Capítulo 1 • · ... nada de grave, fui só eu que falei. ... não sei por que raio não há-de...

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Nota do autor 9

Prefácio por Sérgio Godinho 11

Prefácio por João Paulo Esteves da Silva 15

Capítulo 1 • Despertar 21

Capítulo 2 • Pensamentos Diagnosticados 39

Capítulo 3 • Amigos para a Vida 73

Capítulo 4 • O Brilho no Fundo dos Olhos 103

Capítulo 5 • Memórias Emolduradas 115

Capítulo 6 • Eu Sou, porque Nós Somos 133

Capítulo 7 • As Feridas do Meu Sorriso 143

Capítulo 8 • A Preto e Branco 155

Capítulo 9 • As Faces do Amor 169

Capítulo 10 • Aqui entre Nós 181

Posfácio por Eurico Carrapatoso 197

9

A história que partilho consigo, querido leitor, não será

uma que o aconchega e lhe dá um beijo de boa noite.

Ainda assim, não lhe irá tirar o sono. É uma perspecti-

va que lhe ofereço de um mundo que ambos vivemos.

Irei rodeá-lo, querido leitor, com o amor da família, o calor

dos amigos, o medo de crescer, as inseguranças. Passeará

comigo pela cidade, pela paixão adolescente. Irá sentir a dor

causada por esta enfermidade rara que carrego, a Charcot-

-Marie-Tooth. A doença.

O leitor irá mover os seus olhos pelas linhas de tinta e ver a

vivência de um jovem de dezasseis anos, que pensa que a vida

deve ser vivida com uma banda sonora em pano de fundo.

Diogo Lopes

NOTA DO AUTOR

11

Em que dia nasce a maturidade? Sabemos, sim, que é um

processo contínuo, e que estaremos sempre a remoer

e maturar certezas e inquietações pela vida fora. Vários

dias vazios, vários dias cheios, Aprender até morrer, diz-se.

E eu que o diga…

Mas há um dia, um momento da nossa vida em que o relógio

muda o ritmo do tiquetaque, e é tic e é tac, como diz o Diogo no

livro. Há sempre vários, mas há um, um particular momento

em que adquire algo que nos vai servir para sempre: a sabedoria,

conseguida em tão pouco (mas vertiginoso) tempo, e as suas

consequências num futuro em longa e permanente construção.

Não sabemos qual o dia nem a hora. Mas sabemos. Com uma

alegria aberta e uma angústia tão difusa como negra e como

PREFÁCIOPor Sérgio Godinho,

músico

BALUARTES • DIOGO LOPES

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parva (chamamos-lhe assim). Serão elas para sempre os nos-

sos contemporâneos.

A maturidade do Diogo é inexplicável e quase inquietante.

O que sabe ele da vida para saber tanto sobre ela? Para a des-

crever assim, com essa minúcia quase obsessiva de detalhes

e conclusões lúcidas e inesperadas? É óbvio que muito vem

da educação, da solidez do amor familiar e também das suas

desilusões, da sua atenção nata pelo mundo e os seus peque-

nos movimentos. E depois, parte ainda mais importante, pela

consciência crescente da sua doença e das suas consequências,

e da sua progressão lenta mas implacável, como um futuro

que se forma lá muito à frente, uma nuvem distante, e que no

entanto nos suga e nos repele e nos fica próxima de repente.

Foi tudo tão depressa.

É evidente que não se deve julgar o livro do Diogo pelo

feito precoce de produzir com a sua idade uma obra tão bem

narrada, tão autêntica e tão inteligente na sua articulação.

Gostaria de ter lido o texto sem saber nada sobre ele, se era

homem ou mulher, e de que idade, se era já um consagrado

ou um inaugurado recentemente, se era um diletante ou

o missionário de uma só causa. No limite, não me interessa.

É um dado, mas não determina nem o gosto nem a apreciação.

Mas, lá está, o que se mostra aqui não é uma obra de fic-

ção. Enfim, não é só uma obra de ficção: porque também o é.

Ao ser-se tão sinceramente confessional, ao expor assim as

suas feridas à carne dos outros, ao ter como sustento o amor

pela vida e pelo seu sopro generoso, ao suar, ao tropeçar

e levantar-se, ao sentir cada vez mais desobedientes as pernas

PrEfácio Por Sérgio godinho

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e os braços, ao ter que fazer contas próximas nos ricochetes de

um futuro longínquo, o Diogo está a criar ficção.

Com uma imaginação que alimenta sempre a realidade, em

vez de apenas a servir. Fala dele próprio e muito, com pudor

mas também com uma forma nobre de despudor, a de saber

que muitos outros compreenderão o que ele tem realmente

para contar, nada de grave, fui só eu que falei.

«Adoro contar histórias», escreve quase logo ao início. E tal -

vez seja essa a chave, um código de poucos números, do seu

notável ímpeto narrativo e da sua inspiração, ao ir ter com aquilo

que nos move a todos nós: contem-nos uma boa história que

tenha a ver connosco. Com todos nós, se possível. Esta tem.

E já agora, uma frase já do fim do livro: «Ainda tenho muito

para aprender». Pudera. Todos temos.

Peço desculpa por te ter tratado só por Diogo. Devia ter sempre

dito o escritor de futuro Diogo Lopes.

Distraí-me, deve ser da tua idade.

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PREFÁCIO

Por João Paulo Esteves da Silva,

pianista e compositor

Em caso de aperto, o melhor é confessar a verdade. Cus-

ta-me muito escrever este prefácio e, para já, a dificul-

dade espanta-me, não sei por que raio não há-de ser

fácil escrever algo sobre este livro. Acabo de lê-lo com grande

prazer e algumas lágrimas ao canto do olho. Não de tristeza,

ou não só de tristeza. Prazer, espanto, surpresa, raiva, entu-

siasmo, sentimento de impotência, comoção poética pura,

e outras mais, compõem o feixe de emoções que me foi atin-

gindo (com força) ao longo da leitura. E, assim, não é fácil

escrever, não se consegue o zero a partir do qual começar;

o livro encheu-me. Mas a confissão está a resultar, ao que

parece, e já aí vão algumas linhas mais ou menos calmas.

Avancemos, então.

PREFÁCIOPor João Paulo Esteves da Silva,

pianista e compositor

BALUARTES • DIOGO LOPES

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O prazer da leitura; pois, é que se trata de um livro mesmo

bom, do ponto de vista literário; quero dizer, o estilo, o mane-

jamento dos truques da arte são já o de um jovem mestre. Da -

qui, a surpresa. O Diogo é um escritor muito jovem, um puto,

di ga-se, mas tanto a modulação dos ritmos narrativos como

o dosear das intensidades de humor (negro, às vezes) e poesia

são já de uma grande maturidade. Morrem regularmente

escritores célebres, em idade avançada, sem terem atingido

este nível. Cavo um buraco na pedra e enterro as palavras ditas.

Uma plantação de memórias. Estou tão perto da água. As vibrações

da música perturbam o ar. Fazem-no leve, levantam-me. «Serão

estes os efeitos secundários da poesia?» (Esta frase é de Manuel

Cruz.) Não se encontra disto por aí aos pontapés, e o livro está

cheio destas coisas, simplesmente belas, entusiasmantes.

O Diogo escreve a sua vida. Imagina-a tanto quanto a tes-

temunha. Calhou-lhe na rifa uma doença degenerativa, rara,

que lhe quer escrever o destino. Algo lhe introduziu ordens

bizarras no código genético, forças adversas querem barrar-lhe

o futuro. O Diogo não se demove, Acredito numa predisposição

para um futuro, e o leitor gostaria de poder partilhar daque-

la força, daquela confiança nos poderes da imaginação. Logo

no início do livro, somos postos a par desta veia imaginativa,

aplicada a um passageiro ocasional no comboio, a quem o nar-

rador chama Rui, e para quem começa a inventar uma vida.

E é isto que ele faz também, depois, para si mesmo, escre-

vendo. A partir da experiencia, dos dados, claro, mas como se

o escrever fosse capaz de penetrar nas origens da realidade,

mudá-la, redesenhá-la geneticamente. Por vezes, sentimos

PrEfácio Por João PAulo EStEvES dA SilvA

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que sim, acreditamos: Consegui. Mais um dia. Mais vinte e qua-

tro horas que passaram, nas quais continuei de pé a seguir os teus

sonhos. Mais vinte e quatro horas que vivi enquanto pessoa, e não

enquanto doente. Noutros momentos, levamos com o golpe do

adversário: Tenho medo, porque o que já foi papelada médica está

a tornar-se realidade. Não sei quanto tempo mais conseguirei levan-

tar-me do piano e retribuir as palmas do público com uma simples

vénia. Uma coisa tão simples como a porra de uma vénia. E cam-

baleamos um pouco. Sim, o Diogo também é músico, pianis-

ta e compositor, e a música revelou-se-lhe como algo mais do

que arte, a prática musical retarda a doença! — Vão estudar,

senhores investigadores, interessem-se por este fenómeno

a sério, dediquem-lhe as vossas vidas, e não se contentem com

sorrir, agradados com um apoio gratuito. Quem sabe se a mú -

sica não está para além do Ser, como Platão dizia do Bem

(quando tentou explicar a origem do mundo sensível: se o

mundo ideal é assim tão fixe, porque é que não se contenta em

permanecer ideal?), quem sabe se a música, uma certa música,

não seria capaz de reparar danos genéticos?

Mas que raiva! Não posso deixar de sentir vontade de

rebentar com edifícios inteiros, conservatórios, hospitais,

instituições respeitosas (desculpa, Diogo) quando me aperce-

bo do contentamento perverso que está por detrás daquilo a

que se chama saber, de que o prazer de ver realizadas as pre-

dições de um diagnóstico, «estão a ver, é tal e qual como nós

dissemos», se sobrepõe à motivação de compreender verda-

deiramente as dificuldades e o sofrimento alheio. E isto tam-

bém vem no feixe de sentimentos com que o livro me atinge,

BALUARTES • DIOGO LOPES

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raiva, pouco louvável, admito, e sentimento de impotência,

que a poesia e a coragem do Diogo ajudam a superar: Não me

lembro de ficar triste com o diagnóstico. Não me lembro de ouvir

o diagnóstico. Viemos a este mundo com sensores vanguardistas

incorporados, filtramos possíveis eventos traumáticos. Lembro-

-me dos sorrisos em lágrimas. Lembro-me dos abraços cheios de

amor. Nesse sentido, não me identifico enquanto paciente. Foi-me

transmitido tudo de forma natural, anulando os efeitos de over-

dose melancólica.

O livro conta também uma história de amor, claro está, de

amores, do amor que está na origem, que sustenta a vontade

de viver e que carrega constantemente as pilhas amorosas do

escritor. É uma descarga amorosa, o livro, dentro do livro e para

fora dele. Amor nas relações que correm bem, e nas que cor-

rem menos bem, como por exemplo as que inspiram os dizeres

com que o herói brinda o seu pai biológico, numa conversa em

que este admite a sua falta de vocação paternal: Chega uma altu-

ra em que não interessa para o que foste desenhado. Tens de mudar.

Não há opção. Há que ser homenzinho, levantar da cama e ser pai.

Tu não conseguiste mudar. Dizeres duros, verdadeiros, de amor.

Vou ficar por aqui, que a maré de emoção já começa a subir

outra vez. O livro está cheio de tesouros. Espalho só mais

alguns para abrir o apetite dos leitores.

Um cigarro apaga-se sempre. Uma memória é pouco mais do

que roer as unhas. No início, tão perfeitas, tão limpas e puras,

ramos recentemente podados das árvores. Até que o vício chega.

A verdadeira poesia é difícil de ler. É como uma droga. A dosa-

gem exagerada pode ser fatal para o espírito. Eu quero, e deverão

PrEfácio Por João PAulo EStEvES dA SilvA

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querer muitos outros, a leitura regular. Mas só através de uma dieta

será possível.

Queria ser alguém, ter a letra de um poeta. Gostava dos sons

que escreviam, da sua musicalidade. Por razões de sanidade, talvez

devesse ter parado por aí. Ao perceber-lhes o sentido, perdi-me de

amores pelo mundo.

Linhas de tinta que me seguram à realidade.

Obrigado, Diogo.

Lisboa, Janeiro de 2016

Capítulo 1

DESPERTAR

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A cordei. A luz é fraca, os estores haviam sido descidos

na noite anterior. Devem ser cinco e meia da manhã.

Acordei mais cedo do que o despertador, para variar.

A estrutura metálica da cama resmunga conforme sente o

meu movimento. O motor dos estores começa a trabalhar e a

luz entra, arde-me. Param a meio. Mais um estorvo quotidia-

no. Diz-se que é coisa fina, todavia estragam-se regularmente.

Um em purrão, dois empurrões, e finalmente sobem até cima.

O céu está fechado, com uma pequena neblina. Esfrego os

olhos, está tudo igual. O piano, com uma fina camada de pó;

a secretária, com uma fina camada de pó; a estante de livros,

com uma fina camada de pó. Talvez devesse dar uma limpeza

ao meu quarto, mas agora é demasiado cedo para isso.

BALUARTES • DIOGO LOPES

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Pego num livro ao acaso e volto a deitar-me. A vontade de ler

é nula. Trazer o livro é uma tentativa vã de fazer algo útil com

o meu tempo. Visto apenas umas calças. A esta hora, o silêncio

acomoda-se: não terá lugar aqui assim que a minha irmã acorde.

A botija de água quente está ainda ao fundo da cama, mas entre-

tanto esfriou. São um grande prazer para mim, estes momentos

estáticos no vazio. As respirações secas e as vibrações do movi-

mento cardíaco são dos maiores momentos de paz que tenho.

O meu quarto está repleto de situações cómicas. Dois livros

pousados ao lado um do outro. A Bíblia e Métodos Contraceptivos.

Que grande analogia da Humanidade tenho eu pousada no

fundo do meu quarto. A fé e o desejo. Não sou católico. Encaro

a Bíblia como um grande livro de História.

6h00. Chegou a hora-chave. Costumava ter um beliche.

Eu acha va que tinha pinta: subir as escadas, estar quase no

tecto. Os meus pais tiraram as hastes da estrutura da cama

e colocaram o que sobrou no chão. Agora, sempre que me le-

vanto, o metal resmunga, como que num lamento pela sua

solidão. Guarda as lágrimas, cama.

Nunca sei o que vestir. Por exclusão de partes, diria que ves-

tirei roupa. É um bom começo. Calças de ganga e uma t-shirt.

Sou mesmo um perito de moda. As ruas esperam-me. Hoje

não chove. Uma suave brisa acalma o calor que a luz do dia

teima em trazer. A paragem do autocarro continua ali. Estática.

Metida na sua própria vida. Não se interessa muito por quem

ali passa, porém, dá guarida a todos. Fica à beira de uma rotun-

da de quatro saídas. Para cada uma delas, um autocarro dife-

rente. Que ânsia.

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Ao ir para a paragem, muitas vezes atrasado, vejo o autocarro a

dar a volta à rotunda e encaminhar uma desculpa para eu chegar

atrasado à escola. Tenho de correr. Nunca gostei de o fazer. Mas o

que me entorpece o juízo é o desfile até ao banco de trás. O vento

despenteia-me o cabelo. Pareço um louco. Acho tanta graça ao jul-

gamento voraz que os passageiros do autocarro teimam em fazer.

Já não é a primeira vez que vejo este miúdo.

Ele é daqui.

Putos estúpidos.

Se não andasse com aquela trunfa à frente dos olhos, talvez cor-

resse mais rápido.

Estes putos de hoje em dia…

É por causa deles que, depois, o autocarro chega atrasado.

Perdoe-me, meu bom senhor. Obrigado por ter esperado. Querem

quantas chibatadas? Por quem sois. Quantos dias em jejum? Não

haverá penitência.

Um degrau. Dois degraus. Os solavancos do autocarro em -

purram-me de um lado para o outro. Tento não dar a impressão

de me estar a esforçar para não cair. Há uma força invisível

presente. Talvez venha da luz desta caixa de metal ambulante.

Aqui, somos todos superficiais. Um campo neutro na terra de

ninguém. Em boa verdade, na terra de muitos; portanto, na ter-

ra de ninguém. E, no entanto, não há sorrisos. Não há olhares.

Apenas bocas e olhos encaixados toscamente em corpos inertes.

Que confortável. Não ter de sorrir a ninguém. A inumanidade

no gesto, no toque, na acção. Que sono.

Saímos do autocarro e somos felizes. Pessoas, novamente.

Corpos e pessoas. Ruas e caixas metálicas. Plantamos árvores

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em pequenos canteiros para nos pouparmos à culpabilização

pela degeneração ecológica.

Mas você não viu a árvore?

Somos mesmo um país verde. Ecologia, meu bom senhor.

Está-nos no sangue. Chegue cá. Não sente o ar mais puro,

aqui? Pois. Não admira. Está todo suado, mas isso não é feito

nosso, é problema seu. Afaste-se.

Linha de Cascais. Segunda porta da segunda carruagem.

Habituei-me à luz que a tinta desta carruagem reflecte. Sento-

-me, havendo oportunidade. Começo o meu jogo matinal.

O sudoku nunca me satisfez, as palavras cruzadas não me

cativam. Olho em frente. Homem. Jovem adulto. Perto de um

metro e setenta e sete centímetros. Pele bronzeada. Corpo atlé-

tico, mas nada de exorbitante. Estrutura óssea larga, comum

em homens. Linhas do maxilar pouco definidas, atenuadas um

pouco pela barba por fazer, que se estende até ao cabelo, pro-

curando fugir, não obstante, ao efeito de patilha. Cabelo casta-

nho-escuro, curto, sem franja. Rosto largo, testa proporcional,

ainda assim saliente. Destaca-se uma borbulha no canto supe-

rior direito da testa. Como eu disse, jovem. Sobrancelhas finas

com potencial para se unirem em monocelha. Nariz acentua-

do, de estrutura peculiar. Na zona superior, podemos ver que

a cana do nariz descreve uma curva em direcção ao exterior,

e a zona inferior efectua a curva no sentido oposto. As nari-

nas viram-se para fora. Mostram-se ao mundo. Peculiar, qua-

se exótico. Um bom canibal estaria a recortar-lhe o nariz para

o expor na sua colecção privada de partes humanas inusitadas.

Pestanas compridas. Olhos castanhos.

dESPErtAr

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Costumo dar uma grande atenção aos olhos, mas por razões

circunstanciais não o poderei fazer. O meu paciente adorme-

ceu. Lábios um pouco gretados, nada de perigoso. Orelhas

grandes, próximas do crânio, com excepção do lóbulo, que

sorrateiramente se afasta. Pescoço curto, expõe as veias ao

virá-lo. Uma pequena penugem no peito é orgulhosamente

exposta pela camisa Pierre Cardin aberta nos dois botões de

cima. Duas dobras largas nas mangas. Um relógio de aspecto

caro acompanha o pulso largo que desagua na mão robusta

e comprida. Os dedos que se transformam em navios, as veias

dilatadas em seus mares. Calças de ganga azuis descem pelas

pernas compridas. Ténis amarelos mostarda com atacadores

castanhos e sola branca. Vou chamar-lhe Rui.

O Rui é um estudante de Direito. Tem vinte e quatro anos.

Filho único. Nasceu no Porto. Decidiu vir para Lisboa porque

a namorada da altura era desta terra. Conheceram-se num tra-

balho de Verão, num café onde o Rui foi empregado de mesa,

ficando em casa dos tios em Alcântara. Não gostava de o admi-

tir. Na verdade, deixava-o embaraçado, mas era um pouco

influenciável e, na altura de escolher a universidade, deixou-se

levar pelo prazer que é sentir as coxas de uma mulher jovem.

Acabou o curso e terminou a sua relação. Não voltou para

o Porto. Nos anos que passou na capital, fez os seus amigos

mais verdadeiros e apaixonou-se pelas memórias que espalhou

pela cidade. Neste momento, senta-se à minha frente com um

sorriso quase feliz. Escrutínio do exterior para dentro.

Adoro criar histórias. Afinal, o mundo é um livro e as pes-

soas, as suas personagens. Não querendo incomodar a outra

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pessoa, o importante é a quantidade de olhares e a forma de

o fazer. O Destak pode vir a ser útil nesta situação, enquanto

plano de fuga. O comboio guincha ao chegar à estação. Todos

se posicionam. A porta abre e a tensão aumenta. Parecemos

formigas. Uns descem para o formigueiro, outros continuam

a descoberto nas ruas. Cada um segue a sua vida.

Os portugueses sempre gostaram muito das suas tradições.

Como tal, toda a gente passa nos vermelhos. Lisboa é uma

cidade particular. Por si e pelas pessoas que guarda: ao subir

a Rua do Alecrim, encontro sempre as mesmas. Não as conhe-

ço, mas tenho uma relação com elas. Temos um contrato não

verbal de estado contemplativo.

Todos os dias passam por mim. O Homem-Que-Treina-

-Para-as-Maratonas. Questiono-me se alguma vez fez uma ou

se pensa em tal coisa. A verdade é que é um homem com-

ple tamente normal. Nunca o vi a caminhar. De fato e grava-

ta verde-musgo, corre sempre com a pasta na mão esquerda.

Não creio que seja possível estar todos os dias atrasado para

algo e ser assim obrigado a correr.

Demoro cerca de quinze minutos a subir a rua; dez, num

dia bom. Debato-me sobre questões triviais. Hesito sempre

quanto ao caminho a seguir. Pela rua principal, tenho o sol

que se traduz em suor, mas também uma maior probabili-

dade de encontrar alguém que conheça, trocando eventual-

mente uma palavra ou outra com um ser humano. Pelas

ruas interiores, tenho a poesia. As pessoas cansadas, que se

movem lentamente. Os moradores, cujos olhos nos relatam

histórias. Há sempre mais cheiro a mijo, sim, mas o ardor

dESPErtAr

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sentido pelo meu nariz é momentâneo. A calma e o sossego

estão sempre presentes.

Fujo à multidão. Sigo para cima. No pequeno cruzamento à

minha frente há um restaurante. Nada de especial. Apenas um

entre os outros tantos que derivam Bairro Alto fora. Mas este

pequeno espaço possui um encanto natural. É envolvido timi-

damente por uma planta trepadeira. A verdade é que a planta

não pertence ali. Este lugar foi oferecido ao cimento, às telhas

dos telhados velhos e às pedras da calçada, porém, a planta

fugiu ao controlo dos homens, rebelou-se às normas dos vege-

tais e conquistou terreno bem dentro do nosso campo de visão.

Arranco uma folha e rasgo-a em pedaços. Atiro-a ao vento como

que num remorso assassino. Sorrio. Sou feliz aqui.

Subo os dezasseis degraus que passam em frente ao Tapas

Bar. Cumprimento os habitantes locais, que, com o passar dos

anos, se habituaram a ver-me passar nas suas ruas. Um sim-

ples Viva!, e um aceno de mão rústico. O sol continua a atrasar

o meu passo. Começo a sentir-me mais confortável. Estou na

minha terra, na minha casa.

Entro pela porta de entrada e afasto, com a mão direita, o cor-

tinado que a tapa. Cumprimento a funcioná ria à entrada e esqui-

vo-me para as casas de banho. O cheiro a velhice alojou-se nestas

paredes. Cento e oitenta anos de história.

Desvio-me pela direita da sala de arrumações, desço as es -

ca das e entro na primeira porta à minha esquerda. Pouso a

mochila no banco de madeira da casa de banho e aproximo-

-me do lavatório. Os meus olhos estão vermelhos. Estou tão

cansado. O suor escorre-me pelo pescoço. Arranco três papéis,

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limpo o que consigo. Incomoda-me estar suado. Tenho repara-

do que acontece com mais intensidade nos dias em que trago a

mala do computador. O seu forro exterior guarda o calor.

Rodo a torneira e deixo a água escorrer momentaneamente

pelas minhas mãos. Muito melhor. Mergulho os meus braços

na água que se acumula neste recipiente velho e sujo. Não con-

sigo pensar em preocupar-me com a sujidade neste momento.

Estou a sentir-me mal. A tensão baixa não ajuda, mas o calor

não é muito meu amigo em tais situações.

Retiro os meus braços, agora molhados, e espero que parem

de pingar. Volto a pôr as mãos à volta da torneira, criando uma

concha. Bebo vários goles de água, passando, em boa verdade,

o ponto de satisfação. Pouso as mãos nas laterais do lavatório.

O material é espesso e frio.

Olho para cima e vejo-me com dificuldade. O espelho à minha

frente foi limpo, o problema não será esse. Mas este espelho

vê tanta gente. Responde amigavelmente a todos os obséquios

de consulta de imagem, e nunca se queixa. Queixa-te, porra.

És livre. Vai, voa agora que a janela está aberta. Nunca mais terias

de ser lambido por aquela funcionária que insiste em fazer uma

piada sempre que entra na casa de banho. Nunca mais terias de

testemunhar os guinchos dos miúdos que vêm para a tua sala

vestir-se. Nunca mais terias de ver o rapaz escondido dentro do

chuveiro a chorar porque os amigos tinham gozado com ele.

Voa, espelho. Voa ou fecha os olhos. Fecha-os, chora e dorme.

Quando a alvorada nascer e acordares entorpecido de sonhos,

verás os pesadelos que a realidade esconde dentro das tuas portas,

e voltarás a voar. Nunca pares. Se parares, não voltarás a andar.

dESPErtAr

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Não sou feio nem necessariamente bonito. Sou apenas eu.

Cabelos castanhos, compridos e fortes. Franja por cima da tes-

ta, sempre com um jeito ondulado para a direita. Um nariz dis-

creto, com as narinas ligeiramente abertas. Visíveis ao mundo.

Olhos grandes, com pestanas proporcionais. São castanhos,

mudando para cor de mel quando chega o Verão. Afundam-se

ligeiramente para dentro do meu crânio, o que me deixa uma

segunda camada fina de pele nas pálpebras quando abro os

olhos. Tenho olheiras marcadas que me conferem um falso

estado de constante cansaço. Sobrancelhas grossas, com pro-

pensão à formação de monocelha. A ponta interior da minha

sobrancelha esquerda gosta de fugir à normalidade. Levantou-

-se há uns tempos e agora que descobriu a verticalidade não

quer outra coisa. Talvez não a vá contrariar. Imaginemos,

porventura, que está em estado evolucionário. O que seria

de nós se, ao descobrirmos a verticalidade, um ser superior

nos voltasse a horizontalizar? Não seríamos quem somos.

Eu acredito na evolução e na independência. De qualquer

modo, nunca me lembro de comprar aqueles pentes minúscu-

los para ajeitar as sobrancelhas.

A extravagância que eu vejo na rua. Se calhar daqui a uns

anos já será normal usar as sobrancelhas para cima. Poderei

dizer então, muito orgulhosamente, que já andava eu nessas

andanças antes de se tornarem moda. Tenho um rosto longo

e uma cabeça grande. A puberdade ainda não permitiu que

as linhas do rosto se delineassem com grande acentuação.

Talvez nunca o venha a fazer. Nem todos a têm. No entanto,

a puberdade não me desiludiu completamente. Deu-me uma

BALUARTES • DIOGO LOPES

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voz grave, deu-me altura e ainda tenho esperança de que venha

a oferecer alguns pêlos faciais a que eu possa chamar barba.

Não poderei ser injusto: a tão adorada acne não tomou a minha

cara de assalto. Apenas chamou o pelotão de fuzilamento para

me pontilhar um pouco a face. Felizmente, a tropa já não é o

que era, e falhou muitos dos tiros.

Os meus lábios são relativamente similares entre si, sendo

que o de baixo é um pouco maior. Faço uma pequena cova entre

os lábios e o nariz. Na bochecha esquerda, tenho a cicatriz de

um golpe feio e profundo que deixou a minha cara em carne

viva. Tinha menos de um ano de idade quando um amiguinho

decidiu arranhar a minha bochecha. Está visto que sempre tive

propensão para que tirassem bocadinhos de mim. As minhas

orelhas são agorafóbicas. Escondem-se atrás do cabelo, coladas

ao meu crânio. Insistem em fazê-lo. Justificam a sua presen-

ça pela audição e o aumento de densidade no meu penteado.

Não tenho problemas com o meu pescoço. Gosto dele, para ser

franco. Gosta de posar de perfil exibindo a sua maçã-de-adão.

Tenho um corpo estranho, em geral. Sou gordo e magro.

Os meus ombros e omoplatas são pouco mais do que ossos e

contracturas. As minhas costas mostram uma escoliose tími-

da. Tremendamente sexy. Tenho mamas mais pronunciadas

do que algumas das minhas colegas, e um único abdominal

que faria inveja a qualquer culturista. Coxas recheadas, mas

com algum músculo. Há que defender a minha honra: as

minhas pernas dividem-se entre as de uma mulher velha e

gorda e as de uma criança pequena e frágil. De cima para

baixo, respectivamente. Absolutamente normal. Na verdade,

dESPErtAr

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se analisarmos o gráfico da normalidade, nem nisso excedo

expectativas. O normal é bom. O normal é discreto. O normal

é feliz.

Os meus olhos continuam vermelhos. Não posso ir para a

aula assim. Na minha idade, olhos vermelhos não originam

bons pensamentos por parte dos professores. A verdade é que

não quero ir à aula. Talvez esteja a arranjar desculpas para

chegar atrasado. Sinto-me dividido: moral desejável que se

confunde num desejo imoral. Imoral porque seria incorrecto

faltar às aulas por razões tão triviais como não me apetecer

fazê-lo. No entanto, ser imoral torna esta acção mais curiosa,

mais viva em si, mais integrada no espectro do desejo. Enfim,

a estupidez que vai na minha cabeça. Hormonas que entorpe-

cem o juízo. Talvez mais desculpas.

Sento-me, volto a levantar-me. Vou aos chuveiros e fecho a

cortina. Três baques secos, três murros nas paredes revestidas

de azulejo. Tenho a mão vermelha, agora. Sento-me no peque-

no quadrado de espaço que tenho. Os chuveiros têm um ar

antigo. Abro lentamente a cortina cor de laranja, temendo que

alguém tivesse entrado e observado em silêncio a expressão

das minhas ideias sobre o mundo físico. Volto ao meu lugar.

O espelho ainda está à minha espera. Não quero ir para a aula.

Estou no décimo ano. A escola representa uma infância a

terminar, as responsabilidades que irei carregar, o tempo que

cessa. Tenho medo. Este é o meu mundo. Conheço bem as

estradas entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré. Sei quem nelas

BALUARTES • DIOGO LOPES

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passa. Sei fazer recomendações de restaurantes. Conheço de

vista os mendigos, sei onde dormem. Conheço o horário da

fornada dos croissants que sai daquele café na Calçada do

Combro. Consigo, se me pedirem, improvisar um passeio

informativo daqueles desenhados para os turistas que se infil-

tram nas ruas, distraídos pelo mapa nas suas mãos, que ocu-

pam e fazem demorar as filas para comprar o bilhete para os

transportes. Lembro-me dos sítios onde amigos caíram e se

magoaram. Sei as esquinas onde a chuva torna complicada a

circulação, as tampas de esgoto a evitar para não escorregar.

Memorizei os pequenos pedaços de paraíso, escondidos dos

menos experientes. Já senti o afecto rústico da velha que cum-

primenta os que passam à frente da sua casa com um sorriso

doce e cansado. Vi, em vários dias, a arrogância dos taxistas

que fazem da estrada uma sala de espera. Lembro-me da dor

que é levar com o som da buzina dos carros a uma distância

demasiado próxima. Cumprimentei já os comerciantes que

ilegalmente vendem tabaco e álcool a putos da minha idade.

Comi as bifanas gordurosas que prometi mais tarde não voltar

a mastigar. Lembro-me das tradições que criámos. As guerras

no Carnaval, que me levaram acidentalmente a acertar num

velho com um balão de água.

Passo várias vezes pela rua onde senti pela primeira vez os

lábios de uma rapariga, lembro-me dos graffiti e da parede de

tijoleira que nos rodeavam. Recordo com uma sensação de

felicidade os amigos que abracei, os dias de sol em que nos sen-

távamos debaixo de uma garagem à procura de sombra, a im -

passibilidade contemplativa com que ouvíamos, cantávamos e

dESPErtAr

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ríamos. Em cada poste que toco ao andar, em cada ferida que

abro na minha pele ao raspar contra uma parede, eis pedaços

de mim que devolvo à cidade num gesto de amor apertado.

Cada beco fedorento por que passo e cada história que vivo

nas ruas são prendas que Lisboa me dá num vigor religioso.

Uma troca de respeito. Uma simbiose que se foi criando, que

residirá e perdurará.

O suor no poste, o sangue na parede. O ar nos pulmões e

as memórias na mente. É esta vivência que me guarda. Uma

decisão que nos separa. É tudo muito fácil e aí reside a sua difi-

culdade. Os seres humanos são animais que complicam. Não

por gosto, mas por impulso da sua natureza. Não esperaremos

de um tigre que não coma, se tiver fome. Poderemos esperar

de um humano que não complique o que é simples? Esperar,

podemos. Raios, à espera estou eu. À espera de um gesto, de

um milagre que renove a minha fé em mim e na vida.

Não sei se o destino existe, mas desconfio que não. Acredito

no karma. Mas não acredito que seja muito rigoroso. Não o

tem sido. Trazei a mim as criancinhas, disse Ele. O problema

será obviamente má interpretação minha ou até ignorância.

Há quantos anos digo que já não sou uma criancinha? Ao tele-

fone, confundem-me com um adulto. Rezar será a solução que

nós, comuns mortais, encontrámos para falar ao telefone com

Deus? Tenho aí a minha resposta: Ele está apenas confuso.

As religiões são como operadoras de telecomunicações.

Olhamos para o panfleto que o funcionário nos trouxe inco-

modamente à porta de nossa casa e escolhemos. Cada opera-

dora oferece diferentes pacotes de canais. O processo aperta,

BALUARTES • DIOGO LOPES

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deixando o próprio personalizar e individualizar a sua expe-

riência televisiva.

Ai, Diogo, não digas blasfémias.

Não o fiz. Se de facto fui feito à semelhança de Deus, calculo

que Ele estará agora com um sorriso nos lábios. Ou então não

prestou atenção; porém, nesta última hipótese já não seríamos

semelhantes. Eu dou atenção às pessoas. Demasiada atenção.

A tudo. Fui criado durante alguns anos apenas pela minha

mãe, e isso deixou o seu impacto. Devo dizer que por vezes

tenho algo de feminino numa relação. Muito atento a todos os

detalhes. A acção nunca é somente a acção, mas sim os moti-

vos por detrás da mesma, os seus resultados e as suas con-

sequências. Demasiadamente bom a criar conflitos internos.

Faleço devagar perante a inactividade relacional, o que me leva

a vegetar dentro da minha cabeça.

Silêncio. Sinto a garganta a secar. Bebo mais água. Um re -

lógio de bolso enrosca o seu fio em torno do meu pescoço,

aperta-me. Ao meu redor não há mais do que ponteiros e

engrenagens. Tic. Volto a sentar-me no banco de madeira

atrás de mim. Com as mãos no colo, começo a pensar numa

desculpa para um atraso. Algo sólido. Tenho claramente de

envolver um aspecto que eu não controle, removendo a mi nha

parcela de culpa. Ou família ou transportes. Tac. Mas o que é

que posso dizer sobre a família? Olhe, desculpe, a minha mãe

faleceu e atrasei-me um pouco. Tive de chamar a ambulância. Mas

eu sou mesmo dedicado a esta aula, portanto, resolvi aparecer. Tic.

Transportes, portanto. Autocarros ou comboio? A probabilida-

de de um comboio se avariar ou estragar é significativa men te

dESPErtAr

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menor em comparação com a de um autocarro. Tac. O autocar-

ro teve um pequeno problema e tivemos de sair. Tive de andar até

à estação. Desculpe o atraso. Tic. Sim, isso era capaz de resultar.

Poderá até explicar o suor. Tac. Levanto-me de um salto. Tic.

Volto a colocar tudo dentro da mala. O peso, a frustração, o

stress. Tac. Sinto a cabeça a andar à roda. Pouso as mãos no

espelho à minha frente. Como é possível que os meus olhos

estejam mais vermelhos? Na minha garganta forma-se um nó.

Tiquetaque.

Tiquetaque.

Tiquetaque.

«Menino, sente-se bem?» Olho para o lado. Não a vi entrar.

Pensando bem, não a ouvi descer as escadas. Pelo menos é ela,

e não outro.

«Sim, sim. Estou óptimo. Apenas um pouco cansado.» Tem

uma voz irritante. Ri-se.

«Então você estava a limpar o vidro? Isso é o meu trabalho.

Se quer ajudar, use os produtos.» Sorri gentilmente.

Volto a molhar a cara e a beber água da torneira. Ponho a

mala às costas. Saio.