Capítulo 1 - martinsfontespaulista.com.br · 20 Santos Dumont, inventor do aparelho de vôo mais...

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18 Capítulo 1 Naquele final do século XIX, Santo Antônio da Cachoeira era um casario de telhas de barro, cortado pelas ruas calçadas de pedra, nas colinas ondulantes onde acaba a Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. A edificação mais proeminente era a torre da igreja matriz, na Cidade Alta, morro que despontava no meio de um vale. Dali saíam as ruas do comércio e as alamedas residenciais que terminavam nas fazendas de café. Da Cidade Alta avistavam-se as colinas ao redor, encimadas por uma coroa de mata. Cachoeira ainda conservava certo isolamento selvagem, embora o povo local muito se orgulhasse de sua civilização. Ali encontrava-se a esse tempo Marciano Gonçalves Ferreira, patriarca de uma família de antiga linhagem, que remontava aos portugueses do Brasil colô- nia, cercada de pompa e tradição. Até sua ocupação era de herança, pois a boa família aristocrática, com seus muitos filhos, mais um sem-número de criados, escravos libertos e outros agregados, obrigava-se a colocar cada descendente num dos ramos de interesse do clã, tão numerosos quanto os filhos e vice-versa. Rezava o costume que o filho primogênito das velhas famílias mineiras havia de ser fazendeiro, ou administrador, para cuidar dos negócios, que vinham em primeiro plano, pois sem o dinheiro não se podem cultivar as outras virtudes. De forma a zelar pelos pais em idade mais avançada, o segundo filho precisava ser médico. E o terceiro, juiz de direito, para preservar a família na esfera da lei e assegurar sua respeitabilidade. Cabia ao filho mais novo, ou àquele que revelasse inteligência mais curta, a vida de padre, considerada menos exigente de predicados, mas igualmente indispensável para o bom funcionamento da família católica. Este último as- sumia as funções espirituais do clã. Assim, não faltaria à família quem pudesse batizar filhos e netos, celebrar casamentos, guardar segredos de confessionário e promover a concórdia, já que a batina, despindo seu ocupante de interesses terrenos, facultava a astúcia, mas barrava a ganância e a sordidez. Terceiro entre seus irmãos, Marciano acabara sendo o que se saíra melhor. Estudara em faculdade da capital, tornando-se advogado. Dizia-se dele que, no exercício da profissão em Jaguary, jamais perdera uma causa. Todos os negócios

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    Captulo 1

    Naquele final do sculo XIX, Santo Antnio da Cachoeira era um casario de telhas de barro, cortado pelas ruas caladas de pedra, nas colinas ondulantes onde acaba a Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. A edificao mais proeminente era a torre da igreja matriz, na Cidade Alta, morro que despontava no meio de um vale. Dali saam as ruas do comrcio e as alamedas residenciais que terminavam nas fazendas de caf. Da Cidade Alta avistavam-se as colinas ao redor, encimadas por uma coroa de mata. Cachoeira ainda conservava certo isolamento selvagem, embora o povo local muito se orgulhasse de sua civilizao.

    Ali encontrava-se a esse tempo Marciano Gonalves Ferreira, patriarca de uma famlia de antiga linhagem, que remontava aos portugueses do Brasil col-nia, cercada de pompa e tradio. At sua ocupao era de herana, pois a boa famlia aristocrtica, com seus muitos filhos, mais um sem-nmero de criados, escravos libertos e outros agregados, obrigava-se a colocar cada descendente num dos ramos de interesse do cl, to numerosos quanto os filhos e vice-versa.

    Rezava o costume que o filho primognito das velhas famlias mineiras havia de ser fazendeiro, ou administrador, para cuidar dos negcios, que vinham em primeiro plano, pois sem o dinheiro no se podem cultivar as outras virtudes. De forma a zelar pelos pais em idade mais avanada, o segundo filho precisava ser mdico. E o terceiro, juiz de direito, para preservar a famlia na esfera da lei e assegurar sua respeitabilidade.

    Cabia ao filho mais novo, ou quele que revelasse inteligncia mais curta, a vida de padre, considerada menos exigente de predicados, mas igualmente indispensvel para o bom funcionamento da famlia catlica. Este ltimo as-sumia as funes espirituais do cl. Assim, no faltaria famlia quem pudesse batizar filhos e netos, celebrar casamentos, guardar segredos de confessionrio e promover a concrdia, j que a batina, despindo seu ocupante de interesses terrenos, facultava a astcia, mas barrava a ganncia e a sordidez.

    Terceiro entre seus irmos, Marciano acabara sendo o que se sara melhor. Estudara em faculdade da capital, tornando-se advogado. Dizia-se dele que, no exerccio da profisso em Jaguary, jamais perdera uma causa. Todos os negcios

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    familiares passavam por sua mo, razo pela qual, j trazendo posses do bero, mais rico ainda ficou. Mais tarde, foi nomeado juiz de Cachoeira, cargo de grande relevncia, ainda mais naquela poca, em que o magistrado revestia-se de monumental autoridade. A cidade no era grande, mas l Marciano era o sbio, o justo, a encarnao da lei.

    Tinha quatro fazendas de caf, sem contar o que tirava da jurisprudncia. Em Cachoeira, possua uma casa de quatorze quartos em estilo neoclssico, como a prpria igreja matriz e tudo o que era ao gosto da poca. Com duas colunas de granito sustentando o fronto triangular da fachada, a casa de Marciano lembrava um templo greco-romano. O jardim da frente, gramado de forma impecvel, protegido por uma balaustrada coberta de hera que circundava a propriedade, sugeria a paz familiar. Atrs, no quintal de dez mil metros, havia um galinheiro e um lago com peixes e chafariz, alm de um dadivoso pomar.

    Dentro da casa, o mobilirio era sbrio. O peso das peas escuras de jacarand era contrabalanado pela leveza dos vasos de flores e o piano na sala alegrava os dias de domingo. Marciano passava boa parte do tempo em sua biblioteca particular, na qual se recolhia para a leitura e o exame de processos e documentos trazidos do foro. A festa era para a mulher, os freqentadores da casa e as crianas. Satisfazia-se em lhes proporcionar tudo aquilo.

    Naquela casa de tantos cmodos nasceu, numa noite de parto dolorido do ano de 1898, o primeiro dos filhos de Marciano, fruto de sua amada Car-melita. Gesto de brasilidade comum aos amantes do esprito positivista, que poca gostavam de dar aos filhos nomes indgenas, chamou-o Coracy, uma das muitas grafias surgidas em portugus para kuarahy sol, em tupi-guarani. Infundido daquele nacionalismo purista que levou bandeira brasileira o ordem e progresso dos seguidores de Augusto Comte, Marciano imaginava para seu rebento um futuro brilhante como o astro que d vida a este planeta.

    O menino cresceu sob as vistas do pai, correndo no quintal, mos e ps sujos de terra, com a boca sumarenta de comer jabuticabas, mangas, goiabas e laranja-pra do rio. Marciano vivia a cerc-lo de favores. Quando Coracy con-seguia pequenos triunfos na escola, dava-lhe doces e balas. Pedia a Carmelita, que trazia no pescoo a chave da despensa, onde grandes tachos de marmelada eram defendidos para a distribuio parcimoniosa ao longo do ms, que abrisse o ferrolho para fazer-lhe algum regalo. No lhe recusava nada. Nem o velocpe-de de ferro, com aquelas rodas enormes, encomendado na capital, que Coracy tinha visto numa fotografia reproduzida no jornal. Quem dirigia o veculo era o piloto mais famoso da poca, embora no em terra, mas em outro elemento:

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    Santos Dumont, inventor do aparelho de vo mais pesado que o ar, cujos feitos em Paris eram propalados pelo mundo inteiro.

    Mesmo para andar de velocpede, Coracy estava sempre de roupas novas, com golas brancas de bicos duros e um chapu de abas onduladas Santos Dumont. Em seus sonhos, planejava ser, como ele, inventor. Desejava criar uma mquina area muito mais potente, capaz at de atravessar oceanos. Pensava que, se Dumont tivera suas primeiras lies de aerodinmica obser-vando os sanhaos e tico-ticos do quintal em sua casa da mineira cidade de Palmira, sua grande descoberta havia ainda de estar ali, entre a cozinha de casa e o quintal. Misturava substncias, na certeza de que poderia produzir um potente combustvel para os novos blidos areos. Vivia a surrupiar farinhas, ovos, temperos e recipientes na despensa de modo a produzir suas estranhas misturas, para aflio da cozinheira Benedita, escrava liberta que estava com a famlia desde sempre.

    Em vez de ralhar com o menino, Carmelita aceitava os apelos de Marciano, que via brotarem ali os primeiros traos da genialidade familiar.

    No se deve tolher a capacidade inventiva dizia ele mulher. Est bem ela acabou por concordar, rindo. Mesmo que nos

    custe parte do jantar.Mal sado da alfabetizao, Coracy entrou no mundo da cincia pelo

    empirismo. Como nada do que produzia vindo da cozinha trazia o elemento explosivo de que necessitava, passou a ver possibilidades em outro tipo de matria. Observava a decomposio das fezes das galinhas, dos gansos e dos patos, das quais emanavam gases fedorentos e inflamveis. Imaginou logo que, se comprimisse num recipiente aquele material meftico, ele poderia obter o explosivo com a potncia necessria para movimentar futuros motores areos, com a vantagem visionria de promover ao mesmo tempo a limpeza do meio ambiente. Transformou em laboratrio um velho galpo do quintal, onde passava o dia ocupado com suas misturas. Por isso que, mesmo depois de banhos de gua quente e muita esfregao com creolina, passara a exalar involuntariamente um certo cheiro de galinheiro.

    Marciano via o filho com interesse, mas desde que o menino comeou a mexer em dejetos e a cheirar como eles ficou um pouco desconfiado. Era verdade que, se Dumont nascera em Palmira e podia fazer sucesso em Paris com seus veculos voadores, Coracy quem sabe fizesse ainda melhor. Nunca pensara antes, contudo, que o genial inventor recendesse a graxa ou outra substncia degradante. Por isso, pensou se no era melhor encaminhar logo o filho para algo mais certo e digno de um cavalheiro.

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    Tal impresso ganhou fora quando ficaram mais evidentes os perigos de se ter um inventor precoce dentro de casa. Certo dia, quando descansava na cadeira de balano de sua biblioteca, Marciano ouviu um estrondo seco vindo do velho galpo. Levantou s pressas. Logo a ele se juntaram Benedita e as outras criadas, vindas da cozinha, alm da prpria Carmelita, que naquela hora as ensinava a fazer um novo tipo de bolo. O galpo ainda estava l, mas em condies precrias. A porta pendia de um lado. O madeiramento, antes emparelhado, desconjuntara-se. Correram todos para dentro, temendo o pior. Com a colher de pau na mo, o avental sujo de farinha, Benedita foi a primeira a chegar, olhos arregalados.

    Ai, si, acuda!Acharam Coracy estirado no cho, coberto de guano, olhos esbugalhados,

    um riso de louco congelado no rosto. Perguntavam o que sentia, onde doa, mas ele nada podia escutar. Lembrava-se apenas do momento da exploso: de repente tudo ficara preto e agora surgia aquela gente irreal, mexendo as boquinhas em silncio, como peixes no aqurio. Suas mos estavam enegrecidas e duras como as de uma mmia.

    As criadas retiraram Coracy com delicadeza, procurando manter o nariz o mais distante possvel do patrozinho malcheiroso. Na cama de jacarand do menino, cujos lenis impecveis Benedita queimaria mais tarde no quintal, com expresso de repugnncia, ele foi limpo e medicado. Na verdade, no havia muito o que fazer, exceto aplicar-lhe compressas de gua fria na testa.

    Aos poucos, Coracy pde mexer as mos e as demais faculdades comearam a retornar. Depois de algumas horas, voltou a ouvir, ainda que o som ambiente viesse acompanhado de um zumbido de cigarra.

    O episdio ofereceu a Marciano o pretexto para mandar derrubar de vez o velho galpo, em lugar de consert-lo. E, com isso, encerrou as experincias cientficas do filho. No convinha a um menino que um dia tomaria conta dos seus negcios arriscar-se com explosivos caseiros.

    Coracy reclamou. Mas logo agora, quando eu estava to perto do combustvel perfeito

    para voar! D-se por muito feliz de ainda estar vivo cortou o pai. Quem

    quase saiu voando foi o autor da inveno. E acabou-se a conversa.O menino adorava o pai. Esprito inquieto, gostava de Santos Dumont,

    com seus feitos extraordinrios, mas seu maior dolo era mesmo Marciano. De semblante austero, bigode longo, terminado em curvas cuidadosamente retorcidas, o pai era a imagem da serenidade. Impecvel, punha reparo em

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    tudo, sem deixar de ser querido e respeitado, no s em casa como em toda a cidade.

    To rigoroso era Marciano que em Cachoeira nada saa da lei, com ex-ceo dos dias de entrudo, o carnaval antigo, quando o povo ia para o clube da cidade, com pouca roupa, garrafas de aguardente na mo, comemorar um pouco de liberdade. Caam na farra todos, incluindo o prefeito e o delegado, que terminavam as noitadas brios como todos os outros a quem deviam policiar. Nesses dias, e somente nesses dias, Marciano se rendia. Em toda a cidade, era o nico a no participar das festividades, preferindo trancar-se em sua biblioteca, lendo um livro. Depois, ia dormir.

    No vou a baile de entrudo explicava ele porque, se for, tenho que mandar fechar.

    Sua conduta era exemplar. Nunca bebia. A exceo eram as noites de Natal, para as quais Marciano preparava o ponche, sua especialidade. Trazia champanhe da capital, misturava-o s frutas com uma receita prpria, bebia o resultado ao longo da ceia com visvel prazer e limpava os longos bigodes delicadamente com um guardanapo de linho. Era o pequeno pecado que ele se permitia cometer, uma nica vez ao ano. Como bebida alcolica, estava proibida s crianas. Contudo, Marciano deixava Coracy provar um pouqui-nho. Aquela pequena concesso, para o menino, teria para sempre o gosto do Natal.

    A me, Carmelita, Coracy idolatrava ainda mais. Tinha sorriso de santa, doce e suave, e os modos muito justos, vindos da mais perfeita criao. Era da famlia Amaral, de muito respeito nas Minas daquele tempo. Usava camisa de golas de renda e era disso que Coracy muitos anos depois se lembraria, pois ela se deitava ao lado da cama, com o busto inclinado sobre ele, para faz-lo rezar antes de dormir. Coracy poderia viver assim para sempre. Se havia um mundo perfeito, era aquele imaginado para fazer as crianas felizes, antes de desferir os golpes e perpetuar as frustraes que as atiram na vida de adultos.

    E foi dessa forma que, pelo menos para ele, aconteceu. Como na maioria das tragdias, aquela foi precedida de um perodo de grande alegria, pois logo se anunciou na casa de Marciano o nascimento do seu segundo filho. Agora que todos os cuidados pareciam ir para o beb em gestao, Marciano e a me tratavam de mim-lo como nunca, enchendo-o de presentes e ateno, para evitar cimes. Coracy at recuperou seu laboratrio, com a condio de que se dedicasse a investigaes menos perigosas.

    Ele j achava que receber um irmo estava associado a coisas boas, quan-do Carmelita comeou a dar sinais de passar mal. Volta e meia, o mdico da

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    famlia, o velho doutor Prado, que cuidara de Marciano desde a infncia, era chamado s pressas para examin-la a portas fechadas, cercado somente pelas criadas.

    Deixado do lado de fora, Marciano esperava de semblante fechado a volta do mdico com seu parecer. Coracy no sabia qual a doena da me, mas tudo lhe parecia natural. Imaginava que tirar um beb de dentro da barriga de uma mulher devia ser mesmo uma grande complicao.

    Certa noite de temporal, o doutor Prado foi chamado com urgncia ainda maior. Coracy, que dormia no seu quarto, foi acordado pelos troves misturados ao barulho das criadas esbaforidas pelos corredores. Abriu a porta de mansinho e viu quando elas passavam, buscando toalhas quentes na cozinha, que vinham brancas de quarar ao sol e voltavam de um vermelho vivo que se impregnaria em sua memria como no mais alvo algodo. Atrasado pela tempestade, o doutor Prado demorou a chegar. Quando surgiu, correu para o quarto de Carmelita, deixando atrs de si um rastro dgua.

    Ainda de camisola, o menino viu surgir Marciano, os bigodes hirtos, o rosto transtornado. Para buscar o mdico na chuva, calara suas botas de fazenda, que reboavam no assoalho de tbuas como se transferissem ao solo o peso que lhe caa sobre os ombros. Aquilo o assustou mais que o sangue das toalhas, mais que a corrida das criadas, mais que a trovoada. Nunca algo parecera abalar o pai, e v-lo daquela forma, merc do destino, fazia com que pela primeira vez desacreditasse no homem. Pois se Marciano, o juiz todo-poderoso, encontrava-se em desespero, o que dizer dos mais comuns mortais?

    Por deciso do pai, Coracy ficara distante de tudo. No viu a figura da me no velrio. Somente assistiu ao enterro, com o caixo j fechado, ao lado do pai. O grande homem se encontrava destrudo. A batalha da vida a nica que no se pode perder e, no entanto, o mais inevitvel dos fracassos.

    Uma multido comovida viu baixar o caixo negro levando Carmelita. Tudo o que Coracy conseguiu pensar foi na figura doce da me ao lado da cama, o sorriso santo, as mos postas, rezando para ele. No compreendia a realidade da morte e o efeito que aquele acontecimento teria em sua vida.

    Para Coracy, era como se a me continuasse em algum lugar. Ela no po-dia, simplesmente, desaparecer. S sentiu sua ausncia quando tudo comeou a se transformar sua volta. Aos poucos, deu-se conta de que o mundo como ele conhecia baixara terra junto com aquele caixo. Experimentaria a dor da pior maneira: prestao.

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    Daquele dia em diante, Marciano nunca mais foi o mesmo. A antiga for-taleza desmoronara. O pai, antes de presena to vistosa, se tornou soturno. Os criados procuravam cerc-lo de atenes, mas receavam aproximar-se dele, pois passou a ter sbitas exploses de fria. No comia. Esbravejava toa. Deixou o trabalho de lado. As contas se acumulavam na sua mesa. No fosse conhecido, res-peitado e at temido na cidade, teria sido atacado por um enxame de credores.

    Mesmo Coracy, quando tentava conversar com ele, era repelido. Marciano o olhava como se estivesse acometido de febre: suava, os olhos coruscavam, a boca ficava trgida. O menino que havia sido o nico fruto de Carmelita o fazia lembrar-se da mulher, o que para ele se tornava insuportvel. Passou a desaparecer de casa com freqncia, e s uma fora sobre-humana, segundo se dizia boca pequena na cozinha, o salvava da bebida. Por isso, todos deram graas a Deus quando ele comeou a freqentar a casa de sua prima Ana Umbelina ao final do prazo aceitvel para o luto.

    Como Marciano, Ana Umbelina era viva. Perdera o marido para a tuber-culose, de rpida e devoradora progresso, mas ficara com um filho, Joaquim, pouco mais novo que Coracy. certo que na terra arrasada nada consegue bro-tar, muito menos o amor, mas Marciano encontrou na casa de Ana Umbelina algum amparo para sua dor. Antes, julgara sua perda incomparvel, pois alm da esposa perdera um filho. No entanto, Ana Umbelina tambm tivera seus dias de sofrimento. Saber que algum podia, mesmo de longe, compreender o que ele passara dava-lhe algum alvio.

    Ana Umbelina logo viu vantagens em unir-se ao juiz. Deixada com um filho por criar, o instinto de preservao a colocara pronta para varrer a lembrana da viuvez recente em favor da sobrevivncia. Dizia que sempre gostara do primo, mas s agora podia dar vazo quela antiga paixo, para ocultar, ainda que mal, a pura convenincia. Mesmo que fosse um rasgo do antigo homem, Marciano ainda tinha posses. Na sua casa, Ana Umbelina certamente encontraria a mesa farta e educao segura para o seu Joaquim, chamado carinhosamente de Quinzinho. E no descartava, para assegurar esse lao salvador, ter outros rebentos que sacramentassem to proveitosa acomodao.

    Marciano passou a visitar Ana Umbelina com regularidade, mas Coracy s conheceu a madrasta quando o pai oficializou o casamento civil e a trouxe para casa, j na condio de esposa. Primeiro, deu-lhe ordens de que pedisse a bno recm-chegada. Coracy teve de vergar-se diante daquela impostora para lhe beijar a mo, como fazia com sua prpria me.

    Bena pediu.

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    Est abenoado.Em seguida, Ana Umbelina tratou de lhe apresentar seu prprio filho. Este Quinzinho. Trate-o muito bem. Quinzinho seu primo acrescentou Marciano. De agora em

    diante ser primo e tambm irmo.Foi um choque ver entrar na casa que ainda considerava de sua me todos

    aqueles estranhos, mais os bas, arcas e trouxas de sua gigantesca bagagem. Com seu rosto ossudo, realado pelo coque preso nuca, disfarando um pouco o cabelo pixaim que denunciava a investida de algum ancestral sobre as negras da senzala, a madrasta parecia ainda mais dura e austera que o prprio Marciano. Mesmo ele s se dirigia mulher como os criados, chamando-a de Sinh.

    Ana Umbelina chegou com muita energia, decidida a se estabelecer como nova senhora, mandando embora antigos criados sem d. Um a um, Coracy viu sarem os jardineiros, as cozinheiras, as mucamas, todos substitudos por gente da confiana da nova patroa. tavolagem, logo seguiu-se a moblia, retirada pouco a pouco, dolorosamente: a mesa entalhada de peroba, as cristaleiras que-ridas de Carmelita, os criados-mudos e a cama macia de jacarand. As peas foram colocadas venda, para que entrasse tudo novo, de mesma qualidade, mas desenho diverso, a grandes expensas. Era a maneira de Sinh Umbelina arejar a casa, espantando seus fantasmas.

    Coracy amadureceu em pouco tempo. Aos doze anos, admirava-se de que o pai aceitasse tudo aquilo de bom grado. Marciano, contudo, cedera necessidade de renovao como se fizesse parte do seu tratamento para esquecer a tristeza que o paralisara. Deixara-se convencer por Sinh Umbelina, no incio de maneira parcial, depois completamente, de que a mudana era tambm indispensvel para a futura felicidade conjugal. Via satisfeito a mulher tomar as rdeas da casa, dar-lhe outros ares: um sopro de vida num lar que tambm parecia ter expirado.

    Para Coracy, o efeito era o contrrio. A cada pea que se retirava de dentro de casa, apagava-se um pedao do seu mundo. Em pouco tempo, era como se no soubesse mais onde estava. Procurava recolher-se em seu laboratrio, mas logo Sinh Umbelina tratou de fazer chegar ali tambm sua jurisdio. Solicitou a Marciano que utilizasse o galpo para abrigar o futuro estdio de pintura de Quinzinho, pois o menino estudaria, era certo, artes plsticas. Teria condies, segundo ela, de ser o Botticelli brasileiro.

    Ademais, a pintura uma prtica bem menos perigosa do que os es-tranhos experimentos que ocupam aquele lugar.

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    Claro que Marciano iria contrariar o filho, mas de todo modo nunca gos-tara muito daquela atividade. Achou a um pretexto para encerrar as pretenses de Coracy e dirigi-lo para algo mais promissor. Mandou trazer o filho sua biblioteca para lhe dar a notcia da iminente destituio.

    Fica melhor assim garantiu o pai. Temos que pensar em verda-deiras oportunidades para voc.

    Esse garoto que est aqui em casa no tem direito a mais oportunidades que eu disse Coracy.

    Nem voc tem mais direito do que ele. E Quinzinho no sim-plesmente um garoto. Tem a sua idade e agora seu irmo. Est encerrada a conversa.

    Coracy, que nunca ousara enfrentar o pai, encarou-o com fria letal. Ainda lhe faltava, porm, coragem de alar a voz. Sofrendo pela derrota e com a prpria covardia, foi para o quarto, onde afundou entre os travesseiros, silenciosamente. J bastava tanta vergonha: no queria que o ouvissem chorar.

    No reconhecia mais em Marciano seu antigo pai. O juiz passara para o lado da madrasta. E, decididamente, ficara contra ele. Naquela casa, antes de to boas lembranas, tudo o que se referia a Carmelita era agora detestado ou proibido. Coracy sentia-se a encarnao de tudo o que Sinh e Marciano gostariam de apagar. Era como se ele prprio fosse culpado pelo sofrimento do pai e sua presena tivesse se tornado um inconveniente. No era justo, pensava. Depois de perder a me, de certa forma perdia tambm o pai.

    Sua raiva, porm, no se voltou contra Marciano. Coracy entendia o suficiente das coisas para perceber que o pai sofria a influncia mefistoflica de Sinh. Ela o enredara e o jogava contra o prprio filho. Perdoar uma arte para poucos e exclui os meninos. Daquele dia em diante, Coracy resolveu declarar guerra a Sinh. No uma guerra aberta, pois esta ele perderia. Era a guerra como a que Sinh lhe ensinara, silenciosa, matreira e eficiente, destinada a causar madrasta o maior nmero possvel de aflies. Ele era o ltimo fantasma da casa e trataria de assombr-la.

    Em territrio ocupado pelos criados que deviam agora fidelidade a Sinh, movimentava-se como um conspirador. Foi com cuidados de malandro e in-teno subversiva que misturou sorrateiramente na cozinha uma quantidade de laxante na sopa que Sinh, religiosamente, tomava antes de se deitar.

    Depois do jantar daquela noite, Sinh teve uns estranhos sintomas, que a levaram a retirar-se mais cedo. Passou a noite no banheiro, a desfazer-se em atividades fisiolgicas. Preocupado, Marciano mandou chamar o doutor Prado, que procurou medic-la com lavagens. Pela manh, Sinh surgiu para o desjejum

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    plida de cera. Suspeitava do que lhe tinha acontecido. Com o olhar vagando raivosamente entre Coracy e os criados, porm, muito ao seu feitio, guardou para depois sua vingana.

    Ao beijar a mo de Sinh naquela manh, em vez de sentir-se submeti-do, subjugado, humilhado, Coracy era o lobo em pele de cordeiro. Passara a vislumbrar inmeras possibilidades de pequenos triunfos. Aprendia a arte da dissimulao, importante no tipo de guerrilha que pretendia empreender. E apenas comeava.

    Numa noite de calor, logrou jogar uma ratazana pela janela do quarto de banho, no momento em que Sinh se lavava. Ficou espera do resultado. L dentro, o silncio. Levou algum tempo at que Ana Umbelina identificasse a coisa preta que se mexia dentro da gua perfumada da banheira. Quando se deu conta do que se tratava, o efeito foi imediato. Coracy ria, enquanto ouvia a madrasta espadanar-se, pedindo socorro.

    O prazer de ouvir os gritos da vtima fez com que Coracy se demorasse demais no local do crime. Acabou visto por um criado. Apanhado em flagrante, foi chamado s falas por seu pai. O guerrilheiro tivera carreira curta.

    Recomposta, Sinh Umbelina compareceu para assistir ao castigo exemplar, ministrado na cozinha, de modo a ser testemunhado tambm pela criadagem. Sob as ordens de Marciano, Coracy baixou as calas, o suficiente para receber na parte superior das ndegas doze lambadas de cinta que lhe tiraram o couro e o orgulho de uma s vez. Nunca apanhara do pai e jurou entre dentes que seria a primeira e ltima vez. Quando se virou para ir embora, notou em Sinh a sutil satisfao que lhe sombreava o canto dos lbios.

    A partir daquele dia, Coracy curtiu cada minuto de seu padecimento lombar com uma promessa de revanche, mas sem queixas, lamentos ou gemi-dos. Ardendo naquele fogo interior, esquecia-se de tudo o mais, a comear pelo mais fcil: a escola.

    No Colgio Marista, Coracy logo ganhou fama de aluno relapso. Os boletins que paravam nas mos de Marciano s lhe davam motivo para no-vas censuras. O pai lhe citava Quinzinho, estudante exemplar. Tirava boas notas, andava asseado, afetava fineza de lorde ingls. Coracy, ao contrrio, passara a andar de cabelos revoltos, sempre sujo depois de rolar ao cho em brigas homricas, nas quais distribua seu mau humor entre os colegas de classe com os punhos fechados. Volta e meia, os maristas o encaminhavam para casa suspenso.

    Esse menino um terror disse Sinh.

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    Ele sempre foi um pouco diferente, mas costumava ser um bom me-nino objetou Marciano. A perda da me no deve ter sido fcil, preciso compreender.

    m influncia para Quinzinho disse ela. E tambm para ti. Mal podes v-lo, pelas lembranas do passado. Deverias pensar mais no futuro.

    O futuro j estava a caminho. Sinh tomou a mo de Marciano e colocou-a sobre seu ventre.

    Sinta, est maior disse ela.Marciano retirou a mo. Tinha sentimentos contraditrios. No passado,

    aquele tipo de notcia desaguara na mais profunda tristeza. Sorriu, mas sem alegria. Sinh Ana Umbelina fingiu acreditar que as rugas na testa do marido eram apenas preocupao com a sade dela.

    Sou boa parideira disse. Espero que seja uma menina. preciso um pouco mais de presena feminina nesta casa.

    Ao saber que a madrasta esperava um filho, desapareceu o fiapo de es-perana nutrida por Coracy de que o casamento de seu pai se arruinasse. Ao mesmo tempo, surgia outra esperana, embora terrvel, inconfessvel um sopro diablico. Quando o ventre de Sinh cresceu, chegou a esperar, ou mais, desejar que morresse, como sua me. No achava justo a vida levar os bons, deixando os maus com sade, alegria e dinheiro. A felicidade no devia estar reservada somente s pessoas que no a mereciam.

    Embora mida, Sinh tinha constituio forte. Resistiu bem ao parto, executado em casa pelo doutor Prado. Coracy, que esperara o resultado do lado de fora, junto ao pai, rodo de impacincia, viu quando Marciano foi chamado. Voltou l de dentro exibindo a criana nas mos, ainda suja de sangue, erguen-do-a sobre a cabea, exultante. Andou entre os criados e saiu para o quintal, mostrando-a aos cus, como um trofu.

    um menino! Um menino!Para Marciano, foi como se tivesse trazido de volta uma vida que antes

    perdera. Deu ao rebento o nome de Jurandyr. Naquela casa, receberia tratamento principesco.

    Sinh, que j podia tudo, consolidara sua posio dando ao marido outro filho natural. A contragosto, Coracy entendeu que teria de se conformar com a situao. Pensou: se Deus existe, ele no interfere. Seria mais esquecido do que nunca, ou mesmo substitudo. Porm, no dirigiu sua raiva ao beb. Ao contrrio, era com ele que se consolava. Entrava escondido no seu quarto para lhe fazer festa. Era como se o pequeno Jurandyr fosse a nica criatura merecedora de seu amor, pois na sua inocncia absoluta ainda no se instala-

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    ra o Mal. Aquela criana no tinha culpa do oportunismo, da crueldade, da vileza da me.

    Aos poucos, acostumou-se com a idia de ter um novo irmo. Aproxi-mou-se um pouco mais at de Quinzinho, que de fato no lhe fizera nada. O filho de Sinh tinha reais dotes artsticos: fizera um desenho a bico de pena de Marciano que deixara o retratado cheio de admirao. Quinzinho aos poucos conquistava o afeto do patriarca, embora Coracy no desse maior importncia ao fato. Ainda era o primognito de Marciano. Por mais que fizessem, seu lugar ningum roubaria.

    Tambm Sinh, que representava para ele a destruio de um doce passado, pelos ns e reviravoltas do destino, seria responsvel pelo melhor de sua vida, ainda que involuntariamente. Ele ainda no sabia disso, at que ouviu numa tarde aqueles acordes que entrariam em seus ouvidos como o chamado das sereias.

    To logo saiu do resguardo, Sinh passou a dar aulas de piano, um trabalho que a distraa sem tir-la de casa. Trouxera para a casa de Marciano um Steinway de cauda, importado dos Estados Unidos pelo falecido primeiro marido. Mandara plantar o instrumento no que ficou sendo uma sala de msica, interditada para os demais ocupantes da casa nas suas horas de trabalho, de modo a impedir perturbaes.

    Sinh logo passou a ser requisitada como educadora musical, menos por virtuosismo do que pela energia com que procurava extrair de seus alunos o talento. Disciplinadora feroz, usava a rgua para corrigir as mos daqueles que porventura atropelassem o toque do metrnomo, aplicando bolos sem d nem piedade. Coracy receava entrar na lista dos seus alunos, o que lhe daria mo-mento, pretexto e autoridade para fustig-lo vontade. Assim, procurava jamais demonstrar interesse e aptido musical e ocupar-se em outro lugar.

    Passava a maior parte do tempo no Colgio Marista, inscrito em todas as atividades possveis, do futebol ao gamo. Nem a missa perdia. Durante o perodo de frias, quando o colgio fechava, devolvendo-o ao lar, ocultava-se em casa de amigos ou na vizinhana. Caava passarinhos nas matas prximas cidade, pescava, jogava bola. Quem no visto no lembrado.

    Mesmo assim, era inevitvel volta e meia encontrar Sinh. Dentro de casa, Coracy era implacavelmente torturado pela onipresena fsica e sonora da madrasta, que comandava a criadagem aos gritos e martelava seus ouvidos com os acordes provenientes da sala de msica. Alm do som do piano, vinham das aulas de msica as lamrias entrecortadas do alunos. Todos sabiam: uma nota

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    atravessada, e paf! Cantava a rgua de Sinh. Coracy erguia os ombros, sentindo o castigo na prpria pele. s vezes, o aluno enrolava-se no prprio nervosismo e levava a um castigo aps o outro, numa seqncia torturante para o supliciado, que terminava a aula num choro abafado.

    Testemunha involuntria, Coracy comeou a solidarizar-se com as vtimas de sua madrasta. Sentia compaixo por aquelas crianas que passavam pela rgua implacvel de Sinh, da mesma forma que tivera de se submeter a ela. Todos tinham de engolir sua raiva diante do despotismo daquela mulher. Havia um menino rotundo que no passava do bife, debalde todos os seus esforos. Um outro que chorava antes mesmo de comear, j antevendo o castigo. E uma menina que chamava ainda mais sua ateno. Tinha dedos e voz doces, tocava e cantava muito bem, mas recebia de Sinh o mesmo tratamento cruel destinado ao seu aluno mais trapalho.

    Aquilo o deixara intrigado e enfurecido. Que motivo teria Sinh para cometer tamanha injustia, alm da pura maldade?

    Passou a se interessar pelo que se passava l dentro da sala de msica. Foi consultar Benedita, a cozinheira. Ligada a Marciano, a quem ajudara a criar desde a infncia, fora a nica a escapar da renovao geral que Ana Umbelina fizera entre os empregados. Estando sempre em casa, e de ouvidos atentos entre a criadagem, decerto sabia muita coisa.

    Quem a aluna de Sinh que vem s teras e quintas? perguntou Coracy.

    Eleonora, filha do doutor Olinto Amaral respondeu Benedita.Coracy ainda no sabia como, mas gostaria de ajud-la. Encontrava o ver-

    dadeiro sentido do herosmo. Desejava salvar os outros, ainda que no pudesse salvar a si mesmo. A crueldade da madrasta dava-lhe coragem para agir.

    Certo dia, na hora da aula de Eleonora, ele escalou os galhos mais baixos de uma pitangueira do quintal, de onde podia espiar a sala de msica pela janela, oculto entre folhagens. Sinh mantinha-se atrs da menina que tocava, olhos fixos na partitura, enquanto o metrnomo tiquetaqueava implacavelmente.

    De longe, Coracy viu da aluna somente os cabelos cacheados. No devia ter mais que dez anos, mas Sinh a tratava como uma velha escrava. Dava-lhe ordens aos brados. Por qualquer nota da qual no gostasse, certa ou no, tomava da rgua de madeira e fustigava-lhe a mo.

    Coracy dividiu com Eleonora aquele sofrimento silencioso. Quanto mais Sinh batia, mais nervosa ela ficava e mais errava. Naquele dia, apanhou at chorar debruada sobre o teclado. Suas mos tremiam.

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    Que Sinh quisesse maltratar Coracy, privando-o das lembranas da me, alm do carinho de seu pai, ele podia compreender. Contudo, castigar daque-la forma uma menina inocente, por puro mau gnio, era demais. Um calor esquentou-lhe o peito como lava vulcnica. Saltou para o cho e rumou com passo duro para a sala de msica, sem pensar no que faria l.

    No momento em que se aproximou, a porta repentinamente se abriu antes de ele entrar. Olhos estalados, afogueada pelo choro, Eleonora trazia as mos cruzadas no peito como pssaros feridos.

    Coracy se colocou entre ela e Sinh. Megera disse Coracy, em tom cavo. Meu pai saber o que voc

    faz.Sinh abriu os olhos de espanto. Com a mo, fez sinal para Eleonora

    sair. A menina obedeceu. Recobrando-se da surpresa, Sinh encarou Coracy. Era feita de empfia; no a perderia diante daquele fedelho. Ele lhe devia respeito.

    Seu pai que saber que voc resolveu me enfrentar disse ela, e o canto da boca se contraiu num sorriso que antecipava o castigo.

    De punhos cerrados, Coracy sustentou o olhar de Sinh. Apesar de toda a dureza que procurava demonstrar, ela se assustou. O menino estava quase a amea-la fisicamente. Isso era inadmissvel, mas sentiu-se impotente: a raiva fizera o enteado perder-lhe o medo.

    Pela primeira vez, Coracy sentiu seu poder. Deu-se conta de que j no era to criana. Avanasse um passo, Sinh recuaria outro. Contudo, tinha outra preocupao. Virou-se e saiu clere pelo corredor, na direo da cozinha. L, tomou um pote de mel. Correu para a rua. Apressada, Eleonora virava a esquina a caminho de casa.

    Espere bradou Coracy.Eleonora parou. Examinou o menino que surgia inesperadamente

    pela segunda vez, assombrada. No acreditava que algum pudesse desafiar Sinh.

    Coracy abriu o pote. Com o dedo indicador, extraiu uma boa poro de mel.

    D as suas mos.Eleonora no compreendeu, mas obedeceu. Coracy distribuiu o mel pelas

    costas das suas mos, cobertas de verges da cor do fogo. fresco, vai ajudar disse ele.Eleonora olhou para Coracy. No soube o que dizer, ou como agradecer.

    Deu um sorriso triste de quem ainda sentia dor. Algo acontecia ali entre eles

  • 32

    que nenhum dos dois entendeu. Interpretou aquele sentimento apenas como um certo medo e teve pressa de ir embora.

    Obrigada murmurou ela. Preciso voltar para casa, mame no quer que eu fique na rua.

    Est bem.Eleonora correu. Parecia to assustada com o que ele fizera quanto ao ser

    castigada por Sinh. Confuso, Coracy deu meia-volta e entrou novamente em casa.

    Sabia que estava numa encrenca sria. Precisava falar com Marciano antes que Sinh envenenasse o pai contra ele. Porm, a madrasta pensara da mesma forma e no fim da tarde, quando o juiz chegou em casa, tomou-lhe a dianteira. Esperou Marciano porta, pegou-o pelo brao e levou-o imediatamente para a biblioteca.

    Contou o ocorrido. Segundo sua verso, Coracy a esperara depois da aula e a ameaara fisicamente sem nenhuma explicao. Chegara a lhe mostrar os punhos fechados.

    Mas o que deu nele? murmurou Marciano, perplexo. Creio que atribui a mim todo o mal que lhe aconteceu disse Sinh.

    preciso compreender. Assim como voc, ele perdeu Carmelita. Isso no lhe d o direito de amea-la. Nem vejo um castigo bom o

    bastante para coisa de tal gravidade. Ento no d nenhum disse Sinh. De nada adiantaria.E, no seu tom mais contemporizador, aproximou-se do marido. Coracy no saiu do meu ventre, mas voc sabe que o vejo tambm

    como um filho natural prosseguiu. Quero o melhor para ele. Acredito nos seus bons propsitos. O problema, meu querido, que eu j no tenho controle sobre Coracy.

    Logo ele ser homem feito e perdeu a disciplina. Toda vez que falo, como se emitisse uma sentena que ele deseja contrariar. V em mim uma usurpadora do lugar de sua me. Est se transformando em um rebelde.

    E qual seria a soluo? Vamos mand-lo a um colgio interno.Com as mos fechadas sob o queixo, Marciano pensou no que Sinh

    acabava de lhe dizer. Na realidade, j havia pensado antes naquilo. Lembrou-se do Seminrio Premostratense, fundado pelos irmos da ordem de So Norberto em Pirapora, ao p das colinas cobertas pela mata ao longo do rio Tiet, em So Paulo. Os padres belgas que o dirigiam aplicavam a rigorosa disciplina clerical aos jovens de mau comportamento, levados ao colgio interno por pais insatisfeitos.

  • 33

    Viviam em clausuras como as dos prprios padres, repetindo em tudo sua vida asctica. Depois do ensino fundamental, podiam entrar para o seminrio. Sem dvida, era um meio de manter seu filho na linha.

    Mandar Coracy a Pirapora era uma dura deciso. O apoio da mulher, porm, reforava suas convices. No tinha tempo nem jeito de tomar a seu cargo a educao do filho. Coracy acreditava-se o dono da casa, por ser o primognito. Se Sinh no podia control-lo, tinha de aprender uma lio de humildade. E o princpio da humildade a privao.

    Est bem disse ele. Farei os arranjos.Depois de passar bom tempo na porta da biblioteca espera do pai,

    Coracy pressentiu que estava condenado antes mesmo de ser ouvido. Quando Marciano saiu do encontro com Sinh, passou por ele sem uma palavra. E no teve coragem de abord-lo para erxplicar-se.

    Nos dias seguintes, Coracy esperou algum castigo. Durante o jantar, pouco se falava. Marciano sentava cabeceira, com Sinh sua direita. Coracy e Quinzinho procuravam no romper o silncio. Certa noite, enfim, Marciano chamou Coracy biblioteca. Encontrou o pai sentado em sua poltrona de couro, a encarnar a figura do juiz.

    Voc nega ter enfrentado sua madrasta outro dia, diante de uma ter-ceira pessoa?

    No.Marciano surpreendeu-se com a franqueza do filho. Sabe que se trata de ato grave? Sei.Marciano pousou as mos no colo. Coracy esperava oportunidade de

    explicar por que tomara tal atitude. O que ouviu, porm, foi a notcia de que seria enviado ao seminrio. No estava mais em julgamento, mas no cadafalso. Marciano j recebera o mensageiro com resposta dos Premostratenses. Havia vaga no colgio e ele podia apresentar-se em breve.

    L voc cumprir o restante dos seus estudos disse o pai. Uma vez ao ano, o seminrio permite que os alunos voltem para casa de frias.

    Coracy esboou um protesto. Marciano no o ouvira at ali, no apenas sobre o caso desde a morte de Carmelita, evitava saber o que ele pensava. Porm, sentiu que qualquer tentativa de defesa sairia como desculpa. Depois de ouvir a sentena, levantou a cabea e saiu. Estava sendo degredado, mas no perderia a altivez.

    Lembrou-se do velho preceito das tradicionais famlias mineiras: ao filho mais novo, ou mais incapaz, cabia o seminrio. Ele, que sonhara em ser cientista,

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    ou empreendedor, terminava como o filho considerado intil. Abria espao para Quinzinho ocupar seu lugar. Sinh faria tudo para mant-lo em Pirapora. E a distncia no o ajudaria a reaproximar-se do pai.

    Admirava-se ao ver como Marciano se deixara enredar por Sinh. A mor-te de Carmelita o transformara por completo. Talvez o pai, no fundo, tivesse concordado em envi-lo para o seminrio apenas para no v-lo mais. Afastaria a ltima lembrana da falecida esposa.

    Na manh seguinte, estacionou diante da casa de Marciano a libr que levaria Coracy at a estao da estrada de ferro, cuja composio, movida por uma locomotiva verde com rodas vermelhas, levava a Bragana, depois a Atibaia e de l capital pela So Paulo Railway. Ele estaria vigiado pelo condutor da libr at o trem partir. Pensou em Eleonora, no mpeto que o fizera ir at a sala de piano para defend-la, e no preo que pagava por seu gesto. No entanto, no se arrependeu. Fizera aquilo no s por ela, mas por si mesmo; sentia-se aliviado e mais forte por externar e sustentar sua indignao. Nem o castigo lhe parecia to ruim. Afastado de casa, ao menos no teria mais de conviver com Sinh.

    Marciano levou Coracy at a libr e colocou sua mala no bagageiro. Com Quinzinho a seu lado e o pequeno Jurandyr no colo, Sinh saiu porta para a despedida. Tinha um ar de tristeza, que a Coracy pareceu muito falso.

    Cuidado recomendou o pai. E no se esquea de quem voc . Espero que o senhor tambm no se esquea de quem sou eu disse

    Coracy.O condutor estalou no ar o chicote e a libr avanou. Coracy virou a

    cabea, enquanto se afastava. Por um instante acreditou ver sua me de vestido rendado, a pele alva como a prpria roupa, sentada no prtico da frente, a sorrir na cadeira de balano. Deixava para trs sua casa de infncia e com ela o que restava de suas lembranas de Carmelita e de sua prpria vida. A volpia com que o sangue corria em suas veias, porm, lhe dizia que havia nele uma energia superior s trapaas do destino. Sinh ainda veria.

    No embalo do trem de ferro, Coracy chegou estao de Barueri, povoado a 25 quilmetros de So Paulo. Viajara a noite inteira, com uma baldeao na Estao da Luz, a central ferroviria da So Paulo Railway. Para ele, era como chegar ao outro lado do mundo.

    Quando a composio parou, emitindo um suspiro mecnico, Coracy desceu plataforma. Arrastou a mala de viagem em meio nuvem fumarenta

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    que a mquina movida a carvo cuspia pela chamin. O lugar estava vazio. Mesmo que no estivesse, Coracy dificilmente deixaria de ver o religioso de batina creme at os ps, deixando-o ainda maior que seus dois metros de altura. Teve de esforar-se para no fazer uma careta de dor quando o gigante veio em sua direo e, com os dedos em pina, agarrou-o pela glote, sacudindo-a num desajeitado e doloroso cumprimento.

    Ento voc o jovem Ferreira, hein?! exclamou. Sim disse Coracy, gorgolejando. Sou o irrmo Rumoldo e vou lev-lo a Pirraporra.Coracy achou to estranho o sotaque afrancesado quanto o personagem.

    Se este o cumprimento dele, imagino como ser o castigo, pensou, assim que a manopla do religioso o largou.

    No trem, vrias vezes tivera o mpeto de fugir; a cada estao interme-diria, tinha uma oportunidade. Contudo, abandonara a idia. Afinal, fugir para onde? No tinha dinheiro, profisso, muito menos guarida. No passava de uma criana. Sem o seminrio, morreria na rua, de frio, inanio ou coisa pior. Estava literalmente nas tenazes do irmo Rumoldo.

    Naquele tempo, o jeito de chegar a Pirapora era de barco, em carroa ou lombo de burro. Foi no costado de dois jumentinhos, do tamanho daquele com que Jesus entrou em Jerusalm, que Coracy e o irmo Rumoldo saram de Barueri por uma estrada de terra. Aos poucos a estrada se transformou numa trilha, que se aproximava do Tiet. O rio abria-se na mata, formando lagos rasos e remansos pantanosos de vegetao luxuriante, ornados por centenas de aves pernaltas.

    Depois de quatro horas margeando o rio, os dois viajantes passaram pela entrada de Santana de Parnaba, vila de onde antigamente saam as bandeiras, navegando pelo Tiet serto adentro na captura de ndios, pedras e metais preciosos. Dos ureos tempos, conservara as ruas caladas de pedra e o casario colonial, com suas janelas de madeira e peitoril largo. Como porto, a vila estava h muito abandonada: ali s embarcavam os fantasmas dos velhos desbravadores. O que era ponto de partida se transformara em fim de mundo.

    O irmo Rumoldo equilibrava o corpo improvvel com os joelhos dobra-dos para no arrastar os ps no cho nem rasgar o traje sacerdotal nos espinhos. Cantarolava em francs, sem importar-se com o sacrifcio do jumento, que para carregar todo o seu peso firmava-se no copinho dos cascos com as pernas duras, bufando alto.

    Depois de Santana de Parnaba, o Tiet serpenteava entre colinas. Nas curvas de morro, Coracy avistava o rio ao fundo do desfiladeiro pela abertura

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    na vegetao: espelho negro refletindo o cu e a mata. A trilha enveredou por uma garganta que dobrava esquerda. Do outro lado, descortinava-se a vila de Pirapora, encravada num recncavo da serra. Na barranca do rio deitavam-se as casas dos pescadores, ali chegados muito antes dos religiosos. Numa esplanada duzentos metros acima, erguia-se o Santurio de Nosso Senhor do Bom Jesus, com suas duas torres. Atrs dele, ficava o seminrio: um edifcio com fronto grego, paredes de tijolos vermelhos e janelas retangulares que dominavam o cenrio silvestre.

    Desde 1887 o lugar servia de residncia aos padres belgas, encarregados pelo papa Leo XIII de administrar o santurio, surgido por uma daquelas his-trias que propagam a f. Um grupo de pescadores retirara da barranca do rio uma imagem de Jesus em tamanho natural, talvez perdida por alguma bandeira que no completara seu transporte at o serto. Ao retirar-se o lodo e o limo que a recobriam, revelou-se to bem conservada que passou a ser adorada como divina. Para guardar a imagem, foi construda primeiro uma capela, a Casa dos Milagres, que mais tarde deu lugar ao santurio, destino de romarias e local de adorao para um nmero crescente de devotos.

    No caminho, o irmo Rumoldo explicou a Coracy que os frades premos-tratenses seguiam o modelo de So Norberto, fundador da ordem no ano de 1221, no vale de Prmontr, na Frana. Destacara-se por defender a tradio crist das deturpaes do herege Tanquelino, que negava a presena de Deus na Eucaristia. Seguindo sua linha, os premostratenses defendiam a vida em comu-nidade, a caridade e a validade da liturgia. Tinham recebido do papa a misso de zelar pelo santurio, que mantinham, assim como a si mesmos e seus bons propsitos, por meio dos recursos obtidos com o colgio interno.

    Com os alunos, ajudamos a manter a igrreja e os nossos pobres. Tam-bm melhorramos o mundo, deixando retas as almas torrtas que mandam parra c, como voc.

    Era mesmo torto que Coracy se sentia, depois daquela jornada no lom-bo do jumentinho. Eles contornaram o santurio, passaram pela entrada do seminrio e subiram morro acima por um caminho em ziguezague at a porta do edifcio principal. Na entrada do seminrio, Coracy voltou-se para o vale. Viu logo abaixo o telheiro do santurio e mais adiante a vila de pescadores debruada sobre o rio. A gua escura do Tiet surgia e desaparecia de curvas na mata, depois de passar silenciosamente pelo lugar sagrado. O pr do sol criava no cu um halo alaranjado de pintura sacra: havia ali, decerto, alguma inspirao divina.

    Vamos disse Rumoldo.

  • 37

    Eles deixaram os jumentos amarrados na entrada. Passaram a porta princi-pal e caminharam por um corredor de p-direito alto at a sala da secretaria. De p diante do balco, o irmo Rumoldo registrou a entrada de Coracy. Depois, levou-o sala do reitor, que recebia todos os novos internos.

    Serro as boas-vindas.O irmo Evermodo Vandermeulen recebeu-os atrs de sua mesa de

    trabalho, sentado em uma cadeira de madeira de espaldar alto, em cujo topo havia entalhada uma cruz. Uma estante com livros antigos e um crucifixo de madeira pendente na parede atrs dele completavam a moblia. A figura do padre era suficiente para encher todos os espaos. Com o nariz pontiagudo a lhe dar aspecto belicoso, voz spera e olhos de fogo, Evermodo no precisava levantar para inspirar temor.

    Sentem-se disse, secamente, depois de cumprimentar Rumoldo.Coracy e o irmo sentaram-se. Quem vem parra c, em gerral, est com problemas disse Evermodo. No tenho problemas, a no ser estar aqui respondeu Coracy. Silncio! disse Evermodo. Cuidarremos da sua insolncia. Pri-

    meirra regra: s fale quando lhe for permitido.Desfiou as regras restantes. Acordava-se s cinco horas da manh, com a

    sineta. Antes do desjejum, todos os alunos tinham de ir ao ptio rezar. Depois, vinham as aulas. tarde, havia uma pequena recreao e as aulas religiosas: leitura do Evangelho, cnticos, preparao para a missa. s sete, uma refeio muito frugal. s oito, a missa. E, enfim, a cama.

    Vamos lev-lo para o caminho de Deus sentenciou Evermodo, e deu a audincia por encerrada.

    Coracy saiu assustado. A noite caa e os padres andavam pelo corredores com um tio acendendo os lampies. Com as longas roupas e o rosto iluminado sinistramente pelas chamas, eles lhe davam calafrios.

    Atrs do edifcio de tijolos aparentes saam duas alas do seminrio, forman-do um U. Rumoldo conduziu Coracy at a ala esquerda, onde ficava o hospcio a pousada dos visitantes e dos estudantes do internato.

    direita de uma longa galeria com seis metros de p-direito, janelas verticais davam para o ptio interno a intervalos de trs metros. esquerda, sucediam-se as portas das celas. Os passos do irmo Rumoldo ressoavam no piso de tbuas largas.

    Pela primeira vez, Coracy receou nunca mais sair dali. Mais que se sentir um prisioneiro, ardia dentro dele o desejo de voltar e vingar-se de Sinh. Isso agora lhe parecia distante e improvvel: Ana Umbelina vencera.

  • 38

    Rumoldo levou Coracy at a antepenltima cela. A porta de madeira rangeu no seu eixo. Na parede oposta, duas grandes janelas, por onde um ho-mem poderia passar em p, davam para o lado da chcara onde os religiosos plantavam as hortalias. L dentro havia duas camas de madeira encostadas na parede esquerda pela cabeceira. Os colches estavam cobertos por alvos lenis de algodo. Ao p de cada cama havia um ba de madeira. A nica decorao era um crucifixo na parede caiada.

    Ol. Meu nome Ranulfo.Coracy olhou para o rapaz sentado na cama mais prxima das janelas: era o

    seu companheiro de quarto. Tinha a mesma idade que ele. Os cabelos cortados escovinha e o uniforme do colgio no eram suficientes para lhe disciplinar a apa-rncia: os olhos matreiros e um sorriso duvidoso revelavam esprito inquieto.

    Coracy se apresentou, colocou a mala ao lado da cama que lhe cabia e agradeceu a Rumoldo.

    O banheirro est aqui disse o religioso, puxando de baixo da cama com o p, pela asa, um penico de gata. s quatro e meia, se d o toque de acordar parra as prrimeiras orraes da manh. s seis, o desjejum. Depois, comeam as aulas. Ranulfo o ajudarr no primeiro dia.

    Isto posto, o irmo virou-se e bateu a porta ao sair. Ficaram os dois novos colegas a ss.

    Bem-vindo ao mundo perdido disse Ranulfo, divertido. No esperava pelo paraso disse Coracy.Pensou em Sinh e seu pai. Eles podiam mandar em tudo, mas ningum pode

    domar a vontade, nem a imaginao. Todo homem livre, de alguma forma. No se preocupe disse Ranulfo. A comida boa. Por que voc est aqui?Ranulfo colocou os ps sobre seu ba. Acho que meu pai tinha uma lio para me dar. Ela j est durando

    dois anos. Desde que vim para c, s o vi duas vezes. E isso bom ou ruim? Como pode ser bom ver o pai to pouco?Coracy se lembrou de Marciano, da vergonha quando ele lhe dissera que

    o mandaria para o seminrio, da raiva de ser posto fora de casa, como o filho inepto, pela megera usurpadora, da injustia por ter sido exilado. Ele tinha sido o maior responsvel, mais que Sinh. Sim, o pai a levara para casa, pusera aquela mulher no lugar de sua me, deixara-se convencer por ela. Na sua de-sero, dele tinha sido a palavra final. Marciano o trara, enjeitara, deserdara, desprezara.

  • 39

    Talvez seja melhor assim disse, de dentes cerrados. Aqui voc ter tempo para esquecer os problemas e voltar a ter sauda-

    de do que achava ser ruim l fora disse Ranulfo. Voc no sabe o que o silncio capaz de fazer. Sem falar nas coisas estranhas.

    Que coisas?Ranulfo riu. Mistrios... Fantasmas... Coisas nas quais no se pode nem pensar. No acredito em fantasmas. Vai acreditar.Coracy desfez sua mala. Olhou dentro do ba e descobriu duas mudas

    do uniforme do seminrio. Perguntou a Ranulfo onde podia tomar banho. No fim do corredor, havia uma porta para a chcara. Ali funcionava o chuveiro: um rancho de tbuas com espao para uma nica pessoa por vez. Coracy foi at l. Tirou as roupas e puxou a cordinha de acionamento. Nesse instante, descobriu que o banho dos internos era de gua fria, que caiu em sua cabea como uma tijolada.

    Raios!Enxugou-se to rpido quanto possvel, vermelho de frio. Vestiu o unifor-

    me tiritando e voltou correndo para o quarto. Quando entrou, tinha os lbios arroxeados e os plos eriados como os de uma ratazana.

    Por que voc no disse que o banho era gelado?Ranulfo riu. E h outra maneira de tomar banho?Coracy resmungou algo. Ranulfo procurou anim-lo. Vamos... A gua gelada desperta o esprito. E faz esquecer as tentaes. No a de comer. Tenho fome. Calma. Logo vamos ouvir o toque chamando para a bia.Dez minutos mais tarde, tocou a sineta da refeio. Uniformizados, Co-

    racy e Ranulfo dirigiram-se ao refeitrio. Atravessaram o campo no centro do seminrio, passando para a ala oposta.

    Diferente dos dormitrios, aquela parte do edifcio tinha dois andares. Eles subiram ao segundo piso, um recinto sob as traves de madeira que sustentavam o telheiro, com toscas mesas de madeira enfileiradas diante de um fogo a lenha com cinco metros de comprimento. Na entrada, sobre um altar, repousava a imagem de So Norberto, representado com o seu hbito branco, o plio, o bculo e a cruz de Santo Andr, com dois braos, adotada pelos arcebispos de Magdeburgo. Na outra mo, o santo levantava o ostensrio, sinal de adorao do Santssimo Sacramento.

  • 40

    Em fila, cento e cinqenta internos entraram no refeitrio, que tinha trs horrios de funcionamento. Os dois primeiros eram para os internos do ensino fundamental, onde se encontrava Coracy, e os do ginsio. Por ltimo, almoavam os seminaristas, que faziam ali os oito anos de estudo superior at sua ordenao. Sob as ordens de um dos irmos, todos se sentaram, obedientes e silenciosos como soldados. O religioso, nesse momento, puxou uma orao em latim.

    O irmo Auscrio soprou Ranulfo ao ouvido de Coracy. o bedel.

    Coracy acompanhou a orao calado. Depois, todos se levantaram e, em fila, passaram diante do fogo, onde dois funcionrios, moradores da vila de Pirapora que trabalhavam no seminrio, passavam a comida em conchas de lato dos paneles para os pratos de barro. Coracy fez o prato e voltou para o seu lugar, ao lado de Ranulfo. Quando se debruou sobre a comida, sentiu a presena de algum sua frente. Ergueu a cabea. Era Auscrio, olhos escuros pregados nele.

    Qual seu nome? Coracy Gonalves Ferreira. E no sabe rezar?Coracy guardou um instante de silncio. Procurava a resposta. O ir-

    mo Auscrio no era alto como Rumoldo, porm tinha a cara redonda e feroz, um buldogue de batina. Certamente seu papel ali no era ser amigo de algum.

    Ele chegou hoje disse Ranulfo, a seu lado, na tentativa de salvar o amigo de maiores complicaes.

    O senhor no foi chamado conversa observou Auscrio, olhando para ele como o gato diante do passarinho.

    Coracy no queria que Ranulfo tivesse problemas por sua causa. Alteou a voz e tomou seu lugar na conversa.

    Senhor, acabo de chegar disse ele. Fui enviado por meu pai, no por vontade prpria. J fiz coisas demais sem ter vontade. Agora no tenho vontade de nada. E rezarei quando vontade tiver.

    O jantar parara; cento e cinqenta pares de olhos se colocavam sobre Coracy e o irmo Auscrio, bocas entreabertas, respirao cortada, garfos sus-pensos no ar.

    Auscrio ficou a examinar Coracy. No se espantava com tamanha audcia. Significava apenas que o novato ainda no o conhecia. Porm, iria conhecer.

    Est bem disse o irmo, para espanto geral.

  • 41

    Quando todos imaginavam que Auscrio desistira do castigo, ele avanou, tomou o prato diante de Coracy e deu novamente um passo atrs. Coracy olhou desconcertado para os talheres e o espao vazio na mesa sua frente. Levantou para o padre-bedel um par de sobrancelhas circunflexas.

    Aquele que no tem vontade de nada no deve tambm ter vontade de comer disse Auscrio. Vamos ver como estaro as suas vontades amanh.

    O irmo deu-lhe as costas, carregando o prato na mo. Coracy sentiu os olhares cravados nele. Manteve-se como esttua, nica maneira de superar o constrangimento.

    O jantar recomeou: apesar do ambiente monstico, os sons pareceram a Coracy de um verdadeiro festim. Eram dentes triturando ossos, bocas recheadas em mastigao, golpes de faca, pratos, copos e talheres batendo estrondosa-mente: o concerto cacofnico de uma turba faminta e dilatado sensorialmente pela sua fome. Ranulfo, ao seu lado, no ousou oferecer-lhe algo, mesmo s escondidas. Auscrio, que passeava entre as mesas, tinha um olho e um ouvido pregados ali.

    Suportou imvel o jantar inteiro, at o sinal de recolher. Em Pirapora, dormia-se e levantava-se cedo. Todos saram do refeitrio em fila. Coracy desceu as escadas e caminhou com Ranulfo para o quarto. Agora que podiam falar, ainda que aos sussurros, o colega manifestou seu espanto.

    Voc louco? Por qu? Dizer aquilo para o irmo Auscrio... E o que eu devia dizer? Que no sabia latim, algo assim.Entraram na cela, iluminada por uma vela. Coracy sentia um buraco no

    lugar do estmago. Fizera uma tolice, ele sabia. No entanto, no podia voltar atrs. No se curvara diante de Sinh, no o faria perante Auscrio ou qualquer outro. Fizera uma longa viagem desde Cachoeira e s o cansao era maior que a sua fome. Dormiria; no dia seguinte tudo iria melhorar.

    Vestiu sua camisola e despediu-se de Ranulfo. Obrigado pelo que fez no refeitrio disse. Est tudo certo... disse Ranulfo, antes de soprar a vela. Boa

    noite.Coracy sonhou com Sinh. Ela gritava palavras incompreensveis; quan-

    to mais tentava entend-la, mais se desesperava, certo de que seria castigado. Queria correr, mas tinha medo de atravessar o passeio, pois corria o risco de ser

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    apanhado pelas patas de cavalos que passavam a toda brida. Avistou sua me, ganhou coragem e correu ao seu encontro. Ao se aproximar, contudo, ela se transfigurou: aterrorizado, encontrou-se novamente diante de Sinh.

    Acordou suado, com as tmporas latejando. Era noite alta e o seminrio estava imerso na mais profunda escurido. A fome fazia a barriga doer. Ranulfo dormia encolhido, oculto pela noite e os lenis. L fora, ao longe, Coracy ouviu uivos que lhe deram calafrios.

    Virou-se na cama, louco para dormir, mas o sono fugira. Cada som que ouvia na montanha aumentava aos seus ouvidos: o seminrio agora parecia parte da floresta. De repente, ouviu algo ainda mais estranho: panos a roar o cho do corredor. Alarmado, ergueu-se para escutar melhor. Levantou e foi colar o ouvido porta. Um longo silncio se fez. Afinal, ouviu o mesmo roado outra vez.

    Pensou no que Ranulfo dissera: Fantasmas. Ergueu a mo em dire-o maaneta, quando outra pousou sobre o seu ombro, levando-o a um sobressalto.

    Shhhh! fez Ranulfo. E sussurrou, quase inaudvel: O que est fazendo?

    Ouo um barulho estranho disse Coracy. Voc quer ir l fora? Est louco mesmo! Nunca vi um fantasma antes. Quero saber o que est acontecendo. Esquea disse Ranulfo, empurrando-o para a cama. H coisas

    que no se deve ver nunca. Nunca, entendeu? Este lugar mal-assombrado. H coisas que no se deve ver!

    Coracy alarmou-se tanto com a reao de Ranulfo quanto com o mistrio do corredor. Talvez houvesse mesmo um fantasma no seminrio. Pelo menos, ele no conseguia imaginar lugar melhor para estranhas aparies.

    Deitou-se. Ranulfo fez o mesmo. Eles podiam ouvir agora a respirao ofegante um do outro. Coracy revirou-se na cama e tentou novamente dormir. No conseguiu: o corao martelava o peito, com um barulho tremendo. E pensou: essa provavelmente ser a noite mais longa e apavorante de toda a minha vida.

    A alvorada foi anunciada por um sino capaz de acordar os mortos, tocado nos corredores por um padre madrugador.

    A rotina do seminrio comeava pela apresentao dos alunos no ptio, uniformizados de maneira impecvel, s cinco horas da manh. Ainda estava

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    meio escuro; fazia um frio cortante. No morro atrs do colgio, onde o gado dos premostratenses permanecia deitado em sua modorra existencial, emergia da bruma a Cruz do Sculo, de madeira nua, levantada no lugar na virada do centenrio, em 31 de dezembro de 1899. Mais acima, a nvoa esfumaava a floresta que cobria a regio.

    Petrificado pelo frio glacial, com os lbios gretados pelo vento, Coracy per-dia-se entre as fileiras de alunos que se arrumavam, cada um sabendo qual o seu lugar. Por sorte surgiu o irmo Rumoldo, que o colocou na mesma fila de Ranulfo, ordenada conforme a altura de cada aluno o menor sempre na frente.

    Fique aqui avisou. Voc est nessa turma.Havia uma srie de perguntas que Coracy gostaria de fazer, incluindo um

    esclarecimento sobre os fantasmas do corredor, mas o irmo seguiu em frente com seus passos ciclpicos. Ainda teve de sustentar os olhares de desaprovao dos colegas, que j o consideravam uma companhia perigosa e indesejvel desde o jantar da noite anterior.

    Um sacerdote subiu num plpito de madeira com quatro degraus diante dos internos perfilados. Era Evermodo. O reitor gostava de fazer pessoalmente o primeiro sermo do dia. Depois de contar uma passagem da vida de Jesus, com seu sotaque gauls, o reitor puxou as oraes em latim.

    O coro dos alunos rezando com Evermodo subiu junto com a bruma da manh, alcanando as vacas do Morro da Cruz e chegando floresta. Calado, Coracy pensava no castigo da noite anterior e sobretudo no caf-da-manh. A fome se tornara atroz. Felizmente o desjejum no iria demorar.

    Quando os alunos foram conduzidos ao refeitrio, o irmo Auscrio es-tava plantado porta. Com um mau pressentimento, Coracy fechou os olhos e apertou o passo. Contudo, sentiu uma mo pesada contra o peito.

    H um lugar reservado para voc ali no canto disse Auscrio, apon-tando para uma mesa pequena, distante dos outros internos. Coracy suspeitou que no seria o primeiro a ser colocado ali. Seu castigo acaba somente na hora do almoo avisou o bedel.

    Da mesa do castigo, Coracy viu os internos fazerem a primeira refeio do dia. No sabia o que lhe doa mais: o estmago ou a raiva. No conseguia detestar Auscrio. Ele era apenas o preposto de Sinh e de seu pai, responsveis por tudo o que estava lhe acontecendo. Sentiu saudade da me, de sua casa e, por ironia, de Marciano no exatamente dele, mas da lembrana do que ele tinha sido um dia.

    As aulas comearam s sete da manh. Todos os professores eram frades belgas, com aqueles nomes esquisitos, aportuguesados para facilitar a pronncia.

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    Ensinavam matemtica, latim, cincias naturais e seu portugus rudimentar. Por instrues de Auscrio, Coracy foi mantido na sala de aula toda a manh, mesmo no perodo em que os outros internos saram para o intervalo.

    Para ele, tudo era a fome. Ela dilatava sua percepo do mundo: enxergava mais, as cores eram mais vivas, tinham novos tons. Os cheiros vinham mais fortes e sempre sugeriam algo comestvel. Tinha vises: sua frente, passavam frangos assados, travessas de farofa, tachos de marmelada. A boca salivava, os plos se eriavam, as orelhas ficavam pontiagudas, os caninos cresciam: transformava-se num lobo faminto.

    Ao toque da sineta que encerrou as aulas, foi para o refeitrio como um beduno chega ao osis. Mais uma vez, porm, foi barrado por Auscrio.

    Meu castigo acabaria no almoo disse Coracy. Sim concordou Auscrio. Mas voc vai comer ali.Voltou para a mesa do castigo. Enquanto todos os alunos eram servidos nos

    paneles do fogo a lenha, o bedel em pessoa depositou na sua frente o prato. o mesmo de ontem noite! exclamou Coracy. Aqui no se desperdia comida disse Auscrio. No posso engolir isso. O seu prato esse. Mas voc ainda tem o direito de continuar sem

    vontade de comer.Coracy olhou para o bedel. Gostaria de cravar os dentes nele, mas ima-

    ginou como sua carne teria um gosto ruim. Aprendera o valor de ficar quieto. Fizesse alguma coisa, dissesse alguma coisa, como na noite anterior, estava certo de receber castigo pior. Lgrimas ameaaram rolar pelo canto dos seus olhos, mas ele as dominou. J lhe bastava o sentimento da impotncia: a humilhao de chorar em pblico seria demais.

    Auscrio afastou-se, deixando-lhe o prato frio. Mais uma vez Coracy assis-tiu os colegas comerem. A fome passara: ele s sentia dio, dio a Sinh, dio a Auscrio e dio dele mesmo, por se acovardar. Queria ser livre para levantar-se e ir embora, e ento lhe veio dio do pai. Era s por ele que resistia: coragem maior era a de ficar. Mostraria a Marciano que passaria por cima daquilo que ele lhe reservara. Ainda lhe provaria quem era.

    Terminado o almoo, os alunos foram dispensados para as atividades do ptio, que precediam a missa da tarde. Enquanto alguns jogavam bola no campo de terra, Coracy sentou-se sem foras ao p da Cruz do Sculo. Tinha uma nica certeza: no iria dobrar-se. Assim, depois da missa da tarde, quando recebeu o mesmo prato do almoo e do dia anterior, agora exalando um cheiro nauseante, continuou sem comer.

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    Recusaria o prato tantas vezes quantas ele viesse. No cedera a Sinh, nem a seu pai, no cederia agora. A raiva seria o seu sustento. Foi o que disse a si mesmo, enquanto assistia missa ao lado dos colegas, na capela vizinha ao refeitrio, antes de dormir.

    Quando chegou sua cela, encontrou um Ranulfo preocupado. Voc louco, voc louco repetia ele. Sou louco concordou ele.Caiu na cama, muito fraco. Talvez a raiva no fosse alimento suficiente.

    Pensou: pelo menos vou dormir pesado, no ouvirei fantasmas nem o uivo dos lobos na mata. Depois, no se lembrou de mais nada.

    No dia seguinte, Coracy manteve-se em p com dificuldade durante o sermo de Evermodo. Balanava. Sua cabea andava deriva. Via manchas pretas e ouvia as palavras do reitor distantes e abafadas.

    Seguiu com os colegas para o refeitrio. Sentou mesa do castigo automa-ticamente. Daquela vez, Auscrio mandou que lhe servissem o caf-da-manh. O irmo Rumoldo decidira intervir. Tiveram uma conversa spera: Rumoldo o acusara de crueldade.

    Ser que o castigo no foi demais? O menino me desafiou disse Auscrio. Precisa de disciplina. No se pode disciplinar cadverres foi a resposta.Quando chegou a comida, porm, Coracy afastou o que lhe entregavam.

    Havia caf, uma fatia de bolo de milho com manteiga, um pedao de queijo, leite. Estranho, pensou. Ontem, teria dado tudo por isso. Hoje, j no me apetece.

    Ao ver que Coracy no tomava da refeio, Auscrio aproximou-se. No vai comer? No. Por que no? No acho que haja razo para que me mantenham na mesa do castigo. Talvez voc queira de volta seu velho prato.Coracy empurrou a bandeja do caf. Pode traz-lo.Auscrio nada disse e nada fez; apenas deixou-o, um tanto alarmado.

    Coracy no comeu nada no caf, nem no resto do dia. No almoo, veio o seu velho prato, mas tarde um funcionrio do colgio, a pedido de Auscrio, surgiu na ala de recreio com uma pequena trouxa com comida, para servi-lo sem parecer que o bedel cedia. Para disfarar, disse-lhe que roubara a cozinha. Coracy, porm, recusou tambm aquele contrabando.

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    No dia seguinte, ao toque da sineta, no levantou da cama.Ranulfo debruou-se sobre o colega. Ainda estava escuro; aproximou o

    lampio do rosto de Coracy e assustou-se com a sua palidez. Vou buscar o irmo Rumoldo disse. Voc est muito mal.Chamado, Rumoldo puxou as plpebras de Coracy com o dedo. Meu Deus! exclamou.Imediatamente, foi ter com Evermodo. Exps sua preocupao com o

    estado de sade do menino. O reitor, de cenho franzido, mandou chamar Aus-crio. Em poucos minutos, entrou na sala o bedel.

    Auscrrio, dessa vez voc foi longe demais. O rapaz que no come. Ofereci comida. Somos responsveis por ele. Querro devolv-lo ao pai, no a Deus. Foi o pai dele que nos encomendou a tarefa de corrigi-lo. Nunca vi

    ningum mais teimoso. s vezes prreciso saber o limite do castigo disse Rumoldo. Se eu devolv-lo mesa, junto com os outros, perderei minha

    autoridade. Dessa vez, o que tem de serr sentenciou Evermodo. Voc no

    tem outrra sada.Depois da orao matinal, todos os alunos se reuniram no refeitrio em

    grande expectativa para o caf-da-manh. Todos queriam saber o que aconteceria. Orgulhoso de ser o arauto de grandes acontecimentos, Ranulfo garantia que Aus-crio tinha sido dobrado. Coracy podia enfim comer do jeito que quisesse.

    Aquilo era indito. O burburinho se transformou num silncio quase res-peitoso quando Coracy entrou. Dessa vez, Auscrio o olhou de longe, enquanto ele se sentou ao lado de Ranulfo mesa, plido como cera. O bedel fez a prece da refeio e a comida comeou a ser servida. Coracy, porm, no se moveu.

    Furioso, o bedel se aproximou. O que , agora?Coracy, plido como papel, encarou-o fixamente. No conseguirei comer nada slido disse. Sinto meu estmago

    colado. Quero que me faam uma sopa. E s tomarei a sopa com um pedido de desculpas.

    O bedel, incrdulo, fuzilou-o com os olhos. Voc abusado demais! Como quiser.Fez meno de se levantar e ir embora. Auscrio, alarmado, lembrou-se

    de Evermodo. Acontecesse algo com o rapaz...

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    Espere! exclamou. Vou providenciar a sopa.Foi aos cozinheiros ajeitar o pedido. Enquanto caminhava ao longo das

    mesas, podia ver os olhares incrdulos dos estudantes a examin-lo. Ningum dizia nada, mas no era preciso. Todos ali, que Auscrio j havia castigado ao menos uma vez, riam-se dele por dentro. Provavam da sua humilhao como um manjar.

    A sopa veio. Como uma penitncia, ou uma maneira de curtir ao extremo sua raiva, o prprio Auscrio serviu Coracy. E disse:

    Dentro do esprito cristo, que nosso senhor Jesus apregoou dando o outro lado do rosto a quem o ofendeu, peo desculpas como maneira de fazer com que este rapaz volte a comer, pelo seu prprio bem e para as vistas de nossa pequena comunidade.

    Coracy olhou a sopa, aspirou seu aroma, como uma lembrana distante. Vamos dizer que a desculpa est aceita disse. E no falou mais nada,

    pois deslizou sobre a mesa e desfaleceu, entornando o prato.Um grande alvoroo tomou o refeitrio. Coracy foi carregado para a

    cama s pressas por Ranulfo e os colegas. Na cela, eles o colocaram debaixo de cobertores e trataram de reanim-lo com colheradas da sopa ainda quente, ministrada por Rumoldo como remdio.

    A recuperao levou dois dias. Aos poucos, Coracy comeou a ganhar foras. Por ordem de Evermodo, na convalescena no lhe faltou comida. Ga-linhada, carneiro, pernil, tudo o que de melhor podia sair da cozinha monstica lhe era servido com fartura. O melhor: Coracy foi dispensado das aulas at ganhar energia. Recebia as refeies na cama.

    Ainda acha que sou louco? perguntou a Ranulfo. No disse o colega. Agora, tenho certeza. Voc louco.Quando afinal Coracy se levantou, saiu para o ptio em meio a um corredor

    de alunos que lhe abriam passagem. Ao entrar no refeitrio, compreendeu que eles agora o viam diferente: o desprezo se transmutara em admirao. Sentou-se entre os colegas e comeu, enquanto Auscrio, num canto, silenciava.

    O mundo para ele se modificara. Enquanto destrinchava a comida dos premostratenses com dentes de fera, pensava que sempre se achara uma vtima. Agora, perante todos e para ele mesmo, Coracy se transformava em heri.