CAPÍTULO TRÊS O PRESIDENTE ESTADISTA GOVERNO DE … · cassados os mandatos de 40 parlamentares...

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Paulo Victorino CAPÍTULO TRÊS O PRESIDENTE ESTADISTA GOVERNO DE CASTELO BRANCO O governo Castelo Branco editou três Atos Institucionais. Nem necessitava de mais outros, pois tamanha foi a quantidade de Atos Complementares, acompanhando cada ato institucional, que o processo foi totalmente subvertido. Eles regularam o funcionamento das CGIs (Comissões Gerais de Inquérito), cuidaram de dispensas, remoções e aposentadorias, atingiram o Judiciário, alteraram a composição do Supremo Tribunal Federal, fizeram tudo o que se possa imaginar, dentro do maior casuísmo, assinados sempre que surgisse um obstáculo a ser removido. Nesse processo, com a edição do AI-3 e respectivos complementos, criou-se a figura do governador "biônico", o qual passou a ser escolhido pelo Presidente dentro da Arena (o partido do governo), a partir de uma lista tríplice, confirmado depois pelas respectivas assembleias legislativas. Foi criada a fidelidade partidária, impedindo os parlamentares de votar em outro candidato que não o de seu próprio partido. Como o MDB (oposição) ameaçou com renúncia coletiva, o AC-16 proibiu também a renúncia. Uma vez vitorioso o movimento militar de 1964, com a retirada do presidente João Goulart para Porto Alegre e, depois, para o Uruguai, foi empossado em seu lugar o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili que, ao contrário da rainha da Inglaterra, nem reinava, nem governava, cabendo-lhe apenas dar uma aparência de legalidade à transição.

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Paulo Victorino

CAPÍTULO TRÊS

O PRESIDENTE ESTADISTA

GOVERNO DE CASTELO BRANCO

O governo Castelo Branco editou três Atos Institucionais. Nem

necessitava de mais outros, pois tamanha foi a quantidade de Atos

Complementares, acompanhando cada ato institucional, que o

processo foi totalmente subvertido. Eles regularam o

funcionamento das CGIs (Comissões Gerais de Inquérito),

cuidaram de dispensas, remoções e aposentadorias, atingiram o

Judiciário, alteraram a composição do Supremo Tribunal Federal,

fizeram tudo o que se possa imaginar, dentro do maior casuísmo,

assinados sempre que surgisse um obstáculo a ser removido.

Nesse processo, com a edição do AI-3 e respectivos

complementos, criou-se a figura do governador "biônico", o qual

passou a ser escolhido pelo Presidente dentro da Arena (o partido

do governo), a partir de uma lista tríplice, confirmado depois pelas

respectivas assembleias legislativas. Foi criada a fidelidade

partidária, impedindo os parlamentares de votar em outro candidato

que não o de seu próprio partido. Como o MDB (oposição)

ameaçou com renúncia coletiva, o AC-16 proibiu também a

renúncia.

Uma vez vitorioso o movimento militar de 1964, com a retirada do presidente

João Goulart para Porto Alegre e, depois, para o Uruguai, foi empossado em seu

lugar o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili que, ao contrário da

rainha da Inglaterra, nem reinava, nem governava, cabendo-lhe apenas dar uma

aparência de legalidade à transição.

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Enquanto Mazzili aproveitava o ar condicionado do Palácio do Planalto, as

decisões iam sendo tomadas no ambiente quente do edifício do Ministério

da Guerra, no Rio de Janeiro, onde o general Artur da Costa e Silva,

autonomeado ministro da Guerra, comandava uma Junta Militar

Revolucionária formada por ele, pelo novo ministro da Marinha, almirante

Augusto Rademaker e pelo novo ministro da Aeronáutica, Correia de Melo.

A mais importante de todas as medidas foi a assinatura do Ato Institucional

(até então sem número, pois deveria ser o único) que concedia poderes

revolucionários à Junta, sobrepondo-os aos da própria Constituição em vigor.

Esse ato, publicado em 9 de abril de 1964, deu margem a que, no dia 10, fossem

cassados os mandatos de 40 parlamentares que faziam oposição à nova ordem.

Aberto assim o caminho, no dia 11, o Congresso Nacional elegeu o general

Humberto de Alencar Castelo Branco presidente da República, com o

político mineiro José Maria Alkmin como vice-Presidente. Ambos tomaram posse

no dia 15, no recinto do Congresso, iniciando-se uma nova fase da vida nacional.

Castelo Branco era o presidente certo, no momento exato. Apresentava-se

como rígido militar, mas, mesmo sem nunca ter participado da vida pública,

demonstrava ter profunda vivência política. Era, pois, a um só tempo, militar e

estadista. Tinha ideais democráticos e sua presença no governo surgia

como uma suposta garantia à realização de eleições livres e diretas em 3

de outubro de 1965, conforme calendário, restabelecendo com elas (se

tivessem acontecido) a normalidade constitucional no país.

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Sua vocação liberal foi, entretanto, freada, por ser ele um mandatário (e não

mandante) do Sistema, representante que era de um movimento militar bem-

sucedido e que assumiu o poder conjuntamente, tanto que a Junta

Revolucionária fora, toda ela, transplantada em seu ministério.

A primeira decepção do novo Presidente foi ter de engolir, meses

depois, a prorrogação de seu mandato até 1967. Sua maior contrariedade,

todavia, foi ter de assinar o Ato Institucional nº2. Num primeiro momento,

recusou-se a fazê-lo, o que provocou um desabafo do jurista Francisco Campos

ao seu conterrâneo, o vice-Presidente José Maria Alkmin: "Ai, minha Nossa

Senhora, ele pensa que é civil e foi eleito!"

Entre a espada e a Constituição

Em verdade, esse tornou-se o grande drama de Castelo Branco: não era,

como o presidente Dutra, um general exercendo o poder civil. Estava ali como

militar, representando as Forças Armadas, que ganharam uma revolução. Não

fora eleito legitimamente, em pleito aberto, mas chegara ao cargo por

eleição indireta, sob a garantia de um Ato Institucional que valia por uma

dúzia de constituições. E tinha, atrás de si, a presença nada invisível do poder

político-militar que assumira de fato o governo e nele permaneceria nos próximos

21 anos, adaptando a legislação, casuisticamente, com uma série de Atos

Institucionais (nada menos que 17 AI’s)), seguidos, cada um deles, por uma

enxurrada de Atos Complementares que cuidavam de dar sintonia fina às

medidas de exceção.

Como consequência, poucos se lembram das reformas de base realizadas

em seu governo e que colocaram o país, novamente, no caminho do

desenvolvimento. Seu primeiro e grande feito foi restabelecer o respeito

devido à instituição da Presidência da República, desmoralizada no

governo Goulart.

No mais, entre outras obras, cuidou de restaurar a situação econômico-

financeira que vinha se deteriorando desde o governo Vargas, garantindo com

isso a credibilidade do Brasil no exterior e permitindo novos aportes de capitais,

necessários para o crescimento do país.

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Em seu ramo específico, cuidou da reforma das Forças Armadas, refazendo

a arcaica estrutura administrativa das três forças e eliminando querelas e ciúmes

entre elas. Aliás, pessoalmente, Castelo defendia a criação de um Ministério

da Defesa, englobando Exército, Marinha e Aeronáutica, o que não pôde ser

ao menos cogitado em seu mandato, pela excepcionalidade primeiro governo;

os que lhe sucederam, não se interessaram no assunto, preocupados que

estavam em estratificar o poder do Estado sobre a Nação.

Na reforma fiscal e tributária, Castelo eliminou os velhos impostos que

emperravam a máquina, a maioria deles em cascata, substituindo-os por um

sistema moderno e eficiente de arrecadação. Foi dessa época, também, a

criação do CGC e do CPF para a identificação e controle do contribuinte.

No campo, promoveu uma reforma agrícola (não agrária), garantindo a

estabilidade da produção, permitindo o aumento das exportações, e acabando

com as sucessivas crises de abastecimento do mercado interno.

Tudo isso, é preciso que se diga, se fez em meio a intenso diálogo dentro do

ministério e junto às classes produtoras; um diálogo ao qual não faltou a

imprensa que, durante o período de Castelo Branco, não sofreu qualquer

censura, manifestando-se de forma ampla e irrestrita, até mesmo

acintosamente. Os mesmos jornais que haviam participado do movimento

revolucionário, como a Tribuna de Imprensa, o Correio da Manhã e O Estado de

S. Paulo abriam suas baterias contra o poder central, atingindo violentamente o

presidente da República.

A História, cujos contornos o tempo vai clareando, um dia lhe fará justiça,

expurgando de sua biografia os atos revolucionários e trazendo à luz os atos

efetivos de governo.

Ah, mais uma coisa: apesar de Brasília, a cidade do Rio de Janeiro

continuava a ser a capital virtual do Brasil. O Palácio do Planalto, em Brasília,

dava para o gasto do dia-a-dia, mas os grandes assuntos e as grandes

resoluções aconteciam mesmo no Palácio das Laranjeiras, na Guanabara,

obrigando o presidente a viajar, continuamente, de um ponto a outro.

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Quem era Castelo Branco

Humberto de Alencar Castelo Branco nasceu em Fortaleza-CE, em 20 de

setembro de 1897, filho do general Cândido Borges Castelo Branco, e de dona

Antonieta Alencar Castelo Branco. Por parte da mãe, era, pois, descendente

do romancista José de Alencar. Por parte do pai, vinha de uma linhagem a

que pertencia, por exemplo, a escritora Raquel de Queirós.

Passou a primeira infância no interior de seu Estado e, aos 8 anos, foi enviado

a estudar em Recife. Como não conseguisse acompanhar a classe (seu

professor o considerava um retardado), sua mãe trouxe-o de volta ao Ceará,

ficando, então, aos cuidados das irmãs Vicentinas, que lhe proporcionaram os

primeiros conhecimentos.

Aos 14 anos seguiu para Porto Alegre, longe da família, matriculando-se na

Escola Militar. Era filho de general, mas era pobre, e sua idade no registro foi

adulterada para 12 anos, a fim de garantir a gratuidade do ensino. Lá teve como

companheiros Juarez Távora, Riograndino Kruel, Amauri Kruel, Ademar de

Queirós, Artur da Costa e Silva e outros que o acompanhariam na carreira até

os postos mais altos do Exército.

Formou-se oficial na Escola Militar do Realengo (Rio de Janeiro),

cursando em seguida a Escola de Comando do Estado Maior do Exército, a

Escola Superior de Guerra da França (o treinamento militar brasileiro estava

conveniado com os franceses) e, finalmente, a Escola de Comando e Estado-

Maior dos Estados Unidos.

Em 6 de fevereiro de 1922 casou-se com dona Argentina Viana, irmã do

historiador Hélio Viana, com quem teve dois filhos: Antonieta (o mesmo nome

da avó, que falecera dois meses antes) e Paulo. O casamento trouxe à mostra

o lado profundamente sentimental de Castelo. Dona Argentina foi o grande

elo de sua vida: No Brasilo, acompanhava-o, quando possível, a operações de

campanha; na Segunda Guerra Mundial, separados pelo grande oceano, tornou-

se a inspiradora de uma série de cartas nas quais o então tenente-coronel, livre

da censura, derramava seus comentários a respeito da guerra e dos que se

achavam à sua volta.

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Argentina Viana Castelo Branco morreu em 1963, quando o general era

comandante do 4º Exército, em Recife. Tornou-se, então, a imagem que lhe

seguiria os passos inspirando-o nas decisões.

Enquanto Presidente, sua filha fez-lhe as vezes de primeira-dama, mas a

presença espiritual da esposa serviu para humanizar o velho militar,

tornando menos duros os atos punitivos e incentivando-o no objetivo, afinal

frustrado, de restabelecer a democracia até o término de seu governo.

Ao assumir a Presidência, o general Castelo Branco passou para a reserva,

recebendo em consequência o título de marechal, o que, na época, acontecia

automaticamente. Ele mesmo eliminou essa prática, que chamava ironicamente

de "título de pensão", já que a finalidade maior era a de aumentar o soldo do

militar. Mas, antes de eliminar a regalia, garantiu essa promoção ao general

Costa e Silva, que estava vencendo seu tempo para cair na compulsória.

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O Ministério

Empossado o Presidente, em 15 de abril de 1964, a Junta Militar foi

incorporada ao governo, surgindo então os três primeiros nomes do ministério:

Guerra, Artur da Costa e Silva; Marinha, Augusto Hamann Rademaker

Grünewald; Aeronáutica, Francisco de Assis Correia de Melo. Este último, em

1931, fora o primeiro brasileiro a cruzar o Atlântico num avião militar.

Embora alguns outros militares viessem a ocupar cargos civis, no conjunto, o

ministério era essencialmente técnico, embora considerado por alguns (e até

por Carlos Lacerda) um pouco conservador. Os demais ministros foram:

Relações Exteriores, Vasco Tristão Leitão da Cunha, substituído,

seguidas vezes, por Antônio Borges Castelo Branco Filho;

Fazenda, Otávio Gouveia de Bulhões, substituído na interinidade

por Roberto de Oliveira Campos; Agricultura, Oscar Thompson

Filho, substituído mais tarde por Hugo de Almeida Leme, Ney

Amintas de Barros Braga e Severo Fagundes Gomes; Viação e

Obras Públicas, Juarez do Nascimento Fernandes Távora;

Planejamento e Coordenação, Roberto de Oliveira Campos;

Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda, depois, Raimundo

de Castro Moniz de Aragão (interino), Pedro Aleixo e Guilherme

Augusto Canedo de Magalhães (interino); Saúde, Vasco Tristão

Leitão da Cunha, que logo entregou o cargo a Raimundo de Moura

Brito; Indústria e Comércio, Daniel Agostinho Faraco, substituido

mais tarde por Paulo Egídio Martins; Minas e Energia, Mauro

Thibau; Trabalho, Arnaldo Lopes Sussekind, depois, Moacir Veloso

Cardoso de Oliveira (interino), Walter Perachi Barcelos, Paulo

Egídio Martins (interino) e Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva;

Justiça, Milton Soares Campos, depois, Luís Viana Filho (interino),

Juracy Montenegro Magalhães, Mem de Sá, e Carlos Medeiros da

Silva.

Assumiu a Casa Civil Luís Viana Filho que, na prática, tornou-se secretário

particular do Presidente, reunindo anotações que mais tarde lhe permitiram fazer

a biografia de Castelo Branco. Na Casa Militar, ficou o general Ernesto Geisel.

Criou-se, também, o Ministério Extraordinário da Coordenação dos

Organismos Regionais (Mecor) que mais tarde ganharia importância

fundamental, transformando-se no Ministério do Interior. Sua chefia foi entregue

ao marechal Cordeiro de Farias que, já ao final de governo, renunciou, sendo

substituído por João Gonçalves.

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A intensa troca de nomes nos vários ministérios dá ideia da turbulência nos

três anos de governo. Também houve mudanças nos ministérios militares,

assunto que será tratado no momento oportuno.

Varre, vassourinha

O Ato Institucional em vigor desde 9 de abril de 1964 abriu uma

temporada de 60 dias para a cassação de mandatos e suspensão de

direitos políticos, estes últimos pelo prazo de 10 anos. Logo no dia seguinte,

experimentando a ferramenta, a Junta Militar suspendeu os direitos políticos de

Jânio Quadros, João Goulart e Luís Carlos Prestes; em seguida, foram-se mais

40 parlamentares da oposição, abrindo caminho para a eleição do Presidente.

Até o último dia do prazo, cerca de 400 nomes foram atingidos pelo Ato. Ao

contrário do que se pode pensar, foi uma pechincha. Poderiam ter sido 4.000 ou

40.000, tamanha a quantidade de listões que chegavam de todos os lados,

sugerindo nomes para a degola. O exame detalhado dessas listas evitou uma

enormidade de injustiças, mas não todas elas.

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Para se ter uma ideia do frenesi existente nos meios revolucionários, basta

lembrar que, entre os nomes sugeridos para cassação, figuravam os de

Afonso Arinos, um dos principais líderes da UDN, partido do governo; do jurista

Santiago Dantas, com inequívocos serviços prestados ao país; de Hermes

Lima, o último chefe de Gabinete do Parlamentarismo; do jurista Evandro Lins

e Silva; do jornalista Carlos Heitor Cony, que ousava criticar o governo; e até

do industrial José Ermírio de Morais, evidente defensor do capitalismo e de

cuja dedicação à empresa privada ninguém poderia duvidar... Todos foram

poupados.

Pior do que fazer uma revolução é controlar, depois, o ímpeto dos

revolucionários em garantir a própria sobrevivência, afastando de sua volta

aqueles que possam lhes fazer sombra. Com raras exceções, esse controle foi

exercido.

Ah, "Minas Gerais"!

Uma das pendências que, desde o princípio, tumultuou o governo foi o caso

da aviação embarcada, que tomou vulto após a compra, por Juscelino

Kubitschek, do porta-aviões Minas Gerais.

O frágil 14-Bis de Santos Dumont, que foi ao ar em 1904, e o Demoiselle,

que subiu pouco tempo depois, tiveram seguidos aperfeiçoamentos e, em 1910,

já era possível contar-se com aviões de guerra, incipientes ainda, mas que já

representavam uma promessa como arma de ataque e defesa. O Brasil comprou

alguns aparelhos, anexou-os ao Exército e, na Guerra do Contestado (1912-

1916), pôde testar sua eficiência, abrindo espaço no campo inimigo para o

avanço, por terra, das tropas legalistas. A Marinha também comprou alguns

aparelhos, que ficaram subordinados a ela. Não eram uma força independente,

mas simples acessórios às duas Armas.

Após a Segunda Guerra, com o advento do helicóptero, a Marinha passou a

adquirir esse tipo de aparelhos, mais adequados a manobras conjuntas com

navios de guerra. Só que, a essa época, já existia uma arma específica para

cuidar do espaço aéreo, a Força Aérea Brasileira (FAB), subordinada ao

Ministério da Aeronáutica, criado no governo Getúlio Vargas. Passaram a

registrar-se, então, conflitos esporádicos entre as armas da Marinha e da

Aeronáutica, ainda que sem maiores consequências.

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Foi no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) que surgiu o grande

ponto de atrito, com a aquisição do porta-aviões Minas Gerais, tendo como

objetivo aproximar Aeronáutica e Marinha em operações conjuntas. O efeito foi

o oposto, gerando graves discussões sobre o comando de tais operações, já que

não se tratava de aviação comum, mas de aviação embarcada.

O problema foi sendo empurrado com a barriga por JK, Jânio e Jango, vindo

a perturbar a paz do presidente Castelo Branco, que decidiu colocar um ponto

final na disputa, chamando para si a responsabilidade pela solução do conflito.

Precisava fazê-lo, e sem demora, pois um grave incidente acabava de ocorrer

em Tramandaí (Rio Grande do Sul), onde a base da FAB abateu um helicóptero

da Marinha em pleno voo, criando um estado de guerra entre as duas armas.

Em agosto de 1964, aproximando-se a data de início da Operação Unitas

(treinamento conjunto de militares de paises panamericanos), Castelo Branco

decide que o comando de operações embarcadas ficará a cargo da Marinha,

mas somente com aeronaves da FAB. O ministro da Aeronáutica, brigadeiro

Nelson Lavanére-Wanderley, sucessor de Correia de Melo, demite-se, sendo

substituído pelo brigadeiro Márcio de Sousa Melo.

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No início das operações de treinamento, a FAB constatou a presença de

helicópteros da Marinha no porta-aviões Minas Gerais e, como o comandante se

recusasse a retirá-los, o fato originou outra crise entre as duas armas,

provocando a renúncia do novo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Souza Melo.

Em consideração ao presidente da República, já que ninguém mais queria

substituir o demissionário, assumiu o Ministério o próprio brigadeiro Eduardo

Gomes, nome legendário nas Forças Armadas, contra quem ninguém ousaria

fazer oposição.

Orientado por Eduardo Gomes, o presidente retoma a ideia de um comando

misto nas operações conjuntas de Marinha e Aeronáutica. Desta vez, quem se

demite é o ministro da Marinha, nesta altura o almirante Melo Batista. Em 14 de

janeiro de 1965 assume o posto o almirante Paulo Bozísio.

Finalmente, chega-se a um consenso nos dois ministérios. O comando

do porta-aviões Minas Gerais, em sua totalidade, incluindo os helicópteros

da Marinha, fica sob a responsabilidade desta. Os aviões, operados pela

FAB ficam sob o comando da Aeronáutica, em sintonia com o comando da

Marinha.

E foi assim que o Brasil pode participar, em harmonia, da operação UNITAS.

E todos viveram felizes para sempre.

Soa o sinal de alarme

Contrariando o pensamento do presidente Castelo Branco, já em julho de

1964, o mandato presidencial foi prorrogado até 1967, jogando por terra as

promessas, feitas a líderes civis da Revolução, de que em 1965 um novo

presidente seria escolhido, dentro do calendário, e por eleições diretas.

Para compensar, o Sistema que controlava o poder permitiu que se

realizassem, na forma da Constituição, as eleições marcadas para 3 de outubro

de 1965, renovando o governo de 11 dos 21 Estados: Alagoas, Goiás

Guanabara, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio

Grande do Norte e Santa Catarina.

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Tacitamente, confirmava-se também o calendário para 3 de outubro de 1966,

quando, além da renovação do parlamento, seriam eleitos também os

governadores dos demais Estados: Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito

Santo, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e

Sergipe.

Vão-se os anéis, ficam os dedos, pelo menos, é o que se achava naquele

momento. Nem tudo estava perdido e, afinal, alguns dos candidatos à

Presidência, como Magalhães Pinto, estavam acordes em que o ambiente não

era propício para eleições presidenciais já em 1965.

Excluída a disputa presidencial, no mais, o pleito se realizou a seu tempo,

livremente, tudo fazendo crer que o Brasil caminhava para o restabelecimento

das liberdades democráticas.

Os resultados, se não foram desanimadores para o Sistema, ainda assim

fizeram soar o sinal de alarme. O governo venceu no Pará, onde o governador

Jarbas Passarinho conseguiu fazer seu sucessor Alacid Nunes (mais tarde os

dois se tornariam adversários); na Paraíba, a UDN elegeu Agripino Maia; no

Maranhão, saiu vitorioso José Sarney, jovem e promissor político, então com 33

anos; em Alagoas, não havendo maioria absoluta, o governo federal nomeou

como interventor o general João Batista Tubino. Até mesmo em Mato Grosso

e em Santa Catarina, onde o PSD conseguiu a vitória, respectivamente, com

Pedro Pedrossian e Ivo Silveira, não havia maiores preocupações.

Onde rebentou a corda foi em Minas Gerais e Guanabara que, juntamente

com São Paulo, formavam os três centros políticos mais importantes do país.

Em Minas Gerais, elegeu-se Israel Pinheiro, um dos construtores de Brasília e

braço forte de JK; na Guanabara, ganhou Negrão de Lima, uma sombra de

Getúlio Vargas, o mesmo Negrão que, em 1937, a pedido de Getúlio, percorreu

o país, buscando adesão dos governadores ao golpe do Estado Novo que seria

dado ao final daquele ano. Em São Paulo, as eleições se dariam em 1966 e

uma derrota não improvável naquele Estado seria fatal para a revolução.

A simples possibilidade de retorno do getulismo reacendeu a ação da linha

dura nas Forças Armadas, não só na Vila Militar, como em vários pontos do país.

A alta oficialidade, composta sobretudo por coronéis da ativa, exigia um

endurecimento do regime para que o movimento militar, havendo atravessado

um oceano de dificuldades, não viesse a morrer na praia.

- 065 -

O Ato Institucional nº 2

As eleições ocorreram a 3 de outubro. Poucos dias depois, recrudescem os

boatos de um novo golpe militar. Carlos Lacerda, de sua Tribuna da Imprensa,

exigia intervenção em Minas Gerais e Guanabara. Ao Palácio das Laranjeiras,

onde se achavam Castelo e seu staff, chegavam notícias de movimentação

nos quartéis.

O primeiro passo, foi acalmar os militares, baixando a tensão da caserna. O

segundo, preparar medidas que mantivessem a temperatura baixa, permitindo

ao Presidente cuidar de assuntos do governo, ao invés de envolver-se numa

crise militar mais prolongada.

Por fim, cuidava-se de preparar o governo para o pior. Vários projetos e

emendas à Constituição tramitavam no Congresso, objetivando aumentar os

poderes do presidente da República, inclusive dando-lhe o direito de decretar

estado de sítio sem precisar de autorização do Congresso. Não estava o governo

seguro de ter esses instrumentos à mão no devido tempo; não era sequer lícito

supor que fossem aprovados pelo legislativo.

No Ministério, outra crise: o ministro da Justiça, Milton Campos, prevendo

um fechamento do regime, de cujo ato não pretendia tornar-se cúmplice,

demitiu-se; e após uma interinidade de Luís Viana Filho, foi nomeado para o

cargo o ex-governador da Bahia, Juraci Magalhães.

Premido pela gravidade da crise, e procurando evitar o pior, em 27 de

outubro de 1965, o presidente Castelo Branco assina o Ato Institucional nº 2,

iniciando o processo de radicalização do regime que, de Ato em Ato, levou o país

ao quase absolutismo nos dois governos seguintes.

O que foi modificado

São estas as principais alterações proporcionadas pelo AI-2:

- As eleições presidenciais passam a ser indiretas;

- Ficam extintos todos os partidos políticos;

- 056 -

- Fica o Presidente com a prerrogativa de decretar estado de sítio

por 120 dias, ad-referendum do Congresso, e prorrogá-lo, se

necessário, por um prazo máximo de 180 dias;

- Os atos praticados pelo governo federal ou pelo Sistema

(Comando Supremo da Revolução) ficam excluídos de apreciação

judicial;

- O Presidente passa a ter o direito de pôr em recesso o Congresso

Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais,

mesmo que o país não esteja sob estado de sítio.

Coagido pelo Sistema, o presidente Castelo Branco, até o fim de seu

mandato, ainda viria assinar mais dois outros Atos Institucionais: o AI-3, de 5 de

fevereiro de 1966, criava a figura do governador biônico e suspendia as

eleições de prefeitos nas capitais e cidades consideradas de segurança

nacional; o AI-4, de 12 de dezembro de 1966, condicionava o Congresso para a

votação da nova Constituição.

Numa luta desigual, a Nação sofreu vários golpes rudes. O nocaute viria

no governo seguinte com a edição, pelo sucessor de Castelo, do Ato Institucional

nº5, o mais cruel e perverso, sufocando o que ainda restava das liberdades

individuais e fazendo morrer as esperanças de retorno, a médio ou longo prazo,

à prática democrática. Esse é assunto para o próximo capítulo.

O embaixador americano

é consultado

Por solicitação do Presidente do Brasil, o embaixador dos Estados Unidos,

Lincoln Gordon reúne-se com Castelo Branco e ambos analisam o impacto

que o AI-2 causaria nas relações internacionais, conforme relata o próprio

diplomata, a pedido de Luís Viana Filho:

"Castelo Branco estava inteiramente ciente da reação

tempestuosa da imprensa estrangeira ao 1º e 2º Atos e preocupado

com o impacto negativo nas relações exteriores,

generalizadamente, e, em particular, nas relações com os Estados

Unidos. Por isso, ele me pediu que o visitasse, numa manhã calma

do feriado de 2 de novembro [Finados].

- 067 -

"Nossa conversa durou duas horas – a mais longa das nossas

entrevistas. Castelo fez um resumo dos acontecimentos-chave das

quatro semanas anteriores, incluindo a recusa do Congresso em

aceitar a reforma proposta das relações do governo federal com os

demais Estados.

"Ele pediu meu comentário sincero, e eu o fiz em toda extensão.

Entre outros pontos, salientei minha preocupação de que a

situação pudesse se transformar inteiramente em ditadura militar.

O presidente sentiu que eu estava pessimista demais, que o Brasil

evitaria qualquer tipo de ditadura, a tradicional Latino-Americana ou

tipo Nasser [Egito], e que a nova base política podia e seria

construída para apoiar as metas da revolução.

"Três semanas mais tarde, quando o secretário [de Estado]

Dean Rusk visitou o Rio, o Presidente saiu de seus hábitos para

referir-se ao meu temor de ditadura militar e para reassegurar sua

confiança na restauração da normalidade constitucional em 1966.

"Não obstante, estava claro que a crise de outubro tinha sido

um choque para ele, que o general Costa e Silva estava, em todo

sentido prático, seguro da sucessão, e que Castelo Branco não

tinha mais o controle da situação."

- 068 -

A CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos), em seu relatório

interno nº 3101/65, registra as mesmas preocupações, prevendo um fechamento

gradual do regime até o total controle do país pelo Sistema. Aponta o ministro

da Guerra, general Costa e Silva como o catalisador das pressões da linha dura,

irritado que estava pela falta de apoio governamental à sua pretensão para

suceder a Castelo Branco.

São mencionadas pela CIA, também, as pressões empresariais,

principalmente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (que é

citada nominalmente) para o endurecimento do regime, incentivando a ação de

conhecidos radicais, como o almirante Silvio Heck. Essas pressões estariam

anulando a ação dos moderados ligados ao presidente Castelo Branco, entre

eles o chefe do SNI (Serviço de Inteligência do Brasil), general Golbery do

Couto e Silva, e o chefe da Casa Militar, general Ernesto Geisel. Em resumo,

Castelo perdera, a esta altura, o controle da sucessão presidencial.

Quase que o Brasil

ganha um "Partidão"

Partidão era o nome que se dava ao PC soviético que, por ser o único partido

político legal, dominava todo o sistema político da União Soviética,

transformando-se num governo paralelo. Pois o Brasil por pouco não ganha seu

partidão, tal a rigorosidade do Ato Complementar nº4, que regulava a

organização de novos partidos políticos, em substituição àqueles que foram

extintos.

Surgiram, de início, três opções partidárias: a ARENA (Aliança Renovadora

Nacional), reunindo os governistas, o MODEBRA (Movimento Democrático

Brasileiro), que pretendia concentrar a oposição e o PAREDE (Partido de

Renovação Democrática), de tendências indefinidas. Este último não resistiu os

primeiros embates, ficando apenas nas preliminares de sua organização.

A Arena rapidamente conquistou o espaço, pois todo político, por razões de

sobrevivência, prefere estar com o governo, garantindo verbas para obras

públicas, que se traduzem em votos nos seus redutos eleitorais.

- 069 -

Já o Modebra, que em boa hora mudou sua sigla para MDB, não

conseguia atender as regras do AC-4, que exigia um mínimo de 120 deputados

federais e 20 senadores filiados, para garantir o registro. Isso representava

quase um terço do Congresso Nacional.

Quanto a deputados, o MDB até que os conseguiu, mas, na busca de

senadores, apenas 19 se dispuseram a fazer oposição ao governo. Faltava

um e, se o quórum não fosse atingido, o Brasil passaria a ter um sistema político

de partido único. Isso de maneira alguma interessava ao Sistema, pela

repercussão negativa no exterior. Assim, ironicamente, o governo passou a ser

o maior interessado na formação de um partido de oposição a ele.

Vieram, então, os governistas, auxiliar a oposição, doando um de seus

senadores para que o número fosse completado. A sorte caiu sobre o senador

Aarão Steinbruck que assumiu o sacrifício e assinou a ficha partidária do MDB,

trazendo paz ao arraial.

Já nos contatos preliminares, o governo sentiu a artificialidade do

bipartidarismo no Brasil, não tanto por ideologia, mas por diferenças

regionais e de comportamento. Líderes da UDN, que combateram ferozmente

o PSD, tinham que viver em harmonia com seus adversários de ontem. Em São

- 070 -

Paulo, opositores do governador Ademar de Barros, que colocavam em dúvidas

sua honestidade, tiveram de aceitá-lo como indigesta companhia. No Nordeste,

onde alguns líderes se digladiavam, literalmente, até a morte, repentinamente,

precisaram eles se compor. Se isso vinha causando disputas irreconciliáveis na

organização partidária, imaginem só quando chegassem as eleições!

Com uma boa caneta e um pouco de tinta, não há problema que não se

resolva. E os dois partidos políticos passaram a ter, dentro deles, 3 sub-

legendas, as quais poderiam, nas eleições diretas, apresentar candidatos em

separado. O Brasil tornou-se, pois, o único país do mundo em que o sistema

bipartidário era composto de seis partidos...

Com quantos atos

se faz um governo

O governo Castelo Branco editou três Atos Institucionais. Nem

necessitava de mais outros, pois tamanha foi a quantidade de Atos

Complementares, acompanhando cada ato institucional que o processo foi

totalmente subvertido. Eles regularam o funcionamento das CGIs (Comissões de

Inquérito), cuidaram de dispensas, remoções e aposentadorias, atingiram o

Judiciário, alteraram a composição do Supremo Tribunal Federal, fizeram tudo o

que se possa imaginar, dentro do maior casuísmo, assinados sempre que

surgisse um obstáculo a ser removido.

Nesse processo, com a edição do AI-3 e respectivos complementos, criou-se

a figura do governador biônico, o qual passou a ser escolhido pelo Presidente

dentro da Arena (o partido do governo), a partir de uma lista tríplice, confirmado

depois pelas respectivas assembleias legislativas. A oposição podia apresentar

seu candidato, mas não para ganhar.

Foi criada a fidelidade partidária, impedindo os parlamentares de votar em

outro candidato que não o de seu próprio partido. Como o MDB (oposição)

ameaçou com renúncia coletiva, o AC-16 proibiu também a renúncia. Dizia o AC-

16 que o parlamentar que renunciasse ao mandato teria seus direitos políticos

cassados (por dez anos).

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Nesse clima de paz absoluta (a paz dos cemitérios), desenvolveu-se, pois, o

calendário eleitoral de 1966: em 3 de setembro, elegeram-se os governadores

biônicos de 12 Estados; em 3 de outubro, Costa e Silva fez-se Presidente, tendo

como vice o civil Pedro Aleixo; e em 15 de novembro, realizaram-se as eleições

parlamentares, renovando as Assembleias Legislativas, a Câmara Federal e um

terço do Senado.

Na eleição para Presidente, só dois pequenos incidentes: O deputado João

Herculino subiu à tribuna vestindo luto pela morte da democracia e o senador

João Abraão mencionou o nome de Juscelino como o preferido do povo. Um e

outro foram sem seguida cassados.

Nas eleições para governador, o Presidente cassou o mandato de todos os

deputados que se mostraram descontentes com o nome do candidato único

apresentado para seu Estado. Era mais seguro do que ser surpreendido com

alguma traição.

Em São Paulo, elegeu-se, pois, Roberto de Abreu Sodré, udenista histórico

e cunhado de Carlos Lacerda; no Rio Grande do Sul, Peracchi Barcelos; no

Estado do Rio, Geremias Fontes; na Bahia, Luís Viana Filho, chefe da Casa

Civil da Presidência; em Pernambuco, Nilo Coelho; no Ceará, Plácido Castelo;

em Sergipe, Lourival Batista; no Acre, Jorge Kalume; no Amazonas, Daniel

Aerosa; em Alagoas, Antônio Lamenha Filho; no Piauí, Helvídio Nunes de

Barros; e no Espírito Santo, Cristiano Dias Lopes.

Planos para uma

nova Constituição

Ao final de 1966, resolvidos os problemas emergenciais e criados os

mecanismos que permitiriam desenvolver as reformas preconizadas, o governo

achou-se em condições de providenciar uma mudança radical na Carta Magna,

criando uma Constituição moderna, capaz de colocar o país no caminho do

desenvolvimento.

Sem pensar na convocação de uma Assembleia Constituinte (que Deus o

livre de tamanho pecado) Castelo preferiu criar uma comissão de notáveis,

formada por Orozimbo Nonato, Levi Carneiro e Temístocles Cavalcanti,

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entregando a ela a missão de redigir o novo texto, na forma de anteprojeto, o

qual ficou pronto em 19 de agosto de 1966.

O trabalho não agradou nem ao Presidente, nem ao seu ministro da

Justiça, Carlos Medeiros. O primeiro desejava uma Carta mais liberal, embora

resguardando a autoridade presidencial para combater situações de perigo à

vida ou ao regime; o segundo, ao contrário, preferia uma concentração maior de

poderes, que desse ao Presidente instrumentos para enfrentar crises políticas e

sociais, dando ao país condições de governabilidade.

O anteprojeto foi, então, discutido com o Conselho de Segurança

Nacional e, em seguida, reformulado pelo próprio ministro Carlos

Medeiros.

O governo poderia até outorgar a nova Carta, dispensando o Congresso, tais

os poderes já concentrados em suas mãos com os dois Atos Institucionais,

todavia essa medida seria mal recebida na comunidade internacional. Era

preciso correr o risco, entregando-a ao Congresso Nacional, para discussão,

após o que o próprio Congresso iria promulgá-la. Melhor seria que se fizesse

com o atual legislativo, já em fim de mandato, já que ele era mais previsível em

suas reações. O próximo ainda não tinha sido eleito e ninguém sabia qual seria

a sua composição.

Foram tomadas todas as providências para evitar um prolongamento

indesejável. O anteprojeto seguiria ao Congresso em regime de urgência e,

se a Constituição não fosse promulgada no prazo estabelecido, o

Presidente chamaria a si a responsabilidade de outorgá-la. Seria também

uma medida extrema, porém, mais fácil de se explicar, jogando sobre o

Congresso a responsabilidade pelo eventual retardamento.

Foi aí que surgiu o incidente mais grave entre Executivo e Legislativo,

colocando em perigo o cronograma traçado.

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O Congresso é posto em recesso

Dentro da rotina do governo revolucionário, em 12 de outubro de 1966,

chegaram às mãos do Presidente mais seis processos de investigação, já

concluídos, envolvendo deputados federais. O Presidente decidiu pela cassação

de todos eles, assinou o ato e encaminhou-o à Câmara Federal, cujo presidente

era Adauto Lúcio Cardoso, parlamentar fiel ao Sistema, já que fora eleito com

a ajuda de Castelo Branco.

Adauto Lúcio Cardoso

Para surpresa geral, Adauto se opôs a essas cassações, recusando-se a

consultar os demais parlamentares e declarando que cabia ao presidente da

República consultá-lo primeiro. Tudo isso era inútil, pois os atos revolucionários

não estavam sujeitos a consultas ao legislativo ou a quem quer que fosse.

O assunto ferveu no plenário da Câmara, já que alguns arenistas eram contra

essas cassações e, por seu lado, a oposição aproveitou o ensejo para fazer suas

manifestações de repúdio ao autoritarismo, causando tremendo desgaste ao

governo junto à opinião pública.

Naquele 19 de outubro de 1966, o dia e a noite foram agitados no Palácio

das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, local das grandes decisões. O ministro

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da Justiça tem pronto o decreto que põe em recesso o parlamento. Outra

medida, bem pior seria a sua dissolução, encerrando as atividades

parlamentares três meses antes do término do mandato. Bem comparadas

as duas medidas, a do recesso se mostrava mais leve, dando tempo suficiente

para esfriar as cabeças e tornar à realidade possível naquela conjuntura.

Achava-se, entre outras coisas, que a atitude do presidente da Câmara tinha

por fim embaraçar as eleições legislativas que se realizariam no mês seguinte,

o que não ficou provado.

No dia 20 de outubro de 1966, o Presidente assina o recesso parlamentar,

por tempo indeterminado, ficando incumbido de executar o ato o coronel Meira

Matos, comandante da Polícia do Exército em Brasília.

Conta Luís Viana Filho:

"Meira Matos executou o decreto. O Presidente recomendara-

lhe a maior prudência e, nessa mesma noite, isolado o Congresso,

os seus membros foram retirados tranquilamente. Não houve

incidente de monta, e as anunciadas ameaças de resistência

ruíram silenciosamente. Apenas breve e áspero diálogo entre

Adauto e Meira Matos inquietou o episódio."

Os acontecimentos, então, se desenrolam dentro desta sequência:

12.10.66 – Cassados os mandatos de 6 deputados federais.

20.10.66 – O Congresso Nacional (Câmara e Senado) é posto em recesso.

15.11.66 – Realizam-se eleições diretas para a renovação da Câmara Federal,

de um terço do Senado e das Assembleias Legislativas.

21.11.66 – É suspenso o recesso e o Congresso volta às atividades.

13.12.66 – O anteprojeto da nova Constituição é entregue ao presidente do

Congresso, senador Auro Soares de Moura Andrade.

24.01.67 – A nova Constituição é promulgada pelo Congresso Nacional.

Estava superada a crise. O Brasil ganha uma nova Constituição que, se dizia,

deveria durar várias décadas. Não foi bem o que aconteceu. Os acontecimentos

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caminharam mais rápido que as boas intenções e, dois anos depois, o texto

constitucional foi quase que totalmente alterado por uma Junta Militar que

assumiu o poder. Esse também é um assunto a ser tratado em momento

oportuno.

A reforma financeira

O primeiro dos problemas a ser enfrentado pelo Presidente foi o do

descontrole financeiro do país. O Brasil havia saído do governo Dutra (1946-

1951) com uma situação confortável nas finanças públicas, e com uma dívida

externa administrável, dado o superávit acumulado durante a 2ª Guerra.

Os governos posteriores reverteram esse estado de coisas, gastando mais

do que arrecadavam e levando o país a um estado quase que pré-falimentar.

Getúlio Vargas e Café Filho viveram enleados em sérios problemas políticos que

lhes tomaram a maior parte do tempo.

Juscelino Kubitschek construiu Brasília e levou avante seu plano de governar

50 anos em 5, emitindo moeda descontroladamente para cobrir os gastos e

comprometendo os próximos governos com um aumento sensível da dívida

externa.

Jânio Quadros fez um diagnóstico do doente, mas não lhe ministrou os

remédios, tanto mais que não parou 7 meses no poder. Por fim, João Goulart

largou o governo à corda solta, como se o problema não fosse com ele.

Agora, o paciente necessitava de um tratamento de choque, uma política

séria de contenção de despesas, que levou o país, em 1965, a processo

recessivo, danoso à produção e aos trabalhadores, causando o desemprego e

uma semi-paralisação do comércio e das atividades produtivas.

O amargo remédio era a infalível receita do Fundo Monetário Nacional,

engolido a duras penas, e que só pôde ser aplicado sem maiores

contestações porque o Brasil vivia em regime excepcional, suprimindo, se

preciso à força, qualquer manifestação de descontentamento.

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Respeitadas todas indicações do receituário, por fim, o FMI colocou à

disposição do Brasil um crédito stand-by (para ser requisitado quando preciso)

de 125 milhões de dólares. Era uma insignificância, mas, por outro lado,

representava um sinal verde aos investidores internacionais de que o Brasil

deixava de ser um risco iminente ao capital estrangeiro.

O PAEG-Plano de Ação Econômica do Governo, sob a responsabilidade

do Ministro do Planejamento, Roberto Campos e do ministro da Fazenda Otávio

Gouveia de Bulhões, estabeleceu uma nova ordem econômica no país.

Escreve Luís Viana Filho:

"O PAEG traçava os pontos principais da nova estratégia

política econômica, apontava os instrumentos de combate à

inflação no campo monetário, fiscal e salarial; os mecanismos de

incentivos às exportações e de correção no desequilíbrio no

balanço de pagamentos; os instrumentos de estímulo à poupança

no mercado de capitais, com o princípio da correção monetária; e

as concepções para o problema da habitação popular e,

consequentemente, o aumento da construção civil. Também se

incluía um elenco de investimentos públicos e programas setoriais

de crescimento."

Era uma intervenção pesada do poder público sobre a iniciativa privada,

gerando protestos das classes liberais, com discursos violentos do deputado

Herbert Levi e de outros parlamentares que haviam apoiado o movimento

militar. Não foram menores as reações nos meios estudantis, sindicais e

intelectuais, registrando-se a prisão, entre outros, do professor Florestan

Fernandes.

A repressão econômica, mais do que a repressão política, é que tornou

odiado o governo de Castelo Branco.

Os resultados desse saneamento foram colhidos pelos governos seguintes,

quando a liberação da economia, com a geração de empregos e melhoria das

condições de vida, acabou escondendo a repressão, que atingiu seu apogeu

com o presidente Médici, considerado injustamente como o grande realizador.

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No governo Castelo Branco foram criados o BNH-Banco Nacional da

Habitação, a primeira tentativa realmente séria de fazer uma política

habitacional permanente e contínua; as ORTN-Obrigações Reajustáveis do

Tesouro Nacional que, a um só tempo, instituíam a correção monetária e

representavam títulos de captação interna.

O FGTS-Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, transferindo o passivo

trabalhista das empresas, dali por diante, para o controle estatal, foi outra fonte

de arrecadação que permitiu a aplicação de capitais em serviços básicos, como

o de saneamento. O Banco Central do Brasil, recém-criado, chamou a si o

controle da moeda e das atividades financeiras, antes atribuído ao Banco do

Brasil.

A reforma fiscal e tributária

Antes de se aventurar na modificação do sistema de arrecadação de impostos

e taxas, o governo teve de identificar o contribuinte, pois, tal era a desordem,

pela falta de um cadastro centralizado, que a sonegação se tornou prática

comum em todo o país.

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Para organizar e agilizar o recolhimento de tributos foram criados o CGC-

Cadastro Geral de Contribuintes e o CPF-Cadastro de Pessoa Física. Os

velhos impostos, em cascata, foram substituídos por novos, nos quais o setor

produtivo podia creditar-se dos impostos pagos sobre matérias primas,

reaplicando-os por ocasião da venda dos produtos acabados. Assim, acabou a

cascata e a tributação real incidia apenas sobre o consumidor final.

O IC (Imposto de Consumo) deu lugar ao IPI (Imposto sobre Produtos

Industrializados). O IVC (Imposto de Vendas e Consignações) foi

substituído pelo ICM (Imposto de Circulação de Mercadorias). O Imposto

do Selo, que vinha dos tempos do Império, foi eliminado e, em seu lugar,

surgiu o IOF-Imposto sobre Operações Financeiras. Acabaram-se para

sempre os quiosques que vendiam estampilhas aos quatro cantos do país, as

quais eram pregadas sobre todo papel que ousasse insinuar uma operação

financeira. Até uma simples carta, falando acidentalmente em quitação de dívida,

tinha de ser estampilhada!

Como se pode imaginar, com melhor controle, a arrecadação aumentou

prodigiosamente e, em contrapartida, concentrou uma boa parte do dinheiro

circulante nas mãos do governo, o qual, através das obras públicas, passou a

controlar com mais eficiência o fluxo da moeda e, por consequência, o nível de

inflação aceitável.

A reforma agrícola

O espaço é insuficiente para comentar todas as modificações ocorridas no

período de governo de Castelo Branco, atingindo o âmago dos problemas, e

preparando a estrutura necessária para um desenvolvimento integrado do país.

Era preciso resolver o uso do solo onde se consolidou a estrutura agrícola do

Brasil, apoiada principalmente na política do café e descuidando de

planejamento global.

Para isso Castelo foi buscar um novo ministro da Agricultura onde melhor se

conhece o assunto, a Escola Superior de Agricultura Luís de Queirós, em

Piracicaba-SP. Era ele o professor Hugo de Almeida Leme, homem que

dedicou toda sua vida aos problemas da terra, um dos poucos que se poderia

considerar capaz de desemperrar a máquina e colocá-la em movimento.

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Contrariando a política geral de contenção de despesas, o governo liberou

verbas para o setor, de forma a permitir a implantação de uma política de preços

mínimos. Com esse incentivo dado à iniciativa privada, o resultado não se fez

esperar: as próximas safras acusaram um aumento expressivo na colheita de

grãos, que o governo adquiriu e armazenou.

Procurando diversificar a cultura, passou a incentivar derrubada de

plantações de café com baixa produção, substituindo-as por lavouras

mecanizadas e de maior rendimento. Foi a partir de então que o norte do Paraná

começou a conhecer o valor econômico da soja, mais adequada em regiões

sujeitas a fortes geadas.

Não foi adiante, todavia, o propósito de realizar também uma reforma

agrária, reduzindo o poder dos latifúndios. O Estatuto da Terra, sancionado

em 30 de novembro de 1966 e as medidas tomadas em fins de governo, punindo

com maiores impostos as terras improdutivas não foram suficientes para impedir

a concentração de terras.

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Os governos que se seguiram, pelas características do próprio Sistema ao

qual estavam atrelados, não se interessaram em promover no país uma

verdadeira reforma agrária, com participação real do homem do campo. Esta foi

a grande oportunidade perdida, que empurrou para o ano 2000 um problema

sério, agravado em décadas pelo processo de mecanização rural, que resultou

no êxodo da mão de obra excedente para as cidades. Eis o problema: A figura

do “colono”, enraizado na fazenda, foi substituída pela do “boia-fria” e, nos

grandes centros urbanos, a concentração de trabalhadores não

qualificados resultou no desemprego e no subemprego, gerando a

favelização e a miséria.

Conclusão

Castelo Branco saiu em 15 de março de 1967 sem cumprir a promessa de

que fora fiador, qual seja, a de entregar o governo a um civil, escolhido por

eleições diretas. Foi, pelo menos em parte, refém do Sistema, invisível, mas

real, o qual lhe ditava os passos e condicionava-lhe os movimentos. Teve de

aceitar a prorrogação de seu próprio mandato, a edição de mais três atos

institucionais, o fechamento do regime e, por fim, precisou passar as rédeas do

poder ao marechal Costa e Silva, o mais legítimo representante da linha dura

nas Forças Armadas.

Morreu em colisão aérea no Ceará, em 18 de julho de 1967, quatro meses

depois de deixar o governo. Uma estranha colisão, dessas de acontecem uma

em um milhão. O acidente aconteceu com um avião militar, fora da rota, longe

do tráfego aéreo e nenhuma das aeronaves arremeteu para evitar o choque.

Acidente ou não, o desaparecimento de Castelo Branco se insere entre outras

mortes, igualmente estranhas, que ocorreram durante o período militar, entre

elas a de Juscelino Kubitschek e a do próprio marechal Costa e Silva.

Mas História não se escreve em cima de suposições, colocadas

aleatoriamente no processo. O único fato concreto, neste caso, é que Castelo

Branco morreu no choque entre duas aeronaves, numa das quais ele viajava. E

ponto final.