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Capítulo 12 Divisão do trabalho e manufatura 1. A dupla origem da manufatura A cooperação fundada na divisão do trabalho assume sua forma clássica na manufatura. Como forma característica do processo de produção capitalista, ela predomina ao longo do período propriamente manufatureiro, que, em linhas gerais, estende-se da metade do século XVI até o úl- timo terço do século XVIII. A manufatura surge de dois modos. No primeiro, reúnem-se numa mesma oficina, sob o controle de um mesmo capitalista, trabalhadores de diver- sos ofícios autônomos, por cujas mãos tem de passar um produto até seu acabamento final. Uma carruagem, por ex- emplo, era o produto total dos trabalhos de um grande número de artesãos independentes, como segeiro, seleiro, costureiro, serralheiro, correeiro, torneiro, passamaneiro, vidraceiro, pintor, envernizador, dourador etc. A manu- fatura de carruagens reúne todos esses diferentes artesãos numa oficina, onde eles trabalham simultaneamente e em colaboração mútua. É verdade que não se pode dourar uma carruagem antes de ela estar feita, mas, se muitas car- ruagens são feitas ao mesmo tempo, uma parte pode pas- sar constantemente pelo douramento enquanto outra parte percorre uma fase anterior do processo de produção. Até aqui, permanecemos ainda no terreno da cooperação simples, que encontra já dado seu material humano e de

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Capítulo 12Divisão do trabalho e manufatura

1. A dupla origem da manufatura

A cooperação fundada na divisão do trabalho assume suaforma clássica na manufatura. Como forma característicado processo de produção capitalista, ela predomina aolongo do período propriamente manufatureiro, que, emlinhas gerais, estende-se da metade do século XVI até o úl-timo terço do século XVIII.

A manufatura surge de dois modos.No primeiro, reúnem-se numa mesma oficina, sob o

controle de um mesmo capitalista, trabalhadores de diver-sos ofícios autônomos, por cujas mãos tem de passar umproduto até seu acabamento final. Uma carruagem, por ex-emplo, era o produto total dos trabalhos de um grandenúmero de artesãos independentes, como segeiro, seleiro,costureiro, serralheiro, correeiro, torneiro, passamaneiro,vidraceiro, pintor, envernizador, dourador etc. A manu-fatura de carruagens reúne todos esses diferentes artesãosnuma oficina, onde eles trabalham simultaneamente e emcolaboração mútua. É verdade que não se pode douraruma carruagem antes de ela estar feita, mas, se muitas car-ruagens são feitas ao mesmo tempo, uma parte pode pas-sar constantemente pelo douramento enquanto outra partepercorre uma fase anterior do processo de produção. Atéaqui, permanecemos ainda no terreno da cooperaçãosimples, que encontra já dado seu material humano e de

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coisas. Mas logo ocorre uma modificação essencial. O cos-tureiro, o ferreiro, o correeiro etc. que se dedicam apenas àfabricação de carruagens perdem gradualmente, com ocostume, a capacidade de exercer seu antigo ofício em todasua amplitude. Por outro lado, sua atividade tornada uni-lateral assume, agora, a forma mais adequada para sua es-fera restrita de atuação. Originalmente, a manufatura decarruagens apareceu como uma combinação de ofícios in-dependentes. Pouco a pouco, ela se transformou em di-visão da produção de carruagens em suas diversas oper-ações específicas, processo no qual cada operação secristalizou como função exclusiva de um trabalhador,sendo sua totalidade executada pela união desses trabal-hadores parciais. Desse mesmo modo surgiram a manu-fatura de tecidos e toda uma série de outras manufaturas:da combinação de diversos ofícios sob o comando domesmo capital26.

Mas a manufatura, por outro lado, também surge porum caminho oposto. Muitos artesãos, que fabricamprodutos iguais ou da mesma espécie, como papel, tipospara imprensa ou agulhas, são reunidos pelo mesmo capit-al, simultaneamente e na mesma oficina. Tem-se, aqui, acooperação em sua forma mais simples. Cada um dessesartesãos (talvez com um ou dois ajudantes) produz a mer-cadoria inteira, executando sucessivamente todas as diver-sas operações requeridas para sua fabricação. Ele continuaa trabalhar conforme seu antigo modo artesanal, mas cir-cunstâncias externas logo fazem com que a concentraçãodos trabalhadores no mesmo local e a simultaneidade deseus trabalhos sejam utilizadas de outro modo. Uma quan-tidade maior de mercadorias acabadas deve, por exemplo,ser fornecida num determinado prazo e, por esse motivo, otrabalho é dividido. Em vez de o mesmo artesão executar

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as diversas operações numa sequência temporal, elas sãoseparadas umas das outras, isoladas, justapostas espacial-mente, sendo cada uma delas confiada a um artesão difer-ente e executadas ao mesmo tempo pelos trabalhadores emcooperação. Essa divisão acidental se repete, exibe as vant-agens que lhe são próprias e se ossifica gradualmentenuma divisão sistemática do trabalho. De produto indi-vidual de um artesão independente, que faz várias coisas,a mercadoria converte-se no produto social de uma uniãode artesãos, em que cada um executa continuamente apen-as uma e sempre a mesma operação parcial. As mesmasoperações que se conectavam umas às outras como atos su-cessivos do fabricante de papel nas guildas alemãstornaram-se mais tarde independentes na manufaturaholandesa de papel, como operações parciais, executadasuma ao lado das outras por muitos trabalhadores em co-operação. O agulheiro das guildas de Nuremberg é o ele-mento fundamental da manufatura inglesa de agulhas.Mas, enquanto aquele agulheiro isolado executava umasérie de, talvez, vinte operações sucessivas, na Inglaterranão tardou até que houvesse vinte agulheiros um ao ladodo outro, cada um executando apenas uma das vinte oper-ações, que, em consequência de experiências ulteriores,ainda seriam muito mais subdivididas, isoladas e auto-nomizadas como funções exclusivas de trabalhadoresindividuais.

O modo de surgimento da manufatura, sua formação apartir do artesanato, é portanto duplo. Por um lado, elaparte da combinação de ofícios autônomos e diversos, quesão privados de sua autonomia e unilateralizados até oponto em que passam a constituir meras operações parci-ais e mutuamente complementares no processo deprodução de uma única e mesma mercadoria. Por outro

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lado, ela parte da cooperação de artesãos do mesmo tipo,decompõe o mesmo ofício individual em suas diversas op-erações particulares, isolando-as e autonomizando-as atéque cada uma delas se torne uma função exclusiva de umtrabalhador específico. Por um lado, portanto, a manu-fatura introduz a divisão do trabalho num processo deprodução, ou desenvolve a divisão do trabalho já existente;por outro, ela combina ofícios que até então eram separa-dos. Mas seja qual for seu ponto de partida particular, suaconfiguração final é a mesma: um mecanismo deprodução, cujos órgãos são seres humanos.

Para o correto entendimento da divisão do trabalho namanufatura, é essencial apreender os seguintes pontos:primeiramente, a análise do processo de produção em suasfases particulares coincide plenamente com a decom-posição de uma atividade artesanal em suas diversas oper-ações parciais. Composta ou simples, a execução per-manece artesanal e, portanto, continua a depender daforça, da destreza, da rapidez e da segurança do trabal-hador individual no manuseio de seu instrumento. O tra-balho artesanal permanece sendo a base, e essa base téc-nica limitada exclui uma análise verdadeiramentecientífica do processo de produção, pois cada processo par-cial que o produto percorre tem de ser executável comotrabalho parcial artesanal. É justamente porque a habilid-ade artesanal permanece como a base do processo deprodução que cada trabalhador passa a dedicar-se exclu-sivamente a uma função parcial, e sua força de trabalho éentão transformada em órgão vitalício dessa função par-cial. Por fim, essa divisão do trabalho é um tipo particularda cooperação, e várias de suas vantagens resultam da es-sência geral da cooperação, e não dessa sua formaparticular.

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2. O trabalhador parcial e sua ferramenta

Adentrando agora nos detalhes dessa questão, é desdelogo claro que um trabalhador que executa uma mesmaoperação simples durante toda sua vida transforma seucorpo inteiro num órgão automaticamente unilateral dessaoperação e, consequentemente, precisa de menos tempopara executá-la do que o artesão que executa alternada-mente toda uma série de operações. Mas o trabalhadorcoletivo combinado, que constitui o mecanismo vivo damanufatura, consiste de muitos desses trabalhadores parci-ais e unilaterais. Por isso, em comparação com o ofícioautônomo, produz-se mais em menos tempo, ou a forçaprodutiva do trabalhador é aumentada27. Também o méto-do do trabalho parcial se aperfeiçoa depois de estar auto-nomizado como função exclusiva de uma pessoa. Como aexperiência o demonstra, a contínua repetição da mesmaação limitada e a concentração da atenção nessa ação ensi-nam a atingir o efeito útil visado com o mínimo de dispên-dio de força. Mas como diferentes gerações de trabal-hadores convivem simultaneamente e cooperam nas mes-mas manufaturas, os artifícios [Kunstgriffe] técnicos assimobtidos se consolidam, se acumulam e são transmitidoscom rapidez28.

A manufatura produz, com efeito, a virtuosidade dotrabalhador detalhista, quando, no interior da oficina, re-produz e leva sistematicamente ao extremo a diferenciaçãonatural-espontânea dos ofícios. Por outro lado, sua trans-formação do trabalho parcial em vocação [Beruf] da vidade um homem corresponde à tendência, presente em so-ciedades anteriores, de tornar hereditários os ofícios,petrificá-los em castas ou, no caso de determinadas con-dições históricas, produzirem nos indivíduos uma

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variabilidade em contradição com o sistema de castas,ossificá-los em corporações. Castas e corporações têm ori-gem na mesma lei natural que rege a distinção de plantas eanimais em espécies e subespécies, com a única diferençade que, num certo grau de desenvolvimento, a hereditar-iedade das castas ou a exclusividade das corporações é de-cretada como lei social29.

As musselinas de Dakka em sua finura, as chitas e outros te-cidos de Coromandel em esplendor e durabilidade das coresjamais foram superados. E, no entanto, eles são produzidossem capital, maquinaria, divisão do trabalho ou qualquer umdos outros meios que tantas vantagens atribuem à fabricaçãona Europa. O tecelão é um indivíduo isolado, que fabrica o te-cido por encomenda de um cliente e com um tear da maissimples construção, muitas vezes consistindo apenas dehastes de madeira unidas de modo grosseiro. Ele nem sequerdispõe de um mecanismo para puxar a corrente, o que fazcom que o tear tenha de permanecer esticado em todo seucomprimento, tornando-se assim tão disforme e longo quenão encontra lugar no casebre do produtor, que, por isso, temde executar seu trabalho ao ar livre, onde é interrompido porqualquer intempérie.30

É apenas a destreza acumulada de geração a geração elegada de pai para filho que confere ao indiano, assimcomo à aranha, essa virtuosidade. E, no entanto, tal tecelãoexecuta um trabalho muito mais complicado do que o damaioria dos trabalhadores da manufatura.

Um artesão que executa sucessivamente os diversosprocessos parciais da produção de um artigo é obrigado amudar ora de lugar, ora de instrumentos. A passagem deuma operação para outra interrompe o fluxo de seu tra-balho, formando, em certa medida, poros em sua jornadade trabalho. Tais poros se fecham assim que ele passa a

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executar continuamente uma única e mesma operação odia inteiro, ou desaparecem à medida que diminuem asmudanças de sua operação. A força produtiva aumentadase deve aqui ou ao dispêndio crescente de força de tra-balho num dado período de tempo – portanto, à intensid-ade crescente do trabalho –, ou ao decréscimo do consumoimprodutivo de força de trabalho. O excesso de dispêndiode força exigido em cada passagem do repouso ao movi-mento é compensado pela duração maior da velocidadenormal, depois de esta ter sido alcançada. Por outro lado, acontinuidade de um trabalho uniforme aniquila a forçatensional e impulsiva dos espíritos vitais, que encontramna própria mudança de atividade seu descanso e estímulo.

A produtividade do trabalho depende não apenas davirtuosidade do trabalhador, mas também da perfeição desuas ferramentas. Ferramentas do mesmo tipo, como in-strumentos para cortar, perfurar, pilar, bater etc., são util-izadas em diversos processos de trabalho, e no mesmo pro-cesso de trabalho o mesmo instrumento serve para difer-entes operações. Mas assim que as diferentes operações deum processo de trabalho são dissociadas umas das outras ecada operação parcial adquire nas mãos do trabalhadorparcial a forma mais adequada possível e, portanto,exclusiva, torna-se necessário modificar as ferramentas queanteriormente serviam para outros fins diversos. A direçãoque assume sua mudança de forma é resultado da exper-iência das dificuldades específicas provocadas pela formainalterada. A diferenciação dos instrumentos de trabalho,por meio da qual instrumentos de mesmo tipo assumemformas particulares e fixas para cada aplicação útil particu-lar, e sua especialização, que faz com que cada um dessesinstrumentos especiais só funcione em toda plenitude nasmãos de trabalhadores parciais específicos, caracterizam a

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manufatura. Apenas em Birmingham são produzidas cercade quinhentas variedades de martelos, e muitas delasservem não só a um processo particular de produção, mas,com frequência, a diferentes operações no interior de ummesmo processo. O período da manufatura simplifica,melhora e diversifica as ferramentas de trabalho por meiode sua adaptação às funções específicas e exclusivas dostrabalhadores parciais31. Com isso, ela cria, ao mesmotempo, uma das condições materiais da maquinaria, queconsiste numa combinação de instrumentos simples.

O trabalhador detalhista e seu instrumento formam oselementos simples da manufatura. Voltemo-nos, agora, àsua figura inteira.

3. As duas formas fundamentais damanufatura – manufatura heterogênea e

manufatura orgânica

A articulação da manufatura possui duas formas funda-mentais, que, não obstante seu eventual entrelaçamento,compõem duas espécies essencialmente distintas e quedesempenham papéis totalmente diferentes, especialmentena transformação posterior da manufatura em grande in-dústria, movida pela maquinaria. Esse duplo caráterprovém da natureza do próprio produto. Este ou é con-stituído por mera composição mecânica de produtos parci-ais independentes, ou deve sua configuração acabada auma sequência de processos e manipulações encadeadas.

Uma locomotiva, por exemplo, consiste de mais de 5mil partes independentes. Ela não pode, porém, servir deexemplo para a primeira espécie de manufatura propria-mente dita, porquanto é um produto da grande indústria,mas sim o relógio, de que também se serviu William Petty

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para ilustrar a divisão do trabalho na manufatura. De obraindividual de um artesão de Nuremberg, o relógiotransformou-se no produto social de um sem-número detrabalhadores parciais, como o fazedor das peças brutas, ofazedor das molas, o fazedor dos mostradores, o fazedorda corda, o fazedor dos mancais para as pedras e os rubisdas alavancas, o fazedor dos ponteiros, o fazedor da caixa,o fazedor dos parafusos, o dourador, e com muitas sub-divisões, como o fazedor de rodas (rodas de latão e de aço,também em separado), o fazedor do rotor, o fazedor doeixo dos ponteiros, o acheveur de pignon (aquele que fixa asrodas no trem de engrenagens e pule as facetas) o fazedordo pivô, o planteur de finissage (que monta diversas rodas ecarretes na máquina), o finisseur de barrillet (que entalha osdentes nas rodas, ajusta as dimensões dos furos, aperta asposições e travas), o fazedor da âncora, o fazedor do cilin-dro para a âncora, o fazedor da roda de escape, o fazedordo volante, o fazedor da roda de balanço, o fazedor dacoroa (mecanismo com que se regula o relógio), o planteurd’échappement (que faz o escapamento), o repasseur de barril-let (que finaliza a caixa da mola e a posição), o polidor doaço, o polidor das rodas, o polidor dos parafusos, o pintordos números, o esmaltador do mostrador (que aplica o es-malte sobre o cobre), o fabricant de pendants (que faz apenasas argolas do relógio), o finisseur de charnière (que coloca oeixo de latão no centro da caixa etc.), o faiseur de secret (quecoloca na caixa as molas que fazem abrir a tampa), ograveur [gravador], o ciseleur [cinzelador], o polisseur de boîte[polidor da caixa] etc., etc., e, finalmente, o repasseur, quemonta todo o relógio e o entrega funcionando. Apenas al-gumas poucas partes do relógio passam por diversasmãos, e todos esses membra disjecta só são reunidos nasmãos que finalmente os combinam num todo mecânico.

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Aqui, como em outras fabricações semelhantes, essa re-lação exterior do produto acabado com seus diferentes ele-mentos torna acidental a combinação dos trabalhadoresparciais na mesma oficina. Tanto é possível a execução dostrabalhos parciais como ofícios independentes entre si,como no cantão de Vaud e Neuchâtel, quanto a cooperaçãodireta dos trabalhadores parciais sob o comando de umcapital, como ocorre, por exemplo, em Genebra, onde hágrandes manufaturas de relógios. Também no último casoé raro que mostrador, mola e caixa sejam feitos na própriamanufatura. A empresa manufatureira combinada só é luc-rativa, aqui, sob condições excepcionais, já que a concor-rência entre os trabalhadores que querem trabalhar emcasa é extrema, o fracionamento da produção em inúmerosprocessos heterogêneos permite pouca aplicação de meioscoletivos de trabalho e o capitalista, com a fabricação frag-mentada, economiza os gastos com instalações fabris etc.32

No entanto, a posição desses trabalhadores detalhistas, quetrabalham em casa, porém para um capitalista (fabricante,établisseur), é totalmente distinta daquela do artesão inde-pendente, que trabalha para seus próprios clientes33.

O segundo tipo de manufatura, sua forma acabada,produz artigos que passam por fases interconexas dedesenvolvimento, uma sequência de processos graduais,como o arame, que, na manufatura de agulhas de costura,passa pelas mãos de 72 – e até 92 – trabalhadores parciaisespecíficos.

Ao combinar ofícios originalmente dispersos, tal manu-fatura reduz a separação espacial entre as fases particu-lares de produção do artigo. O tempo de sua passagem deum estágio para outro é reduzido, assim como o trabalhoque medeia essa passagem34. Em comparação com oartesanato obtém-se, com isso, um acréscimo de força

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produtiva, sendo tal acréscimo derivado, na verdade, docaráter cooperativo geral da manufatura. Por outro lado,seu princípio peculiar da divisão de trabalho provoca umisolamento das diferentes fases de produção, que, como di-versos outros trabalhos parciais artesanais, se autonom-izam mutuamente. Estabelecer e manter a conexão entre asfunções isoladas exige o transporte constante do artigo deuma mão para outra e de um processo para outro. Doponto de vista da grande indústria, isso se revela uma lim-itação característica, dispendiosa e imanente ao princípioda manufatura35.

Quando observamos uma quantidade determinada dematéria-prima, por exemplo, de trapos na manufatura depapel ou de arame na manufatura de alfinetes, vemos queela percorre, nas mãos dos diferentes trabalhadores parci-ais, uma série cronológica de fases de produção até atingirsua forma final. Mas quando, ao contrário, observamos aoficina como um mecanismo total, vemos que a matéria-prima encontra-se simultaneamente em todas as suas fasesde produção. Com uma parte de suas muitas mãos muni-das de instrumentos, o trabalhador coletivo, resultado dacombinação de trabalhadores detalhistas, puxa o arame aomesmo tempo que, com outras mãos e outras ferramentas,o estica, com outras o corta, o aponta etc. De uma sucessãotemporal, os diversos processos graduais se convertemnuma justaposição espacial. Disso resulta o fornecimentode mais mercadorias acabadas no mesmo espaço detempo36. Se é verdade que essa simultaneidade decorre daforma cooperativa geral do processo total, a manufaturanão se limita a encontrar dadas condições para a cooper-ação, mas as cria, em parte mediante a decomposição daatividade artesanal. Por outro lado, ela só alcança essa

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organização social do processo de trabalho ao soldar omesmo trabalhador ao mesmo detalhe.

Por ser o produto parcial de cada trabalhador parcialapenas um grau particular de desenvolvimento do mesmoartigo, cada trabalhador ou grupo de trabalhadores forneceao outro sua matéria-prima. No resultado do trabalho deum está o ponto de partida para o trabalho do outro.Assim, um trabalhador ocupa diretamente o outro. Otempo de trabalho necessário para se obter o efeito útil vis-ado em cada processo parcial é fixado conforme a exper-iência, e o mecanismo inteiro da manufatura repousa sobreo pressuposto de que em dado tempo de trabalho obtém-seum dado resultado. Apenas sob esse pressuposto os pro-cessos de trabalho diferentes e mutuamente complement-ares podem prosseguir justapostos espacialmente, demodo simultâneo e ininterrupto. É evidente que essa de-pendência imediata dos trabalhos e, por conseguinte, dostrabalhadores entre si, força cada indivíduo a empregar emsua função não mais do que o tempo necessário, gerando-se assim uma continuidade, uniformidade, regularidade,ordenamento37 e, mais ainda, uma intensidade de trabalhoabsolutamente distintos daqueles vigentes no ofícioautônomo ou mesmo no regime de cooperação simples.Que numa mercadoria seja aplicado apenas o tempo detrabalho socialmente necessário para sua produção é algoque aparece na produção de mercadorias em geral comocoerção externa da concorrência, dado que, expresso su-perficialmente, cada produtor individual é obrigado avender a mercadoria pelo seu preço de mercado. Na man-ufatura, ao contrário, o fornecimento de uma dada quan-tidade de produtos em dado tempo de trabalho torna-seuma lei técnica do próprio processo de produção38.

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Ocorre que operações diferentes exigem períodosdesiguais de tempo e, por isso, fornecem, no mesmo inter-valo de tempo, quantidades desiguais de produtos parci-ais. Portanto, se o mesmo trabalhador deve executarsempre a mesma operação dia após dia, então é precisoque, em operações diferentes, sejam empregados númerosproporcionalmente diferentes de trabalhadores, por exem-plo, que numa manufatura de tipos de imprensa sejamempregados quatro fundidores e dois quebradores paraum polidor, e que o fundidor funda 2 mil tipos por hora, oquebrador quebre 4 mil e o polidor pula 8 mil. Aquireaparece o princípio da cooperação em sua forma maissimples, a da ocupação simultânea de muitos indivíduosque executam operações da mesma espécie, porém agoracomo expressão de uma relação orgânica. A divisão manu-fatureira do trabalho, portanto, não só simplifica e diversi-fica os órgãos qualitativamente diferentes do trabalhadorcoletivo social como também cria uma proporçãomatemática fixa para a extensão quantitativa desses ór-gãos, isto é, para o número relativo de trabalhadores ougrandeza relativa dos grupos de trabalhadores em cadafunção específica. Ela desenvolve, com a subdivisão qualit-ativa do processo de trabalho social, a regra quantitativa ea proporcionalidade desse processo.

Estando fixada, pela experiência, a proporção mais ad-equada dos diferentes grupos de trabalhadores parciaispara uma determinada escala da produção, esta só podeser ampliada por meio do emprego de um múltiplo decada grupo particular de trabalhadores39. A isso se acres-centa que o mesmo indivíduo pode executar igualmentebem certos trabalhos em maior ou menor escala, como otrabalho de supervisão, o transporte dos produtos parciaisde uma fase de produção para outra etc. A autonomização

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dessas funções ou sua atribuição a trabalhadores específi-cos só passa a representar uma vantagem com a ampliaçãodo número de trabalhadores ocupados, e desde que essaampliação atinja de imediato e de maneira proporcional to-dos os grupos.

O grupo individual, um número de trabalhadores queexecutam a mesma função parcial, consiste de elementoshomogêneos e forma um órgão particular do mecanismototal. Nas diferentes manufaturas, porém, o próprio grupoé um corpo articulado de trabalho, enquanto o mecanismototal é formado pela repetição ou multiplicação desses or-ganismos produtivos elementares. Consideremos, por ex-emplo, a manufatura de garrafas de vidro. Ela se decom-põe em três fases essencialmente distintas. Primeiramente,há a fase preparatória, que consiste na preparação da com-posição do vidro – mistura de areia, cal etc. – e na fundiçãodessa composição numa massa fluida de vidro40. Nessaprimeira fase, diferentes trabalhadores parciais se ocupam,tanto quanto na fase final, em retirar as garrafas dos fornosde secagem, selecioná-las, embalá-las etc. No meio dasduas fases é que está a feitura propriamente dita do vidro,ou a elaboração de sua massa fluida. Na mesma boca deforno trabalha um grupo, na Inglaterra chamado de hole(buraco) e constituído por um bottle maker [fazedor de gar-rafas] ou finisher [acabador], um blower [soprador], umgatherer [coletor], um putter up [carregador] ou whetter off[separador] e um taker [entregador]. Esses cinco trabal-hadores parciais formam outros tantos órgãos particularesde um único corpo de trabalho, que só pode atuar comouma unidade, isto é, por meio da cooperação direta de to-dos os seus cinco membros. Na ausência de um dessesmembros, ele fica paralisado. Mas o mesmo forno de vidrotem várias aberturas – na Inglaterra, por exemplo, elas

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variam de quatro a seis –, cada uma delas com um cadinhode barro contendo massa fluida de vidro, no qual trabalhaum grupo de trabalhadores, igualmente composto de cincomembros. A articulação de cada grupo individual funda-se, aqui, diretamente na divisão do trabalho, ao passo queo vínculo entre os diversos grupos do mesmo tipo é a co-operação simples, que economiza meios de produção – nocaso presente, o forno de vidro – mediante seu consumocoletivo. Tal forno de vidro reúne de quatro a seis gruposde trabalhadores e constitui uma vidraria; uma manu-fatura de vidro é formada por uma multiplicidade de taisvidrarias, juntamente com as instalações e os trabalhadoresnecessários para as fases preparatórias e finais daprodução.

Finalmente, uma vez que a manufatura tem origem nacombinação de diversos ofícios, ela pode se desenvolvernuma combinação de diversas manufaturas. As maioresvidrarias inglesas, por exemplo, fabricam elas própriasseus cadinhos de barro, pois da qualidade desses instru-mentos depende essencialmente o sucesso ou insucesso daprodução. A manufatura de um meio de produção é vincu-lada, aqui, à manufatura do produto. Inversamente, é tam-bém possível que a manufatura do produto se vincule amanufaturas às quais ele serve, por sua vez, de matéria-prima, ou a cujos produtos ele é acoplado posteriormente.Assim, por exemplo, a manufatura de flint glass é combin-ada com a do polimento de vidro e a da fundição de latão,este último sendo utilizado para a moldura metálica de di-versos artigos de vidro, de modo que as diferentes manu-faturas combinadas formam, no interior de uma manu-fatura total, departamentos mais ou menos separados es-pacialmente e, ao mesmo tempo, processos de produçãoautônomos, cada um com sua própria divisão de trabalho.

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Não obstante algumas vantagens oferecidas pela manu-fatura combinada, ela jamais chega a adquirir uma ver-dadeira unidade técnica sobre seu próprio fundamento.Tal unidade só ocorre com sua transformação em indústriamecanizada.

O período da manufatura, que logo proclama como seuprincípio41 consciente a diminuição do tempo de trabalhonecessário para a produção de mercadorias, tambémdesenvolve eventualmente o uso de máquinas, sobretudoem certos processos iniciais e simples, que têm de ser ex-ecutados massivamente e com grande aplicação de força.Assim, por exemplo, a manufatura de papel começa com atrituração de trapos, realizada por moinhos específicos, ena metalurgia o britamento do minério é feito pelos assimchamados moinhos de pilões42. A forma elementar de todamaquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano, como moinho d’água43. O período do artesanato deixou comolegado grandes invenções: a bússola, a pólvora, a im-pressão de livros e o relógio automático. Em geral, no ent-anto, a maquinaria exerce aquela função secundária queAdam Smith lhe atribui, ao lado da divisão do trabalho44.Muito importante tornou-se o uso esporádico da maquin-aria no século XVII, na medida em que ela oferecia aosgrandes matemáticos daquela época pontos de apoio práti-cos e estímulos para a criação da mecânica moderna.

A maquinaria específica do período da manufatura per-manece sendo o próprio trabalhador coletivo, que resultada combinação de muitos trabalhadores parciais. As diver-sas operações que o produtor de uma mercadoria executaalternadamente e que se entrelaçam na totalidade de seuprocesso de trabalho colocam-lhe exigências diferentes.Numa ele tem de desenvolver mais força, noutra, maisdestreza, numa terceira, mais concentração mental etc., e o

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mesmo indivíduo não dispõe dessas qualidades no mesmograu. Depois da separação, autonomização e isolamentodas diferentes operações, os trabalhadores são separados,classificados e agrupados de acordo com suas qualidadespredominantes. Se suas especificidades naturais con-stituem a base sobre a qual se ergue a divisão do trabalho,a manufatura, uma vez introduzida, desenvolve forças detrabalho que, por natureza, servem apenas para funçõesespecíficas unilaterais. O trabalhador coletivo dispõe agorade todas as qualidades produtivas no mesmo grau de vir-tuosidade e as despende, ao mesmo tempo, do modo maiseconômico, concentrando todos os seus órgãos, individual-izados em trabalhadores ou grupos de trabalhadores espe-cializados, no desempenho exclusivo de suas funções es-pecíficas45. A unilateralidade e mesmo a imperfeição dotrabalhador parcial convertem-se em sua perfeição comomembro do trabalhador coletivo46. O hábito de exerceruma função unilateral transforma o trabalhador parcial emórgão natural – e de atuação segura – dessa função, aomesmo tempo que sua conexão com o mecanismo total ocompele a operar com a regularidade de uma peça de má-quina47.

Como as diferentes funções do trabalhador coletivo po-dem ser mais simples ou mais complexas, inferiores ou su-periores, seus órgãos, as forças de trabalho individuais,requerem diferentes graus de formação e possuem, porisso, valores muito diferentes. A manufatura desenvolve,assim, uma hierarquia das forças de trabalho, a que corres-ponde uma escala de salários. Se de um lado o trabalhadorindividual é apropriado e anexado vitaliciamente a umafunção unilateral, de outro as diferentes operações laboraisdaquela hierarquia são adaptadas às suas habilidades nat-urais e adquiridas48. Todo processo de produção requer,

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no entanto, certas operações simples, que qualquer ser hu-mano é normalmente capaz de executar. Também tais op-erações são agora destacadas de sua conexão fluida com osmomentos mais plenos de conteúdo da atividade e ossi-ficadas em funções exclusivas.

Em todo ofício de que se apodera, a manufatura cria,portanto, uma classe dos chamados trabalhadores nãoqualificados, antes rigorosamente excluídos pelo artes-anato. Ao mesmo tempo que desenvolve, à custa da capa-cidade total de trabalho, a especialidade totalmente unilat-eralizada, que chega ao ponto da virtuosidade ela jácomeça a transformar numa especialidade a falta absolutade desenvolvimento. Juntamente com a gradação hierár-quica, surge a simples separação dos trabalhadores emqualificados e não qualificados. Para estes últimos, os cus-tos de aprendizagem desaparecem por completo, e para osprimeiros esses custos são menores, em comparação com oartesão, devido à função simplificada. Em ambos os casosdiminui o valor da força de trabalho49. Exceções ocorremna medida em que a decomposição do processo de tra-balho gera funções novas e abrangentes que no artesanatonão existiam, ou pelo menos não na mesma extensão. Adesvalorização relativa da força de trabalho, decorrente daeliminação ou redução dos custos de aprendizagem, im-plica imediatamentente uma maior valorização do capital,pois tudo o que encurta o tempo de trabalho necessáriopara a reprodução da força de trabalho estende, ao mesmotempo, os domínios do mais-trabalho.

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4. Divisão do trabalho na manufatura edivisão do trabalho na sociedade

Começamos nossa análise pela origem da manufatura, pas-sando por seus elementos simples – o trabalhador parcial esua ferramenta – até chegar a seu mecanismo total.Trataremos agora, brevemente, da relação entre a divisãomanufatureira e a divisão social do trabalho, que constituia base geral de toda a produção de mercadorias.

Se tomamos em consideração apenas o trabalho, po-demos caracterizar a separação da produção social em seusgrandes gêneros – agricultura, indústria etc. – como di-visão do trabalho no universal, a diferenciação desses gên-eros de produção em espécies e subespécies como divisãodo trabalho no particular e a divisão do trabalho no interi-or de uma oficina como divisão do trabalho no singular50.

A divisão do trabalho na sociedade e a correspondentelimitação dos indivíduos a esferas profissionais particu-lares se desenvolve, como a divisão do trabalho na manu-fatura, a partir de pontos opostos. Numa família ou, com odesenvolvimento ulterior, numa tribo, surge uma divisãonatural-espontânea do trabalho fundada nas diferenças desexo e de idade, portanto, sobre uma base puramente fisi-ológica, que amplia seu material com a expansão dacomunidade, com o aumento da população e, especial-mente, com o conflito entre as diversas tribos e a sub-jugação de uma tribo por outra. Por outro lado, como ob-servei anteriormentea, a troca de produtos surge nos pon-tos em que diferentes famílias, tribos e comunidades en-tram mutuamente em contato, pois, nos primórdios dacivilização, são famílias, tribos, etc. que se defrontam deforma autônoma, e não pessoas privadas. Comunidadesdiferentes encontram em seu ambiente natural meios

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diferentes de produção e de subsistência. Por isso, tambémsão diferentes seu modo de produção, seu modo de vida eseus produtos, e é essa diferenciação natural-espontâneaque, no contato entre as comunidades, provoca a troca dosprodutos recíprocos e, por conseguinte, a transformaçãoprogressiva desses produtos em mercadorias. A troca nãocria a diferença entre as esferas de produção, mas colocaem relação esferas de produção diferentes e as transforma,assim, em ramos mais ou menos interdependentes de umaprodução social total. A divisão social do trabalho surgeaqui da troca entre esferas de produção originalmente dis-tintas e independentes entre si. No primeiro caso, em que adivisão fisiológica do trabalho é o ponto de partida, os ór-gãos particulares de um todo imediatamente compactodesprendem-se uns dos outros, decompõem-se, e o im-pulso principal para esse processo de decomposição édado pela troca de mercadorias com comunidades es-trangeiras, que faz com que esses órgãos se autonomizemao ponto de que o nexo entre os diferentes trabalhos passaa ser mediado pela troca dos produtos como mercadorias.Num caso, tem-se o tornar dependente[Verunselbständigung] daquilo que antes era independente;no outro, tem-se a independentização do que antes eradependente.

A base de toda divisão do trabalho desenvolvida e me-diada pela troca de mercadorias é a separação entre cidadee campo51. Pode-se dizer que a história econômica inteirada sociedade está resumida no movimento dessa antítese,da qual, no entanto, não trataremos aqui.

Assim como a divisão do trabalho na manufatura temcomo pressuposto material um certo número de trabal-hadores empregados simultaneamente, a divisão do tra-balho na sociedade tem como pressuposto material a

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grandeza da população e sua densidade, que ocupa aqui olugar da aglomeração na mesma oficina52. Mas tal densid-ade é relativa. Um país de povoamento relativamente es-parso, com meios de comunicação desenvolvidos, possuium povoamento mais denso do que um país mais po-voado, porém com meios de comunicação pouco desen-volvidos, de modo que, por exemplo, os Estados setentri-onais da União Americana são mais densamente povoadosdo que a Índia53.

Como a produção e a circulação de mercadorias é opressuposto geral do modo de produção capitalista, a di-visão manufatureira do trabalho requer uma divisão dotrabalho amadurecida até certo grau de desenvolvimentono interior da sociedade. Inversamente, por efeito retroat-ivo, a divisão manufatureira do trabalho desenvolve emultiplica aquela divisão social do trabalho. Com a difer-enciação dos instrumentos de trabalho diferenciam-se cadavez mais os ofícios que produzem esses instrumentos54. Sea empresa manufatureira se apossa de um ofício, que atéentão se conectava a outros, como ofício principal ouacessório e era exercido pelo mesmo produtor, ocorre suaimediata separação e independentização. Se ela se apossade um estágio particular da produção de uma mercadoria,seus diferentes estágios de produção se convertem em ofí-cios distintos e independentes. Já observamos que, quandoo artigo consiste meramente de um composto de produtosparciais unidos de modo mecânico, os trabalhos parciaispodem se autonomizar, por sua vez, como ofícios próprios.Para efetuar mais perfeitamente a divisão do trabalhonuma manufatura, o mesmo ramo de produção é, segundoa diversidade de suas matérias-primas ou das diferentesformas que essa matéria-prima pode assumir, dividido emmanufaturas diversas e, em parte, inteiramente novas.

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Assim, já na primeira metade do século XVIII, somente naFrança se produziam mais de cem variedades de seda, eem Avignon, por exemplo, era lei que “todo aprendiz sópodia se dedicar a uma única espécie de fabricação, nãolhe sendo permitido aprender a confecção de vários tiposde tecido ao mesmo tempo”. A divisão territorial do tra-balho, que concentra ramos particulares de produção emdistritos particulares de um país, obtém um novo impulsoda indústria manufatureira, que explora todas as particu-laridades55. A ampliação do mercado mundial e o sistemacolonial, que integram as condições gerais de existência doperíodo da manufatura, fornecem a este último um ricomaterial para o desenvolvimento da divisão do trabalho nasociedade. Não cabe aqui prosseguirmos com a demon-stração de como essa divisão se apossa não apenas da es-fera econômica, mas de todas as outras esferas da so-ciedade, firmando por toda parte as bases para aqueleavanço da especialização, das especialidades, de um par-celamento do homem que já levara A. Ferguson, professorde A. Smith, a exclamar: “Estamos criando uma nação dehilotas, e já não há homens livres entre nós”56.

Mas, apesar das inúmeras analogias e nexos entre a di-visão do trabalho na sociedade e a divisão do trabalho naoficina, a diferença entre elas é não apenas de grau, mas deessência. A analogia se evidencia do modo mais cabal ondeum vínculo interno entrelaça diferentes ramos de negócios.O criador de gado produz peles, que o curtidor transformaem couro, que o sapateiro transforma em botas. Cada umdeles produz, aqui, um produto gradual, e a configuraçãofinal, acabada, é o produto combinado de seus trabalhosespecíficos. A isso se acrescentam os múltiplos ramos detrabalho que fornecem os meios de produção ao criador degado, ao curtidor e ao sapateiro. Decerto, podemos

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imaginar, com A. Smith, que essa divisão social do tra-balho se distingue da divisão manufatureira apenas sub-jetivamente, em especial para aquele que, ao observar estaúltima, vislumbra no mesmo espaço a variedade dos tra-balhos parciais, ao passo que, na observação da primeira,essa conexão é obscurecida por sua dispersão por grandesáreas e pelo grande número de trabalhadores ocupados emcada ramo específico57. Mas o que estabelece a conexãoentre os trabalhos autônomos do criador de gado, docurtidor e do sapateiro? A existência de seus respectivosprodutos como mercadorias. O que caracteriza, ao con-trário, a divisão manufatureira do trabalho? Que o trabal-hador parcial não produz mercadoria58. Apenas o produtocomum dos trabalhadores parciais converte-se em mer-cadoria58a. Enquanto a divisão do trabalho na sociedade émediada pela compra e venda dos produtos de diferentesramos de trabalho, a conexão dos trabalhos parciais namanufatura o é pela venda de diferentes forças de trabalhoao mesmo capitalista, que as emprega como força de tra-balho combinada. Enquanto a divisão manufatureira dotrabalho pressupõe a concentração dos meios de produçãonas mãos de um capitalista, a divisão social do trabalhopressupõe a fragmentação dos meios de produção entremuitos produtores de mercadorias independentes entre si.Diferentemente da manufatura, onde a lei de bronze daproporção ou da proporcionalidade submete determinadasmassas de trabalhadores a determinadas funções, na so-ciedade é o diversificado jogo do acaso e do arbítrio quedetermina a distribuição dos produtores de mercadorias ede seus meios de produção entre os diferentes ramos soci-ais de trabalho. É verdade que as diferentes esferas deprodução procuram constantemente pôr-se em equilíbriouma com as outras, já que, por um lado, se cada produtor

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de mercadorias tem de produzir um valor de uso e, port-anto, satisfazer uma necessidade social particular, o âmbitodessas necessidades é quantitativamente distinto, e umvínculo interno concatena as diferentes massas de ne-cessidades num sistema natural-espontâneo, ao passo que,por outro lado, a lei do valor das mercadorias determinaquanto do tempo total de trabalho disponível a sociedadepode gastar na produção de cada tipo particular de mer-cadoria. Mas essa tendência constante das diferentes esfer-as de produção de se pôr em equilíbrio é exercida apenascomo reação contra a constante supressão desse mesmoequilíbrio. A regra a priori e planejadamente seguida na di-visão do trabalho no interior da oficina atua na divisão dotrabalho no interior da sociedade apenas a posteriori, comonecessidade natural, interna, muda, que controla o arbítriodesregrado dos produtores de mercadorias e pode ser per-cebida nas flutuações barométricas dos preços do mercado.A divisão manufatureira do trabalho supõe a autoridadeincondicional do capitalista sobre homens que constituemmeras engrenagens de um mecanismo total que a ele per-tence; a divisão social do trabalho confronta produtoresautônomos de mercadorias, que não reconhecem outraautoridade senão a da concorrência, da coerção que sobreeles é exercida pela pressão de seus interesses recíprocos,assim como, no reino animal, o bellum omnium contra omnes[guerra de todos contra todos]b preserva em maior oumenor grau as condições de existência de todas as espécies.Por essa razão, a mesma consciência burguesa que festeja adivisão manufatureira do trabalho, a anexação vitalícia dotrabalhador a uma operação detalhista e a subordinaçãoincondicional dos trabalhadores parciais ao capital comouma organização do trabalho que aumenta a forçaprodutiva denuncia com o mesmo alarde todo e qualquer

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controle e regulação social consciente do processo social deprodução como um ataque aos invioláveis direitos de pro-priedade, liberdade e à “genialidade” autodeterminante docapitalista individual. É muito característico que os maisentusiasmados apologistas do sistema fabril não saibamdizer nada mais ofensivo contra toda organização geral dotrabalho social além de que ela transformaria a sociedadeinteira numa fábrica.

Se na sociedade do modo de produção capitalista aanarquia da divisão social do trabalho e o despotismo dadivisão manufatureira do trabalho se condicionam mutua-mente, as formas sociais anteriores – nas quais a particular-ização dos ofícios se desenvolve espontaneamente, depoiscristalizam-se e, por fim, consolidam-se por lei – ap-resentam, por um lado, o quadro de uma organização dotrabalho social submetida a um planejamento e a umaautoridade, enquanto, por outro, excluem inteiramente adivisão do trabalho na oficina, ou só a desenvolvem numaescala ínfima, ou ainda apenas de forma esporádica,acidental59.

Por exemplo, aquelas pequenas comunidades indianas,extremamente antigas, algumas das quais continuam a exi-stir até hoje, baseiam-se na posse comum da terra, na con-exão direta entre agricultura e artesanato e numa divisãofixa do trabalho que serve de plano e esquema geral no es-tabelecimento de novas comunidades. Cada uma delasforma um todo autossuficiente de produção, cuja áreaprodutiva varia de 100 a alguns milhares de acres. A maiorparte dos produtos é destinada à subsistência imediata dacomunidade, e não como mercadoria, de modo que a pró-pria produção independe da divisão do trabalho mediadapela troca de mercadorias que impera no conjunto da so-ciedade indiana. Apenas o excedente dos produtos é

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transformado em mercadoria, e uma parte dele somentedepois de chegar às mãos do Estado, para o qual flui desdetempos imemoriais certa quantidade desses produtoscomo renda natural. Diferentes regiões da Índia ap-resentam diferentes formas de comunidades. Naquelascuja forma é mais simples, a terra é cultivada em comum eseus produtos são distribuídos entre seus membros, en-quanto cada família exerce a fiação, a tecelagem etc. comoindústrias domésticas subsidiárias. Ao lado dessa massaocupada com as mesmas tarefas, encontramos “o habitanteprincipal”, que reúne numa só pessoa as funções de juiz,polícia e coletor de impostos; o guarda-livros, que faz acontabilidade do cultivo, cadastrando e registrando tudo oque lhe diz respeito; um funcionário a quem cabeperseguir criminosos e proteger viajantes estrangeiros,escoltando-os de uma aldeia a outra; o guarda de fronteira,que vigia os limites entre sua comunidade e as comunid-ades vizinhas; o inspetor de águas, que distribui para a ir-rigação agrícola a água dos reservatórios comunais; o brâ-mane, responsável pelo culto religioso; o mestre-escola,que ensina as crianças da comunidade a ler e a escrever naareia; o brâmane do calendário, que, como astrólogo, in-dica as épocas favoráveis para a semeadura, a colheita e osbons e maus momentos para todos o trabalhos agrícolasparticulares; um ferreiro e um carpinteiro, que produzem econsertam todos os instrumentos agrícolas; o ceramista,que confecciona todos os vasilhames da aldeia; o barbeiro,o lavador de roupas, o ourives da prata, um ou outro po-eta, que em algumas comunidades assume o lugar doourives de prata e, em outras, do mestre-escola. Essa dúziade pessoas é sustentada a expensas de toda a comunidade.Aumentando a população, uma nova comunidade se as-senta em terras não cultivadas, conforme o modelo da

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anterior. O mecanismo comunal apresenta uma divisãoplanejada do trabalho, mas sua divisão manufatureira éimpossibilitada pelo fato de o mercado do ferreiro, docarpinteiro etc. permanecer inalterado, de modo que, a de-pender do tamanho da aldeia, podemos encontrar no máx-imo, em vez de um ferreiro, um oleiro etc., dois ou trêsdeles60. A lei que regula a divisão do trabalho comunalatua aqui com a autoridade inquebrantável de uma lei nat-ural, ao passo que cada artesão particular, como o ferreiroetc., executa todas as operações referentes a seu ofício demodo tradicional porém independente e sem reconhecerqualquer autoridade em sua oficina. O organismoprodutivo simples dessas comunidades autossuficientes,que se reproduzem constantemente da mesma forma e,sendo ocasionalmente destruídas, voltam a ser construí-das61 no mesmo lugar, com os mesmos nomes, fornece achave para o segredo da imutabilidade das sociedades as-iáticas, que contrasta de forma tão acentuada com a con-tínua dissolução e reconstrução dos Estados asiáticos ecom as incessantes mudanças dinásticas. A estrutura doselementos econômicos fundamentais da sociedade per-manece intocada pelas tormentas que agitam o céu dapolítica.

As leis das corporações, como já observamos, impe-diam deliberadamente, por meio da mais estrita limitaçãodo número de ajudantes que um único mestre de corpor-ação podia empregar, a transformação deste último emcapitalista. Além disso, só lhe era permitido empregarajudantes naquele ofício exclusivo em que ele próprio eramestre. A corporação repelia zelosamente qualquer in-trusão do capital comercial, a única forma livre de capitalcom que ela se defrontava. O mercador podia comprar to-das as mercadorias, menos o trabalho como mercadoria.

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Ele era aceito unicamente como distribuidor dos produtosartesanais. Como as circunstâncias externas clamavam poruma progressiva divisão do trabalho, as corporaçõesexistentes cindiram-se em subespécies ou novas corpor-ações foram criadas ao lado das antigas, mas sem a con-centração de diferentes ofícios numa mesma oficina.Assim, a organização corporativa, por mais que sua espe-cialização, seu isolamento e o aperfeiçoamento dos ofícioscomponham as condições materiais de existência do per-íodo de manufatura, excluía a divisão manufatureira dotrabalho. Em geral, o trabalhador e seus meios deprodução permaneciam colados um ao outro como o cara-col e sua concha, faltando, assim, a base principal da man-ufatura, a independentização dos meios de produção comocapital diante do trabalhador.

Enquanto a divisão do trabalho no todo de uma so-ciedade, seja ela mediada ou não pela troca demercadorias, encontra-se nas mais diversas formações so-cioeconômicas, a divisão manufatureira do trabalho é umacriação absolutamente específica do modo de produçãocapitalista.

5. O caráter capitalista da manufatura

Um número maior de trabalhadores sob o comando domesmo capital constitui o ponto de partida natural-es-pontâneo tanto da cooperação em geral quanto da manu-fatura. Por outro lado, a divisão manufatureira do trabalhotransforma numa necessidade técnica o aumento donúmero de trabalhadores empregados. O mínimo de tra-balhadores que um capitalista individual tem de empregaré agora prescrito pela divisão do trabalho previamentedada. Por outro lado, as vantagens de uma divisão ulteriorsão condicionadas pelo aumento do número de

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trabalhadores, que só pode ser realizado por múltiplos.Mas com a parte variável também tem de crescer a parteconstante do capital, e não só o volume das condiçõescomuns de produção, como instalações, fornos etc., mastambém (e principalmente) a matéria-prima, cuja demandacresce muito mais aceleradamente do que o número de tra-balhadores. A quantidade de capital constante consumidanum dado tempo por uma dada quantidade de trabalhoapresenta um crescimento proporcional ao da forçaprodutiva do trabalho em decorrência da divisão deste úl-timo. O aumento crescente do volume mínimo de capitalem mãos de capitalistas individuais ou a transformaçãocrescente dos meios sociais de subsistência e dos meios deprodução em capital é, assim, uma lei decorrente docaráter técnico da manufatura62.

Na manufatura, tal como no regime de cooperaçãosimples, o corpo de trabalho em funcionamento é umaforma de existência do capital. O mecanismo social deprodução integrado por muitos trabalhadores parciais in-dividuais pertence ao capitalista. Por isso, a forçaprodutiva que nasce da combinação dos trabalhos aparececomo força produtiva do capital. A manufatura propria-mente dita não só submete ao comando e à disciplina docapital o trabalhador antes independente como tambémcria uma estrutura hierárquica entre os próprios trabal-hadores. Enquanto a cooperação simples deixa pratica-mente intocado o modo de trabalho dos indivíduos, amanufatura o revoluciona desde seus fundamentos e seapodera da força individual de trabalho em suas raízes. Elaaleija o trabalhador, converte-o numa aberração, pro-movendo artificialmente sua habilidade detalhista pormeio da repressão de um mundo de impulsos e capacid-ades produtivas, do mesmo modo como, nos Estados de

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La Plata, um animal inteiro é abatido apenas para a re-tirada da pele ou do sebo. Não só os trabalhos parciais es-pecíficos são distribuídos entre os diversos indivíduos,como o próprio indivíduo é dividido e transformado nomotor automático de um trabalho parcial63, conferindo as-sim realidade à fábula absurda de Menênio Agripac, querepresenta um ser humano como mero fragmento de seupróprio corpo64. Se o trabalhador vende inicialmente suaforça de trabalho ao capital porque lhe faltam os meios ma-teriais para a produção de uma mercadoria, agora suaforça individual de trabalho falha no cumprimento de seuserviço caso não seja vendida ao capital. Ela só funcionanum contexto que existe apenas depois de sua venda, naoficina do capitalista. Por sua própria natureza incapacit-ado para fazer algo autônomo, o trabalhador manu-fatureiro só desenvolve atividade produtiva como ele-mento acessório da oficina do capitalista65. Assim como nafronte do povo eleito estava escrito ser propriedade deJeová, também a divisão do trabalho marca o trabalhadormanufatureiro a ferro em brasa, como propriedade docapital.

Os conhecimentos, a compreensão e a vontade que ocamponês ou artesão independente desenvolve, ainda queem pequena escala, assim como aqueles desenvolvidospelo selvagem, que exercita toda a arte da guerra como as-túcia pessoal, passam agora a ser exigidos apenas pela ofi-cina em sua totalidade. As potências intelectuais daprodução, ampliando sua escala por um lado, desapare-cem por muitos outros lados. O que os trabalhadores par-ciais perdem concentra-se defronte a eles no capital66. Éum produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material deprodução como propriedade alheia e como poder que os

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domina. Esse processo de cisão começa na cooperaçãosimples, em que o capitalista representa diante dos trabal-hadores individuais a unidade e a vontade do corpo socialde trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutilao trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e seconsuma na grande indústria, que separa do trabalho aciência como potência autônoma de produção e a obriga aservir ao capital67.

Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador colet-ivo e, por conseguinte, do capital em sua força produtivasocial é condicionado pelo empobrecimento do trabal-hador em suas forças produtivas individuais.

A ignorância é mãe tanto da indústria quanto da superstição.A reflexão e a imaginação estão sujeitas ao erro; mas o hábitode mover o pé ou a mão não depende nem de uma nem deoutra. Por essa razão, as manufaturas prosperam mais ondemais se prescinde do espírito, de modo que a oficina pode serconsiderada uma máquina cujas partes são homens.68

De fato, algumas manufaturas na metade do séculoXVIII tinham preferência por empregar indivíduos semi-idiotas em certas operações simples, mas que constituíamsegredos de fábrica69. Diz A. Smith:

A mente da grande maioria dos homens desenvolve-se neces-sariamente a partir e por meio de suas ocupações diárias. Umhomem que consome toda a sua vida na execução de umaspoucas operações simples [...] não tem nenhuma oportunid-ade de exercitar sua inteligência. [...] Ele se torna, em geral,tão estúpido e ignorante quanto é possível a uma criaturahumana.

E, depois de descrever a estupidificação do trabalhadorparcial, Smith prossegue:

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A uniformidade de sua vida estacionária também corrompe,naturalmente, a coragem de sua mente. [...] Ela aniquila atémesmo a energia de seu corpo e o torna incapaz de empregarsua força de modo vigoroso e duradouro, a não ser na oper-ação detalhista para a qual foi adestrado. Sua destreza em seuofício particular parece, assim, ter sido obtida à custa de suasvirtudes intelectuais, sociais e guerreiras. Mas em toda so-ciedade industrial e civilizada é esse o estado a que necessari-amente tem de se degradar o pobre que trabalha [the labouringpoor], isto é, a grande massa do povo.70

Como modo de evitar a degeneração completa damassa do povo decorrente da divisão do trabalho, A.Smith recomendava o ensino popular, a cargo do Estado,embora em doses cautelosamente homeopáticas. Quempolemizou de modo consistente contra essa ideia foi seutradutor e comentador francês, G. Garnier, que, noPrimeiro Império francês, metamorfoseou-se em senador.O ensino popular contraria as leis primeiras da divisão dotrabalho; com ele, “nosso sistema social inteiro seriaproscrito”.

“Como todas as outras divisões do trabalho, aquela entre otrabalho manual e o intelectual71 torna-se mais evidente e res-oluta à medida que a sociedade” (ele aplica corretamente essaexpressão para designar o capital, a propriedade da terra e oEstado que lhes corresponde) “se torna mais rica. Essa divisãodo trabalho, como qualquer outra, é efeito de progressos pas-sados e causa de progressos futuros. [...] Sendo assim, pode ogoverno contrariar essa divisão do trabalho e detê-la em seucurso natural? Pode ele utilizar parte da receita pública paratentar confundir e misturar duas classes de trabalho que seesforçam por sua divisão e separação?”72

Certo atrofiamento espiritual e corporal é inseparávelmesmo da divisão do trabalho em geral na sociedade. Mas

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como o período manufatureiro leva muito mais longe essacisão social dos ramos de trabalho e, por outro lado,somente por meio dessa divisão peculiar consegue al-cançar o indivíduo em suas raízes vitais, ele é o primeiro afornecer o material e o impulso para a patologia industri-al73.

“Subdividir um homem é o mesmo que executá-lo, casomereça a pena de morte, ou assassiná-lo, caso não amereça. A subdivisão do trabalho é o assassínio de umpovo.”74

A cooperação fundada na divisão do trabalho ou amanufatura é, em seus primórdios, uma formação natural-espontânea. Tão logo tenha adquirido alguma consistênciae amplitude de existência, ela se converte na forma con-sciente, planejada e sistemática do modo de produção cap-italista. A história da manufatura propriamente dita revelacomo, inicialmente, sua divisão peculiar do trabalho as-sume, por meio da experiência, e como que operando pordetrás dos agentes, as formas adequadas, mas depois, talcomo o artesanato corporativo, visa conservar tradicional-mente a forma uma vez descoberta e, em casos isolados,logra fazê-lo por séculos. Essa forma, excetuando seus as-pectos secundários, só se altera graças a uma revoluçãonos instrumentos de trabalho. A manufatura moderna –não me refiro aqui à grande indústria baseada na maquin-aria – ou encontra os disjecta membra poetae [os membrosdispersos do poeta]d já prontos, como é o caso, por exem-plo, da confecção de vestuário nas grandes cidades onde amanufatura surge, e tem apenas de juntá-los de sua disper-são, ou o princípio da divisão é evidente e as diferentes op-erações da produção artesanal (por exemplo, da en-cadernação) são atribuídas exclusivamente a trabalhadoresespecíficos. Nem uma semana de experiência é necessária

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para descobrir, em tais casos, a proporção de braços ne-cessários para cada função75.

A divisão manufatureira do trabalho cria, por meio daanálise da atividade artesanal, da especificação dos instru-mentos de trabalho, da formação dos trabalhadores parci-ais, de seu agrupamento e combinação num mecanismototal, a articulação qualitativa e a proporcionalidadequantitativa dos processos sociais de produção – portanto,uma determinada organização do trabalho social, desen-volvendo, assim, ao mesmo tempo, uma nova forçaprodutiva social do trabalho. Como forma especificamentecapitalista do processo de produção social – e, sobre asbases preexistentes, ela não podia se desenvolver de outraforma que não a capitalista –, tal divisão é apenas ummétodo particular de produzir mais-valor relativo ouaumentar a autovalorização do capital – que também podeser chamada de riqueza social, Wealth of Nations etc. – a ex-pensas dos trabalhadores. Ela não só desenvolve a forçaprodutiva social do trabalho exclusivamente para o capit-alista, em vez de para o trabalhador, como o faz por meioda mutilação do trabalhador individual. Ela produz novascondições de dominação do capital sobre o trabalho. E as-sim ela aparece, por um lado, como progresso histórico emomento necessário de desenvolvimento do processo deformação econômica da sociedade e, por outro, como meiopara uma exploração civilizada e refinada.

A economia política, que só surge como ciência própriano período da manufatura, considera a divisão social dotrabalho do ponto de vista exclusivo da divisão manu-fatureira do trabalho76, isto é, como meio de produzir maismercadorias com a mesma quantidade de trabalho e, porconseguinte, baratear as mercadorias e acelerar a acumu-lação do capital. Na mais estrita oposição a essa

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acentuação da quantidade e do valor de troca, os escritoresda Antiguidade clássica dedicam-se exclusivamente àqualidade e ao valor de uso77. Em decorrência da sep-aração dos ramos sociais da produção, as mercadorias sãomais bem-feitas, os diversos impulsos e talentos dos ho-mens escolhem suas esferas correspondentes de atuação78,pois, sem limitação, nada significativo pode ser realizadoem parte alguma79. Assim, o produto e o produtor sãoaperfeiçoados pela divisão do trabalho. Quando eventual-mente se alude também o aumento da quantidade deprodutos, é apenas em relação ao volume maior do valorde uso. Não se faz qualquer menção ao valor de troca, aobarateamento das mercadorias. Esse ponto de vista do val-or de uso é predominante tanto em Platão80, que trata a di-visão do trabalho como a base da divisão social dos esta-mentos, como em Xenofonte81, que com seu instinto carac-teristicamente burguês já se aproxima da divisão do tra-balho na oficina. A República de Platão, na medida em quenela a divisão do trabalho é desenvolvida como o princípioformador do Estado, não é mais do que uma idealizaçãoateniense do sistema de castas do antigo Egito, que serviacomo país industrial modelar também para outros contem-porâneos, como, por exemplo, Isócrates82, e até mesmopara os gregos da era do Império romano83.

Durante o período manufatureiro propriamente dito,isto é, o período em que a manufatura foi a forma domin-ante do modo de produção capitalista, a plena realizaçãode suas tendências próprias se chocou com vários tipos deobstáculos. Embora, como vimos, ela tenha criado, ao ladodo encadeamento hierárquico dos trabalhadores, uma di-visão simples entre trabalhadores qualificados e não quali-ficados, a quantidade destes últimos permaneceu muito re-strita em razão da influência predominante dos primeiros.

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Mesmo ajustando as operações específicas aos diversosgraus de maturidade, força e desenvolvimento dos seus ór-gãos vivos de trabalho – e assim induzindo à exploraçãoprodutiva de mulheres e crianças – essa tendência fracas-sou, no geral, em consequência dos hábitos e da resistênciados trabalhadores masculinos. Embora a decomposição daatividade artesanal tenha reduzido os custos de formaçãodo trabalhador – e, com isso, o valor deste último –, con-tinuou a ser necessário, para o trabalho detalhista de maiordificuldade, um tempo maior de aprendizagem, e mesmoquando este último se tornava supérfluo os trabalhadoresinsistiam zelosamente em preservá-lo. Na Inglaterra, porexemplo, encontramos as laws of apprenticeship [leis deaprendizagem], com seus sete anos de instrução em plenovigor até o fim do período da manufatura e descartadasapenas pela grande indústria. E, como a habilidade artes-anal permanece a base da manufatura e o mecanismo glob-al que nela funciona não possui qualquer esqueleto objet-ivo independente dos próprios trabalhadores, o capitaltrava uma luta constante com a insubordinação deles.

“A fraqueza da natureza humana”, exclama o amigoUre, “é tão grande que, quanto mais hábil é o trabalhador,mais voluntarioso e intratável ele se torna, causando, as-sim, grandes danos ao mecanismo global em razão de seuscaprichos insolentes.”84

A queixa sobre a falta de disciplina dos trabalhadoresatravessa então todo o período da manufatura85, e se nãotivéssemos os testemunhos dos escritores da época, ossimples fatos de que do século XVI até a época da grandeindústria o capital não havia conseguido se apoderar datotalidade do tempo disponível dos trabalhadores manu-fatureiros, que as manufaturas tinham vida curta e, con-forme a imigração ou emigração, os trabalhadores tinham

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de deixar um país para se instalar em outro, já falariam porbibliotecas inteiras. “A ordem tem de ser estabelecida, deuma maneira ou de outra”, exclama em 1770 o autor, re-petidamente citado, de Essay on Trade and Commerce. E, 66anos mais tarde, a palavra “ordem” volta a ecoar da bocado dr. Andrew Ure, para quem “ordem” foi o que faltouna manufatura fundada no “dogma escolástico da divisãodo trabalho”. E acrescenta: “Arkwright criou a ordem”e.

Ao mesmo tempo, a manufatura nem podia se apossarda produção social em toda a sua extensão, nemrevolucioná-la em suas bases. Como obra de arte econôm-ica, ela se erguia apoiada sobre o amplo pedestal do artes-anato urbano e da indústria doméstica rural. Sua própriabase técnica estreita, tendo atingido certo grau de desen-volvimento, entrou em contradição com as necessidades deprodução que ela mesma criara.

Um de seus produtos mais acabados foi a oficina para aprodução dos próprios instrumentos de trabalho – e espe-cialmente dos aparelhos mecânicos mais complexos que jácomeçavam a ser utilizados.

“Essa oficina”, diz Ure, “exibia a divisão do trabalhoem suas múltiplas gradações. A furadeira, o cinzel, o tornotinham, cada um, seus próprios trabalhadores, hierarquica-mente articulados conforme o grau de sua habilidade.”f

Esse produto da divisão manufatureira do trabalhoproduziu, por sua vez... máquinas. Estas suprassumem[aufheben] a atividade artesanal como princípio reguladorda produção social. Por um lado, portanto, é removido omotivo técnico da anexação vitalícia do trabalhador a umafunção parcial. Por outro, caem as barreiras que o mesmoprincípio ainda erguia contra o domínio do capital.

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