Capítulo 7 - Mayr

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winianas entre 1859 e 2004, descobre-se que nenhuma dessas mudanças afeta a estrutura básica do paradigma darwiniano. Não há justificativa para a alegação de que o paradigma darwiniano foi refutado e tem de ser substituído por algo novo. Fico impressio- nado e acho quase um milagre que Darwin tenha chegado em 1859 tão perto do que seria considerado válido 145 anos depois. E essa extraordinária estabilidade do paradigma darwiniano justifica que seja aceito tão amplamente como um fundamento legítimo para a filosofia da biologia e, em particular, como uma base para a ética humana. E y- 'Y) 5\ ;vlo~'fy- \J~O~~'I G€h~ Úv\'((A. Cl\)~f ~;.~ ~l,~ 1:UÜ05 I .)...(( frJ. Er~NST f\I\A Y (<- B\oLoGIA( Joo5 A C I f;;;JCIA ÚNICf1 7. Maturação do darwinismo Embora Darwin tenha apresentado em 1859 com grande de- talhe, em Origem das especies, os princípios do darwinismo, foram necessários outros oitenta anos para que os biólogos o aceitassem plenamente. Havia muitas razões para tanto desacordo na biologia evolucionista daquele período. Talvez a razão principal tenha sido que o próprio conceito de darwinismo continuou a mudar ao longo do tempo, e diferentes darwinistas endossavam combinações diver- sas das cinco teorias de Darwin (ver capítulo 6). Em meu One long argument [Uma longa discussão] (1991), descrevi nove usos dife- rentes do termo "darwinismo'~ que se tornaram mais populares ou menos populares conforme o período. Apenas um tratamento cronológicopodefazer justiça à história do conceito de darwinismo. Hoje já está claro por que havia tanto desacordo na biologia evolucionista durante os primeiros oitenta anos. De início, dar-

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Capítulo 7 do livro Ciência Única do grande Ernst Mayr.

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winianas entre 1859 e 2004, descobre-se que nenhuma dessasmudanças afeta a estrutura básica do paradigma darwiniano. Nãohá justificativa para a alegação de que o paradigma darwiniano foirefutado e tem de ser substituído por algo novo. Fico impressio-nado e acho quase um milagre que Darwin tenha chegado em 1859tão perto do que seria considerado válido 145 anos depois. E essaextraordinária estabilidade do paradigma darwiniano justificaque seja aceito tão amplamente como um fundamento legítimopara a filosofia da biologia e, em particular, como uma base para aética humana.

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7. Maturação do darwinismo

Embora Darwin tenha apresentado em 1859 com grande de-talhe, em Origem das especies, os princípios do darwinismo, foramnecessários outros oitenta anos para que os biólogos o aceitassemplenamente. Havia muitas razões para tanto desacordo na biologiaevolucionista daquele período. Talvez a razão principal tenha sidoque o próprio conceito de darwinismo continuou amudar ao longodo tempo, e diferentes darwinistas endossavam combinações diver-sas das cinco teorias de Darwin (ver capítulo 6). Em meu One longargument [Uma longa discussão] (1991), descrevi nove usos dife-rentes do termo "darwinismo'~ que se tornaram mais populares oumenos populares conforme o período. Apenas um tratamentocronológicopodefazer justiça à história do conceito de darwinismo.

Hoje já está claro por que havia tanto desacordo na biologiaevolucionista durante os primeiros oitenta anos. De início, dar-

winismo significava simplesmente anticriacionismo. Um evolu-cionista era rotulado como darwinista desde que adotasse pelomenos a teoria de que a mudança evolutiva era devida a causas na-turais, e não à ação divina (Mayr, 1991, 1997). Alguém era darwi-nista se considerasse a ciência como uma empreitada secular. Con-seqüentemente, mesmo opositores da seleção natural, como T. H.HuxIeye Charles Lyell,eram chamados de darwinistas. Não espantaque o termo "darwinismo" tivesse tantos significados no século XIX.

Os primeiros anos após 1859 foram de considerável confusãona biologia evolucionista. É certo que duas das cinco teorias deDarwin, um mundo em evolução e a descendência comum, foramde imediato quase universalmente aceitas, mas as outras três nãoeram populares. A seleção natural, em particular, era uma visãoum tanto minoritária.

O transmutacionismo e as duas teorias transformacionistaseram tremendamente mais populares que a evolução variacionalde Darwin (Mayr, 2001). Darwin havia desistido da especiação eseus amplos esforços para explicar a natureza e aorigem da variaçãoforam malsucedidos. A herança de características adquiridas tinhaaceitação quase universal, e Darwin a adotou simultaneamente àseleção natural. Isso o ajudou a explicar a ubiqüidade de novas va-riações e, para ele, não afetava a primazia da seleção natural. Umagrande parcela dos naturalistas aceitava tal combinação de seleçãonatural e herança de características adquiridas (Plate, 1913).

Em 1883, August Weismann, o maior evolucionista depois deDarwin, publicou sua refutação da herança de características

adquiridas e foi seguido por Alfred Russel Wallace e outros dar-winistas. Por meio de suas teorias gerais, Weismann preparou ocaminho para a redescoberta de Mendel, como assinalou Corrensacertadamente. Romanes (1894) cunhou o termo "neodarwi-nismo" para esse novo tipo de darwinismo sem a herança de ca-racterísticas adquiridas. Alguns historiadores recentes exor-bitaram o uso do termo "neodarwinismo", designando com ele oconjunto de teorias que emergiu da síntese evolucionista, mas issofoi um erro. Neodarwinismo é a designação para o darwinismo re-visado por Weismann (com a exclusão de toda herança de carac-terísticas adquiridas).

Quando a obra de Gregor Mendel foi redescoberta em 1900,muitos alimentaram a esperança de que a nova ciência da genética,com suas leis da hereditariedade, viesse a fornecer as respostas paraas grandes controvérsias sobre evolução que grassavam desde osdias de Darwin.

Os mais destacados geneticistas mendelianos interessadosem evolução - Hugo de Vries (um dos "redescobridores" deMendel), William Bateson eWilhelm Johannsen -, porém, infe-lizmente rejeitavam a seleção natural, pedra de toque do pensa-mento de Darwin. De Vries, com certeza, favorecia em seu lugar osaltacionismo. De acordo com ele, uma nova espécie surge comuma grande mutação genética, que num único salto (salta-cionismo) dá origem ao novo táxon. Essa teoria saltacionista do-minou a genética evolucionista de 1900 até por volta de 1915.Como infelizmente essa teoria mendeliano-mutacionista damudança evolutiva era de larga aceitação entre geneticistas, foitomada pela maioria dos naturalistas como a teoria genética daevolução, sob o nome de mendelismo, embora não fosse apoiada

por alguns "mendelianos". Uma vez que os naturalistas como umtodo acreditavam em evolução gradual e variação populacional,eles consideraram o mendelismo saltacionista um tanto ina-ceitável, e isso criou um fosso pelo visto intransponível entreevolucionistas.

Desde a época de Darwin, e mesmo antes dela, aqueles queobservavam populações de seres vivos perceberam que a origemde novas espécies era em geral um processo gradual. Esses natura-listas não tinham nada a ver com mutacionismo e, ao contrário, seaferraram ao conceito de evolução gradual, o qual havia sido arti-culado inicialmente por Jean-Baptiste Lamarck, no começo doséculo XIX. Como o gradualismo era explicado pelo transforma-cionismo lamarckista, essesnaturalistas se tornaram lamarckistas.

Contudo, os mendelianos não eram os únicos geneticistas daépoca. Havia outros, entre eles Nilsson-Ehle, Baur, Castle, East e,na Rússia, Tchetverikov, que aceitavam a ocorrência de pequenasmutações e seleção natural. A existência desses geneticistas gra-dualistas, no entanto, foi ignorada pelos naturalistas, que concen-traram seu ataque no saltacionismo de De Vries e seguidores. Nogeral, a interpretação darwiniana, com sua ênfase no papel daseleção natural, teve seu ponto de popularidade mais baixo nesseprimeiro período da. genética (começo do século xx) e era, naépoca, freqüentemente declarada morta.

A nova ciência da genética desenvolveu metodologias ino-vadoras e um novo quadro teórico, distanciando-se do trans-mutacionismo dos mendelianos. Por volta de 1910,no laboratóriode T. H. Morgan na Universidade Columbia (Nova York) , umanova geração de geneticistas entrou em cena com descobertas quecontradiziam as visões dos primeiros mendelianos. Em seus ex-

perimentos com moscas-das-frutas (Drosophila), esses pesqui-sadores descobriram que a maioria das mutações era pequena obastante para permitir uma mudança gradual em populações;saltos repentinos não eram necessários. Logo o saltacionismo dosmendelianos foi considerado obsoleto. Entre 1915 e 1932, osgeneticistas populacionais matemáticos Fisher (1930), Wright(1931) e Haldane (1932) mostraram que genes com somente pe-quenas vantagens seletivas podiam ser incorporados, no tempodevido, no genótipo de populações. A evolução filética podia agoraser explicada nos termos da nova genética. Lamentavelmente, amaioria dos naturalistas não estava ciente desses desenvolvimen-tos e ainda combatia o antigradualismo dos primeiros mende-lianos.

De acordo com a teoria mais ou menos unificada de Fisher eseus colegas, a evolução foi definida como mudança nas freqüên-cias gênicas em populações, mudança essa ocasionada pela seleçãonatural gradual de pequenas mutações aleatórias. Já em 1932, umconsenso sobre esses achados havia sido alcançado entre as váriasescolas de geneticistas em disputa. Foi uma síntese entre geneticis-tas populacionais matemáticos e selecionistas darwinianos. Talsíntese, que se pode chamar de fisheriana em reconhecimento aseu maior representante, solucionou um dos dois maiores proble-mas da biologia evolucionista, o da adaptação. Lamentavelmente,tal síntese fisheriana do final dos anos 1920 tem sido confundidapor muitos historiadores com uma segunda síntese, que envolveua biodiversidade.

A adaptação é somente metade da história da evolução. Abiologia evolucionista se refere a dois processos separados: evo-

lução filética, ao longo do tempo e no interior de uma dada popu-lação, e a origem e a multiplicação de espécies. Fisher, Wright eHaldane estavam interessados primordialmente em determinarcomo uma população evolui à medida que o ambiente muda. Esseramo da biologia evolucionista ficou conhecido como o estudo daanagênese. Os naturalistas, em contraste, estavam mais interessa-dos em diversidade e em determinar como novas espécies se ra-mificam a partir de espécies parentais. Esse estudo da origem dabiodiversidade costuma ser designado como cladogênese. Em ou-tras palavras, os geneticistas populacionais matemáticos tratavamda dimensão vertical, ou "temporal", da evolução (mudanças aolongo do tempo em meio a uma dada população), enquanto natu-ralistas na maioria das vezes se ocupavam da dimensão horizontal,ou geográfica, da evolução (a produção de novas espécies em umdado momento).

Esse segundo grande problema evolucionista -- a multipli-cação de espécies, ou a origem da biodiversidade - permaneceusem solução por meio da síntese fisheriana. Os geneticistas nãoconseguiam explicar a especiação porque seus métodos os res-tringiam ao estudo, em cada mOl1Jentodado, de uma única popu-lação, de um único acervo de genes. Embora resolvesse o conflitoentre genética mendeliana e seleção natural, a síntese flsheriananão conseguiu enfrentar a divergência entre genética matemáticae biodiversidade. Físher, Haldane e Wright estavam atentos aoproblema da origem da biodiversidade e se referiram vagamente aele, sobretudo Wright, mas não pareciam perceber o papel desem-penhado pela localização geográfica de populações epor seu isola-mento. Fornecer uma explicação de como a vida prolifera em tan-tas formas diversas a cada momento dado - por oposição a uma

só forma que muda continuamente ao longo do tempo - foi ofeito de uma segunda síntese, iniciada em 1937 pela obra deDobzhansky Genetics and the origin ofspecies [Genética e a origemdas espécies] .

Na realidade, os naturalistas europeus, por meio de seu tra~balho em taxonomia e história natural, já dispunham nos anos1920 de uma explicação para a origem da biodiversidade. Deacordo com esses naturalistas-taxonomistas, a especiação ocorrequando duas populações de uma espécie se tornam fisicamenteseparadas uma da outra e, durante esse isolamento espacial, se tor-nam também reprodutivamente isoladas, seja por meio de bar-reiras de infertilidade, seja por incompatibilidades comportamen-tais (mecanismos de isolamento). Às vezes a separação geográficaocorre por causa de uma nova barreira física (uma nova cadeia demontanhas ou um novo braço de mar), ou especiação dicopátrica,e às vezes porque uma população fundadora se estabelece além daárea de distribuição anterior da espécie, ou especiação peripátrica.Se a população geograficamente isolada contiver o potencial parauma divergência importante, uma nova espécie se ramificará daespécie parental. Tanto a especiação dicopátrica quanto a peri-pátrica são designadas como especiação geográfica.

Essas idéias sobre especiação permaneceram desconhecidaspara os geneticistas de laboratório. Enquanto isso, os naturalistaseram igualmente incapazes de chegar a um entendimento pleno daevolução por causa de sua ignorância sobre desenvolvimentos re-centes na genética. Eles ainda atacavam o modelo saltacionista dosprimeiros mendelianos, que Fisher e seus colegas já haviam re-futado muito antes. Dado que naturalistas como Stresemann eRensch e zoólogos franceses não podiam aceitar os grandes saltosgenéticos de De Vries e não estavam cientes das pequenas mu-tações descobertas por geneticistas mais recentes, eles se voltarampara o lamarckismo para explicar a evolução gradual. Os natura-

listas (inclusive eu) aceitavam a noção lamarckista de que a varia-ção emergia por meio do uso ou desuso de partes existentes docorpo e de que essas "características" adquiridas poderiam sertransmitidas para a prole. Embora a maioria dos naturalistasdefendesse firmemente a seleção contra os erros dossaltacionistas,eles também retinham uma explicação lamarckista ultrapassadada variação. Assim, apesar dos grandes avanços obtidos tanto nagenética quanto na taxonomia, havia um abismo profundo deincompreensão entre os geneticistas experimentais e os naturalis-tas-taxonomÍstas. Alguns geneticistas matemáticos creditam o"modelo de paisagem" de Wright como uma contribuição para asolução da teoria geográfica da especíação, mas uma análise críticada teoria pertinente não oferece apoio para tal alegação.

Esse abismo só foi transposto pela "síntese evolucíonista" dosanos 1940. Como mencionado, houve uma síntese anterior, aquelaentre genética e darwinismo, à qual me referi como síntese fishe-riana (origem da genética populacional matemática). Ela tem sidocom freqüência confundida com a síntese posterior de Dobz-hansky (origem da biodiversidade), nas histórias escritas por ge-neticistas. Essa síntese anterior ("fisheriana") lidava com acervosgenéticos simples, com populações únicas, com variações genéti-cas e com a origem da adaptação. Não fez contribuição algumapara a solução do problema da biodiversidade. Permanecia oabismo entre os geneticistas, particularmente interessados emvariação e adaptação, e os taxonomistas, interessados na origem dabiodiversidade.

Na realidade, não havia mais conflito entre a interpretaçãomicromutacional da evolução (tal como é aceita hoje por gene-ticistas) e as idéias evolucionistas dos naturalistas. No entanto, osgeneticistas lidavam apenas com uma dada população, e o campoda origem da biodiversidade ficava fora do alcance de sua meto-dologia. Em conseqüência, havia ainda uma distância consi-

derável entre os geneticistas e os naturalistas (taxonomistas). Atransposição dessa fenda foi iniciada em 1937 com apublicação deGenetics and the origin of species, de Dobzhansky. Por sua for-mação, ele estava idealmente qualificado para essa tarefa. Natura-lista desde a infância, havia recebido sua educação biológica naRússia, onde se interessou pela variação individual e geográfica epela especiação em um grupo de besouros (Coccinellidae). Com aidade de 27 anos, foi para os Estados Unidos e entrou para o labo-ratório de T.H.Morgan, onde adquiriu plena familiaridade com amoderna genética evolucionista. O resultado feliz dessas duasinfluências tão diferentes foi seu livro Genetics and lhe origin ofspecies, publicado em 1937. Esse livro mostrou a geneticistas e na-turalistas que suas teorias da evolução eram perfeitamente com-patíveis e que era possível obter uma síntese das duas principaisáreas em biologia evolucionista, o estudo da evolução filética empopulações (anagênese) e a origem da biodiversidade - espécies,especiação, macroevolução (cIadogênese). Essa síntese dos doiscampos foi completada em publicações subseqüentes de Mayr,Systematics and the origin of species [Sistemática e a origem dasespécies] (1942); Huxley, Evolution, the modern synthesis [Evolu-ção, a síntese moderna] (1942); Simpson, Tempo and mode in evo-lution [Ritmo e modo em evolução] (1944); Stebbins, Variationand evolution in plants [Variação e evoluçãO em plantas] (1950;; c,no continente êuropeu, por Rensch (1947).

Essa síntese dos anos 1940 tratou primordialmente da origeme do significado da biodiversidade: como e por que surgem novasespécies. Toda população tem de estar bem adaptada, em cadamomento, e isso basta para explicar as mudanças que ocorremnuma espécie no curso do tempo. Mas a população não precisaproduzir novas espécies para permanecer adaptada. Os mecanis-mos que produzem novas espécies requerem explicações muito

diversas dos mecanismos que mantêm a adaptação estudados porgeneticistas.

Outro grande feito da síntese evolucionista foi estabeleceruma frente comum dos verdadeiros darwinistas contra três teoriasnão darwinianas de evolução que ainda eram largamente aceitaspor volta de 1930: lamarckismo (ainda aceita, então, por muitosnaturalistas), saltacionismo [promovido por Schindewolf (1950)e por Goldschmidt (1940) com seus "monstros esperançosos"] eortogênese (uma crença num gênero de componente teleológico,orientado por uma meta, em evolução). Após a síntese, essas trêsteorias não tinham mais função em discussões evolucionistassérias (Mayr, 2001).

Em 1947, quando evolucionistas se encontraram em Prince-ton num simpósio para celebrar a síntese, perceberam que de fatoum consenso fora alcançado, em grande medida, e que as maiorescontrovérsias dos cinqüenta anos precedentes já haviam se trans-formado em assunto para historiadores. Restava somente umúnico desacordo sério entre os dois campos, relacionado com oobjeto de seleção. Para os naturalistas, assim como havia sido paraDarwin, era o indivíduo, enquanto para os geneticistas era o gene,em parte porque isso facilitava a computação. Na realidade, trata-se de uma diferença bem importante, porque ilustra a tendênciareducionista dos geneticistas populacionais, ao passo que os prin-cipais :1rtífices da síntese, sobretudo os naturalistas, tinham visõesmarcadamente holistas. Já antes da síntese, eu, como a maioria dosnaturalistas, era um holista. A evolução, para mim, dizia respeitoao organismo todo, e o organismo como um todo era o alvo daseleção. Essa era, obviamente, a tradição darwiniana. Admito que,durante a síntese, empreguei a fórmula padrão dos geneticist<:).s,segundo a qual "a evolução é uma mudança na freqüência dosgenes", embora isso fosse de fato incompatível com meu pensa-mento holista.Mas não me dei conta dessa contradição senão

muitos anos depois (Mayr, 1977). Na realidade, apesar da síntese,a definição de evolução (seja reducionista, sejaholista) continuoua ser o ponto principal de desacordo entre os geneticistas e os na-turalistas. Para os naturalistas, a evolução é mais que a mudançanas freqüências de genes: é a aquisição e a manutenção de adap-tação e a origem de nova biodiversidade.

Imediatamente após a síntese veio a revolução molecular, umepisódio de fato revolucionário na história da biologia. Averymostrou em 1944 que o material genético consiste não em proteí-nas, mas em ácidos nucléicos; Watson e Crick descobriram em1953 a estrutura do DNA, o que permitiu explicar suas atividades.Essa descoberta abriu uma nova e crucial dimensão para a análisegenética e resolveu inumeráveis questões antes insolúveis. Final-mente, em 1960, Jacob eMonod mostraram que havia vários tiposde DNA e, em particular, um DNA regulador especial que controla aatividade dos genes estruturais. Essas descobertas produziramuma mudança tão cataclísmica nas idéias dominantes que erajusto esperar um efeito drástico sobre o darwinismo.

Com efeito, a biologia molecular fez inumeráveis contri-buições importantes para nosso entendimento da evolução. Elamostrou que o código genético é essencialmente o mesmo desde asbactérias primitivas até os organismos multicelulares superiores.Isso demonstra que toda a vida hoje existente na Terra descende deuma única origem. A biologia molecular também mostrou que ainformação só pode ser transferida de ácidos nucléicos para pro-teínas, e não de proteínas para ácidos nucléicos. Essa é a razão pelaqual não pode haver herança de características adquiridas.

o impacto maior da revolução molecular sobre a biologiaevolucionista viria da genômica, o estudo comparativo de seqüên-cias gênicas. Ela mostrou que vários genes são muito velhos. Porexemplo, alguns genes mamíferos podem ser identificados comgenes em filos de não-cordados e até com genes procariotos. Agenômica permite o estudo do efeito da substituição de pares debases isolados, o efeito da inserção de DNA não codificante, o trân-sito de genes por transferência horizontal e o efeito de todas asnunlerosas mudanças de genes ede sua posição nos cromossomos.A invenção do relógio molecular por Zuckerhandl e Pauling foiuma enorme contribuição para a metodologia evolucionista. Agenômica está em processo de se transformar em um ramo impor-tante de genética evolucionista. Não pode ser abrangida com pou-cas palavras, e aqui remeto para a literatura relevante (Campbell eHeyer,2002).

A revolução molecular é particularmente importante porduas razões. Ela permitiu reviver várias divisões da biologia clás-sica, como a biologia do desenvolvimento e todos os aspectos dafisiologia dos genes que haviam sido negligenciados antes, noséculo xx. Ao adotar métodos e teorias moleculares, essas áreasexperimentaram uma revitalização e uma aproximação com osramos modernos da biologia. Entre outros avanços, talvez o maisinteressante tenha sido que, por meio da biologia molecular, váriosfísicos e bioquímicos vieram a se interessar por evolução. Issoresultou em esforço para estreitar a distância entre ramos dabiologia que anteriormente tinham pouco conhecimento um dooutro. Foi assim que a biologia molecular deu uma contribuiçãoimportante para a unificação da biologia que teve lugar no séculoxx. Um exame de quase todas as edições atuais de Evolution, TheAmerican Naturalist ou outros periódicos evolucionistas revelará

como tem sido grande a contribuição dos métodos molecularespara a solução de problemas da evolução.

No entanto, a abordagem centrada no gene da maioria dosbiólogos moleculares tem levado a algumas discordâncias. Achamada evolução neutra, por exemplo, é considerada por muitosbiólogos moleculares como um modo importante de evolução,mas é ignorada por naturalistas, porque genes neutros não sãovisíveis no fenótipo.

A seqüência de pares de bases no genoma fornece uma quan-tidade enorme de informação sobre o parentesco e a filogenia deorganismos. As características-padrão morfológicas, usadas desdeo princípio dos estudos filogenéticos, eram por vezes insutlcientespara chegar a uma filogenia confiável. Os métodos da biologiamolecular forneceram informação abundante, o que permitiuuma reestruturação revolucionária da tllogenia de vários gruposde organismos.

O período que vai dos anos 1940 (síntese evolucionista) até opresente tem sido de grandes avanços em biologia, incluindo osurgimento e a ascensão espetacular da biologia molecular. Seriade esperar que isso tivesse ocasionado uma revisão cabal do dar-winismo. Contrariamente à expectativa, nada no gênero aconte-ceu. O paradigma darwiniaüo produzido nos anos 1940, durantea síntese evolucionista, foi capaz de resist; r sem uma revisão signi-ficativa a todos os ataques contr,i ele dos últimos cinqüenta anos.Isso sugere que se possa acreditar, com cautela, que o paradigmadarwiniano adotado durante a síntese evolucionista seja essencial-mente válido. A fórmula darwiniana básica- evolução é o resul-tado de variação genética e de sua discriminação por meio de di-

minação e seleção - é abrangente o bastante para dar conta detodas as eventualidades naturais. Buscar uma nova teoria (para-digma) evolucionista parece hoje uma empreitada inútil. Nos últi-mos cinqüenta anos, ou até mais que isso, a cada ano um novoartigo ou mesmo um livro era publicado em que se postulava umerro ou omissão sérios do darwinismo. O autor propunha umanova teoria, ou novas teorias, que ele ou ela alegava corrigir esseerro e preencher a lacuna. Infelizmente, nem uma única dessaspropostas se revelou construtiva. O já clássico darwinismo erasempre confirmado, e as supostas melhorias e correções, refu-tadas. Isso sugere que o darwinismo está se acercando da maturi-dade plena. Existem ainda, obviamente, numerosos enigmas porsolucionar, como a função de todo o DNA não codificante, mas nãoconsigo ver em que a solução de qualquer um dos enigmas res-tantes possa ter um efeito perceptível no paradigma darwinianobásico.

As principais controvérsias em biologia evolucionista, nosanos recentes, tais como a importância da adaptação, o papel doacaso, o pensamento populacional, o gradualismo da evolução, aconstância das taxas evolutivas etc. se referem a indivíduos e po-pulações, e não a genes. Mesmo a descoberta de Jacob e Monod deque há diferentes tipos de genes, estruturais e reguladores, não afe-tou a teoria darwiniana. As duas principais razões da solidez doparadigma danviniano estão provavelmente no fracasso do redu-cionismo e na simplicidade do darwinismo básico.

Esta foi uma versão extremamente abreviada da história dodarwinismo desde 1859 e, sobretudo, a partir da década de 1920.Recentemente publiquei várias narrativas mais detalhadas da

história da síntese, com uma discussão dos numerosos erros eimprecisões que assolam os relatos de alguns geneticistas e histo-riadores (1992, 1993, 1997, 1999a, 1999b, 2001). Em particular,assinalo que alguns historiadores confundiram a síntese fisherianados anos 1920 com a síntese dos anos 1940.

Qual nome devemos aplicar à versão do darwinismo desen-volvida nos anos 1940? Erroneamente, ela foi com freqüênciachamada de neodarwini5mo, mas tal escolha é um evidente equí-voco. Neodarwinismo é o termo reservado por Romanes, em 1894,ao paradigma darwiniano sem a hereditariedade leve [50ft inheri-tance] (isto é, sem a crença na herança de características adquiri-das), mas isso vale para todo o darwinismo desde os anos 1920. Anova teoria evolucionista, produto da síntese das teorias dos estu-diosos da anagênese e da cladogênese, foi chamada de teoria sin-tética da evolução. Na realidade, a melhor solução seria chamá-Ia,simplesmente, de darwinismo. Com efeito, trata-se, em essência,da teoria original de Darwin com uma teoria válida de especiaçãúe sem a hereditariedade leve. Como essa forma de hereditariedadefoi refutada mais de cem anos atrás, não pode haver equívoco naretomada do simples termo "darwinismo", porque ele engloba osaspectos essenciais do conceito original de Darwin. Em particular,refere-se à inter-relação entre variação e seleção, o cerne do para-digma de Darwin, e confirma que é melhor referir-se ao para-digma evolucionista, após um longo período de maturação, sim-plesmente como darwinismo.