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68 . IBASE INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS CAPÍTULO 8

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Os(as) titulares do Programa Bolsa Família percebem a situação de pobreza de forma bastante ampla, para além dos condicionantes monetários normalmente usados como indicadores de pobreza. A concepção de pobreza que se expressa nas falas é marcada por um conjunto amplo de necessidades não-supridas, entre bens e serviços, e por um sentido relativo dessa condição, formado a partir da comparação com outros segmen-tos da mesma sociedade.

As famílias indicam vários fatores que determinam as múltiplas condições de vul-nerabilidade, além da própria renda. Dentre eles, destacam-se: problemas de saúde, fa-lência nas condições para estar empregado(a), baixa escolaridade, composição e chefia familiar, localidade de residência que, por sua vez, relaciona-se diretamente ao acesso a bens e serviços públicos. Nesse sentido, não há como falar de um perfil de pobreza, mas de múltiplos perfis, nos quais as vulnerabilidades interagem, se potencializam ou, em alguns casos, são amenizadas por fatores que constituem suporte social para as famílias e redes sociais de apoio.

Uma percepção ampliada remete à diferenciação entre os conceitos de pobreza absoluta – definição de um padrão mínimo de subsistência com relação a alguns bens considerados básicos – e pobreza relativa – comparação da situação que o indivíduo ocupa com relação aos demais. Portanto, na análise da pobreza relativa, é fundamental que seja considerado o estilo de vida legitimado em cada sociedade, envolvendo tam-bém o comportamento alimentar.

A partir de uma concepção ampla e relativa de pobreza, será definido o uso dos re-cursos, com base no que cada uma das famílias estabelece como necessidades. Essas incluem, além da alimentação, gastos com educação, vestuário, compra de remédios e material escolar, sapatos, lanche escolar, crediários para bens específicos, como eletro-domésticos, mobílias, pagamentos de contas de luz, gás, assim como outros tipos de investimento em pequenos negócios e na produção agrícola.

(...) acho que se a pessoa tiver condições de tirar R$ 10,00 daquele dinheiro todo mês pra comprar um ventilador pra filha dela, eu acho que ela pode fazer isso. Eu não acho certo ela não poder ter um ventilador, nem uma panela de pressão dentro de casa. Eu não acho que não é digno ela comprar um tênis pra o filho. Se ela tem condições de organizar esse dinheiro e comprar um tênis pro filho dela, eu acho que ela está mais do que certa. A gente não precisa chorar miséria, mostrar que a gente é morta de fome, não. Porque a dignidade a gente tem que continuar tendo (Grupo Focal, Rio de Janeiro – RJ).

Outro aspecto que se destaca nas falas dos diferentes grupos focais com relação à concepção de pobreza é que ela varia entre dois extremos, distinguindo quem visualiza

PercePções dos(as) titulares sobre o Programa

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essa condição como temporária, passível de superação, de quem a identifica como uma situação mais permanente, dificilmente revertida. Essa visão difere de acordo com o contexto dos(as) titulares. Nos grupos focais, foi possível observar que as pessoas que encaram a pobreza como condição permanente, normalmente residem em municípios onde não há muitas alternativas de inserção no mercado de trabalho. Nesses casos, manifestam o desejo de recebimento permanente do recurso, o que se mostrou mais recorrente em pequenos municípios, como São Sebastião do Alto, Manarí e Soure.

Eu acho que tinha logo é que aposentar todo mundo, essas pessoas mais caren-tes, né? (Grupo Focal, Soure – PA).

Já em grandes cidades, como Rio de Janeiro, Curitiba e Recife, prevaleceu um olhar de pobreza como condição passível de ser alterada, o que se explica pela maior intensidade da dinâmica socioeconômica dos grandes centros urbanos.

A maior parte dos participantes dos grupos focais demonstrou a preferência por garantir a sobrevivência de suas famílias a partir do próprio trabalho a depender do pro-grama. Para aqueles(as) que se sentem no auge de sua capacidade produtiva, principal-mente para os homens, ser beneficiário pode causar vergonha. Nesses casos, as falas tendem a responsabilizar o Estado pela falta de oportunidades de trabalho.

Pra mim, não devia existir Bolsa Família, não devia existir Cheque Cidadão, não devia existir Ticket de negócio de mês; deveria existir trabalho pra todo mundo trabalhar e ganhar o seu dinheiro honestamente, sem depender de político e nem de ninguém. Meu modo de pensar é esse. Mas como eles não fazem o país ter desenvolvimento pra ter trabalho pra gente, então eles têm obriga-ção de nos dar. Eu acho assim. Porque às vezes a gente se sente humilhado de chegar em certos lugares, as pessoas olharem pra você porque você está dependendo de certo benefício. Mas ninguém passa o que a gente passa. Pô, mas essa mulher é tão nova pra estar pegando o Cheque Cidadão ou o Bolsa Família, mas ninguém sabe o que a gente passa. (Grupo Focal, São João de Meriti – RJ).

Na fase quantitativa da pesquisa, à questão “Você deixou de fazer algum tipo de trabalho depois que passou a receber o beneficio do Bolsa Família”, 99,5% responde-ram que não. Parcela estatisticamente insignificante dos titulares dizem que deixaram de exercer algum trabalho remunerado por causa do benefício. A pesquisa apontou ainda a opinião dos(as) titulares sobre até quando deveriam receber o benefício.

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Há exemplos ricos nos relatos dos grupos focais de como a existência de uma fonte estável e regular de renda para as famílias pobres pode significar mais possibilidades de planejamento dos gastos e, conseqüentemente, maior segurança em relação à capaci-dade de garantir a alimentação da família. A certeza do acesso mensal ao recurso traz a segurança, principalmente para aquelas famílias que não contam com uma renda regular, de que ao menos a base da alimentação, como o arroz e o feijão, estarão garantidos.

Faça chuva ou faça sol, o dinheiro está lá. Eu pego faz uns cinco anos, nunca fal-tou nem um dia, nem atrasou, nem adiantou. É um dinheiro que eu sempre pude contar no dia certo. (Grupo Focal, Campo Grande – MS).

O Bolsa Família é visto como uma iniciativa que “ajuda, mas não resolve”, seja porque o recurso é insuficiente para atender às necessidades básicas da família ou por uma avalia-ção de que outras ações governamentais, principalmente no sentido de geração de trabalho e renda, seriam necessárias para reverter a situação de pobreza. Ainda assim, o programa é percebido como uma assistência necessária e indispensável frente à falta de condições dos(as) responsáveis pelos domicílios para garantir uma vida digna a suas famílias.

As falas nos grupos focais mostram que há desde pessoas que vêem o programa como uma caridade do governo até aquelas que têm uma concepção do programa mais próxima do direito, que deve ser garantido pelo Estado. Porém, a idéia do direito e da ajuda nem sempre aparecem como conceitos contraditórios.

Nós temos o direito de receber ajuda (Grupo Focal, Dourados – MS).

Figura 50 – Opinião dos(as) titulares sobre até quando acham que deveriam receber o PBF,

por área

ATÉ QUE OS(AS) FILHOS(AS) ESTEJAM NO MERCADO DE TRABALHO

Rural

10% 20% 30% 40%

2,5

ATÉ QUE OS CHEFES SE ESTABILIZEM NO EMPREGO

ENQUANTO OS(AS)FILHOS(AS) ESTIVEREM NA ESCOLA

ATÉ AS CRIANÇAS COMPLETAREM A MAIORIDADE

PARA SEMPRE

ATÉ QUANDO NECESSITARMOS

3,4

27,3

16,6

27,3

27,4

18,1

23,4

6,1

8,3

10,0

13,3

Urbano

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60,0

CENTRO-OESTE

NORDESTE

NORTE

SUDESTE

SUL

TOTAL BRASIL

10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

Sim

40,0

Não

Figura 51 – Conhecimento dos(as) titulares sobre famílias que precisam do PBF, fizeram

cadastro e nunca receberam o benefício, por grandes regiões

43,2 56,8

51,4 48,6

73,3 26,7

65,7 34,3

53,5 46,5

Ainda que o PBF represente para as pessoas beneficiadas uma forma de aquisi-ção de direitos, ainda é percebido como um privilégio, já que muitas famílias em situ-ação de pobreza não têm acesso a ele. Na fase quantitativa da pesquisa, foi possível identificar o percentual de titulares que relataram conhecer pessoas que precisam do Bolsa Família e não o recebem.

A incapacidade do programa em atender a todas as famílias que, de acordo com a percepção dos(as) titulares, deveriam estar recebendo, somada à falta de conhecimen-to quanto aos critérios do programa, acaba reforçando a noção de que uns têm mais direitos do que outros e de que o programa é injusto.

Expectativas em relação ao governoAs expectativas das famílias em relação ao governo apontam, sobretudo, para ques-tões relacionadas à geração de trabalho e renda. A inserção no mercado de trabalho formal é a principal aspiração dos(a) titulares. Tanto nas grandes cidades como nos meios rurais, espera-se que os governos sejam capazes de ampliar a oferta de em-pregos nos setores público e privado. As dificuldades para se acessar os mercados de trabalho formal e informal são as mais diversas. Dentre elas, destacam-se a baixa escolaridade e a idade.

Contratar pessoas que têm menos estudo, né? Tem muitas pessoas com vonta-de de trabalhar, mas não têm segundo grau, não têm experiência, têm vontade, né? Mas eles não vão te pagar, né? Falta a chance da pessoa que não tem o segundo grau completo ou, então, a partir dos 35 anos. Se falar que tem filho, daí piora, que nem eu, que tenho um paizinho que é deficiente mental, eles não dão serviço. Se eu contar que tenho um pai assim, nem de diarista eu pego serviço (Grupo Focal, Piraquara – PR).

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Em grandes cidades como Rio de Janeiro, Recife, Belém e Curitiba, aparece mais fortemente nas falas a dificuldade para se conseguir trabalho de carteira assinada. Par-ticipantes reproduziram relatos de empregadores que justificam a precariedade das condições de trabalho oferecidas pelos altos impostos das pequenas e médias empre-sas, o que levaria à informalidade. Nesses casos, surgiu como sugestão a redução de encargos trabalhistas.

Nos grupos de Recife e do Rio de Janeiro, formados por moradores(as) de favelas em áreas centrais das cidades, os(as) participantes indicam o cooperativismo como uma forma de geração de renda que poderia ser estimulada pelo poder público. As opiniões são provavelmente influenciadas pelas experiências promovidas por organizações não-governamentais nas favelas. Sugerem, ainda, a realização de cursos de capacitação.

Há relatos, porém, de que os cursos e projetos são insuficientes e a seleção dos(as) participantes é feita de forma personalizada. Nos grupos focais de Curitiba e São João de Meriti, houve reclamações de que os cursos profissionalizantes não chegam até as periferias, o que dificulta o acesso dos(as) mais pobres que, muitas vezes, não têm recursos nem para cobrir as despesas de transporte.

Programas de geração de emprego foram considerados, em diferentes grupos focais, como inadequados ao perfil da região. Em São Sebastião do Alto (RJ), pequeno município de vocação rural voltado principalmente para o cultivo do tomate, os(as) par-ticipantes indicam a necessidade do estabelecimento de indústrias capazes de proces-sar seu principal produto agrícola. Sugerem, ainda, a ampliação dos serviços públicos para a população com baixa ou nenhuma escolaridade, dificilmente absorvida pelos serviços públicos.

Nos municípios de São Sebastião do Alto, Manari e Catende, chama a atenção a subvalorização da atividade agrícola, que apesar de ser a principal fonte de renda das famílias participantes desses grupos focais, não aparece como atividade produtiva a ser estimulada no sentido de geração de renda.

Surgiram, ainda, relatos de demandas por políticas relacionadas ao controle e ba-rateamento do preço dos alimentos e à oferta de produtos alimentares, como frutas, legumes e verduras, a preços mais acessíveis. Essas sugestões surgem, principalmen-te, nos municípios onde já existe algum tipo de equipamento de segurança alimentar, como mercados e restaurantes populares.

Eu queria que eles colocassem um mercado da família aqui em Piraquara, o mer-cado dos pobres tem em todos os lugares, só aqui é que não tem. [...] Se a gente desse essa opinião pra esses prefeitos aqui de Piraquara, ajudava (Grupo Focal, Piraquara – PR).