de independência e autonomia à luz da

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Dentre outros aspectos, destaca-se a idéia de “autonomia com apoio”, enfatizando a importância do poder decisório estar com a pessoa com deficiência, mesmo

que ela dependa de terceiros para realizar suas atividades.

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diárias, a pessoa com deficiência tem o direito de se fortalecer internamente para exercer o

controle sobre sua própria vida. Este conceito está na origem do movimento internacional de vida

independente, que percebeu a eficácia da troca de informações, vivências e experiências pessoais

entre portadores de deficiência para estimular o empowerment, o fortalecimento individual19

. Esta

troca representa um serviço característico dos centros de vida independente: o aconselhamento ou

suporte entre pares20

.

A equiparação de oportunidades é outra idéia-força do paradigma da inclusão social.

Apresentada em documentos internacionais sobre o tema a partir de 1981, “equiparar

oportunidades” significa retirar as barreiras físicas e de comportamento que, nos ambientes

sociais gerais (escolas, empresas, espaços de lazer, etc.), impedem a convivência e o acesso de

todas as pessoas, inclusive aquelas com deficiência. Em outras palavras, significa dar maior

“autonomia” às pessoas com deficiência, conforme conceito já apresentado.

Tendo como referência esses princípios, chegamos à definição de “inclusão social”, que

se caracteriza pelo processo através do qual a sociedade adapta-se para poder incluir, em seus

sistemas sociais, pessoas com algum tipo de deficiência e, simultaneamente, estas se prepararam

para assumir seus papéis na sociedade. Dessa forma: “a inclusão social constitui um processo

bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar

problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos” (Sassaki,

1997, p. 41).

Deve-se enfatizar que os praticantes da inclusão baseiam suas ações no “modelo social da

deficiência”, em oposição ao “modelo médico-clínico” que, como vimos, associa sempre a

deficiência à doença, cuida exclusivamente das questões clínicas, sem considerar a pessoa como

um todo, inserida em determinado contexto social. É óbvio que os aspectos da reabilitação física

precisam ser considerados, mas o “modelo social”, base do paradigma da inclusão, propõe uma

visão mais ampla não só do indivíduo, como também da sociedade em geral. Este paradigma

defende o fortalecimento pessoal das pessoas com deficiência, mas chama atenção para o fato de

que o êxito ou fracasso nas trajetórias de vida pessoais não pode se resumir à “força de vontade

19 Segundo Sassaki (1997), embora seja originário do movimento das pessoas com deficiência, o termo

empowerment foi adotado e difundido em outras áreas, tais como nos programas corporativos de desenvolvimento de

recursos humanos. 20 O Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas), mesmo com um quadro pequeno de “conselheiros”, realiza de forma voluntária o serviço de suporte entre pares, em especial nos casos onde a pessoa

adquire a deficiência e se vê colocada numa realidade de vida totalmente distinta.

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individual”. Numa sociedade desigual e heterogênea, são necessárias políticas de equiparação de

oportunidades, ambientes acessíveis e programas inclusivos.

Para exemplificar o “modelo social” aplicado à temática da deficiência, podemos pensar

em duas pessoas: alguém com uma deficiência física severa e outro indivíduo com uma pequena

limitação motora. Se o primeiro vive em um ambiente que lhe permite ter autonomia, com acesso

aos serviços públicos e/ou privados, a situação da deficiência, apesar de ser clinicamente mais

grave, terá um impacto relativamente pequeno na sua qualidade de vida. Já no caso de uma

limitação física leve, se a pessoa reside em condições precárias, com dificuldades de acesso ou

carência de recursos, esta deficiência representará um grande problema. Ou seja, a gravidade da

situação de deficiência depende, para além do quadro clínico, das condições sociais em que está

inserida a pessoa. Num país como o Brasil, com índices elevados de desigualdade social e

precariedade dos serviços públicos, esta questão coloca-se fortemente21

.

Inclusão Escolar e o papel da mídia

Antes de finalizarmos o capítulo 1 com as mudanças na terminologia, vale a pena registrar

os trabalhos de Werneck (1997) e Mantoan (1997) que, ao mesmo tempo, junto com as reflexões

de Sassaki (1997), também contribuíram decisivamente para o fortalecimento do “paradigma da

inclusão social”.

De acordo com Mantoan (1997), os benefícios e os efeitos positivos do meio escolar no

desenvolvimento das pessoas com deficiências são evidentes e já teriam sido comprovados por

estudiosos do tema. Daí deriva uma posição marcante da autora, segundo a qual: “(...) é ousado

para muitos, ou melhor, para a maioria das pessoas, a idéia de que nós, os humanos, somos seres

únicos, singulares e que é injusto e inadequado sermos categorizados, a qualquer pretexto!”

(Mantoan, 1997, p. 6).

Sobre este aspecto, gostaríamos de fazer uma reflexão no seguinte sentido: concordamos

com a idéia de respeito às diferenças humanas, pressuposto básico do paradigma da inclusão; ao

21 O modelo seqüencial proposto por Sassaki (1997) é útil para fixar conceitos e diferenciar na forma pela qual a

questão da deficiência foi tratada ao longo da história. Mas não se pode perder de vista que, para além deste aparato

teórico, as mudanças de paradigmas têm por traz processos mais amplos de transformações sociais, culturais,

políticas e econômicos. Nesse sentido, abordagens fora do escopo tradicional de autores que tratam da deficiência, como aquela de Castel (1998), complementam e enriquecem a dinâmica de exclusão – ou “desfiliação social” – por

que passam pessoas com ou sem deficiência.

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mesmo tempo, porém, este raciocínio pode levar à falsa idéia de que instrumentos específicos ou

mesmo práticas que identifiquem pessoas com deficiência sejam, a priori, discriminatórios.

Existem situações em que tais condutas podem ser úteis para melhorar, de maneira mais rápida, a

qualidade de vida das pessoas com deficiência. Por exemplo, é claro que nossa meta deve ser um

transporte público acessível a todas as pessoas, mas, até atingirmos isso, é importante identificar

onde estão as pessoas com limitação física para priorizar o atendimento com as linhas que já

dispõem de um ônibus adaptado22

.

Em resumo, o discurso progressista da não-categorização é correto e faz sentido numa

perspectiva mais ampla de sociedade que respeita todos os seus membros, mas, na prática,

podemos incorrer em injustiças e não-atendimentos de demandas legítimas das pessoas com

algum tipo de deficiência, cujas dificuldades estarão diluídas no universo maior da população

pobre e carente.

De volta à argumentação de Mantoan (1997), compartilhamos da idéia segundo a qual “a

diversidade no meio social é, especialmente no ambiente escolar, fator determinante do

enriquecimento das trocas, dos intercâmbios intelectuais, sociais e culturais que possam ocorrer

entre os sujeitos que neles interagem” (Mantoan, 1997, p. 7). Da mesma forma, é correta a visão

da autora quanto à necessidade de aprimoramento da qualidade do ensino regular como fator que,

naturalmente, levaria à inclusão escolar dos alunos com deficiência. Daí a proposta de fusão –

não de junção, justaposição ou agregação – do ensino regular com o chamado ensino especial,

pois fundir significa incorporar elementos distintos para se criar uma nova estrutura, na qual

desapareceriam os elementos iniciais na sua forma originária.

A idéia de uma escola para todos, como não poderia deixar de ser, significa também a

inclusão das pessoas com deficiência mental (ou intelectual/cognitiva):

22 O próprio Censo Demográfico, ao inquirir sobre deficiências e incapacidades, faz uma, necessária, categorização.

Fazendo uma comparação que nos parece apropriada com o movimento negro, a auto-afirmação foi um processo

importante na luta pela equiparação de oportunidades, dando legitimidade para que, no mínimo, fosse discutida a

aplicação de políticas de ação afirmativa, como as cotas nas Universidades. Para alguns autores, porém, a

identificação das pessoas a partir da auto-declaração da cor ou raça já é, em si, uma política discriminatória. O

geógrafo Demétrio Magnoli, por exemplo, escreveu vários textos em que critica o IBGE ou o Ministério da

Educação por realizar recenseamentos com a opção de auto-declaração da cor ou raça. Segundo este autor, “a

classificação racial dos cidadãos é a atualização, legitimação e oficialização do artigo de fé do racismo”. (“Pardos”;

Folha de São Paulo, pg. 2, 21/04/2005). Conforme tivemos a oportunidade de argumentar na dissertação de

mestrado, não concordamos com esta visão uma vez que estas ações podem servir para definição de parâmetros das

políticas públicas, que se deparam com restrições de recursos. Isso não significa abandonar uma perspectiva de programas universais ou a defesa de uma política econômica que proporcione mais recursos para as políticas

públicas, mas compreender que existem situações que demandam uma ação imediata e focalizada.

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“O estudo da atividade cognitiva dos deficientes mentais aponta-nos a inclusão escolar

destas pessoas, no ensino regular, como uma condição que poderá contribuir significativamente para estimulá-las a se comportarem ativamente diante dos desafios do

meio, abandonando, na medida do possível, os estereótipos, os comportamentos e a

dependência que lhe são típicos” (Mantoan, 1997, p. 119).

Ao mesmo tempo, para a formação e o desenvolvimento humano, a inclusão é positiva

também para os alunos regulares e professores. Embora o tema da inclusão escolar das pessoas

com deficiência não seja objeto dessa tese, ele tem forte relação com alguns indicadores que

veremos no capítulo 3, sobre a inserção no mercado de trabalho. Fugindo da armadilha de

associar automaticamente educação e emprego23

, é fato que o grau de escolaridade é um

componente importante para o êxito no mercado de trabalho. Uma das principais razões

levantadas pelas empresas para o não-cumprimento da Lei 8.213/91 (“Lei de Cotas”) é a baixa

escolaridade média das pessoas com deficiência, fruto de um processo histórico de exclusão

escolar que, felizmente, parece estar sendo revertido.

A jornalista Cláudia Werneck, por sua vez, dá ênfase à “tríplice e poderosa aliança

família-escola-mídia” como eixo de sustentação e desenvolvimento do paradigma da inclusão.

Localizando a origem do movimento pela sociedade inclusiva numa resolução da Assembléia

Geral das Nações Unidas do início da década de 90 (resolução 45/91), esta autora foi muito feliz

na sua definição de uma sociedade plural e para todos:

“A sociedade para todos, consciente da diversidade da raça humana, estaria estruturada

para atender às necessidades de cada cidadão. (...) Crianças, jovens e adultos com deficiência seriam naturalmente incorporados à sociedade inclusiva, definida pelo

princípio: todas as pessoas têm o mesmo valor. (...) Torço pela sociedade inclusiva porque

nela não há lugar para atitudes como abrir espaço para o deficiente ou aceitá-lo, num gesto de solidariedade, e depois bater no peito ou mesmo ir dormir com a sensação de ter

sido muito bonzinho. Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho. Ao contrário. Somos

apenas – e isto é o suficiente – cidadãos responsáveis pela qualidade de vida do nosso

semelhante, por mais diferente que ele seja ou nos pareça ser” (grifos nossos. Werneck, 1997, p. 21).

A partir desta definição, a autora passa a relatar e discutir situações práticas e concretas

envolvendo, principalmente, aspectos familiares, a inserção escolar e o papel da mídia para

23 A determinação do emprego depende de outros fatores relacionados à política econômica, ao nível de investimento

e às expectativas do setor privado, entre outros. Caso contrário, a responsabilidade por conseguir trabalho seria apenas uma questão de esforço individual. Evidentemente, a formação escolar é muito importante e enriquecedora,

mas não pode ser tomada como determinante única e automática do emprego.

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construção de uma sociedade inclusiva. Sobre este aspecto, destaca-se que informação não é

sinônimo de entretenimento, cabendo à mídia “instigar o público e detonar reflexões capazes até

de romper com paradigmas estabelecidos” (Werneck, 1997, p. 32).

A autora propõe “educar a mídia” através da ação coletiva, e também da iniciativa e

cobrança individuais. Para tanto, sugere formas de contato, dicas de comportamento e outras

condutas que poderiam fazer da mídia uma aliada, como definir alguém com conhecimento e

condições para ser o porta-voz de uma associação, ONG ou grupo que represente ou atue na área

da deficiência. Além disso, dentre outros aspectos, deixar claro, antes de começar a entrevista, o

que não pode ser dito, convencendo o jornalista que “deficiência não é doença”, por exemplo. A

conclusão da autora é que, paulatinamente, haveria um aprendizado da mídia para apresentar a

temática da deficiência.

De fato, nesses últimos dez anos tivemos avanços e houve um espaço maior para o

assunto na imprensa de maneira geral, mas persiste uma série de problemas, como a insistência

em veicular a pessoa com deficiência no papel de um “super-herói” ou, no outro extremo, como

um “coitadinho”, que precisa sempre da caridade alheia.

Feita a menção às duas autoras, também referências extremamente importantes sobre o

“paradigma da inclusão”, apresenta-se a seguir o subitem que versa sobre as mudanças de

terminologia que ocorreram para se referir às pessoas com deficiência; mudanças estas que

expressam também diferentes “significados sociais” do grupo populacional em questão.

1.2.3 – As mudanças na terminologia

De acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência(CDPD),

adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 13 de Dezembro de 200624

, pessoas com

deficiência “são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os

quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na

sociedade com as demais pessoas” (artigo 1º, CDPD, 2006).

Esta definição pode ser dividida em duas partes: a) em primeiro lugar, reconhece-se, sem

problema algum, que as pessoas com deficiência “têm impedimentos de natureza física,

intelectual ou sensorial”; b) em seguida, enfatiza-se que tais impedimentos “em interação com

24 Voltaremos a trabalhar com o conteúdo desta Convenção ao tratar de legislação e políticas públicas no capítulo 2.

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diversas barreiras” é que podem representar dificuldades ou obstáculos para que as pessoas com

deficiência possam usufruir uma “participação plena e efetiva na sociedade com as demais”.

Dessa forma, deslocam-se do indivíduo (ou da deficiência) para a sociedade (e suas barreiras) os

termos do debate e o contexto da legislação que servirá de parâmetro para as mudanças legais nos

países que forem signatários da Convenção, como é o caso do Brasil25

.

Ao longo da história, porém, o tratamento dado às pessoas com deficiência foi

discriminatório e estereotipado, o que pode ser percebido na terminologia usada para identificar

esse grupo populacional. É verdade também que a afirmação anterior se faz com os “olhos do

presente”, ou seja, do ponto de vista e através do paradigma atual. A terminologia utilizada

reflete um momento histórico correspondente em que nem sempre o termo que nos parece

preconceituoso hoje tinha tal conotação na época.

De qualquer forma, é interessante acompanhar como ocorreu esta evolução com o passar

do tempo. Para tanto, reproduziremos a seguir, com algumas adaptações, vários quadros

elaborados por Sassaki (2003) que buscam resumir os termos utilizados no Brasil e o que eles

significavam em termos da imagem que a sociedade tinha das pessoas com deficiência:

Quadro 1 – Os deficientes como “inválidos”

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

Meados do século XX.

Romances, nomes de

instituições, leis, mídia e

outros meios mencionavam

“os inválidos”. Exemplos: “A

reabilitação profissional visa a

proporcionar aos

beneficiários inválidos ...”

(Decreto federal nº 60.501, de

14/3/67, dando nova redação

ao Decreto nº 48.959-A, de

19/9/60).

“os inválidos”. O termo

significava “indivíduos sem

valor”. Em pleno século 20,

ainda se utilizava este termo,

embora sem nenhum sentido

pejorativo na época.

Outro exemplo:

“Inválidos insatisfeitos com lei

relativa aos ambulantes” (Diário Popular, 21/4/76).

Aquele que tinha deficiência era

tido como socialmente inútil,

um peso morto para a sociedade,

um fardo para a família, alguém

sem valor profissional.

Fonte: Sassaki, 2003.

25 A Convenção, conforme já adiantamos, foi ratificada pelo Congresso Nacional em dois turnos, com quorum

qualificado, de maneira que se incorpora à legislação nacional com o status de emenda constitucional.

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O termo “inválido” era comumente utilizado para se referir às pessoas com deficiência ao

longo de boa parte do século XX, sem que isso fosse visto como uma agressão ou ofensa.

Entretanto, como afirma Sassaki (2003), ele é revelador quanto à forma pela qual a sociedade

enxergava as pessoas com deficiência: pessoas “sem valor” ou “incapazes”. Alguém que tivesse

nascido ou, ao longo da vida, adquirisse uma deficiência, estava fadado a, via de regra, não

trabalhar e nem mesmo ter uma vida social. É claro que isso dependia da extensão da deficiência,

em especial no segundo caso, quando ela era adquirida. Mas tal situação – o não-trabalho e a

segregação dos inválidos ou incapazes – era algo natural, esperado e comum na sociedade

brasileira de meados do século XX.

Os termos apresentados no Quadro 2 se relacionam ao período de “integração social”,

quando houve o crescimento das instituições de atendimento específico para pessoas com

deficiência.

Quadro 2 – “Defeituosos, Deficientes e Excepcionais”

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1960 até 1980.

“Crianças defeituosas na Grã-

Bretanha tem educação

especial” (Shopping News,

31/8/65).

No final da década de 50, foi

fundada a Associação de

Assistência à Criança Defeituosa

– AACD (hoje denominada

Associação de Assistência à

Criança Deficiente).

Na década de 50 surgiram as

primeiras unidades da

Associação de Pais e Amigos dos

Excepcionais - APAE.

“os defeituosos”. O termo

significava “indivíduos com

deformidade” (principalmente

física).

“os deficientes”. Este termo

significava “indivíduos com

deficiência” física, intelectual,

auditiva, visual ou múltipla, que

os levava a executar as funções

básicas de vida (andar, sentar-se,

correr, escrever, tomar banho

etc.) de uma forma diferente

daquela como as pessoas sem

deficiência faziam. E isto

começou a ser aceito pela

sociedade.

“os excepcionais”. O termo

significava “indivíduos com

deficiência intelectual”.

A sociedade passou a utilizar

estes três termos, que focalizam

as deficiências em si, não as

pessoas.

Simultaneamente, difundia-se o

movimento em defesa dos

direitos das pessoas

superdotadas (expressão

substituída por “pessoas com

altas habilidades” ou “pessoas

com indícios de altas

habilidades”). O movimento

mostrou que o termo “os

excepcionais” não poderia

referir-se exclusivamente aos

que tinham deficiência

intelectual, pois as pessoas com

superdotação também são

excepcionais por estarem na

outra ponta da curva da

inteligência humana.

Fonte: Sassaki, 2003.

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Numa perspectiva atual, o que mais incomoda nos três termos utilizados nesse período –

“defeituosos”, “deficientes” e “excepcionais” – é a ausência da palavra “pessoa”, isto é, o

indivíduo era rotulado por sua característica “anormal”. Além disso, o termo “defeituoso” tem

uma conotação extremamente negativa, muito mais relacionada à condição de uma máquina ou

equipamento do que a uma característica de uma pessoa. O chamado “modelo médico” da

deficiência, que se relaciona ao paradigma da integração, está claramente associado à utilização

destes termos, que enxergam exclusivamente aquilo que é “anormal” na pessoa com deficiência.

Quadro 3 – A introdução do termo “pessoas”

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1981 até 1987.

Por pressão das organizações de

pessoas com deficiência, a ONU

deu o nome de “Ano

Internacional das Pessoas

Deficientes” ao ano de 1981.

“pessoas deficientes”. Pela

primeira vez em todo o mundo,

o substantivo “deficientes”

(como em “os deficientes”)

passou a ser utilizado como

adjetivo, sendo-lhe acrescentado

o substantivo “pessoas”.

Foi atribuído o valor “pessoas”

àqueles que tinham deficiência,

igualando-os em direitos e

dignidade à maioria dos

membros de qualquer sociedade

ou país.

Fonte: Sassaki, 2003.

Conforme destacado no item 1.2.1, o ano de 1981 foi um marco, no Brasil e

internacionalmente, na luta do movimento sócio-político das pessoas com deficiência. Como

apontado no Quadro 3, estabeleceu-se que antes da deficiência vem a pessoa, o ser humano. Essa

mudança, que pode parecer sutil, foi fundamental para fortalecer o movimento e as reivindicações

das pessoas com deficiência, que não mais aceitaram ser taxadas quase como uma “espécie à

parte” do restante da população humana.

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Quadro 4 – “Portadores de Deficiência” – Terminologia da Constituição de 1988

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1988 até 1993.

Alguns líderes de organizações

de pessoas com deficiência

contestaram o termo “pessoa

deficiente” alegando que ele

sinaliza que a pessoa inteira é

deficiente, o que era inaceitável

para eles.

“pessoas portadoras de

deficiência”. Termo que,

utilizado somente em países de

língua portuguesa, foi proposto

para substituir o termo “pessoas

deficientes”.

Pela lei do menor esforço, logo

reduziram este termo para

“portadores de deficiência”.

O “portar uma deficiência”

passou a ser um valor agregado à

pessoa. A deficiência passou a

ser um detalhe da pessoa. O

termo foi adotado na

Constituição Federal e em todas

as leis e políticas pertinentes ao

campo das deficiências.

Conselhos, coordenadorias e

associações passaram a incluir o

termo em seus nomes oficiais.

Fonte: Sassaki, 2003.

Somos pessoas, mas não “inteiramente deficientes”. Esse foi o argumento utilizado, em

especial durante os debates que antecederam a Constituição de 1988, pelos representantes de

organizações e movimentos para a substituição do termo “pessoas deficientes”. Ocorre que, como

observado por Sassaki (2003), logo a palavra “pessoa” seria novamente esquecida e em várias

leis passou-se a utilizar “portadores de deficiência”.

Quadro 5 – “Necessidades Especiais” – camuflagem da deficiência

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1990 até hoje.

O art. 5 da Resolução

CNE/CEB n 2, de 11/9/01,

explica que as necessidades

especiais decorrem de três

situações, uma das quais

envolvendo dificuldades

vinculadas a deficiências e

dificuldades não-vinculadas a

uma causa orgânica.

“pessoas com necessidades

especiais”. O termo surgiu

primeiramente para substituir

“deficiência” por “necessidades

especiais”. Daí a expressão

“portadores de necessidades

especiais”. Depois, esse termo

passou a ter significado próprio

sem substituir o nome “pessoas

com deficiência”.

De início, “necessidades

especiais” representava apenas

um novo termo.

Depois, com a vigência da

Resolução n 2, “necessidades

especiais” passou a ser um valor

agregado tanto à pessoa com

deficiência quanto a outras

pessoas.

Fonte: Sassaki, 2003.

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A resolução mencionada no Quadro 5, do Ministério da Educação (MEC), utilizou-se do

termo “necessidades especiais” para identificar recursos necessários à educação formal de

pessoas com características “não-convencionais”, diferenciadas do grupo de alunos com

comportamento médio ou padrão. Não se tratava, assim, especificamente de pessoas com

deficiência. Mas o termo “necessidades especiais” foi se disseminando e passou a ser utilizado

em diferentes áreas numa tentativa de excluir a palavra “deficiência”, tida como pejorativa.

Interessante que este foi um movimento não das pessoas com deficiência, mas de acadêmicos,

políticos, articulistas, enfim, pessoas sem deficiência que se manifestavam publicamente sobre o

tema e estavam preocupados com o “politicamente correto”.

Quadro 6 – Eufemismo: “pessoas especiais”

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1990 até hoje.

Surgiram expressões como

“crianças especiais”, “alunos

especiais”, “pacientes especiais” e

assim por diante numa tentativa de

amenizar a contundência da

palavra “deficientes”.

“pessoas especiais”. O termo

apareceu como uma forma

reduzida da expressão “pessoas

com necessidades especiais”,

constituindo um eufemismo

dificilmente aceitável para

designar um segmento

populacional.

O adjetivo “especiais” permanece

como uma simples palavra, sem

agregar valor diferenciado às

pessoas com deficiência. O

“especial” não é qualificativo

exclusivo das pessoas que têm

deficiência, pois ele se aplica a

qualquer pessoa.

Fonte: Sassaki, 2003.

As pessoas com deficiência têm virtudes e defeitos, características positivas ou negativas,

como qualquer pessoa. Este é um dos principais aspectos abordados nos cursos de sensibilização

que são realizados por organizações como a ONG Centro de Vida Independente de Campinas

(CVI-Campinas), conforme colocamos.

Nesse sentido, “pessoas especiais” é um exemplo do que o “politicamente correto” em

excesso pode produzir. Imaginar que todas as pessoas com deficiência são “especiais” é, na

verdade, desrespeitar as singularidades de cada um. Muitas vezes alguém nem mesmo conhece,

de fato, a pessoa com deficiência e, pensando estar fazendo um elogio, a chama de “especial”.

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Em outras palavras, a deficiência não pode ser tomada como definidora do caráter das

pessoas, pois isso depende de outros e mais profundos aspectos (a formação familiar, a trajetória

de vida, os valores éticos, etc.). Assim sendo, generalizações como “deficientes especiais” ou

“todo o deficiente é bonzinho” refletem uma visão marcada por estereótipos, que não condiz com

a realidade.

Quadro 7 – “Pessoas com Deficiência” – A terminologia atual

ÉPOCA TERMOS E SIGNIFICADOS VALOR DA PESSOA

De 1990 até hoje e além.

A década de 90 e a primeira década

do século 21 e do Terceiro Milênio

estão sendo marcadas por eventos

mundiais, liderados por

organizações de pessoas com

deficiência.

“pessoas com deficiência” passa a

ser o termo preferido por um

número cada vez maior de adeptos,

boa parte dos quais é constituída

por pessoas com deficiência que,

no maior evento (“Encontrão”) das

organizações de pessoas com

deficiência, realizado no Recife em

2000, conclamaram o público a

adotar este termo. Elas

esclareceram que não são

“portadoras de deficiência” e que

não querem ser chamadas com tal

nome.

Os valores agregados às pessoas

com deficiência são:

1) o do empoderamento [uso do

poder pessoal para fazer escolhas,

tomar decisões e assumir o

controle da situação de cada um] e

2) o da responsabilidade de

contribuir com seus talentos para

mudar a sociedade rumo à inclusão

de todas as pessoas, com ou sem

deficiência.

Fonte: Sassaki, 2003.

Em relação à terminologia atual, como afirma Sassaki (2003):

“Os movimentos mundiais de pessoas com deficiência, incluindo os do Brasil, estão debatendo o nome pelo qual elas desejam ser chamadas. Mundialmente, já fecharam a

questão: querem ser chamadas de “pessoas com deficiência” em todos os idiomas. E esse

termo faz parte do texto da Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e

Dignidade das Pessoas com Deficiência, a ser aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 2005 ou 2006 e a ser promulgada posteriormente através de lei nacional de todos os Países-

Membros” (grifos nossos. Sassaki, 2003, p. 15).

Como vimos no início desse item, esta foi, realmente, a terminologia adotada na

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) aprovada pela ONU em 2006

e ratificada pelo Brasil em 2008. Ao longo desse trabalho, como já temos feito, vamos utilizar

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preferencialmente o termo “pessoas com deficiência”. As justificativas para essa prática têm a ver

com a negação das terminologias anteriores e foram muito bem resumidas por Sassaki (2003):

Quadro 8 – A importância da terminologia correta

1. Não esconder ou camuflar a deficiência;

2. Não aceitar o consolo da falsa idéia de que todo mundo tem deficiência;

3. Mostrar com dignidade a realidade da deficiência;

4. Valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência;

5. Combater neologismos que tentam diluir as diferenças, tais como “pessoas com capacidades especiais”,

“pessoas com eficiências diferentes”, “pessoas com habilidades diferenciadas”, “pessoas deficientes”, “pessoas

especiais”, “é desnecessário discutir a questão das deficiências porque todos nós somos imperfeitos”.

6. Defender a igualdade entre as pessoas com deficiência e as demais pessoas em termos de direitos e dignidade,

o que exige a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência atendendo às diferenças individuais

e necessidades especiais, que não devem ser ignoradas;

7. Identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir daí encontrar medidas

específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as “restrições de participação”

(dificuldades ou incapacidades causadas pelos ambientes humano e físico contra as pessoas com deficiência).

Fonte: Sassaki, 2003.

Pelas razões expostas acima fica evidente que, no momento atual, o termo “pessoas com

deficiência” é o mais adequado para identificar essa parcela da população. A pergunta que se

coloca é a seguinte: quando poderemos abrir mão da palavra “deficiência” é utilizarmos

simplesmente “pessoas”? Como perspectiva de vida e tendo no horizonte uma sociedade

inclusiva, isso já acontece. Mas, na prática, atualmente o complemento “com deficiência” tem um

peso político que não pode ser descartado.

Isso pode parece algo contraditório e talvez de difícil compreensão, mas para serem

reconhecidas como pessoas, ou melhor, cidadãos, as pessoas com deficiência não devem

esconder suas deficiências e principalmente as limitações objetivas que tal condição coloca. Em

outras palavras, se adotarmos o discurso de que “somos todos iguais” ou “todos têm deficiência”,

qual o sentido de vagas preferenciais, de recursos educacionais especiais ou da “Lei de Cotas”?

As pessoas com deficiência são iguais a todas as outras em vários aspectos: no desejo de uma

vida saudável, na busca pela felicidade e nos direitos e deveres enquanto cidadãos, por exemplo.

Mas as nossas diferenças – de natureza física, sensorial ou cognitiva – não devem ser ignoradas

ou escondidas.

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Considerações finais – capítulo 1

Discutiu-se no presente capítulo o contexto ou trajetória histórica das pessoas com

deficiência no Brasil e no mundo. Superados os períodos de rejeição ou eliminação sumária, as

pessoas com deficiência continuaram praticamente “invisíveis”, mesmo com êxitos individuais

esporádicos. Após grandes guerras e conflitos mundiais, e dado o avanço da medicina ao longo

do século XX, o mundo deparou-se (ou não pôde mais ignorar) uma questão que sempre existiu:

seres humanos com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas.

Nesse processo, para estimular a formação de um grupo social com afinidades próprias, e

como um “grito de alerta” para a sociedade, o ano de 1981 foi um marco histórico fundamental.

A partir daí, abriram-se caminhos para a participação política e reivindicatória das pessoas com

deficiência. Ao mesmo tempo, foi se fortalecendo e amadureceu o conceito segundo o qual as

dificuldades estão mais na sociedade do que nos indivíduos. O “paradigma da inclusão” se

consolida ao longo da década de 1990 como uma forma de abordagem progressista e moderna da

temática da deficiência26

.

Amparados por essa contextualização histórica, é preciso agora debater as políticas

públicas e a legislação que garantem uma série de direitos às pessoas com deficiência. Como

veremos, nosso país dispõe de uma legislação considerável sobre essa temática, embora, na

prática, existam problemas quanto à sua aplicação. De qualquer forma, é importante elaborar um

painel com os aspectos chaves desse ordenamento jurídico.

26 Ao longo deste subitem, em diferentes oportunidades, fizemos menção aos projetos e ações desenvolvidos pela

ONG CVI-Caminas, que foi criada, em 1997, sob forte influência do paradigma da inclusão. Em trabalhos anteriores

– Garcia (2004) e Garcia (2007) – fizemos uma análise crítica desta experiência e da participação no Conselho

Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CMPD-Campinas), entre 2002 e 2006. Na figura de Katia Maria Fonseca Dias Pinto, companheira de fundação do CVI-Campinas, gostaria de agradecer todas as pessoas com

deficiência com as quais convivi e aprendi nesses quinze anos desde que sofri a lesão medular.

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Capítulo 2 – Legislação e Políticas Públicas

O exercício da cidadania, entendido como um conjunto de práticas, direitos e liberdades

políticas, sociais e econômicas, é garantido, em grande medida, pelas legislações nacionais e

internacionais construídas democraticamente através da representação política (direta ou

indireta). No âmbito internacional, em particular após o término da II Guerra Mundial, em 1945,

foram desenvolvidos tratados e convenções no sentido de garantir os direitos humanos e eliminar

práticas discriminatórias. No Brasil, após o regime militar e depois de um período de transição

política, foi promulgada a Constituição “cidadã” de 1988. Assim como ocorreu com outros

grupos populacionais historicamente discriminados (mulheres e negros, por exemplo), as pessoas

com deficiência foram sendo incorporadas, gradativamente, nesses sistemas normativos gerais.

Na verdade, partindo-se de um princípio de igualdade humana em termos dos direitos

civis, políticos, econômicos e sociais, caminhou-se para identificação dos segmentos

populacionais vulneráveis, que demandavam atenção específica. Esse processo fica claro quando

se observa o quadro abaixo, em que se situa a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência (CDPD) no rol dos tratados internacionais sobre direitos humanos:

Quadro 9 – Tratados Internacionais de Direitos Humanos

1948 - Declaração Universal dos Direitos Humanos

1948 - Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio

1965 - Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

1966 - Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

1966 - Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

1979 - Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher

1984 - Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

1989 - Convenção sobre os Direitos da Criança

1990 - Convenção sobre os Direitos dos Trabalhadores Imigrantes e de suas Famílias

2006 - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Fonte: Assino Inclusão, 2008. www.assinoinclusao.org.br.

É possível perceber que, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948,

tanto grupos populacionais como direitos e práticas sociais foram objeto de Convenções

discutidas e aprovadas nas Nações Unidas. Estamos cientes que, infelizmente, os princípios

definidos nesses tratados muitas vezes são desrespeitados na prática; mas a apresentação e

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discussão do conteúdo dos mesmos é válida, no mínimo, como perspectiva de uma sociedade

mais justa e humana.

Desta forma, nesse capítulo vamos nos dedicar à discussão dos principais pontos da

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), recém aprovada no Brasil

com quorum qualificado pelo Congresso Nacional e, assim sendo, promulgada com força de uma

emenda à Constituição. Tal discussão, porém, finalizará esse capítulo. Antes, será feita uma

contextualização histórica do período que se inicia após 1945 e vai até meados da década de 70,

que se caracteriza por uma fase de elevado dinamismo social e econômico na maior parte dos

países, cujo símbolo é o Estado de Bem-Estar Social, em particular na Europa ocidental. Esse

movimento tem relações com a produção dos tratados internacionais de direitos humanos acima

mencionados, numa perspectiva de igualdade ou não-discriminação entre as pessoas,

independentemente do gênero, raça ou etnia.

Em seguida, a discussão retorna ao Brasil para um debate sobre o contexto político da

década de 80. Fundamentalmente, buscaremos recuperar aspectos relacionados à questão da

política social e como, na Constituição de 1988, o tema da deficiência foi tratado. A partir desse

momento, outras legislações foram criadas e buscaram dar suporte para a “política nacional de

integração da pessoa portadora de deficiência”, definida pela Lei 7.853/89 (e regulamentada pelo

Decreto 3.298/99). Vamos destacar a legislação que estabelece as reservas de vagas no setor

público (Lei 8.122/90) e as cotas para pessoas com deficiência no setor privado (8.213/91), as

quais têm relação direta com a discussão sobre mercado de trabalho no capítulo seguinte.

Também serão abordadas, de maneira mais objetiva, a legislação que define o Benefício de

Prestação Continuada (BPC) no âmbito da Assistência Social e o Decreto Federal 5.295/04, que

apresenta normas e definições sobre acessibilidade, um conceito-chave para construção de uma

sociedade inclusiva.

Portanto, em termos da sua estrutura, o presente capítulo é composto da seguinte forma:

2.1) O Welfare State e as transformações no campo dos direitos sociais; 2.2) O contexto sócio-

político nacional e a Constituição cidadã de 1988; 2.3) A política nacional de integração e

principais legislações sobre pessoas com deficiência; 2.4) A Convenção Internacional, políticas

públicas e perspectivas para inclusão social.

Ao concluí-lo, pretende-se constituir um quadro atualizado das principais legislações e

políticas voltadas para as pessoas com deficiência, as quais surgiram, em maior ou menor

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medida, em função da participação deste grupo populacional nos movimentos sociais e políticos

no Brasil e no contexto internacional.

2.1 – O Welfare State e as transformações no campo dos direitos sociais

Em primeiro lugar, é preciso tecer algumas considerações sobre o conceito de direitos

humanos que foi usado na Convenção e outros tratados internacionais. Na verdade, essa categoria

abarca outras dimensões e está fundamentada em princípios morais como a liberdade, a justiça e

a ética, se relacionando com a idéia base de dignidade humana. É nesse sentido que as

convenções internacionais buscam definir normas que garantam, a priori, direitos que são

inerentes à pessoa humana.

Entretanto, com o passar do tempo e na atualidade, desenvolveram-se direitos derivados

que definem condições para a eficácia dos direitos humanos. É o caso dos direitos civis e

políticos (direitos de “primeira geração27

”), que garantem a liberdade individual, o direito à vida,

à liberdade, à expressão e ao voto. Os direitos sociais e econômicos, conhecidos como direitos de

“segunda geração”, são aqueles que postulam a intervenção do Estado em áreas como saúde,

educação e trabalho. Dessa forma, a discussão sobre políticas públicas e mercado de trabalho, que

faremos neste e no próximo capítulo, se refere mais propriamente a essa “segunda geração de

direitos”, simbolizada pelos direitos sociais e econômicos28

.

Feita esta observação, a idéia desse item é discorrer, de maneira objetiva sobre o contexto

social, político e econômico que permitiu, depois da II Guerra Mundial, a construção de um

sistema de bem-estar social em vários países europeus, atendendo as chamadas minorias e

atrelado ao dinamismo econômico. Para tanto, na primeira parte do item apresentaremos

características do arranjo político e econômico das décadas de 50 e 60, principalmente na Europa

ocidental. Na segunda parte, trataremos da “revolução social”, nos termos do historiador Eric

27 O clássico trabalho de Marshall (1967) desenvolve a teoria de que os “direitos de cidadania” não se formaram ao

mesmo tempo na história. Tomando a Inglaterra como referência, os direitos civis seriam os primeiros a se

consolidar (século XVIII), em seguida os direitos políticos (XIX) e, somente ao longo do século XX, os direitos

sociais e econômicos. Vale registrar que, analisando o caso brasileiro, o historiador José Murilo de Carvalho conclui

que o modelo seqüencial proposto por Marshall não se aplica à nossa realidade, dada a heterogeneidade estrutural e o

caráter tardio dos processos de conquista dos direitos civis, políticos e sociais (Carvalho, 2001). 28 Vários autores no campo da Filosofia e do Direito fazem essa discussão, dentre os quais Norberto Bobbio. Em

Bobbio (1992), esse autor trata também dos direitos de “terceira geração” (ligados à coletividade, como o meio ambiente e a paz mundial) e de “quarta geração”, relacionados à evolução tecnológica da sociedade e à globalização,

envolvendo temas variados como a informática, a eutanásia e a pesquisa com células-tronco, por exemplo.

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Hobsbawn (1995), que permitiu, dentre outros aspectos, uma mudança significativa no “status

social” das mulheres. A idéia é fazer comparações dessa trajetória com o caminhar das pessoas

com deficiência em busca de sua autonomia e conquista da cidadania.

2.1.1 – O arranjo político e econômico pós-194529

O período que vai do final da segunda Guerra até meados da década de 70 apresentou um

crescimento econômico mundial muito elevado. As taxas observadas – entre 5% e 7% ao ano

num conjunto representativo de países, tanto do núcleo capitalista como de países periféricos –

ganham uma dimensão ainda maior quando comparadas ao período seguinte. Em linhas gerais,

nos anos 80 e nas décadas vindouras o nível de atividade diminuiu em grande parte dos países,

prevalecendo uma lógica financeira que subordinou o capital produtivo.

Mas nesse item estamos interessados na chamada era dourada (ou trinta anos gloriosos)

do capitalismo30

. Essa fase foi objeto de vários trabalhos e estudos, das mais diferentes matizes

teóricas e ideológicas. Aqui não pretendemos fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema, mas

apenas resgatar alguns autores que, em comum, têm uma visão ampliada e não estritamente

econômica sobre o período. Assim sendo, vamos tão somente destacar alguns elementos da época

nas esferas social, política e econômica, para em seguida abordar a “revolução social” que se

processou de maneira concomitante à era dourada.

Conforme colocado acima, o período que vai do final da segunda Guerra Mundial até

meados da década de 1970 é marcado pelo crescimento acelerado da demanda agregada,

induzindo e realimentando a expansão da economia. As razões para que isso tenha ocorrido estão

relacionadas, em boa medida, com um determinado arranjo político-institucional que se forjou.

29 Nesse subitem, na verdade, vamos nos restringir ao período que se encerra na primeira metade dos 70, com a perda de dinamismo das economias avançadas. Em sua análise, Hobsbawn (1995) também faz essa clivagem em meados

da década de 70, mas tem um olhar para um período maior de 45 anos que vai do lançamento das bombas atômicas

(1945) até o fim da União Soviética (1989). Embora não se trate de uma fase homogênea, esses 45 anos podem ser

reunidos “sob um padrão único pela situação internacional peculiar que os dominou até a queda da URSS: o

constante confronto das duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial na chamada Guerra Fria”

(Hobsbawn, 1995, p. 223). Durante esses anos, o medo da chamada “destruição mútua inevitável” foi a principal

garantia para não eclosão de outro conflito mundial que seria devastador para a civilização humana. 30 Tais denominações, de origem francesa (les trente glorieuses) e norte-americana (golden age), revelam a tentativa

de diferenciar positivamente este período da história. Esse sentimento, como alerta Hobsbawn (1995), ficou mais

claro depois das décadas seguintes: “o dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e escuro das

posteriores Décadas de Crise”. Entretanto, mesmo para aqueles que foram contemporâneos deste período, havia um

sentimento claro de melhora em relação ao passado tenebroso. Hobsbawn relata, por exemplo, a vitória eleitoral de um primeiro ministro britânico que utilizou, em 1959, o slogan “você nunca esteve tão bem”, o que certamente era

verdadeiro.

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Como aponta Hobsbawn (1995), este arranjo decorreu, em grande parte, de um sentimento

comum tanto aos ganhadores como perdedores da II Guerra; sentimento esse motivado pelo que

ele chama de “memória da catástrofe”.

A enorme perda de vidas humanas e a desestruturação econômica e social após a Guerra

(e como “memória” da Depressão de 1930), com desemprego e pobreza, teriam estimulado a

percepção de “compromisso” com condições adequadas de desenvolvimento econômico e

social31

. Tal sentimento foi observado na Europa Ocidental, devastada pela Guerra, Japão e nos

EUA, que formariam o núcleo capitalista desenvolvido em oposição ao “mundo comunista”,

liderado pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Essa configuração geopolítica

contribuiu para difusão da idéia, especialmente na Europa, de que o Estado deveria ter uma

função intervencionista (no mínimo uma forma de “economia mista”, com funções de

planejamento estatal). A necessidade de regulação era percebida tanto entre os países como

internamente, ou seja, na mediação entre os estratos ou classes sociais, até como uma resposta à

alternativa comunista.

Nesse processo, destaca-se a disseminação do padrão de consumo norte-americano, sendo

que empresas norte-americanas passam a investir na Europa, aumentando a oferta de produtos

característicos desse padrão, como os automóveis e os eletrodomésticos. Há, assim, uma

reestruturação dos oligopólios no velho continente, sob influência das empresas norte-

americanas. O dinamismo desse movimento, constatado pelo crescente fluxo de investimentos

entre os países centrais, era dado por expectativas futuras de mais crescimento, através do efeito

multiplicador na demanda agregada. É preciso ainda levar em conta o conjunto de mecanismos

como seguros sociais e benefícios previdenciários que deram estabilidade à renda familiar,

permitindo um horizonte seguro de endividamento. Isso ajuda a explicar a expansão continuada

da economia, com crescimento do crédito.

Nesse contexto, prevaleceu o objetivo da busca de uma situação de pleno emprego na

economia. Os resultados foram extremamente positivos, permitindo a manutenção do ciclo

virtuoso. Para que se tenha uma idéia, no início da década de 50, o desemprego ainda era alto, no

31 Para Belluzzo (1998): “A chamada era dourada do capitalismo estava fundada sobretudo na idéia de que a

solidariedade deve suplantar a competição. Isso levou à busca da articulação de interesses entre trabalhadores e capitalistas, à construção de instituições e de práticas destinadas a reduzir a angústia de quem se propõe a enfrentar

os azares do mercado”.

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patamar de 8% numa média dos principais países europeus. Em 1960, esse percentual, nesse

mesmo conjunto de países da Europa Ocidental, era de apenas 1,5%32

.

No que se refere à estrutura produtiva, embora o carvão tenha sido substituído pelo

petróleo como matriz energética, não tivemos grandes inovações tecnológicas, ou seja, o

crescimento da demanda e da oferta ocorreu, em grande medida, com as bases industriais da II

Revolução Industrial. Até a crise do petróleo, o preço do barril se manteve praticamente estável,

num patamar bastante acessível, numa faixa inferior a dois dólares33

. Ao longo da década de 50

na Europa, o aumento da oferta fez com que os preços dos produtos manufaturados convergissem

para níveis compatíveis com o rendimento tanto da classe média como dos segmentos populares.

Isso também foi possível em função de outra característica marcante da golden age: a

transferência para os salários dos ganhos de produtividade, aumentando o poder de compra dos

trabalhadores.

Em síntese, a discussão realizada por Hobsbawn (1995) sobre o período permite uma

análise segundo a qual o grande crescimento econômico das décadas de 50 e 60 na Europa não

decorreu de nenhum tipo de “determinismo tecnológico ou econômico”, mas sim da formação de

arranjos políticos e institucionais. Em outras palavras, o processo foi economicamente viável

dentro de pactos “progressistas” ou “conciliatórios” entre os países e as classes sociais.

Esse tipo de análise macro-política, com argumentos baseados também no desempenho

econômico, encontra-se em outros autores, como Van der Wee (1987). Explorando alguns casos

nacionais, tal autor destaca as oportunidades de crescimento adicional na Europa e Japão pela

defasagem em relação aos EUA (cathing-up). Os europeus não tinham o mesmo nível de salário

real que os americanos, que já possuíam um padrão de consumo relativamente diversificado em

meados do século XX. A ampliação do consumo nos países europeus, com a transferência dos

ganhos de produtividade para os salários, foi um elemento dinamizador da economia, assim como

havia salientado Hobsbawn.

Dada a destruição ocasionada pela Guerra, do ponto de vista da infra-estrutura, havia uma

enorme possibilidade de investimentos, muitos dos quais realizados pelo Plano Marshall, que se

32 Hobsbawn, 1995, p. 257. Nesse cenário, parecia fora de lugar na Europa Ocidental os lemas da Internationale,

como o “De pé, ó vítimas da fome!”. O pleno emprego e o aumento dos salários reais permitiram uma diminuição

das taxas de pobreza. Ademais, os mecanismos públicos do Welfare State eram garantias para os azares das doenças

ou mesmo para a velhice. 33 Hobsbawn, 1995, p. 260. Esse valor indica a dimensão do impacto que teve na economia mundial os choques do

petróleo na década de 70, onde haveria a explosão dos preços.

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utilizou do elevado estoque de capital disponível nos EUA. A disponibilidade de recursos

tecnológicos, equipamentos e materiais já desenvolvidos facilitou esse processo, assim como uma

mão-de-obra “liberada” no pós Guerra. Tais características são essenciais para explicar as razões

de um crescimento econômico maior na Europa e Japão do que nos EUA, nas décadas de 50 e 60.

O desenvolvimento da indústria automobilística foi um dos grandes símbolos do

movimento de expansão. O cathing-up também ocorreu nessa indústria, com a transposição de

técnicas de produção, modalidades de gerenciamento e formas de uso dos recursos materiais e

humanos a partir dos EUA. Ainda de acordo com Wee (1987), os ciclos econômicos ocorreram

com base nesse impulso inicial, em vários setores industriais, e foram sustentados nos momentos

de baixa pela política econômica expansionista e pelos instrumentos desenvolvidos na construção

do Wefare State.

Em relação às formas de articulação sustentável entre os componentes da demanda e a

oferta, esse autor chama atenção para o papel crescente dos sindicatos na negociação salarial e

dos vínculos com os partidos políticos. Os sindicatos se habilitam a fazer acordos salariais

nacionais na Europa, em vários setores de atividade econômica, facilitando o diálogo e a

coordenação. Outro aspecto é o aumento do salário real incentivado pelo Estado, oferecendo bens

públicos e serviços a preços baixos, abrindo assim espaço no orçamento familiar. O crescimento

de bens culturais também é um sintoma da expansão, massificando os padrões de consumo34

.

Destacadas as características gerais do período, para finalizar este subitem, vale a pena

fazer uma referência ao trabalho de Marglin (1990), que defende uma perspectiva

multidimensional na explicação da crise da década de 1970 nos países centrais do capitalismo ou

no esgotamento das condições que permitiram a ocorrência da era dourada. De acordo com esse

autor, o contexto macroeconômico adverso, as mudanças no regime monetário internacional, nos

sistemas de produção e nas chamadas regras de coordenação – entre os países e internamente –

seriam os principais elementos para a explicação da diminuição do ritmo de crescimento

econômico mundial já no início da década de 70. Assim sendo, a crise teria sua origem tanto

pelos problemas domésticos nos países centrais como pelo conflito entre os capitais e os

diferentes interesses financeiros.

34 Uma discussão interessante sobre os limites deste modelo de crescimento puxado pelo aumento dos salários reais

encontra-se em Bowles e Boyer (1990). Partindo das concepções marxistas e keynesianas de crise do capitalismo –

que remetem, respectivamente, ao conflito de classes e a idéia de insuficiência da demanda agregada – esses autores buscam ampliar o debate através do conceito de profit squeeze, ou “aperto dos lucros” num quadro de nível de

emprego elevado.

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A pergunta fundamental que esse autor faz é a seguinte: como se desintegraram os

arranjos sócio-econômicos que haviam interagido para produzir o crescimento nas décadas de 50

e 60? Para responder a tal questionamento, desenvolve-se um esquema de quatro dimensões: 1) o

ambiente macroeconômico interno, ou a estrutura macroeconômica; 2) a ordem internacional que

regulou as relações econômicas entre os países; 3) as instituições que regularam a relação capital-

trabalho, ou o sistema de produção; 4) as regras de coordenação entre os agentes econômicos.

Essas dimensões devem ser discutidas tendo como pano de fundo o contexto histórico,

particularmente a Grande Depressão e as Guerras Mundiais.

Durante as décadas de 50 e 60, no que se refere à primeira dimensão (estrutura

macroeconômica), destacava-se a demanda por investimentos como elemento essencial, havendo

um manejo virtuoso da demanda agregada. Além disso, evidenciava-se o papel dos lucros como

propulsores da confiança para o investimento. Em relação à ordem internacional, a hegemonia

norte-americana facilitou o fluxo de bens e capitais entre os países subdesenvolvidos e os

avançados, fornecendo o contexto para o regime de Bretton Woods, que estabeleceu uma ordem

financeira e comercial relativamente estável. Sobre o sistema de produção, como já destacamos,

ele se viabilizou pela expansão do modelo norte-americano, com controles técnicos e

burocráticos da produção, além da difusão da idéia do trabalhador como “parceiro” do capitalista,

como membro da empresa. Finalmente, havia regras de coordenação que estabeleciam os

métodos pelos quais os agentes econômicos – indivíduos, firmas e Estados – se relacionavam

entre si e se comportavam diante das exigências da estrutura macroeconômica e do sistema de

produção.

A crise da década de 1970 é o movimento simultâneo de enfraquecimento ou fragilização

dessas dimensões. A saturação dos mercados, o aumento do preço do petróleo, a diminuição da

hegemonia norte-americana e o fim do sistema de Bretton-Woods foram acontecimentos que

marcaram a reversão do arranjo socioeconômico anterior. É claro que esse tipo de análise é

facilitado a posteriori, mas não deixa de ser ilustrativo como, de fato, existem vários

componentes que devem ser levados em conta na discussão relativa não só a era dourada, mas

qualquer período histórico.

Neste subitem buscamos apenas descrever, de maneira pontual e sem aprofundar o debate,

as características chaves e os limites do período de grande crescimento econômico mundial entre

o final da II Guerra e o início dos anos 70. Tendo em vista esse período como um todo,

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retornamos ao seu início para tratar da “mais impressionante, rápida e profunda revolução nos

assuntos humanos de que a história tem registro” (Hobsbawn, 1995, p. 281). Trata-se da

“revolução social” que se processou ao longo do século XX, com velocidade acentuada na era de

ouro do capitalismo.

2.1.2 – A “revolução social” no contexto da era dourada

Ao abordar as questões relativas à “revolução social”, Hobsbawn (1995), na verdade,

estende sua discussão do final da II Guerra até 1989, ou seja, um período de tempo maior em que

está contida a era de ouro. A maior parte dessas mudanças, porém, iniciou-se e ganhou impulso

na fase de grande dinamismo econômico e social das décadas de 50 e 60. Assim sendo, nesse

subitem vamos priorizar as mudanças mais significativas desse período histórico, fazendo apenas

menções à ocorrência de fenômenos mais recentes, como a diminuição dos trabalhadores na

indústria, notadamente a partir de 1980 com as transformações tecnológicas e num novo contexto

(liberal) de orientação política e econômica.

Sobre as mudanças econômicas e sociais ao longo do século XX, esse autor chama

atenção para o fato de que, desde a década de 40 nos EUA, uma “pequena faixa de ricos e

cosmopolitas” já vinha sentido os benefícios de uma transformação tecnológica em curso,

materializando-se numa gama variada de bens de consumo e serviços. A intensidade da

“revolução social” do pós II Guerra pode ser medida, principalmente, pela rapidez das

transformações e sua universalidade, para além dessa pequena parcela da população norte-

americana, pois para parte considerável da população mundial “a Idade Média acabou de repente

em meados da década de 50; ou melhor, sentiu-se que ela acabou na década de 1960”

(Hobsbawn, 1995, p. 283).

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Dentre as principais mudanças que caracterizam a “revolução social”, Hobsbawn assinala

que:

“A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda

metade deste século, e que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato. Pois desde a era neolítica a maioria dos seres humanos vivia da

terra e seu gado ou recorria ao mar para a pesca. Com exceção da Grã-Bretanha,

camponeses e agricultores continuaram sendo uma parte maciça da população empregada, mesmo em países industrializados, até bem adiantado o século XX”

(grifos nossos. Hobsbawn, 1995, p. 284).

Isso se altera radicalmente na segunda metade do século XX. Observando os trinta anos

que vão de 1950 a 1980, percebe-se de maneira evidente pelos dados demográficos esse processo.

A parcela da população ocupada na atividade agrícola é reduzida para algo em torno de 10% do

total nos EUA e nos países da Europa Ocidental35

. É verdade que, nessas regiões, já havia uma

tendência de declínio constante dessa participação, mas esse movimento intensifica-se no pós II

Guerra.

Em outros países, como no caso do Japão, os camponeses foram reduzidos de 52,4% da

população em 1949 para 9% em 1985. Essa mudança também foi verificada em países “cuja

óbvia falta de desenvolvimento as Nações Unidas tentavam disfarçar com uma variedade de

eufemismos para as palavras atrasado e pobre” (Hobsbawn, 1995, p.285). Em toda a América

Latina, inclusive no México e no Brasil, e com exceção do Haiti e dos mini-Estados centro-

americanos, já na década de 1970 não havia um único país em que os camponeses fossem a

maioria. O mesmo fenômeno ocorreu em países do norte da África, de maneira que só três

regiões do globo permaneceram majoritariamente compostas por aldeias e campos no início dos

80: a África subsaariana, o sul e sudeste da Ásia e a China (que teria tal situação alterada nas

décadas seguintes).

O movimento de redução da população agrícola foi resultado, em boa medida e em linhas

gerais, da “extraordinária explosão de produtividade per capita, de capital intensivo, promovida

pelos agricultores” (Hobsbawn, 1995, p. 287). As técnicas de plantio e colheita se aperfeiçoaram

com base em novas tecnologias, dispensando número significativo de mãos e braços que

trabalhavam no campo. É claro que nas regiões mais pobres do mundo esse processo foi mais

35 A exceção seriam os países ibéricos, Espanha e Portugal, onde esse percentual no início de 1980 ainda era de 14,5% e 17,5%, respectivamente. Mesmo assim, esses índices representavam menos da metade da população

agrícola desses países na década de 1950 (Hobsbawn, 1995, p. 285).

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irregular, mas também esteve presente e foi fundamental para o abastecimento de grandes

populações no sudeste e sul da Ásia. Sem essa “revolução científica verde” não teria sido

possível a alimentação e o crescimento das populações36

.

Como afirma esse autor, “quando o campo se esvazia, as cidades se enchem” (Hobsbawn,

1995, p. 288). O mundo da segunda metade do século XX tornou-se urbanizado como jamais

fora. O processo de urbanização, entretanto, teve características distintas quando se consideram

os países desenvolvidos centrais e a periferia capitalista. Nos primeiros, não raro foram os

exemplos de planejamento urbano, sendo que grandes cidades como Nova York, Londres e Paris

“pararam de crescer” e já possuíam um porte significativo nas primeiras décadas do século XX.

Na periferia capitalista, a aglomeração urbana acelerou-se em cidades como São Paulo, Cairo ou

Cidade do México, num movimento que trouxe consigo uma série de problemas de infra-

estrutura. Isso porque, de maneira geral, a grande cidade em países do Terceiro Mundo, embora

também ligada por sistemas de transporte (na maioria das vezes obsoletos e inadequados), “não

podia deixar de ser dispersa e desestruturada, quando mais não fosse porque não há como não o

serem aglomerações de 10 a 20 milhões de pessoas, sobretudo se a maior parte de seus

assentamentos começou como favelas baixas, quase sempre estabelecidas por grupos de posseiros

num espaço aberto baldio” (Hobsbawn, 1995, p. 289).

Fazendo um parêntese, quando refletimos sobre o Brasil e, mais especificamente, sobre a

situação das pessoas com deficiência durante o movimento de êxodo rural e urbanização,

algumas questões podem ser levantadas. A partir do governo JK, mas desde 1930 e com

participação decisiva de Getúlio Vargas, vínhamos deixando de ser uma “grande fazenda

exportadora” (Draibe, 198537

). Não cabem aqui discussões maiores sobre esse processo de

construção de um país com programas e políticas nacionais, mas é possível visualizar resultados

positivos e negativos no que se refere à população com deficiência.

Como vimos, nas décadas de 40 e 50, sob a influência da área médica, deu-se maior

atenção a essa temática, com o desenvolvimento de pesquisas e a proliferação de instituições

especializadas no atendimento dessa população. A urbanização e a industrialização do país

36 Na atualidade vivemos um período de crise alimentar cujas causas são variadas mas decorrem, fundamentalmente,

da manutenção de subsídios agrícolas nos países ricos, da existência de um mercado especulativo e desregulado das

chamadas commodities agrícolas e do fato, este positivo, da incorporação de parcelas numerosas da população que

viviam num estado de miserabilidade e fome. 37 Nesse livro a autora detalha, dentre outros aspectos, o processo de formação de um país com políticas de âmbito

nacional, não mais regionalizadas, a partir da centralização das decisões no governo Vargas e posteriores.

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contribuíram para produzir riqueza material que pôde ser usada também na melhora da qualidade

de vida de indivíduos com limitações físicas, sensoriais e cognitivas. Por outro lado, se as

grandes cidades cresceram de maneira desordenada, essa parcela da população encontrou

barreiras ainda maiores para sua livre mobilidade e inserção social38

. As deficiências de infra-

estrutura, a falta de planejamento e a precariedade dos serviços públicos, como no transporte,

impuseram o isolamento desse grupo populacional, confinado muitas vezes às instituições ou aos

cuidados familiares exclusivos.

Não pretendemos aprofundar esse debate, mas é importante destacarmos esse aspecto

porque ele demonstra a relação perversa que existe entre a falta de estrutura urbana e dos serviços

públicos com os limites decorrentes da deficiência. Esses últimos são potencializados pelos

primeiros e, embora tenhamos tido avanços nas décadas de 90 e atual, muitas pessoas com

deficiência ainda permanecem alijadas do convívio social.

De volta à contextualização da “revolução social do pós-1945”, Hobsbawn (1995) afirma

que “quase tão dramático quanto o declínio e queda do campesinato, e muito mais universal, foi o

crescimento das ocupações que exigiam a educação secundária e superior” (Hobsbawn, 1995, p.

289). Tendo como aspiração a educação primária universal, vários países e governos

desenvolveram políticas e ações que resultaram, ao longo das décadas de 50, 60 e 70, num

substancial aumento do nível educacional das suas populações. Esse movimento foi concomitante

com uma demanda crescente por profissionais mais bem qualificados, sendo que o número de

universitários cresce vertiginosamente nos países desenvolvidos e também no Terceiro Mundo39

.

Deve-se ter em mente que, durante a era dourada, a obtenção de um diploma

universitário, precedido naturalmente pela formação básica, era uma garantia quase que

automática de uma boa oportunidade profissional, com crescimento da renda e conquista de um

status social superior. De maneira geral:

38 Problemas tão ou mais difíceis enfrentaram também as pessoas com deficiência que permaneceram residindo nas

áreas rurais. 39 De acordo com Hobsbawn (1995): “a explosão de números foi particularmente dramática na educação

universitária, até aí tão incomum que chegava a ser demograficamente negligenciável, a não ser nos EUA. Antes da

Segunda Guerra Mundial, mesmo a Alemanha, França e Grã-Bretanha, três dos maiores países desenvolvidos e

instruídos, com uma população total de 150 milhões, não tinham juntos mais do que aproximadamente 150 mil

universitários, um décimo de 1% de suas populações somadas. Contudo, no fim da década de 1980, os estudantes

eram contados aos milhões na França, República Federal da Alemanha, Itália, Espanha e URSS (para citar apenas países europeus), isso sem falar no Brasil., Índia, México, Filipinas e, claro, EUA, que tinham sido pioneiros na

educação universitária em massa” (Hobsbawn, 1995, p. 290).

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“O grande boom mundial tornou possível para incontáveis famílias modestas –

empregados de escritório e funcionários públicos, logistas e pequenos comerciantes,

fazendeiros e, no Ocidente, até prósperos operários qualificados – pagar estudo em tempo integral para os seus filhos. O Estado de Bem-Estar Social ocidental, começando com os

subsídios americanos para ex-pracinhas após 1945, ofereceu substancial auxílio estudantil

de uma forma ou de outra, embora a maioria dos estudantes ainda esperasse uma vida

claramente sem luxo” (Hobsbawn, 1995, p. 290).

No Brasil, em particular no período de 1968 a 1973, do chamado “milagre brasileiro”,

isso também ocorreu. Embora tenha prevalecido uma política de contenção salarial e piora na

distribuição de renda, nesse período não se colocava, por exemplo, a questão do desemprego

aberto e havia uma demanda crescente por pessoas com ensino superior.

Além da diminuição da população agrícola e do crescimento do nível educacional40

,

Hobsbawn (1995) destaca mais dois aspectos da “revolução social”: as mudanças nas classes

operárias industriais e o papel impressionantemente maior desempenhado pelas mulheres nas

sociedades ocidentais. Em relação à classe operária, na verdade, elas permaneceram estáveis em

termos quantitativos durante todos os anos dourados, constituindo cerca de um terço da

população empregada41

. Há, de acordo com o autor, uma “crise de consciência” e identidade da

classe operária já nas décadas de 50 e 60. Até antes da II Guerra, prevalecia um sentimento de

coletividade e da necessidade de um engajamento político para a melhora na condição de vida do

trabalhador. Entretanto, a combinação do boom econômico, pleno emprego e de uma sociedade

de consumo, amparada num Estado de bem-estar social, “transformou a vida dos operários nos

países desenvolvidos, e continuou transformando-a. Pelos padrões de seus pais, e na verdade, se

suficientemente velhos, pelas suas próprias lembranças, já não eram pobres” (Hobsbawn, 1995, p.

301). Os antes claros contornos do “proletariado” foram se dissolvendo e isso explica, em grande

medida, o enfraquecimento de sindicatos e partidos que se mantiveram, de forma dogmática,

ligados à idéia de uma sociedade bipolar.

Redução da população agrícola, avanço da urbanização, elevação do nível educacional e

transformações na massa trabalhadora. Essas características compõem a “revolução social” que

40 Além da massificação da educação, o autor chama atenção para formação de uma identidade social estudantil. Por

exemplo, nos países ditatoriais da América Latina, os estudantes forneciam o principal, quando não o único, grupo de

cidadãos capazes de uma ação política coletiva. Nesse contexto, Hobsbawn (1995) discute o ano de 1968, marco da

agitação estudantil e social, enxergando neste movimento uma reivindicação dirigida, mesmo que vaga e cegamente,

“contra o que eles viam como característico daquela sociedade, não contra o fato de que a velha sociedade talvez não

houvesse melhorado o bastante” (Hobsbawn, 1995, p. 296). 41 Somente a partir da década de 1980 é que declina de modo significativo a participação dos trabalhadores da

indústria no total de ocupados.

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se observou em boa parte do mundo na segunda metade do século XX, com maior intensidade

nos trinta anos de 1945 até meados da década de 70. A elas se soma o papel cada vez maior

ocupado pelas mulheres na sociedade, em especial no mercado de trabalho. Nos EUA, por

exemplo, em 1940 as mulheres casadas que trabalhavam não atingiam 14% do total da população

feminina. Esse percentual passa dos 50% no final da década de 70, puxado pela expansão das

atividades do setor terciário (serviços), em detrimento da ocupação agrícola. Tal movimento

ocorre em muitos países e é acompanhando pela expansão da participação feminina no ensino

superior.

Na década de 1960 – justamente puxado pelos fenômenos de inserção no mercado de

trabalho e nas universidades – há um impressionante reflorescimento dos movimentos feministas.

Já existia anteriormente, mas difundi-se em vários países, com exceção de alguns Estados

islâmicos, o voto feminino, consolidando o grupo das mulheres como uma força política

importante. De maneira geral, mesmo em países com culturas “atrasadas ou conservadoras”, com

viés machista, buscou-se uma emancipação feminina em termos dos direitos legais e políticos e

do acesso à educação e ao trabalho.

As demandas anteriores não diferem muito daquelas reivindicadas pelas pessoas com

deficiência. Nesse sentido, é interessante notar que, assim como ocorreu na questão racial, foi

necessária uma intensa mobilização política para que esse tema recebesse o tratamento adequado

do Estado. Nos EUA, a Lei dos Direitos Civis de 1964 é um marco histórico e nela estão contidas

políticas de “ação afirmativa” que se justificam dar a um grupo tratamento preferencial no acesso

a um recurso ou atividade social, partindo-se do pressuposto de que esse grupo encontra-se em

situação inicial de desvantagem nessa “corrida”.

Ao descrever esse período, Hobsbawn (1995) defende o caráter temporário dessas

políticas; visão que compartilhamos também para o caso das pessoas com deficiência. Um

exemplo ilustrativo desse processo é o fato de que as pessoas com deficiência participaram da

revolução pelos direitos civis nos EUA e já na década de 50 conseguiram efetivar uma legislação

que garantia seu acesso ao mercado de trabalho através das cotas. Por iniciativa do próprio

movimento das pessoas com deficiência, esta legislação foi abandonada em meados da década de

90, por ser então considerada desnecessária numa sociedade que incluía naturalmente pessoas

com limitações físicas, sensoriais e cognitivas.

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Nesse primeiro item do capítulo 2, nosso objetivo foi buscar uma referência histórica de

um período que, de maneira geral, apresentou melhoras na condição de vida da população, sob a

inspiração de um Estado presente na economia. Ao mesmo tempo, e não por acaso, nas três

décadas seguintes ao final da II Guerra são produzidas convenções internacionais com ênfase nos

direitos humanos e sociais, priorizando grupos populacionais historicamente excluídos e

discriminados.

Tanto o arranjo sócio-econômico da “era dourada” como a forma de organização política

desses grupos populacionais fornecem lições e subsídios importantes para discussão atual sobre

cidadania e pessoas com deficiência. Porém, temos que trazer esse debate para a realidade

brasileira, na qual, como vimos, o movimento das pessoas com deficiência ganha força somente

na década de 80, um período de transição política, com destaque para o processo que culminou na

elaboração da Constituição de 1988.

2.2 – O Contexto sócio-político nacional e a Constituição “cidadã” de 1988

A primeira metade da década de 80 marca um período importante da história brasileira na

medida em que, depois de quase duas décadas de ditadura militar, entramos numa fase de

“transição democrática”. Como já salientamos, para as pessoas com deficiência, o ano de 1981

foi particularmente importante, com o AIPD chamando a atenção da sociedade para essa questão.

Nesse item, nos pautando pela tese de doutorado do professor Fagnani (2005), buscamos,

num primeiro momento, caracterizar a política social empreendida no período pós-1964. Já na

segunda parte, concentraremos nossa atenção no processo político que culminou com a

Constituição de 1988, abrindo espaço para uma série de legislações posteriores referentes aos

direitos sociais, inclusive aqueles relativos às “pessoas portadoras” de deficiência42

.

42 No texto constitucional e nas legislações seguintes, utiliza-se o termo “pessoa portadora de deficiência”, conforme observado no item 1.4 do capítulo 1. A partir da segunda metade dos 90 e especialmente no século XXI, ele vai

sendo gradativamente abandono, visto que as deficiências não se portam (ou se carregam), estão com ou na pessoa.

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2.2.1 – Premissas e características gerais da política social no período pós 1964

Analisando a trajetória da política social brasileira a partir do golpe militar de 1964 até o

final do governo FHC em 2002, Fagnani (2005) identifica dois movimentos contraditórios e

determinantes na sua execução: a tentativa de estruturar um Estado Social no país com políticas

de cunho universal e, no sentido contrário, um esforço conservador para manutenção do status

quo, reduzindo e focalizando a política social. Em suas palavras, o primeiro movimento “aponta o

rumo da estruturação das bases institucionais e financeiras características do Estado de Bem-

Estar Social em nosso país”, enquanto que o segundo aponta o contrário, ou seja, a

desestruturação destas bases.

Partindo dessa visão, identificam-se três momentos específicos da intervenção estatal nas

políticas sociais no Brasil: a) de 1964 a 1984, correspondendo ao período do regime militar; b) de

1985 a 1989, compreendendo a transição democrática e; c) de 1990 a 2002, uma fase marcada

por uma orientação liberal das políticas econômica e social, durante os governos Collor e

Fernando Henrique Cardoso.

Mais adiante, vamos recuperar essa cronologia, dando ênfase ao segundo período, de

1985 a 1989, que contempla o processo da Assembléia Constituinte. Antes, porém, vale destacar

algumas premissas do debate acerca da política social no Brasil, assim como faz Fagnani (2005),

uma vez que compartilhamos integralmente da sua visão.

A discussão sobre política social no Brasil é complexa em razão do quadro de carências

estruturais que nosso país apresenta. É preciso considerar, em primeiro lugar, que temos

“deficiências estruturais acumuladas nas áreas consagradas nos paradigmas clássicos de Estado

do Bem-Estar: saúde pública, educação, previdência social, assistência social, seguro-desemprego

e demais programas de proteção e qualificação do trabalhador desempregado” (Fagnani, 2005, p.

12). A permanência de níveis elevados de desigualdade e precariedade nos serviços públicos

sociais exige a intervenção do Estado, por meio de políticas públicas universais. Tal posição foi

defendida no inicio desse trabalho, adicionando-se que, dentro dessa perspectiva, grupos

populacionais socialmente vulneráveis podem requerer atenção específica.

Em segundo lugar, para além das acima referidas áreas clássicas do Estado de Bem-Estar,

o Brasil apresenta debilidades na infra-estrutura urbana (habitação popular, saneamento básico e

transporte público). Fagnani (2005) assinala que, de maneira geral, nos países avançados tais

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questões já foram equacionadas, com estruturas urbanas adequadas, principalmente em termos de

saneamento e transporte público.

Essa observação ajuda a entender relatos de pessoas que, voltando da Europa Ocidental,

EUA ou Austrália, por exemplo, dizem estar surpresas com o “número bem maior” de pessoas

com deficiência nessas regiões. Os dados demográficos não são definitivos quanto à proporção

maior dessa população em países avançados43

, que passaram ou ainda estão envolvidos com

grandes conflitos militares, mas esta percepção é também influenciada pela facilidade de

locomoção e acesso que existe nos países citados, respeitando-se as normas de acessibilidade. As

pessoas com deficiência, sem maiores dificuldades, freqüentam os espaços públicos e privados,

ao contrário do Brasil e outros países onde ainda existem barreiras físicas e de comunicação.

Fagnani (2005) aponta outras premissas para compreender o quadro geral das carências

sociais e estruturais do Brasil, a partir do qual devem ser pensadas as políticas sociais. Dentre

elas, a ausência de um processo real e abrangente de reforma agrária, além da questão social

ligada à fome e à destituição absoluta que atingem um contingente significativo da população.

Sobre esse tema, parece ter havido avanços nos últimos anos, no governo Lula, através de

programas emergenciais de suplementação alimentar e transferência de renda, como é o caso do

Bolsa-família44

. O problema ou equívoco dessa política é tentar fazer dela a única estratégia

possível para o enfrentamento da questão social. Tal concepção foi amplamente difundida nos

anos 90 e até recentemente defendida por instituições como o Banco Mundial e o FMI, por

exemplo.

No caso das pessoas com deficiência, dentro desse debate, o importante é compreender

que as políticas focalizadas servem justamente para grupos historicamente discriminados e

destituídos. A defesa correta dos programas universais, como o SUS – Sistema Único de Saúde –

ou do lema “Educação para todos”, não deve abrir mão de atender demandas específicas e/ou

43 Na verdade, não é fácil fazer uma comparação internacional porque os critérios para definição da deficiência

variam de um país para o outro. Como já destacamos, os dados do Censo de 2000, realizado pelo IBGE, revelam um

percentual de 14,5% da população no Brasil com algum tipo de deficiência ou incapacidade. Nos EUA, um censo

realizado no mesmo ano apurou um percentual de 19,3% de pessoas com deficiência. Já na Inglaterra e Alemanha,

por exemplo, talvez por outros critérios, estes percentuais foram de 12,5% e 8,4%, em diferentes levantamentos

realizados na década de 90, ao contrário do que indica o “senso comum”. Fontes: United Nations Statistics Division;

IBGE (Brasil); Bureau of the Census (USA). 44 Contribuíram para isso também uma política de aumento real do salário mínimo combinada com o crescimento

econômico do período 2004-2007. Quadros (2008) apresenta dados acerca dessa mudança, com a diminuição do estrato inferior de renda (“miseráveis”), mas aponta para os limites do atual modelo de política econômica em termos

da melhora na estrutura social.

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emergenciais, como daquelas pessoas que passam fome ou, em função de alguma limitação

física, sensorial ou intelectual, estão alijadas dos serviços públicos básicos (por inadequação

destes).

Finalmente, a última premissa destacada por Fagnani (2005) – por ele mesmo reconhecida

como fora da literatura especializada (sobre política social) – é a idéia de que “é preciso

considerar a problemática do mercado de trabalho (emprego e renda) e das relações sindicais e

trabalhistas, cuja centralidade é inequívoca” (Fagnani, 2005, p. 13). Tal assertiva nos dá

segurança para discutir nessa tese a questão das pessoas com deficiência no âmbito do mercado

de trabalho formal, pois, assim como afirma esse autor:

“As oscilações do mundo do trabalho têm evidentes repercussões sobre o conjunto das

condições de vida. Além disso, no caso brasileiro, há uma clara imbricação do mercado de

trabalho com o financiamento do gasto social. Da mesma forma, a carteira assinada no Brasil é um divisor de águas entre a cidadania e a caridade. (...) vale sempre a pena repetir

o fato insofismável de que a principal política social é o crescimento econômico e a

geração de emprego e renda” (grifos nossos; Fagnani, p. 13, 2005).

Definidos esse pressupostos básicos, retomemos o cronograma apresentado no início

desse subitem para análise das características gerais da política social no Brasil. Na verdade,

conforme destacado, para os objetivos desse trabalho nos deteremos mais no período de 1985 a

1989 e no texto da Constituição, explicitando aspectos que dizem respeito aos “portadores de

deficiência”. Mas, para uma idéia do contexto geral, inicialmente valem menções ao período de

1964 a 1984.

De acordo com Fagnani (2005), durante a ditadura militar programou-se uma estratégia de

“modernização conservadora” nas políticas sociais. Houve um aumento da intervenção estatal e a

criação de mecanismos de financiamento que ampliaram as possibilidades de gasto público na

área social. Entretanto, a análise dos resultados efetivos da política social deste período revela seu

caráter conservador, “na medida em que, via de regra, seus frutos não foram direcionados para a

população mais pobre e tiverem reduzido impacto na redistribuição de renda” (Fagnani, 2005, p.

14).

É claro que, em função da última premissa colocada acima, o crescimento econômico e a

geração de trabalho e renda são decisivos na questão social, não se verificou, por exemplo, a

ocorrência do desemprego aberto. Mas, em que pesem algumas especificidades relacionadas a

cada setor (educação, previdência, saúde, assistência, habitação, saneamento e transporte), a

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política social do regime militar apresentou características estruturais conservadoras e que

limitaram sua efetividade.

Fagnani (2005) destaca quatro características: a) o caráter regressivo do financiamento do

gasto social; b) a centralização do processo decisório no Executivo Federal; c) a privatização do

espaço público; e d) fragmentação institucional. Em conjunto, “elas explicam, em grande medida,

tanto a expansão de bens e serviços quanto à limitada capacidade de redistribuição de renda

demonstrada pela política social do regime militar” (Fagnani, 2005, p. 14).

Em síntese, durante os vinte anos de 1964 a 1984, houve um crescimento da ação estatal

no atendimento de demandas na área social, mas esse processo se fez de acordo com uma

orientação conservadora e autoritária, penalizando os setores mais pobres e beneficiando, muitas

vezes, interesses privados.

Vejamos as características gerais dos períodos de 1985-1989 (“transição democrática”) e

de 1990-2002 (“hegemonia neoliberal”), para depois concentrar nossa atenção no contexto

político e na Constituição de 1988.

Entre 1985 e 1989, uma ampla e heterogênea coalização de forças políticas se formou e

dirigiu o processo de transição para a normalidade democrática. Dentro da chamada “Aliança

Democrática” era possível identificar setores que buscaram desenvolver as bases institucionais e

financeiras próprias do Estado de Bem-Estar Social. Principalmente pela atuação de lideranças

históricas do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), observou-se um movimento que o

autor chama de “rumo ao Estado Social”. Tal movimento teria ocorrido em três frentes de luta: a)

já a partir de meados da década de 70, quando esse projeto começa a ser formulado numa fase de

distensão do regime militar; b) no âmbito do governo da Nova República (1985-1990); c) e no

bojo das discussões da Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988). Sobre essa terceira frente

de luta, afirma Fagnani (2005):

“A Constituição de 1988 representou etapa fundamental, embora inconclusa, da

viabilização do projeto de reformas progressistas. Com exceção da Reforma Agrária, suas principais bandeiras foram inscritas na nova Constituição da República. A análise do texto

constitucional revela, de forma inequívoca, um extraordinário avanço na reestruturação do

sistema de proteção social brasileiro. Desenhou-se, pela primeira vez na história do Brasil, o embrião de um efetivo Estado Social, universal e equânime” (grifos nossos. Fagnani,

2005, p. 15).

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Porém, um movimento antagônico a esse, impelido pela ala conservadora do pacto de

transição democrática, foi também claramente observado. Seus principais representantes,

oriundos e apoiadores da ditadura militar, estavam no Partido da Frente Liberal (PFL45

).

Motivados pelos interesses dos grandes proprietários de terra e de outros setores com grande

poder econômico, tais forças políticas buscaram esterilizar o projeto reformista que estava em

curso.

O autor identifica as primeiras contramarchas ao modelo do Estado Social no âmbito do

governo federal a partir de 1985, num movimento não tão explícito em função do ambiente

político e social da época. Em seguida, logo após a Constituição de 1988, ficam mais evidentes as

tentativas de desfigurar os direitos sociais ali inscritos. Isso ocorre já no processo de

regulamentação constitucional entre 1988 e 1989.

O terceiro momento da intervenção do Estado nas políticas sociais corresponde aos anos

de 1990 a 2002. Essa terceira fase é marcada por um “ciclo de reformas liberais”, antagônicas à

tentativa de construção de um Estado Social. Com o início do governo Collor, em 1990,

“caminhou-se vigorosamente no rumo da desestruturação do Estado Social recém conquistado”.

No campo ideológico, essa alternativa foi respaldada pelo pensamento neoliberal, que se

tornou hegemônico com bandeiras relativas ao Estado mínimo, à eficiência das livres forças de

mercado e à primazia das políticas sociais focalizadas. Num contexto de desregulamentação

financeira e produtiva, o Brasil engajou-se fortemente nessa “onda”, havendo um processo de

recomposição das forças políticas conservadoras. Durante os oitos anos do governo FHC, a

política social viu-se amplamente limitada e constrangida pela política econômica, que reduzia a

capacidade de intervenção do Estado num contexto de desemprego e precarização crescentes.

O período relativo ao governo Lula não foi incorporado ao estudo de Fagnani (2005),

embora o autor, em 2005, já destacasse as “perspectivas nada promissoras” com a manutenção da

política econômica. Porém, no segundo governo Lula (2007-2010), ocorreram avanços na política

social a partir de possibilidades de investimentos e maior participação do Estado na economia

com a crise do modelo neoliberal em 2008. Se não houve mudanças significativas na qualidade

de serviços públicos como Educação e Saúde, pelo menos foi aperfeiçoado o aparato institucional

através do fim da DRU – Desvinculação das Receitas da União – para Educação, melhorias na

estrutura do SUS (Sistema Único de Saúde) e criação do SUAS (Sistema Único de Saúde).

45 Atualmente rebatizados de “democratas”, o que é trágico e cômico ao mesmo tempo.

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Ademais, considerando novamente a premissa que postula o crescimento econômico como

principal instrumento de política social, e dado o crescimento médio significativo no segundo

governo Lula (com exceção de 2009), houve um resultado positivo para segmentos mais frágeis

da população em termos de acesso a bens e serviços46

.

No capítulo 3, esta discussão será retomada ao tratarmos do mercado de trabalho no

período recente, com ênfase para a inserção das pessoas com deficiência. A seguir, será abordado

de modo mais específico o contexto político dos anos 80 e o processou que levou à Constituição

de 1988, abrindo caminho para outras legislações relativas a esse segmento populacional, como

veremos ainda no capítulo 2.

2.2.2 – A Constituição de 1988 – Antecedentes e resultados

O início da década de 80 foi um período de grande efervescência social e política, pois já

se vislumbrava o fim da ditadura militar. Ao discutir esse momento, Fagnani (2005) chama

atenção para o documento chamado “Esperança e Mudança: uma proposta de Governo para o

Brasil” (PMDB, 1982). A sua importância está no fato de que as diretrizes políticas, econômicas

e sociais nele contidas serviram de fio condutor das forças progressistas no longo processo de luta

que desaguou na Assembléia Nacional Constituinte. Não vamos aqui, naturalmente, reproduzir

ou mesmo nos alongar na apresentação do conteúdo desse documento, mas valem algumas

observações sobre ele visto que suas principais bandeiras foram de fato inscritas na Constituição

promulgada em 1988.

A convocação de uma Assembléia Constituinte era o principal instrumento para

restabelecer o Estado Democrático de Direito, vista como a “solução-síntese” ou o “berço da

democracia”, de acordo com as definições do Esperança e Mudança (1982). Nesse processo, era

fundamental o fortalecimento dos movimentos sociais, que se reorganizavam depois do período

repressivo e autoritário do regime militar. Na mesma perspectiva, colocava-se o fortalecimento

da luta pela participação política dos sindicatos na vida nacional. A recuperação do planejamento

democrático das ações do Estado era vista como imprescindível num país tão desigual e

46

Mesmo com esses avanços, mudanças sociais mais profundas dependem da alteração da articulação da política

econômica que ainda mantém um processo perverso de transferência de renda para setores rentistas nacionais e internacionais, via políticas monetária, cambial e fiscal.

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heterogêneo como o Brasil. Esta ação deveria estar submetida ao controle social, de maneira que

o documento defende a criação de “conselhos consultivos”.

Sobre esse aspecto, interessante registrar a “origem teórica” desses espaços de debate que

só iriam se concretizar anos depois, mais tardiamente ainda no caso das pessoas com

deficiência47

. O documento propõe explicitamente a criação de “conselhos setoriais de

planejamento” (saúde, educação, transportes, etc.). Buscando tornar o Executivo mais sensível às

demandas populares, “esses conselhos seriam integrados por representantes dos sindicatos, das

associações profissionais, comunitárias, dos usuários imediatos das políticas públicas e dos

partidos políticos e funcionariam como um fórum permanente de expressão de interesses

legitimamente constituídos e de discussão dos rumos das políticas de Estado” (Esperança e

Mudança apud Fagnani, 2005, p. 94). Mais tarde, tais espaços acolheriam também as demandas

dos grupos populacionais socialmente vulneráveis, como crianças e adolescentes, mulheres,

idosos e pessoas com deficiência.

No campo das políticas sociais clássicas, consideradas como “exigências mínimas de uma

sociedade democrática”, além das questões de Educação e Saúde, o documento previa reformas

na Previdência Social. Dentre elas, uma maior seletividade dos benefícios no sentido de

concentrar recursos no atendimento aos riscos básicos que poderiam atingir o trabalhador

(invalidez, velhice, doenças, acidentes do trabalho e morte).

Aproveitando esse aspecto, importante registrar que no início da década de 80 ainda

prevalecia uma relação quase que automática entre a deficiência e questão previdenciária, no

sentido de que a deficiência era vista como impeditiva para o trabalho. Assim sendo, em

particular nas camadas mais pobres da população (mas não só nelas), quando alguém adquiria

uma deficiência era “natural” que se buscasse a aposentadoria por invalidez. Isso era

compreensível e continuou ocorrendo nas décadas seguintes. Porém, em muitos casos, como

daqueles de pessoas que ficaram paraplégicas ou mesmo tetraplégicas, por exemplo, a

aposentaria não seria necessária e o indivíduo, com as devidas adaptações, poderia continuar

trabalhando. O fato é que hoje existe um contingente considerável de pessoas com deficiência em

47 O Conselho Municipal de Atenção às Pessoas com Deficiência e Necessidades Especiais, CMADENE, de

Campinas, por exemplo, foi criado apenas no final de 1999 (Lei 10.316, de 09 de Novembro de 1999).

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“idade produtiva”, mas aposentados por invalidez, sem poder ocupar uma posição no mercado de

trabalho formal48

.

Retomando a rápida apresentação do documento Esperança e Mudança, vale a pena

reproduzir, dada a sua atualidade (mesmo depois de quase 30 anos), os quatro eixos fundamentais

sobre os quais deveria se organizar a estratégia de desenvolvimento social: a) a redistribuição de

renda, como objetivo das políticas públicas; b) as políticas sociais básicas: exigências mínimas de

uma sociedade democrática; c) as políticas de reordenação do espaço e do meio-ambiente; d) o

emprego como síntese da política social. Essas eram as diretrizes de um projeto de construção do

Estado de Bem Estar Social no Brasil, cujos pilares foram inscritos na Constituição de 1988.

Em nossa opinião, qualquer programa ou ação na área da deficiência no âmbito nacional

deveria estar incorporada a esse projeto maior. Mesmo as iniciativas locais não devem ignorar

que a problemática da deficiência se insere no contexto e na realidade social dos municípios, de

maneira que não se perpetuem os programas específicos. Exemplificando, um programa que se

destina a distribuição de cadeira-de-rodas ou outros equipamentos às pessoas com deficiência

deve se perguntar as razões pelas quais esse contingente populacional não tem condições de

adquirir esses bens. A partir daí podem ser formuladas estratégias de ação que estimulem a

qualificação profissional e, eventualmente, o emprego das pessoas com deficiência.

Ainda no período anterior à Constituição de 1988, desenvolveu-se um “pacto de

transição” que reuniu representantes do PMDB e de dissidentes da base política do regime

autoritário. Dada a derrota da emenda constitucional que previa eleições diretas para a

presidência da República, a partir de 1984 articulou-se a eleição indireta de Tancredo Neves, que

se efetivou no colégio eleitoral. Mesmo com a morte de Tancredo, o governo da chamada “Nova

República”, de José Sarney, incorporou bandeiras para que se promovesse o “resgate da dívida

social”. Isso ocorreu, em boa medida, pelo ambiente de grande mobilização e pressão popular que

se organizara em 1984, contando com a participação de novos atores políticos, como o recém

criado Partido dos Trabalhadores49

.

48 Diferentemente dos outros tipos de aposentadoria, quando a pessoa se aposenta por invalidez há o pressuposto,

atestado numa perícia médica do INSS, de “incapacidade para o trabalho”. Assim, a pessoa não pode retornar ao

mercado de trabalho formal, a não ser que opte por abrir mão da aposentadoria, o que dificilmente ocorre pela

insegurança da pessoa com deficiência e sua família. 49 No tocante às questões trabalhistas e sindicais, Fagnani (2005) destaca que o chamado novo sindicalismo, com representantes do PT e da CUT, foi um ator decisivo no processo de reforma nesse campo, além de contribuir para a

defesa de outras bandeiras na área social.

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Nesse contexto, no biênio 1985-1986, o governo Sarney elabora um amplo diagnóstico da

situação social do país, a partir do qual se define um “plano de metas setoriais” para o período

1986-1989. Esse documento – Plano Nacional de Desenvolvimento do Governo da Nova

República (PND/NR) – traça objetivos quantitativos e qualitativos para diferentes setores e

aborda explicitamente, mas de maneira vaga, o tema das pessoas com deficiência. Quando se

refere à assistência social, postula a necessidade de “prevenir a marginalidade social, integrando

o menor carente ao processo educacional e produtivo; elevar o número de beneficiários das

creches-casulo; oferecer assistência a menores desassistidos, abandonados ou infratores; (...) e

ampliar a ação no setor de atendimento ao excepcional” (grifos nossos, SEPLAN apud Fagnani,

2005, p. 129).

É claro que, em tese, as pessoas com deficiência seriam beneficiadas por metas como

“assegurar educação básica a todos brasileiros” ou de formação de um sistema público e

universal de saúde, mas até pela terminologia utilizada (“excepcional”; atrasada, mesmo para a

época), percebe-se que em meados dos anos 80 o tema ainda não tinha a importância que veio a

adquirir com o tempo. Seja como for, e em que pesem resistências de setores do próprio governo,

um amplo projeto reformista foi tentado durante o Governo da “Nova República” e no processo

de elaboração da Constituição de 1988; projeto esse que também beneficiaria a população com

deficiência, pelo menos na garantia legal de direitos fundamentais.

A formação das chamadas “agendas setoriais” se deu já a partir do final dos 70 e se

prolongou até o período imediatamente anterior à Constituição. Isso ocorreu de maneira

diferenciada e num ritmo próprio de cada área, mas teve como característica comum a idéia de

chamar novamente para o debate grupos e movimentos que estiveram silenciados durante o

regime militar. Assim sendo, a agenda sindical e trabalhista ganha força com as greves do ABC

paulista; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se consolida na luta pela

Reforma Agrária; e o “Movimento Sanitarista” se organiza para defender um sistema de saúde

público, universal e gratuito. Esses são exemplos da organização e mobilização política que se

fortaleciam na década de 80 e desaguariam na Constituição de 1988 (muito provavelmente,

dentre os participantes desses movimentos tivemos também pessoas com deficiência).

Uma série de iniciativas governamentais, no início do governo Sarney, expressou a

tentativa de construção de um sistema de políticas públicas universais. Dentre elas, talvez a mais

significativa tenha sido a proposta de incorporação do princípio da seguridade social, no âmbito

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do grupo de trabalho que foi criado no Ministério da Previdência Social. Na tentativa de reverter

uma lógica segundo a qual só têm direitos aqueles que contribuem para o sistema, a seguridade

social defendia um modelo baseado num “amplo sistema de proteção social”, com extinção ou

afrouxamento do vínculo contributivo, articulando ações da Previdência, Assistência Social e

Saúde.

Uma das propostas apresentadas foi o aumento da Renda Mensal Vitalícia (RMV). Essa

pode ser considerada como precursora daquilo que hoje é o Benefício de Prestação Continuada

(BPC). Na época, a RMV era destinada aos idosos com mais de 70 anos e “aos inválidos” que

comprovassem condição de pobreza. O valor do benefício era de meio salário mínimo e a sua

concessão dependia ainda da comprovação de contribuição financeira ao sistema de Previdência

(no mínimo de doze meses). O grupo de trabalho recomendou: “a ampliação do valor do

benefício, de meio para um salário mínimo; e a concessão do benefício, independentemente da

contribuição individual, a todos os cidadãos sem capacidade contributiva” (Fagnani, 2005, p.

179). Como já adiantamos, esse benefício foi incorporado à Constituição e regulamentado pela

Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) com o nome de BPC.

Após uma “longa travessia”, chega-se ao momento de consolidação e definição das

propostas que resultaram desse novo contexto político nacional dos anos 80. Para concluir esse

subitem, vamos buscar identificar, de maneira pontual, algumas referências aos “portadores de

deficiência” no texto constitucional. Tais referências se situam, fundamentalmente, nos capítulos

que versam sobre a Seguridade Social. Mas devemos novamente reforçar que os princípios gerais

e os “novos direitos” definidos na Constituição incluem, naturalmente, as pessoas com limitações

físicas, sensoriais e cognitivas.

Isso fica evidente quando se observa, no momento atual, a discussão sobre a necessidade

ou não de um Estatuto das Pessoas com Deficiência e os opositores deste instrumento defendem a

“Constituição Brasileira como nosso verdadeiro Estatuto”. Interessante registrar que órgãos

oficiais que acompanham as políticas públicas estão atentos ao movimento organizado das

pessoas com deficiência e a esse debate em particular. O Boletim Políticas Sociais –

Acompanhamento e Análise, n. 15, de Março de 2008, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada) assinala que:

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“(...) o Projeto de Lei (PL) n. 7.699/2006, que cria o Estatuto da Pessoa com Deficiência,

está estimulando um movimento contrário à sua aprovação. No âmbito da sociedade,

chegou até a ser criado o Movimento Nacional pela Constituição e contra o Estatuto. Representantes advogam que a aprovação do mesmo vai prejudicar a inclusão social dos

deficientes, pois o documento trata a pessoa com deficiência como um cidadão diferente,

reforçando, portanto, o preconceito e a discriminação. Reiteram a defesa da Constituição

brasileira, afirmando ser a mesma o verdadeiro estatuto da pessoa com deficiência, sendo preciso somente que as leis sejam cumpridas” (grifos nossos; IPEA, Boletim Políticas

Sociais, n. 15, 2008, p. 188).

De fato esse é o teor principal da argumentação daqueles que são contrários ao Estatuto,

entendendo-o como algo que reforçaria a tutela e a idéia de que as pessoas com deficiência são

um grupo à parte da sociedade e dependente de terceiros. Os favoráveis ao projeto, numa visão

mais pragmática, defendem que é positivo organizar todos os direitos das pessoas com

deficiência numa única legislação, facilitando a consulta e a fiscalização50

.

Feito esse registro, conforme mencionamos, no texto constitucional de 1988 destaca-se a

política de Assistência Social no que se refere aos portadores de deficiência. Em primeiro lugar, é

preciso observar que a própria concepção de Assistência Social, como um todo, foi alterada pela

Constituição de 1988. O objetivo foi transitar do campo da caridade para o da cidadania e dos

direitos. Dessa forma, a cobertura deveria ser universal e “prestada a quem dela necessitar,

independentemente da contribuição à seguridade social” (art. 203, CF, Brasil).

O artigo 203 da Constituição, em seu inciso V, determinou a necessidade de

regulamentação da então Renda Mensal Vitalícia, aumentando o benefício para um salário

mínimo. Essa regulamentação, porém, só ocorreu em 1993, num outro contexto político, e se deu

com a definição de critérios restritivos para concessão do benefício (apenas para os indivíduos

cuja renda familiar per capita fosse inferior a ¼ do salário mínimo).

É claro que, além da Assistência Social, outras áreas presentes na Constituição também

contam com artigos que fazem referência direta às pessoas com deficiência. A seguir, com base

num levantamento realizado por Fagnani (2005), destacamos esses artigos:

50 Várias entidades, associações e ONG´s, como o Centro de Vida Independente de Campinas, assinaram o manifesto

contra o Estatuto (ver anexo). Mas tem prevalecido a posição de outros setores do movimento e do autor do projeto,

Senador Paulo Paim (PT-RS). Assim sendo, o Estatuto deve ser votado em breve no Congresso Nacional. Deve-se

registrar que, ao contrário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a iniciativa do Estatuto não

foi do segmento social organizado . Ademais, as versões iniciais e mesmo a atual, que tramita no Congresso, trazem problemas por reforçar o caráter assistencialista na temática da deficiência. No momento há uma tentativa para que,

ao menos, o conteúdo do Estatuto possa ser melhor debatido.

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Quadro 10 – Principais Artigos sobre Pessoas com Deficiência – Constituição de 1988

Artigo 7 – proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de

deficiência”.

Artigo 23 – estabelece a “competência comum” da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para

“cuidar da saúde, da assistência social, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.

Artigo 37 – prevê que legislação complementar “reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as

pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

Artigo 203 – no inciso V postula a “garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de

deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por

sua família, conforme dispuser a lei”.

Artigo 208 – estabelece que “o dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia do, entre

outros aspectos, atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede

regular de ensino”.

Artigo 227 – garante o acesso das pessoas portadoras de deficiência aos logradouros públicos: “a lei disporá sobre

normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e da fabricação de veículos de transporte

coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”.

Fonte: Fagnani, 2005.

O texto constitucional define diretrizes gerais e garante direitos que, na maioria dos casos,

dependem de legislação posterior para sua regulamentação. Os artigos da Constituição pinçados

acima ilustram que, assim como para todas das pessoas, os direitos dos “portadores de

deficiência” se referem às mais variadas áreas e temáticas sociais, desde a não-discriminação no

trabalho até a acessibilidade (numa terminologia mais recente), passando pelas áreas clássicas

como Saúde e Educação. Nesse sentido, ao estabelecer os princípios gerais, a Constituição lançou

luz para legislações futuras. A partir desse resultado concreto, no próximo item buscaremos

destacar algumas dessas legislações que foram aprovadas na área da deficiência, iniciando pela

Lei 7.853 de 1989, que definiu uma “política nacional de integração da pessoa portadora de

deficiência” (sendo depois regulamenta pelo Decreto Federal 3.298/99).

2.3 – A política nacional de integração e principais legislações sobre pessoas

com deficiência

No presente trabalho, não temos como objetivo resgatar e sistematizar a legislação

existente sobre pessoas com deficiência no país. Essa tarefa já foi realizada por diferentes

autores51

, dentre os quais destacamos a procuradora da República Eugênia Augusta G. Fávero.

51 Araújo (1997), Neto (2002) e Leite (2007).

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Em seu livro “Direitos das Pessoas com Deficiência – Garantia de igualdade na diversidade

(2004)”, a autora faz uma compilação das leis nacionais em forma de perguntas e respostas.

Dessa forma, o material se constitui como um guia prático para aqueles interessados na legislação

e na construção de uma sociedade inclusiva. A recuperação das leis que faremos nesse item busca

apenas enfatizar aspectos que nos parecem decisivos para que tal construção seja efetiva.

Assim sendo, as legislações selecionadas serão apresentas em quatro seções temáticas

distintas: a) a política nacional de integração (Lei 7.853/89 e Decreto 3.298/99), com destaque

para o papel da CORDE (Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência); b)

a reserva de vagas nos concursos públicos (Lei 8.122/90) e as cotas no setor privado (Lei

8.213/91); c) o Benefício de Prestação Continuada – BPC – e sua regulamentação (Lei 8.742/93 e

Decreto 1.744/95); d) o Decreto Federal 5.296/04 que trata sobre as condições gerais de

acessibilidade e traz novas definições para caracterizar as pessoas com deficiência.

Tendo em vista os objetivos do trabalho, maior ênfase será dada aos dois primeiros temas,

ou seja, à política de integração, à reserva de vagas nos concursos públicos e às cotas no setor

privado. Embora sejam importantes, o BPC e o Decreto de Acessibilidade serão discutidos de

forma mais objetiva. Seja como for, em conjunto, as normas jurídicas citadas nos fornecem uma

visão ampliada sobre os direitos das pessoas com deficiência na atualidade. Ao longo deste item,

faremos comentários acerca dos artigos selecionados, cujos conteúdos na íntegra se encontram no

anexo I, ao final da tese. Este panorama jurídico busca expressar as diretrizes das políticas

públicas que o país vem adotando no campo da deficiência. Tal percurso se encerrará no final do

presente capítulo, quando será apresentada e discutida a Convenção sobre os Direitos das Pessoas

com Deficiência (CDPD), promulgada pelas Nações Unidas em 2006 e ratificada e internalizada

pelo Brasil em 2008.

A Política Nacional de Integração (Lei 7.853/89 e Decreto 3.298/99) e a CORDE

A Constituição de 1988, como vimos, faz referência em vários artigos aos direitos das

“pessoas portadoras de deficiência”. No ano seguinte, foi publicada a Lei 7.853, de 24 de outubro

de 1989, que pela primeira vez formulou diretrizes de ação para uma “política de integração” das

pessoas portadoras de deficiência. Além disso, a referida Lei estruturou a CORDE –

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Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência –, órgão de assessoria da

Presidência da República, com as atribuições definidas no artigo 12 da Lei 7.853/8952

.

As atribuições da CORDE, em síntese, conferiram a este órgão a responsabilidade de

propor, acompanhar e fiscalizar as legislações e políticas que se relacionavam às pessoas com

deficiência. Sem dúvida, esse foi um marco na luta pelo reconhecimento e cidadania desse

segmento populacional, que se realizou na esteira das discussões travadas na Assembléia

Nacional Constituinte. De maneira inédita, buscou-se centralizar as ações anteriormente restritas

a iniciativas isoladas do Poder Público na área da deficiência.

Entretanto, a formulação da política nacional voltada para esse segmento, cujas diretrizes

estão apresentadas no artigo 2º. da Lei 7.853/89, reflete o paradigma vigente da época, ou seja, a

“integração” do portador de deficiência. Tal paradigma, como vimos, pressupunha a reabilitação

do indivíduo com deficiência para que, por méritos próprios e o mais próximo possível de um

padrão “normal”, pudesse ser integrado ou reintegrado nos sistemas gerais de educação, saúde e

trabalho, por exemplo. Tratava-se de um avanço em relação a uma perspectiva de mera

segregação das pessoas com deficiência, mas ainda não se vislumbrava claramente a idéia de

inclusão social, de fato, desse contingente populacional.

A afirmação anterior pode ser confirmada quando se avalia, entre outros aspectos, o artigo

2º. da referida legislação, em algumas áreas específicas. Embora esteja expressa a

responsabilidade do Poder Público e seus órgãos em “assegurar às pessoas portadoras de

deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde,

ao trabalho, ao lazer e à previdência social (...)”, a legislação enfatiza, no que tange à Educação, a

modalidade de “Educação Especial” como preponderante no acesso das pessoas com deficiência.

Percebe-se, assim, certa dificuldade na defesa de uma educação verdadeiramente inclusiva, sendo

que, para a matrícula nos estabelecimentos regulares de ensino público ou privado, garante-se

apenas o acesso das “pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem” (grifos nossos,

alínea f, parágrafo I, artigo 2, da Lei 7.853/89).

De qualquer forma, vista em perspectiva, a Lei 7.853/89 foi o primeiro passo concreto

para consolidação dos direitos expressos na Constituição de 1988. Nos 20 (vinte) artigos da Lei,

pela primeira vez, esboça-se uma política nacional de integração, que reconhece os direitos

básicos das pessoas com deficiência. Cabe destacar a ementa da Lei, que: “Dispõe sobre o apoio

52 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para

Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses

coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e

dá outras providências”.

Assim sendo, além dos aspectos relativos às obrigações do Poder Público em diferentes

áreas (“educação, saúde, formação profissional e trabalho, recursos humanos e edificações”), a

legislação inova ao atribuir responsabilidades ao Ministério Público no que se refere às situações

de discriminação das pessoas com deficiência53

. Entre os artigos 3º. e 7º., são normatizadas

formas de ação do Ministério Público no âmbito dessa temática, enquanto que o artigo 8 define

como crimes determinadas condutas54

.

Tardiamente, é verdade, configuram-se como crimes algumas práticas explícitas de

preconceito e discriminação, como a de recusar trabalho em função da deficiência. Os artigos

seguintes da Lei se dedicam à estruturação e à forma de atuação da CORDE, chamando a

atenção, nesse momento, o caráter mais “consultivo” do que “executor” desse órgão. Tal

situação, como veremos, seria corrigida com o Decreto 3.298/99, que regulamenta a Lei 7.853/89

(e cria o CONADE – Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência). O Decreto

de 1999 também vai tratar de uma questão que não foi abordada na Lei de 1989, talvez pela sua

complexidade, qual seja: quem são as pessoas com deficiência?

Antes desse debate, que na verdade se estende nas legislações posteriores e até os dias

atuais, vale registrar o artigo 17, que praticamente finaliza a Lei 7.853/89 em termos do seu

conteúdo. Segundo ele: “serão incluídas no censo demográfico de 1990, e nos subseqüentes,

questões concernentes à problemática da pessoa portadora de deficiência, objetivando o

conhecimento atualizado do número de pessoas portadoras de deficiência no País”. De fato, em

1991 é incluída no censo uma questão sobre esse tema, mas somente em 2000 aplica-se um

questionário mais detalhado, levando-se em conta a questão das diferentes limitações e

incapacidades.

53 Sobre esse aspecto, numa avaliação mais recente, de acordo com Ragazzi e Araújo, 2007: “não é apenas o

Ministério Público que pode defender tais direitos. (...) As associações podem representar (e ajuizar ações civis

públicas) em defesa dos grupos de pessoas portadoras de deficiência” (Ragazzi e Araújo, 2007, p. 49). De fato, o

movimento organizado das pessoas com deficiência tem procurado atuar judicialmente para a defesa dos seus

direitos, como ocorreu recentemente numa ação civil pública contra o Ministério das Comunicações, que através de

uma Portaria aumentou o prazo para que as emissoras de televisão adotem determinados recursos de acessibilidade (áudio-descrição). 54 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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O Decreto 3.298, promulgado em 20 de Dezembro de 1999, “regulamenta a Lei 7.853/89,

dispõe sobre a política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, consolida as

normas de proteção e dá outras providências”. Interessante registrar que: “a regulamentação da

Lei 7.853 demorou dez anos para vir a lume, numa demonstração de que os direitos dos

deficientes foram, ao longo de tantos anos, relegados a um segundo plano” (Moro, 2007, p. 84).

Isso não significa que outras legislações não foram produzidas nesses dez anos, mas, realmente,

observa-se que houve uma demora para que a política de integração fosse regulamentada.

A definição da política nacional de integração está no artigo 1º. do Decreto 3.298/99,

entendida como “o conjunto de orientações normativas que objetivam assegurar o pleno exercício

dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência”. Em seguida, numa

formulação mais profunda daquela existente na Lei 7.853/89, define-se a obrigação do Poder

Público e seus órgãos em desenvolver ações para assegurar os direitos das pessoas portadoras de

deficiência “à educação, à saúde, ao trabalho, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à previdência

social, à assistência social, ao transporte, à edificação pública, à habitação, à cultura, ao amparo à

infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu

bem-estar pessoal, social e econômico” (artigo 2º.; Decreto 3298/99).

Além dos artigos 1º. e 2º., é interessante destacar, ainda no capítulo I (Disposições Gerais)

as definições sobre “deficiência”, “deficiência permanente” e “incapacidade”, como também os

critérios para classificação dos indivíduos como portadores de deficiência física, auditiva, visual,

mental ou múltipla55

. Tais definições estão claramente centradas na limitação do indivíduo, com

forte conotação médico-clínica (“função psicológica, fisiológica ou anatômica”), além da busca e

comparação com um “padrão de normalidade”.

De maneira geral, são expressos critérios “técnicos” para a definição das diferentes

deficiências. Por exemplo: “acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a

melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de

ambas as situações”, para definição da deficiência visual. Até 2004, esses foram os parâmetros

utilizados para fiscalizar o cumprimento da “Lei de Cotas” no mercado de trabalho. O Decreto

5.296/04, conhecido como o “Decreto da Acessibilidade”, alterou a redação do artigo 4º. do

Decreto 3.298/99, utilizando-se de outros conceitos para as definições das deficiências física,

auditiva, visual e mental. Mais à frente, faremos menção às novas conceituações do Decreto de

55 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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5.296/04, mas por hora é necessário enfatizar as dificuldades e os problemas (mas também a

“necessidade”) que existem nessas tentativas de “categorizar” as pessoas.

Na verdade, em primeiro lugar, devemos perguntar: qual o sentido dessa classificação?

No nosso entendimento, ela é um “mal necessário” para que, através das leis e das políticas

públicas seja possível, com justiça e equidade, equiparar oportunidades e permitir o exercício

pleno da cidadania por pessoas que foram historicamente discriminadas e sofrem dificuldades

objetivas no seu dia-a-dia. Mais uma vez, é preciso recorrer à “sintonia fina” para estabelecer o

que são direitos legítimos ou privilégios; quem faz jus a determinados benefícios e quem não faz.

Por exemplo, a reserva de vagas nos setores privado e público, que discutiremos mais à

frente, só deve continuar existindo enquanto continuar havendo barreiras para o acesso das

pessoas com deficiência ao mercado de trabalho. Num cenário ideal, com todas as pessoas

dispondo dos recursos materiais e humanos para o pleno acesso à educação e ao trabalho, qual o

objetivo da reserva de vagas? Talvez se argumente que deficiências altamente incapacitantes do

ponto de vista físico ou sensorial – como a tetraplegia ou a cegueira total – sempre demandariam

formas de acesso diferenciadas, pois implicam em barreiras objetivas permanentes e que se

colocam no cotidiano desses indivíduos. É possível, mas, nesse caso, outras pessoas que

enfrentam doenças graves com seqüelas negativas também não fariam jus a determinados

benefícios?

Conforme temos salientado, trata-se de uma discussão difícil e complexa. A prática atual,

entretanto, exige que esse debate seja travado, pois a legislação contemporânea e as

interpretações judiciais têm, em nossa opinião, provocado injustiças. Há um processo de

banalização dos instrumentos de ação afirmativa, em particular no que se refere às vagas nos

concursos públicos. Um exemplo claro disso é ampla jurisprudência existente, inclusive com uma

súmula do STJ (Superior Tribunal de Justiça; súmula 377/09) sobre o tema, que favorece pessoas

com visão monocular (“cegueira de um olho”) ou audição unilateral para concorrerem enquanto

“pessoas com deficiência”. Como não há uma gradação em termos do nível da limitação, tais

indivíduos, embora não apresentem significativas dificuldades funcionais, concorrem no mesmo

grupo que tetraplégicos ou pessoas com cegueira ou surdez total.

Nesse momento, há uma demanda de distintos grupos populacionais para que sejam

enquadrados como “deficientes”. Esse movimento, que por vezes se vale do sentimento de

piedade e caridade que diferentes infortúnios individuais provocam, encontra respaldo na classe

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política. O deputado Benício Tavares (PMDB-DF) apresentou recentemente projeto que tramita

no Congresso e “classifica como portadores de deficiência os autistas, doentes mentais, aidéticos,

renais crônicos e aqueles que têm visão monocular ou audição em um só ouvido” (PL 4.317/09)”.

Evidentemente, pessoas nessas condições sofrem dificuldades e enfrentam problemas para

realizar algumas atividades. Mas é justo colocarmos todos no mesmo grupo? Creio que não, o

que exige a discussão de cada situação e, possivelmente, a introdução de diferentes níveis de

categorização em relação às deficiências. Num concurso público, por exemplo, não concorrem

em condições de igualdade um tetraplégico e o amputado de um membro; o cego e alguém com

visão monocular. Ao invés da vaga reservada, poder-se-ia pensar numa pontuação adicional que

fosse proporcional ao grau de dificuldade de cada candidato.

Feita essa reflexão, que será retomada, vale registrar que os capítulos seguintes do

Decreto 3.298/99 se dedicam aos princípios, diretrizes, objetivos e instrumentos da “política

nacional de integração da pessoa portadora de deficiência”. Dentre vários artigos, gostaríamos de

destacar o inciso III do artigo 5, no capítulo II (Dos Princípios), que afirma que a política de

integração obedecerá ao princípio de “respeito às pessoas portadoras de deficiência, que devem

receber igualdade de oportunidades na sociedade por reconhecimento dos direitos que lhe são

assegurados, sem privilégios ou paternalismos”. Isto é, a preocupação com um enfoque não

piedoso ou assistencialista está prevista no Decreto 3.298, embora nem sempre isso ocorra, uma

vez que na sociedade como um todo, e também em razão do comportamento de algumas pessoas

com deficiência56

, está ainda muito presente a associação direta entre deficiência e caridade.

Os principais objetivos da política de integração se referem ao pleno acesso das pessoas

portadoras de deficiência aos serviços públicos, à atuação conjunta e interdisciplinar das várias

esferas do Governo dentro dessa temática, ao desenvolvimento de programas setoriais, à

capacitação de recursos humanos e ao estabelecimento de ações de prevenção, atendimento

especializado e de inclusão social (artigo 7, Decreto 3.298/99). Para execução dessa política,

reitera-se a competência da CORDE, no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos.

Ao mesmo tempo, é criado e são definidas as atribuições do CONADE (Conselho Nacional dos

Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência57

).

56 Infelizmente, também existem entidades e associações que fazem propagandas ou campanhas para arrecadação de

recursos expondo as limitações e apelando para a piedade em relação às pessoas com deficiência. Estas, por sua vez, muitas vezes utilizam-se da própria deficiência como recurso para mendicância. 57 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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Porém, esse colegiado só seria constituído, de fato, no início de 2003, primeiro ano do

governo Lula (Lei 10.683/03, tendo as suas competências mantidas). Dentre elas, estão aquelas

típicas dos conselhos consultivos que acompanham e propõe alterações nas políticas públicas

realizadas nas respectivas áreas, além de iniciativas quanto a campanhas de conscientização e

pesquisas no campo da deficiência. O CONADE é composto por representantes do Poder Público

Federal e da Sociedade Civil. Estes últimos são eleitos de forma indireta, através de entidades que

comprovem atuação no território nacional.

O Capítulo VII do Decreto 3.298/99 – “Equiparação de Oportunidades” – apresenta as

diretrizes de atuação da política nacional em cinco grandes áreas: Saúde, Educação, Habilitação e

Reabilitação Profissional, Trabalho e Cultura, Esporte e Lazer. Seria exaustivo reproduzir aqui os

quase que 40 artigos que tratam das ações em cada uma dessas áreas. Assim sendo, vamos apenas

destacar alguns aspectos que nos parecem mais relevantes.

Na área de Saúde, a ênfase está no acesso prioritário da população com deficiência aos

serviços de saúde, além do incentivo a programas de prevenção e de distribuição de

equipamentos de reabilitação ou ajuda técnica (próteses, órteses e outros). Na seção sobre

Educação, permanece, em nossa opinião, um texto que defende “sem convicção” a inclusão

escolar plena. Foi mantido, por exemplo, o artigo em que se define como compulsória a matricula

dos alunos com deficiência “capazes de se integrar” na rede regular de ensino. Chama atenção

uma seção específica sobre orientação e reabilitação profissional, que não está compreendida no

capítulo referente ao trabalho. Da mesma forma que no texto sobre educação, percebe-se certa

preocupação quanto à capacidade do indivíduo em se inserir nos serviços de capacitação e

reabilitação, evidenciando a força do paradigma da “integração”. Por exemplo, no artigo 32: “os

serviços de habilitação e reabilitação profissional deverão estar dotados dos recursos necessários

para atender toda pessoa portadora de deficiência, independentemente da origem de sua

deficiência, desde que possa ser preparada para trabalho que lhe seja adequado e tenha

perspectivas de obter, conservar e nele progredir” (grifos nossos. Decreto 3.298/99, artigo 32).

Na Seção IV – do “acesso ao trabalho” – estão recolocados e regulamentados, nos artigos

36 e 38, os direitos das vagas reservadas às pessoas com deficiência nos setores público e privado

(que já tinham sido previstos em legislações anteriores, do início da década de 90, a serem

abordadas na próxima seção). Mas há boa parte do texto que se destina a definir regras para o

que se chama de “regime especial de trabalho protegido”. Essa modalidade reforça a prática de

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segregação das pessoas com deficiência, que realizaram atividades laborais dentro de instituições

ou entidades de assistência social. Esse é outro tema delicado é que provoca debates acalorados,

principalmente no caso das pessoas com deficiência intelectual e cognitiva. Nossa posição é de

que, independentemente da deficiência, as pessoas devam se inserir nos ambientes gerais de

trabalho. Porém, é muito comum o relato de situações em que tal inserção foi problemática, com

o retorno da pessoa com deficiência para um ambiente “protegido”.

Os artigos relativos à cultura, esporte e lazer defendem, basicamente, o direito de acesso

das pessoas com deficiência. Mas isso também é feito de forma pouco incisiva, tanto é que em

2004 seria promulgado o “Decreto da Acessibilidade” que retoma e aprofunda o tema. Da mesma

maneira, os últimos capítulos do Decreto 3.298/99, ao tratar das condições de acessibilidade nos

órgãos federais ou do desenvolvimento de sistemas de informações, serão revisitados pelo

Decreto 5.296/04.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o Decreto 3.298/99 avançou em termos das questões

originalmente apontadas pela Lei 7.853/89. É verdade que mencionamos uma série de aspectos

que ainda nos parecem “tímidos” na direção da inclusão social efetiva das pessoas com

deficiência. Mas este é um processo que está em curso e cuja direção depende, em boa medida,

da capacidade de mobilização das pessoas com deficiência.

Antes de tratarmos sobre a reserva de vagas em concursos públicos e as cotas no setor

privado, é preciso dizer que, em relação à atuação da CORDE, tínhamos inicialmente a intenção

de fazer uma descrição sobre as principais ações empreendidas pelo órgão no período recente.

Porém, a partir de uma consulta aos relatórios de gestão da CORDE, concluímos que seria pouco

produtivo apenas reproduzir os eventos, ações e discussões em torno da legislação em que o

órgão esteve envolvido58

. Assim sendo, optamos por apresentar um “olhar externo” acerca das

políticas públicas da área através do boletim de acompanhamento do DISOC (Diretoria de

Estudos Sociais) do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

O boletim n. 13, de 2006, faz um balanço da política social brasileira entre 1995 e 2005.

No capítulo sobre “cidadania e direitos humanos”, observa-se que, a partir de meados dos anos

58 Localizamos na página da Internet apenas os relatórios dos anos de 2003 a 2006. Em resumo, os relatórios de

gestão apresentam as atribuições definidas em Lei para a atuação da CORDE, a estratégia de atuação e as principais

ações realizadas, além da execução orçamentária. Dentre as ações, destaca-se a participação da CORDE nas

discussões legislativas, como aquela referente ao projeto de Lei que cria o Estatuto das Pessoas com Deficiência. A CORDE também ajudou a promover (financeiramente), através da aprovação de projetos, encontros e seminários

sobre temas relacionados à área da deficiência.

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90, mas com maior intensidade na década atual, determinados grupos populacionais foram objeto

de políticas públicas e ganharam espaço institucional na agenda nacional de direitos humanos.

Está em curso, assim, um processo que visa a superação do preconceito, da discriminação e da

violência que acometem grupos específicos da população, marcados por algum traço identitário

característico (como mulheres, afro descendentes, indígenas, crianças ou adolescentes, idosos,

pessoas com deficiência e grupos GLTB59

).

Em relação às pessoas com deficiência, “a percepção da sociedade tem variado

gradualmente e, junto com ela, a política pública no trato da questão. A visão tradicional de

atenção apenas filantrópica passou a incluir a noção de inclusão e participação, com direito a

todos os serviços públicos, em especial escola e trabalho”. (grifos nossos; IPEA, 2006, p. 251).

Essa mudança de ótica pode ser demonstrada pelas mudanças da forma de inserção institucional

da CORDE.

Embora tenha sido criada, em 1989, com autonomia financeira e subordinada à

Presidência da República, no início do governo Collor o órgão foi transferido para o Ministério

do Bem-Estar Social. Houve prejuízos para a sua atuação, “que foi marcadamente assistencial”.

Em janeiro de 1995, a CORDE migrou para a Secretaria dos Direitos da Cidadania, do Ministério

da Justiça, “realçando a ênfase na atenção integral à pessoa, e não apenas na assistência para a

sobrevivência”. Após 1999, houve outra alteração positiva, com a vinculação do órgão à

Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH). Apesar disso, a CORDE situa-se numa

posição intermediária na hierarquia ministerial, “o que dificulta a realização de sua missão

institucional” (IPEA, 2006, p.253). Daí a demanda – que foi atendida em 2009 – para que a

CORDE tivesse seu status institucional elevado.

Na avaliação do IPEA, a CORDE “vem enfrentando dificuldades para o cumprimento de

suas atribuições desde sua instituição. Grande parte dessas dificuldades diz respeito à amplitude

da missão institucional do órgão” (IPEA, 2006, p. 254). De acordo com essa missão, deveria

prevalecer um elevado grau de inter-setorialidade nas ações da CORDE. Mas os limites

financeiros e estruturais colocados impedem que isso ocorra, prevalecendo políticas setoriais

isoladas.

Assim sendo, o balanço das políticas sociais é feito com base nas ações ministeriais,

muitas delas com o apoio técnico ou assessoramento da CORDE. Destaca-se a expansão do

59

Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

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Benefício de Prestação Continuada (BPC) entre 1995 e 2005, que em termos de abrangência e de

gastos, é a política pública mais significativa voltada para as pessoas com deficiência, como

veremos mais à frente. O boletim do IPEA realiza então um painel das políticas públicas na área,

muitas das quais em consonância com a política nacional de integração60

. Esse panorama é útil

para que se tenha um mosaico das ações do governo federal na área da deficiência. Como não

poderia deixar de ser, os programas se distribuem nas mais variadas pastas, pois as pessoas com

deficiência, inseridas na sociedade, interagem e demandam serviços em todas as esferas sociais.

No último item do capítulo 2, ao tratarmos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas

com Deficiência (CDPD), abordaremos aspectos mais recentes das políticas públicas

empreendidas nessa área. Por ora, é possível afirmar que a Lei 7.853/89 (regulamentada pelo

Decreto 3.298/99) apontou diretrizes e colocou na pauta das iniciativas governamentais o tema

das pessoas com deficiência. Isso não significa, de forma alguma, que todas as ações foram

acertadas ou são suficientes para efetiva inclusão social desse segmento populacional. Mas há

espaço para o debate e, à luz da Convenção, legislações e políticas públicas podem ser corrigidas

e/ou aperfeiçoadas nesse sentido.

A reserva de vagas em concursos públicos (Lei. 8.122/90) e no setor privado (Lei 8.213/91)

Nessa seção, pretende-se fazer uma avaliação crítica dos instrumentos legais que

determinam as vagas reservadas em concursos públicos e as cotas no setor privado, procurando

estabelecer uma distinção entre leis que garantem direitos (privilégios?), de um lado, e leis

claramente inclusivas, de outro. As legislações que reservam vagas ou distribuem benefícios

estão no primeiro grupo, enquanto que o “Decreto da Acessibilidade” tem um caráter mais geral e

inclusivo.

No nosso entendimento, para as legislações específicas (cotas, reservas de vagas,

benefícios ou isenções fiscais) é preciso estabelecer critérios justos, rígidos e equânimes para que

tais instrumentos não se transformem em privilégios61

. Já uma lei que versa sobre os direitos de

alguém ir e vir, ou ter acesso aos bens culturais (livros, cinema, televisão, etc.), não pode ser

60 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas. 61 Sobre esse aspecto, interessante a abordagem de Rawls (2000), que desenvolve a teoria da “justiça como equidade”. Basicamente, a idéia de equidade se relacionada à adaptação das regras ou normas existentes à situação

concreta das pessoas, respeitando-se critérios de justiça e igualdade.

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restritiva, pois ela vai na direção oposta, cobrando da sociedade e do poder público o respeito a

todas as pessoas, independentemente das diferenças humanas. Ao analisar as legislações que

tratam sobre as pessoas com deficiência, nos parece importante levar em conta essa

diferenciação.

A lei 8.122 de 11 de Dezembro de 1990 versa sobre o regime jurídico dos servidores

públicos da União. No capítulo I (do provimento), na seção I (disposições gerais), encontra-se o

artigo 5O., parágrafo segundo: “ás pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se

inscrever em concurso público para o provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis

com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por

cento) das vagas oferecidas no concurso”. Dessa forma, buscou-se avançar no disposto no artigo

37 da Constituição Federal62

.

Tanto no texto constitucional como no artigo citado acima, da Lei 8.122/90, pretendeu-se

dar garantias legais para aplicação de uma ação afirmativa. Vale sempre observar, assim como

faz Gugel (2006), que tais ações significam a “adoção de medidas legais e de políticas públicas

que objetivam eliminar as diversas formas e tipos de discriminação que limitam oportunidades de

determinados grupos sociais (Gugel, 2006, pg. 15)”. Portanto, só fazem jus a essa política grupos

historicamente discriminados e que, na realidade cotidiana, tenham limitadas suas

“oportunidades” em termos da formação escolar, acesso ao trabalho, etc.

A Lei 7.853/89, apresentada anteriormente, incluiu o acesso ao trabalho como um dos

direitos básicos das pessoas com deficiência e reafirmou a necessidade da “adoção de legislação

específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de

deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado” (alínea “d”, seção III,

artigo 2º.). Porém, no que tange ao acesso desse segmento populacional via concursos públicos, o

tema só foi regulamentado pelo Decreto Federal 3.298/99. Isso significa que embora tivéssemos a

previsão da reserva de vagas na Constituição Federal e nas leis 7.853/89 e 8.122/90, demorou

cerca de dez anos para que se disciplinasse a matéria, definindo-se os critérios para que ela

62 Prevê que legislação complementar “reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas

portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. (art. 37, CF 1988).

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pudesse ser aplicada. Além disso, de acordo com os parágrafos primeiro e segundo do artigo 37

do Decreto 3.298/9963

:

§ 1º - O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a

todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação

obtida.

§ 2º - Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado,

este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.

O percentual mínimo de vagas reservadas definido no Decreto ficou em 5%, que é o

número adotado na imensa maioria dos concursos públicos. O parágrafo segundo determina a

elevação até o próximo número inteiro quando se aplica o percentual de 5% nas vagas oferecidas,

mas ele é sempre aplicado em conjunto com o artigo já citado da lei 8.122/90, que fala num

percentual máximo de 20% para a reserva de vagas. Assim sendo, para que um concurso tenha

vagas reservadas ele deve oferecer, no mínimo, cinco vagas. Nos casos em que se oferece menos

do que isso, dada a aplicação de 5% e a elevação até o próximo número inteiro (um), ter-se-ia que

a vaga reservada representaria mais do que 20% do total das oferecidas (por exemplo, se são

quatro vagas, uma vaga reservada representa 25% do total).

Somente com essas regras e as definições dos tipos de deficiência foi possível estabelecer

parâmetros para efetivação da Lei. O Decreto 3.298/99, como vimos, trouxe tais definições, que

seriam alteradas em 2004 pelo “Decreto da Acessibilidade”. Pautando-se pelo disposto nos

Editais, o candidato com deficiência deverá apresentar no ato da inscrição no certame, o laudo

médico, atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código

correspondente da Classificação Internacional de Doenças (art. 38, IV do Decreto n. 3.298/1999).

Geralmente, a apresentação do laudo médico é suficiente para que o candidato tenha

deferido o seu pedido de concorrer como portador de deficiência. No ato da inscrição, “o

candidato portador de deficiência que necessite de tratamento diferenciado nos dias do concurso

deverá requerê-lo, no prazo determinado em edital, indicando as condições diferenciadas de que

necessita para a realização das provas” (§ 1º, art. 40, Decreto 3.298/99).

63 Embora já tenhamos tratado do Decreto 3.298/99 na seção anterior, temos que recorrer a ele novamente na discussão sobre as vagas reservas nos concursos e nas cotas nas empresas, pois, conforme colocado, embora estas

legislações fossem do início dos anos 90, somente o Decreto de 1999 as regulamentou.

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Essa passagem nos motiva a indagar se aquele candidato que não precisa de nenhum tipo

de auxílio para fazer a prova se enquadra como portador de deficiência. A princípio, se a pessoa

pode fazer normalmente uma prova, é muito provável que ela não tenha tido dificuldades durante

seu processo de formação escolar. Mas é claro que essa é uma avaliação caso a caso e, mesmo

que não precise de auxílio, o candidato pode alegar que sofre discriminação para buscar o

trabalho e, assim, deve ser respaldado pela ação afirmativa.

O artigo 43 do Decreto 3.298/99 define as atribuições de uma equipe multidisciplinar que

atuará para certificação da condição de deficiência dos candidatos aprovados no concurso. Essa

equipe deve ser composta por três profissionais capacitados e atuantes nas áreas das deficiências

em questão, sendo um deles médico, e três profissionais integrantes da carreira almejada pelo

candidato, devendo emitir parecer observando:

I – as informações prestadas pelo candidato no ato da inscrição;

II – a natureza das atribuições e tarefas do cargo ou da função a desempenhar;

III – a viabilidade das condições de acessibilidade e as adequações do ambiente de trabalho na

execução das tarefas;

IV – a possibilidade de uso, pelo candidato, de equipamentos e outros meios que habitualmente

utilize; e

V – a CID e outros padrões reconhecidos nacional e internacionalmente.

Em teoria, pode-se dizer que existe uma normatização para a participação das pessoas

com deficiência nos concursos e posterior ingresso no serviço público. O problema, entretanto, é

que nem sempre esse procedimento é seguido ou respeitado integralmente. Já na definição do

conteúdo dos concursos podem ocorrer situações que dificultem esta participação. Cunha (2007)

chama atenção para a ementa de uma prova de “raciocínio lógico”, extremamente comum nos

concursos públicos:

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Quadro 11 – Ementa – prova de raciocínio lógico

"RACIOCÍNIO LÓGICO-MATEMÁTICO: Esta prova visa a avaliar a habilidade do candidato em entender a

estrutura lógica de relações arbitrárias entre pessoas, lugares, objetos ou eventos fictícios; deduzir novas

informações das relações fornecidas e avaliar as condições usadas para estabelecer a estrutura daquelas relações.

Os estímulos visuais utilizados na prova, constituídos de elementos conhecidos e significativos, visam analisar as

habilidades dos candidatos para compreender e elaborar a lógica de uma situação, utilizando as funções

intelectuais: raciocínio verbal, raciocínio matemático, raciocínio seqüencial, orientação espacial e temporal,

formação de conceitos, discriminação de elementos. Em síntese, as questões da prova destinam-se a medir a

capacidade de compreender o processo lógico que, a partir de um conjunto de hipóteses, conduz, de forma

válida, a conclusões determinadas". Fonte: Cunha, 2007.

De acordo com a autora, “torna-se impossível aos candidatos com deficiência visual em

grau de cegueira resolver questões cuja análise prescinde da visão: como a observância de

figuras, esquemas, planilhas, gráficos, etc., mormente quando a pessoa encarregada da leitura da

prova para o candidato com deficiência visual, não consegue transmitir verbalmente tais

elementos” (Cunha, 2007, pg.18). Outros exemplos poderiam ser dados, como a enorme

dificuldade “operacional” de candidatos tetraplégicos em fazer provas que exigem cálculos ou

tabelas.

Em suma, são essas dificuldades objetivas que, no nosso entendimento, justificam a

reserva de vagas ou, no mínimo, uma pontuação adicional para as pessoas com grandes

limitações físicas, sensoriais ou cognitivas. É verdade que o desenvolvimento de recursos

tecnológicos pode auxiliar pessoas com tais limitações a fazerem a prova, mas, mesmo assim, é

difícil imaginar que elas estariam em condições de igualdade com os demais candidatos.

Portanto, assim como para a reserva de vagas no setor privado, nos parece apropriado que a Lei

atenda apenas indivíduos com dificuldades funcionais efetivas.

No entanto, ao contrário disso, o que tem ocorrido na prática é a inclusão de novos grupos

populacionais no rol de beneficiários dessa ação afirmativa. Já mencionamos nesse trabalho a

súmula 377 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Esse instrumento consolidou a jurisprudência

ao determinar que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público,

às vagas reservadas aos deficientes”. De acordo com o informe do próprio STJ:

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Quadro 12 – Súmula 377 do STJ – Visão monocular como deficiência

“Diversos precedentes embasaram a formulação do enunciado da nova súmula. No mais recente deles, julgado

em setembro de 2008, os ministros da Terceira Seção concederam mandado de segurança e garantiram a posse a

um cidadão que, em 2007, concorreu ao cargo de agente de inspeção sanitária do Ministério da Agricultura,

Pecuária e Abastecimento. Devidamente aprovado, foi submetido à avaliação de saúde. Ocorre que o laudo

concluiu que o candidato não estaria qualificado como portador de deficiência por não se enquadrar nas

categorias especificadas no Decreto nº 3.298/99. Inconformado, o candidato ingressou com mandado de

segurança no STJ. O relator foi o ministro Felix Fischer. Ele observou que a visão monocular constitui motivo

suficiente para reconhecer o direito líquido e certo do candidato à nomeação e posse no cargo público

pretendido entre as vagas reservadas a portadores de deficiência física. De acordo com o ministro relator, o artigo

4º, inciso III, do Decreto 3.298/99, que define as hipóteses de deficiência visual, deve ser interpretado de modo a

não excluir os portadores de visão monocular da disputa às vagas destinadas aos portadores de deficiência física.

Fonte: STJ, 2009 (http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp).

Assim sendo, embora o Decreto Federal 5.296/04, que alterou as definições das

deficiências do Decreto 3.298/99, não preveja a visão monocular como uma das categorias da

deficiência visual, a “interpretação ampliada” prevista na súmula do STJ garante o “direito” das

pessoas com visão monocular para concorrer às vagas reservadas. O problema disso, e que pôde

ser constado através do nosso envolvimento no movimento sócio-político das pessoas com

deficiência, é que, via de regra, as pessoas com visão monocular não encontram dificuldades nas

suas atividades diárias ou são vítimas de discriminação no mercado de trabalho. Ou, mesmo que

encontrem algumas dificuldades, estas são certamente muito menores do que aquelas que

vivenciam pessoas cegas, surdas ou com grande limitação física ou cognitiva.

Essa reflexão é útil também quando pensamos na Lei 8.213 de 24 de Julho de 1991, que

dispõe sobre os planos de Benefícios da Previdência Social. O artigo 93 desta Lei, na subseção da

“habilitação e reabilitação profissional”, determina que:

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Quadro 13 – Artigo 93 da Lei 9.213/91 – “Lei de Cotas”

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por

cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados...........................................................................................2%; II - de 201 a 500......................................................................................................3%;

III - de 501 a 1.000..................................................................................................4%;

IV - de 1.001 em diante. .........................................................................................5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por

prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo

indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

§ 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de

empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.

Fonte: Lei 8.213/91.

Em primeiro lugar, é interessante observar que, da mesma forma que ocorreu nas vagas

reservadas em concursos públicos, as cotas no setor privado foram previstas num artigo “isolado”

de uma legislação bem mais ampla, no início da década de 90. Somente com o Decreto 3.298/99,

que desenhou a política de integração e definiu os tipos de deficiência, foi possível partir para

aplicação do previsto no artigo 93 da Lei 8.213/91. O Decreto 3.298/99 também definiu a

competência do Ministério do Trabalho e Emprego para, através dos fiscais do trabalho,

monitorar as empresas quanto ao cumprimento da “Lei de Cotas” e fornecer dados a respeito

dessa questão (art. 36, § 5º, do Decreto 3.298/99). Até então, havia certa confusão sobre esta

responsabilidade, que em tese poderia ser também do Ministério da Previdência Social (como

sugere o segundo parágrafo do artigo 93).

A multa a ser aplicada às empresas que não cumprissem a cota já estava prevista no artigo

133 da Lei 8.213/91, mas só foi regulamentada através de uma Instrução Normativa de 2001 do

Ministério do Trabalho e Emprego e da Portaria n. 1.119, de 28 de Outubro de 2003, escalonando

o valor da multa ao tamanho das empresas, assim como faz o artigo 93 ao definir a cota como

proporção do número de empregados. O cálculo da multa é feito com base no número de pessoas

com deficiência ou reabilitados que a empresa está deixando de contratar. Multiplica-se esse

número por um valor mínimo legal (previsto já na Lei 8.213 e atualizado em 1998 através de

Portaria do Ministério da Previdência Social). Ao resultado anterior é acrescido um percentual

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que varia de zero a cinqüenta por cento, dependendo do porte da empresa (as maiores são,

naturalmente, mais penalizadas). A aplicação da multa é de responsabilidade das autoridades

regionais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Construiu-se, assim, um arcabouço institucional para que a “Lei de Cotas” pudesse ser

aplicada e fiscalizada. Isso só ocorreu na década atual, particularmente a partir de 2001, com

iniciativas das Delegacias Regionais de Trabalho (atualmente Gerências Regionais de Trabalho e

Emprego). O processo se fez, em boa medida, com a participação de diferentes “atores sociais”

nos chamados Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidade e de Combate à

Discriminação no Trabalho, criados em 2001. O papel desses núcleos foi, e continua sendo, o de

reunir associações, entidades, sindicados, pesquisadores acadêmicos, entre outros, para tratar da

questão da diversidade no trabalho, abordando questões como gênero, raça e pessoas com

deficiência. Naquelas Unidades da Federação onde houve uma maior atenção para a situação das

pessoas com deficiência, como São Paulo e Ceará, por exemplo, o processo de inclusão se fez

mais rapidamente64

.

No capítulo 3, ao apresentarmos os dados relativos à inserção no mercado de trabalho das

pessoas com deficiência, retomaremos a discussão sobre a Lei 8.213/91. Assim como ocorre para

as vagas do setor público, há uma demanda de grupos populacionais para que possam ser

considerados como “deficientes”, de maneira a fazer jus à cota. Isso é reforçado por um discurso

empresarial que argumenta “não encontrar as pessoas com deficiência” de acordo com os

critérios atuais (Decreto 5.296/04). Diante disso, as propostas de algumas organizações patronais

vão no sentido de diminuir a cota ou criar fundos destinados às associações ou entidades de

pessoas com deficiência, a partir de recursos das empresas que não cumprem a cota.

Por ora, nossa intenção foi apenas a de apresentar a “Lei de Cotas” no conjunto de outras

legislações relacionadas às pessoas com deficiência e elaboradas após a Constituição de 1988.

Para finalizar esse percurso, trataremos em seguida da Lei que instituiu o Benefício de Prestação

Continuada (BPC) e, finalmente, do Decreto de Acessibilidade (5.296/04).

64 Representando o CVI-Campinas, o autor tem a oportunidade, desde 2006, de participar do Núcleo promovido pela

Gerência Regional de Trabalho e Emprego de Campinas.

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O Benefício da Prestação Continuada – BPC

A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93 – LOAS) define, logo no seu primeiro

artigo, que um dos objetivos da política nacional de assistência é “a garantia de 1 (um) salário

mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não

possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (inciso V,

artigo 1º., Lei 8.742/93). O texto reproduz o disposto no artigo 203 da Constituição Federal. A

regulamentação do benefício, porém, ocorre apenas em 1995, por meio do Decreto Federal 1.744

(que seria posteriormente revogado pelo Decreto 6.214 de 2007, que adotou novos conceitos). Já

na LOAS, na verdade, em seu artigo 20, estão dispostos parâmetros para que o benefício seja

concedido, como a idade mínima de 70 anos no caso dos idosos, a necessidade de comprovação

de “incapacidade para o trabalho” do portador de deficiência e, para ambos, dispor de renda

familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo.

O Decreto 1.744 de 1995 se utiliza desses mesmos critérios para a concessão do benefício,

e detalha os procedimentos burocráticos para sua obtenção. Define-se também a necessidade de

revisão do BPC a cada dois anos, bem como seu caráter intransferível, não gerando o direito à

pensão65

. Para discussão que ora realizamos, vale ressaltar que, embora seja justificável do ponto

de vista da assistência social, durante muitos anos o BPC funcionou também como obstáculo para

inserção formal de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Como a “incapacidade para

o trabalho” era pré-requisito para concessão do benefício, este não podia ser acumulado com a

remuneração pelo trabalho. Assim, invariavelmente, a grande maioria das pessoas (e das famílias)

em situação de extrema pobreza preferia a segurança do benefício e não optava por tentar uma

vaga no mercado de trabalho. O mesmo raciocínio vale para aqueles que se aposentam por

invalidez pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).

Houve uma tentativa de corrigir tal situação pelo Decreto 6.214 de 2007. De acordo com o

próprio MDS (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome): “a proposição de um

novo regulamento para o BPC teve como propósito contribuir para o aprimoramento de sua

operacionalização e gestão; consagrá-lo como integrante da Política e do Sistema Único de

Assistência Social, corrigindo a histórica distorção de considerá-lo como benefício de natureza

65 Nos anos seguintes a idade mínima para concessão do benefício aos idosos passou para 67 e depois 65 anos (em

função do Estatuto do Idoso, aprovado em 2003).

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previdenciária e não assistencial (...)” (MDS, 20007). No que tange ao mercado de trabalho e as

pessoas com deficiência, o Decreto estabeleceu que: “o desenvolvimento das capacidades

cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação

e reabilitação, dentre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício.

Possibilita também nova concessão do benefício à pessoa com deficiência que teve o BPC

cessado para assumir trabalho remunerado66

” (grifos nossos, MDS, 2007).

Esta foi uma demanda do movimento das pessoas com deficiência, sendo que o Decreto

acima referido foi assinado no dia 21 de Setembro (Dia Nacional de Luta das Pessoas com

Deficiência) de 2007. Entretanto, na prática, temos ainda encontrado resistência por parte das

pessoas com deficiência em abrir mão do benefício em troca de um trabalho remunerado, mesmo

com a possibilidade de retorno prevista no Decreto. Essa resistência é fruto também da demora e

de problemas burocráticos que algumas pessoas tiveram na tentativa de retornar a receber o

benefício depois de passar um período trabalhando formalmente.

Dada a sua abrangência – em 2008 o benefício era concedido para cerca de 1,5 milhões de

pessoas com deficiência (Brito, 200967

) – a questão do BPC poderia ser aqui aprofundada68

, mas

nos limitamos a esta breve referência, na expectativa de que os problemas operacionais dos

órgãos públicos sejam sanados e, caso assim deseje, a pessoa com deficiência possa prescindir do

BPC e ingressar no mercado de trabalho formal.

A “Lei da Acessibilidade” – Decreto 5.296/2004

Em primeiro lugar, é interessante observar que, embora trate de um tema amplo, o

Decreto em questão foi utilizado para “corrigir” definições sobre as diferentes deficiências.

Assim sendo, de maneira geral, pode-se dizer que foram ampliados os conceitos das deficiências

física e visual, restringidos os parâmetros para deficiência auditiva e mantidos os critérios para a

66 MDS, Brasília 2007. Secretaria Nacional de Assistência Social – Departamento de Benefícios Assistências. 67 Na sua dissertação de mestrado, a autora, Sílvia J. N. Pereira de Brito, companheira do movimento pela cidadania

das pessoas com deficiência em Campinas (mas no Poder Público), avaliou a extensão e os desafios para

consolidação deste direito social. De acordo com sua pesquisa, 5.117 pessoas com deficiência recebiam o BPC em

Campinas em Setembro de 2008. 68 Uma análise recente e muito interessante encontra-se em Diniz, Medeiros e Barbosa (2009). Os autores organizaram uma coletânea de artigos sobre como efetivar direitos sociais das pessoas com deficiência previstos na

Constituição de 1988, com destaque para o Benefício de Prestação Continuada.

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deficiência mental69

(lembrando que esses são usados para caracterizar a pessoa com deficiência

para fins da “Lei de Cotas”).

Quando comparamos com as definições do Decreto 3.298/99, percebe-se que alguns

grupos foram incluídos na deficiência física (ostomizados e portadores de nanismo) e na

deficiência visual (baixa visão), adotando-se, por outro lado, critérios técnicos mais rígidos para a

caracterização da deficiência auditiva. Na verdade, esse é um processo dinâmico e que “não tem

fim”, pois as alterações citadas ocorreram em menos de seis anos (entre 1999 e 2004) e, como

vimos, na atualidade já existem projetos para inclusão de novos grupos (portadores do HIV,

renais crônicos, visão monocular, entre outros). Além disso, no momento em que desenvolvemos

esse trabalho, a Subsecretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, antiga

CORDE, produz um documento técnico para a definição das deficiências70

.

Assim sendo, reiteramos nossa opinião no sentido de que o ideal é caminhar na restrição

da legislação que apenas concede benefícios ou isenções. Ou, dito de outra forma, que essas

legislações sejam restritas e focalizadas para aqueles que realmente delas necessitam. No sentido

oposto, leis que garantam direitos universais não têm porque definir critérios rígidos para as

deficiências, pois elas se aplicam à sociedade como um todo.

Este é o caso do Decreto 5.296 de 2004, que nos seus 70 artigos regulamentou legislações

anteriores sobre o atendimento prioritário e à remoção de barreiras que impedem a acessibilidade

plena das pessoas com deficiência (e daquelas com mobilidade reduzida, mesmo que

temporariamente). No artigo 8º. do Decreto estão definidos os conceitos-chaves de

“acessibilidade” e “barreiras”:

69 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas. 70 Provavelmente, esse documento produzirá subsídios para uma nova legislação que, também à luz da Convenção

sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, defina diretrizes de ação e políticas públicas nessa área.

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Quadro 14 – Artigo 8 – “Decreto da Acessibilidade”

I - acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços,

mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e

meios de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida;

II - barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento, a

circulação com segurança e a possibilidade de as pessoas se comunicarem ou terem acesso à informação,

classificadas em:

a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias públicas e nos espaços de uso público;

b) barreiras nas edificações: as existentes no entorno e interior das edificações de uso público e coletivo e no

entorno e nas áreas internas de uso comum nas edificações de uso privado multifamiliar;

c) barreiras nos transportes: as existentes nos serviços de transportes; e

d) barreiras nas comunicações e informações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a

expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos dispositivos, meios ou sistemas de comunicação,

sejam ou não de massa, bem como aqueles que dificultem ou impossibilitem o acesso à informação;

Fonte: Decreto Federal 5.296/04.

Ao contrário do que comumente se pensa, a acessibilidade não se refere apenas às

barreiras físicas ou arquitetônicas, mas diz respeito também à comunicação entre as pessoas.

Definidos estes conceitos, os artigos do Decreto se ocupam de estabelecer normas e prazos para

que se removam as barreiras existentes na sociedade, caminhando-se para que a acessibilidade

seja respeitada nos municípios. Para tanto, em vários artigos são referidas normas da ABNT

(Associação Brasileira de Normas Técnicas), que já vem estudando e difundindo parâmetros para

a construção de espaços acessíveis (um exemplo disso é a norma 9050 da ABNT).

Além das questões técnicas, determinam-se prazos para que se adéqüem tanto as

edificações de uso público (“aquelas administradas por entidades da administração pública, direta

e indireta, ou por empresas prestadoras de serviços públicos e destinadas ao público em geral”)

como as de uso coletivo (“aquelas destinadas às atividades de natureza comercial, hoteleira,

cultural, esportiva, financeira, turística, recreativa, social, religiosa, educacional, industrial e de

saúde, inclusive as edificações de prestação de serviços de atividades da mesma natureza”.

Incisos V e VI, artigo 8º.). Por exemplo, no que se refere à existência de “sanitários acessíveis ao

uso por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida”, estabelece-se que em 36

meses as edificações deverão dispor deste espaço.

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Ainda no campo da remoção das barreiras arquitetônicas, o artigo 24 trata especificamente

dos ambientes escolares, deixando claro que bibliotecas, laboratórios, ginásios e salas de aula

devem permitir o acesso e a participação de todos. Já no artigo 25 encontra-se a determinação de

que:

“nos estacionamentos externos ou internos das edificações de uso público ou de uso

coletivo, ou naqueles localizados nas vias públicas, serão reservados, pelo menos, dois por cento do total de vagas para veículos que transportem pessoa portadora de deficiência

física ou visual definidas neste Decreto, sendo assegurada, no mínimo, uma vaga, em

locais próximos à entrada principal ou ao elevador, de fácil acesso à circulação de

pedestres, com especificações técnicas de desenho e traçado conforme o estabelecido nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT”.(grifos nossos. Artigo 25, Decreto 5.296/04).

Na realidade cotidiana, as pessoas com deficiência encontram grandes dificuldades para

estacionar nessas vagas. Em grande medida, isso decorre da falta de normatização punitiva para

aqueles que ocupam tais vagas indevidamente. Vale registrar que o veículo apto a estacionar nas

vagas reservadas deve ter um documento emitido pelo órgão municipal (ou nacional) de transito,

não bastando o adesivo com o símbolo internacional de acesso. Interessante também que as vagas

não se destinam a todas as pessoas com deficiência. Corretamente, em nossa opinião, fazem jus a

elas apenas aquelas pessoas com dificuldade de mobilidade.

O Decreto 5.296 de 2004 traz ainda normas e prazos para que se efetive a acessibilidade

nos sistemas de transporte e nos meios de comunicação. Para os ônibus de transporte coletivo,

por exemplo, define-se que a totalidade da frota deve ser acessível até o prazo máximo de cento e

vinte meses (dezembro de 2014; parágrafo 3º; artigo 38). No que tange ao acesso aos meios de

comunicação e informação, o capítulo VI do Decreto Federal se dedica a estabelecer normas que

atendem, primordialmente, pessoas com deficiência sensorial

(visual ou auditiva). Porém, vários dos recursos propostos dependem de regulamentações

posteriores do Ministério das Comunicações, o que tem ocorrido de forma lenta.

Em síntese, nos pareceu imprescindível fazer referência ao Decreto sobre acessibilidade

porque ele pode ser caracterizado por um “tipo” de legislação apropriado, que não concede

benefícios ou favores, mas apenas reconhece o direito à igualdade das pessoas, independente de

limitações físicas, sensoriais ou cognitivas. É nesse “espírito” que se elaborou a Convenção sobre

os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), apresentada a seguir.

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2.4 – A Convenção Internacional e as perspectivas para a Inclusão

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) constitui-se no

primeiro tratado internacional sobre direitos humanos do século XXI. Tal constatação significa,

de um lado, o êxito do movimento das pessoas com deficiência, que participou ativamente da

elaboração do texto da Convenção; de outro, porém, mostra o quão tardio foi o processo de

incorporação desse grupo populacional no rol de tratados internacionais que versam sobre

segmentos vulneráveis e historicamente discriminados.

Como nos ensina Fonseca (2008a71

), desde a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, de 1948, as Nações Unidas vêm produzindo pactos e tratados internacionais sobre os

mais variados temas e direitos, incluindo-se aí questões como a não-discriminação pelo gênero

e/ou raça, respeito às crianças e adolescentes e a condenação da tortura e penas cruéis, entre

outros72

. Esses textos, na verdade, são desdobramentos daquilo que se coloca no artigo 1º. da

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH): “Todas as pessoas nascem livres e iguais

em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às

outras com espírito de fraternidade” (artigo 1º., DUDH, 1948).

Dado esse princípio fundamental:

“Nada mais seria necessário se, de fato, a igualdade fosse inequívoca entre os homens e as

mulheres, independentemente de qualquer adjetivo usado, como mulheres pobres, homens

idosos, pessoas negras ou crianças com deficiência, sem esgotar as possibilidades de desigualdade inicial. Da Carta de Direitos Humanos ao seu gozo e exercício plenos, há

uma imensidão de obstáculos construídos pela própria humanidade, os quais o Estado de

Direito não se mostrou suficiente para mitigar ou corrigir”. (Maior, pg. 20, 2008).

Em função disso, discutiu-se durante quatro anos (2002 a 2006) um texto que pudesse

simultaneamente reconhecer as diferenças humanas entre as pessoas e conferir-lhes direitos

básicos (humanos, políticos, econômicos e sociais), sem qualquer tipo de segmentação ou

71 Na época em que escreveu esse texto, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca era Procurador Regional do Ministério

Público no Paraná. Recentemente, em Julho de 2009, ele foi empossado e tornou-se o primeiro juiz cego do Brasil. 72 São, assim, os seguintes: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); o Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação Racial (1965); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

contra a Mulher (1979); a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção Internacional sobre a Proteção

dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias (1990).

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“privilégios”. Assim, nos seus 50 artigos, a CDPD trata da livre expressão por parte das pessoas

com deficiência, do direito de ir e vir, da acessibilidade, da participação política e do respeito a

sua intimidade e dignidade pessoal (direitos humanos fundamentais); trata também dos direitos

econômicos e sociais, especificamente quanto ao acesso à saúde, ao trabalho, ao emprego, à

educação, à cultura, ao lazer, ao esporte e à moradia.

Os trabalho acima referido, de Fonseca (2008a), assim como a coletânea da CORDE

(2008), fazem uma análise artigo por artigo da Convenção. Tendo esses textos como referência,

não repetiremos esse tipo de apresentação detalhada, mas vamos selecionar alguns artigos –

particularmente na esfera dos direitos econômicos e sociais – para uma discussão um pouco mais

profunda.

Antes disso, é importante destacar que a CDPD foi homologada pela Assembléia Geral

das Nações Unidas em 13 de Dezembro de 2006, em homenagem ao 58º. aniversário da

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Internacionalmente, ela entrou em vigência no dia

03 de maio de 2008, após ultrapassar o mínimo de vinte ratificações. No Brasil, a Convenção e o

seu protocolo facultativo tornaram-se parte da legislação nacional com o status de emenda

constitucional. Isso foi possível em função da Emenda Constitucional 45 de 2004, que

acrescentou o §3º ao art. 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos: “os tratados e

convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão

equivalentes às emendas constitucionais”. A Convenção foi aprovada desta forma no Congresso

Nacional, se consolidando no nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto Legislativo n°

186, de 09 de Julho de 2008, promulgado pelo presidente do Senado Federal. No âmbito do

Executivo, o Decreto 6.949 de 25 de Agosto de 2009, da Casa Civil da Presidência da República,

determina que a Convenção e seu protocolo facultativo “serão executados e cumpridos tão

inteiramente como neles se contém” (art. 1º. Decreto 6.949/09).

Isto posto, passemos à apresentação de alguns artigos-chave da Convenção. O preâmbulo

deste tratado internacional busca justificar a sua elaboração e explicitar o contexto em que ela

está inserida. Existem estimativas da ONU que no mundo teríamos cerca de 650 milhões de

pessoas com deficiência, estando a maior parte delas (400 milhões) em países pobres ou em

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desenvolvimento. De fato, estudos têm mostrado essa correlação entre deficiência e pobreza73

.

Assim sendo, o item “t” do preâmbulo assinala que “(...) a maioria das pessoas com deficiência

vive em condições de pobreza e, nesse sentido, reconhecemos a necessidade crítica de lidar com

o impacto negativo da pobreza sobre pessoas com deficiência”. No Brasil, os dados apurados pelo

Censo 2000, a serem apresentados no capítulo 3, parecem endossar esta avaliação, uma vez que

se observam índices elevados de pessoas com deficiência nos estados do Nordeste, num patamar

superior em comparação aos Estados do Sul-Sudeste.

Ainda sobre este aspecto, “como assinala Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, a

linha de pobreza para as pessoas com deficiência deve levar em conta os gastos adicionais nos

quais incorrem para viverem dignamente, como os gastos com tecnologias assistivas” (Vital,

2008, p. 25). Essa observação é importante quando se discute políticas ou legislações que

pretendem conceder isenções fiscais ou gratuidades (no transporte, por exemplo) às pessoas com

deficiência.

De volta ao preâmbulo da Convenção, além de situá-la no rol dos tratados internacionais

sobre direitos humanos, é preciso destacar um item que, de certa forma, resume o “espírito” de

todo o texto. Trata-se do item “e” do preâmbulo: “reconhecendo que a deficiência é um conceito

em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras

devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na

sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas74

” (grifos nossos. CDPD,

2006).

O legislador internacional deixa claro, nesta passagem, que não há uma maneira única e

exata para definir pessoa com deficiência. Além disso, destaca a deficiência como resultado da

interação do indivíduo com o meio social. Desta “idéia força” desdobra-se o artigo 1º. da

Convenção, que já foi parcialmente citado nesse trabalho. Na íntegra, ele postula o seguinte:

73 A deficiência é tanto uma causa como uma conseqüência da pobreza. Em termos mundiais, estimativas indicam

que uma em cada cinco pessoas pobres apresenta uma deficiência (Devandas, 2006). 74 Em sintonia com o paradigma da inclusão, tais definições na Convenção seguiram o chamado “modelo social”

para abordar a temática da deficiência, em oposição ao “modelo médico-clínico”, como vimos no capítulo 1.

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Quadro 15 – Artigo 1 – Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência (CDPD)

O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os

direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua

dignidade inerente.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual

ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na

sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Fonte: CDPD, artigo 1.

Na primeira parte do artigo, define-se o propósito da Convenção, com ênfase nas idéias de

direitos humanos, liberdades fundamentais e dignidade inerente da pessoa com deficiência (como

de qualquer indivíduo). Ou seja, os representantes das Nações Unidas partiram dos direitos

básicos dos seres humanos para construir a Convenção, muito em função da violência e

discriminação que esse contingente populacional ainda sofre. Já na segunda parte é que se

evidencia a o “conceito inovador” de deficiência, pois esta se apresenta a partir da “interação com

diversas barreiras”, que podem obstruir a “participação plena e efetiva (das pessoas com

deficiência) na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Analisando a técnica jurídica deste artigo em particular e de toda a Convenção, Nogueira

(2008) observa que a conduta do legislador internacional para que as pessoas com deficiência

usufruam dos seus direitos e liberdades é justamente a maior condição de igualdade. Sendo que

“igualdade é um composto que pressupõe o respeito às diferenças pessoais, não significando o

nivelamento de personalidades individuais. Pelo contrário, não se ganha uma efetiva e substancial

igualdade sem que se tenha em conta as distintas condições das pessoas” (Nogueira, 2008, p. 27).

Desta forma, os artigos da Convenção que versam sobre os direitos econômicos ou sociais o

fazem buscando “apenas” equiparar oportunidades, não segmentando as pessoas com deficiência

e sempre na perspectiva do paradigma de inclusão social.

Os artigos 2, 3, 4 e 5 da Convenção tratam, respectivamente, das definições, dos

princípios gerais, das obrigações gerais e dos conceitos de igualdade e não-discriminação. Em

certo sentido, constituem também um preâmbulo que visa introduzir os temas seguintes com base

em determinados pressupostos-chaves, tais como: a igualdade de oportunidades, a participação

plena e a acessibilidade.

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Um ponto importante no que se refere às obrigações dos Estados partes é a revisão ou

mesmo a formulação das legislações nacionais à luz dos princípios gerais da Convenção. Para

Maior (2008), atual coordenadora geral da Subsecretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com

Deficiência (antiga CORDE): “a comparação com o marco legal brasileiro e as obrigações gerais

de cada Estado signatário da nova Convenção tanto manifesta a qualidade do conjunto de normas

legais com que trabalhamos como ressalta em quais pontos a Convenção atualiza os direitos e

mostra seu valor como novo parâmetro internacional de direitos humanos” (Maior, 2008, pg. 35).

Nessa avaliação, destaca-se o avanço da legislação nacional, mas abre-se a possibilidade de

alterações nas leis com base na Convenção.

Os artigos 6 e 7 se referem às situações de dupla discriminação ou até mesmo exploração

que podem acometer as mulheres e crianças com deficiência, respectivamente. Já o conjunto dos

artigos 8 até 23 versa sobre os direitos humanos e liberdades civis fundamentais, que em alguns

países ainda são desrespeitados no caso das pessoas com deficiência e outras populações

marginalizadas. Os temas abordados são: conscientização, acessibilidade, direito à vida, situações

de risco e emergências humanitárias, reconhecimento igual perante a lei, acesso à Justiça,

liberdade e segurança, prevenção contra tortura ou penas cruéis, proteção da integridade da

pessoa, liberdade de movimentação e nacionalidade, vida independente e inclusão na

comunidade, mobilidade pessoal, liberdade de expressão e acesso à informação, respeito à

privacidade e respeito pelo lar e pela família.

Dentre estes, gostaríamos de nos deter um pouco mais no artigo 19 – sobre vida

independente e inclusão na comunidade – que está intimamente ligado ao movimento do qual

participa o autor. Em seguida, trataremos também com mais atenção dos artigos que apresentam

os direitos sociais e econômicos: artigo 24 – Educação; artigo 25 – Saúde; artigo 26 – Habilitação

e Reabilitação; artigo 27 – Trabalho; artigo 28 – Padrão de vida e proteção social adequados;

artigo 29 – Participação na vida política e pública; e artigo 30 – Participação na vida cultural e

em recreação, lazer e esporte.

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Artigo 19 – Vida Independente e viverem comunidade

O artigo 19 da Convenção75

reconhece o direito básico das pessoas com deficiência de

“viver na comunidade com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoais”. Tal

afirmação, nos dias de hoje, pode parecer de uma obviedade desnecessária. Durante muitos anos,

porém, as pessoas com deficiência foram compulsoriamente colocadas em centros de

reabilitação, asilos ou instituições, tendo cerceado o seu direito de “viver na comunidade”. É por

isso que o texto do artigo 19 destaca esse direito e é ainda mais explícito na alínea “a”, quando

afirma que deve ser uma obrigação dos Estados Partes assegurar que “as pessoas com deficiência

possam escolher seu local de residência e onde e com quem morar, em igualdade de

oportunidades com as demais pessoas, e que não sejam obrigadas a viver em determinado tipo de

moradia”.

Ao discutir este artigo da Convenção, Sassaki (2008) destaca que os princípios nele

contidos – “igual direito”, “viver na comunidade”, “fazer escolhas” e “participação plena”, dentre

outros – decorrem do combate a “práticas sociais antigas que mantinham pessoas com deficiência

em instituições pelo resto de suas vidas”. Esse processo, contrário a tais práticas, teria surgido

lentamente nos últimos 30 anos, sendo empreendido pelas próprias pessoas com deficiência,

familiares, profissionais e outros interessados “no sentido da implementação da filosofia de vida

independente” (Sassaki, 2008, p.73).

Essa filosofia, como já mencionamos, está baseada em conceito chaves como o

“empoderamento” (fortalecimento pessoal), a autonomia (domínio sobre o meio físico) e a

independência (direito de fazer escolhas). Deve-se enfatizar que vida independente não significa

a plena capacidade física da pessoa. Muitas vezes, existem limites funcionais que podem e devem

ser supridos com a ajuda de terceiros. Nesse sentido é que a alínea “b” do artigo 19 coloca que as

pessoas com deficiência devem ter “acesso a uma variedade de serviços de apoio em domicilio ou

instituições residenciais ou a outros serviços comunitários de apoio, inclusive os serviços de

atendentes pessoais (...)” (grifos nossos. CDPD, 2006).

Dado o avanço da medicina e dos recursos de saúde em geral, há uma tendência de

aumento da expectativa de vida da população como um todo. Isso inclui, naturalmente, as pessoas

com deficiência, que durante muito tempo tinham suas vidas encurtadas pela falta desses recursos

75 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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médicos. Dessa forma, é imprescindível que se avance na formulação de políticas públicas sobre

programas de atendentes pessoais e também das chamadas “moradias inclusivas”. Estas não são

um retorno ao passado de segregação, mas representam possibilidades de vida independente para

pessoas com deficiência envelhecidas e/ou sem o suporte familiar.

Artigo 24 – Educação

O artigo sobre Educação da Convenção, artigo 2476

, em nossa avaliação, é muito mais

claro na defesa da inclusão escolar das crianças com deficiência do que as legislações nacionais

pesquisadas. No caput do parágrafo primeiro está expressamente reconhecido o direito das

pessoas com deficiência à educação, sendo que, para efetivar esse direito sem discriminação e

com base na igualdade de oportunidades, “os Estados Partes assegurarão sistema educacional

inclusivo em todos os níveis”. Assim, no que tange à educação infantil, por exemplo, a

Convenção postula que “crianças com deficiência não devem ser excluídas sob a alegação de

deficiência”, devendo ter acesso ao sistema educacional “em igualdade de condições com as

demais crianças na comunidade em que vivem”. Em síntese, esse é teor dos dois primeiros

parágrafos do artigo 24.

No terceiro parágrafo, coloca-se como obrigação dos Estados Partes disponibilizar

recursos e ajudas técnicas para o pleno desenvolvimento das pessoas com deficiência em sua

trajetória escolar. Nessa seara, incluí-se o aprendizado em Braille, quando necessário, ou a

utilização da língua de sinais, como elementos complementares à educação regular. O parágrafo

quarto chama atenção para importância da formação e habilitação dos professores, inclusive

professores com deficiência, para o uso de tecnologias de apoio e outros meios. Finalmente, no

quinto parágrafo postula-se que os Estados Partes devem assegurar “que pessoas com deficiência

possam ter acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua

vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade de

condições”.

Para Fonseca (2008a): “o art. 24 é um verdadeiro tratado jurídico e político em prol da

educação inclusiva, idéia fulcral dos debates que pautaram o texto convencionado na

Organização Internacional” (Fonseca, 2008a, p. 15). Na mesma linha, Sassaki (2008) afirma que

76 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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não há dúvidas que “a Convenção defende um sistema educacional inclusivo em todos os níveis”

(Sassaki, 2008, p. 82). De fato, embora este seja um tema controverso, é evidente que a

segregação das crianças com deficiência é um processo prejudicial ao seu pleno

desenvolvimento. É verdade que precisa ocorrer um movimento de capacitação dos professores,

assim como a dotação adequada de recursos e materiais para o suporte a alunos com deficiência.

Mas tudo isso não vai ocorrer se as crianças com deficiência ficarem ou continuarem fora dos

sistemas regulares de ensino.

Artigo 25 – Saúde

Um sistema de saúde que se pretende universal não pode apresentar barreiras físicas e de

comunicação para pessoas com algum tipo de deficiência. O artigo 25 da Convenção77

, neste

sentido, parte do princípio do acesso global aos serviços de saúde para destacar aspectos como o

atendimento prioritário às pessoas com deficiência (dependendo de uma avaliação médica

comparativa), o livre consentimento da pessoa com deficiência para aceitar os tratamentos

oferecidos e a não-discriminação deste contingente populacional na admissão de programas ou

planos de saúde, sejam públicos ou privados. O artigo também enfatiza a importância das

pesquisas para a garantia e melhora da qualidade de vida das pessoas com deficiência.

Artigo 26 – Habilitação e Reabilitação

O artigo 26 versa sobre “habilitação e reabilitação78

”. Analisando mais a fundo esses

termos, Scramin e Machado (2008) afirmam que “no discurso teórico do segmento das pessoas

com deficiência, habilitação aplica-se de forma mais específica no campo da organização para

inserção profissional no mercado de trabalho, no plano dos serviços que asseguram nossos

direitos a nos habilitar para aquisição e condução de veículos adaptados.” Já a reabilitação diz

respeito às diferentes modalidades para que se efetive a reabilitação cognitiva, física, auditiva ou

visual da pessoa que, por distintas situações, a perdeu ou a teve diminuída. A habilitação se

relaciona mais aos casos onde a deficiência é congênita ou ocorreu nas fases iniciais da vida das

77 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas. 78 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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pessoas; enquanto a reabilitação se aplica quando a deficiência foi adquirida pelo individuou,

geralmente na fase adulta. Definidos estes conceitos, o artigo 26 regulamenta o direito à

habilitação e à reabilitação particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços

sociais.

Artigo 27 – Trabalho e Emprego

Pode-se dizer que o artigo 27 da Convenção79

, ao tratar sobre o trabalho e o emprego das

pessoas com deficiência, sintetiza a Convenção 159/83 da OIT (Organização Internacional do

Trabalho) sobre o tema. De forma resumida:

proíbe-se a discriminação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, desde as

fases de seleção até os períodos de manutenção e possível ascensão na empresa

pública ou privada, passando pela não-diferenciação salarial;

normatiza-se o trabalho por conta própria, o cooperativismo e o acesso ao serviço

público da pessoa com deficiência;

assegura-se qualificação profissional, direitos trabalhistas e previdenciários,

incentivos fiscais e políticas de cotas, bem como o apoio à livre iniciativa e à

sindicalização das pessoas com deficiência;

estimula-se a criação de políticas públicas para a inserção da pessoa com deficiência

no mercado de trabalho e conclama-se à liberdade de trabalho, vedando trabalho

escravo ou servil, bem como forçado ou compulsório e ao combate à exploração de

pessoas com deficiência (Fonseca, 2008a, pg. 12).

Gostaríamos de destacar a alínea “h” do primeiro parágrafo do artigo 27, onde se coloca

como obrigação dos Estados Partes “promover o emprego de pessoas com deficiência no setor

privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação

afirmativa, incentivos e outras medidas”. Ou seja, as políticas de cotas, uma das modalidades de

ação afirmativa, não se constituem numa obrigatoriedade; elas podem ou não ser utilizadas como

estratégia para o incremento do emprego das pessoas com deficiência. Isso vai depender da

79 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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conjuntura e do contexto histórico de cada país, o que nos parece correto na avaliação destas

políticas e programas voltados para determinados grupos populacionais. Interessante que, no que

se refere ao emprego público, a Convenção não menciona as reservas de vagas nos concursos,

apenas defendendo a obrigação dos Estados Partes de “empregar pessoas no setor público”.

Artigos 28 e 30 – Padrão de Vida e Proteção Social

Os artigos 28 e 3080

da CDPD podem ser avaliados em conjunto, pois enumeram os

direitos ao padrão de vida e à proteção social adequados a qualquer cidadão, inclusive aqueles

com deficiência, e ressaltam a relação destes com a participação na vida cultural, recreativa e

esportiva. A Convenção não envereda por um caminho no qual, diante das limitações evidentes

que derivam da deficiência, passa-se a conceder, de modo assistencialista e piedoso, benefícios às

pessoas com deficiência. As últimas alíneas do parágrafo segundo do artigo 28, por exemplo,

definem como obrigação do Estado assegurar o acesso deste contingente populacional aos

“programas habitacionais públicos” e “aos programas e benefícios de aposentadoria”,

respectivamente. Isto é, busca-se apenas a igualdade, a não-exclusão das pessoas com deficiência,

sem enfatizar direitos inerentes ou “privilégios”.

Artigo 29 – Participação Política

Para finalizar esse breve panorama da Convenção, o artigo 29 trata da participação

política das pessoas com deficiência, incluindo-se aí “o direito de votar e ser votado”. No

primeiro caso, devem ser observadas as condições adequadas nas instalações eleitorais, com

urnas em locais acessíveis e informações disponíveis e de fácil acesso. O livre arbítrio da pessoa

com deficiência enquanto eleitora é um direito fundamental, mesmo que, para votar, seja

necessário o auxílio de terceiros (parágrafo III, alínea “a”, artigo 29, CDPD). Este artigo trata

também do direito de ser votado, do direito que a pessoa com deficiência tem de participar da

vida pública. Para tanto, dentre outros aspectos, cabe aos Estados Partes: “promover ativamente

um ambiente em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na

80 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades com as

demais pessoas, e encorajar sua participação nas questões públicas”.

Artigos 31 a 50 – Mecanismos para implementação

Nos artigos 31 a 50, “a Convenção estabelece os mecanismos administrativos para sua

implantação, acompanhamento e monitoramento dos resultados pelos Estados Membros, que

instituíram mecanismos recíprocos e coletivos para tanto” (Fonseca, 2008a, p. 19). Nesse sentido,

vamos apenas citar os conteúdos de cada artigo: Artigo 31 - Estatísticas e coleta de dados; Artigo

32 - Cooperação internacional; Artigo 33 - Implementação e monitoramento nacionais; Artigo 34

- Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; Artigo 35 - Relatórios dos Estados

Partes; Artigo 36 - Consideração dos relatórios; Artigo 37 - Cooperação entre os Estados Partes e

o Comitê; Artigo 38 - Relações do Comitê com outros órgãos; Artigo 39 - Relatório do Comitê;

Artigo 40 - Conferência dos Estados Partes; Artigo 41 – Depositário; Artigo 42 – Assinatura;

Artigo 43 - Consentimento em comprometer-se; Artigo 44 - Organizações de integração regional;

Artigo 45 - Entrada em vigor; Artigo 46 – Restrições; Artigo 47 – Emendas; Artigo 48 –

Denúncia; Artigo 49 - Formatos acessíveis; Artigo 50 - Textos autênticos. Como se vê, de fato,

nesses artigos busca-se uma normatização para a efetiva aplicação da Convenção, além de seu

monitoramento e fiscalização.

Legislações pós-Convenção e Perspectivas para Inclusão

Feita essa apresentação da Convenção, devemos enfatizar alguns aspectos a título de

conclusão deste item. Ao avaliar o artigo sobre trabalho e emprego, mas tendo a Convenção

como um todo em perspectiva, Fonseca (2008b) afirma que este instrumento “universaliza os

direitos das pessoas com deficiência e, ao contrário do que alguns pensam, não significa um

gueto institucional. É sim, sem sombra de dúvida, um instrumento jurídico adequado para que

direitos nunca antes aplicados sejam estendidos às pessoas com deficiência” (Fonseca 2008b, p.

114).

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Tal afirmação nos remete ao debate sobre quais são os instrumentos legais adequados para

a garantia dos direitos das pessoas com deficiência. Do nosso ponto de vista, deveria haver uma

combinação entre dois “tipos” de legislação:

1) legislações específicas. Estas garantem vagas nos concursos públicos ou cotas no setor

privado, definem isenções fiscais ou gratuidades e concedem benefícios dos mais variados. Elas

devem existir dada a realidade histórica de exclusão e discriminação das pessoas com deficiência.

Porém, devem ser restritas a quem de fato delas necessitam, fazendo-se, para sua concessão, a

adoção de critérios de renda ou mesmo da gravidade da limitação funcional que a deficiência

provoca. Precisam, ainda, ser pensadas numa perspectiva de tempo, ou seja, deve-se caminhar

para diminuição ou abandono de tais legislações à medida que se constrói uma sociedade

acessível e emancipatória para as pessoas com deficiência;

2) legislações universais. Garantem direitos humanos, civis, políticos, sociais e econômicos às

pessoas com deficiência. Pautam-se pelos princípios de equiparação de oportunidades e

participação plena, não necessitando de definições ou critérios rígidos para sua aplicação. À

medida em que tenham êxito, contribuem para o abandono das legislações específicas,

colaborando para sociedade inclusiva com a qual sonhamos.

Interessante registrar que essa abordagem pode ser pensada de maneira análoga para

outros grupos populacionais vulneráveis e/ou historicamente discriminados, como os negros ou

homossexuais. Além disso, tal clivagem serve também para discussão das políticas públicas. No

campo da Educação, deve haver uma política universal e pública de ensino e, simultaneamente,

possibilidades de atendimentos individualizados de acordo com as necessidades de cada criança.

Parece-nos correto, neste sentido, o Decreto 6.571 de 2008, que dispõe sobre o atendimento

educacional especializado (AEE), prevendo apoio técnico e financeiro da União “com a

finalidade de ampliar a oferta do atendimento educacional especializado aos alunos com

deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação,

matriculados na rede pública de ensino regular” (artigo 1º. Decreto 6.571/08). Tal iniciativa

compõe a estratégia, faz parte de uma política universal de educação.

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Ainda no campo das políticas públicas, outro passo importante foi dado com a aprovação

do Decreto Federal 6.980, de 13 de Outubro de 2009. Esta legislação alterou a estrutura

organizacional da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

(SEDH). No que tange às pessoas com deficiência, foi atendida a demanda para elevação do

status institucional da CORDE, que passa a ser a Subsecretaria Nacional de Promoção dos

Direitos da Pessoa com Deficiência (alínea “d”, artigo 2º., anexo I, Decreto 6.980/09). O Decreto

mantém o CONADE como órgão colegiado para discussão das políticas públicas que envolvam

as pessoas com deficiência.

As competências da nova Subsecretaria estão elencadas no artigo 14 do anexo I do

Decreto81

. Foi criado também, de maneira vinculada à Subsecretaria, um Departamento de

Políticas Temáticas dos Direitos das Pessoas com Deficiência, cujas funções, dentre outras, são

de “coordenar e supervisionar a elaboração dos planos, programas e projetos que compõem a

política nacional de inclusão da pessoa com deficiência, bem como propor providências

necessárias à sua completa implantação e ao seu adequado desenvolvimento” (parágrafo I, artigo

15, anexo I, Decreto 6.980/09).

Em suma, buscou-se fortalecer o arcabouço institucional dos órgãos que tratam da

temática da deficiência na esfera federal. Esse processo parece estar em sintonia com os avanços

trazidos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pois uma das atribuições

da nova Subsecretaria é justamente “coordenar, orientar e acompanhar as medidas de promoção,

garantia e defesa dos ditames da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,

mediante o desenvolvimento de políticas públicas de inclusão da pessoa com deficiência”

(parágrafo IV, artigo 14, anexo I, Decreto 6.980/09).

A expectativa que se apresenta para efetivação de uma política nacional de inclusão social

das pessoas com deficiência é, portanto, positiva. Há um instrumento jurídico – a CDPD – que

aponta diretrizes que devem ser seguidas na formulação e reformas das leis; e há uma estrutura

institucional fortalecida para o acompanhamento e desenho das políticas públicas. É preciso,

porém, avaliar na prática o desempenho desta nova Subsecretaria e sua capacidade de influência

nos demais órgãos e instâncias públicas. O desafio que se coloca é o de introduzir a temática das

pessoas com deficiência de forma adequada nas demais políticas públicas, sem reproduzir vícios

de assistencialismo e tendo como referência o conceito de equiparação de oportunidades.

81 Ver Anexo I – Legislações Selecionadas.

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Considerações Finais – capítulo 2

Ao longo do capítulo 2, buscou-se apresentar um painel das legislações e políticas

públicas que se relacionam com as pessoas com deficiência. Este painel foi precedido por uma

retrospectiva histórica na qual se pretendeu situar o movimento social e político das pessoas com

deficiência nos contextos nacional e internacional. Tal movimento, na nossa avaliação, está

inserido no processo de luta por avanços na questão social, com melhores condições de trabalho,

moradia, transporte, saúde e educação, entre outras áreas. As situações históricas que

identificamos como propícias para o amadurecimento deste processo de luta foram o Welfare

State no pós II Guerra Mundial e, no âmbito nacional, a década de 80 após o fim da ditadura

militar, cujo “resultado” é a constituição “cidadã” de 1988.

A temática da deficiência não pode ser tratada de forma isolada, por isso partimos deste

panorama histórico para, na segunda parte do capítulo 2, apresentar as principais legislações

nacionais que versam sobre os direitos das pessoas com deficiência, com ênfase para a “política

nacional de integração”, a reserva de vagas em concursos públicos e as cotas no mercado de

trabalho. Esse percurso terminou com a discussão relativa à Convenção sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência (CDPD), que nos possibilitou também uma avaliação quanto às

perspectivas que se colocam no país para a formulação de políticas públicas inclusivas.

Considerando este cenário das legislações e políticas públicas, e tendo em mente os

pressupostos teóricos e os aspectos históricos da trajetória das pessoas com deficiência, vistos no

capítulo 1, vamos tratar, no capítulo 3, das condições atuais de acesso deste contingente

populacional ao mercado de trabalho formal. No Brasil, isto significa também o “passaporte para

a cidadania”, uma vez que permite usufruir de direitos e serviços que não estão disponíveis aos

desempregados ou trabalhadores informais.

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Capítulo 3 – O Mercado de Trabalho e as Pessoas com Deficiência

A proposta deste último capítulo da tese é mapear o processo de inclusão das pessoas com

deficiência no mercado de trabalho formal. Vimos no capítulo 1, que sempre existiram na história

pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas. Paulatinamente, as sociedades foram

percebendo que, para além da caridade e da assistência, tais pessoas deveriam ser incluídas em

programas e políticas que pudessem valorizar seu potencial produtivo. Na verdade, as próprias

pessoas com deficiência foram dando mostras de que podiam e desejavam trabalhar. No capítulo

2, nossa intenção foi deixar claro que há um arcabouço jurídico-institucional que respalda este

contingente populacional, não só no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho, mas na

garantia dos direitos humanos e da cidadania.

Assim sendo, acreditamos ter uma base teórica e contextual suficiente para explorar o

principal tema desta tese: como está o acesso das pessoas com deficiência ao emprego e ao

trabalho formal? A legislação que prevê cotas nos setores públicos e privados está sendo

cumprida? Ainda persistem elevados índices de desemprego e informalidade para as pessoas com

deficiência? Para aqueles que conseguem um emprego formal, existem discrepâncias salariais?

Tais questionamentos, entre outros, nos permitirão caracterizar de que forma, ou não, pessoas

com deficiência estão incorporadas ao mundo do trabalho.

Essa realidade, porém, como temos insistido, não deve ser tomada à parte ou de maneira

isolada. Iniciaremos, assim, o presente capítulo com um breve panorama sobre a economia

brasileira nos últimos dez anos. A periodização entre 1999 e 2009 se justifica por duas razões: a)

somente na década atual a política de cotas começou a ser, de fato, implementada; b) neste

período, a partir da desvalorização cambial de 1999, temos uma política econômica que, mesmo

com algumas diferenças, segue uma mesma linha em termos das suas diretrizes monetária,

cambial e fiscal. Além disso, especialmente no período de 2004 a 2008, houve crescimento

econômico significativo, o que pode ter ajudado na contratação de pessoas com deficiência. Ou a

dinâmica de emprego deste grupo populacional é distinta? Vamos avaliar também essa questão ao

longo do capítulo 3.

Depois de uma apresentação acerca dos principais indicadores da economia brasileira, o

segundo item do presente capítulo faz uma revisão bibliográfica sobre autores que discutiram o

acesso ao trabalho das pessoas com deficiência, problematizando esse processo e avaliando

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criticamente a “Lei de Cotas”. Basicamente, serão abordados os trabalhos de Pastore (2000),

Rosa (2009) e Clemente (2008), que em comum buscam apresentar números sobre o percentual

de pessoas com deficiência trabalhando, além de questionar, sob distintas perspectivas, a eficácia

deste instrumento de ação afirmativa.

Em seguida, pretende-se detalhar os números do Censo de 2000 que, pela primeira vez de

uma forma mais abrangente, pesquisou o universo das pessoas com deficiência e com limitações

funcionais. Desde 1989, já havia a determinação legal para que o IBGE incluísse nos seus

questionários a temática da deficiência. Isso foi feito no Censo de 1991, mas de maneira simples

e limitada (com apenas um tópico). Em 2000, abriu-se um campo específico para investigação

acerca das deficiências e das dificuldades das pessoas ao andar, ouvir ou enxergar (cinco itens).

Tal metodologia se mostrou eficaz para uma análise mais geral dessa população, mas traz certas

dificuldades e pode provocar confusões quando se discute especificamente o acesso ao trabalho e

a questão da “Lei de Cotas”, por considerar um espectro maior de pessoas do que aquele

respaldado por esta legislação.

O último item do capítulo 3 versará do mapeamento, propriamente dito, da inclusão das

pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal. Serão utilizadas fontes obtidas

diretamente junto ao Departamento de Estatística do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),

que é responsável pela apuração da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Além dos

dados nacionais, daremos ênfase aos indicadores do Estado de São Paulo e do município de

Campinas, onde temos a chance de acompanhar mais de perto os avanços e as dificuldades deste

movimento.

Independentemente dos resultados observados em termos da efetividade da “Lei de

Cotas”, e já cientes dos seus limites, o importante é ter em mente que não há mais volta no

processo de inclusão das pessoas com deficiência no trabalho, assim como ocorre na educação.

Podem e irão surgir obstáculos, mas a única alternativa que não se coloca é o retorno ao passado

de segregação vivenciado por este grupo populacional.

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3.1 – Economia Brasileira: visão panorâmica do período recente

A avaliação da política econômica no Brasil, segundo Carneiro (2006), requer a

explicitação de alguns pressupostos a ela subjacentes. Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a

dinâmica da economia brasileira é influenciada de maneira significativa pelo contexto

internacional. As transformações nele ocorridas, especialmente nos últimos 30 anos, podem ser

sintetizadas no termo “globalização”, “que se traduz por uma crescente liberalização financeira e

cambial, no plano doméstico e internacional, e por uma mudança nos padrões de concorrência

intercapitalista da qual resultou uma ampliação dos fluxos de comércio e Investimento Direto

Estrangeiro” (Carneiro, 2006, p. 7). Este autor faz ainda uma distinção entre tais movimentos e

outros de caráter meramente especulativo, que se intensificaram a partir de meados da década de

90. O Brasil está definitivamente inserido nesse cenário, de maneira que não se pode discutir o

desempenho da nossa economia sem levar em conta os diferentes ciclos de liquidez e as

mudanças estruturais provocadas pelo processo de globalização.

Além disso, outro pressuposto relevante se refere à idéia de que existem diferentes

dimensões da política econômica interna, as quais poderiam ser chamadas de “macroeconômica”

e de “desenvolvimento”. A interação desses distintos “tipos” de política econômica, tendo como

pano de fundo a conjuntura internacional, é que explica a performance econômica recente.

O objetivo central das “políticas macroeconômicas” tem sido a estabilidade inflacionária,

por meio da gestão cambial, monetária e fiscal. As “políticas de desenvolvimento”, por sua vez,

constituem-se a partir das relações Estado-Mercado, tendo como eixo a regulação ou

desregulação, ou a maior ou menor participação do Estado na economia. De maneira deliberada,

o governo FHC procurou desenhar uma política macroeconômica voltada para estabilidade de

preços e, simultaneamente, no âmbito das relações Estado-Mercado, buscou diminuir a

participação do primeiro através, fundamentalmente, das privatizações. Dessa forma, construiu-se

um modelo de política econômica com bastante influência nos anos vindouros, além das suas

implicações estruturais na economia e no formato do Estado brasileiro.

Esses são os pressupostos básicos para que se possa discutir a economia brasileira no

período recente. Aqui nos limitaremos apenas a traçar um panorama dos últimos dez anos, com

ênfase para o período de crescimento econômico entre 2004 e 2008, além de discorrer

rapidamente sobre 2009 e projetar algumas perspectivas futuras.

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Em grande medida, a variação no nível de emprego é determinada pelo desempenho da

atividade econômica, expressa pelo desempenho do PIB (Produto Interno Bruto). Este pode ser

visto sob diversas óticas, mas, essencialmente, reflete o crescimento ou não da demanda agregada

– investimentos privados, gastos do governo e consumo das famílias – num determinado período

de tempo. A tabela abaixo apresenta a variação real do PIB nos últimos dez anos:

Ano %

1999 0,3

2000 4,3

2001 1,3

2002 2,7

2003 1,1

2004 5,7

2005 3,2

2006 4,0

2007 6,1

2008 5,1

Fonte: IPEA/Data.

Brasil - 1999 a 2008

Variação real do PIB (% a.a)

Tabela 1

Os dados evidenciam uma diferença entre os períodos de 1999-2003 e 2004-2008. No

primeiro, a taxa média de variação do PIB foi de apenas 1,9% ao ano, enquanto que nos cinco

anos compreendidos entre 2004-2008 este índice foi de 4,8%. Interessante notar que, em linhas

gerais, manteve-se a mesma política econômica nos dez anos que estão sendo considerados. As

diretrizes básicas nos campos das políticas monetária, fiscal e cambial foram as mesmas, ou seja,

o programa de metas de inflação, a busca pelo superávit primário e o câmbio flutuante,

respectivamente. Em outras palavras, a dimensão macroeconômica da nossa política econômica

não foi alterada de maneira substancial, com predominância da “âncora nominal doméstica”,

definida com base na política monetária praticada pelo Banco Central, subordinando as gestões

fiscal e cambial82

.

82 Vale registrar que o presidente do Banco Central, Henrique Meireles, originário do PSDB, foi um dos poucos

integrantes do primeiro-escalão do governo Lula que permaneceu no cargo até 2010.

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Em função disso, parte do resultado obtido entre 2004 e 2008 pode ser atribuída a uma

conjuntura externa muito favorável83

. Mas é verdade também que, especialmente no segundo

mandato do governo Lula, foram adotadas medidas que permitiram “flexibilizar”, ainda que

timidamente, as amarras deste modelo de política econômica84

. Estamos nos referindo, no campo

fiscal, por exemplo, à diminuição de 0,5 pontos percentuais no superávit primário para serem

utilizados em investimentos de infra-estrutura85

.

Ainda sobre dinâmica de crescimento da economia brasileira, numa perspectiva mais

ampla, no período pós Plano Real ela se caracterizou pelo comportamento do chamado “vôo de

galinha”. Tal expressão diz respeito a um movimento errático e sem sustentação pelo qual

transcorreu nossa economia após 1994, tendo sempre seu crescimento abortado por crises

externas. Como que num roteiro anunciado, as turbulências internacionais provocavam fuga de

capitais e desvalorização da nossa moeda, aumentando as pressões inflacionárias. A resposta

“automática” era um aumento da taxa de juros promovido pelo Banco Central, que além de

amenizar tais pressões pela queda da demanda doméstica, atenuava a desvalorização cambial.

Quando consideramos o período pós 1999, a partir da desvalorização cambial, observa-se

que a combinação entre metas de inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal foi insuficiente tanto

para promover estabilidade macroeconômica, com grandes variações dos preços chaves da

economia: juros e câmbio, como também para promover crescimento econômico sustentado, pelo

menos até 2004. O grande problema foi a interdependência entre taxa de juros e taxa de câmbio,

conforme colocado acima.

Atualmente, há um debate em torno da caracterização mais recente da economia

brasileira, notadamente a partir de 2004. De um lado, mais uma vez a crise financeira, deflagrada

em setembro de 2008 nos EUA, abortou o crescimento econômico que vinha perfazendo-se em

torno de 5% ao ano. Em 2009, a economia estagnou-se com variação negativa do PIB (-0,2%).

83 O processo de globalização, no século XXI, produziu uma mudança na “geografia econômica”, com a formação de

“novos elos dinâmicos”. O principal elo formou-se pela articulação entre as economias norte-americanas e chinesa,

por meio da absorção das exportações chinesas, particularmente manufaturados, pelos EUA. Mas o Brasil e outros

países periféricos puderam participar dos elos secundários de comércio, com crescimento das suas exportações e

importações. O problema, para o Brasil, é que nossa participação nesse fluxo de comércio deu-se com predominância

de produtos primários e commodities. 84 A mudança no Ministério da Fazenda, entre o primeiro e o segundo mandato do presidente Lula, ocorreu, digamos,

por “linhas tortas”, com a saída de Antonio Palocci do governo. Somente na gestão do ministro Guido Mantega é que

tais medidas, fora do escopo tradicional da ortodoxia econômica, começaram a ser tomadas. 85 Ou ainda, mais recentemente, à taxação de 2% sobre os capitais estrangeiros que ingressarem no país, com o

objetivo de conter a valorização do real ante ao dólar.

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Porém, a rápida recuperação da economia brasileira – com taxas estimadas de 6% a 7% para

expansão do PIB em 2010 – lança dúvidas tanto sobre o que houve nesses cinco anos (novo “vôo

de galinha” ou um “vôo um pouco mais sustentado”), como sobre as perspectivas futuras.

Ao analisar o período entre 2003 e 2005, que cobre ¾ do primeiro governo Lula, parece

não haver dúvidas de que houve a manutenção e até mesmo ampliação das políticas

macroeconômicas restritivas, com foco unicamente voltado para o controle da inflação. Nesses

três anos, a taxa média de crescimento foi de apenas 2,6% ao ano, na mesma média dos quinze

anos anteriores. O resultado só não foi pior porque, dada a desvalorização cambial, foi possível

aumentar as exportações nacionais, em particular de commodities, primárias e industriais.

Entretanto, as exportações líquidas, a partir de 2006, deixaram de ser a principal fonte de

crescimento da economia brasileira, com ampliação da demanda doméstica.

Seja como for, e mesmo considerando os resultados positivos do triênio 2006-2008, para

manutenção do crescimento continuará sendo fundamental um alinhamento correto das diferentes

dimensões da política econômica, o que tem se esboçado, mas ainda não foi efetivado na prática.

Esse alinhamento incluiria mais flexibilidade na condução da política monetária, maiores

restrições no campo financeiro com o objetivo de buscar um câmbio competitivo e,

simultaneamente, uma política fiscal com vistas à manutenção da demanda agregada e do nível

de emprego. No campo das políticas de desenvolvimento, o Estado deve recuperar seu papel de

indutor dos investimentos, principalmente em obras de infra-estrutura (como já se coloca com o

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento). Ademais, um cenário externo benigno é

sempre bem-vindo, embora tenhamos que continuar trabalhando para fortalecer o mercado

interno, estimulando o acesso ao crédito, especialmente nos períodos de crise, como fizeram os

bancos públicos ao longo de 2009.

Dito isso, é preciso reforçar que nessa tese não iremos tratar do debate acerca das

alternativas de política econômica86

. O sumário aqui apresentado busca apenas situar a discussão

sobre pessoas com deficiência e mercado de trabalho no contexto recente da economia brasileira.

De volta a essa caracterização, apresenta-se abaixo a evolução da taxa de desemprego nas

86 Para tanto, além do livro organizado e já citado de Ricardo Carneiro, estão disponíveis na Internet relatórios de

acompanhamento da Fundap (Fundação do Desenvolvimento Administrativo, vinculada à Secretaria de Gestão do

Governo do Estado de São Paulo) <www.fundap.sp.gov.br/debatesfundap/pdf/conjuntura> e do IPEA (Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada, na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República) <http://www.ipea.gov.br/default.jsp>. Esses boletins de conjuntura fazem também um levantamento mais detalhado

sobre os indicadores recentes da economia brasileira.

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principais regiões metropolitanas do país (IBGE - Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de

Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) e na região metropolitana de São Paulo (DIEESE):

Desemprego - PME Dezembro

2002 10,5

2003 10,9

2004 9,6

2005 8,3

2006 8,4

2007 7,4

2008 6,8

Desemprego - PED Dezembro

1999 10,5

2000 10,0

2001 11,6

2002 11,4

2003 12,0

2004 10,0

2005 9,7

2006 9,0

2007 9,3

2008 8,9

Fo nte : IBGE (P ME - P es quis a Mens a l de Emprego )

e DIEESE (P ED - P es quis a de Emprego e Des emprego )

Tabela 2

Variação da taxa de desemprego (%)

Principais Regiões Metropolitanas

De maneira geral, fica evidente a redução da taxa de desemprego a partir de 2004, com os

índices deixando de apresentar dois dígitos. Existem diferenças metodológicas entre as

pesquisas87

, mas a tendência de diminuição do desemprego, independentemente dos critérios

utilizados, é inequívoca. Tal resultado decorre sobretudo do desempenho favorável do PIB entre

2004 e 2008, como vimos na tabela 1, realimentando o próprio crescimento a partir dos efeitos

multiplicadores de renda (que cresce com a queda do desemprego).

87 O IBGE considera a população desempregada como aquela que, na semana anterior à pesquisa, não trabalharam, mas tomaram providências efetivas para conseguir emprego. O DIEESE utiliza-se um conceito um pouco mais

amplo, pois considera os 30 dias anteriores à realização da pesquisa.

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O início desse processo de crescimento foi fortemente determinado pela mudança do

cenário internacional, entre fins de 2001 e início de 2002. As economias dos países centrais, além

da China e da Índia (que já vinham se expandindo), passaram a crescer de modo significativo.

Aproveitando-se de um cambio favorável, o Brasil conseguiu avançar fortemente nas suas

exportações. A partir de 2006, porém, passa a haver a conjunção de alguns fatores que deslocam

do contexto internacional os determinantes do crescimento do produto, com destaque para vetores

domésticos.

De acordo com Novais (2008), três fatores fundamentais explicam o fortalecimento do

mercado interno no período recente: i) as mudanças ocorridas no mercado de crédito; ii) a

expansão do mercado de trabalho formal; iii) a consolidação das políticas sociais, cujo carro-

chefe é o programa Bolsa Família.

Em relação ao primeiro aspecto, este autor observa que “o atual ciclo de crédito começou

com a implantação do sistema de empréstimos consignados em folha de pagamento aos

aposentados, o que deu acesso ao crédito “barato” a um expressivo grupo populacional” (Novais,

2008, p. 148). A partir daí, o sistema bancário como um todo passou a desenvolver mecanismos

de crédito, num contexto geral de redução das taxas de juros. Tal movimento foi contido apenas

no final de 2008, quando os bancos privados assumem uma posição defensiva frente à crise

financeira.

No tocante ao crescimento do mercado de trabalho, constata-se que a queda da inflação e

o aumento da oferta de emprego, aliados à política de recuperação do valor real do salário

mínimo, abriram espaço para a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores, que haviam

perdido valor entre 1999 e 2003. Houve expansão da taxa de ocupação tanto nas principais

regiões metropolitanas quanto no interior do país, sendo que “as sinergias do mercado de trabalho

― queda da taxa de desocupação e aumento da massa de rendimento e do emprego formal ―

realimentaram o ciclo de crédito e deram sustentação ao consumo”.

Finalmente, Novais (2008) chama atenção para o “conjunto de políticas sociais

distributivas de renda”, cujo destaque é o programa Bolsa Família. Tais políticas, especialmente

nas regiões Norte e Nordeste, geraram novos consumidores no país, mesmo que inicialmente

concentrados em bens primários. As facilidades de crédito já citadas ampliaram a cesta de

consumo das famílias amparadas pelos programas sociais. Em grande medida, a conjunção desses

fatores internos, mais do que o cenário externo, explica o crescimento no triênio 2006-2008.

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Entretanto, a crise financeira iniciada no segundo semestre de 2008 gerou novas

incertezas e interrompeu o processo de crescimento da economia brasileira (mostrando que não

superamos totalmente nossa vulnerabilidade externa, mesmo com os avanços obtidos). Como

afirma Quadros (2009), “há um relativo consenso” entre os analistas de que o Brasil conseguiu

adotar medidas corretas e, assim, saiu-se bem da crise, com possibilidades de recuperação e

expansão da atividade econômica nos próximos anos88

.

Dado o contexto econômico recente, esse autor procura descrever os seus desdobramentos

sociais. Nesse sentido, é interessante destacar que, mesmo durante o período de crescimento

econômico (2004-2008), tivemos limites para a melhora social. Em artigo recente sobre o tema,

Quadros (2009) observa que “enquanto o PIB cresceu 25,9% no qüinqüênio 2004-2008, a

expansão das oportunidades individuais para se obter uma ocupação foi de apenas 13,5%”. Ao

estratificar tanto os ocupados no mercado de trabalho como as famílias (conjunto da população),

com base nos rendimentos declarados na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios),

esse autor verifica um processo chamado de “baixa performance do desenvolvimento social”.

Em resumo, a mobilidade social ascendente entre 2004 e 2008 foi expressiva, mas

limitou-se aos estratos inferiores que chegaram, no máximo, à baixa classe média (a chamada

classe C89

). Em outras palavras, o dinamismo não foi suficiente para provocar mudanças e

crescimento das camadas de rendimento mais alto (média e alta classe média).

Assim sendo, reforça-se a constatação de que o crescimento econômico é condição

necessária, mas não suficiente para o pleno desenvolvimento social. Os dados apresentados no

artigo citado mostram que milhões de pessoas deixaram a condição de “miseráveis” no período

recente, mas esta população continuou sofrendo com condições precárias de moradia, saúde e

educação, entre outros aspectos. Tais áreas demandam mais investimento público, o que não

ocorre pelo desenho da política econômica ortodoxa que transfere recursos ao setor financeiro.

Como afirma Quadros (2009), tomara que as próximas eleições “produzam um (a) estadista que

nos livre das amarras do rentismo e encaminhe a construção de uma nação moderna, civilizada,

justa e ambientalmente saudável”.

88 Embora as perspectivas sejam positivas, coloca-se desde já o problema da valorização excessiva do real e suas

repercussões negativas no Balanço de Pagamentos. Esse tema certamente mereceria a atenção dos candidatos à

presidência em 2010. 89 A metodologia utilizada por esse autor para estratificação social pode ser acessada em www.eco.unicamp.br, na

série Textos para Discussão, TD-147 e TD-151.

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Esse breve e limitado panorama acerca da economia brasileira pretendeu apenas

contextualizar a discussão que faremos a seguir, sobre a população com deficiência e o mercado

de trabalho. Essa população, naturalmente, faz parte daqueles que conseguiram emprego nos

últimos anos, como também dos que continuam sofrendo com as mazelas sociais do país.

3.2 – O trabalho das pessoas com deficiência na literatura

A grande maioria dos trabalhos nessa área foi desenvolvida por autores que, de alguma

forma, se relacionam diretamente com a questão das pessoas com deficiência no mercado de

trabalho. Em particular, representantes do Poder Judiciário e servidores públicos do Ministério de

Trabalho são responsáveis por publicações que, a partir da prática cotidiana da inclusão laboral,

contextualizam e descrevem o arcabouço jurídico que respalda esse movimento. Esse é o caso,

por exemplo, do livro “A Inserção da Pessoa com Deficiência no Mundo do Trabalho”, de Jaime

e Carmo (2004). Os autores são fiscais do trabalho na Superintendência Regional de São Paulo,

detalhando no livro a legislação sobre o assunto. Da mesma forma, a procuradora do Ministério

Público do Trabalho Maria Aparecida Gugel (2005) elaborou o livro “Pessoas com Deficiência e

o Direito ao Trabalho”, onde, além da apresentação das leis, discorre sobre aspectos práticos para

contratação das pessoas com deficiência.

Nessa mesma linha – de fornecer informações objetivas e práticas para inclusão das

pessoas com deficiência – foram publicados guias como o do Instituto Ethos (2004) – “O que as

empresas podem fazer pela inclusão da pessoa com deficiência?”, da CORDE (2001), hoje

Subsecretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, intitulado: “Construindo um

mercado de trabalho inclusivo – Guia prático para profissionais de recursos humanos”; e do

próprio Ministério do Trabalho, que editou, em 2007, a publicação “A inclusão de pessoas com

deficiência no mercado de trabalho”.

Embora sejam referências importantes, principalmente para as empresas e organizações da

sociedade civil que atuam na área, optamos por não abordar o conteúdo de tais publicações, uma

vez que já tratamos das legislações que versam sobre os direitos das pessoas com deficiência e o

acesso ao trabalho90

. Conforme colocado, para uma recuperação bibliográfica mais profunda,

90 Aloisi (1999) é também um estudo interessante a respeito do trabalho de pessoas com deficiência em Campinas, em particular pela avaliação crítica quanto ao papel desempenhado pelas entidades que “preparam” estas pessoas

para o trabalho, essencialmente centradas no “modelo-médico” da deficiência. Esta pesquisa procurou avaliar o

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selecionamos três livros/teses que, para além da descrição das leis, fazem uma avaliação crítica

desse processo, questionando e/ou exigindo maior empenho para fiscalização da Lei de Cotas.

São os seguintes:

“Oportunidades de Trabalho para Portadores de Deficiência”, de José Pastore,

publicado em 2000;

“O trabalho das pessoas com deficiência e as relações sócias de produção

capitalista: uma análise crítica das políticas de cotas no Brasil”, dissertação de

mestrado, defendida em 2009, por Ênio Rodrigues da Rosa.

“Trabalho Decente: leis, mitos e práticas de inclusão” (2008), de Carlos Aparício

Clemente, coordenador do Espaço da Cidadania, em Osasco;

Em seguida, apresentamos uma breve resenha desses trabalhos, discutindo e

problematizando os aspectos por eles levantados. No conjunto, tal debate servirá de suporte e nos

remeterá para os itens seguintes, onde trataremos dos dados do Censo de 2000 e das informações

levantadas sobre a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal.

O livro de José Pastore mencionado acima talvez tenha sido o primeiro estudo que

procurou fazer uma reflexão sobre a “Lei de Cotas” e a inserção das pessoas com deficiência no

mercado de trabalho. Curiosamente, o autor, até onde sabemos, não tem uma relação direta com o

tema, embora seja um pesquisador com uma série de estudos envolvendo questões trabalhistas e

sindicais. Ademais, em 2000, ano de publicação do livro, pouco se falava e não havia o trabalho

que hoje existe de fiscalização da “Lei de Cotas”, que começou a ser mais efetivo, como vimos,

justamente a partir daí, com a criação dos Núcleos de Combate à Discriminação, no âmbito de

algumas gerências regionais do Ministério do Trabalho e Emprego.

conceito que o empregador tem do seu funcionário com deficiência, identificando programas de qualificação e

treinamento que poderiam ser aplicados nas empresas.

Bahia (2009) realiza pesquisa semelhante no intuito de analisar ações desenvolvidas por empresas privadas no que se

refere à inserção de pessoas com deficiência, tendo também como finalidade o aperfeiçoamento de programas a serem implementados nesse sentido.

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Na época do lançamento do livro, no primeiro semestre de 2000, o autor publicou dois

artigos no jornal Estado de São Paulo que resumem sua posição sobre o tema91

. Em primeiro

lugar, acertadamente, reconhece-se a situação de exclusão e invisibilidade a que estavam

submetidos no Brasil os “portadores de deficiência física, sensorial ou mental”. Mas o principal

objetivo de Pastore é questionar a eficácia do dispositivo de cotas compulsórias, reafirmado no

Decreto 3.298/99, que formulou a “política nacional de integração”. Nesse sentido, menciona-se

a experiência de outros países que, segundo o autor, “não tiverem sucesso com base exclusiva na

política de cotas”. Fundamentalmente, e olhando da ótica das empresas, argumenta-se que: “pela

natureza de suas atividades, muitas delas não têm condições de cumprir as cotas. Outras, pelo seu

tamanho avantajado, não encontram portadores de deficiência em número e capacitações

suficientes para cumprir sua cota. Há ainda o caso de empresas que não têm recurso para

reformar suas instalações”.

Trata-se uma síntese do discurso empresarial contemporâneo sobre as dificuldades em se

cumprir a Lei. É verdade que alguns problemas apontados são reais, como a qualificação

relativamente mais baixa das pessoas com deficiência. Outros argumentos, porém, não se

sustentam, como a dificuldade em “adaptar as instalações”, uma vez que isso é uma determinação

legal (Decreto 5.296/04) e deve fazer parte da política de qualquer empresa preocupada em

oferecer um ambiente inclusivo.

De qualquer forma, já no ano de 2000, Pastore defende um aperfeiçoamento ou

flexibilização da Lei. Ainda pautado pela experiência internacional, coloca que muitos países

“evoluíram para o sistema de cota-contribuição”. Exemplificando, “as empresas que, por

qualquer motivo, deixam de contratar os portadores de deficiência previstos nas cotas, ficam

obrigadas a recolher para um fundo especial um percentual que gastariam com aquela

contratação”. Alternativamente, tais empresas poderiam ainda “contratar através de instituições

especializadas em trabalho protegido, (...), nas quais os portadores de deficiência trabalham de

forma produtiva e bem acomodados”.

Em Pastore (2000), o autor detalha tais medidas e discorre sobre políticas públicas que

poderiam, em sua avaliação, facilitar a contratação das pessoas com limitações físicas, sensoriais

91 “O trabalho dos portadores de deficiência I” e “O trabalho dos portadores de deficiência II”, publicados no jornal O Estado de São Paulo em 01/03/2000 e 14/03/2000, respectivamente. Os textos estão também disponíveis no site

do autor: <http://www.josepastore.com.br/artigos/em/em_082.htm>.

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ou cognitivas. Por esta obra ser pioneira nesta discussão, apresenta-se a seguir uma resenha

crítica um pouco mais detalhada deste estudo.

Antes de tratar propriamente das políticas públicas e do acesso ao trabalho, o autor faz um

interessante preâmbulo a respeito da temática da deficiência no campo da sociologia. Parte-se da

constatação da baixíssima participação das pessoas com deficiência no mercado formal de

trabalho, então estimada em apenas 2% desta população, enquanto que em países desenvolvidos

este percentual ficaria entre 30% e 45%. Procurando as causas que explicariam esse fato, o autor,

corretamente, identifica obstáculos maiores na própria sociedade do que nas limitações físicas,

sensoriais ou cognitivas.

Deve-se registrar também que, logo de início, coloca-se que prevalece uma “carência de

estudos no campo das políticas públicas” sobre o tema, o que impede “uma discussão mais

técnica e menos apaixonada sobre o que realmente bloqueia a participação dos portadores de

deficiência no mercado de trabalho” (Pastore, 2000, p. 9).

No capítulo introdutório elaborado por este autor, fica explícito seu entendimento de que,

conforme discutimos no capítulo 2, “a maior parte dos problemas que aflige a vida dos portadores

de deficiência têm origem na sociedade” (Pastore, 2000, p. 13). Numa perspectiva histórica,

diferentes culturas acabaram por restringir a participação ou mesmo discriminar esse grupo

populacional. Se tais práticas não são tão comuns hoje em dia, permanecem problemas estruturais

e barreiras que, dentre outros aspectos, dificultam a inserção no mercado de trabalho, em especial

nos países menos desenvolvidos.

Ocorre que ao lado dos problemas de falta de transporte ou acessibilidade precária, por

exemplo, alguns estereótipos associados às pessoas com deficiência ainda estão “vivos” no

imaginário da população, inclusive dos empresários. Pastore (2000) cita um trabalho de Hunt

(1999) que pesquisou, na sociedade contemporânea, a formação de crenças e valores relacionados

a segmentos populacionais historicamente discriminados. Por incrível que pareça, foram

identificados cinco traços básicos que permeiam as concepções das sociedades modernas a

respeito dos portadores de deficiência. Muitos vêem os deficientes como infelizes, inúteis,

diferentes, oprimidos e/ou doentes.

Não cabe aqui detalhar tais percepções, além de ser difícil mensurar em que medida cada

uma delas está presente em um determinado país ou região, mas fica evidente que tais conotações

negativas, em alguma medida, prejudicam enormemente as pessoas com deficiência na busca de

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um emprego, processo competitivo e no qual muitas vezes acabam prevalecendo virtudes ligadas

ao ímpeto e à força individual.

Mesmo com tais dificuldades, é preciso crer que estamos vivenciando um contínuo

amadurecimento da sociedade, e de fato, pela própria experiência prática que construímos ao

longo de 15 anos como portador de deficiência física, este parece ser o caso. O movimento

organizado das pessoas com deficiência engajou-se no trabalho de sensibilização e

conscientização da sociedade. Se ainda não há uma situação ideal, os exemplos de preconceito e

discriminação são cada vez mais raros, decorrendo muitas vezes da desinformação ou falta de

conhecimento das pessoas.

Em termos da definição sobre quem são os “portadores de deficiência”, Pastore (2000) faz

menção a estudos que revelam o quão complexa é essa questão. Sob a ótica de leves limitações

funcionais, restringindo ou limitando o pleno funcionamento do corpo ou mente, teríamos 50%

da população nessa categoria. Quando se considera o efeito de tais limitações em atividades

centrais da vida – como, por exemplo, afazeres domésticos, freqüência à escola ou exercício de

uma profissão – tal índice diminui para algo em torno de 15%. Especificamente no acesso ao

trabalho, estima-se que 10% da população tenham limitações significativas; sendo que dessas, de

6% a 7% estariam em idade de trabalhar.

Tal discussão remete ao tema da legislação que define direitos e concede benefícios às

pessoas com deficiência. Antes de tratar do mercado de trabalho, Pastore (2000) faz uma

recuperação das leis nacionais e tratados internacionais, assim como fizemos no capítulo 2. Após

fazer esta apresentação, o autor afirma que “quando se examina o aparato legal existente (...)

conclui-se que a fraca participação dos portadores de deficiência no mercado de trabalho do

Brasil decorre não da falta de leis e fiscalização, mas sim da carência de ações, estímulos e

instituições que viabilizem, de forma concreta, a formação, habilitação, reabilitação e inserção

dos portadores de deficiência no mercado de trabalho” (Pastore, 2000, p. 59).

Baseado na experiência de outros países, coloca-se que as ações deveriam ocorrer por

meio do tripé: a) educação; b) reabilitação; c) compensações às empresas por meio de estímulos e

benefícios. As medidas a serem tomadas deveriam conciliar uma visão que ele chama de

“jurisdicional”, com ênfase nas leis anti-discriminação, com outra perspectiva de “mercado”,

valorizando estímulos às empresas que desejam contratar pessoas com deficiência.

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Em nossa opinião, estão parcialmente corretos os aspectos acima colocados, pois é preciso

realmente investir na educação e na reabilitação das pessoas com deficiência. Mas temos dúvidas

quanto às medidas de incentivo às empresas. Pastore (2000) argumenta que, para empregar um

negro, por exemplo, as empresas têm as mesmas despesas que para empregar um branco. Mas

para empregar um portador de deficiência, “há custos de adaptação que não podem ser

ignorados” (Pastore, 2000, p. 60). Na mesma linha, afirma-se que nem todo empregador está

preparado para receber um portador de deficiência, sendo que “a mudança desse quadro depende

muito mais de educação e medidas estimuladoras do que fiscalização e punição” (Pastore, 2000,

p. 61).

Será mesmo? Acreditamos que a construção ou adaptação dos espaços de uso coletivo –

empresas, comércio, prédios públicos, etc. – é sim uma obrigação dos seus responsáveis. Em

2004, como vimos, foi sancionado o Decreto Federal 5.296/04, chamado de “Decreto da

Acessibilidade”, que vai nessa linha e precisa ser fiscalizado, gerando punições para aqueles que

descumprem a lei. Sabemos que na prática existe a morosidade da Justiça e mesmo os limites do

movimento organizado das pessoas com deficiência em fazer valer seus direitos, mas não nos

parece adequado falar em estímulos às empresas para que elas sejam espaços acessíveis.

No capítulo 3 do seu livro, Pastore (2000) trata propriamente das oportunidades de

trabalho para as pessoas com deficiência. Em primeiro lugar, observa-se que boa parte da

população com deficiência não faz parte da força de trabalho, estando na condição de

aposentados, recebendo pensões ou benefícios, ou mesmo desalentados, sem exercer qualquer

tipo de ocupação. Dentre os que fazem parte da força de trabalho, apenas uma parcela trabalha de

maneira regular, formal e contínua. O restante realiza atividades temporárias e informais,

algumas vezes combinadas com o recebimento de pensões ou benefícios. Essa seria a realidade

para “a maior parte dos países do mundo, em especial para o Brasil, onde as políticas públicas

que cuidam da inserção e retenção no mercado de trabalho são muito incipientes” (Pastore, 2000,

p. 72).

Utilizando-se da estimativa da OMS – Organização Mundial de Saúde – segundo a qual

10% da população teria algum tipo de deficiência, Pastore (2000) calcula em 16 milhões de

pessoas com restrições físicas, sensoriais e cognitivas, no Brasil, em 2000, das quais 9 milhões

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em idade de trabalhar. Deste universo, cerca de um milhão, pouco mais de 10%, exerciam

atividades de trabalho, formal ou informal92

.

Assim sendo, a grande maioria das pessoas com deficiência ocupadas – cerca de 90%

delas – seria “constituída de pedintes de rua (principalmente cegos e portadores de limitações

físicas), camelôs que trabalham irregularmente, vendedores de bilhete de loteria, distribuidores de

adesivos no semáforo e os que pedem dinheiro em nome de entidades que cuidam de portadores

de deficiência93

” (Ribas apud Pastore, 2000, p. 73).

A realidade cotidiana atual, infelizmente, confirma esse quadro, pois é muito comum ver

pessoas com deficiência nas situações acima descritas. É preciso dizer, entretanto, que o próprio

Pastore (2000) reconhece a “fragilidade” dos dados relacionados ao trabalho das pessoas com

deficiência. O Censo de 2000 melhorou as condições de pesquisa, mas ainda deixa dúvidas

quando se trata dos critérios para caracterizar a deficiência no acesso ao trabalho. Em 2007 e

2008, pela primeira vez, o Ministério do Trabalho e Emprego disponibilizou, via RAIS (Relação

Anual de Informações Sociais), dados mais precisos, que serão apresentados mais à frente.

De qualquer forma, partindo da percepção da realidade desfavorável às pessoas com

deficiência no mundo do trabalho, Pastore (2000) se dedica a sugerir políticas públicas e

flexibilizações na lei. Em síntese, a ênfase recai nos programas de reabilitação, educação e

qualificação profissional, em sintonia com as demandas do mercado e as novas possibilidades de

uso tecnológico. No campo da legislação, defendem-se as “modernas” formas de ocupação, como

o trabalho à distância ou “teletrabaho”. Além disso, faz-se a defesa pública, como vimos nos

artigos já mencionados no jornal Estado de São Paulo, de mudanças na Lei de Cotas, com

incentivos às empresas e novas modalidades de contratação.

O problema da legislação vigente no Brasil decorreria do fato de que ela “amarrou a

contratação dos portadores de deficiência à mais difícil modalidade de trabalho nos dias atuais –

o emprego, com vínculo empregatício, e diretamente ligado à empresa contratante” (Pastore,

2000, p. 195). Esse emprego fixo e formal, de acordo com este autor, estaria diminuindo no

Brasil, seguindo uma tendência mundial. Diante disso, o autor defende a “cota-contribuição”, na

qual a empresa, ao invés de empregar alguém com deficiência, destinaria recursos a um fundo

específico a ser usado em programas de reabilitação e qualificação; e a “cota-tercerizada”, onde

92 O autor cita como fonte trabalhos da época que buscaram fazer estimativas a partir do Censo de 1991, como Carreira (1996) e Ribas (1997). 93 Para essa passagem, Pastore cita como fonte Ribas (1983).

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se incluiriam na cota as mais variadas modalidades de trabalho, como o trabalho por projeto, o

trabalho por tarefa, a subcontratação, a terceirização, o teletrabalho e várias formas de trabalho

intermitente, sem vínculo empregatício.

É uma proposta polêmica e que não foi adotada nos anos seguintes, embora haja pressões

empresariais, nos dias atuais, para que isso ocorra. A cota-contribuição foi considerada por

alguns estudiosos como uma forma de “pagar para não contratar, ou até pagar para discriminar”;

e a cota-tercerizada, na prática, incluiria pessoas com deficiência em atividades precárias e

inseguras do ponto de vista do trabalhador. Na proposta de Pastore (2000), uma empresa estaria

cumprindo a cota se contratasse uma entidade beneficente ou uma cooperativa de trabalho

terceirizada na área de serviços, por exemplo, que tivesse trabalhadores com deficiência.

Sabemos que tais cooperativas funcionam com alta rotatividade de mão-de-obra, além e uma

política de baixos salários e benefícios limitados. Já o trabalho em entidades mantém a

segregação e institucionalização das pessoas com deficiência.

Embora rejeitemos tais alterações na Lei, a realidade que persiste é de baixa participação

das pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal. Ou seja, a legislação atual e as

políticas públicas existentes também não lograram êxito nesse processo. Por isso, ao final deste

capítulo e nas nossas conclusões discutiremos estratégias de ação que, basicamente, passam por

políticas públicas inclusivas combinadas com programas específicos de atenção às pessoas com

deficiência.

Para finalizar esta resenha acerca do livro de Pastore (2000), vale a pena apresentar um

breve panorama acerca da legislação vigente nos outros países sobre o acesso das pessoas com

deficiência ao trabalho. De acordo com o autor, nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Holanda,

Suécia e Dinamarca inexistem as cotas, sendo que as violações das leis antidiscriminação são

resolvidas em órgãos administrativos e tribunais de Justiça. Essa, porém, não é a realidade em

muitos outros países, como se observará no quadro a seguir. Além das cotas, tais países utilizam-

se também de outras políticas variadas, “como incentivos fiscais e contribuições empresariais em

favor de fundos públicos destinados ao custeio de programas de formação profissional, no âmbito

público e privado” (MTE, 2007, p.12).

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Quadro 16 – Política de Cotas – Comparativo Internacional

PORTUGAL: art. 28, da Lei nº 38/04, estabelece a cota de até 2% de trabalhadores com deficiência para a

iniciativa privada e de, no mínimo, 5% para a administração pública.

ESPANHA: a Lei nº 66/97 ratificou o art. 4º do Decreto Real nº 1.451/83, o qual assegura o percentual mínimo de

2% para as empresas com mais de 50 trabalhadores fixos. Já a Lei nº 63/97 concede uma gama de incentivos

fiscais, com a redução de 50% das cotas patronais da seguridade

social.

FRANÇA: o Código do Trabalho Francês, em seu art. L323-1, reserva posto de trabalho no importe de 6% dos

trabalhadores em empresas com mais de 20 empregados.

ITÁLIA: a Lei nº 68/99, no seu art. 3º, estabelece que os empregadores públicos e privados devam contratar

pessoas com deficiência na proporção de 7% de seus trabalhadores, no caso de empresas com mais de 50

empregados; duas pessoas com deficiência, em empresas com 36 a 50 trabalhadores; e uma pessoa com

deficiência, se a empresa possuir entre 15 e 35 trabalhadores.

ALEMANHA: a lei alemã estabelece para as empresas com mais de 16 empregados uma cota de 6%, incentivando

uma contribuição empresarial para um fundo de formação profissional de pessoas com deficiência.

ÁUSTRIA: a lei federal reserva 4% das vagas para trabalhadores com deficiência nas empresas que tenham mais

de 25, ou admite a contribuição para um fundo de formação profissional.

ARGENTINA: a Lei nº 25.687/98 estabelece um percentual de, no mínimo, 4% para a contratação de servidores

públicos. Estendem-se, ademais, alguns incentivos para que as empresas privadas também contratem pessoas com

deficiência.

COLÔMBIA: a Lei nº 361/97 concede benefícios de isenções de tributos nacionais e taxas de importação para as

empresas que tenham, no mínimo, 10% de seus trabalhadores com deficiência.

URUGUAI: a Lei nº 16.095 estabelece, em seu art. 42, que 4% dos cargos vagos na esfera pública deverão ser

preenchidos por pessoas com deficiência e, no art. 43, exige, para a concessão de bens ou serviços públicos a

particulares, que estes contratem pessoas com deficiência, mas não estabelece qualquer percentual.

VENEZUELA: a Lei Orgânica do Trabalho, de 1997, fixa uma cota de uma pessoa com deficiência a cada 50

empregados.

ESTADOS UNIDOS: inexistem cotas legalmente fixadas, uma vez que as medidas afirmativas dessa natureza

decorrem de decisões judiciais, desde que provada a falta de correspondência entre o número de empregados

com deficiência existente em determinada empresa e aquele que se encontra na respectiva comunidade. De

qualquer modo a The Americans with Disabilities Act (ADA), de 1990, trata do trabalho de pessoas com

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deficiência, detalhando as características físicas e organizacionais que devem ser adotadas obrigatoriamente por

todas as empresas para receber pessoas com deficiência como empregadas.

JAPÃO: a Lei de Promoção do Emprego para Portadores de Deficiência, de 1998, fixa o percentual de 1,8% para

as empresas com mais de 56 empregados, havendo um fundo mantido por contribuições das empresas que não

cumprem a cota, fundo este que também custeia as empresas que a preenchem.

CHINA: a cota oscila de 1,5% a 2%, dependendo da regulamentação de cada município.

Fonte: MTE, 2007.

De maneira geral, as cotas legais variam de 1,5% a 7,0% do total dos trabalhadores, a

partir de um número mínimo de empregados. Elas prevalecem nos países europeus, embora

também existam no Japão e China (em percentuais relativamente pequenos). Na América do Sul,

excluindo-se o Brasil, opta-se por cotas basicamente no setor público, ou apenas incentivos para

contratação às empresas privadas. Seja como for, fica claro que a política de cotas é uma das

estratégias utilizadas para incorporação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Este

processo, e a política de cotas em si, foram objeto recente de estudos e análises no meio

acadêmico, que tratamos a seguir.

Em 2009, Enio Rodrigues da Rosa, militante do movimento das pessoas com deficiência,

defendeu sua dissertação de mestrado na qual faz uma “análise crítica” da política de cotas no

Brasil. O trabalho possui uma perspectiva marxista e, de maneira interessante, situa o tema das

pessoas com deficiência numa dimensão mais ampla das relações de trabalho nos diferentes

modos de produção capitalista. Embora essa seja uma rica abordagem teórica, nos

concentraremos mais no capítulo IV da referida dissertação, onde se realiza a discussão atual

sobre a política de cotas no Brasil.

No início do seu trabalho, o autor faz uma recuperação histórica do processo que levou a

promulgação de leis que garantiram o direito ao trabalho para as pessoas com deficiência.

Lembra que já na Constituição de 1988 menciona-se um percentual de vagas a ser reservado aos

portadores de deficiência, o que só se regulamentou com o Decreto 3.298/99, mais de dez anos

depois. Destaca também o papel do movimento organizado das pessoas com deficiência, que tem

sido “protagonista político ativo, exercendo pressão e denunciando as práticas utilizadas pelos

agentes privados e públicos que agem com nítida intenção de negar o direito ao trabalho de

milhões de brasileiros com deficiência” (Rosa, 2009, p. 15).

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Tendo como fonte uma pesquisa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) realizada

em 2007, o autor afirma que, no ano de 2005, “apenas 8,5% das pessoas com deficiência ativas

ocupavam um posto de trabalho94

”. Em outras palavras, o desemprego ou a inatividade atingiriam

cerca de 90% das pessoas com deficiência. Diante desse dado, o autor formula uma das principais

teses do seu trabalho: “os capitalistas acabam por selecionar aquelas pessoas com maior

capacidade de trabalho e que se ajustam aos processos de trabalho (...), cujo desvio não seja

acentuado a ponto de exigir modificações que impliquem em gastos adicionais e influenciem

negativamente na produção da taxa de mais-valia da empresa” (Rosa, 2009, p. 18).

Tal afirmação dependeria de um detalhamento dos dados acerca das pessoas com

deficiência que estão trabalhando. Como veremos, há uma clara “preferência” pelos trabalhadores

com deficiência física ou auditiva, em detrimento dos indivíduos com deficiência visual ou

intelectual. Não há, porém, dados que diferenciem distintos níveis de deficiência física, isto é, se

estamos falando de uma pessoa com uma amputação ou tetraplegia, por exemplo. Seja como for,

a percepção daqueles que militam nessa área confirma a tese defendida pelo autor: muitas

empresas buscam pessoas com “deficiências leves”, que exigirão pouca ou nenhuma alteração no

ambiente de trabalho95

.

Ao fazer uma avaliação critica da política de cotas, Rosa argumenta que, em última

instância, não interessa ao empresário capitalista contratar alguém com deficiência, daí a

necessidade da Lei. Assim, esse é um processo que, longe de ser consensual, cria tensões entre as

partes envolvidas. As possibilidades e os limites da política de cotas se configuram quando:

“(...) se confrontam os interesses dos empresários capitalistas (preocupados com o

aumento da produtividade e, conseqüentemente, com os lucros extraídos do trabalho explorado), do Estado (com os seus interesses políticos e ideológicos que, em certos

momentos, podem entrar em choque com os interesses dos capitalistas) e os interesses das

pessoas com deficiência (que necessitam do salário proveniente da relação de trabalho para poderem adquirir no mercado as mercadorias básicas de subsistência)” (Rosa, 2009,

p. 168).

Nesse cenário contraditório, o autor identifica três estratégias distintas que são colocadas

para maior efetividade da Lei: a) o discurso da flexibilização da legislação, proposto por setores

empresariais; b) um papel mais ativo do Estado no sentido da fiscalização e multa às empresas; c)

94 Pelas referências apresentadas na dissertação não conseguimos, infelizmente, localizar a referida pesquisa. 95 Várias vezes fomos procurados, no CVI-Campinas, por empresas que buscavam pessoas com deficiência “desde

que não fossem cadeirantes”, por exemplo.

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a atuação do movimento das pessoas com deficiência para “sensibilizar” os empresários e

estimular a contratação. Rosa (2009), porém, mostra-se cético em relação a tais estratégias, pois,

segundo ele, a baixa participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho e os

limites da “Lei de Cotas” são problemas estruturais, que não poderão ser equacionados

definitivamente “enquanto permanecerem vigorando as relações sociais de produção capitalista”

(Rosa, 2009, p. 169).

Assim sendo, embora reconheça a importância da “Lei de Cotas”, o autor defende que o

movimento organizado das pessoas com deficiência, do qual ele faz parte, “denunciem a

impossibilidade da sociedade capitalista gerar trabalho mesmo para todas as pessoas sem

deficiência, quanto mais então para as pessoas com deficiência” (Rosa, 2009, p. 169). Mesmo

sendo positiva e louvável esse tipo de questionamento mais amplo, a atual conjuntura política,

interna e externa, não parece fornecer esperanças de que sejam construídas relações de trabalho

não-capitalistas. O que nos parece crível e factível é “domesticar” o máximo possível as relações

de trabalho capitalistas, o que se faz com um Estado forte e atuante, que combine as políticas

públicas de cunho universal com programas especializados de atenção às pessoas com

deficiência.

De volta ao trabalho de Rosa (2009), vale registrar a sua crítica feroz aos empresários e

acadêmicos – como Pastore (2000) – que defendem a flexibilização da “Lei de Cotas”, em

especial no sentido de que sejam diminuídos os percentuais exigidos na contratação de pessoas

com deficiência. Tal processo, na verdade, já está em curso por meio de projeto de Lei de autoria

do senador José Sarney, que tramita no Congresso Nacional. Os seus principais pontos seriam: a)

revisão dos percentuais de cotas previstos na legislação; b) alteração do conceito de pessoas com

deficiência, de forma a ampliar o número de trabalhadores potenciais; c) inclusão do aprendiz

com deficiência nas cotas; d) mapear as áreas de risco onde a contratação de pessoas com

deficiência não é recomendável; e) incluir nas cotas e valorizar esquemas de terceirização e

trabalho protegido.

As propostas, de acordo com Rosa (2009), deixam “evidente a intencionalidade de afastar

de dentro das empresas as pessoas com deficiência” (Rosa, 2009, p. 184). Nas suas conclusões,

este autor afirma: “a lógica da organização da produção capitalista, voltada para a extração do

máximo do trabalho, não comporta e não necessita da força de trabalho das pessoas com

deficiência, principalmente daquelas com deficiências mais graves” (Rosa, 2009, p. 234).

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138

Em nossa opinião, tal avaliação tem seus méritos, mas pressupõe uma mudança de tal

mote na sociedade que, na prática, configura-se irreal. É verdade que a participação das pessoas

com deficiência no mercado formal de trabalho, como veremos, é ínfima. Da mesma forma,

iniciativas empresariais acima mencionadas, de fato, revelam dificuldades e até mesmo a

persistência de preconceitos. Porém, é preciso buscar alternativas no quadro vigente de

desenvolvimento econômico e social, com todas as imperfeições de um sistema capitalista que, se

deixado livre, realmente gerará desigualdades, exclusão e pobreza.

Para avançar nesse debate, apresenta-se, na seqüência, o livro “Trabalho Decente: leis,

mitos e práticas de inclusão”, de Carlos Aparício Clemente, lançado em 2008. O grande mérito

dessa publicação foi o de sistematizar, de forma inédita, dados disponíveis sobre a contratação

das pessoas com deficiência e compará-los com as vagas potencialmente existentes nas empresas

com 100 (cem) ou mais empregados, que são obrigadas a cumprir a “Lei de Cotas”. Existem

também comparações entre esses dados e a população com deficiência apurada pelo IBGE no

Censo de 2000. Nesse aspecto, em função dos diferentes critérios para definição de quem são as

pessoas com deficiência (no Censo e na Lei), temos algumas divergências quanto às informações

apresentadas96

.

Um primeiro aspecto que chama atenção em Clemente (2008) é a constatação de que

cresce o número de pessoas com deficiência em “idade produtiva”. De fato, se considerarmos as

crescentes taxas de acidentes (automobilísticos, no trabalho, etc.), o número elevado de vítimas

da violência urbana e, simultaneamente, o estágio avançado da medicina que permite a

manutenção da vida mesmo com limitações de diferentes ordens, a questão do trabalho das

pessoas com deficiência coloca-se como um desafio atual e para o futuro.

Em boa medida, tal processo foi impulsionado pela “Lei de Cotas”, que é objeto de

análise deste autor. Segundo ele, depois de quase vinte anos da sua publicação – já que a Lei é de

1991 – ela permanece como “um barco à deriva”. Na verdade, confrontam-se duas situações

contraditórias que dificultam ou estimulam o cumprimento da Lei. De um lado, “há

desconhecimento de sua aplicação por órgãos fiscalizadores; resistência tanto no setor privado

como na administração pública (por ignorância ou preconceito); e prestação de informações

96 No próximo item este aspecto será discutido. Basicamente, não nos parece correto considerar de maneira

“automática” que todas as pessoas que declararam deficiência e/ou incapacidade façam jus a “Lei de Cotas”. É preciso qualificar melhor os dados do Censo, não só pela faixa etária, mas também pelo grau de dificuldade

funcional declarado.

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incorretas à sociedade (...)” (Clemente, 2008, p. 15). Esse conjunto de fatores coloca em dúvida a

existência de pessoas com deficiência em quantidade suficiente para suprir as cotas, conforme

têm argumentado setores empresariais.

Porém, de outro lado, há ações exemplares mesmo no campo da fiscalização da Lei,

exercida pelas Superintendências ou Gerências regionais de trabalho, além de práticas

empresariais socialmente responsáveis, com amplos projetos de qualificação e inserção das

pessoas com deficiência no mercado de trabalho97

. O resultado da interação desses cenários

contraditórios pode ser resumido no fato de que, embora crescente, o número de pessoas com

deficiência trabalhando formalmente ainda é muito pequeno.

Uma prova da afirmação anterior é a pesquisa realizada pelo Instituto Ethos/Ibope nas 500

maiores empresas do Brasil, citada por Clemente (2008). Tal pesquisa, realizada em 2007, buscou

avaliar as chamadas ações afirmativas no universo empresarial das médias e grandes empresas

brasileiras. No que tange às pessoas com deficiência, a conclusão foi inequívoca: “o exame dos

dados da amostra indica ser muito baixa a representação de pessoas com deficiência em todos os

níveis hierárquicos considerados na pesquisa” (Clemente, 2008, p. 28). Mesmo existindo normas

e práticas internacionais consolidadas, farta legislação nacional, manuais e cartilhas produzidas

por entidades, sindicatos e organizações empresariais e do governo, parece que ainda estamos

distantes de uma inclusão efetiva das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Na verdade, mesmo em outros países isso continua ocorrendo. Clemente (2008) cita um

trabalho recente da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 2007, que apresentou as

seguintes conclusões:

Há 650 milhões de pessoas com deficiência no mundo, sendo 450 milhões em idade de

trabalhar;

Cerca de 80% das pessoas com deficiência vive nos países em desenvolvimento e têm

pouco ou nenhum acesso aos serviços que necessitam;

97 Nesse livro e em outras publicações são apresentados casos de sucesso na inclusão de pessoas com deficiência.

São, de fato, experiências positivas mas que, na nossa opinião, não acrescentariam muito à discussão de fundo que se

pretende fazer nessa tese. De qualquer forma, vale uma menção elogiosa ao projeto que vem sendo desenvolvido na Fundação Serasa, coordenado por João C. Ribas, há quase dez anos, com o objetivo de qualificar e empregar pessoas

com deficiência

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No mundo do trabalho as pessoas com deficiência registram maior desemprego e menores

salários que as pessoas sem deficiência;

Com freqüência, estão sub-empregadas, relegadas a trabalhos de baixo nível e mal-

remunerados, com ínfima segurança social e legal;

No entanto, quando encontram trabalho que corresponde às suas capacidades, habilidades

e interesses, podem contribuir positivamente ao ambiente de trabalho.

Esse panorama não parece ser muito diferente daquilo que se observa no Brasil, como

discutiremos nos itens seguintes. Para finalizar essa breve resenha, é preciso destacar alguns

aspectos legais no âmbito da “Lei de Cotas”, assim como faz Clemente (2008). Primeiramente,

deve-se reafirmar que, para além das pessoas com deficiência, considera-se para efeito das cotas

os chamados “reabilitados”. Entende-se por reabilitada, de acordo com o artigo 31 do Decreto

3.298/99, “a pessoa que passou por processo orientado a possibilitar que adquira, a partir da

identificação de suas potencialidades laborativas, o nível suficiente de desenvolvimento

profissional para reingresso no mercado de trabalho”. Em geral, são pessoas que sofreram

acidentes ou tiveram doenças do trabalho, podendo posteriormente retornar ao mercado e serem

consideradas nas cotas.

Outro aspecto importante está colocado no parágrafo primeiro do artigo 93 da Lei

8.213/91. Diz o texto legal que “a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado

ao final do contrato por prazo determinado de mais de 90 dias, e a imotivada, no contrato por

prazo indeterminado só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante”

(grifos nossos). Ou seja, quando há demissão de um trabalhador reabilitado ou com deficiência,

outro deve ser contratado para sua substituição.

Finalmente, deve-se levar em conta que só em 2003, por meio da Portaria 1.199 de

28/10/2003 é que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) regulamentou as multas a serem

aplicadas pelo descumprimento da “Lei de Cotas”, embora elas já estivessem previstas na

legislação original de 1991. Pela portaria, as multas variam de acordo com o porte das empresas,

a partir de um mínimo legal.

Os dados apresentados por Clemente (2008) serão apresentados e discutidos no último

item desta tese. Este autor fez um esforço pioneiro para sistematizar o número de pessoas com

deficiência que foi contratado nos últimos anos, com base nas informações das Superintendências

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e Gerências regionais do trabalho, órgãos vinculados ao Ministério do Trabalho e Emprego

(MTE), responsáveis pela fiscalização quanto ao cumprimento da “Lei de Cotas”. Em resumo, os

números apresentados mostram a pequena participação das pessoas com deficiência no mercado

de trabalho, mesmo com uma discreta tendência de crescimento no período recente. Como

veremos, este autor chama atenção também para as dificuldades em se obter os dados relativos às

pessoas com deficiência junto ao MTE, que só a partir de 2007, com base na RAIS, passou a

divulgá-los de forma oficial.

Os trabalhos de Pastore (2000), Rosa (2009) e Clemente (2008) possuem visões críticas

quanto à “Lei de Cotas”. O primeiro avalia este instrumento, da forma como foi concebido, como

um desestímulo para que as empresas contratem pessoas com deficiência, pois as cotas se referem

ao emprego formal, não prevendo formas flexíveis de trabalho ou outros tipos de “contrapartidas”

(como a “cota-contribuição”). Rosa (2009) argumenta que as cotas, embora importantes, são

ineficazes dada a realidade do sistema de produção capitalista, que funciona com um excedente

de trabalho (onde estariam as pessoas com deficiência). Por fim, Clemente (2008) sistematiza as

informações disponíveis – a partir do trabalho de fiscalização das Superintendências e Gerências

regionais do trabalho – e constata a baixa efetividade da Lei, além de criticar o Ministério do

Trabalho e Emprego pelas falhas e omissões na divulgação dos dados.

As análises presentes nestes trabalhos, assim como a experiência pessoal do autor com o

tema, servirão de subsídio para a discussão a ser realizada nos dois últimos itens. Neles busca-se,

primeiramente, dimensionar a população com deficiência que estaria apta para o trabalho (e

poderia usufruir da “Lei de Cotas”), para em seguida apresentar os dados mais recentes sobre a

inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho formal, obtidos através de contato

direto com responsáveis no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e na Gerência Regional de

Campinas.

3.3 – A população com deficiência no Censo de 2000

Em linhas gerais, os estudos apresentados anteriormente apontam para um cenário de

dificuldades no acesso das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho formal. Para

aprofundar esse debate, nos parece importante procurar mensurar o tamanho da população com

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deficiência em “idade produtiva” e de acordo com os parâmetros da “Lei de Cotas” (Decretos

Federais 3.298/99 e 5.296/04). Essa não é uma tarefa fácil, mas podem ser feitas estimativas com

base nos dados do Censo 2000.

Aspectos teóricos e conceituais

Porém, antes de realizar esse exercício, é preciso dizer que esta questão – “quantas são as

pessoas com deficiência?” – causa, de certa forma, tensões naqueles que lidam com a

problemática do acesso ao trabalho, particularmente entre o movimento social e os setores

empresariais. De um lado, afirma-se que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

no censo de 2000, apontou a existência de quase 25 milhões de pessoas com deficiência, e que a

grande maioria desta população, economicamente ativa, está desempregada ou no mercado

informal. De outro, é cada vez mais comum o argumento de algumas empresas no sentido de que

não encontram as pessoas com deficiência, ou que elas são incapazes, pela baixa qualificação, de

trabalhar no mercado formal (preferindo muitas vezes manter o benefício de prestação continuada

ou a aposentadoria por invalidez, ao invés de ingressar neste mercado).

Adiantando nosso ponto de vista, uma posição intermediária parece ser mais razoável

nesse debate. Como veremos, não é verdade que os 25 milhões de indivíduos identificados no

censo de 2000 possam ser caracterizados como “pessoas com deficiência” nos termos da “Lei de

Cotas” (cujos parâmetros são as definições expressas nos Decretos 3.298/99 e 5.296/04). As

empresas, porém, buscam muitas vezes não um trabalhador, mas alguém com uma “deficiência

leve”, que possa, sem maiores “transtornos”, ser contratado para fins de fiscalização da Lei. É

claro que existem exemplos positivos, mas tal comportamento discriminatório ainda é usual,

como comprovam as percentagens das pessoas empregadas pelo tipo de deficiência (com ampla

preferência por aqueles com deficiência auditiva ou física, em detrimento dos cegos e pessoas

com deficiência cognitiva).

Antes da apresentação dos dados, cabem ainda algumas considerações. A necessidade de

identificação das pessoas com deficiência cumpre o papel de balizar as políticas públicas, como a

ação afirmativa da “Lei de Cotas”. Mas sempre é importante não perdermos de vista uma

perspectiva mais ampla: temos que caminhar para eliminação ou não dependência desta Lei.

Nosso objetivo final é que, numa sociedade inclusiva, pessoas possam ser naturalmente

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contratadas por suas competências profissionais, independentemente de eventuais limitações

físicas, sensoriais ou cognitivas.

Paradoxalmente, para atingirmos esse estágio, é preciso, hoje, identificar e caracterizar as

pessoas com deficiência; pois do contrário, ficamos com o discurso positivo da inclusão, mas

desamparados para um debate “técnico” sobre a eficácia de algumas leis ou da justiça ou não de

alguns direitos. Dando um exemplo fora do âmbito do trabalho: como fiscalizar as vagas

reservadas nos estacionamentos sem que se identifique quem são os passageiros ou condutores?

Nesse sentido, nos parecem positivas algumas iniciativas legislativas, como a proposição da

vereadora Mara Gabrilli (PSDB), de São Paulo. O Programa Censo-Inclusão, previsto na Lei

15.096/09, já sancionado pelo prefeito, prevê que a Prefeitura faça periodicamente, a cada quatro

anos, um levantamento sócio-econômico da população com deficiência na cidade de São Paulo,

com o objetivo de levantar informações detalhadas deste segmento98

.

Atualmente, os únicos dados oficiais disponíveis são os do Censo de 2000 (esta tese não

conseguirá utilizar a tempo as informações do Censo de 2010, que certamente tratará da questão

da deficiência e incapacidade funcional). A pesquisa Retratos da Deficiência no Brasil (2003),

realizada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS/FGV), dentro do

Programa Diversidade da Fundação Banco do Brasil, é o estudo mais detalhado sobre os dados

do Censo de 2000. Os resultados da pesquisa podem ser acessados na Internet99

, constituindo-se

assim num importante banco público sobre essa temática.

Algumas premissas que nos parecem corretas estão colocadas no texto que introduz esta

pesquisa. Os seus autores chamam a atenção para duas características que, sem dúvida, marcam a

sociedade brasileira: a desigualdade e a diversidade. De fato, desde o início da nossa história

tivemos elevados níveis de desigualdade, com a concentração de poder e riqueza nas mãos de

poucos, em detrimento de uma massa de excluídos. Ao mesmo tempo, nossa configuração

demográfica é marcada pela miscigenação, pela “mistura” de diferentes povos (índios, africanos e

europeus). A interação destas características da sociedade se expressa, muitas vezes, na

constituição de grupos populacionais historicamente discriminados. Este é o caso dos negros, mas

também das pessoas com deficiência, conforme discutimos no capítulo 1.

98 Fonte: Revista Sentidos – edição de Dezembro de 2009, São Paulo, SP. 99 http://www.fgv.br/CPS/deficiencia_br/index2.htm.

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Diante disso, os autores questionam o que pode ser feito para colocar tais grupos em

condição de igualdade com os demais. Ou ainda, são válidas as políticas que se utilizam da

desigualdade inicial para se obter a equidade? Sim, como vimos, isso significa tratar os desiguais

na medida da sua desigualdade. Para tanto, “a sociedade precisa conhecer em profundidade cada

grupo excluído” (CPS/FGV, 2003, p.10). Esta não é uma tarefa simples, mas é preciso, ao menos,

tentar uma aproximação com a realidade em que estão inseridos os grupos populacionais

excluídos e/ou discriminados, identificando problemas e propondo ações que, em conjunto com a

melhoria das políticas públicas universais, possam reverter esta trajetória de “marginalização”

social.

Mas existem diferenças entre os grupos populacionais excluídos. Enquanto o gênero e a

raça são atributos fixos, a deficiência pode ser adquirida ao longo da vida por qualquer pessoa.

Talvez isso explique porque há resistências maiores para as “cotas raciais” e, desde 1989, são

previstas as cotas no mercado de trabalho para as pessoas com deficiência. Daí a necessidade de

se conhecer este grupo populacional, pois isso permite a avaliação e o aperfeiçoamento desta e de

outras políticas, como o Benefício de Prestação Continuada no âmbito da Assistência Social, a

concessão de gratuidades (no transporte, por exemplo) ou isenções fiscais (até para que tais

direitos não se convertam em privilégios).

Censo de 2000 – critérios da pesquisa e proposta metodológica

Isto posto, para apresentar o mapeamento acerca das 24,5 milhões de pessoas que

declararam algum tipo de deficiência ou incapacidade, é preciso, em primeiro lugar, entender

como foi feita a pesquisa no questionário do Censo Demográfico de 2000, realizado pelo

IBGE100

. Na verdade, para além das “deficiências tradicionais”, optou-se por apurar níveis

distintos de incapacidade da população para andar, ouvir e enxergar. O IBGE, em acordo com a

CORDE – Coordenadoria para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – desenhou seu

questionário com base na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde –

CIF. As legislações, por sua vez, têm como referência a Classificação Estatística Internacional de

Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID-10. Esta opção, de utilização da CIF, é correta

100 O IBGE pesquisou esse tema no seu questionário da amostra, não para o total dos domicílios visitados.

Posteriormente, os resultados foram estatisticamente expandidos.

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145

porque amplia a análise para além do enfoque médico-clínico tradicional, mas precisa ser

esclarecida e utiliza com critério para definição das deficiências “convencionais”, como

discutiremos a seguir. A avaliação da “funcionalidade” e não apenas da deficiência pode ser

claramente observada no questionário oficial do IBGE, que apresentou, na parte relativa à

identificação dos moradores do domicílio, as seguintes perguntas:

Quadro 17 – Questionário da Amostra – IBGE – Censo de 2000

Fonte: Censo Demográfico de 2000. Questionário da Amostra. www.ibge.gov.br

Os tipos de deficiência, conforme disposto no Decreto 5.296/04, que alterou parcialmente

o Decreto 3.298/99 e que balizam a “Lei de Cotas”, dizem respeito a grupos populacionais mais

específicos do que aqueles identificados no Censo de 2000101

, com grande influência de aspectos

101 Os critérios para a caracterização de pessoas com deficiência segundo o Decreto 5.296/04 são os seguintes:

a) Deficiência física: paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia,

hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com

deformidade congênita ou adquirida. b) Deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um

decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz. c)

Deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor

correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção

óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; e

ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores. d) Deficiência mental: funcionamento intelectual

significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais

áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização

dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho. e) Deficiência

múltipla: associação de duas ou mais deficiências.

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subjetivos. A princípio, poder-se-ia associar aos tipos de deficiência “convencionais” (física,

auditiva, visual, mental e múltipla), apenas aquelas pessoas que declararam “1” nas perguntas

4.10 (deficiência mental), 4.11 (incapacidade total para enxergar), 4.12 (incapacidade total para

ouvir) e 4.13 (incapacidade total para caminhar ou subir escadas). Da mesma forma, aqueles que

assinalaram os itens 1, 2, 3 ou 4 da questão 4.14, declaram ter algum tipo de deficiência física

(tetraplegia, paraplegia, hemiplegia ou falta de perna, braço, mão, pé ou dedo polegar).

Na verdade, mesmo os critérios do parágrafo acima não correspondem exatamente à

população amparada pela “Lei de Cotas”. O Decreto 5.296/04 define, por exemplo, “graduações

técnicas” tanto para a visão como para a audição. Eventualmente, pessoas que disseram ter

“grande dificuldade em enxergar, ouvir ou caminhar/subir escadas” poderiam também estar

nessa faixa populacional.

Na pesquisa Retratos da Deficiência no Brasil (2003), desenvolvida pelo Centro de

Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS/FGV), propõe-se uma análise com base em

dois grupos distintos: a) o universo geral de pessoas portadoras de deficiência (PPD´s), que

corresponde aos 14,5% da população – 24,5 milhões de indivíduos – que declararam qualquer

tipo de deficiência ou incapacidade; b) pessoas perceptoras de incapacidade (PPI´s), restringindo

apenas aqueles que declararam ter incapacidade total para andar, ouvir e enxergar, além dos

indivíduos com deficiência mental e física. Este último contingente corresponde a apenas 2,5%

da população em 2000.

Nesse trabalho, para evitar confusões, iremos sempre identificar a qual grupo estamos nos

referindo na apresentação dos dados. Tal proposta metodológica, de divisão num subgrupo para

captar deficiências mais severas, decorre da seguinte constatação: há um “inflacionamento das

deficiências no Censo de 2000, pois ao incorporar no universo dos deficientes as pessoas com

alguma ou grande dificuldade de caminhar, enxergar ou ouvir, o Censo acabou por classificar

grande parte da população idosa como tal, uma vez que essas dificuldades funcionais tendem a

acompanhar o processo natural de envelhecimento”. (Retratos da Deficiência, 2003, p.53).

Isso sem dúvida é correto, mas a proposta da CPS/FGV, por outro lado, também limita ao

extremo a população com deficiência. Além daqueles que se declararam totalmente incapazes

para encaminhar, enxergar ou ouvir – responderam “1” nas questões 4.11, 4.12 e 4.13 – nos

parece apropriado e interessante incluir, como sugerimos acima, os indivíduos que disseram ter

grande dificuldade para realizar tais ações (responderam “2” nas mesmas questões), deixando de

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fora apenas os que afirmaram ter alguma dificuldade (assinalaram “3”). Na apresentação dos

dados, para fins de dimensionamento da população com deficiência apta a usufruir da “Lei de

Cotas”, será usado este critério, além de uma restrição para aqueles que se encontram em idade

ativa (15 a 59 anos) e estratégias para evitar a “dupla-contagem”, pois um mesmo indivíduo pôde

declarar mais de uma deficiência ou incapacidade.

Resultados do Censo 2000 – Brasil – Estimativa da População com Deficiência

Na tabela 3, estão dispostos os contingentes da população total que declararam ter algum

tipo de deficiência ou incapacidade. Esses dados são úteis para termos noção da quantidade de

pessoas em termos absolutos e relativos (ao total da população geral):

Tipo de Deficiência ou Incapacidade Número de pessoas e % da pop. total

"Deficiência mental" 2.844.936 (1,7%)

"Deficiência visual" 16.644.842 (9,8%)

"Deficiência auditiva" 5.735.098 (3,4%)

"Deficiência motora" 7.939.784 (4,7%)

"Deficiência física" 1.416.059 (0,9%)

Pelo menos uma das deficiências ou

incapacidades 24.600.256 (14,5%)

População sem deficiência ou

incapacidade declarada 143.726.946 (84,5%)

População total (1) 169.872.156 (100%)

(1) Há um resíduo de 1% que foi incluído na população total, mas não declarou ter ou não

ter deficiência (ignorados).

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Tabela 3 - População com Deficiência ou Incapacidade - total e % - Brasil - 2000

A categoria “deficiência mental”, correspondente à pergunta 4.10 do questionário do

IBGE (quadro 17), se referindo aqueles que disseram possuir esta deficiência “limitando suas

atividades habituais” (o questionário pode ser respondido pelo familiar). Os grupos identificados

como “deficiência visual”, “deficiência auditiva” e “deficiência motora” (perguntas 4.11, 4.12 e

4.13), na verdade, representam aqueles que afirmaram possuir diferentes níveis – “total, grande

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ou alguma” – de incapacidade para enxergar, ouvir ou caminhar/subir escadas, respectivamente

(mesmo com a utilização de equipamentos ou aparelhos corretivos). Já a “deficiência física”

indica os indivíduos com “paralisia permanente total”, “paralisia permanente das pernas”,

“paralisia permanente de um dos lados do corpo” ou “falta de braço, perna, mão, pé ou dedo

polegar”, nos termos do questionário do IBGE (pergunta 4.15).

Observa-se que, no ano 2000, a população total brasileira, apurada pelo Censo, foi de

quase 170 milhões de pessoas. Desse universo, 24,6 milhões, 14,5%, declararam ter pelo menos

um tipo de deficiência ou incapacidade. Assim, quando se fala que a população com deficiência

no Brasil representa 14,5% do total, é preciso ter em mente que não estamos considerando

somente as “deficiências tradicionais”, mas também incluindo indivíduos que disseram ter algum

grau de incapacidade para determinada ação. Tal constatação “não desmerece” os resultados

obtidos pelo Censo, apenas reforça a idéia de que eles precisam ser qualificados e usados de

maneira transparente.

Por exemplo, quando se discutem leis que concedem benefícios, gratuidades ou reserva de

cotas, não é nos parece correto afirmar que tais direitos dizem respeito aos “24,6 milhões de

brasileiros com deficiência”, uma vez que, para que sejam justos e respeitem a equidade, tais

direitos somente deveriam valer para aqueles com verdadeiras dificuldades funcionais, a partir

das quais se estabelece uma desigualdade com a grande maioria das pessoas. Não parece ser o

caso daqueles que disseram ter apenas “alguma” dificuldade em enxergar, ouvir, ou andar.

Em outras palavras, não se pode concluir que todos aqueles que, de maneira subjetiva,

declararam alguma deficiência ou incapacidade representem exatamente o mesmo universo de

pessoas que fazem jus a “Lei de Cotas”, já que esta se utiliza de critérios técnicos e mais

rigorosos para definir as deficiências. Tal afirmação ganha mais relevância quando os dados são

desagregados e percebe-se que, nas “deficiências visual, auditiva ou motora”, a grande maioria

das pessoas declarou ter apenas “alguma” dificuldade para enxergar, ouvir ou caminhar/subir

escadas.

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Grau de Incapacidade Número de Pessoas %

Totalmente incapaz de enxergar 148.023 0,9

Grande dificuldade permanente de enxergar 2.435.873 14,6

Alguma dificuldade permanente de enxergar 14.060.946 84,5

"Def iciência Visual" 16.644.842 100,0

Totalmente incapaz de ouvir 166.365 2,9

Grande dificuldade permanente de ouvir 883.079 15,4

Alguma dificuldade permanente de ouvir 4.685.655 81,7

"Def iciência Auditiva" 5.735.099 100,0

Totalmente incapaz de caminhar/subir escadas 574.186 7,2

Grande dificuldade de caminhar/subrir escadas 1.772.690 22,3

Alguma dificuldade de caminhar/subir escadas 5.592.908 70,4

"Def iciência Motora" 7.939.784 100,0

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Tabela 4 - Deficiência pelo grau de Incapacidade - Brasil - 2000

Dentre aqueles que disseram ter dificuldades para enxergar ou ouvir, mas de 80% a

avaliaram como “alguma” dificuldade (70,4% no caso da “deficiência motora” para caminhar ou

subir escadas). A partir desta constatação, conforme já foi colocado, o estudo do CPS/FGV

(Retratos da Deficiência, 2003) propõe uma metodologia na qual há a categoria PPI (“pessoas

portadoras de incapacidade”), que exclui do universo de análise indivíduos que declararam

“alguma” ou “grande” dificuldade para enxergar, ouvir ou andar. Por esse critério, conforme já

foi assinalado, teríamos apenas 2,5% da população com deficiências mais estritas. Essa definição

nos parece rigorosa, pois é razoável supor que as pessoas que disseram ter “grande” dificuldade

também façam parte do contingente de pessoas com deficiência, de acordo com as legislações

existentes.

Além dessa questão do nível de incapacidade, outro aspecto que se coloca no intuito de

“qualificar” melhor os dados do Censo se refere à faixa etária desta população, como se observa

na tabela 5:

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Pelo menos uma das deficiências População Total

Faixa etária ou incapacidades

0 a 14 anos 2.161.333 (8,8%) 50.316.181 (29,6%)

15 a 59 anos 17.075.894 (69,4%) 109.629.648 (64,5%)

60 anos ou mais 5.363.029 (21,8%) 9.927.027 (5,8%)

Total 24.600.256 (100,0%) 169.972.856 (100,0%)

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Tabela 5 - População com Deficiência e Total - faixa etária - Brasil - 2000

Enquanto que na população como um todo o percentual de pessoas com 60 anos ou mais é

de 5,8%, dentre aqueles que declararam deficiência ou incapacidade a participação deste grupo é

de 21,8%. A super-representação dos idosos, que naturalmente têm mais dificuldades funcionais,

pode também ser ilustrada pelo fato de que, dentre os 9,9 milhões de pessoas desta faixa etária

(60 anos ou mais), 5,3 milhões, ou 54,0%, declararam ter alguma deficiência ou incapacidade.

Esse mesmo índice para a população infantil (0 a 14 anos) é de apenas 4,3%; e de 15,6% para as

pessoas entre 15 e 59 anos. Diante disso, nos parece claro que ao discutir o acesso ao trabalho

deste contingente é preciso limitá-lo ao grupo de 15 a 59 anos, que podemos considerar como

estando em “idade produtiva”.

Além das questões dos diferentes níveis de incapacidade e da faixa etária, o terceiro

aspecto que deve ser pensado para aproximar os dados do Censo à realidade das pessoas com

deficiência que procuram trabalho diz respeito à dupla-contagem. Uma mesma pessoa pode ter

declarado diferentes deficiências e incapacidades, o que somente poderia ser discernido com a

análise da base primária do Censo. No momento, com as informações que temos disponíveis,

para minimizar os efeitos da dupla-contagem, pode-se supor que todos aqueles que declararam

uma deficiência física (tetraplegia, paraplegia, hemiplegia ou amputados) estão contidos na

categoria mais ampla de “deficiência motora”, especificamente dentre aqueles que afirmaram ter

“total” ou “grande” incapacidade para caminhar e/ou subir escadas.

Em suma, a partir dos dados globais do Censo, propõem-se três alterações ou restrições

para uma estimativa mais realista quanto ao tamanho da população com deficiência com

potencialidade para o trabalho: a) limitar o grupo de pessoas com deficiência para aqueles que

disseram ter “total” ou “grande” dificuldade em enxergar, ouvir ou caminhar/subir escadas

(incluindo também os que disseram ter “deficiência mental”); b) restringir nosso universo às

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pessoas de 15 a 59 anos; c) excluir a “deficiência física”, supondo que ela esteja contida nos que

alegaram “total” ou “grande” dificuldade para caminhar/subir escadas.

Como vimos na tabela 5, a faixa etária entre 15 a 59 anos, na população com deficiência

ou incapacidade, representa praticamente 70,0%. Assim, para fazer nossa estimativa do

contingente de trabalhadores com deficiência, com limitações próximas aos parâmetros da “Lei

de Cotas”, vamos aplicar esse percentual nas categorias “deficiência visual”, “deficiência

auditiva” e “deficiência motora” somente para os que disseram ter “total” ou “grande”

incapacidade. Tal exercício resulta na tabela 6:

Tipo de Deficiência Número de pessoas e percentual relativo

Deficiência mental 1.924.975 (31,5%)

Deficiência visual 1.808.727 (29,6%)

Deficiência auditiva 734.611 (12,0%)

Deficiência motora 1.642.813 (26,9%)

Total 6.111.126 (100,0%)

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Tabela 6 - Estimativa da população com deficiência, em idade produtiva, por tipo de deficiência

Brasil - 2000

Ao invés de 24,5 milhões, na realidade, por essa estimativa, teríamos no Brasil, em 2000,

6,1 milhões de pessoas com deficiência, em “idade produtiva” (15 a 59 anos). Este contingente

representava 3,6% do total da população. Isto significa que os percentuais previstos na “Lei de

Cotas”, que variam entre 2% e 5%, dependendo do porte das empresas, não estão fora da

realidade como alegam setores empresas, mesmo quando restringimos o universo de pessoas com

deficiência aptas para o trabalho, como fizemos. Ou seja, antes de se falar em diminuição do

percentual da Lei, é preciso discutir a fundo as barreiras enfrentadas hoje para que pessoas com

deficiência possam trabalhar, muitas das quais estão na sociedade e nas próprias empresas.

A tabela 6 indica também que, ao contrário dos “dados na íntegra”, quando se restringe o

contingente populacional para indivíduos com limitações severas, muda a distribuição por tipo de

deficiência, prevalecendo a categoria de pessoas com deficiência mental (31,5% do total),

seguidas da deficiência visual (29,6%), motora (26,9%) e auditiva (12,0%). Essa informação é

importante para análise dos dados relativos às pessoas com deficiência que já estão trabalhando,

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pois, como se verá, há uma clara “preferência” das empresas por indivíduos com limitações

motoras e auditivas, em detrimento das pessoas com deficiência mental e visual, que são as mais

representativas pela nossa estimativa.

Resultados do Censo de 2000 – Estado de São Paulo e Campinas – Estimativa da População

com Deficiência

Uma vez definidas as restrições necessárias para que os dados globais do Censo de 2000,

em nossa opinião, se aproximem da real dimensão da população com deficiência em “idade

produtiva”, apresenta-se a seguir as estimativas desta população no Estado de São Paulo e no

município de Campinas. Da mesma forma que foi feito para o Brasil, realizou-se o exercício de

excluir da população com deficiência aqueles que declararam ter apenas “alguma” dificuldade

para enxergar, ouvir ou andar/subir escadas, além de considerar somente a faixa etária entre 15 e

59 anos e a categoria “deficiência motora” englobando as demais limitações físicas102

.

Tipo de Deficiência Número de pessoas e percentual relativo

Deficiência mental 383.120 (36,2%)

Deficiência visual 260.845 (24,7%)

Deficiência auditiva 120.229 (11,4%)

Deficiência motora 292.751 (27,7%)

Total 1.056.945 (100,0%)

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Tabela 7 - Estimativa da população com deficiência, em idade produtiva, por tipo de deficiência

Estado de São Paulo - 2000

Como a população do Estado de São Paulo, em 2000, era de aproximadamente 37 de

milhões, a estimativa da população com deficiência em “idade produtiva” representa 2,9% deste

total (pouco mais de 1 milhão de pessoas). Assim como ocorre no Brasil, predomina a deficiência

102 Estamos cientes de que os micro-dados do Censo de 2000 poderiam fornecer informações mais precisas sobre a

realidade estadual, municipal e mesmo para o agregado nacional. Mas, como o objetivo aqui é somente procurar

dimensionar o tamanho da população com deficiência em idade produtiva, para depois compararmos com o contingente efetivamente empregado, optou-se por realizar apenas essas estimativas, no aguardo dos resultados do

Censo de 2010 (até em função da defasagem de dez anos do Censo de 2000).

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mental ou cognitiva, que corresponde a 36,2% daqueles com deficiência. Em seguida aparecem

as deficiências motoras, visual e auditiva, nessa ordem.

Em um estudo anterior103

, tivemos a oportunidade de detalhar os dados relativos à

população com deficiência e incapacidade no Estado de São Paulo104

. Na ocasião, porém, não

realizamos esse filtro no intuito de considerar apenas aqueles com “idade produtiva” e

deficiências mais severas do ponto de vista funcional. Mesmo assim, algumas conclusões foram

sugestivas no sentido de apontar que as dificuldades da população com deficiência e

incapacidades estão mais no acesso à educação do que ao trabalho. Em outras palavras, as

discrepâncias localizaram-se mais nos indicadores educacionais, uma vez que o (limitado)

universo das pessoas com deficiência que estava trabalhando encontrava condições parecidas

com aquelas das demais pessoas.

Para que se tenha uma idéia, avaliando apenas indivíduos com mais de 10 anos de idade,

tínhamos uma taxa de analfabetismo de 7,5% para aqueles que não disseram ter deficiência ou

limitações funcionais. Essa taxa chega a 18,1% para pessoas com deficiência ou incapacidade. As

distorções são ainda mais evidentes quando se utiliza o indicador anos de estudo para os maiores

de quinze anos, pois enquanto apenas 4,7% das pessoas sem deficiência têm um nível de

instrução muito baixo – menos de um ano ou sem qualquer tipo de formação – esse índice é de

18,3% para os portadores de deficiência ou incapacidade.

Os dados indicam, assim, que existe uma diferença significativa na formação escolar de

jovens com ou sem deficiência, fruto de um processo histórico de exclusão e segregação escolar

no qual crianças com deficiência estavam fora do sistema regular de ensino (ficando apenas em

instituições ou mesmo reclusas). Nos últimos dez anos houve um avanço da chamada inclusão

escolar, o que pode gerar resultados não tão discrepantes no Censo de 2010.

Os indicadores referentes ao mercado de trabalho, por sua vez, mostram diferenças um

pouco menos acentuadas entre as populações sem e com deficiência/incapacidade. No que tange

aos rendimentos recebidos, por exemplo, 15,3% das pessoas com deficiência ou incapacidade,

com dez anos ou mais de idade, declararam possuir rendimentos até 1 (um) salário mínimo. Este

mesmo percentual para o grupo de pessoas sem deficiência ou incapacidade foi de 10,7%.

103 Garcia (2006). 104 Tal estudo somente foi possível através de uma pesquisa mais detalhada no site do IBGE onde encontramos informações desagregadas e integradas com outras variáveis sobre a população com deficiência/incapacidade

somente no Estado de São Paulo, mas não para o Brasil e outros municípios

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Considerando as classes de rendimento mais altas, as diferenças entre os dois grupos diminuem.

Para aqueles com renda maior que 10 (dez) salários mínimos, os percentuais na população em

geral e no grupo com deficiência e/ou incapacidade são de 13,2% e 12,4%, respectivamente.

Portanto, a principal idéia sugerida por este estudo, conforme já foi apontado, diz respeito

à percepção de que as maiores diferenças entre pessoas sem e com deficiência/incapacidade se

localizam no acesso à educação, não no trabalho. Ou seja, aquelas pessoas com deficiência e/ou

incapacidade que conseguem trabalhar encontram condições razoavelmente parecidas com as

demais pessoas. Evidentemente, é preciso aprofundar os estudos para confirmar ou não essa

hipótese105

.

Para o município de Campinas não temos disponível este nível de desagregação dos

dados, de maneira que apresentamos a seguir apenas a estimativa da população com deficiência,

aplicando novamente os critérios restritivos relacionados à incapacidade, faixa-etária e dupla-

contagem. O percentual de pessoas estimado e a distribuição por tipo de deficiência são bem

próximos daqueles observados no Estado de São Paulo como um todo.

Tipo de Deficiência Número de pessoas e percentual relativo

Deficiência mental 10.525 (36,6%)

Deficiência visual 6.714 (23,4%)

Deficiência auditiva 3.304 (11,5%)

Deficiência motora 8.180 (28,5%)

Total 28.722 (100,0%)

Elaboração própria. Fonte: IBGE, Censo de 2000.

Munícipio de Campinas - 2000

Tabela 8 - Estimativa da população com deficiência, em idade produtiva, por tipo de deficiência

Em proporções quase que idênticas, repete-se a distribuição dos indivíduos pelo tipo de

deficiência e, dada a população de 936.396 pessoas apurada pelo Censo de 2000 no município de

Campinas, teríamos um contingente de pessoas com deficiência equivalente a 3,0% do total

(aproximadamente 30 mil pessoas).

105 Uma possibilidade a ser trabalhada, talvez com os dados do Censo de 2010, seja isolar os níveis de escolaridades das populações com e sem deficiência. Se não permanecerem discrepâncias no acesso ao trabalho, seria comprovado

o maior peso da questão educacional nesse processo, devendo-se repensar a política de cotas.

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Em suma, é preciso reafirmar que tais estimativas são importantes apenas para uma

discussão mais “técnica” de algumas políticas públicas específicas, como é o caso da ação

afirmativa representada pela “Lei de Cotas”. Na seqüência, quando forem apresentados os dados

obtidos sobre a contratação e a inserção da população com deficiência no mercado de trabalho

formal, nos parece mais realista ou factível compará-los com contingentes de aproximadamente 6

milhões de pessoas no Brasil, 1 milhão no Estado de São Paulo e quase 30 mil no município de

Campinas.

Antes disso, para finalizar esse item, apresenta-se a tabela 9, que considera o total da

população com deficiência e incapacidade pelos critérios mais amplos do Censo de 2000. Os

dados apontam a participação relativa desta população nas Unidades da Federação, podendo ser

claramente identificado um componente regional relacionado à presença maior ou menor de

pessoas que declararam ter deficiência ou algum grau de incapacidade.

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Estados Porcentagem

São Paulo 11,35

Roraima 12,50

Amapá 13,28

Distrito Federal 13,44

Paraná 13,57

Mato Grosso 13,63

Mato Grosso do Sul 13,72

Rondônia 13,78

Acre 14,13

Santa Catarina 14,21

Amazonas 14,26

Goiás 14,31

Espírito Santo 14,74

Rio de Janeiro 14,81

Minas Gerais 14,90

Rio Grande do Sul 15,07

Pará 15,26

Bahia 15,64

Tocantins 15,67

Sergipe 16,01

Maranhão 16,14

Alagoas 16,78

Ceará 17,34

Pernambuco 17,40

Piauí 17,63

Rio Grande do Norte 17,64

Paraíba 18,76

Fonte: CPS/IBRE/FGV a partir dos microdados Censo 2000/IBGE.

Tabela 9 - % Pessoas com Deficiência e/ou Incapacidade por UF

Nesse ranking, dos dez Estados que apresentam os maiores percentuais de pessoas com

deficiência ou incapacidade (sem nenhum “filtro”), nove pertencem à região Nordeste (a exceção

é Tocantins). Tal constatação parece indicar relação entre limitações físicas, sensoriais ou

cognitivas com o nível de pobreza e precariedade dos serviços públicos que, infelizmente, ainda

permanecem elevados na região Nordeste. É verdade que na outra ponta da tabela estão Estados

como Roraima e Amapá, nos quais se imagina que também existam acentuados problemas de

infra-estrutura. Mas o fato de São Paulo apresentar o menor índice de pessoas com deficiência

e/ou incapacidade reforça a idéia de que há alguma relação entre essas condições e a capacidade

do Estado em termos de recursos de saúde e reabilitação, dentre outros106

.

106 Esse aspecto também pode ser aprofundado em estudos posteriores.

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Ao estimar a população com deficiência, como fizemos nesse item, não se pretendeu, e

nem seria possível, definir o número exato que corresponde a este contingente populacional nos

dias de hoje. Buscou-se apenas fazer aproximações para que se tenham parâmetros relativamente

seguros na discussão sobre a efetividade da “Lei de Cotas”. Poder-se-ia simplesmente utilizar os

dados gerais do Censo, mas optou-se por fazer restrições quanto à severidade da incapacidade e à

idade das pessoas. Parece-nos mais próximo da realidade afirmar que Campinas tem cerca de 30

mil pessoas que fazem jus a Lei de Cotas do que dizer que são mais do que 100 mil pessoas,

conforme o total de deficiências e incapacidades. Tal afirmação se relaciona com a própria

vivência que temos nas atividades e instâncias de participação das pessoas com deficiência no

município, como conselhos, fóruns e outros eventos.

Deve-se reafirmar que esse número – cerca de 30 mil pessoas – é importante apenas nas

discussões e avaliações de programas ou políticas que envolvem diretamente as pessoas com

deficiência, como a “Lei de Cotas”, o Benefício de Prestação Continuada ou outros direitos

específicos (vagas em estacionamento, gratuidades, etc.). Para questões gerais, como o acesso à

escola ou a construção de espaços acessíveis, em última instância, não importa o número de

pessoas com deficiência, pois esses são direitos universais. É preciso trabalhar simultaneamente

com essas duas perspectivas para avançar na conquista dos direitos das pessoas com deficiência

enquanto cidadãos, tendo oportunidades iguais às demais pessoas.

Uma vez realizado apresentação dos dados do Censo de 2000 – estimando-se a população

com deficiência a partir daí – pretende-se agora reunir as informações disponíveis sobre o acesso

desta população ao mercado de trabalho formal.

3.4 – Dados recentes da inclusão formal das pessoas com deficiência no

mercado de trabalho

As informações aqui apresentadas advêm de duas fontes distintas: a) os números apurados

pelas Superintendências e Gerências Regionais do Trabalho, que atuam na fiscalização quanto ao

cumprimento da “Lei de Cotas”, entre 2000 e 2009; b) os dados oficiais disponíveis na Relação

Anual de Informações Sociais (RAIS), divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego

(MTE), a partir de 2007. Os valores encontrados nessas bases de informação não são coincidentes

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porque os primeiros indicam o volume ou “fluxo” de contratações, ano a ano, das pessoas com

deficiência nas empresas com cem ou mais empregados (obrigadas a cumprir a “Lei de Cotas”).

A RAIS, por sua vez, nos fornece uma radiografia do número absoluto (ou “estoque”) de

empregos ocupados por pessoas com deficiência no mercado formal num determinado período

(último dia do ano), no conjunto total das empresas (independentemente do seu porte).

Mesmo que existam dificuldades para obter tais dados, além de certa imprecisão sobre os

critérios utilizados – o que será discutido a seguir – em nossa opinião, não restam dúvidas quanto

a, pelo menos, dois aspectos fundamentais: a) a baixa participação das pessoas com deficiência

no mercado de trabalho formal; e b) a “preferência” por determinados tipos de deficiência

(auditiva e física) em detrimento de outras (visual e mental).

Dados das Superintendências e Gerências Regionais de Trabalho

Estes órgãos públicos são representações ou instâncias regionalizadas do Ministério do

Trabalho e Emprego (MTE). Boa parte dos avanços na contratação das pessoas com deficiência

ocorreu a partir do trabalho de fiscalização e, mais do que isso, da “articulação política”

promovida por alguns órgãos regionais. Este movimento envolveu diferentes “atores sociais” que

se relacionam com o processo de inserção formal das pessoas com deficiência no mercado de

trabalho, desde outros entes públicos – como o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social),

Secretarias Municipais e o Ministério Público do Trabalho – passando pelas entidades,

associações, ONGs e mesmo as empresas privadas. Embora seja louvável e necessário, tal

esforço, como veremos, se mostra insuficiente para inclusão laboral efetiva da maior parte da

população com deficiência.

Em relação aos dados referentes ao Brasil e aos estados, o trabalho de Clemente (2008)

foi pioneiro em buscar as informações disponíveis ao longo da década atual, antes mesmo do

MTE passar a divulgar as informações da RAIS, o que só ocorre a partir de 2007. Até então, não

existia um “número oficial de pessoas com deficiência trabalhando”, sendo feitas apurações das

contratações com base nos números regionais.

Na verdade, mesmo os dados da RAIS, embora “oficiais”, deixam dúvidas porque não há

clareza quanto aos critérios utilizados para definir “pessoas com deficiência” nesta base. Sabe-se

que é uma declaração das próprias empresas, mas abalizada nos parâmetros dos Decretos

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Federais 3.298/99 e 5.296/04 ou na “auto-declaração”? Para as empresas com cem ou mais

funcionários, obrigadas a cumprir a “Lei de Cotas”, certamente há o amparo da base legal para

definição de quem é pessoa com deficiência, mas e aquelas de menor porte107

?

São questionamentos que revelam as dificuldades daqueles interessados em se aprofundar

sobre um tema que, embora de grande importância, carece de informações mais precisas. Sobre

este aspecto, Clemente (2008) relata uma série de telefonemas, contatos via e-mail e solicitações

oficiais ao MTE que foram respondidos de forma precária. Diante disso, ele afirma que “o

Ministério do Trabalho blinda informações às quais não pretende promover o acesso. São caixas

pretas à semelhança daquelas que existem em aviões. Informações que deveriam estar

devidamente organizadas e disponibilizadas para a consulta pública, como determina a lei”

(Clemente, 2008, p. 71). Não sabemos se há uma intenção deliberada nesse sentido – acreditamos

que não – ou “apenas” problemas de organização no Ministério, por este ser um tema

relativamente novo. De qualquer forma, é preciso avançar nessa seara para ampliar o nível de

conhecimento público sobre desta questão108

.

Feitas estas considerações, apresenta-se abaixo as tabulações realizadas por Clemente

(2008) sobre os dados nacionais e estaduais, para, na seqüência, tratar das informações obtidas

diretamente junto à Gerência Regional do Trabalho e Emprego de Campinas (GRTE/Campinas).

Em ambos os casos, os dados se referem ao volume de contratações, ano a ano, de pessoas com

deficiência. Neste caso, como os números decorrem da fiscalização das Superintendências ou

Gerências Regionais, temos certeza de que se tratam de fato de pessoas com deficiência de

acordo com os critérios dos Decretos Federais 3.298/99 e 5.296/04.

107 Solicitamos, sem sucesso até o momento, esta informação à Coordenadoria de Estatística do MTE. Até onde

conseguimos apurar, o preenchimento do item “deficiência”, assim como os demais, é feito com uma resposta

simples – “sim” ou “não” – nos campos que identificam as características pessoais dos trabalhadores com vínculo

empregatício formal. 108 O MTE possui uma rica base de dados on-line, que permite o acesso de usuários cadastrados e a confecção de

tabelas sobre os mais variados temas do mundo do trabalho no Brasil (PDET – Programa de Disseminação das

Estatísticas do Trabalho). Porém, pelo menos até o momento de conclusão desta tese, conforme nos foi informado

pela própria Coordenadoria de Estatística do Ministério, o filtro “pessoa com deficiência” ainda não está disponível

para pesquisa na base on-line, exigindo a solicitação direta das tabelas, como foi feito nesse trabalho. Poder-se-ia

acrescentar a variável “deficiência” nas demais características individuais daqueles que possuem vínculo formal,

como sexo, idade, cor, ou escolaridade, pois, pelo menos a partir de 2007, ela faz parte do questionário respondido pelas empresas.

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2000-2004 2005 2006 2007 Total

Nordeste 9.782 1.677 3.244 4.704 19.407

Norte 2.634 409 1.149 2.036 6.228

Centro-Oeste 5.203 612 1.104 1.342 8.261

Sudeste (1) 18.218 9.310 12.548 12.132 52.208

Sul 9.405 778 1.933 2.100 14.216

São Paulo 14.973 8.655 9.684 9.235 42.547

Brasil 45.242 12.786 19.978 22.314 100.320

Fonte: Clemente (2008), pg. 66. O autor cita como fonte o Programa Brasil, Gênero e Raça; e

as Secretarias de Relações de Trabalho e Inspeção do Trabalho do MTE.

(1) Incluindo o Estado de São Paulo.

Brasil, Grandes Regiões e São Paulo - 2000-2007

Tabela 10 - Contratações de Pessoas com Deficiência

Observa-se que, entre 2000 e 2007, os registros do MTE, a partir da fiscalização das

Superintendências e Gerências Regionais do Trabalho, apontam para geração total de 100.320

vagas no Brasil para pessoas com deficiência. Esse número precisa, porém, ser mais bem

qualificado. A lei determina, como vimos, que quando uma pessoa reabilitada ou com deficiência

é demitida, outra em condição semelhante deve ser contratada. Assim, a contratação registrada

em determinado momento não significa, necessariamente, que uma nova pessoa com deficiência

foi empregada. Como observa Clemente (2008), “os registros do Ministério do Trabalho partem

do princípio que a pessoa com deficiência incluída num determinado ano (entre 2000 e 2006, por

exemplo), continua na empresa no ano seguinte ou nos subseqüentes” (Clemente, 2008, p. 69).

Como, na prática, isso não ocorre em todos os casos, deve ficar claro que os números

apresentados indicam apenas o volume das contratações ano a ano (não o “estoque” de pessoas

com deficiência efetivamente trabalhando).

Os dados da tabela 10, mesmo com essas ponderações, indicam que ao longo da última

década houve uma tendência de leve crescimento na contratação de pessoas com deficiência, em

todas as regiões do país, com exceção do Sudeste e do Estado de São Paulo, onde já se parte de

um patamar relativamente alto de pessoas com deficiência trabalhando.

Na média do período 2000-2004, no Brasil, houve o registro de 9.048 contratações,

número que vai subindo para 12.786 em 2005, 19.978 em 2006 e, finalmente, 22.314 em 2007.

Esse processo parece estar concentrado em algumas regiões do país. O Estado de São Paulo,

mesmo com a pequena queda no número de contratações entre 2006 e 2007, foi responsável por

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42,5% do total das vagas geradas no país no período como um todo (2000 a 2007). Ademais, São

Paulo responde pela grande maioria – 81,6% – das vagas preenchidas no Sudeste.

No interior de cada região, alguns estados também se destacam, como o Ceará, no

Nordeste, responsável por 45,2% das contratações, e o Rio Grande do Sul, com 85,5% das vagas

geradas na região Sul do país. Não por coincidência, estes estados possuem Superintendências

Regionais do Trabalho que são reconhecidamente ativas no movimento de inserção das pessoas

com deficiência no mercado de trabalho, seja na fiscalização ou por meio de atividades de

sensibilização junto aos empresários, conforme colocamos109

.

Clemente (2008) traça paralelos entre este volume de contratações e o total da população

com deficiência pelos critérios do IBGE. Nesse particular, discordamos desta opção que

considera pessoas com deficiência todos aqueles que declararam limitações ou incapacidades,

como discutimos no item anterior110

. Além disso, faz mais sentido comparar o montante de

pessoas com deficiência que está trabalhando com o total estimado desta população utilizando-se

dos dados da RAIS, pois estes revelam o “estoque” de pessoas empregadas, não o “fluxo” de

contratações (o que, no agregado, pode gerar dupla-contagem).

Uma abordagem que nos parece mais interessante e apropriada, com os dados da

fiscalização das Superintendências e Gerências Regionais, é comparar, como faz Clemente

(2008), o número de contratações acumulado entre 2000 e 2007 não com a população estimada,

mas com as vagas potenciais existentes. Estas podem ser calculadas com base na RAIS, que

permite o “filtro” pelo tamanho ou porte das empresas. Dessa forma, considera-se apenas o

universo das empresas ou órgãos públicos com cem ou mais empregados, aplicando-se os

respectivos percentuais previstos na “Lei de Cotas”: 2% para empresas de 100 a 200

funcionários, 3% de 201 a 500, 4% de 100 a 1.000 e 5% para aquelas com 1.001 ou mais

empregados (quadro 13).

109 Essa informação decorre do contato pessoal do autor com servidores públicos que atuam nessa área. 110 Clemente (2008) realiza apenas o recorte por faixa etária, afirmando que, no ano de 2000, teríamos 15,2 milhões

de pessoas com deficiência entre 15 e 59 anos.

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Resultados fiscalização MTE Vagas legais existentes %

Nordeste 19.407 156.027 12,4

Norte 6.228 45.466 13,7

Centro-Oeste 8.261 66.723 12,4

Sudeste (1) 52.208 371.581 14,1

Sul 14.216 112.529 12,6

São Paulo 42.547 213.003 20,0

Brasil 100.320 752.326 13,3

(1) Incluindo o Estado de São Paulo. Elaboração própria. Fonte: Clemente 2008, pg. 67.

Tabela 11 - Registros de contratações e vagas potenciais

Brasil. Grandes Regiões e São Paulo

No Brasil, em 2007, havia cerca de 750.000 vagas disponíveis para contratação de pessoas

com deficiência (RAIS, 2006), caso todas as empresas com cem ou mais funcionários

cumprissem a cota. Deste total, apenas 13,3% teriam sido preenchidas (100.320 contratações

acumuladas no período). No Estado de São Paulo, esse índice chegaria a 20,0%, situando-se entre

12% e 14% nas demais regiões do país.

Além da baixa efetividade da Lei, já que foram geradas apenas pouco mais de 100 mil

vagas, fica evidente a insuficiência deste instrumento de ação afirmativa, pois mesmo se as cotas

fossem cumpridas na íntegra, gerando 752.326 oportunidades de trabalho, milhões de pessoas

com deficiência, em idade produtiva, ainda ficariam fora do mercado de trabalho formal, pois

nossa estimativa é de 6,1 milhões de pessoas nesta condição no Brasil (tabela 6).

Os números relativos à região de Campinas foram fornecidos a partir do contato direto

com a Gerência Regional do Trabalho e Emprego de Campinas (GRTE/Campinas111

).

Primeiramente, deve-se dizer que esta Gerência Regional vem realizando, há alguns anos, um

trabalho exemplar no sentido de, para além da fiscalização, articular os diferentes “atores sociais”

envolvidos com o processo de inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho,

conforme já destacamos. Sem abdicar do seu papel fiscalizatório, os órgãos públicos atuam em

parceria com o movimento das pessoas com deficiência junto aos setores empresariais112

.

111 Nesse particular, agradecemos enormemente a servidora Guirlanda M. C. Benevides, coordenadora do Núcleo de

Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Combate à Discriminação, da Gerência Regional do Trabalho e

Emprego em Campinas, não só por ter nos fornecido os dados como também pela convivência em torno desta

temática nos últimos anos. 112

Dentre outras ações, são desenvolvidos cursos de “sensibilizando”, desfazendo mitos e chamando atenção quanto

à exigência legal, mas também quanto aos benefícios da contratação de pessoas com deficiência, no espírito da

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Da mesma forma que outras gerências regionais, a GRTE/Campinas tem uma atuação que

envolve vários municípios a partir de uma cidade-sede. Nesse sentido, os dados que nos foram

fornecidos, resultados da ação fiscal e do contato direto com as empresas da região, se referem a

um conjunto de 34 cidades: Americana, Amparo, Araras, Aguaí, Aguas da Prata, Aguas de

Lindóia, Arthur Nogueira, Campinas, Conchal, Cosmópolis, Engenheiro Coelho, Estiva Gerbi,

Espírito Santo do Pinhal, Holambra, Hortolândia, Indaiatuba, Itapira, Jaguariúna, Lindóia, Mogi

Guaçu, Mogi Mirim, Monte Alegre do Sul, Nova Odessa, Paulínia, Pedreira, Santa Barbára

d´Oeste, Santo Antonio de Posse, Santo Antonio do Jardim, São João da Boa Vista, Serra Negra,

Socorro, Sumaré, Valinhos e Vargem Grande do Sul.

A tabela 12 apresenta o número de contratações, ano a ano, de pessoas com deficiência no

conjunto desses municípios, pelo tipo de deficiência.

2004-2005 2006 2007 2008 2009 Total

Física 498 472 556 477 514 2.517 (39,6%)

Auditiva 433 561 617 280 71 1.962 (30,9%)

Intelectual 154 101 98 64 261 678 (10,7%)

Visual 56 47 53 26 37 219 (3,4%)

Múltipla 3 29 0 2 19 53 (0,8%)

Reabilitado 211 200 31 353 134 929 (14,6%)

Total 1.355 1.410 1.355 1.202 1.036 6.538 (100,0%)

Fonte: GRTE-CAMPINAS.

Vagas de trabalho geradas - Por tipo de deficiência - Total

Tabela 12 - Inserção de Pessoas com Deficiência na região de Campinas

Embora haja uma queda nas vagas geradas: de 1.410 em 2006 para 1.035 em 2009, o dado

que nos parece mais relevante é a comparação com as vagas potenciais existentes na região de

Campinas. As informações da GRTE/Campinas indicam que, na região, teríamos 731 empresas

obrigadas a cumprir a “Lei de Cotas”. Se isso ocorresse na íntegra, teríamos 11.910 vagas

ocupadas por pessoas com deficiência. Entre 2004 e 2007, foram geradas 6.538 vagas na região

de abrangência da GRTE/Campinas, isto é, há um “índice de efetividade” da Lei que é de 54,8%,

diversidade e da valorização das diferenças humanas. É claro que nem sempre se trata de um “relacionamento amigável”, daí a importância de instrumentos punitivos, como as multas, que podem ser aplicadas em determinados

casos.

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percentual muito superior aqueles observados para o Brasil (13,3%) e mesmo no Estado de São

Paulo113

(20,0%).

Entretanto, a mesma observação que fizemos para o Brasil vale para o município de

Campinas: a “Lei de Cotas” é insuficiente para garantir o acesso ao trabalho das pessoas com

deficiência. A população do conjunto das cidades fiscalizadas pela GRTE/Campinas é de cerca

de 3,2 milhões de pessoas. Se estendermos o percentual estimado em Campinas para a população

com deficiência entre 15 e 59 anos (3,0%), ter-se-ia um contingente de 96 mil pessoas nesse

aglomerado de 34 cidades, sendo que o máximo de vagas potenciais garantido pela legislação não

chega a 12 mil.

Os dados da tabela 12 revelam um padrão de distribuição em termos do tipo de

deficiência nas vagas que foram geradas na região de Campinas. As pessoas com deficiência

física respondem por quase 40% das contratações, seguidas pelos deficientes auditivos (30,9%).

Os “reabilitados” – pessoas que passaram por treinamento, em geral após acidente de trabalho –

correspondem a quase 15% do volume de contratações. Como conseqüência, há uma participação

muito restrita das pessoas com limitações visuais ou cognitivas nesse processo.

Até aqui, as informações reunidas por Clemente (2008) e os dados cedidos pela

GRTE/Campinas – ambos provenientes do trabalho de fiscalização quanto ao cumprimento da

“Lei de Cotas” – mostram que o volume de contratações de pessoas com deficiência é ainda

muito pequeno, evidenciando a baixa efetividade da Lei. Além disso, ficou claro que as vagas

potencialmente existentes para absorver a população com deficiência, mesmo no limite máximo

da “Lei de Cotas”, ainda seriam insuficientes para a totalidade deste contingente populacional. Os

dados da RAIS, apresentados a seguir, complementam e ajudam no entendimento desta questão.

Dados da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS

As tabulações da RAIS a serem utilizadas, foram fornecidas através de contato direto, via

correio eletrônico, com servidos públicos do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em

Brasília114

. Embora as solicitações tenham sido (parcialmente) atendidas, vale reforçar que para

113 Esse número pode ser ainda maior porque das 731 empresas que compõem a área de abrangência da

GRTE/Campinas, cerca de 30% ainda não foram fiscalizadas. 114 Em especial, agradecemos a servidora Rosângela Farias, da Coordenadoria Geral de Estatística do Trabalho, do

MTE.

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ampliar o acesso e o conhecimento público sobre a inclusão formal de pessoas com deficiência no

trabalho, o MTE poderia incorporar este tema a sua base de dados on-line, dentro do Programa de

Disseminação de Estatísticas do Trabalho (PDET). Adicionalmente, poderiam ser explicitados os

critérios utilizados pelas empresas quando estas declaram que seus empregados têm alguma

deficiência, principalmente naqueles de menor porte, que não são obrigados a cumprir a “Lei de

Cotas”.

Antes da discussão dos dados da RAIS, é necessário também esclarecer que os números

agregados correspondem ao total de empregos formais ou vínculos empregatícios num

determinado momento, não exatamente ao número de trabalhadores ou pessoas empregadas. Isso

ocorre porque um mesmo indivíduo pode ter mais de um vínculo formal. Tal situação não é

predominante ou mesmo comum para o conjunto dos trabalhadores, e provavelmente menos

ainda para aqueles que possuem uma deficiência (com mais dificuldades para ocupar dois

empregos). Mas, de qualquer forma, é preciso ter claro que os dados se referem ao total de

empregos ou postos de trabalho ocupados.

Dito isso, na tabela 13 apresenta-se, para o ano de 2007, o número de empregos ocupados

por pessoas com deficiência apurado pela RAIS, comparando-se com o número total de vínculos

formais.

Vínculos formais Vínculos formais

Pessoas com Deficiência Total de Trabalhadores Participação (%) PcD

Nordeste 60.110 6.567.837 0,92

Norte 11.310 1.954.641 0,58

Centro-Oeste 48.149 3.049.865 1,58

Sudeste 168.305 19.532.512 0,86

Sul 60.944 6.502.575 0,94

São Paulo 105.371 11.078.940 0,95

Brasil 348.818 37.607.430 0,93

Fonte: RAIS 2007. Coordenadoria Geral de Estatística do Trabalho (CGET) - MTE.

Tabela 13 - Total de Empregos - Brasil, Grandes Regiões e São Paulo - 2007

Em 31/12/2007, foram registrados, a partir dos dados declarados na RAIS pelos

estabelecimentos, empresas e órgãos, tanto públicos como privados, 37,6 milhões de postos do

trabalho formais no país, dos quais menos do que 1% (348.818) ocupados por pessoas com algum

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tipo de deficiência física, sensorial e/ou cognitiva. Em todas as regiões do país, a participação

desse contingente de pessoas é ínfima, variando entre 0,5% e 1,5% do total de vínculos.

Os números da RAIS mostram também uma distribuição do emprego das pessoas com

deficiência nas Grandes Regiões semelhante àquela observada para o conjunto dos trabalhadores.

Não parece haver, assim, concentração de empregados com deficiência em determinados Estados

ou regiões. O Estado de São Paulo, por exemplo, responde por 29,5% do total dos empregos

formais e 30,2% dos postos de trabalho ocupados por pessoas deficiência (105.371 de 348.818).

Ou seja, parece haver uma distribuição proporcional dos trabalhadores com deficiência em

relação à distribuição dos empregos formais no Brasil.

Outro aspecto importante da inclusão formal é a remuneração aferida pelo trabalhador. Os

dados fornecidos pela Coordenadoria de Estatística do MTE indicam que a remuneração média

do contingente de trabalhadores com deficiência, em 2007, foi de R$ 1.398,66. Este valor é

próximo, mas ligeiramente superior, ao observado para o conjunto de empregados formais (R$

1.355,89).

Essa informação reforçar a idéia, sugerida pelos dados relativos ao Estado de São Paulo

(Garcia, 2006), de que o maior problema reside no acesso restrito ao trabalho. Ou seja, aquelas

pessoas que conseguem ingressar no mercado de trabalho, pelo menos em termos de rendimento

médio, parecem usufruir de condições semelhantes aos demais.

Qual o perfil social das pessoas com deficiência que estão trabalhando? As informações

que nos foram repassadas permitem fazer um recorte por sexo, escolaridade e tipo de deficiência.

A tabela 14 resume esses dados:

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Sexo N. % N. %

Homens 218.922 62,8% 22.246.439 59,2%

Mulheres 129.896 37,2% 15.360.991 40,8%

Total 348.818 100,0% 37.607.430 100,0%

Escolaridade

Analfabetos 3.923 1,1% 247.968 0,7%

Ensino Fundamental incompleto 79.843 22,9% 7.285.845 19,4%

Ensino Fundamental completo 52.540 15,1% 5.626.990 15,0%

Ensino Médio incompleto 27.889 8,0% 3.182.876 8,5%

Ensino Médio completo 120.193 34,5% 13.851.630 36,8%

Ensino Superior incompleto 12.754 3,7% 1.579.678 4,2%

Ensino Superior completo 51.676 14,8% 5.832.544 15,5%

Total 348.818 100,0% 37.607.430 100,0%

Tipo de Deficiência

Deficiência Física 175.377 50,3% * *

Deficiência Auditiva 98.236 28,2% * *

Deficiência Visual 10.275 2,9% * *

Deficiência Mental 8.407 2,4% * *

Deficiência Múltipla 5.839 1,7% * *

Reabilitado 48.907 14,0% * *

Total 348.818 100,0% * *

Elaboração própria. Fonte: Coordenadoria Geral de Estatística do Trabalho (CGET) - MTE.

Tabela 14 - Perfil Social dos Trabalhadores com Deficiência no Mercado Formal

Brasil - RAIS 2007

Total - Pessoas com Deficiência Total - Empregos formais

Em termos do sexo e da escolaridade, não existem grandes disparidades entre os

empregos ocupados por trabalhadores com deficiência e o conjunto dos vínculos formais. É

verdade que há uma participação relativamente maior dos homens com deficiência (62,8%), mas

ela não é tão significativa (59,2% no total). Da mesma forma, embora a escolaridade dos

trabalhadores com deficiência seja um pouco pior – pois eles estão proporcionalmente mais

concentrados nos analfabetos e naqueles com ensino fundamental incompleto, além de estarem

representados em proporções um pouco menores naqueles com o ensino superior incompleto ou

completo – a diferença não é marcante, sendo menor do que costumeiramente se imagina.

Em suma, aqueles que possuem deficiência e conseguem ingressar no mercado de

trabalho formal apresentam, assim como na remuneração média, um perfil social equivalente ao

dos demais trabalhadores, também em termos do sexo e escolaridade.

É claro que seria preciso uma investigação mais detalhada, mas esses dados da RAIS de

2007 contrariam, pelo menos em parte, conclusões do relatório da OIT de 2007 sobre o trabalho

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168

de pessoas com deficiência, principalmente no que diz respeito à baixa remuneração desse

segmento quando ele consegue trabalho (o problema é que estes são a minoria dentre as pessoas

com deficiência).

Existem discrepâncias mais acentuadas quando se considera, dentro do contingente das

pessoas com deficiência, os diferentes tipos de limitação. Há uma clara predominância daqueles

com deficiência física e auditiva – que representam, respectivamente, 50,3% e 28,2% do total dos

empregos formais ocupados por pessoas com deficiência. Chama atenção a participação

relativamente alta dos reabilitados – 14,0% – e a baixíssima presença de indivíduos com

limitações visuais, mentais ou múltiplas. Tais deficiências parecem continuar provocando

inseguranças nos empregadores, que acabam por preferir pessoas cujas limitações interferem

menos na rotina e no próprio ambiente de trabalho115

. Esse, porém, é um comportamento cômodo

e discriminatório, que precisa ser alterado.

Ainda fazendo o recorte pelo tipo de deficiência, fica evidente também que, além de

estarem empregados numa quantidade menor, pessoas com deficiência mental ou cognitiva

recebem menos do que os demais, provavelmente por estarem ocupados em funções mais

simples. A remuneração média deste grupo, de acordo com a RAIS de 2007, foi de R$ 728,06,

valor bem inferior ao verificado para pessoas com deficiência física, auditiva e visual (R$

1.157,26; R$ 1.845,09 e R$ 1.412,84, respectivamente).

Embora tenhamos solicitado, infelizmente, as informações fornecidas com base na RAIS

2008 foram incompletas, permitindo apenas a apresentação dos números absolutos de postos de

trabalho ocupados por trabalhadores com e sem deficiência, sem o perfil por sexo, escolaridade e

tipo de deficiência. Como se verá, há uma queda de 7,3% no total de empregos formais das

pessoas com deficiência, que passam a representar apenas 0,82% do total em 2008 (ante 0,93%

em 2007).

115 Imaginamos que a maioria das pessoas com deficiência física seja composta por amputados ou indivíduos com

limitações menos severas, não usuários de cadeira de rodas.

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Vínculos formais Vínculos formais

Pessoas com Deficiência Total de Trabalhadores Participação (%) PcD

Nordeste 52.019 6.948.709 0,75

Norte 12.021 2.080.009 0,58

Centro-Oeste 23.672 3.223.987 0,73

Sudeste 175.516 20.386.019 0,86

Sul 59.982 6.802.842 0,88

São Paulo 112.186 11.713.163 0,96

Brasil 323.210 39.441.566 0,82

Fonte: RAIS 2008. Coordenadoria Geral de Estatística do Trabalho (CGET) - MTE.

Tabela 15 - Total de Empregos - Brasil, Grandes Regiões e São Paulo - 2008

A participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, em 2008, é inferior a

1% do total dos empregos formais em todas as regiões do país (variando de 0,58% no Norte até

0,88% no Sul). O contingente de trabalhadores com limitações físicas, sensoriais e cognitivas,

entre 2007 e 2008, fica praticamente estabilizado nas regiões Norte e Sul. Há uma queda no

Nordeste e um aumento, de 168 mil para 175 mil de postos de trabalho ocupados por pessoas

com deficiência no Sudeste. Destaca-se a acentuada diminuição, na ordem de 50%, e sem

explicação aparente, no número de vínculos formais de pessoas com deficiência no Centro-Oeste

(de 48.149 em 2007 para 23.672 em 2008). No Estado de São Paulo, a participação das pessoas

com deficiência no total dos empregos fica em 0,86% em 2008 (era de 0,95% em 2007).

Ao concluirmos esta tese, foram divulgados os números da RAIS 2009. De acordo com os

dados, do total de 41,2 milhões de vínculos formais ativos em 31 de dezembro de 2009, 288,6 mil

foram declarados como pessoas com deficiência, representando 0,70% do total de vínculos

empregatícios. Em relação ao ocorrido em 2008 (323,2 mil vínculos), há uma redução de 34,6 mil

postos de trabalhos ocupados por pessoas com deficiência. Tal resultado negativo causa

preocupação, até porque, no agregado, cresceu o número de empregos formais, mesmo com a

crise econômica que resultou no PIB praticamente estagnado em 2009. Ou seja, a diminuição

atingiu o conjunto de trabalhadores com deficiência, como já havia ocorrido também entre 2007 e

2008, mesmo com a expansão do nível de atividade econômica nestes anos.

A predominância dos trabalhadores com deficiência física e auditiva, em detrimento

daqueles com deficiência visual, mental e múltipla, foi confirmada pela RAIS 2009, embora haja

aumento na presença destes últimos grupos, com exceção daqueles com deficiência múltipla. A

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participação no total de empregos formais ocupados por pessoas com deficiência distribuiu-se da

seguinte forma: 54,6% com deficiência física (50,3% em 2007), 22,7% com deficiência auditiva

(28,2% em 2007), 11,8% de reabilitados (14,0% em 2007), 4,9% com deficiência visual (2,9%

em 2007), 4,5% com deficiência mental (2,4% em 2007) e 1,2% com deficiência múltipla (1,7%

em 2007).

Mesmo com essas variações, as discrepâncias permanecem elevadas quando se tem em

conta a distribuição por tipo de deficiência na população, entre 15 e 59 anos, estimada para o

Brasil (tabela 6). As deficiências mental e visual representavam 31,5% e 29,6%, respectivamente,

da população com deficiência estimada para o Brasil. Dessa forma, a participação inferior a 5%

dos empregos formais ocupados por pessoas com deficiência, registradas por estes grupos na

RAIS 2009, continua sendo muito baixa, prevalecendo a “preferência” por aqueles com

deficiência física e auditiva.

Outras duas características do mercado de trabalho formal das pessoas com deficiência – a

remuneração média relativamente elevada deste contingente populacional e a baixa remuneração

média daqueles com deficiência mental e cognitiva – foram também confirmadas pela RAIS

2009. Os rendimentos médios das pessoas com deficiência foram de R$ 1.670,46, superiores à

média dos rendimentos do total de vínculos formais (R$ 1.595,22). Tal resultado deve-se,

principalmente, ao rendimento médio daqueles com deficiência auditiva (R$ 1.765,20) e física

(R$ 1.680,90), como também dos reabilitados (R$ 1.866,29). Porém, como acontecia em 2007, os

assalariados formais com deficiência mental são os que recebem rendimentos menores, apenas

R$ 731,91, em média, pela RAIS 2009.

Em síntese, o retrato mais recente da inserção formal das pessoas com deficiência no

mercado de trabalho formal, revelado pela RAIS 2009, mostra a confirmação das tendências que

já desenhavam em 2007 e 2008. Na verdade, os números sugerem preocupação pela queda

contínua no número de empregos ocupados por este contingente populacional, que continua

acessando de maneira restrita o mercado de trabalho formal.

Para finalizar esse item, realiza-se uma estimativa da participação efetiva das pessoas com

deficiência no trabalho formal frente ao conjunto desta população em idade ativa. Em outras

palavras: qual o percentual das pessoas com deficiência consegue acessar o mercado de trabalho

formal? Obtendo, assim, nas palavras de Fagnani (2005), o “passaporte para a cidadania”.

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Este exercício tem como base os dados da RAIS de 2008, pois ainda não temos as

informações relativas ao Estado de São Paulo e ao município de Campinas na RAIS 2009. Serão

comparados os empregos formais ocupados por pessoas com deficiência com as populações

estimadas, em idade produtiva, para o Brasil, Estado de São Paulo e município de Campinas

(tabelas 6, 7 e 8, respectivamente). Na tentativa de “atualizar” as informações, os percentuais

estimados para esta população – 3,6% (Brasil), 2,9% (Estado de São Paulo) e 3,0% (Campinas) –

serão aplicados aos dados da Contagem Populacional, realizada pelo IBGE em 2007.

%

Empregos formais Estimativa da População

Pessoas com Deficiência (1) com Deficiência (2)

Campinas 3.802 31.179 12,2

Estado de São Paulo 112.186 1.155.000 9,7

Brasil 323.210 6.623.542 4,9

(1) De acordo com a RAIS 2008.

(2) Com base nos percentuais estimados aplicados à contagem populacional de 2007.

Tabela 16 - Participação das Pessoas com deficiência no emprego formal

Brasil, Estado de São Paulo e Munícipio de Campinas

Em 2008, no Brasil, apenas 323 mil dos empregos formais eram exercidos por pessoas

com deficiência. Este número representa somente 4,9% desta população em idade produtiva (6,6

milhões de pessoas), mesmo utilizando critérios restritos para estimá-la, como fizemos com os

dados globais do Censo. Este percentual sobe para 9,7% no Estado de São Paulo e atinge 12,2%

no município de Campinas, onde existem 3.802 postos de trabalhos formais num contingente

estimado de 31.179 pessoas com deficiência entre 15 e 59 anos.

São números preocupantes, que reforçam a exclusão da grande maioria das pessoas com

deficiência no que se refere ao acesso ao trabalho. A legislação que prevê as cotas no mercado de

trabalho, embora tenha sido fiscalizada com mais rigor nos últimos anos, tem sido pouco eficaz

para ampliar a inclusão, mostrando-se como um instrumento de ação afirmativa necessário, mas

insuficiente.

Os dados da tabela 16 nos levam a concluir que um número muito elevado de pessoas

com limitações físicas, sensoriais e cognitivas continua exercendo atividades informais, precárias

e descontínuas, ou simplesmente não possui ocupação, vivendo com base em aposentadorias,

pensões e/ou com o suporte familiar. Pelos percentuais estimados, quase 95,0% das pessoas com

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deficiência, entre 15 e 59 anos, no Brasil, estariam nessa condição (90,3% no Estado de São

Paulo e 87,8% no município de Campinas).

Tal realidade deve ser ainda mais marcante nos municípios e regiões mais pobres do país,

como sugere a média nacional (“puxada” para baixo pelos outros estados, dado o resultado de

São Paulo). De fato, se tomarmos como base, por exemplo, estados como Maranhão e Piauí,

sabidamente marcados por problemas sociais graves, o número de empregos formais ocupados

por pessoas com deficiência, pela RAIS 2008, era de 4.468 e 1.796, respectivamente. Recorrendo

mais uma vez à contagem populacional de 2007, realizada pelo IBGE, e aplicando o percentual

nacional de 3,6% para estimar a população com deficiência que faz jus a lei de cotas e está em

idade produtiva116

, teríamos o seguinte cenário:

%

População total (1) Empregos formais Estimativa da População

Pessoas com Deficiência (2) com Deficiência (3)

Maranhão 6.118.995 4.468 220.284 2,0

Piauí 3.032.421 1.796 109.167 1,6

(1) Contagem Populacional de 2007, IBGE. (2) De acordo com a RAIS 2008.

(2) Com base no percentual estimado de 3,6% aplicado à contagem populacional de 2007.

Tabela 17 - Participação das Pessoas com deficiência no emprego formal

Maranhão e Piauí

O acesso ao trabalho formal – que possibilita uma série de direitos sociais – é

praticamente inexistente para pessoas com deficiência, em idade produtiva, nos dois estados do

Nordeste selecionados, uma vez que aproximadamente 98% dela não ocupa postos de trabalho

formais pela RAIS de 2008. A ausência de vínculos empregatícios ativos sugere que esse

contingente de pessoas – mais de 200 mil no Maranhão e de 100 mil no Piauí – sobrevive por

meio de ocupações informais (venda de produtos em semáforos, por exemplo), do recebimento de

pensões, aposentadorias ou do benefício de prestação continuada, ou ainda dependa

exclusivamente do apoio familiar.

Considerações finais – capítulo 3

116 Deve-se lembrar que, pela metodologia do IBGE que avaliou limitações e incapacidades funcionais, a “população

com deficiência” nos Estados nordestinos seria ainda maior, sugerindo um percentual estimado superior a 3,6%, aumentando, assim, o “abismo” entre uma minoria trabalhando formalmente e a massa excluída e/ou em atividades

precárias.

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O panorama sobre a evolução da economia brasileira nos últimos dez anos, realizado no

início deste capítulo, buscava não desvincular a questão do acesso ao emprego das pessoas com

deficiência dos indicadores mais gerais da atividade econômica. Porém, tendo em vista os

resultados apuradas pela RAIS nos anos de 2007, 2008 e 2009, parece que o processo de inclusão

deste contingente populacional possui uma dinâmica própria. É claro que seria necessária uma

série histórica mais longa, mas o fato é que a economia cresceu fortemente entre 2007 e 2008,

estagnou em 2009 e, independentemente disso, caiu o número de postos de trabalhos formais

ocupados por pessoas com deficiência neste mesmo período.

A revisão bibliográfica que foi apresentada – basicamente através dos trabalhos de Pastore

(2000), Rosa (2009) e Clemente (2008) – forneceu argumentos que já mostravam os limites e o

caráter insuficiente da “Lei de Cotas”. É verdade que, diante disto, os autores divergem sobre o

que fazer, já que Pastore (2000) defende a “flexibilização” da Lei, enquanto Rosa (2009) e

Clemente (2008) são favoráveis a sua manutenção e ao aumento da fiscalização do MTE (embora

o primeiro seja cético quanto à eficácia das cotas num regime de produção capitalista).

O trabalho de Clemente (2008) também foi usado para apresentar os dados relativos às

contratações formais de pessoas com deficiência na década atual. Sobre isso, e mesmo

considerando os números divulgados pela RAIS a partir de 2007, é preciso dizer que esta tarefa

continua sendo, ainda hoje, como “caminhar num terreno arenoso”. As informações parecem

deixar algumas dúvidas, sendo difícil fazer comparações porque os números são recentes e, como

questão de fundo, sempre fica a pergunta sobre quantas e quem são as pessoas com deficiência

que estariam aptas a fazer jus à lei. Buscou-se, em especial nos dois últimos itens do presente

capítulo, explorar esse tema, cientes das limitações dos dados, mas amparados pela vivência no

movimento das pessoas com deficiência e no debate sobre políticas públicas e acesso ao trabalho.

Mesmo com as dificuldades da pesquisa, algumas indicações nos parecem claras. Em

primeiro lugar, há uma participação extremamente restrita das pessoas com deficiência, em idade

produtiva, no mercado de trabalho formal. No cenário mais otimista, observado no município de

Campinas, cerca de 85% do contingente de pessoas com limitações físicas, sensoriais e/ou

cognitivas estaria fora do mercado formal.

Há, também, uma nítida “preferência” por determinados tipos de deficiência, notadamente

a física e a visual (ou, por outro lado, a insegurança e o preconceito em relação às pessoas com

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deficiência visual ou mental). Estas últimas, com deficiência mental ou cognitiva, auferem

rendimentos significativamente mais baixos do que aqueles das demais pessoas com deficiência.

Por outro lado, e esse parece ser um aspecto positivo, as pessoas com deficiência que conseguem

ingressar no mercado de trabalho percebem uma renda média relativamente alta, superior aquela

dos demais trabalhadores.

Por fim, deve-se dizer que a nossa estimativa da população com deficiência em “idade

produtiva” – baseada em percentuais de 3,0% a 3,5% da população – sugere que os índices

previstos na “Lei de Cotas” – que variam de 2% a 5% – não estão fora da realidade. Pode-se até

argumentar que 5% seja algo elevado, mas este é o percentual das grandes empresas, com mais

de 1.000 funcionários e com condições de desenvolver programas de contratação. Assim, não nos

parecem justificáveis os argumentos daqueles que defendem a “flexibilização” da lei.

Até porque, e isso talvez seja o mais importante, ela não resolve, sozinha, a questão da

inclusão. Longe disso, pois os dados levantados por Clemente (2008), como vimos, com base na

RAIS 2006, estipularam em cerca de 750 mil as vagas existentes no país se todas as empresas

cumprissem a cota (tabela 11). Ora, nossa estimativa para a população com deficiência no país,

restringindo as limitações funcionais e com o recorte da faixa etária, é de 6,6 milhões de pessoas

(tabela 6). Mesmo que a cota fosse cumprida na integralidade, milhões de pessoas com

deficiência ainda ficariam fora do mercado de trabalho formal.

Para além da legislação, a incorporação das pessoas com deficiência parece depender de

uma transformação mais ampla da sociedade, que passa pelo acesso à educação, por uma cidade

acessível e por uma mudança de mentalidade dos empresários e, quem sabe, até das próprias

pessoas com deficiência, no sentido de priorizar o trabalho e não outros tipos de dependência.

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Considerações finais

Ao final de cada capítulo, procurou-se fazer uma síntese do conteúdo, dados e

informações ali discutidas. Por isso, nestas considerações finais optamos apenas por elencar, de

maneira bastante objetiva, algumas reflexões e sugestões que nos parecem importantes para

acelerar o processo de inclusão formal das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Basicamente, em nossa opinião, ao menos cinco aspectos são centrais e precisam ser efetivados

e/ou discutidos a fundo: a) a ampliação do conhecimento público acerca das pessoas com

deficiência e sua inserção no trabalho; b) as questões ligadas à legislação (não só em relação à

chamada “Lei de Cotas”, mas também à legislação trabalhista/previdenciária; c) o fortalecimento

da inclusão escolar e das possibilidades de qualificação profissional, inclusive dentro das

empresas; d) a acessibilidade como conceito-síntese da sociedade inclusiva; e) a consolidação de

novos paradigmas e formas de pensar a temática da deficiência, na sociedade em geral, mas

especialmente entre os empregadores (empresários ou gestores públicos) e as próprias pessoas

com deficiência. Em conjunto, avanços e ações nestas áreas podem proporcionar condições para

uma participação ampliada e mais efetiva das pessoas com deficiência no mercado de trabalho

formal.

Em relação ao primeiro tema, é preciso aumentar o nível de conhecimento público quanto

à realidade sócio-econômica em que está inserida a população com deficiência. No intuito de

balizar as políticas públicas e/ou aperfeiçoar legislações, deve-se buscar maior profundidade e

clareza nos indicadores sociais e econômicos que se referem a este contingente populacional.

Como já foi apontado, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) deveria incluir a variável

“deficiência” na sua base de dados on-line, permitindo o cruzamento com outras variáveis, como

escolaridade, ocupações, rendimento e características pessoais (gênero e raça). Dependendo da

viabilidade estatística, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) poderia incorporar

a questão deficiência à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), para que se

tenham informações anuais, e não a cada dez anos, sobre este contingente populacional. Nos

Censos Demográficos, talvez fosse o caso da “deficiência” ser um atributo pessoal a ser “auto-

declarado” ou não pelos moradores de todos os domicílios, como acontece para “cor/raça” ou

“sexo”. Em suma, principalmente para não provocar injustiças, beneficiando aqueles que não

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precisam de políticas, leis ou “direitos específicos”, é necessário conhecer a fundo este grupo

populacional socialmente vulnerável e historicamente excluído.

Quanto ao aspecto da legislação, deve-se pensar na manutenção da atual “Lei de Cotas” e

no aperfeiçoamento da legislação trabalhista e previdenciária que diz respeito às pessoas com

deficiência. Ao contrário do que defendem setores empresariais, e antes que se conheça com mais

detalhes o universo das pessoas com deficiência, não se deve propor flexibilizações na “Lei de

Cotas”. O processo de fiscalização iniciou-se há apenas alguns anos e, mesmo com os limites

deste instrumento de ação afirmativa, ele é importante porque obriga a uma reflexão das

empresas e órgãos públicos sobre esta questão. Em outras palavras, se não houvesse as cotas, e a

inserção das pessoas com deficiência tivesse que ocorrer “naturalmente”, dentro do jogo das

“livres forças de mercado” do sistema capitalista, provavelmente o cenário seria ainda pior.

Ainda sobre a legislação, como já ocorreu no caso do Benefício de Prestação Continuada

(BPC), poder-se-ia pensar numa modificação da legislação previdenciária no sentido de que o

“aposentado por invalidez” pudesse retornar ao mercado de trabalho, cessando-se o benefício

enquanto ele estiver trabalhando, mas retornando em caso de desemprego. Tal mudança seria

positiva para um contingente relativamente grande de pessoas que, ainda jovem, se aposentou em

função de uma deficiência adquirida, mas tem plenas condições, com as devidas adaptações e

recursos, de trabalhar formalmente, exercendo as mais variadas funções. No caso dos concursos

públicos, a legislação deve ser repensada para que se mantenha o espírito de equiparar

oportunidades, e não criar privilégios, banalizando as vagas reservadas, como tem ocorrido.

Alguns países, por exemplo, adotam pontuações adicionais de acordo com o grau de dificuldade

funcional objetiva que a deficiência coloca.

O passado de segregação escolar vivenciado por parcela considerável das pessoas com

deficiência é um dos obstáculos a ser superado para acelerar a inclusão laboral deste segmento.

Sob todos os aspectos, mesmo com os problemas que a educação ainda apresenta no país, é

melhor que as crianças com deficiência estejam incluídas nos sistemas regulares de ensino,

usufruindo dos recursos e atendimentos específicos que necessitem. Podem até haver

complementações e suportes adicionais com profissionais de reabilitação em instituições

específicas, no contra-turno escolar, por exemplo. Mas já ficou comprovado que o caminho da

segregação escolar é prejudicial para não só para a própria criança com deficiência, mas também

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para os outros alunos, os professores, funcionários, enfim, todos aqueles que deixarão de

valorizar as diferenças humanas e melhorar enquanto cidadãos.

Uma vez que se persista no caminho da inclusão escolar, as diferenças no grau de

instrução entre aqueles com e sem deficiência deverão diminuir. Adicionalmente, os processos de

formação e qualificação profissional, que podem ocorrer no interior das próprias empresas,

devem ser inclusivos, possibilitando a participação de todos. Em relação ao ensino superior, as

Universidades devem estar preparadas, desde os processos de seleção, para receber a todos,

independentemente das eventuais limitações. Esta meta deve ser constantemente buscada, de

modo que não se restrinja a participação de ninguém em função de uma deficiência, reafirmando

o caráter universal do ensino.

O quarto aspecto que destacamos como decisivo tem haver com o anterior, pois a idéia-

força de acessibilidade perpassa os ambientes escolares, e vai além ao exigir mudanças e

adaptações necessárias para que o município e os serviços públicos em geral acolham todas as

pessoas. Seja nos meios de transporte, nas edificações, ruas ou calçadas, é preciso remover

barreiras que impedem o acesso das pessoas com diferentes tipos de limitação. Como procurar

emprego, se não há possibilidade, ou é muito difícil, simplesmente ir e vir? A acessibilidade diz

respeito também à informação e aos meios de comunicação, que devem oferecer recursos que os

tornem disponíveis para todos. Centrais de intérpretes de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais),

legendas, sintetizadores de voz e a áudio-descrição são recursos de comunicação que precisam

ser ampliados, pois ajudam muito aqueles com deficiências sensoriais (visual ou auditiva).

A acessibilidade deve ser respeita pelas empresas privadas, que muitas vezes se dizem

socialmente responsáveis, mas no seu próprio ambiente mantém barreiras para o acesso das

pessoas com deficiência. Da mesma forma, prédios públicos, muitos dos quais prestam serviços

voltados para quem trabalha ou está procurando emprego, precisam estar adaptados e acessíveis a

todos. Já existem legislações que expressam claramente estas obrigações, como o Decreto

Federal 5.296/04, que, conforme discutimos, define prazos – alguns dos quais já vencidos – para

a garantia da acessibilidade. Cabe então ao movimento organizado das pessoas com deficiência,

com o apoio do Ministério Público, cobrar e fazer valer aquilo que está garantido por Lei. A

acessibilidade é um conceito chave para construção da sociedade inclusiva, sem ela são vedados

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direitos básicos das pessoas com deficiência, dentre eles os direitos de ir e vir, comunicar-se, se

informar, estudar e trabalhar (como viver dignamente sem realizar estas ações?).

Finalmente, para que uma parcela cada vez maior das pessoas com deficiência possa

trabalhar e exercer sua cidadania, impõe-se a consolidação do chamado “paradigma da inclusão”,

em oposição ao modelo “médico-clínico” que se aplicou à temática da deficiência durante muitas

décadas. Nesse contexto, devem ser defeitos mitos e estereótipos em geral associados aqueles

com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas, que precisam ser vistos como cidadãos, não

como “pessoas especiais”, “heróis”, “doentes”, “coitadinhos” ou algo do gênero. Práticas como

procurar alguém para trabalhar em função de uma “deficiência mais leve”, e não por sua

competência profissional, devem ser combatidas e qualificadas como discriminatórias. E as

próprias pessoas com deficiência, que muitas vezes se utilizam da piedade alheia, ou se

acomodam com o assistencialismo, devem repensar sua forma de agir.

Além de tudo isso, e mesmo com a possível “dinâmica própria” que o emprego das

pessoas com deficiência parece ter, é fundamental que as condições econômicas e sociais do país

evoluam positivamente. O crescimento econômico acelerado, uma melhor distribuição de renda,

serviços públicos com qualidade e programas sociais eficazes, dentre outros aspectos, são

benéficos para todos, inclusive, obviamente, para aqueles com algum tipo de deficiência. Por

mais que existam especificidades, não há um mundo “específico” das pessoas com deficiência.

Elas também sentirão os efeitos da melhora social mais geral, por isso que as políticas específicas

– gratuidades, cotas, isenções, benefícios, etc. – não podem ser um fim em si mesmo, mas parte

de uma estratégia mais ampla na qual, equiparando oportunidades, todos possam construir um

país melhor, mais justo e humano.

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Anexo I – Legislações Selecionadas

Lei 7.853/89 – Artigo 12

Art. 12 – Compete à CORDE:

I - coordenar as ações governamentais e medidas que se refiram às pessoas portadoras de deficiência;

II - elaborar os planos, programas e projetos subsumidos na Política Nacional para a Integração de Pessoa Portadora de Deficiência, bem como propor as providências necessárias a sua completa implantação e seu

adequado desenvolvimento, inclusive as pertinentes a recursos e as de caráter legislativo;

III - acompanhar e orientar a execução, pela Administração Pública Federal, dos planos, programas e

projetos mencionados no inciso anterior;

IV - manifestar-se sobre a adequação à Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de

Deficiência dos projetos federais a ela conexos, antes da liberação dos recursos respectivos;

V - manter, com os Estados, Municípios, Territórios, o Distrito Federal, e o Ministério Público, estreito relacionamento, objetivando a concorrência de ações destinadas à integração social das pessoas portadoras

de deficiência;

VI - provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam

objeto da ação civil de que trata esta lei, e indicando-lhe os elementos de convicção;

VII - emitir opinião sobre os acordos, contratos ou convênios firmados pelos demais órgãos da

Administração Pública Federal, no âmbito da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de

Deficiência;

VIII - promover e incentivar a divulgação e o debate das questões concernentes à pessoa portadora de

deficiência, visando a conscientização da sociedade.

Lei 7.853/89 – Artigo 8º

Art. 8° - Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa:

I - recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da

deficiência que porta;

II - obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua

deficiência;

III - negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho;

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IV - recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e

ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência;

V - deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na

ação civil a que alude esta Lei;

VI - recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil objeto desta Lei,

quando requisitados pelo Ministério Público.

Decreto 3.289/99 – Artigo 3º

Art. 3º. – Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou

anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente - aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos;

III - incapacidade - uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência

possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função

ou atividade a ser exercida.

Decreto 3.298/99 – Artigo 4º

Art. 4º - É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia,

monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia,

amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

II - deficiência auditiva - perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e

níveis na forma seguinte: a) de 25 a 40 decibéis (db) - surdez leve; b) de 41 a 55 db - surdez moderada; c) de 56 a 70 db - surdez acentuada; d) de 71 a 90 db - surdez severa; e) acima de 91 db – surdez profunda; e

f) anacusia;

III - deficiência visual - acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor

correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as

situações;

IV - deficiência mental - funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com

manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades

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adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização da

comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho;

V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

Decreto 3.298/99 – Artigo 11

Art. 11 - Ao CONADE, criado no âmbito do Ministério da Justiça como órgão superior de deliberação colegiada, compete:

I - zelar pela efetiva implantação da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência;

II - acompanhar o planejamento e avaliar a execução das políticas setoriais de educação, saúde, trabalho,

assistência social, transporte, cultura, turismo, desporto, lazer, política urbana e outras relativas à pessoa portadora de deficiência;

III - acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária do Ministério da Justiça, sugerindo

as modificações necessárias à consecução da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência;

IV - zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de defesa dos direitos da pessoa portadora de deficiência;

V - acompanhar e apoiar as políticas e as ações do Conselho dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

VI - propor a elaboração de estudos e pesquisas que objetivem a melhoria da qualidade de vida da pessoa

portadora de deficiência;

VII - propor e incentivar a realização de campanhas visando à prevenção de deficiências e à promoção

dos direitos da pessoa portadora de deficiência;

VIII - aprovar o plano de ação anual da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de

Deficiência – CORDE;

IX - acompanhar, mediante relatórios de gestão, o desempenho dos programas e projetos da Política

Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência; e

X – elaborar o seu regimento interno.

Boletim de Acompanhamento e Análise – Políticas Sociais

IPEA – DISOC, Edição n. 13 - 2006

Ministério do Desenvolvimento Social – Além do BPC, a assistência social mantém, há décadas, uma

rede de atendimento mediante convênios com instituições responsáveis pelos Serviçosde Ação Continuada

(SAC) para as pessoas com deficiência e que incluem cuidados domiciliares, atendimentos diários,

serviços sociais e abrigos.

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Ministério da Previdência Social – O sistema de previdência social concede benefícios aos segurados

com alguma deficiência por meio das aposentadorias por invalidez, em número que passou de 2 milhões

em 1995 para 2,6 milhões em 2005 e que se concentram nas áreas urbanas.Além disso, o Instituto

Nacional de Seguridade Social (INSS) mantém convênios ou parcerias com entidades para reabilitação profissional, como prefeituras, órgãos públicos, empresas estatais, entidades do sistema “S”, hospitais,

universidades ou empresas privadas. Esses convênios possibilitam que seja realizada reabilitação

profissional e concedidas e/ou reparadas próteses e órteses, dentre outras ações.

Ministério da Saúde – O Ministério desenvolve a política de atenção à saúde da pessoa com deficiência

em regime de responsabilidade compartilhada com estados e municípios e tem como prioritária a

implantação e operação da Rede de Atenção Integral à Pessoa com Deficiência no Sistema Único de Saúde. Por meio da Rede são realizados atendimentos médico, fisioterápico, psicológico e

fonoaudiológico; oficinas terapêuticas; reabilitação de média e alta complexidade; fornecimento de

órteses, próteses e bolsas de colostomia; exames audiológicos; triagem neo-natal; terapias individuais e em grupo; implante coclear e estimulação neurossensorial.

As Unidades de Reabilitação têm um papel essencial na Rede, atuando em diferentes níveis de

complexidade e vinculando-se a outros serviços de saúde existentes na comunidade. No período em tela foram consolidadas as Redes Estaduais de Reabilitação, tendo sido estabelecida articulação com o

Ministério da Educação com vistas ao atendimento ao escolar portador de deficiência na Rede de

Reabilitação do SUS. Internamente ao Ministério da Saúde, foi realizada articulação com as áreas de Atenção Domiciliar, Hanseníase, Saúde do Trabalhador, Idoso e Criança (para triagem auditiva neo-natal),

além de articulação intra e inter-setorial para elaboração da Política Nacional de Atenção à Saúde

Auditiva. Importante considerar ainda que na estratégia “Saúde da Família” foram inseridas ações de

reabilitação e prevenção das deficiências.

Na área das pesquisas médicas, forte impulso foi dado com a decisão do governo federal de investir em

pesquisas com células-tronco adultas e embrionárias. O uso de células-tronco embrionárias é possível graças à aprovação da Lei de Biosegurança em março de 2005.

Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) – O Ministério vem investindo em pesquisas nessa área há alguns anos. Um projeto pioneiro, de 2001, visou à capacitação do país para introduzir e desenvolver uma

nova área médica, a Medicina Regenerativa, que trata pacientes com doenças crônico-degenerativas e

traumáticas com terapias celulares e teciduais. O Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) seleciona

projetos de pesquisas básicas, pré-clínicas e clínicas relacionadas ao desenvolvimento de procedimentos terapêuticos inovadores em terapia celular.

Ministério da Educação – As ações da área buscam viabilizar o acesso e a permanência na escola dos alunos com necessidades educacionais especiais por meio da elaboração, edição e difusão de documentos,

apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino, provisão de recursos a projetos de adaptação

arquitetônica (para acessibilidade), capacitação de recursos humanos e aquisição de equipamentos e material didático e pedagógico. O Instituto Benjamin Constant (IBC) modernizou a imprensa Braille e os

Centros de Capacitação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS)

deram apoio à participação de alunos surdos nas atividades escolares.

Foram capacitados profissionais em Língua Brasileira de Sinais (Libras) e no ensino de língua portuguesa

para surdos, e editados livros, manuais e o dicionário trilíngüe da Libras. Também se deu apoio à

utilização das tecnologias de comunicação e informação nos processos de ensino e aprendizagem de que participam alunos com necessidades educacionais especiais, por meio do fornecimento de softwares

educacionais a escolas especializadas vinculadas a organizações não-governamentais e implantação e

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operação de laboratórios de informática, destinados a escolas comuns públicas que atendem alunos com

necessidades educacionais especiais.

O Censo Escolar/Inep/MEC mostra um incremento de 49,3% na matrícula de alunos com necessidades

educacionais especiais entre 1998 e 2003, passando de 337 mil alunos para 504 mil. É importante ter em

conta, no entanto, que o atendimento inclusivo (em classes comuns de escolas comuns) mais do que

triplicou no período, passando de 43.923 alunos matriculados em 1998 para 144.583 em 2003. Com isso, a participação em relação ao total de alunos matriculados também cresceu, passando de 13% em 1998 para

28,7% em 2003, ao passo que o atendimento não-inclusivo (em classes especiais e em escolas especiais),

embora siga crescendo, diminuiu sua participação no total.

A partir de 2003, o programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade vem buscando consolidar esse

processo de inclusão dos alunos com deficiências nas escolas regulares, promovendo a capacitação de

professores e gestores e a elaboração da proposta inclusiva mediante a definição dos Planos Municipais de Educação. O MEC também vem atuando para a inclusão de surdos no ensino superior e a qualificação de

professores bilíngües em português/Língua Brasileira de Sinais (Libras) para trabalharem na educação

básica.

Ministério do Trabalho e Emprego - No que se refere à geração de emprego e renda, o Ministério do

Trabalho e Emprego desenvolveu o Programa Brasil, Gênero e Raça em 75 Núcleos de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Combate à Discriminação nas Relações de Trabalho para promover a

igualdade de oportunidades e de tratamento nas relações de trabalho. Participam desse trabalho as

organizações governamentais, não-governamentais, instituições beneficentes, organizações sindicais,

laborais e patronais, em relação tripartite. Os Núcleos fizeram a inserção de 2.965 pessoas com deficiência no mercado de trabalho em 2000, número que saltou para 14.351 em 2002, mas com uma redução para

1.828 vagas em 2003. O Plano Nacional de Qualificação (PNQ), instituído em 2003, tem entre seus

objetivos contribuir para minimizar a situação de exclusão social de parte da população brasileira, sendo as pessoas com deficiência uma das populações prioritárias. Em 2003, foram alocados 3,8% do total dos

recursos do Fundo de Apoio ao Trabalhador (FAT) para a qualificação profissional desse segmento.

Ministério do Esporte - Promove o apoio às entidades nacionais de administração do para-desporto, entre

elas as confederações e as associações, na execução e realização de seus calendários esportivos nacionais

e internacionais. A Lei no 10.264 (Lei Agnelo/Piva), aprovada em 2001, destina 2% das loterias federais aos Comitês Olímpico e Para-Olímpico e representa um reforço para o esporte. Também constituem

iniciativas significativas para os deficientes os Programas Brasil – Potência Esportiva, que patrocina a

delegação brasileira em competições internacionais de alto rendimento e a promoção de eventos esportivos nacionais e internacionais de rendimento para pessoas com deficiência; e o Esporte Solidário,

que visa ao desenvolvimento do esporte recreativo e de lazer com vistas à inclusão, do qual cerca de 5%

dos beneficiários correspondem às pessoas com deficiência.

Ministério das Cidades - As funções desempenhadas pelo Ministério das Cidades, antes de sua criação

em 2003, estavam disseminadas nas áreas de saneamento, habitação e transportes. Sua atuação engloba

ações de inclusão social das pessoas com deficiência, por meio do planejamento dos espaços e dos transportes públicos. Em fins de 2003 lançou o Programa Pró-Transporte, com orçamento naquele ano de

R$ 250 milhões, para o financiamento de construção de infra-estrutura para o transporte coletivo que

possibilitasse o acesso das pessoas com deficiência aos equipamentos urbanos, como os terminais de ônibus e as estações de trens e de metrôs. O ministério também orienta as administrações municipais para

a constituição e capacitação de organismos de fiscalização e controle de posturas municipais em área tão

específica e pouco conhecida como a da acessibilidade para as pessoas com deficiência.

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Ministério dos Transportes - Concede serviço de transporte gratuito para pessoas deficientes, para as

pessoas com deficiência renal crônica e para os ostomizados que comprovem condição de carência

econômica (renda familiar mensal per capita de até um salário mínimo). O Passe Livre dá direito a viajar sem custos por qualquer lugar do país em transporte coletivo interestadual convencional por ônibus, trem

ou barco, sendo, as empresas concessionárias de transporte, obrigadas a reservar, a cada viagem, dois

assentos para atender às pessoas com deficiência.

Decreto 5.296 de 2004 – Artigo 5º.

§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto:

a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia,

monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia,

amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de

funções;

b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida

por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com

a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os

olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação

antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5.

saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. trabalho;

e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)

Artigo 19 – Vida independente e inclusão na comunidade

Os Estados Partes desta Convenção reconhecem o igual direito de todas as pessoas com deficiência de viver na comunidade, com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas, e tomarão medidas

efetivas e apropriadas para facilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo desse direito e sua plena

inclusão e participação na comunidade, inclusive assegurando que:

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a. As pessoas com deficiência possam escolher seu local de residência e onde e com quem morar, em

igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e que não sejam obrigadas a viver em determinado

tipo de moradia;

b. As pessoas com deficiência tenham acesso a uma variedade de serviços de apoio em domicílio ou em instituições residenciais ou a outros serviços comunitários de apoio, inclusive os serviços de atendentes

pessoais que forem necessários como apoio para que as pessoas com deficiência vivam e sejam incluídas

na comunidade e para evitar que fiquem isoladas ou segregadas da comunidade;

c. Os serviços e instalações da comunidade para a população em geral estejam disponíveis às pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades, e atendam às suas necessidades.

CDPD – Artigo 24

Educação

1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse

direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com

os seguintes objetivos:

a. O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade

humana;

b. O máximo desenvolvimento possível da personalidade, dos talentos e da criatividade das pessoas com

deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais; c. A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.

2. Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:

a. As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e

compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;

b. As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;

c. Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;

d. As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com

vistas a facilitar sua efetiva educação; e. Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o

desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.

3. Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação

no sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas

apropriadas, inclusive:

a. Tornando disponível o aprendizado do Braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação de

apoio e aconselhamento de pares;

b. Tornando disponível o aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade lingüística da comunidade surda;

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c. Garantindo que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja

ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes

que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.

4. A fim de contribuir para o exercício desse direito, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para empregar professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais

e/ou do Braille, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino. Essa

capacitação incorporará a conscientização da deficiência e a utilização de modos, meios e formatos

apropriados de comunicação aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência.

5. Os Estados Partes assegurarão que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino superior em

geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e em igualdade de condições. Para tanto, os Estados Partes assegurarão a provisão de

adaptações razoáveis para pessoas com deficiência.

CDPD – Artigo 25

Saúde Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar o melhor estado de

saúde possível, sem discriminação baseada na deficiência. Os Estados Partes tomarão todas as medidas

apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação, que levarão em conta as especificidades de gênero. Em especial, os Estados Partes:

a. Oferecerão às pessoas com deficiência programas e atenção à saúde gratuitos ou a custos acessíveis da

mesma qualidade, variedade e padrão que são oferecidos às demais pessoas, inclusive na área de saúde

sexual e reprodutiva e de programas de saúde pública destinados à população em geral; b. Propiciarão serviços de saúde que as pessoas com deficiência necessitam especificamente por causa de

sua deficiência, inclusive diagnóstico e intervenção precoces, bem como serviços projetados para reduzir

ao máximo e prevenir deficiências adicionais, inclusive entre crianças e idosos; c. Propiciarão esses serviços de saúde às pessoas com deficiência, o mais próximo possível de suas

comunidades, inclusive na zona rural;

d. Exigirão dos profissionais de saúde que dispensem às pessoas com deficiência a mesma qualidade de serviços dispensada às demais pessoas e, principalmente, que obtenham o consentimento livre e

esclarecido das pessoas com deficiência concernentes. Para esse fim, os Estados Partes realizarão

atividades de formação e definirão regras éticas para os setores de saúde público e privado, de modo a

conscientizar os profissionais de saúde acerca dos direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das pessoas com deficiência;

e. Proibirão a discriminação contra pessoas com deficiência na provisão de seguro de saúde e seguro de

vida, caso tais seguros sejam permitidos pela legislação nacional, os quais deverão ser providos de maneira razoável e justa; e

f. Prevenirão que se negue, de maneira discriminatória, os serviços de saúde ou de atenção à saúde ou a

administração de alimentos sólidos ou líquidos por motivo de deficiência.

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CDPD – Artigo 26

Habilitação e reabilitação

1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pares, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena

capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os

aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e programas

completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que esses serviços e programas:

a. Comecem no estágio mais precoce possível e sejam baseados em avaliação multidisciplinar das

necessidades e pontos fortes de cada pessoa; b. Apóiem a participação e a inclusão na comunidade e em todos os aspectos da vida social, sejam

oferecidos voluntariamente e estejam disponíveis às pessoas com deficiência o mais próximo possível de

suas comunidades, inclusive na zona rural. 2. Os Estados Partes promoverão o desenvolvimento da capacitação inicial e continuada de profissionais e

de equipes que atuam nos serviços de habilitação e reabilitação

3. Os Estados Partes promoverão a disponibilidade, o conhecimento e o uso de dispositivos e tecnologias

assistivas, projetados para pessoas com deficiência e relacionados com a habilitação e a reabilitação.

CDPD – Artigo 27

Trabalho e emprego 1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de

oportunidades com as demais pessoas. Este direito abrange o direito à oportunidade de se manter com um

trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto,

inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e promoverão a realização do direito ao trabalho, inclusive daqueles que tiverem adquirido uma deficiência no emprego,

adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação, com o fim de, entre outros:

a. Proibir a discriminação baseada na deficiência com respeito a todas as questões relacionadas com as formas de emprego, inclusive condições de recrutamento, contratação e admissão, permanência no

emprego, ascensão profissional e condições seguras e salubres de trabalho;

b. Proteger os direitos das pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas, às condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo iguais oportunidades e igual remuneração por trabalho

de igual valor, condições seguras e salubres de trabalho, além de reparação de injustiças e proteção contra

o assédio no trabalho;

c. Assegurar que as pessoas com deficiência possam exercer seus direitos trabalhistas e sindicais, em condições de igualdade com as demais pessoas;

d. Possibilitar às pessoas com deficiência o acesso efetivo a programas de orientação técnica e profissional

e a serviços de colocação no trabalho e de treinamento profissional e continuado; e. Promover oportunidades de emprego e ascensão profissional para pessoas com deficiência no mercado

de trabalho, bem como assistência na procura, obtenção e manutenção do emprego e no retorno ao

emprego;

f. Promover oportunidades de trabalho autônomo, empreendedorismo, desenvolvimento de cooperativas e estabelecimento de negócio próprio;

g. Empregar pessoas com deficiência no setor público;

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h. Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas

apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas;

i. Assegurar que adaptações razoáveis sejam feitas para pessoas com deficiência no local de trabalho;

j. Promover a aquisição de experiência de trabalho por pessoas com deficiência no mercado aberto de trabalho;

k. Promover reabilitação profissional, manutenção do emprego e programas de retorno ao trabalho para

pessoas com deficiência.

2. Os Estados Partes assegurarão que as pessoas com deficiência não serão mantidas em escravidão ou servidão e que serão protegidas, em igualdade de condições com as demais pessoas, contra o trabalho

forçado ou compulsório.

CDPD – Artigo 28

Padrão de vida e proteção social adequados

1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria

contínua de suas condições de vida, e tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover a

realização desse direito sem discriminação baseada na deficiência. 2. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à proteção social e ao exercício

desse direito sem discriminação baseada na deficiência, e tomarão as medidas apropriadas para

salvaguardar e promover a realização desse direito, tais como:

a. Assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a serviços de saneamento básico e assegurar o acesso aos serviços, dispositivos e outros atendimentos apropriados para as necessidades relacionadas com a

deficiência;

b. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência, particularmente mulheres, crianças e idosos com deficiência, a programas de proteção social e de redução da pobreza;

c. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência e suas famílias em situação de pobreza à assistência do

Estado em relação a seus gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado,

aconselhamento, ajuda financeira, abrigamento; d. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência a programas habitacionais públicos;

e. Assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria.

CDPD - Artigo 29

Participação na vida política e pública Os Estados Partes garantirão às pessoas com deficiência direitos políticos e oportunidade de exercê-los em

condições de igualdade com as demais pessoas, e deverão:

a. Assegurar que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na vida política e pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de

representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem votadas,

mediante, entre outros:

(I) Garantia de que os procedimentos, instalações e materiais e equipamentos para votação serão apropriados, acessíveis e de fácil compreensão e uso;

(II) Proteção do direito das pessoas com deficiência ao voto secreto em eleições e plebiscitos, sem

intimidação, e a candidatar-se nas eleições, efetivamente ocupar cargos eletivos e desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, usando novas tecnologias assistivas, quando apropriado;

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(III) Garantia do livre arbítrio das pessoas com deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que

necessário e a seu pedido, permissão para que elas sejam auxiliadas na votação por uma pessoa de sua

escolha;

b. Promover ativamente um ambiente em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades com

as demais pessoas, e encorajar sua participação nas questões públicas, mediante:

I) Participação em organizações não-governamentais relacionadas com a vida pública e política do país,

bem como em atividades e administração de partidos políticos; e II) Formação de organizações para representar pessoas com deficiência em níveis internacional, regional,

nacional e local, bem como a filiação de pessoas com deficiência a tais organizações.

CDPD – Artigo 30

Participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte

1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência de participar na vida cultural, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e tomarão todas as medidas apropriadas para que as

pessoas com deficiência possam:

a. Ter acesso a bens culturais em formatos acessíveis; b. Ter acesso a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais, em formatos

acessíveis; e

c. Ter acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus, cinemas,

bibliotecas e pontos turísticos, bem como, tanto quanto possível, ter o acesso a monumentos e locais de importância cultural nacional.

2. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência tenham a

oportunidade de desenvolver e utilizar seu potencial criativo, artístico e intelectual, não somente em benefício próprio, mas também para o enriquecimento da sociedade.

3. Os Estados Partes deverão tomar todas as providências, em conformidade com o direito internacional,

para assegurar que a legislação de proteção dos direitos de propriedade intelectual não constitua barreira

excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a bens culturais. 4. As pessoas com deficiência farão jus, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a que sua

identidade cultural e lingüística específica seja reconhecida e apoiada, incluindo as línguas de sinais e a

cultura surda. 5. Para que as pessoas com deficiência participem, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,

de atividades recreativas, esportivas e de lazer, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para:

a. Incentivar e promover a maior participação possível das pessoas com deficiência nas atividades esportivas comuns em todos os níveis;

b. Assegurar que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de organizar, desenvolver e participar

em atividades esportivas e recreativas específicas às deficiências e, para tanto, incentivar a provisão de

instrução, treinamento e recursos adequados, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas; c. Assegurar que as pessoas com deficiência tenham acesso a locais de eventos esportivos, recreativos e

turísticos;

d. Assegurar que as crianças com deficiência possam, em igualdade de condições com as demais crianças, participar de jogos e atividades recreativas, esportivas e de lazer, inclusive no sistema escolar;

e. Assegurar que as pessoas com deficiência tenham acesso aos serviços prestados por pessoas ou

entidades envolvidas na organização de atividades recreativas, turísticas, esportivas e de lazer.

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MANIFESTO: PELA CIDADANIA PLENA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA OU PESSOA

COM DEFICIÊNCIA, CIDADÃO DE DIREITOS.

CVI-Brasil, Rio de Janeiro, 27 de Agosto de 2009

No projeto de lei que prevê a criação do Estatuto da Pessoa com Deficiência estão inseridos programas,

serviços, atividades e benefícios, muitos deles ainda concebidos através de uma visão assistencialista e

paternalista e por vezes até autoritária em relação às pessoas com deficiência.

Isto porque muitos ainda nos veem como objeto de caridade, como incapazes e sem direito de fazer nossas próprias escolhas, tomar decisões e assumir o controle de nossas vidas.

Este projeto de lei, resultado de consultas públicas ao longo de alguns anos, como dizem seus defensores, altera a legislação vigente nos eixos da educação, saúde, trabalho, transportes e outros, enfim, altera as leis

que hoje cunham as políticas públicas em todas as esferas de governo: federal, estadual, municipal e

distrital.

Sabemos que vários interesses conflitantes permeiam cada um dos temas tratados no Estatuto. São

interesses políticos, econômicos e corporativos que não representam as atuais conquistas do movimento

das pessoas com deficiência.

O exemplo disto é a luta para que o Ministro da Educação, Fernando Haddad, homologue a Resolução nº.

13 do Conselho Nacional de Educação, um avanço inequívoco e necessário, que ressalta a importância do Atendimento Educacional Especializado (AEE) necessariamente no contraturno. atendendo às

especificidades dos alunos com deficiência, de acordo com o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência, ratificada através do Decreto Legislativo 186/2008, com status de emenda

constitucional, e regulamentado pelo Decreto 6946/2009.

Ora, se nos deparamos com uma situação como esta no Executivo, em apenas um eixo que é a Educação,

o que se pode dizer em relação ao Projeto de Lei do Estatuto quando for votado na Câmara Federal? Qualquer parlamentar poderá sugerir emendas e alterar significativamente o texto, por melhor que ele seja

construído.

Dizer que o Estatuto é inevitável e por isso temos que colaborar para que o seu texto seja menos ruim, é

negar anos de luta do Movimento das Pessoas com Deficiência que desde 1981 - Ano Internacional das

Pessoas Deficientes - começou a exigir "participação plena e igualdade de oportunidades". De lá para cá

muitas ações reforçaram esta exigência. Nosso Movimento foi autor de alguns artigos da Constituição Federal de 1988 e conseguiu aprovar e barrar inúmeras leis.

O Estatuto é uma volta ao passado, quando os instrumentos legais e recomendações internacionais eram direcionados ao assistencialismo às pessoas com deficiência.

Nos tempos atuais um estatuto específico para nós é um contra-senso e um retrocesso, se coloca na contramão da evolução histórica, prejudicial ao reforçar a imagem de inválido e coitadinho, levando a

sociedade a continuar tratando a pessoa com deficiência como um ser desprovido de capacidade. Desta

forma, o Estatuto legitima a incapacidade e oficializa a discriminação contra a pessoa com deficiência ao

separá-la das leis comuns.

O Estatuto é desnecessário, pois a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, maior

conquista da história mundial dos direitos humanos, já faz parte do nosso arcabouço legal, bastando ajustar nossa legislação à ela. Já existe um estudo, encomendado pela CORDE e patrocinado pela

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UNESCO, que faz um paralelo entre a Convenção e a Legislação existente e aponta as alterações

necessárias.

Nossa luta urgente é pela criminalização da conduta discriminatória contra as pessoas com deficiência.

Estamos caminhando para que a sociedade perceba que a pessoa com deficiência faz parte da população e

é titular de todos os direitos, obrigações e liberdades fundamentais. Deverá ficar claro que, nas leis

comuns, a pessoa com deficiência está incluída com o mesmo direito aos serviços oferecidos à população e que serão previstas especificidades de usufruto somente quando as condições de uma determinada

deficiência assim exigir.

Em tal contexto, não haverá lugar para um Estatuto separado sobre as pessoas com deficiência. Todas as

eventuais vantagens de um instrumento como este não compensam a anulação do processo de

amadurecimento, evolução e conquistas do movimento das pessoas com deficiência nos últimos 30 anos,

no Brasil.

Decreto 6.980/09

13 de Outubro de 2009 – Artigos 14 e 15

Art. 14. À Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência compete:

I - assistir o Secretário Especial nas questões relativas a pessoas com deficiência;

II - exercer a coordenação superior dos assuntos, das ações governamentais e das medidas referentes à

pessoa com deficiência;

III - coordenar ações de prevenção e eliminação de todas as formas de discriminação contra a pessoa com

deficiência e propiciar sua plena inclusão à sociedade;

IV - coordenar, orientar e acompanhar as medidas de promoção, garantia e defesa dos ditames da

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, mediante o desenvolvimento de políticas

públicas de inclusão da pessoa com deficiência;

V - estimular que todas as políticas públicas e os programas contemplem a promoção, a proteção e a

defesa dos direitos da pessoa com deficiência;

VI - coordenar e supervisionar o Programa Nacional de Acessibilidade e o Programa de Promoção e

Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como propor as providências necessárias à sua

completa implantação e ao seu adequado desenvolvimento;

VII - desenvolver articulações com instituições governamentais, não-governamentais e com as associações

representativas de pessoas com deficiência, visando à implementação da política de promoção e defesa dos direitos da pessoa com deficiência;

VIII - estimular e promover a realização de audiências e consultas públicas envolvendo as pessoas com

deficiência nos assuntos que as afetem diretamente;

XI - fomentar a adoção de medidas para a proteção da integridade física e mental da pessoa com

deficiência;

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X - coordenar as ações de prevenção e de enfrentamento de todas as formas de exploração, violência e

abuso de pessoas com deficiência;

XI - acompanhar e orientar a execução dos planos, programas e projetos da Política Nacional para Inclusão da Pessoa com Deficiência;

XII - assessorar o Secretário Especial na articulação com o Ministério Público, os órgãos dos Poderes

Judiciário, Legislativo e Executivo federal e dos entes federados e entidades da sociedade civil nas ações de combate à discriminação da pessoa com deficiência;

XIII - emitir parecer técnico sobre projetos de lei afetos à área, que estejam em tramitação no Congresso Nacional, submetendo à consideração do Secretário Especial novas propostas legislativas de interesse da

Secretaria Especial;

XIV - propor e elaborar atos normativos relacionados à pessoa com deficiência, em sintonia com as

diretrizes do Secretário-Adjunto;

XV - analisar as propostas de convênios, termos de parceria, acordos, ajustes e congêneres na área da pessoa com deficiência, realizando o seu monitoramento e fiscalização da execução física, no âmbito da

política nacional de inclusão da pessoa com deficiência;

XVI - participar da elaboração da proposta orçamentária da Secretaria Especial, conforme orientação do

Secretário Especial;

XVII - fomentar a implantação de desenho universal e tecnologia assistiva requeridas pelas pessoas com deficiência na pesquisa e no desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações;

XVIII - coordenar a produção, a sistematização e a difusão das informações relativas à pessoa com deficiência, gerenciando o sistema nacional de informações sobre deficiência e outros sistemas de

informações sob sua responsabilidade, em articulação e conforme as diretrizes estabelecidas pelo

Secretário-Adjunto;

XIX - apoiar e promover estudos e pesquisas sobre temas relativos à pessoa com deficiência para a

formulação e implementação de políticas a ela destinadas;

XX - apoiar e estimular a formação, atuação e articulação da rede de Conselhos de Direitos das Pessoas

com Deficiência;

XXI - propor e incentivar a realização de campanhas de conscientização pública, objetivando o respeito

pela autonomia, equiparação de oportunidades e inclusão social da pessoa com deficiência;

XXII - colaborar com as iniciativas de projetos de cooperação sul-sul e de acordos de cooperação com organismos internacionais no que tange à área da deficiência;

XXIII - exercer as funções de Secretaria-Executiva do CONADE e demais órgãos colegiados afetos à

Subsecretaria, zelando pelo cumprimento de suas deliberações;e

XXIV - exercer as funções de Secretaria-Executiva da Comissão Interministerial de Avaliação, de que

trata o Decreto nº 6.168, de 24 de julho de 2007; e

XXV - realizar outras atividades determinadas pelo Secretário Especial.

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Art. 15. Ao Departamento de Políticas Temáticas dos Direitos da Pessoa com Deficiência compete:

I - coordenar e supervisionar a elaboração dos planos, programas e projetos que compõem a política nacional de inclusão da pessoa com deficiência, bem como propor providências necessárias à sua

completa implantação e ao seu adequado desenvolvimento;

II - apoiar e promover programas de formação de agentes públicos e recursos humanos em acessibilidade e tecnologia assistiva, fomentando o desenvolvimento de estudos e pesquisas nesse campo de

conhecimento;

III - cooperar com Estados, Distrito Federal e Municípios para a elaboração de estudos e diagnósticos

sobre a situação da acessibilidade arquitetônica, urbanística, de transporte, comunicação e informação e

tecnologia assistiva;

IV - fomentar e apoiar a especialização e a formação continuada dos atores e parceiros na execução da

Política Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência;

V - orientar e monitorar o desenvolvimento das normas e diretrizes para acessibilidade;

VI - supervisionar os trabalhos do Comitê de Ajudas Técnicas; e

VII - assistir o Subsecretário de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência em suas atribuições.