Caravana de Badasht

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Nestas páginas o leitor encontrará uma bela caixa de surpresas. Primeiro porque contém, em primeira mão, os relatos dos corações e das mentes de uma juventude que realmente captou os desafios latentes nesses dias atravessados que vivemos. Segundo, porque é uma narrativa comovente por sua sinceridade, emocionante por abordar um tema tão querido ao coração de ‘Abdu ’l-Bahá: o ensino coração a coração, alma a alma. E isso realmente surpreende.

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André KanoOrganizador

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c 2001Todos os direitos reservados:

Editora Bahá’í do BrasilC.P. 198

13800-970 - Mogi Mirim - SP

www.bahai.org.br/editora

ISBN: 85-320-0059-2

1ª. EDIÇÃO: 2001

Revisão: Tiago Bassani Dantas

Capa: Gustavo Pallone de Figueiredo

Impressão: R. Vieira Gráfica e Editora LtdaCampinas

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Prefácio VIIIntrodução XI

Prólogo 11. 153 anos depois 52. A convocação 173. O Lótus renasce do lodaçal 264. Uma comunidade a vibrar 395. Boa Viagem 416. Ilha do Leite 477. A Deus Recife 618. Malas se reproduzem? 649. Não espero nada de vocês 7210.204 em chamas 7811. Orações inesquecíveis 8312.Uma orla de três nomes 8613.Os primeiros na América 9714.Os três jovens restantes 10015.Firmeza e lealdade ao Convênio 10316.Últimos dias de ensino 1 1 117.Olhos sobre o passado,

o presente e o futuro 123

Apêndice 128Referências 133

Índice

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Prefácio

Uma idéia inspirada: começar o primeiro verão do terceiromilênio com uma caravana chamada Badasht...

Nestas páginas o leitor encontrará uma bela caixa desurpresas. Primeiro porque contém, em primeira mão, osrelatos dos corações e das mentes de uma juventude querealmente captou os desafios latentes nesses diasatravessados que vivemos. Segundo, porque é uma narrativacomovente por sua sinceridade, emocionante por abordar umtema tão querido ao coração de �‘Abdu�’l-Bahá: o ensino coraçãoa coração, alma a alma. E isso realmente surpreende.

Iniciada por dois indivíduos, a Caravana de Badasht deu umtestemunho eloqüente do poder das iniciativa individuais:processos são movidos, obstáculos são superados, confirmaçõesdivinas são atraídas e o campo de ação se torna claro,esplendoroso. A Caravana de Badasht relata o dia a dia dejovens que se bronzearam ante a beleza do ensino da Causa deDeus. E deixa nas entrelinhas um novo espírito de serviço.Este espírito de que podemos, se o desejarmos, mover o mundoe fazer possível aquelas coisas consideradas impossíveis. Elesviajaram por três estados do nordeste brasileiro. Tornarammais sólidos os laços de amor e amizade entre eles e entre osamigos residentes nas cidades visitadas. Entoaram erecitaram orações com um fervor que bem poderia evocar osfogos do Forte de Shaykh Tabarsí. Consultaram com oscorações nas mãos. Provaram o sabor de uma consulta de ensino,na qual as fragilidades humanas são substituídas por uma forçaque vem do Reino de Abhá. Foram milhares os folhetosdistribuídos. Em cada um a mensagem clara que se transmitiaera a boa nova da vinda do Mensageiro de Deus para nossaépoca. Cada pessoa contatada pode ouvir a menção do sagrado

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nome de Bahá�’u�’lláh e daí pode ter iniciado a sua maior aventura,uma aventura que transcende os limites dessa vida passageira,uma aventura espiritual que nos convoca à reunião com oCriador, face a face. Mais que uma caravana por três estados,foi uma caravana interior. Cada jovem percorreu novoscaminhos espirituais e foi descobrindo verdades até entãorelegadas a um certo segundo plano. Algo tão precioso quantoo aroma que emana dessas palavras do abençoado Báb: �“Maisvale guiar uma só alma que possuir os tesouros da terra e docéu�”. Assim esses jovens foram brindados por um Deus que étodo amor e todo ternura e todo abraços e todo beleza, comexperiências que certamente irão marcar suas experiênciashumanas nessa terra de granito.

Li de um só fôlego essa narrativa. Em alguns momentos fuitransportado a outros tempos, tempos em que se escrevia onome da Fé com a tinta rubra do sangue dos mártires. Senti otoque de clarim de Tahirih. Escutei as palavras balbuciadaspor um maravilhoso Mulla Husayn perguntando em tom deconfidência a Quddús: �“... estás satisfeito comigo?�” Senti umdesejo tão imenso de continuar a oração interrompida,recitada com bravura indescritível, pelos 312 do Forte.Observei as suaves palavras do Prisioneiro de Akká exortandoAhmad a ser como �“uma chama de fogo para Meus inimigos eum rio de vida eterna para Meus amados�”. Tentei capturar oclima de uma Badasht mística que tinha como seu principalconvidado e... anfitrião nada menos que o Ancião dos Dias. Eassim fui me surpreendendo com a eloqüência de antigaspalavras vestidas com novos significados. Palavras como ensino,aprofundamento, oração, serviço, desprendimento, confiançaem Deus, convênio, instituições, amor, amizade, camaradagem,companheirismo, cumplicidade, brilho nos olhos, sorrisosescancarados e lágrimas.

Um dia se perguntará: �“Você esteve na Caravana deBadasht?�” E nossa resposta natural será �“Em qual delas?�” Sim,porque a Caravana continuará passando e a ela nos reuniremos.O Estandarte Negro continuará sendo içado uma e mil vezes,

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e os heróis do Tabarsí e os bravos de Badasht sempre estarãose reunindo para conquistar a cidadela dos corações doshomens. Valeu amigos. Que a próxima Caravana percorra o paísinteiro, crie ramificações, seja aquele nosso ansiado movimentode jovens levando o Pão do Espírito aos famintos desse imensopaís e que sejam muitos os caravaneiros. Badasht estarásempre diante de nós como um dia luminoso de um vilarejo naPérsia e também será sempre uma manhã radiante nasextensões da América do Sul.

Washington Araújo

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IntroduçãoCaravana de Badasht foi o nome dado ao projeto de ensino

realizado no nordeste brasileiro, entre os dias 03 e 23 dejaneiro de 2001. Ele nasceu da iniciativa individual dajuventude bahá�’í em resposta ao seu próprio anseio demobilização ao serviço, como também em atenção ao desejoda Assembléia Espiritual Nacional de que o período de fériasfosse consagrado à propagação das boas novas dessa CausaSagrada.

De 26 de novembro de 2000, dia do Convênio, quando oprojeto foi concebido, até o último dia de sua realização, poucomenos de dois meses haviam se passado. No entanto, aqueletempo foi suficiente para que o projeto plantasse suassementes que rapidamente começaram a germinar.

As cidades escolhidas para esta semeadura foram: RecifePE; João Pessoa PB; e Natal RN. Uma vez naquelas terrasférteis, os 19 jovens semeadores, aqui listados em ordemalfabética, laboraram com amor e dedicação: Aline Guedes �–Natal RN; André Kano �– São Paulo SP; Anissa Daliry �– RecifePE; Bianca Bello �– Recife PE; Brenno Batista de Araújo �– NatalRN; Fernando Shayani �– Brasília DF; Hilana Paz �– Brasília DF;Jorge Villa Lobos �– Natal RN; Leila Pezeshk �– Brasília DF;Magnólia Silva �– Natal RN; Nilanna Araújo de Paula �– NiteróiRJ; Otávio Trindade �– Brasília DF; Sahar Ardestani �– RecifePE; Shorea Ardestani �– Recife PE; Sobhan Daliry �– Recife PE;Surush Ardestani �– Recife PE; Tahereh Sherafat �–Florianópolis SC; Turadj Pezeshk �– Ribeirão Preto SP; e ViniciusAraújo de Paula �– Niterói RJ

Em sua assistência estiveram o Comitê Nacional de Ensino,as respectivas Assembléias Espirituais Locais e suas

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comunidades, e além destes, todos os anjos prometidos porBahá�’u�’lláh também desceram em confirmação.

Executando o projeto, muito aprendizado foiexperimentado através da convivência mútua, nas consultas,no contato com as comunidades e, especialmente, no trabalhode ensino. Este último despertou suas vidas espirituais epossibilitou que cerca de 4.300 almas recebessem a MensagemDivina.

Por tudo isso, essa Caravana de ensino se tornou muitoespecial aos jovens que com ela viajaram. Tamanha foi suasignificação para eles, que decidiram compartilhá-la atravésdas páginas que se seguem neste livro. Possa essa estória fazervocê sentir o coração se agitar dentro do peito a tal ponto quenada, a não ser o ensino da Fé, alivie esse estado sublime deamor a Deus e a toda humanidade. Eles estarão felizes, poisassim a colheita será maior e a verdadeira intenção dessaspalavras se fará completa.

André Kano

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Prólogo

�“Era início do verão (1848). Ao chegar, Bahá�’u�’lláh alugoutrês jardins, um dos quais designou exclusivamente ao uso deQuddús, outro separou para Táhirih e sua acompanhante e oterceiro reservou para Si Próprio. Aqueles que se haviamreunido em Badasht eram oitenta e um em número, todos osquais, desde o tempo de sua chegada até o dia de sua dispersão,foram hóspedes de Bahá�’u�’lláh. Todos os dias revelava Eleuma Epístola que Mirzá Sulaymán-i-Núrí entoava na presençados crentes reunidos. A cada um conferiu Ele um novo nome.Ele Próprio foi daí em diante designado pelo nome de Bahá; àúltima Letra dos Viventes foi conferido o título de Quddús eà Qurratu�’l-Ayn o título de Táhirih. O Báb subseqüentementerevelou uma Epístola especial a cada um dos que se haviamreunido em Badasht, dirigindo-se a cada um pelo nome que lhefora recentemente conferido. Quando, em época posterior,alguns dos mais rígidos e conservadores dentro os co-discípulosse dignaram a acusar Táhirih de rejeitar indiscretamente asconsagradas tradições do passado, o Báb a Quem foramdirigidas essas queixas, nos seguintes termos replicou: �“Quehaverei Eu de dizer a respeito daquela a quem a Língua doPoder e Glória denominou Táhirih (a Pura)?�”

Cada dia dessa memorável reunião testemunhou a abrogaçãode mais uma lei e o repúdio a uma tradição desde muitoestabelecida. Os véus que guardavam a santidade dospreceitos do Islã foram inexoravelmente rompidos e os ídolosque desde tanto tempo reclamavam a adoração de seus devotoscegos foram bruscamente demolidos. Qual a Fonte, porém,donde procediam essas inovações audazes e desafiadoras,ninguém sabia; Qual a mão que constante e infalivelmente lhes

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dirigia o curso, ninguém suspeitava Até a identidade Daqueleque conferira um novo nome a cada um dos congregados nessaaldeia permanecia desconhecida àqueles que os haviamrecebido. Cada um conjeturava de acordo com seu grau deentendimento. Poucos, acaso alguns, tenuemente desconfiavamser Bahá�’u�’lláh o Autor das modificações de vasto alcance quetão destemidamente se introduziam...

Shaykh Abú-Turáb, um dos mais informados quanto ànatureza dos desenvolvimentos em Badasht, contou �– segundodizem �– o seguinte incidente: �‘Um mal estar, um dia, confinouBahá�’u�’lláh a Seu leito. Quddús, ao saber de Sua indisposição,apressou-se logo a visitá-Lo. Quando foi conduzido a SuaPresença, sentou-se à direita de Bahá�’u�’lláh. Os outroscompanheiros foram pouco a pouco admitidos a Sua Presença ese agruparam a Seu redor. Mal se haviam reunido quando derepente entrou Muhammad-Hasan-i-Qazvíní, mensageiro deTáhirih... que trazia a Quddús um convite premente de Táhirihpara visitá-la em seu próprio jardim. �‘Dela já me desligueiinteiramente�’, foi sua resposta audaz e decisiva. �‘Com ela merecuso a encontrar�’. O mensageiro logo se retirou, mas breveveio novamente, reiterando a mesma mensagem e apelandopara ele que lhe atendesse o chamado urgente. �‘Ela insiste emvossa visita�’, foram suas palavras. �‘Se persistirdes em vossarecusa, ela mesma virá até vós�’. Percebendo sua atitudeinexorável, o mensageiro desembainhou a espada e a pôs aospés de Quddús, dizendo: �‘Recuso ir sem vós. Ou dignai-vos emme acompanhar à presença de Táhirih, ou me cortai a cabeçacom esta espada�’. �‘Já declarei minha intenção de não visitarTáhirih�’, retrucou Quddús iradamente. �‘Disposto estou a cederà alternativa que te dignaste a me apresentar�’.

Muhammad-Hasan, que se sentara aos pés de Quddús, haviaestendido o pescoço para receber o golpe fatal, quando desúbito a figura de Táhirih, adornada e desvelada, apareceudiante dos olhos dos companheiros reunidos. Consternação deimediato se apoderou da assembléia inteira. Atônitos estavamtodos diante dessa repentina e totalmente inesperada

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aparição. Contemplar-lhe a face sem véu lhes era inconcebível.Até fitar sua sombra era coisa por eles julgada imprópria,desde que a consideravam a verdadeira encarnação de Fátimih,a seus olhos, o mais nobre emblema da castidade.

Quieta, silenciosamente e com a maior dignidade, Táhirihavançou e, indo em direção a Quddús, sentou-se à sua direita.Sua imperturbável serenidade estava em nítido contraste comos semblantes assustados dos que lhe contemplavam a face.Medo, ira e perplexidade agitavam as profundezas de suasalmas. Essa súbita revelação parecia haver lhes atordoado asfaculdades. �‘Adbu�’l-Kháliq-i-Isfáhání tão severamente abaladoestava que cortou sua garganta com as próprias mãos. Cobertode sangue e com gritos de agitação, fugia da face de Táhirih.Alguns outros, seguindo-lhe o exemplo, abandonaram oscompanheiros e renunciaram à sua Fé. Alguns foram vistos empé mudos diante dela, confusos e com espanto. Quddús,entrementes, permanecera sentado em seu lugar, segurandona mão a espada desembainhada, enquanto o rosto demonstravaum sentido de ira inexpressível. Parecia estar esperando omomento em que pudesse infligir a Táhirih o golpe fatal.

Sua atitude ameaçadora, entretanto, não conseguia movê-la. Seu semblante demonstrava aquela mesma dignidade econfiança evidenciadas no primeiro momento de sua apariçãoperante os crentes reunidos. Um sentimento de júbilo etriunfo agora lhe iluminava a face. Ela levantou-se de seuassento e, não impedida pelo tumulto que provocara noscorações de seus companheiros, começou a dirigir-se aos querestavam daquela assembléia. Sem a mínima premeditação eem linguagem que mostrava uma semelhança impressionanteàquela do Alcorão, fez seu apelo com inigualável eloqüência efervor profundo...

Táhirih convidou aqueles presentes a celebrarem de ummodo digno a esta grande ocasião. �‘Este dia é o dia defestividade e regozijo universal�’, acrescentou, �‘o dia em queos grilhões do passado são rompidos. Que os que participaramnesta grande realização se levantem e abracem uns aos outros�’.�’

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Aquele dia memorável e os que imediatamente o seguiramtestemunharam as modificações mais revolucionárias na vidae nos hábitos dos seguidores reunidos do Báb. Seu modo deadorar passou por uma transformação súbita e fundamental.Foram irrevogavelmente rejeitadas as orações e cerimôniaspelas quais aqueles devotos haviam sido disciplinados. Grandeconfusão, entretanto prevalecia entre aqueles que tãozelosamente haviam levantado a fim de advogar essasreformas. Alguns poucos condenavam uma mudança tão radical,como sendo a essência da heresia, e se recusaram a anular oque consideravam ser os invioláveis preceitos do Islã. Algunsaceitavam Táhirih como o juiz único e a única pessoa qualificadapara demandar dos fiéis obediência implícita. Outros quedenunciaram sua conduta aderiram a Quddús, a quemconsideravam como único representante do Báb, único que tinhao direito de pronunciar sobre assuntos tão importantes. Aindaoutros que reconheciam a autoridade tanto de Táhirih comode Quddús viam o episódio todo como uma provação mandadapor Deus designada para separar o verdadeiro do falso edistinguir os fiéis dos desleais...

Esse estado de tensão persistiu por alguns dias até queBahá�’u�’lláh interviu e, de Sua maneira magistral, efetivou umareconciliação completa entre eles. Saneou Ele as feridascausadas por aquela controvérsia áspera e os esforços deambos Ele dirigiu ao caminho do serviço construtivo.

Atingira-se o objetivo daquela memorável reunião. O toquede clarim da Nova Ordem soara. As convenções obsoletas quehaviam agrilhoado as consciências dos homens foramaudazmente desafiadas e intrepidamente abolidas.Desobstruíra-se o caminho para a proclamação das leis e dospreceitos destinados a conduzir a Nova Era. Os que restavamdos companheiros congregados em Badasht decidiram, pois,partir para Mazindárán.�”1

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153 anos depois

Tahereh olhou para o relógio de pulso do senhor sentado aoseu lado. Já havia feito isso umas dez vezes, minuto apósminuto. Estava quase na hora de partir e a ansiedade, somadaao fato de que não havia se alimentado direito durante o dia,fazia sua gastrite atacar suavemente. Para ela, esperar seuônibus estacionar na plataforma da rodoviária era ainda umtanto quanto inconcebível. A todo o momento ela se questionavaseriamente se tudo aquilo era verdade. Talvez realmente nãofosse. �“Um sonho�”, pensou ela, �“um sonho do qual em instantesirei acordar�”.

Ela olhou de novo o relógio do senhor, o qual folheou o jornalque estava lendo, um pouco inquieto com a falta de discriçãoda jovem que sentara ao seu lado. Tahereh por sua vez, nemsequer notou aquela impressão do vizinho, mantendo-se aindaconcentrada nos muitos pensamentos que lhe tomavam a mentea cada minuto verificado ao lado. Ela tinha bons motivos paraestar assim. Com a chegada das provas finais na universidade,sua vida ganhou tons acinzentados e foscos, bem diferentesdas vívidas cores que compunham seus desenhos e pinturas.Ela tentou, durante aquele tempo, manter-se centrada eestudar, mas nada poderia fazê-la entender a vida de umparasita, tema central das aulas que ela tanto abominava eque faziam seus dias a levarem por caminhos tristes e amargos.E isso durou por mais de um mês. As provas eram difíceis(quase impossíveis), o professor tinha jeito de carrascoaguardando o réu infeliz sobre o púlpito montado à praça, e overedicto final era totalmente incerto. Porém há dois diasatrás, o inacreditável aconteceu: �“você passou!, boas férias�”,ouviu ela antes de sair saltitando de felicidade peloscorredores da faculdade de nutrição. Apenas dois dias. Entãopor que deveria ela acreditar que aquilo não era um sonho? Elatinha consciência de que quando a vida se torna mais intensa, eo cotidiano nos leva como uma poderosa correnteza rio abaixo,

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nos precipitamos em desespero pensando que o fim se aproxima.Nós nos esquecemos que, invariavelmente, chegará o momentode nos depararmos com aquela preciosa curva no leito do riodiário, para que possamos nos agarrar às raízes que dela saem,como se ali houvesse uma placa dizendo �“salve-se aqui�”. E quandoisso acontece podemos nos sentar e concluir, ainda queexaustos e tomados pelos resquícios da turbulência que findara,que existe muita beleza naquela natureza a qual em instantesse afigurava apenas como pura calamidade. E ela estava lá,dessa mesma forma, olhando em volta admirada, mas aindaduvidosa.

Quer acreditasse ou não, o carro �“Florianópolis �– São Paulo�”entrou lentamente pela via principal, manobrou e finalmenteparou a fim de que os passageiros pudessem embarcar.Rapidamente, formou-se o tumulto costumeiro em torno dobagageiro e da porta de entrada, mas a jovem estudante denutrição continuava sentada em seu lugar. Ela viu uma moçadiscutir com o carregador enquanto ele arremessava suasmalas dentro do bagageiro e um grupo de adolescentescorrerem de um lado para o outro, provavelmente excitadoscom a viagem que dali a pouco se iniciaria. Mais pessoas seaglomeraram em torno da plataforma, aguardando sempaciência o trabalho apressado do carregador, àquela alturada noite já cansado de tanta confusão e chiliques dos�“passageiros neuróticos�”, como costumava brincar com osupervisor de embarque.

�“Atenção passageiros da Viação Catarinense, de Florianópolisa São Paulo às 22:30h, última chamada. Queiram ocupar seuslugares e boa viagem!�”, anunciou a voz no sistema interno desom da rodoviária. O senhor ao lado de Tahereh voltou-se aela oferecendo um sorriso calado e sereno. Ela não lhe devolveuum em troca, estava confusa e o silêncio prevaleceu por maisalguns segundos antes que ele dissesse: �“está na sua hora,não? É bom se levantar e embarcar antes que perca aoportunidade�”. Oportunidade. Foi como um clique na cabeçadela e assim como nos desenhos animados, uma lâmpada se

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acendeu iluminando seus pensamentos. Seus olhos verdesbrilharam e um sorriso se espargiu pelo ambientecontaminando-o com aquela luz. À tona do mar pensante, pareciater despertado finalmente, e quando se apercebeu, teve acerteza de que nada daquilo era sonho. Pelo contrário, respiravae estava mais acordada do que nunca. �“O senhor tem toda razão,oportunidades são únicas e eu não perderia essa por nada!�”,disse ela ao se levantar e seguir acenando com sua passagemem mãos ao motorista que já dava por completos ospassageiros.

Minutos depois estava sentada em sua poltrona, ao lado deuma senhora que mesmo antes da partida, já dormia seu quintosono. À frente estava um casal de namorados que tinha ao seulado um homem assobiando qualquer coisa que provavelmenteouvia em seu walkman. Bem atrás da poltrona do motorista,estavam os adolescentes, agora abrindo os pacotes desalgadinhos e a latas de refrigerantes, e embora não pudessever a senhora das malas arremessadas, do fundo do corredorvinha alto o protesto contra a empresa, acusando-a de tratarmuito mal seus clientes, etc e etc. Na poltrona de trás estavaum rapaz de uns 25 anos, jogando um daqueles simuladores devôo em seu laptop pessoal, e ao seu lado uma menininhadesenhando um sol sorridente no canto da folha com um pequenogiz de cera laranja. O ônibus estava realmente lotado. Genteque viajava por muitos motivos diferentes. Alguns estavamsaindo de férias, outros aos últimos negócios antes do natal, epassar o fim de ano com a família era ainda o motivo de algunsdos presentes. Tahereh, no entanto, não se enquadrava nessasmotivações, nem em quaisquer outras que pudessem estardentro do coração de cada passageiro. E isso ficou mais claroem sua compreensão quando pensou em seu próprio nome elembrou do início do verão, não o que ora despontava, mas outroa 153 anos atrás.

A memória da cena de Táhirih, heroína e mártir da Causada Unidade da Humanidade, audaciosamente sem véu aapresentar-se diante da congregação reunida na Conferência

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de Badasht, precipitou-se à mente de Tahereh como umatempestade de energia e poder. A herança de um nome comoesse sempre a colocou em uma posição difícil, pois tinha dedecidir honrá-lo com propriedade, tomando para si uma atitudefirme e resoluta, ou deixar que os dias de sua vida cotidiana aaprisionassem na letargia geralmente encontrada entre aspessoas. Por isso, enquanto pensava em sua motivação porviajar, tão distante de qualquer desejo unicamente pessoal,confirmava seu próprio coração por ter tomado aquela decisão.O próprio desfecho feliz das angústias provocadas pelo fimde seu ano acadêmico era prova de que deveria estar ali. Talveztenha sido por todas essas coisas que ela foi a primeira a partirde sua casa, dentre os 19 jovens que haveriam de atender àconvocação especial que fora feita a poucos dias atrás.Aproximava-se o final do ano, do século, do milênio. Passado efuturo se encontravam. O ônibus manobrou na pista e avançoudecidido, enquanto em lágrimas, ela relia a carta de convocação,que começava citando um dos mais inspiradores textosescritos por �‘Abdu�’l-Bahá:

�“Ó servos do Limiar Sagrado! As hostes triunfantes daAssembléia Celestial, enfileiradas e dispostas em ordemde batalha, permanecem prontas e na expectativa de apoiare assegurar vitória ao valente cavaleiro que pleno deconfiança esporear seu corcel, lançando-se na arena doserviço. Bem-aventurado esse guerreiro intimorato que,armado do poder do verdadeiro conhecimento, arroja-seimpetuosamente ao campo de batalha, dispersa os exércitosda ignorância, debanda as hostes do erro e ergue altaneiroo Estandarte da Guia Divina, e faz soar o Clarim da Vitória.Pela retidão do Senhor! Esse terá atingido glorioso triunfoe conquistado a verdadeira vitória.�”2

A mensagem continuava assim:�“À Juventude Bahá�’í de todas os Lugares e Regiões!!!Após um longo abraço, eu e meu querido amigo Turadj

Pezeshk decidimos começar a destruir a nossa própria apatiae inatividade através do serviço à Causa de nosso Bem Amado

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Senhor. E isso foi o resultado dos estímulos gerados por umadas mais fantásticas atividades de juventude da qualparticipamos, um encontro promovido pelo Comitê Estadual deJuventude do Estado de São Paulo no último fim de semana.No último painel do evento, os jovens presentes consultaramsobre a necessidade de uma mudança de cultura que promovamaior unidade e integração entre os jovens bahá�’ís no Brasil.Refletindo sobre toda a consulta, nós pensamos que a melhorforma de promover integração entre a juventude é envolvê-la conjuntamente no serviço. Para nossa grata surpresa,chegamos à conclusão de que o serviço é também a forma desolucionar muitas outras dificuldades, bem como promover asmetas dadas pelas instituições, atrair bênçãos do céu, e mais,se divertir!!!

Então, através dessa reflexão consciente e entusiasmada,gostaríamos de convidar a todos para unirem-se a nós na:

Caravana de Badasht20 Dias de Serviço no NordesteSim! Você pode se beliscar e até coçar os olhos, pois é

verdade. Do dia 03 a 23 de Janeiro de 2001, iniciando omilênio, estaremos travando uma longa viagem de serviço aosestados nordestinos de nosso país.

Por que Caravana?Porque iremos viajar! E viagem evoca movimento,

dinamismo, proatividade, atributos que devem possuir osservidores de Bahá�’u�’lláh. E um movimento através do amor aDeus atrai Suas confirmações. A intenção é sairmos de SãoPaulo e de outras partes do país para chegarmos em Recife/PE, nosso �“Quartel General�”. De lá, viajaremos para outraspartes do nordeste, visitando comunidades locais, participandode suas atividades, ensinando a Fé, espalhando o brado de YáBahá�’u�’l-Abhá! por aquelas regiões assim como �‘Abdu�’l-Bahádisse que gostaria de fazer. O itinerário está sendo consultadocom o Comitê Nacional de Ensino e após o dia 11 de dezembroteremos uma resposta mais conclusiva desse órgão. Dequalquer forma, devemos ser �“irrestritos como o vento�”...

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vamos soprar onde Bahá�’u�’lláh quiser!!!Por que 20 Dias?A princípio, esse é o tempo que particularmente dispomos.

Porém, nada impede da caravana continuar e alguns ficarempara trás, aliás, isso acontecia muito na Idade Heróica da Fé.

Por que Badasht?Porque queremos revolucionar! Chega de paralisia, de

apatia, de desatenção, de escravidão ao mundo e aos nossospróprios egos! A Conferência de Badasht, na Idade Heróicade nossa Fé, teve esse papel �– romper todos laços que aindanos uniam as velhas crenças, tradições, paradigmas,concepções, enfim, libertar o mundo e anunciar as boas novasda Revelação de Deus. Foi nela que todos os Heróis de Deusreceberam novos nomes. Foi nela que a cada dia novosconceitos eram revelados. Foi nela que Táhirih proclamou aomundo a emancipação feminina. Foi nela que a Fé dos sincerosfoi reforçada e os capacitou para a batalha final de Tabarsí.Nós queremos reviver esse espírito e deixar para trás ascoisas que ainda nos escravizam e em liberdade, demonstrarque viemos ao mundo para reconstruí-lo através de nossosmais sinceros e dedicados atos de serviço.

Por que Nordeste?Porque o nordeste merece! Porque será uma valiosa

oportunidade para integrarmos jovens de diferentes partesdo centro-sul-sudeste com a juventude do norte-nordeste!Porque é uma das regiões mais necessitadas de jovens a tempode serviço! Porque uma experiência de serviço no nordeste éespecialmente transformadora!

Informações ImportantesNão há dinheiro para ninguém!!! Chega de onerarmos os

fundos da Fé!!! Assim, o sacrifício pelo serviço já começa pelobolso. Todos aqueles que desejarem participar devem ter plenaconsciência disso e possuir dinheiro para todas as suasdespesas pessoais, inclusos as passagens para viagem,alimentação e hospedagem. Se não houver lugares parapernoitar, teremos de dormir em pensões ou até acampar.

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Não temos certeza de absolutamente nada, a não ser deque iremos servir!!! Para organizarmos todas as viagens etentarmos conseguir hospedagens em todos os lugares,precisamos ter uma mínima margem de quantas pessoasestarão participando da Caravana. Assim, se você deseja ircontate-nos até o dia 9 de dezembro. Isso não impede suaparticipação na caravana, caso só consiga confirmar a suapresença após o dia 09, mas seria muito bom se pudesse fazê-lo o quanto antes. Lembramos que não é necessário viajarmosaté Recife juntos. A Caravana só começa uma vez queestejamos reunidos por lá. Assim, cada um pode ir do jeitoque quiser - a pé, de carona, de ônibus, de avião, de barco, ouaté por telecinese.

Outra informação muito importante é que o nordeste dopaís é internacionalmente conhecido como uma região defabulosas praias e paisagens naturais. Assim, além de servirestaremos fazendo um tour que turista algum poderia sequerimaginar - serviço e diversão - que combinação perfeita!!!�”

Desde o dia que viu essa mensagem chegar à caixa deentrada de seu correio eletrônico, Tahereh sabia que não podiadeixar passar uma oportunidade como aquela. Mas não sabiase conseguiria �“pular fora�” das tantas coisas de sua vida parase largar numa viagem como a que estava sendo proposta. Elaestava tão descrente de sua participação, que na mensagemque escreveu em resposta assim afirmou: �“...quando recebi oe-mail fiquei olhando para tela do computador por cerca de 5minutos; eu li e senti uma profunda alegria!!!! Mas não vou poderparticipar desse evento maravilhoso!!! (...) Em espírito e oraçõesestaremos juntos nessa batalha!!!! Contem com as minhasorações nessa Caravana!!!!!�”

Centenas de outros jovens de diversas partes do paísreceberam essa mesma convocação, criando uma pequena esensível agitação em torno da novidade. Entre aqueles que nãoapagaram a mensagem antes mesmo de ler, alguns disseram asi mesmos que em hipótese alguma participariam. A idéiaparecia maluca demais para eles, sem contar que teriam de

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abdicar de seus planos de férias. Muitos outros conseguiramponderar por cerca de dez minutos até que a bola de neve dospensamentos negativos �– �“não vou ter dinheiro�”, �“meus paisnão vão deixar�”, �“eu nunca participei de algo assim�”, �“oNordeste é muito longe�” �– os tomassem fazendo-os decidir,obviamente, a não participar. Desses tantos jovens que foramconvocados, muitos ainda desejaram sinceramente fazer partedo grupo, tentando de várias formas alcançar esse objetivo.Infelizmente, uma série de fatores adversos impossibilitaramessa desejada e feliz conclusão. No entanto, para alguns poucos,as confirmações vieram plenamente, afastando os obstáculose permitindo que se lançassem naquela jornada espiritual.

Essas confirmações continuaram a se manifestar, como bemse pode notar na segunda mensagem enviada à juventude:

�“Amigos dos 4 cantos do país,Alláh�’u�’Abhá!Confirmações! É tudo a que, inevitavelmente, fomos levados

a pensar e sentir nessas duas semanas, desde que foi lançadaa idéia de partirmos para o nordeste na Caravana de Badasht.Muitas vezes, como bahá�’ís, somos testados a aprender edescobrir os sinais de Deus nas coisas pequenas e sutis davida, e isso é sem dúvida um exercício edificador e estimulante.Mas parece-nos que desta vez, Ele deixou a segundo plano essaestória toda de sutilezas, e como uma torrente sem represas,tem derramado essas confirmações sobre a Caravana deBadasht. Misteriosamente, somos levados a lembrar de �‘Abdu�’l-Bahá. Em pé, apontando para a pedra fundamental do TemploBahá�’í nos Estados Unidos, ele disse: �‘O templo já estáconstruído!�’ Humildemente, tomamos aqui o sentido dessaspalavras, sentimos e afirmamos: �‘A Caravana de Badasht jáestá viajando! O que nos resta saber, é se você vai estarconosco ou não.�’

Alguns jovens, ao saberem das notícias, decidiram tirarférias de suas férias, e se juntaram às fileiras dessa jornadade serviço. Além deles, estão em fase de arrumação de malasvários outros, os quais nessas duas semanas enviaram suas

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mensagens de apoio à Caravana de Badasht. Leia algumas delas:�‘Que máximo... adorei essa brilhante idéia!!! As pessoas que

vocês irão ensinar estão esperando ansiosas por esse momentoe os resultados serão maravilhosos! Quem se levantar paraesta caravana jamais se esquecerá dela!�’

�‘Achei ótima essa idéia da Caravana, e deu uma vontadeenorme de me arriscar e ir. E não é por ser no nordeste, ondetem praias maravilhosas, não! (...) além da vontade, tambémsinto que preciso, urgentemente, fazer alguma coisa do tipo,coisa que com certeza iria mudar minha vida.�’

�‘Meu amor, admiração e orações contínuas. Minha vontademais profunda é juntar-me materialmente a este exércitoque se forma, mas os grilhões da universidade e do trabalhome prendem a este lodaçal terreno...que posso dizer??? Queespiritualmente estarei com vocês e gostaria de doar R$ XXX(sei que não é muito) para aqueles que tão corajosamente opodem. Por favor, aceitem minha oferta, pois vai ser a únicamaneira de estar materialmente com vocês.�’

�‘Sim, eu quero ir para essa caravana maluca! (...) pode botarmeu nomezinho aí nessa lista abençoada, quero ser a primeiraa responder esse chamado.�’

�‘Gostaria muito de unir esforços a todos vocês, tenhocerteza que será uma experiência de vida fantástica, semmencionar a própria contribuição ao ensino, as oportunidadesde crescimento pessoal e o estreitar laços com os bahá�’ísnordestinos, que sem dúvida, têm muito a contribuir com suashabilidades e capacidades pessoais.�’

�‘As notícias que recebi da Caravana de Badasht sãodemasiadamente contentadoras. (...) Eu estou muito feliz... epode contar com a minha completa doação para a realização danossa caravana.�’

�‘Quando cheguei em casa vim ler meus e-mails! De inícionão entendia o que poderia caber dentro do significado do títulodo e-mail: Caravana de Badasht. Então, comecei a leratentamente, mas a afobação e a surpresa foram tamanhasque eu apressava o final do e-mail para confirmar se tudo aquilo

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era verdade ou apenas se passava por uma brincadeira ou umengano meu. Bem, a emoção foi tamanha que comecei a chorar...fiquei por horas pensando nos frutos que irão decorrer dessagrande movimentação. Uma boa definição que encontrei naliteratura nordestina (Morte e Vida Severina de João Cabralde Melo Neto) foi �“Retirante às avessas�”. Aquele que abdicado conforto da sua terra para imergir-se em terras árduas. Ese um número razoável de pessoas aderir a esse projetoteremos uma pequena grande legião de retirantes de Abhá!�’

�‘(...) �‘Esta não é uma Causa que possa ser joguete dasvossas vãs fantasias, tampouco é campo para tolos e timoratos.Por Deus! esta é a arena da perspicácia e do desprendimento,da visão e do enaltecimento, onde cavaleiro algum pode galopar,exceto os valorosos paladinos do Misericordioso, os quaisromperam todos os laços com o mundo da existência. São eles,de fato, que tornam Deus vitorioso na terra, e são amanifestação de Seu poder soberano entre a humanidade.�’ �–Bahá�’u�’lláh. Com certeza, a Caravana de Badasht seria umaforma de poder presenciar os Paladinos do Misericordiosoem ação, por isso gostaria muito de ir (...) Mesmo se eu nãofor, estarei orando por todos que estiverem lá, na �‘arena daperspicácia e do desprendimento, da visão e do enaltecimento�’.�’

Além de almas e mensagens, outras confirmações vieramdo alto, e sem dúvida uma das mais significativas foi acontribuição valiosa do Comitê Nacional de Ensino, o qual esteveconsultando nesse tempo e auxiliando em diversos aspectospráticos da Caravana de Badasht.

O primeiro desses aspectos práticos é a definição doItinerário previsto:

03 de janeiro de 2001 �– chegada em Recife/PE10 de janeiro de 2001 �– chegada em João Pessoa/PB17 de janeiro de 2001 �– chegada em Natal/RN23 de janeiro de 2001 �– término da CaravanaEmbora fosse intenção inicial percorrer mais cidades, o

curto espaço de tempo exige que o utilizemos com a máximasabedoria, que nesse caso é evidenciada por permanecer mais

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tempo em cada localidade, primando assim pela qualidade enão pela quantidade.

O segundo é a definição das Atividades que serão realizadasem cada cidade:

Ensino Direto! Claro, sem dúvida, obviamente, temos deensinar a Causa e falar diretamente das boas novas desseDia. Porém, como vamos fazer isso é o �“tcham tcham tchamtcham�” da Caravana. A exemplo de experiências bem sucedidasem outras comunidades locais, iremos percorrer praças, ruase praias... sim - Praias! não para pescar peixes, mas para pescaralmas, assim como os Apóstolos de Cristo fizeram a dois milanos atrás! Conhecendo e interagindo com pessoas de todosos tipos e lugares e promovendo exposições, vamos convidartoda essa gente para as nossas...

Reuniões de Amigos! O Amado Guardião assinalou asReuniões de Amigos (Firesides) como um dos métodos maiseficientes de ensino. E é claro que vamos realizá-los dentroda Caravana! Vamos testar novos discursos de ensino e novosmétodos de realização dessas reuniões, permitindo que ajuventude esteja na vanguarda das transformações dentro efora de nossa comunidade. Ali, ao lado do fogo do amor de Deus,então vamos oferecer o Oceano das Palavras de Bahá�’u�’lláhpara que mergulhem profundamente através dos...

Círculos de Estudo! É assim que aquelas almas sedentaspoderão saciar sua sede. Vamos convidá-los a formar círculosde estudo para que se aprofundem nos ensinamentos bahá�’ís eentrem em contato com a Palavra Criativa. Embora nãopossamos guiar os círculos, as comunidades locais já foramcontatadas para dar continuidade aos mesmos através de seusfacilitadores locais. É tanta coisa boa, que não podemos guardarnada conosco e então, vamos até à...

Mídia! Vamos colocar a �“boca no trombone�” e anunciar aonordeste que estamos na área. A intenção é conseguir a atençãodos meios de comunicação das localidades e, possivelmente, apublicação de matérias sobre a Caravana no jornal, no rádio,e quem sabe, no Jornal Nacional! (sonhar não custa nada �– �‘eles

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não sabem / nem sonham / que o sonho comanda a vida / cadavez que um homem sonha / o mundo pula e avança / como bolacolorida / entre as mãos de uma criança�’)

Paralelamente a tudo isso, os viajantes poderão desfrutarde sessões de aprofundamento e oração para gerar o espírito,entusiasmo e a certeza de que seus esforços estarão sendoassistidos e apoiados pelas hostes do céu!

É isso! Embora a maioria das informações necessária estejaaqui contida, não podemos oferecer uma outra e maisimportante, pois ela é invisível. �‘O essencial é invisível aosolhos, só se vê bem com o coração�’ assim dizia uma certa raposaa seu pequenino amigo príncipe, e é exatamente essa ainformação que você ainda precisa descobrir. Pergunte ao seucoração e ele lhe dirá.�”

�“Por que�” �– enxugando as lágrimas, Tahereh se perguntava,ou talvez a um dos anjos das �“hostes triunfantes da AssembléiaCelestial�” como �‘Abdu�’l-Bahá havia prometido estarempresentes com aqueles que se levantassem para o serviço �–�“fui eu escolhida para receber a bênção de poder participarde um projeto como esse? Por que a mim Bahá�’u�’lláh agora estáconfirmando de maneira tão plena? Certamente não soumerecedora desse favor.�”

E permaneceu tomada por suas questões até o momentoque, num lapso de consciência absoluta, lembrou-se das palavrasde uma oração: �“atesto haveres Tu te dirigido a Teus servosantes de eles a Ti se dirigirem e haveres Tu Te lembradodeles antes de eles se lembrarem de Ti. Todas as graças sãoTuas, ó Tu em Cuja mão está o reino das dádivas e a origem detodo decreto irrevogável.�”3 Ela sorriu satisfeita com aresposta, e decidiu parar de pensar nos porquês, segundosantes de adormecer.

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A convocação

O Terminal Tietê, principal das quatro rodoviárias da cidadede São Paulo, parecia um formigueiro. Talvez essa não seja amais perfeita alusão, já que num formigueiro existe ordem eorganização, virtudes muito distantes do que Tahereh e Andrépercebiam ali. A analogia era certa, porém, cada vez quetrombavam com uma entre milhares de outras pessoas quedesafortunadamente resolveram viajar na véspera de natal.Mas, enfim, após andarem por entre filas de passageiros ebagagens, ouvindo os gritos histéricos que os faziam pensarem uma bolsa de valores em alta, chegaram na plataformacerta e embarcaram.

�– Eu nunca mais quero voltar aqui �– disse Tahereh olhando abalbúrdia da multidão fora do ônibus. André fez a sua melhorcara empática:

�– Realmente é uma confusão esse Tietê �– por dentro davagargalhadas �– agora no fim de ano é pior ainda.

�– Estou traumatizada com tudo isso e a culpa é sua também�– afirmou ela com um misto de humor e desprezo no olhar. Foio suficiente. André rolava de rir na poltrona 13 do �“ItapemerimGolden�” que os levaria direto para Recife. Nem tão direto, éverdade. Eram 10:45h em São Paulo e a previsão de chegada àcapital pernambucana era às 11:00h �– dali a dois dias.

�– Quando é que você vai me perdoar, hein? �– perguntou apósse recuperar do ataque de risos.

�– Quando você se arrepender do que fez! �– se voltou para ajanela abraçando seu travesseiro e deu as costas a André,que tentava mais uma vez controlar suas emoções satíricas.Ele não era culpado pelo despertador não ter cumprido comsua parte na manhã anterior, quando Tahereh chegara deFlorianópolis. Mas ainda lembrava de seu desespero ao acordare perceber que já estava meia hora atrasado para buscá-la narodoviária. Levantou-se ainda zonzo de sono, colocou a primeira

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roupa que viu pela frente, que por sinal era a que tinha deixadopelo chão antes de desmaiar dormindo, e saiu correndo pelarua a procura de um táxi voador. Sem dúvida, para chegar àrodoviária teria de ser um táxi com módulo de vôo, pensou emsua divagação ainda influenciada por Morpheus. Pela expressãodo motorista quando ele anunciou seu destino, a forma com aqual deveria chegar lá e o tempo disponível para tal, ficou claroque aquela se tratava de uma cena surreal. O homem, que nãotinha absolutamente nada a ver com o despertador atrasadodo rapaz, nem mesmo com sua aparente desorientação mental,só começou a acelerar mais quando ouviu que se tratava deuma criança de 10 anos sozinha no Tietê quem ele iria buscar.Sim, André começou a apelar para pequenas mentiras quandopercebeu não estar ganhando o devido crédito do desconhecidoao volante. O táxi não chegou voando, mas o tempo da viagemfoi digno do Guiness. Dali até o momento em que Andréencontraria Tahereh desesperada em um canto da estaçãorodoviária, passaram-se mais de duas horas. Porém,psicologicamente, o tempo calculou muitas mais, e era o queela dizia aliviada enquanto se abraçavam, �“estou aqui teesperando há dez horas, o que aconteceu?�” Passado o susto,ele só conseguia lembrar do episódio com graça, enquanto paraela aquilo havia sido traumático. �“Nunca mais volto aqui�”, repetiabaixinho com a testa encostada no vidro da janela.

Um barulho familiar. �“Meu celular!�”, virou-se Tahereh àprocura do aparelho que lançava alto seu toque. Atendeu:

�– Alô! (...) Oi, como você está, as malas já estão prontas?(...) Não! O que aconteceu? (...) Mas você vai, certo? (...) Não,não diga isso, nada de desânimo! Eu e André já estamos viajandoe eu quero te ver em Recife sem falta �– conversava com ar depreocupada pelas notícias não tão estimulantes que acabarade receber. Uma jovem confirmada entre os participantes daCaravana de Badasht estava dizendo que talvez não pudesseparticipar por motivos que não queria dizer ao telefone. Foiisso que André descobriu após falar com ela naquele mesmotelefonema.

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�– Vê! �– disse ele enfaticamente �– se estamos aqui é por Vontadede Bahá�’u�’lláh. Quantos jovens talvez estejam vivendo o mesmoimpasse. Quantos desejam participar e não poderão? Nósdevemos agradecer por essa chance que nos foi concedida e fazerpor merecê-la, pensamento após pensamento, ação após ação.

Tahereh concordou e então já não mais se lembravam doTietê. Estavam agora envolvidos pelo verdadeiro sentido desua viagem, e o compreendiam de forma mais aguçada. Essetambém era o pensamento dos outros jovens que haviam selevantado para servir naqueles próximos dias, e um únicoespírito tomava a todos eles igualmente. Como Tahereh, elestambém haviam recebido a convocação e sabiam que ela, muitoantes de ser escrita ou concebida por dois outros jovens,provinha poderosamente do Alto. Da mesma forma, perceberamseus corações atraídos àquele chamado e, mobilizados por essaatração, tiveram de atravessar muitas dificuldades.Sobretudo, esse espírito único dizia a todos que o maisimportante naquele momento era manter a atenção centradano objetivo da Caravana de Badasht �– servir e ensinar �– e assimavançar em sua busca, confiantes das reiteradas promessasencontradas nas escrituras sagradas de que teriam êxito seassim o fizessem e que estavam seguindo o desejo de seuscorações. O qual era a vontade evidente de Bahá�’u�’lláh paracada um deles.

Turadj estava entre aqueles jovens, e ao lado de Andrétornara-se progenitor do projeto. Em um de seus relatosdescreveu o seguinte: �“Aquela semana havia sido difícil paramim. Após uma prova e as atividades da campanha de prevençãodo câncer de mama, à qual estava integrado, parti de RibeirãoPreto de carona com um amigo bahá�’í. Em pouco tempo jáestávamos cruzando a Anhanguera que nos levaria ao Soltaniéhem Mogi Mirim. Ah! Estrada, como te adoro! Chegando em meudestino, participaria de um encontro promovido pelo ComitêEstadual de Juventude de São Paulo. Estava eu naquele espírito,aquela alegria que vem de dentro, verdadeira e duradoura.Rever amigos, participar das atividades e eis, estava então

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em uma consulta sobre Unidade �– a palavra-chave da Revelaçãode nosso Bem Amado. Como Ele nos inspirou! Durante aconsulta, percebi que a desunião da juventude no Brasil eraapenas aparente. Os paladinos do Misericordioso estavamunidos! Cabia a nós congregá-los, recordando-os disso. A melhorforma: o serviço a Bahá�’u�’lláh, o Senhor dos Exércitos. À minhadireita, um pouco distante, estava sentado meu amigo André,com quem vinha desenvolvendo nos meses anteriores umasintonia e comunicação de coração, de espírito, assim, quaseindescritíveis. Naquele momento, então, testemunhei essamesma sintonia mais uma vez. Ao fim da sessão, olhamo-nosnos olhos um do outro. Um abraço e o dedo de Bahá�’u�’lláh. Vamosservir nas férias e conclamar os jovens! Onde? No nordeste!Quando? Em janeiro, uns vinte dias mais ou menos. Sorrimos eestava feito! Como foi simples, penso nesses dias aqui comigo.Três semanas depois, após lançarmos a idéia da Caravana deBadasht por todos os lados do país, encontramo-nos novamente.Na madrugada do dia 16 ao 17, após uma seqüência defervorosas orações, definimos uma série de detalhes queformariam a base das atividades e da organização do projeto.Lembro-me que comentei: �‘é engraçado estarmos montando oprograma de algo do qual é plena a certeza de que vai darcerto.�’ Mais duas semanas passaram �‘como o cintilar de umaestrela�’ e às pressas eu e minha querida irmã Leilah estávamosna rodoviária em Brasília, de onde embarcaríamos para Recifejunto com Hilana�”.

Hilana era mais uma, entre aqueles que puderam e selevantaram para atender ao chamado. Para ela, as dificuldadesforam maiores ainda. Em sua memória não se apaga o dia emque ela recebeu a última mensagem de convocação. Uma espéciede angústia se apoderava de todo o seu ser, pois desejavaseguir viagem. Não! Mais do que isso. Era uma verdadeiranecessidade deixar por um tempo sua vida conturbada emBrasília e mergulhar de cabeça nas loucuras que se produzemuma vez estando no campo de ensino. Mas não havia por ondeescapar. Compromissos a mantinham presa ao Planalto Central.

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Contas a pagar diziam que não haveria recursos materiais. Elase afogava numa racionalização que cada vez a afastava maisde seguir aquilo que seu coração ordenava. E esse impasseangustiante perdurou até dois dias antes de sua partida comTuradj e Leilah. Livrou-se das cadeias e correntes de todosos seus compromissos, pois havia um mais importante a cumprir.Juntou recursos de todos os lados e surpreendeu-se emperceber que conseguira. Para servir, sempre se dá um jeito.Era isso que ela queria e já havia tomado a sua decisão. Maiorque o sorriso da vendedora de passagens no guichê rodoviáriofoi o de Hilana. �“Eis-me aqui�”, pensava e sorria imersa emconfirmações.

Também de Brasília, Otávio foi mais um jovem a participarda Caravana. Ele mesmo narra o processo particular que passouaté a decisão de viajar:

�“Foi numa noite de novembro, depois de chegar em casacansado da rotina de sempre, que li o e-mail anunciando pelaprimeira vez a Caravana de Badasht. �‘Que bom que a juventudeestá se movendo�’ �– pensei �– �‘tomara que eles tenham ótimosresultados�’. Neste momento havia me excluído do projeto.Havia tomado precipitadamente a decisão. �‘Não poderei ficartrês semanas viajando. Aproveitarei este mês de janeiro parafazer um estágio ou adiantar o meu curso na universidade�’.Que pensamento mais limitado! Estudar, trabalhar, ganhardinheiro. A vida se resume a isto? As semanas foram passandoe já estava com a passagem marcada para passar o natal e anonovo com a família e depois voltar para casa. Há dois dias deminha viagem para o natal, estava lendo um relato sobre a vidade Shoghi Effendi escrito por Rúhíyyih Khánum no livro �‘PérolaInestimável�’. A vontade que o Guardião tinha, desde jovem,de servir a Fé era tão grande que tive a impressão de quepara ele todos os problemas da vida pareciam simples sombrasou miragens passageiras. Ele sempre exortava todos paraensinarem a Fé enquanto pudessem, para deixarem a sua marcaneste mundo. Foi então que comecei a despertar de minhaletargia negligente. Nesse momento comecei a me perguntar

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por que vivemos. O que esperamos da vida? Tive vontade deme levantar e servir naquele mesmo momento. Então, lembrei-me da Caravana e resolvi telefonar para o Turadj a fim sabermais detalhes. Fiquei imaginando como seria este projeto, comoele marcaria a minha vida e como Bahá�’u�’lláh havia acabado deme oferecer uma oportunidade tão especial de serviço. À noite,resolvi ler o relato da Conferência de Badasht em �‘Rompedoresda Alvorada�’. Ficava maravilhado imaginando como teria sidoaquela ocasião. Então, não pensei duas vezes. Peguei o telefonejá tarde da noite e fiz a minha reserva para Recife. No diaseguinte, na véspera de minha viagem de natal, levei minhapassagem para alterar o destino final, que agora era: ensino.Era fascinante imaginar que jovens de várias partes do Brasiliriam se encontrar em Recife com um objetivo em comum.Nos dias anteriores estava muito ansioso. Todas as noites euficava pensando naquela �‘misteriosa�’ Caravana. Imaginava todosaqueles jovens, muitos dos quais eu nem conhecia, ensinando eproclamando a Causa, toda aquela energia positiva! Meussentimentos eram uma mistura de receio, uma dúvidaacompanhada de temor por estar indo ao desconhecido, aliadoa uma confiança muito forte. A cada dia ficava mais alegre eansioso para partir!�”

Ainda de Brasília, recebeu a convocação o jovem Fernando.As lembranças do nordeste não eram muito boas. Na últimavez que esteve por lá, teve uma síndrome alérgica ao calor epermaneceu empipocado com feridas por todo o corpo duranteaqueles que pretendiam ser dias de férias inesquecíveis. Naverdade foram. Não da forma que ele imaginara, mas semdúvida inesquecíveis.

Já tinha decidido definitivamente: �“não vou�”. Mas asmensagens coloridas em preto e laranja continuavam a chegare isso o atormentava. Pensou em solicitar exclusão de seuendereço do mailing de convocação da Caravana de Badasht ecriar um filtro eletrônico na sua caixa postal para não recebernada que viesse de andre@... ou de turadj@... Nem pediu parasair nem acionou o filtro. Algo o impedia.

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Foi então que andando na rua passou na frente de uma lojade sapatos. Seus pensamentos circundavam em torno da idéiadaquele inusitado projeto. De um lado, uma vontade sem igual,de outro as feridas memoráveis e uma série de outrosempecilhos que sua mente criava na tentativa de se justificar.Mas enfim, �“Papete R$ 35,00�”, leu ele no cartaz acima dasandália masculina. �“Papete�”, a palavra ecoava na mente delequando o vendedor na porta da loja o abordou:

�– Essa que está na vitrine é uma das últimas. Perfeita parao verão, não acha? Vamos entrar para experimentar? É semcompromisso!

Não que Fernando seja alguém sugestionável, mas aos seusouvidos nunca uma conversa de vendedor havia sido tãopersuasiva. Enquanto o Sr. Jaime Souza ia buscar uma papetepreta no número exato de seu cliente e demorava, pois tinhade achá-la entre centenas de outras que, ao contrário do quedissera há instantes, se empilhavam no depósito denotandoprejuízo para a Ande Certo Calçados e Acessórios, Fernando àespera se questionava: o que estou fazendo aqui? Antes quepudesse construir um pensamento em resposta, lá veio Jaimesorridente com uma caixa de sapatos azul nas mãos:

�– Quase que não acho, é uma das últimas mesmo.�– Meu senhor, desculpe-me, mas não desejo comprar

nenhuma papete. Muito obrigado, ouviu? �– disse em respostaconstrangida ao vendedor, que por sua vez devolveu-lhe játirando a sandália da caixa e exibindo-a orgulhosamente:

�– Não quer comprar? E como é que você acha que vai andarà praia? De chinelo de dedo? Ninguém mais usa essas coisas, amoda agora é a papete! Para onde você vai, Porto Seguro?

Fernando quase deixou sair um, �“não, vou para Recife�”:�– Bom, até o senhor me abordar na rua, eu não tinha nenhuma

pretensão de ir para praia. �– Respondeu ele desconcertado,afinal iria à praia com seus pais, mas não ao nordeste,definitivamente não ao nordeste. Definitivamente?

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�– Eu não acredito! �– disse Jaime olhando para cima e para oslados �– gente, esse rapaz esbelto vai passar as férias de verãolonge da praia, dá para acreditar? Passa o ano inteiro rodandono plano piloto e quando pode escapar vem me dizer que não vaià praia! Não senhor, trate já de colocar essa papete no péporque você vai precisar dela em Porto Seguro!

�– Senhor, não vou a Porto Seguro. Vou a Recife. �– Pronto, játinha falado e nem ele mesmo acreditou. O vendedor não seimportou com a informação. Seguiu fazendo seu trabalho atéque o rapaz que olhava de um jeito tão estranho para a vitrineda loja a minutos atrás saísse dela com sua sacola. Dentrodela uma papete preta e uma certeza, desta vez realmentedefinitiva: viajaria a Recife.

Nilanna e Vinícius, jovens de Niterói, também se somavamàs fileiras da Caravana de Badasht.

�– Vai dar ou não? �– perguntou Nilanna ao irmão que contavaas notas de dez reais.

�– Rock�’n Rio, aí vamos nós! �– exclamou entusiasmado o jovemindo em direção da irmã para um grande abraço. Imperdível.Essa era a palavra de ordem a uma multidão de jovens que dalia um mês estariam aglomerados e acampados à espera daabertura dos portões da �“cidade do rock�”, montadaespecialmente para receber os espetáculos nacionais einternacionais. E não podia deixar de ser a palavra que os doismais pronunciavam ao final de toda conversa sobre o evento.Imperdível!

�– Vinícius, vem cá um pouco. �– Nilanna tinha um ar de surpresae preocupação ao ler a mensagem eletrônica que acabara dechegar em sua caixa postal.

�“... decidimos começar a destruir a nossa própria apatia einatividade através do serviço à Causa de nosso Bem AmadoSenhor...�”, liam os dois atentos, �“... romper todos laços queainda nos uniam as velhas crenças, tradições, paradigmas,concepções, enfim, libertar o mundo e anunciar as boas novasda Revelação de Deus...�”, continuavam a ler quase hipnotizados,

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�“... não temos certeza de absolutamente nada, a não serque iremos servir...�”.

�– O Rock�’n Rio é quando mesmo? �– perguntou Vinícius emborajá soubesse a resposta.

�– Meados de janeiro. �– num tom hesitante sua irmãrespondeu.

�– Essa tal Caravana é quando mesmo? �– perguntou novamentetemendo a resposta. Nilanna retrocedeu as linhas da mensagemvagarosamente e até pensou em apertar delete antes definalmente chegar a encontrar a resposta do irmão. Mas estavaescrito �“de 03 a 23 de janeiro�”, e nem que eles desejassematirar o computador pela janela, poderiam mudar o que jáestava feito. Eles começaram a perceber que em certosmomentos da vida, a palavra imperdível cede e deixa de terum significado muito óbvio.

�– Vai dar ou não? �– perguntou Nilanna ao irmão que contavanovamente as notas de dez reais algumas semanas depois.

�– Caravana de Badasht, aí vamos nós! O abraço dessa vezfoi diferente. Desde o dia fatídico em que receberam a notíciade que o Rock�’n Rio não era imperdível, mas sim, lançar-se àviagem de ensino que haviam sido convocados, muitasdificuldades se apresentaram em seu caminho. A principal -dinheiro. Quem disse que dizer �“eu quero�” era suficiente. Osdois jovens tiveram de vender miçanga na praia e bolo nasfestas da comunidade local. E de real em real, despediram-seda �“cidade do rock�”. Rock�’n�’Roll. Sem dúvida, as pedras iamrolar, só que de maneira diferente dali em diante. De seuscorações se escutavam sons de felicidade melodicamentedistorcidos pelo overdrive do serviço. Um som para ninguémpor defeito.

Dali a alguns dias, todos esses jovens estariam em Recife,junto a outros que já os esperavam. Nenhum deles sabiaexatamente o que se sucederia nos dias vindouros, excetoque era o serviço sua meta principal. Em seus corações levavam,no entanto, muitas expectativas, entre elas uma em especial:

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que Bahá�’u�’lláh continuasse a confirmar, como havia feito atéagora, suas intenções sinceras de servi-Lo. Não demorariamuito para que do céu começassem a chover respostas. Elesjá estavam a caminho, viajando após atenderem à convocação.

O Lótus renasce do lodaçal

O dia amanheceu diferente na praia de Boa Viagem, emboraparecesse apenas mais um entre tantos durante o verão. Sole calor, mar e areia, vendedores caminhando e anunciando seusprodutos aos banhistas. Gente de todos os lugares do Brasil,inclusive da praia �– gente do Recife. Havia lá um calçadão,protegido do sol por palmeiras e coqueiros, uma brisa frescasoprando em toda a orla e uma porção de outras coisas que napraia se encontram. Enfim, nada de diferente. Nada deextraordinário, exceto um menininho de sunga vermelha queacabara de chegar com seus pais.

Ele correu pela areia, um tanto quanto desajeitado. Olhavapara baixo, a areia era um terreno estranho e tinha medo decair. Correu para frente, sem saber direito aonde ia, mas eisque quando parou e olhou, deparou-se com O Oceano. Nummovimento involuntário, colocou as mãos para trás. Sem dúvidaestava inibido, nunca vira tanta água assim. Em suas própriasmedidas, julgou haver mais água lá do que na piscina de plásticoque ganhara no natal passado e na qual brincava todos os diasaté que seus pais disseram, �“arrume as malas mocinho, vamosviajar e você vai conhecer a praia!�”. Com o mesmo espanto, nãoentendeu como podia ser tão reta a linha que dividia a águaverde-azul-clarinha, do céu anil. Reta como ele nunca conseguiradesenhar com o lápis no caderno da escola. Em cima de suacabeça ele viu as nuvens que eram bichos. �“Bichos do céu�”,dizia seu avô. E ele até pensou ver uma que se parecia com umgrande dinossauro, mas sua atenção estava na cor das nuvens:igualzinha à cor da espuma branca que as ondas, em seu vai e

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vem, faziam chegar aos seus pés. Seria a espuma algumasnuvens que caíram do céu? Mas também já não era de suapreocupação a cor da espuma ou das nuvens, pois estavaintrigado com a brincadeira das ondas. Elas vêm. Quebram.Esparramam-se. E voltam para novamente vir, quebrar eesparramar. Elas não se cansam da mesma brincadeira? Eramtantas questões que resolveu desistir delas. Colocou as mãosna água e, fazendo com elas o formato de uma conchinha,trouxe água até a boca. Definitivamente não era o mesmo gostoda água que a mamãe mandava tomar todos os dias. Pareciaque milhares de crianças tinham derramado o pote de sal, comoele fizera a dois meses atrás e que lhe custou um dia semtelevisão. Ele lembrou que havia chorado muito pelo castigo eaquela água lembrava um pouco as suas lágrimas, com adiferença que ali não se sentia minimamente triste. Entãoresolveu se arriscar. Pé ante pé foi entrando na água e deixouos joelhos estarem imersos nela. Ele ria alto, uma daquelasrisadas excitadas de criança. Caiu na primeira onda. Quischorar, mas logo viu que tudo não havia passado de um susto.

Susto. Assombro. Descoberta. Emoção. Essas são poucaspalavras para descrever o que o menininho sentia em frenteao Oceano. Embora pudesse contemplá-lo até seu fim com océu, a parcela que tinha acesso dele era ainda muito pequena.Mas ele não se sentia frustrado por isso. Sabia que mesmoassim ele era agora um menino sabido, e que voltaria da praiapara contar suas aventuras aos amigos e, quem sabe um dia,trazê-los junto ao Oceano também.

Não se sabe ao certo, mas dizem que todos, um dia, passarãopela mesma experiência: ser um menininho de sunga vermelhaa atestar o Criador no Oceano. O medo de cair ao se aproximarDele. O assombro ao primeiro vislumbre, Sua grandeza,majestade e poder. A inquietude ao observar sua constânciainfinita. A consternação de beber alegremente Dele e lembrardo gosto das lágrimas. O susto e temor ao tentar sondá-Lomais de perto. A certeza imediatamente posterior de que Eleé insondável. A fascinação por estar um pouco mais próximo

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Dele. O desejo de trazer outros ao Seu redor.Para os jovens presentes à abertura oficial da Caravana de

Badasht, esse dia havia chegado. Além dos que vieram deviagem, André, Leilah, Fernando, Hilana, Tahereh e Turadj,estavam à espera os jovens de Recife, Anissa, Bianca e a turmado S: Sara, Setareh, Surush e Sobhan. Oraram:

�“Ó santo Senhor! Ó Senhor de benevolência! CircundamosTua morada, desejando ardentemente contemplar Tuabeleza e amando todos os Teus caminhos. Somos desditosos,humildes e de pouco valor. Somos indigentes: mostra-nosmisericórdia, concede-nos favores; não olhes nossas faltas,oculta nossos pecados sem fim. Apesar de sermos o quesomos, ainda pertencemos a Ti, e é Tua a face que buscamos,Tua a trilha que seguimos. És o Senhor de clemência, e nóssomos pecadores; estamos errantes, longe de nossa morada.Concede-nos, pois, ó Nuvem de Misericórdia, algumas gotasde chuva. Ó Jardim Florido da graça, faze manar brisafragrante. Ó Mar de todas as dádivas, desdobra em nossadireção uma grande onda. Ó Sol de generosidade, emite umraio de luz. Concede-nos compaixão, concede-nos graça. PorTua beleza! Vimos sem outra provisão senão nossos pecados,sem nenhuma boa ação para relatarmos, com esperançassomente. A não ser que Teu véu ocultador nos cubra e Tuaproteção nos escude e aninhe, que poder têm essas almasdesamparadas para levantar e Te servir, que recursos têmestes seres aflitos para levantar e Te servir, que recursostem esses seres aflitos para que possam exibir coragem?Tu que és o Forte, o Todo-Poderoso! Ajuda-nos, favorece-nos; estamos caídos, revifica-nos com as chuvas de Tuasnuvens de graças; somos inferiores, ilumina-nos com os raiosbrilhantes do Sol de Tua unicidade. Imerge estes peixessedentos no oceano de Tua misericórdia, guia ao abrigo deTua unidade esta caravana errante; ao manancial da guiaconduze aqueles que para longe se desviaram, e concederefúgio dentro dos recintos de Tua grandeza àqueles queperderam o caminho. Refresca Tu estes lábios ressecados

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com as água copiosas e gentis do céu, ressuscita estesmortos para a vida eterna. Ao cego, concede olhos paraenxergar. Faze o surdo ouvir, o mudo falar. Faze com que oesmorecido se ponha em chama, torna cauteloso odesatento, alerta o orgulhoso; desperta aqueles quedormem. És o Potente, és o Doador, és o Amoroso.Verdadeiramente és o Generoso, o Mais Excelso.�”4

Após as orações, solicitou-se que todos falassem sobre seussentimentos e expectativas. Anissa foi a primeira, como elamesma relata:

�“Eu parecia uma brava e corajosa guerreira! Porém, a maispura verdade é que eu era uma fraca serva confiante apenasem Deus. Fracos todos somos. A confiança em Deus seria minhafortaleza. De que mais eu precisaria? Para uma caravaneirade primeira viagem isso bastava para lançar-me ao ensino.

Tão logo estávamos na primeira consulta entre todos osparticipantes. Lembro-me muito bem da arrumação do ambiente,dos rostos que muito diziam dos estados espirituais de cadaum, da atmosfera, dos sons, das sombras e luzes. As oraçõesiniciais tiveram muito efeito sobre mim. Com os olhos fechadosvaguei pela alma de cada um naquele recinto. Conheci um poucode cada um, esqueci suas feições e roupas. Foi este o verdadeiroinício da união espiritual que perdurou pelo resto dos dias.

Por alguns momentos a sala da minha casa e todos queestavam ali se tornaram inexistentes, e eu estava comungandocom meu próprio espírito em voz alta, pois ele não contiverasua emoção. Ele queria que todos escutassem o quanto desejavasinceramente que provas e dificuldades fossem postas em meucaminho, no caminho de todos. Julgando-se no direito, meuespírito tentava incitar nos outros esse mesmo desejo.�”

�– Provações. �– disse e silenciou.Desejo para nós muitas provações! �– continuou Anissa. Ela

tinha pensado em dizer muitas coisas nesse sentido, mas nãofoi muito além do que permitiu a torrente de lágrimas que deseus olhos fluía. Há algumas noites atrás, ou talvez durante

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muitas noites em sua vida, ela atestava o valor das provações.Bênçãos disfarçadas. Assim o Amado Guardião chamava ostestes e provas. A vida de �‘Abdu�’l-Bahá, de Bahá�’u�’lláh, do Bábe de todos os Manifestantes de Deus, testemunhavaperfeitamente esse sentido especial, esse gosto adocicado,essa fragrância almiscarada, essa felicidade perene, todosprovidos pela dor e sofrimento das provas enviadas por Deus.Tanto que, em uma das orações de �‘Abdu�’l-Bahá, lê-se ocomovente pedido:

�“Ó Divina Providência! Ergue aos lábios daqueles que Teamam um cálice transbordante de angústia. Às almas quepor Ti suspiram, em Teu caminho, torna a doçura tão-somente um aguilhão e o veneno, doce como mel. Faz denossas cabeças o ornamento das pontas das lanças. Tornanossos corações o alvo de setas e dardos impiedosos.Ressuscita no campo do martírio esta alma esmorecida; fazecom que este coração desanimado sorva da taça da opressãoe volte assim a vicejar, irradiando frescor e beleza. Inebria-o com o vinho de Teu Convênio eterno e torna-o um extasiadoa erguer seu cálice. Ajuda-o a oferecer a vida; consenteque, por amor a Ti, ele seja imolado. Tu és o Grande, oPoderoso. És o Conhecedor, o Que ouve e vê.�”5

Mas mesmo assim, ninguém esperava ouvir essas palavrasde Anissa. Os olhares se cruzavam no ambiente, então,silencioso. Aguardavam que ela retomasse a palavra eexplicasse melhor seu pedido. Na verdade, desejavam que elafalasse daquilo que intimamente já sabiam. Alguns, deixandoseus próprios corações relatarem o porquê do pedido,acompanharam-na em suas lágrimas. Foi o necessário. Quandoum filho chora, seu pai não descansa enquanto não vê remediadoo motivo. Deus não desapontaria alguns de seus servos-filhos,que em lágrimas reconheciam já haver Ele confirmado suassúplicas. As provações viriam. Trazidas, paradoxalmente, pelasmesmas hostes angelicais enviadas a fim de apoiá-los em seusserviços.

Como a cerimônia de abertura tinha de continuar, e ainda

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outros jovens deveriam falar de suas expectativas esentimentos naquele primeiro dia, Bianca tomou a palavraresoluta em contar das coisas que haviam se passado com elanos últimos tempos:

�“Era início de dezembro, eu me encontrava na etapa finalde um processo decisivo em minha vida: o processo devestibular. Lembro-me, perfeitamente, do grau de ansiedadee agitação que eu me encontrava. Lembro-me do desejo queacalentava de não mais vivenciar um ano como aquele, pois emminha avaliação, foi um ano de certos ganhos, mas de imensasperdas. Um ano em que as palavras liberdade, amplitude eserviço, dificilmente conseguiam ser conjugadas face a umarealidade altamente fechada, mecanizada, na qual concorrência,egocentrismo e disputa eram palavras de ordem. Meu cansaçofísico, mental e espiritual principalmente já se mostravamevidentes. Necessitava, com grande urgência, desvencilhar-me daquela rotina que, sob minha visão, era bastantedestrutiva e degradante. Foi então, que nesse mesmo período,recebi um e-mail com um conteúdo altamente inusitado. Elefoi dirigido a toda juventude brasileira e, em seu cabeçalho,estava disposto um escrito de �‘Abdu�’l-Bahá que, ao ser lido,trouxe-me imensa consternação e que fez agigantar-se dentrode mim uma expectativa e uma curiosidade imensa. Curiosidadeque logo fez meus olhos perplexos apressarem-se atravésdaquela enigmática notícia. Caravana de Badasht? Vinte diasde serviço pelo nordeste? Recife está inserida nesseitinerário? Não consegui finalizar aquela leitura, minha comoçãoera tamanha que meus olhos se entregaram às lágrimastorrenciais. Não conseguia compreender quão vasto e belo erao oceano de generosidade, confirmações e serviço que o BemAmado acabara de colocar à minha frente. Tive uma posturade descrença; era algo difícil para uma pessoa que seencontrava imersa a provações e inatividade, por um espaçode tempo razoável, crer em todas aquelas bênçãos. Confessoque, dentre todos os pontos tratados naquele e-mail, o quemais me chamou atenção e o que mais promoveu alegria ao meu

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coração foi a assistência e a inclinação que seria dada à porçãonordeste do país. Vi essa iniciativa como um largo passo àintegração e a descentralização das atividades da juventudebrasileira. Quão feliz me encontrava! Meu espírito pareciaconvulsionado por um fluxo intenso de dádivas. Aquela era umaoportunidade ímpar em minha vida. Bahá�’u�’lláh, como um pai atencioso,tinha ouvido as preces de sua filha enferma e serva convicta e aela havia concedido luz e guia através da trilha do serviço à Causa.E assim Ele procedeu, na minha vida e na vida de tantos outrosjovens que, através daquele e-mail, foram conclamados aesporearem seu corcéis e lançarem-se à arena do serviço.�”

Logo após, a palavra dirigiu-se aos irmãos Ardestani, Sara,Setareh e Surush. Foi Setareh quem começou, tentando serecuperar do choro causado pela emoção das coisas que eramditas e sentidas naquele ambiente:

�– Durante todo o último mês tenho sido avisada pelasmeninas �– apontou na direção de Anissa e Bianca �– do grandeacontecimento da Caravana de Badasht.

Pausou a fala e seu semblante era tomado por mais emoção:�– Eu sempre disse a elas que não sabia ao certo se iria

participar, já que os planos eram sair de férias... eram tantascoisas. Mas, na última Festa de 19 Dias, a três dias atrás, foilido um texto de �‘Abdu�’l-Bahá que comoveu a essência de meucoração �– lágrimas, e elas ainda não sabem, mas eu queria dizerque vou participar da Caravana, não só aqui como nas outrasduas cidades também. Sinto que, embora eu seja bahá�’í desdeque nasci, as coisas na minha vida precisam mudar. Sinto que aCaravana é uma oportunidade para isso e não quero perdê-la.

Setareh se referia ao conhecido pronunciamento de �‘Abdu�’l-Bahá na América, no qual ele afirmava, de forma aguda eenfática, que todo o seu tempo era dedicado ao ensino e quetodos os bahá�’ís deveriam assim fazer. Nessa mesma fala, elejustifica, através de sua dedicação irrestrita ao ensino, o fatode não escrever à sua família enviando notícias. A lembrança

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desse texto e a imagem emocionada da amiga levaram Anissae Bianca ao choro sincero e calado.

Finalmente, Sobhan se pronunciou:�– Eu acho que o time está bem, graças ao treinamento e a

ajuda do �“professor�”. A defesa deu umas bobeadas no primeirotempo, mas se Deus quiser vamos sair com uma vitória paraessa torcida maravilhosa que veio nos assistir hoje aqui.

Sorrisos, risos e gargalhadas! Esses foram os resultadosdo primeiro dentre muitos outros comentários bem humoradosde Sobhan que, com sua presença de espírito, conseguia trazerao grupo doses nada homeopáticas de alegria e radiância.

Não era preciso dizer muitas coisas sobre suas expectativase sentimentos. Depois de um ano longe da família, estar outravez em casa e participar de um projeto de ensino eram comoum prêmio maior do que a própria aprovação no vestibular hápoucos dias atrás. Ele era pura felicidade e não descansariaenquanto não contagiasse os outros com ela. Sabia que todoaquele pranto presente à reunião evidenciava esse mesmosentimento, mas queria ver as pessoas sorrirem, nem que paraisso tivesse que falar de futebol.

Aquelas eram as impressões individuais de cada um. Porém,de seus corações se ouvia as seguintes palavras:

Muito prazer, somos os jovens da Caravana de Badasht!Caravana de Badasht, mero significado dentro do podermodificador que contém essa pequena formação de palavras.Essa Caravana é formada por jovens e o mais puro espírito detransformação; do serviço e da não acomodação! Jovensdispostos a derrubarem o mito da geração fracasso, tãoveiculado nos dias contemporâneos. A efetivarem mudançasespirituais lançando-se como forças catalisadoras queimpulsionarão a sociedade atual a uma realidade mais digna, ouseja, a um mundo mais justo, no qual a paz será soberana, noqual os preconceitos terão fim, no qual as religiões concordarãoe unirão os homens à sombra da mesma árvore: A Árvore daUnidade. Tencionamos, exclusivamente, difundir a Fé Bahá´í

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e é nesse propósito que nossos esforços empreendidos estarãosendo norteados, não só nesses vinte dias, mas durante nossasvidas. Cá estamos, na tentativa de bem servir ao ConvênioSagrado. Cá estamos, no nosso eterno comprometimento comDeus, Sua Causa e Suas Instituições Sagradas. Cá estamos,dispostos a imergirmo-nos no Oceano Divino e nadarmos naságuas, ora serenas, ora turbulentas do mais louvável dos atos;o ato de servir! Temos a plena consciência que grande partedo progresso da fé infinita de Deus está nas mãos dajuventude e, portanto, queremos ser instrumentos vigorosose irrestritos a bradar: Yá Bahá�’u�’l-Abhá!

Naquele instante não existia qualquer resquício de dúvida.A Caravana de Badasht era uma realidade e aqueles jovensestavam começando a escrevê-la.

Logo após, uma pilha de papéis que estava sobre a mesa decentro na sala foi distribuída entre os presentes. Nelesestavam contidas algumas mensagens de apoio, provindas dejovens e outros bahá�’ís pelo país:

�“Estimados Amigos Bahá�’ís. É com profunda admiração ealegria que me dirijo a cada um dos integrantes destafantástica Caravana de Badasht que, com propósitos eobjetivos tão nobres, foi organizada por amigos tão queridoscom a aprovação de Bahá�’u�’lláh. De coração vos parabenizo porsuas iniciativas que certamente gerarão frutos eternos! Queos anjos vos acompanhem durante cada dia desta jornada,guiando-os àquelas almas cujos corações já foram preparadospor Bahá�’u�’lláh e fortificando cada um de vocês no Serviço àCausa de Deus. Muitas orações de ensino, unidade, ajuda edesprendimento serão feitas por mim afim de que todos osobjetivos propostos sejam atingidos. Muita Força e Muita Luz!�”

�“Impolutos cavalheiros e damas que se levantaram para esteaugusto feito! Deus os abençoe, por levarem alegria eesperança a tantos jovens, que estão apenas esperando umsentido para suas vidas! Que sejam guiados e possam semearpaz e unidade em muitos corações!�”

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�“Queridos Amigos da Caravana de Badasht. Desejo a vocêsinspiração divina neste serviço, completa dedicação e totaldesprendimento dos resultados. Estarei orando por vocês nossantuários a partir do dia 9 de janeiro. Deus abençoe a todos.�”

�“Queridíssimos amigos, gostaria de parabenizá-los pelainiciativa. Estou muito feliz em saber que os jovens do sulestão podendo compartilhar suas experiências e ajudar odesenvolvimento do Nordeste do nosso país abençoado.Estejam certos que a Caravana de Badasht será incluída nasminhas orações!�”

�“Aqui quem fala é uma brasileira atualmente residente noChile. Estou acompanhando vocês desde sempre e saibam queem reuniões bahá�’ís, conversas, ou na internet, a notícia destaCaravana já chegou onde os quatro (ou mais ventos) podemalcançar! Em espirito estarei com vocês!�”

�“Com muita alegria eu tenho recebido as mensagens sobrea Caravana de Badasht. Sou do Paraguai e estou feliz por umainiciativa como essa. Já que infelizmente eu não podereiparticipar, tenho contribuído traduzindo as mensagens aoespanhol e enviando aos amigos da Rede de Informações Bahá�’ísdo Movimento Bahá�’í da Juventude na América Latina. Daqui aalguns dias estarei em Haifa e estarei orando no ponto maissagrado da face da Terra para que Bahá�’u�’lláh confira êxito evitória a essa Caravana que combina audácia, coragem, serviçoe amor. Força ao Movimento Bahá�’í da Juventude no Brasil!�”

�“Não sei nem como começar! Essa é a oportunidade maislinda que recebi e me dói muito não poder aceitá-la devido àdistância física. Estou um pouquinho longe de vocês (França).O Brasil é o país dos meus sonhos, não somente por seuesplendor como também por sua gente e a diversidade tãofabulosa que existe. Assim, quando recebi a comunicaçãofalando dos planos da Caravana fiquei muito feliz e estou certade que será uma experiência única e maravilhosa, e que osafortunados que tiverem a oportunidade de participar serãorecompensados. Minhas orações estão com vocês, envio-lhestoda força e garra que tenho em mim.�”

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�“Queridos irmãos de Fé! Não tenho palavras para descrevera minha vontade de viajar pela senda do Senhor com estamaravilhosa caravana que esta se formando. Quando li amensagem pela primeira vez fiquei num estado de forteemoção. Imaginei a mim mesmo nesta Caravana e me vi emmeio aos heróis de Deus. Talvez isso tenha influência do livroRompedores da Alvorada que estou terminando de ler. Palavrasnão tenho para tentar dizer o quanto estou triste por não poderir. Vários são os fatores, desde a faculdade, aulas, provas eapresentações de trabalhos exatamente na época da Caravanaaté o mais grave que é a impossibilidade financeira.�”

�“Que a Abençoada Perfeição venha encher de glória ocaminho escolhido. Que o amor pela Amada Causa transbordena estrada do ensino. Que o sacrifício possa trazer vitórias.Que na jornada desse trabalho busquem corações preparados.O Mestre lá do alto derramará bênçãos sobre os seus serviços.Humildade e constância, servitude e paciência. Gritem dedentro do coração: Yá Bahá�’u�’l-Abhá! A vitória virá com certeza!�”

�“Deus bem sabe da vontade de estar aí com vocês. E eu,somente, posso mensurar a saudade que sinto de fazer o quevocês estão prestes a realizar! Ah! Que saudade do cheiro dosfolhetos, do cheiro da terra e do mato, e das pessoas simplesa quem ensinava. Quando saudade se funde com resignação,surge a obediência. E nesse sentimento de obediência a Deusé que fico por aqui, conformado ao fato de estar realizandoatividades bem menos importantes às que vocês realizarãonos próximos dias. Minha oração será, então, para queaproveitem ao máximo a maravilhosa oportunidade de serviçoque Deus, por misericórdia, ora lhes oferece.�”

�“Coragem, paz, paciência, amor, fé, iluminação,determinação e confiança! Cumpram essa linda missão!�”

Os jovens permaneceram reunidos durante toda a manhã.Depois dos relatos individuais e da leitura das mensagens,estudaram ainda a estória da Conferência de Badasht. À tarde,os aspectos práticos do projeto foram o tema central dasconsultas. Consultas? Não foi exatamente o que aconteceu.

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De todos os requisitos necessários aos que consultam, aquelesjovens cheios de vida só tinham o amor. Não estavam tranqüilos,tão pouco pacientes. Às vezes suas opiniões se chocavam, masnão lembravam de �‘Abdu�’l-Bahá dizendo que é nesse momentoque surge a centelha da verdade. E também não tinham muitaexperiência com aqueles termos como �“coordenação�”,�“secundar moção�”, �“chuva de idéias�”, etc. Era fascinante, aomesmo tempo que conflitante, percebê-los com energia avibrar pela vontade de servir, mas devido à falta de maiorcapacitação, se acabrunharem em uma longa tarde burocrática�– não consultiva.

Muitas coisas ao final foram decididas. Elegeram ComitêsInternos para tratar dos assuntos relacionados à logística delimpeza e alimentação, às reuniões diárias de aprofundamento,ao contato com a mídia e ao trabalho de ensino na rua e atravésdas reuniões de amigos. Quatro duplas trabalhando para que oprojeto caminhasse através de seus objetivos. Pelo menos essaera a intenção. Os dias a seguir, no entanto, demonstrariamque organização e disciplina são qualidades fundamentais aoserviço, e que seriam elas, duas das principais debilidades dogrupo. Dizem que Deus testa seus servos naquilo em que elessão mais fracos. E entre tantas fraquezas, aquelas os levariampor caminhos de grande dificuldade. Dia após dia, �“consultas�”como aquelas teriam de ser novamente abertas para corrigiruma dezena de falhas que insistentemente surgiam sem parar.Às vezes, quando estavam prestes a começar a consultar,Sobhan em seu humor refinado perguntava: �“vamos seguir opadrão de consulta da Caravana ou o padrão bahá�’í?�” Algunsriam, embora soubessem que atrás da brincadeira havia umquestionamento muito certo e plausível. E assim começavam,achando que seguiriam consultando de forma correta, mas logose viam imersos nas mesmas debilidades. Alguns se exaltavam,outros permaneciam firmes em suas próprias opiniões,enquanto ainda outros preferiam anular sua participação.Alguém esqueceu de fazer algo, o horário da manhã não foicumprido, o pessoal da louça não trabalhou, avisaram em cima

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da hora para organizar a reunião de amigos e muitos outrosseriam, dia após dia, os temas principais de sua pauta.

Surpreendente! Perceber que a falta de maior capacitaçãopor parte de um grupo pôde construir tão perfeitamente umcaminho de provas. Eles erraram e sofreram muito por contadisso. Mas enfim começaram a aprender. Aos poucos, algunsmais rapidamente, outros nem tanto, começaram a crescerpela experiência instrutora do serviço.

Entre as diversas facetas dessa capacitação que lhesfaltava, o ensino direto era a mais marcante. Entre todos ospresentes, apenas três ou quatro jovens já haviam feito essetipo de ensino ou participado de uma capacitação específicapara tal. Curiosamente, a principal atividade do projeto eraensinar a Fé diretamente. Sem rodeios! Sem firulas! Abordaralguém na rua, olhar em seus olhos, estabelecer uma conexãobem mais antiga do que a internet, a de coração a coração, efinalmente falar que Bahá�’u�’lláh existe e trouxe a todos apromessa de um mundo melhor. E então como seria? Se osdias posteriores trariam provações, é verdade também queas bênçãos e confirmações teriam de ser proporcionais. Maisuma vez, o futuro era para eles desconhecido, mas se agarravamàs palavras dessas orações e se lançavam para ensinar:

�“Em verdade, Tu ajudaste Teus servos no passado,embora fossem as mais fracas de Tuas criaturas, os maishumildes de Teus servos e os mais insignificantes dos quevivem sobre a terra, mas, através de Tua sanção e poder,vieram a preceder aos mais gloriosos dentre Teu povo eaos mais nobres de Tua humanidade.�” 6

�“Sou uma ave de asas partidas, cujo vôo é muito lento...estou só solitário e humilde. Não há para mim outrosustentáculo senão Tu. Confirma-me em Teu serviço, ajuda-me com as hostes de Teus anjos, faze-me vitorioso napregação de Tua palavra e dá-me o poder de expressar Tuasabedoria entre Tuas criaturas. Em verdade, Tu és oGuardião dos pobres e o Defensor dos pequenos e,verdadeiramente, é o Poderoso, o Grande, o Absoluto!�” 7

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Naquele mesmo dia, à noite, uma reunião entre osparticipantes da Caravana de Badasht e os membros daComunidade Bahá�’í do Recife foi realizada, de acordo com oplanejamento de atividades. A reunião tinha como objetivoinformar a comunidade dos propósitos do projeto e ouvi-la falarde seus anseios e expectativas para toda aquelamovimentação, colher sugestões quanto ao trabalho de ensino,e se possível, levantar outros bahá�’ís para auxiliar as atividades.

As palavras de Sina, pai de Sobhan e Anissa, ao final dareunião, soavam claras e profundas aos ouvidos dos jovens:

�– Hoje vocês estão iniciando um projeto que vai entrar paraa história. Mas não devem pensar nisso agora. Sua principalmeta não é fazer esse projeto entrar para a história, e simservir e ensinar. Por isso, concentrem sua atenção nesseobjetivo, e os resultados serão apenas a conseqüência de seusesforços. Enquanto caminharem avante, lembrem que ensinaré uma trilha de provação e sacrifício. Não esperem apenastranqüilidade e calmaria pois certamente os dias de ensinoserão repletos de testes.

Com a alegria daquela reunião, a noite teve seu fim. Emboratanto houvesse sido dito a respeito das dificuldades queapareceriam durante o projeto, nenhum deles se preocupavacom isso. A cidade do Recife os acolhia, seu mar que lembravaDeus, mas também seus mangues repletos de lodo. Quiçá,daquele lodaçal, pudessem todos eles renascer, assim comoum Lótus �– belo, sublime e divino.

Uma comunidade a vibrar

De todos os jovens que participaram da Caravana deBadasht, seis eram de Recife. Matematicamente, o númerorepresenta quase um terço dos participantes. Isso não foipor acaso. Algo estava acontecendo no âmago da comunidade

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local que agora era catalisado pela chegada da Caravana. E olevantamento daqueles seis jovens tornava evidente esse fato.

A alegria da noite passada não seria meramente passageira.Na verdade, durante todos os sete dias da permanência dosjovens em Recife, a comunidade tratou de acolhê-los comofilhos há muito longe de casa. Sim, filhos. O que imaginar aover Sima, mãe de Sobhan e Anissa, e Farideh, mãe de Sara,Setareh e Surush (e também da pequenina Soraia), cuidandodiligentemente da alimentação de todos? Invariavelmente,elas foram mães cuidadosas e amorosas. O que imaginar aopercebê-las pacientemente atravessar os dias de bagunça emsuas residências promovida por todos eles? Invariavelmente,elas foram mães generosas e complacentes. E o faziam comgrande alegria. Ser recebido bem na casa de outra pessoa éalgo muito bom. Perfeito, porém, é quando se percebe que essapessoa tem verdadeira felicidade em oferecer suahospitalidade. Não somente de Sima e Farideh, mas de toda acomunidade, os jovens percebiam essa felicidade fluirintensamente. E eram gratos por isso.

Mas o sentimento de gratidão era recíproco. A Caravanaescolhera Recife, e isso trazia à comunidade o sentimento deestar sendo abençoada e confirmada. Sabia que a movimentaçãodo ensino atrairia muitos anjos ao redor da cidade e que poderiausá-los para impulsionar ainda mais as atividades locais eperseguir seus objetivos. Esperava ver seus seis jovenstransformados e ainda mais aptos a levar adiante asresponsabilidades que recaiam sobre seus fortes ombros.Desejava ver a novidade entusiasmando outros bahá�’ís econgregando seus interesses em torno do serviço. Quem sabe,o espírito trazido pela Caravana pudesse somar ao que já havialatente na comunidade do Recife, e fazê-la avançar para setornar palco de grandes acontecimentos em prol da Causa deBahá�’u�’lláh, assim como fora em tempos passados.

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CARAVANA DE BADASHT

Boa Viagem

Uma alegria entusiasta tomava todos os jovens da Caravanade Badasht. Entre seus motivos, o principal deles era o fatode haver sido maravilhoso o dia anterior, o primeiro consagradoao ensino. �“Maravilhoso�” talvez não seja a palavra mais corretapara qualificar aquele dia, uma vez que o ensino é muito maisdo que isso também. Mas a primeira vez de todas as coisascarrega consigo uma magia muito peculiar, e não haveria deser diferente dentro da Caravana, especialmente porque paramuitos dos jovens também era a primeira vez na vida.

Ensinar! Esse é um verbo muito especial. Fala de instrução,de educação. Fala de uma das qualidades mais evidentes deDeus a qual está presente em Sua Manifestação. Ele é oEducador de todos os homens. Ensina-lhes aquilo que poderáguiá-los ao caminho da prosperidade e conseqüente felicidade.E embora, além de Educador, também seja O Onipotente, comoafirmam textos sagrados sem fim, não desejou ordenar quetodos adentrassem nessa escola de instrução divina e dividiuessa responsabilidade com cada um daqueles que uma vez Otenham reconhecido. E fez isso por que, além de Educador eOnipotente, Ele também é chamado de O Misericordioso.

Ao ato do ensino, pensando na felicidade de Seus servos,conferiu Ele uma distinção que nenhum outro ato possui. E assimdeterminou:

�“Auxiliar-Me é ensinar Minha Causa. É este um tema doqual Epístolas inteiras se encarregam. Este é ummandamento inalterável de Deus, eterno no passado eeterno no futuro.�” 8

Algo tão especial não é assim por acaso. Às vezes, quando opensamento se dirige ao ensino, a mente logo cria uma imagemestereotipada de alguém falando (e algumas vezes pregandofervorosamente) de sua religião para outra, com ou sem aintenção de convertê-la. E isso se deve ao fato de que a imagemde religião tornou-se nos dias atuais um sinônimo de

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proselitismo declarado. Contudo, o ensino ao qual Bahá�’u�’lláhpassou sua vida inteira exortando possui características muitodiferentes dessa imagem gerada mentalmente. A começar peloamor. Amor por Deus e a quem se está ensinando, que deveser o motivo do ensino,. Não importa dizer �“eu amo�”, mas éessencial sentir o coração arder com esse amor a tal pontoque não exista outra maneira de abrandá-lo senão abrir a bocae ensinar. Outra característica distintiva, longe do comumparadigma não questionado, é a lembrança do objetivo final.Longe, muito longe da verdadeira meta é a simples conversãode mais um crente para dentro da Fé. Antes, ensina-se paraque um dia esse planeta azul ganhe tons das cores celestiais ealcance sua paz e unidade. O pensamento se concentra na almaque recebe a mensagem enquanto o coração se expande à todahumanidade. É uma questão de resgate dos ideais e sonhos amuito acalentados pelo mundo que a cada dia torna-se maisdescrente de poder alcança-lo. Quando se ensina,silenciosamente se oferece a chance de renascer a esperançanos corações dos homens. Finalmente, e ainda distante do sensocomum tomado como verdadeiro, ensinar é aprender. E há osque afirmam que aprenderam muito mais do que se ensina. Enão é de se duvidar, acaso acreditemos que essa oportunidadeé oferecida como sinal da misericórdia de Deus. Obviamentenos trará benefícios. A condição em que o instrutor se encontraquando compartilha a mensagem é tão sublime, que permite aDeus tocar em seu coração de forma poderosa, purificando-odas coisas ruins que possui. Coisas que muitas vezes não temnenhuma ligação direta com o trabalho de ensino. É por issoque muitas pessoas sentem suas vidas inteirasmisteriosamente transformadas após ensinarem. Os jovensviajantes da Caravana de Badasht, naquele primeiro dia deensino, vivenciaram essas experiências. E voltariam a vivenciardia após dia.

Assim, quando Nilanna e Vinícius se uniram ao grupo sentiramde imediato toda essa energia que emanava de seus novoscompanheiros. Eles chegaram no horário de folga determinado

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pela Caravana e parte dos jovens estavam na praia. Como bonspraianos, arrumaram-se imediatamente (isso se já nãochegaram prontos) e foram para Boa Viagem. Festa na chegadados dois! Alguns já se conheciam, outros não, mas pareciamamigos quarentões que não se encontram a 20 anos. Os doisficaram impressionados com a recepção tão calorosa e alegre,pedindo em seguida que contassem um pouco como estava sendoo ensino, ao que seguiram relatando:

�“Eu e Sobhan ficamos na praia. Foi uma experiência incrível.Até aquele dia eu nunca havia vivenciado algo assim: abordaras pessoas na rua e falar sobre essa Causa tão amada. E euconfesso que antes de sair de casa, depois da reunião deorações, sentia-me pequena e insegura e não tinha noção doquanto eu era capaz. Mas, ao final do ensino e depois de umlongo abraço no meu primo �‘Sopa�’, falei a ele: �‘nossa, como euaprendi!�’ Eu saltitava de alegria na praia enquanto essepensamento me dominava: aprendi mais do que ensinei! Outracoisa que me chamou a atenção, foi como os recifences sãogentis e amigáveis, em sua maioria dispostos a ouvir amensagem da Fé. Meus olhos brilhavam e aquela energia semtamanho vibrava em mim.�”

�“Enfim o meu primeiro dia de ensino chegara. Orações eaprofundamento haviam sido feitos mas eu ainda me sentiadespreparada. Por alguns instantes me encontrei sozinha emum quarto pela necessidade de aflorar uma tranqüilidadedentro de mim. Acalmei-me ao lembrar que minha companheiraseria a Hilana, uma jovem que sem perceber inspiraserenidade.

Durante o ensino permaneci a maior parte do tempo naposição de ouvinte e aprendiz. Hilana me exortava a volver-me para o Reino enquanto ela falava. Tudo me parecia muitonovo e fantástico. Estávamos na pracinha de Boa Viagem poronde eu já passara incontáveis vezes. Porém, nunca havia pisadoem seu chão com pés tão convictos e o lugar me pareceu tãoideal. Eu sorria, apenas sorria. Meu espírito sorria, apenas

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sorria. Talvez eu tenha me transparecido muito simpáticanaquele dia!

Por nenhum momento me senti sozinha, pelo contrário asensação foi de constante companhia. Gostaria de ver com meuspróprios olhos os anjos que eu sabia estarem circundando todaaquela atmosfera da cidade. Aqueles que estavam segurandoa mão da Bianca, os que sussurravam ao pé do ouvido do André,os que abraçavam o espírito do Turadj e aqueles que estavamprostrados a esperar o meu sinal. Imaginei quantas pessoasestavam recebendo a Mensagem de Bahá�’u�’lláhsimultaneamente, quantos �‘bambus ocos�’ Deus plantara nocoração do Recife para servirem de canal entre o amor deDeus e os homens. E minha mais sincera esperança era de queo eco de nossas vozes perdurasse por toda eternidade naquelesagrado lugar e atingisse desde já as outras �‘cidades eleitas�’.�”

�“Mãos a obra! Estávamos a ensinar em Boa Viagem. Quepraia! Fomos Setareh e eu. Adentramos a areia e custamosalguns minutos até abordar a primeira pessoa. Setareh contou-me que nunca havia ensinado diretamente a Fé, �‘na rua�’. Eu nãoensinava assim fazia mais de 2 ou 3 anos. Mas não há segredo;fomos até duas senhoras que pareciam receptivas e, imagine,a primeira com quem falamos já havia escutado falar da Fé.Ela era de Manaus. Mostrou-se bem interessada e perguntouo que significavam nossos nomes. Nós a convidamos para areunião de amigos da mesma noite e nos despedimos,recebendo calorosa retribuição. Continuamos a conhecerpessoas, uma após a outra, e me empolguei. Detalhe: No começo,Seta queria que eu falasse e deu a entender que não tinhafacilidade para isso. Pois bem, da terceira pessoa em diante,só ela falava praticamente!�”

�“A manhã do segundo dia da Caravana era muito especialpara mim. Com ela acordei para me encontrar com o ensinodireto depois de quatro anos e por isso estava muito ansioso.Medo era outro sentimento que predominava em mim, e euquase não conseguia centrar meus pensamentos na certeza deque os anjos me acompanhariam nesse encontro. Duas horas

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depois estávamos todos presentes em nossa reunião deorações e aprofundamento. Oramos, oramos, oramos, e eu nãoconseguia me libertar da ansiedade e do medo. Aquela sensaçãome tomava de uma forma que preferi retirar-me para beberum pouco d�’água.

Quando voltei, o Comitê responsável pelos trabalhos deensino anunciava as duplas: �‘André, você vai com o Tap.�’ Tapera o apelido do apelido de um jovem chamado Breno �– Tapioca.Confesso que fiquei um pouco desapontado com a seleção, poiscuriosamente, Breno não era bahá�’í. Pelo menos não declarado,mas insistia em participar das atividades junto com seusamigos bahá�’ís do Recife e agora junto aos seus novos amigosbahá�’ís de outros cantos do país.

Enfim, logo se formou a primeira remessa de soldadosespirituais que partiriam do quartel general (a residência deAnissa) para o campo de batalha (a praia de Boa Viagem). Cincojovens entraram no elevador quando ele parou no 15º Andar.Eu e Breno, Tahereh, Sobhan e Setareh. Três andares abaixo,o elevador parou outra vez e uma senhora adentrou calada eficou olhando os números no alto da porta brilharemdecrescentemente. Como ela era muito baixinha, todos nósconseguíamos trocar olhares por cima dela, o que propiciavauma comunicação misteriosa. Não tenho dúvidas de que algunspensamentos evidenciavam a questão �‘será? Será que devemosensinar a ela?�’ Pelo menos em minha cabeça isso semanifestava. Para nossa completa surpresa, essa senhora olhoumais para cima, exatamente para o teto do elevador, e disse:�‘ai meu Jesus Cristo!�’ Ninguém falou nada, mas era possívelver a excitação dos olhares atônitos. Então, ao chegarmos aotérreo, deixei que todos saíssem primeiro, inclusive a servade Sua Santidade Jesus Cristo. Os cavaleiros e amazonas iama passos largos em direção ao portão de saída do prédio, maseu preferi tocar no ombro dela e perguntar-lhe: �‘acaso possolhe falar por cinco minutos?�’ Tanto a senhora como os outrosquatro amigos olharam em minha direção com ar de surpresos.Ela demorou para entender a pergunta, mas logo me indagou

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sobre que assunto era, ao que respondi que desejava falar-lhede Bahá�’u�’lláh. Dessa vez, só a cristã ficou surpresa. Meusamigos sorriram e entenderam �– o ensino já tinha começado!Todos se foram, menos Breno que me acompanhava �–atentamente. No final, dona Luzia, batista convicta, abraçou-nos e prometeu rezar para que Jesus abençoasse a nós dois ea todos os outros jovens que estavam fazendo aquele belotrabalho, assim como eu havia lhe contado. Ela se tornou aprimeira pessoa a receber a mensagem através da Caravana eeu estava muito feliz com isso. Agradeci e saímos para a praiafinalmente.

Disse a Breno que, se ele quisesse falar algo durante asminhas explanações, poderia fazê-lo sem problema algum.Encontramos muitas pessoas na praia. Uma mãe que tinha suaatenção dividida entre nós e o filho que brincava na areia. Doismotoristas que estavam matando trabalho exatamente naquelahora. Uma carregadora de guarda-sóis que tinha uma espéciede doença cutânea por todo corpo. (Fizemos orações sentadosna areia junto com ela). Um senhor com sua filha, turistas deSão Paulo. Um adepto da LBV e, finalmente, um senhor que,estranhamente, abordou-nos enquanto voltávamos do ensinopara casa: �‘hei! Vocês estão aqui para falar de Jesus, não é?�’Olhamos assustados em sua direção, mas disse em seguida:�‘não, estamos aqui para falar de Bahá�’u�’lláh�’. Ele, por sua vez,disse que sabia disso, mas o filho dele ainda não. Então apontoupara um dos quiosques da praia e pediu que fôssemos até láfalar a ele. Nada daquilo seguia uma lógica natural e racional,mas nem sequer questionávamos o fato. Apenas andamos atéonde estava o filho daquele senhor completamentedesconhecido, apresentamo-nos e começamos a falar. O filhodele mal nos olhava. Sequer balbuciava ou emitia algum sinalque indicasse estar ele escutando o que falávamos. Não vendopor onde continuar, achei que era melhor nos despedirmos delee assim fizemos. Porém, um rapaz, carioca, que estava tomandosossegadamente sua água de côco, quando percebeu que íamosembora, fez uma pergunta sobre a Fé. E pronto. Seguimos

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falando a ele por mais alguns minutos enquanto eledemonstrava muito interesse pelos ensinamentos. Penseihaver descoberto que os caminhos de Deus são realmentetortos, porém exatos!

Mas a maior emoção do dia viria a seguir. Eu sentia meucoração agradecer a Bahá�’u�’lláh por tudo o que acontecera noensino, por ter sido um reencontro tão agradável e por haverse dissipado toda ansiedade e medo. Caminhava e sentiaconfiança absoluta em Deus. Pensei em seus anjos, que estavamcomigo naquele momento, e deparei-me com o pensamento deque um deles caminhava a meu lado. Breno. Esse jovem, então,começou a contar-me de suas convicções religiosas, afinal eleera espírita e tinha muita firmeza em sua posição. No entanto,confessou-me que ajudar-nos em nossos trabalhos era comoter certeza de que estaria dessa forma ajudando seu próximo,assim como Jesus Cristo ensinou a todos. E por isso nãoimportava o que estávamos falando. Para ele, importava ajudaras pessoas e servi-las. Era suficiente. Terminou ele dizendoque sentia seu coração atraído por Bahá�’u�’lláh. Se ele sentiaaquilo, o que poderia eu dizer de meu coração? Agora seconfirmava a certeza de que ele era um anjo enviado porBahá�’u�’lláh. Um entre as hostes que me cercavam. E sabia queele estava dando um verdadeiro exemplo daquilo que tantasvezes repetíamos no ensino: Unidade! Unidade! Unidade! Dissea ele essas coisas todas e nos abraçamos com muito amor. Eessa é uma lembrança da qual nunca poderei esquecer. Nunca!�”

Ilha do Leite

O batalhão espiritual entrou no ônibus. Naquele momentonão se pareciam com soldados, é verdade, mas estavam indorealizar sua missão nas imediações da sede bahá�’í do Recife.Os passageiros que lá estavam, olharam todos para trás,enquanto a tropa em completa algazarra entrava pela porta.

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Estavam todos presentes, assim como Otávio, que haviachegado na sexta à noite, terceiro dia do projeto, e Jorge,que, para surpresa de muitos, juntara-se ao grupo no diaanterior.

Jorge é natural da Costa Rica, América Central, mas veiode Natal, onde mora a alguns anos como pioneiro. Ele mesmoconta sua saga particular até a sua apresentação à legiãoviajante:

�“Tudo estava certo para que no dia 31 de dezembro estejovem viajasse para Costa Rica, seu país de origem, onde iriapassar suas férias junto aos familiares e velhos amigos.Passagem comprada inclusive! Porém, quando entramos na ArcaCarmesim da Causa de Bahá�’u�’lláh, cada vez mais nos tornamosconscientes de que não somos mais do que simples folhasmovidas pelo Seu sopro divino e temos a certeza de que fomoscriados nesta era para servir a Deus e adorá-Lo. Dia 29 dedezembro, poucos minutos depois da meia noite, um telefonemabreve e uma viagem cancelada. Havia sido um ano difícil longede casa. Afinal precisava descansar, abraçar novamente meuspais e irmãos. Enfim, estar em casa. Na caixa de correioeletrônico, e-mails sobre uma tal de �‘Caravana de Badasht�’. Odesejo de me alistar neste exercito de Bahá�’u�’lláh não foiimediato. Aliás, para ser honesto, a primeira vez que li ignoreio chamado. Coloquei �– como costumamos fazer quando nossaconfiança em Bahá�’u�’lláh não anda muito bem �– uma série deobstáculos. Aos poucos, comecei a perceber a oportunidadeque Bahá�’u�’lláh colocava na minha frente. Entendi que as coisasnão acontecem por acaso e, graças ao estímulo de verdadeirosamigos, decidi me levantar para fazer parte deste grupo dejovens com o mesmo desafio. Na verdade, naquela semana eupercebi que devia fazer parte desta caravana, e no dia 6 dejaneiro eu estava pronto para me unir ao grupo.�”

Então, naquele que era o quinto dia de atividades, compunhama Caravana de Badasht 16 jovens. Aquele ônibus não seria o mesmodurante os trinta minutos até que descessem em seu ponto.

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A sede bahá�’í ficava em um bairro curiosamente chamadode Ilha do Leite. Por sugestão da comunidade local, o projetorealizaria suas atividades durante dois dias naquele bairro,uma vez que era importante tornar a sede mais conhecida emovimentada com reuniões e eventos. Havia, no entanto, umpequeno problema. Se em Boa Viagem o ensino era feitoabordando as pessoas diretamente na rua, assumindo comoverdadeiro o fato de que essas pessoas estavam transitandoà vontade e com tempo para ouvir e conversar; na Ilha do Leite,bairro residencial, o ensino teria de ser feito de �“porta-em-porta�”. Caras feias. É assim que a maioria deles reagiu, senãoespontaneamente, por dentro demonstravam essa impressão.Difícil não vincular, mais uma vez com o horrível proselitismo,a imagem de bater palmas no portão de uma casa, fazer alguématender a contra gosto para perder seu tempo ouvindo alguémfalar de uma tal de Fé Bahá�’í, perceber o sorriso amarelo domorador e receber no final da abordagem um �“desculpe, masjá tenho a minha religião�” ou qualquer outra indicação de quesua tentativa havia sido infeliz e nada bem vinda. Qualquer umpossuía total liberdade para simplesmente não sair para ensinardaquela forma, mas havia um pacto silencioso entre o grupo.Todos que lá estavam tinham se levantado para servir e nãopoderiam agora voltar atrás. Como pular de pára-quedas. Umavez no ar, só se alcança o final quando se chega ao chão. E ochão deles ainda estava longe de chegar.

Esses pequenos detalhes ofereciam um sabor especial aoprojeto. Com eles, a pureza de intenção de cada jovem eratestada, e assim todos se inclinavam um pouco mais à influênciatransformadora de Bahá�’u�’lláh. Porém, naquele início de tarde,durante a sessão de aprofundamento, foi o Báb quem seencarregou da transformação. O clima era tenso por conta doensino de �“porta-em-porta�” mas também pelo fato de estarematrasados após alguns terem estendido em uma hora seuperíodo de folga pela manhã. Um dos jovens tomou a palavralogo após as orações alertando o grupo quanto à disciplina. Maistensão. Um outro interviu tentando acalmar os ânimos de todos

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que já estavam alterados. Prestes a começar uma discussãoque acabaria por solapar o espírito de servitude,imediatamente os responsáveis pelo aprofundamento pedirama palavra e começaram a sessão. Foi quando o Báb apareceudizendo essas palavras:

�“Ó Meus bem amados amigos! Sois os portadores doNome de Deus neste Dia. Fostes escolhidos como osrepositórios se Seu mistério. Incumbe a cada um de vósmanifestar os atributos de Deus e exemplificar por vossasações e palavras os sinais de Sua retidão, Seu poder e Suaglória. Os próprios membros de vossos corpos devemtestemunhar a sublimidade de vosso propósito, aintegridade de vossa vida, a realidade de vossa fé, o caráterelevado de vossa devoção. Pois em verdade digo, este é oDia de que Deus falou em Seu Livro: �‘nesse Dia haveremosde por um selo sobre seus lábios; no entanto, suas mãosNos falarão e seus pés darão testemunho daquilo quetiverem feito.�’ Ponderai as palavras de Jesus aos Seusdiscípulos quando os mandou sair a fim de propagar a Causade Deus. Em palavras como estas Ele os exortou a selevantar e cumprir sua missão: �‘sois assim mesmo como ofogo que na escuridão da noite se acendeu no cume damontanha. Deixai vossa luz brilhar ante os olhos dos homens.Tal deve ser a pureza de vosso caráter e o grau de vossarenúncia que os povos da terra possam, por vossointermédio, reconhecer o Pai que está no céu. Vós que soisSeus filhos espirituais deveis por vossas ações exemplificarSuas virtudes e dar testemunho de Sua glória. Sois o salda terra, mas se o sal tiver perdido seu sabor, com que sehaverá de salgá-la? O grau de vosso desprendimento deveser tal que em qualquer cidade que entreis para proclamare ensinar a Causa de Deus, de modo algum deveis esperaralimento ou recompensa de seu povo. Não, ao partirdes dessacidade, deveríeis sacudir o pó de vossos pés. Assim comonela entrastes, puros e sem mácula, também deveis partir.Pois em verdade digo, o Pai celestial está sempre convosco

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e vos vigia. Se Lhe fordes fiéis, ele seguramente entregaráem vossas mãos todos os tesouros da Terra e vos exaltaráacima de todos os governantes e reis do mundo�’. Ó MinhasLetras! Em verdade digo, imensamente elevado é este Diaacima dos dias dos Apóstolos de antanho. Não, imensurávele a diferença! Sois as testemunhas do alvorecer doprometido Dia de Deus. Sois os que participam do cálicemístico de Sua Revelação. Preparai-vos para fazerdes omáximo esforço e atendei às palavras de Deus assim comosão reveladas em Seu Livro: �‘eis, o Senhor teu Deus já veioe com Ele está a companhia de Seus anjos que estãodispostos à Sua vanguarda!�’ Purificai vossos corações dosdesejos terrenos e deixai que as virtudes angelicais sejamvosso adorno. Esforçai-vos para que pelos vossos atos possaisdar testemunho estas palavras de Deus, e acautelai-vospara que, por vos haverdes �‘voltado para trás�’, Ele não �‘vostroque por um outro povo�’ que �‘vos não será similar�’ e quede vós haverá de tirar o Reino de Deus. Os dias em que sejulgava suficiente a vã adoração chegaram ao fim. Veio otempo em que nada senão o mais puro motivo, apoiado porações de imaculada pureza, pode ascender ao trono doAltíssimo e lhe ser aceitável. �‘A boa palavra ascende a Ele,e a ação reta fará com que seja exaltada diante Dele.�’ Soisos humildes, de quem Deus assim falou em Seu Livro: �‘edesejamos mostrar favor àqueles que foram rebaixadosna Terra, e fazê-los dirigentes espirituais entre os homense Nossos herdeiros.�’ Fostes chamados a está posição;havereis de atingi-la somente se vos levantardes paradesprezar todo desejo terreno e envidar vossos esforçospara vos tornardes aqueles �‘honrados servos Seus que nãofalam até que ele tenha falado e fazem o que ele ordena.�’Sois as primeiras Letras que foram geradas do PontoPrimaz, os primeiros Nascentes que manaram da Fontedesta Revelação. Suplicai ao Senhor vosso Deus que nãopermita que qualquer laço terreno, afeto mundano ouocupação efêmera embacie a pureza ou torne amarga a

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doçura dessa graça que flui através de vós. Estou vospreparando para ao advento de um Dia grandioso. Envidaios máximos esforços para que no mundo vindouro Eu, queestou vos instruindo agora, possa, ante a sede damisericórdia de Deus, regozijar-me por vossas ações e meglorificar de vossas vitórias. O segredo do Dia que há devir está oculto agora. Não pode ser nem divulgado nemavaliado. A criança recém nascida nesse Dia ultrapassa omais sábio e venerável dos homens de agora, e os maishumildes e iletrados desse período excederão emcompreensão os mais eruditos e consumados eclesiásticosdesta era. Dispersai-vos por toda parte desse país e, compés firmes e corações santificados, preparai o caminho paraSua vinda. Não olheis vossas fraquezas e debilidades;contemplai o poder invencível do Senhor, vosso Deus, oOnipotente. Não fez Ele, em tempos idos, que Abraão,apesar de Sua aparente fraqueza, triunfasse sobre asforças de Nimrod? Não capacitou Moisés, cujo bastão eraSeu único companheiro a vencer o faraó e suas hostes? Nãoestabeleceu ele a ascendência de Jesus, pobre e rebaixadoque era aos olhos dos homens, sobre as forças reunidas dopovo judaico? Não sujeitou as tribos bárbaras e militantesda Arábia à santa e transformadora disciplina de Maomé,Seu Profeta? Levantai-vos em Seu Nome, Nele ponde vossainteira confiança e tende certeza da vitória final.�” 9

Essas foram as palavras lidas naquele momento, as quaisforam dirigidas pelo Báb às Letras dos Viventes, aquele grupode crentes que se tornaram Seus primeiros servos, econsequentemente, os primeiros a servir e preparar o caminhoà Causa que agora era defendida pelos os jovens da Caravanade Badasht. Embora sem nenhum ato de heroísmo a contabilizarem suas estórias de vida, mesmo sem a distinta posição queaquele grupo de almas na vanguarda do estabelecimento doreino de Deus na Terra possuía, todos eles se incendiaramcom as palavras ouvidas. Não havia mais tensão e os olhareseram de compreensão, amor e êxtase. Levantaram-se todos e

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se abraçaram em círculo. Ombro a ombro. Alma à alma. Emovimentando-se vagarosamente, começaram a entoar o NomeSupremo. �“Levantai-vos em Seu Nome, Nele ponde vossainteira confiança e tende certeza da vitória final.�” Naquelemesmo ambiente, uma mão se estendeu ao centro, recebendosobre ela as mãos de todos os outros. Em uníssono epoderosamente bradaram: Yá Bahá�’u�’l-Abhá!. E pronto. Tudojá estava feito. Só restava sair para ensinar e dartestemunho. As estórias que seguem oferecem uma pequenaparcela do que aconteceu a eles na Ilha do Leite:

�“O ensino nas proximidades da Sede Bahá�’í foi realmentegratificante e deu muita força ao grupo. Parece ter sido umpresente de Bahá�’u�’lláh. Confiança, estímulo e poder, foramofertados à Caravana a fim de que ela enfrentasse asprovações que a esperavam. Na primeira tarde de ensino, saícom a Leilah. Era um domingo e iríamos ensinar �‘de porta-em-porta�’. Sempre a primeira porta é a mais difícil. E não foidiferente! Uma senhora estava aproveitando seu domingo paradescansar sentada à varanda. Falamos do portão que queríamosentregar de presente um folheto de orações. A senhora, queestava sentada a uns 30 metros de distância, perguntou de queigreja era. Respondi somente que era da Fé Bahá�’í �– estávamosdistantes. Ela recusou simplesmente acenando com a mão. Aquilocaiu como uma bomba em nós! Como uma pessoa poderia serecusar a receber orações bahá�’ís? Aquilo era tão importantepara nós que nos sentimos rejeitados, humilhados! Uma dascoisas mais importantes que aprendi nesta Caravana é encararnegativas com naturalidade e não se deixar abalar quando aspessoas se recusam a ouvir sobre a Fé. E só conseguiria isso emNatal. Entretanto, continuamos andando pelo bairro.�”

Depois de uma hora andando com Leilah, avistamos doishomens de uns trinta anos sentados à calçada. Olhamos umpara o outro com aquele típico olhar de interrogação. �‘Entregarou não entregar?�’, pensamos. Entregar! Demos uma visão geralsobre a Fé e eles gostaram muito. Percebemos que um delesera um tanto crítico em relação às igrejas protestantes ou

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mesmo à igreja católica. O outro rapaz falava menos, preferiaescutar. Eles tiveram uma boa impressão da Fé e acharammuito interessante a iniciativa de vários jovens viajarem paratransmitir esta mensagem. Depois de uns minutos de conversaos convidamos para irem conhecer a sede bahá�’í (o endereçoestava no panfleto) e nos despedimos. Uma hora depois, quandoainda estávamos ensinando no bairro, encontramos de novo comum deles, que se chamava Roberval (o mais calado). Ele estavaindo a direção da sede para conhecê-la. Nós o acompanhamosaté lá e mostramos quadros dos templos bahá�’ís, fotos da TerraSanta e de �‘Abdu�’l-Bahá. Ficamos uns quinze minutos na sede eele prestava bastante atenção em tudo. Quando ia partir,entreguei a Roberval o livro �‘Bahá�’u�’lláh e a Nova Era�’ e eleficou muito agradecido. Então, quis retribuir o presente e nosdeu três bonés que vendia ou distribuía. Mas ele entregoueste presente com tanta humildade e sinceridade, que aquilome tocou muito! Foi a primeira vez que ganhei um presente dealguém a quem ensinei. Parecia que queria retribuir o presentede inestimável valor que havia ganhado e percebia apreciosidade daquela mensagem. Depois de escrever umadedicatória, me despedi de Roberval, pois ele não poderia ficarpara a reunião de amigos.

Como ainda tínhamos mais uma hora de ensino, eu e Leilahpartimos para as ruas, agora muito mais confiantes e felizes.Conversamos com um senhor que havia sido professor deHistória, conhecia a Fé e sabia onde era a sede. Mas ele pensavaque a Fé Bahá�’í tinha acabado no Recife, pois há muito temponão ouvia falar sobre ela. Ele ficou feliz de saber que aindahavia bahá�’ís, pois gostava muito dos princípios.

Quando já estávamos regressando à sede, para fazer aavaliação e preparar a reunião de amigos, vimos dois jovenssentados numa praça. Depois da olhadela, a costumeirapergunta: entregar o folheto ou não? Pensava que como eramjovens não se interessariam por religião, mas fomos conversarcom eles. Falamos um pouco sobre a Fé e percebemos que elesgostaram e se interessaram. Um dos jovens, que se chamava

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Carlos, era membro do movimento Jovens por um Mundo Unido.Parece bastante bahá�’í, não? Este é um grupo católico que surgiuna década de 50 e que existe no mundo inteiro. Portanto, Carlosse identificou muito com a Fé e ficou curioso por esta religiãoque falava dos ter mesmos ideais que defendia. Depois de uns15 minutos de conversa, outros membros da Caravana chegaramtambém para conversar e todos convidaram com muitoentusiasmo os dois para a reunião de amigos.

À noite, não deu outra. Carlos compareceu à reunião e sesentiu muito à vontade, principalmente na parte social, quefoi animadíssima! Ficou amigo de vários de nós, quis saber umpouco mais sobre a Fé e o que havia mudado em alguns dosjovens depois de terem se declarado bahá�’ís. Assim, oconvidamos para ir conosco a João Pessoa, acompanhando aCaravana. O fato é que, no dia seguinte, Carlos compareceumais uma vez à reunião de amigos. Notávamos em sua face oquanto estava admirado por aquele ambiente e pela Fé Bahá�’í.Mas ele não poderia seguir viagem. Creio que de todas aspessoas ensinadas, ele foi um dos que mais se aproximaram,tornando-se amigo. E tudo começou com a entrega de umpanfleto...�”

�“Eu e Surush já estávamos ensinando a mais de uma hora emeia. Até então, embora estivéssemos num espirito muito bom,ainda não havíamos cruzado com nenhuma alma receptiva. Umadelas, que nos causa risadas até hoje, foi o pipoqueiro a quemfomos ensinar:

�– Quanto custa a pipoca? Você já ouviu falar de Bahá�’u�’lláh?Duas perguntas secas e recebemos um olhar de espanto. Àsvezes eu não gosto de ficar fazendo rodeios!

�– Quê? �– Perguntou ele. Eu esqueci da primeira pergunta(de propósito) e falei alto e bem claro: Bahá�’u�’lláh, fundadorda Fé Bahá�’í, uma religião!

Ele já não olhava mais para mim, e também não estavaolhando para Surush. Para onde então? Voltei-me à rua edescobri o alvo daquele olhar: uma bela moça andando em seu

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salto vermelho, calças brancas apertadas e blusinha da mesmacor do sapato. Nós percebemos que a competição era desleal.Ainda mais quando o pipoqueiro, terminado seu trabalho visualque durou até o momento que ela dobrou a esquina, exclamoucom certo orgulho do que dizia: �‘minha única religião é mulher!�’

Mas tudo bem, ninguém nos prometeu louros por servir.Eram provações que desciam sobre nós, as mesmas queapareceram quando resolvemos abordar uma garota sentadano banco de uma pequena pracinha a três quadras da sede.Embora não lembre o nome dela, não posso esquecer do jeitodesconfiado com que ela dizia ser evangélica e que não gostariade nos ouvir. Eu quase desisti, mas algo me veio a mente, comoum sopro de clareza:

�– O fato de existirem muitas religiões no mundo ocasionamuito desentendimento, não acha? Ela concordou com a cabeça.Continuei:

�– Da mesma forma, as diferenças entre as pessoas fazemcom que elas se desentendam. Você já se desentendeu comalguém? �– mais uma vez ela concordou com a cabeça.

�– Estou certo em dizer que o fim desse desentendimentosó terminou quando você ouviu o que a outra pessoa tinha adizer e vice-versa? �– e mais um sim mudo recebi.

�– Então o que acha de nos ouvirmos agora mesmo, você amim e ao meu amigo Surush e nós a você?

Um sorriso discreto se abriu em seu semblante. E eu penseicom meus botões que Bahá�’u�’lláh naquele momento havia tocadoseu coração. E quando Ele faz isso, ensinar é a coisa mais fácil domundo! Ela não é bahá�’í, e talvez nunca se declare. Mas eu e Surushestamos satisfeitos porque cumprimos nossa parte e percebemosque Bahá�’u�’lláh também está no coração daquela jovem.�”

�“No segundo dia de ensino na Ilha do Leite, vivenciamosuma experiência ímpar em toda a Caravana. Nunca esquecereideste dia. Eu estava com a Hilana, a Leila e o Vinícius em umapraça com a exposição sobre a Fé Bahá�’í. No fim da tarde,quando as outras duplas de ensino regressaram, encontramo-nos nesta praça. Havia um parquinho ao lado onde algumas

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crianças brincavam. Pouco a pouco, elas foram chegando paraver os quadros, crianças de 4 a 12 anos, todas atraídas pelasfiguras da exposição e pela presença de jovens.

As crianças começaram a olhar os cartazes e nósconversamos e brincamos com elas. Eram cerca de oito emnúmero, todas de famílias carentes. Algumas estudavam,outras não. Um menino era filho de mãe alcoólatra, por issonão estava na escola. Outra menina, um pouco mais velha, erafilha de uma ex-presidiária. Cada criança com o seu drama.Apesar de todo o sofrimento, elas tinham sempre um sorrisono rosto, estavam sempre brincando �– ativas. Mas o que maisnos impressionou foi a carência emocional delas. Quandocomeçamos a abraçá-las, elas não queriam mais soltar! Era comose tivessem passado anos sem receber um abraço! O olharalegre por receberem atenção e carinho é indescritível. Seusolhos brilhavam! Éramos capazes de enxergar seus coraçõespuros! Depois de brincarmos e conversarmos bastante,convidamos todas elas para uma aula bahá�’í que realizaríamosà noite na sede. Elas, então, foram para casa.

Duas das crianças ficaram conosco. Elas estavam comferimentos profundos e sem tratamento. Um menino ficavasubindo na traseira de caminhões e acabou caindo. A meninasofreu uma queimadura no ombro. As feridas estavam expostase sujas. Hilana levou-os à sede, comprou medicamentos e fezos curativos. Os dois também ficaram muito agradecidos porterem sido cuidados com carinho. Seus olhares e sorrisos eramas nossas maiores recompensas!

Por volta das vinte horas começaram a chegar as criançaspara a aula e os convidados para a reunião de amigos. Elas vinhamde banho tomado, com as melhores roupinhas, cabelospenteados e cheirosos. Eu e Hilana, que seríamos osprofessores, começamos a ficar preocupados. Foram ao todo15 crianças! Todas muito agitadas! Na aula, ensinamos a oração�‘Ó Deus guia-me�’, explicando o significado das palavras epedindo para que fizessem um desenho. Foram momentos parao exercício de muita paciência. No final, quando servimos pipoca,

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o menino mais velho que se chamava Gustavo, bateu em ummenino menor. A briga só não foi maior porque o seguramos.Quando fui conversar com o Gustavo para saber por que estavatão agressivo, percebi quanto ódio tinha no coração. Sua mãe,apesar de morar com ele, havia praticamente o abandonado.Ele passava o dia todo na rua, não estudava, e só voltava paracasa para dormir. Na rua, aprendeu a brigar. Ele não tinha maisalegria no coração. Tinha aprendido a não pensar nos outros.Não sabia o que era um amigo. Seu mundo não tinha passado enem futuro. Só queria viver o presente. Um depoimento comoo dele é de partir o coração! Todo aquele potencial sendodesperdiçado. Dá vontade de tentar mudar tudo sozinho.Ficamos indignados e inconformados com essa realidade! Massabemos que, por menor que seja a nossa ação, estamostransformando o mundo.

Dar amor para estas crianças foi muito gratificante. Vernos seus desenhos a pureza de coração de cada uma delas.Perceber o enorme potencial que cada uma tem e tentardesenvolvê-lo. Não há presente melhor do que o olhar e osorriso de uma criança! Quando estávamos retornando paracasa, perto da meia-noite, encontramos no ônibus a meninaque Hilana havia feito o curativo. Ela estava com seu pai, e foilogo perguntando pela �‘tia�’. Hilana havia ido de carro para casa.Seu pai, uma pessoa humilde e trabalhadora, também agradeceumuito pelo cuidado que tivemos e disse que a levaria ao médicopara tratar do ferimento. Quando eles desceram, despedimo-nos pela janela, ela com aquele olhar e sorriso puros, acenandocom a mão. Não esqueço mais daquela cena.�”

�“Durante as tardes de ensino na Ilha do Leite, fuicontemplada com uma experiência de ensino única: Levar opoder da palavra de Bahá�’u�’lláh às crianças enfermas do maiorhospital infantil do Estado, o IMIP. Sabia que este ensino seriaum grande diferencial dos outros ensinos que porventurahaveria eu de realizar. Pequenas pontadas de intimidações ereceios pareceram sanadas, quando recebi o anúncio de queNilanna me acompanharia nessa inovadora missão. �‘Nila�’ sempre

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me inspirou muita segurança e nesse dia, oportunamente, elaparecia enfática ao me transmitir isso.

Lá estávamos, frente a uma construção antiga de mais oumenos cinco andares. Atravessamos os portões de entrada,desviamos daquelas centenas de mães e filhos doentes, quepareciam apinhados naquele local e chegamos até um balcão. Amovimentação era intensa, mas recebemos pronta permissãopara realizar nosso trabalho. Ao fitar o primeiro quarto visitadonos deparamos com cerca de sete bebezinhos e suasrespectivas mães. Nós entregamos folhetos de oraçõesbahá�’ís, distribuímos roupas e brinquedos (ofertados porSoraya, uma menininha bahá�’í da comunidade) e falamosrapidamente da Fé. Ao sairmos desse mesmo quarto vimosdois bebês sem a companhia de suas mães. Soubemos, então,que eles haviam sido abandonados por serem portadores dedeformidades físicas. Um se chamava Gabriel e como um anjodormia. Eu e Nila nos aproximamos cuidadosamente de seuberço e fizemos uma oração para a cura daquele espírito deluz e pureza. Lembro-me de ter deixado sob o berço o mesmofolheto de oração, na intenção de que alguma alma bondosapudesse constantemente orar e assistir aquele filho de Deusabandonado pelo mundo físico e incrédulo.

Percorremos inúmeras salas, levando meios espirituais paraa cura daquelas crianças e de suas enfermidades. Procurávamosemitir radiância, mesmo sentindo o pesar contido em nossoscorações. Procurávamos levar um bálsamo àquelas mães aflitas,que tinham seus bens preciosos confinados a dor e as limitaçõesimpostas por inúmeras patologias. Procurávamos, com tudoaquilo, obter um lindo sorriso da face daquelas crianças.Crianças que sonhavam com a liberdade de exercer a vida emsua plenitude.

Assim, ao chegar no setor de Oncologia, onde crianças quepossuem câncer são tratadas, pudemos conversar com duasdelas e um pré-adolescente. Este último chamava-se LuizCaetano. Com tamanha clareza, o momento em que Nila e eusentamos ao lado de seu leito, está registrado em minha mente.

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Mal começamos a conversar com ele e vi lágrimas brotaremdaqueles olhos amarelados pela doença. Ele chorava por umasaudade que corroía seu coração juvenil, um coração de apenastreze anos de idade. Chorava com saudade de seu lar, comsaudade de uma vida feliz e ativa interrompida por uma cruele devastadora doença. Chorava por viver dia a dia na fronteirada vida e da morte. Lembro-me da minha comoção e do desejoque tinha de proferir palavras de alento e consolo aquelemenino deitado a minha frente. Olhei em direção a Nila, emum pedido de auxílio, e vi seus olhos tomados por torrenciais epuras lágrimas. Era fato, nada do que falássemos iria surtirefeito perante a imensidão da dor de Luiz. Ele necessitava dealgo que transcendesse o lado linear de meras palavras. Eraum enfermo, sedento pela água da vida, por simples e purasorações. Eis que, segurando firmemente em suas mãos, oofertamos duas orações: uma para sua cura e uma para o jovemmagnífico e único que representava. Ao final, lembro do relatoconvicto que ele nos fez a respeito de sua crença em Deus edo seu esforço na busca por Seu máximo auxílio. Missãoparcialmente cumprida naquele setor, seguimos por outrosandares.

A cada quarto, uma nova vivência, uma onda avassaladorade emoção que nos tomava integralmente. Emoções e vivênciasincomensuráveis! As pessoas agradeciam com fervor asorações a elas ofertadas, elogiavam nossa iniciativa, se sentiamamadas, amparadas, nos faziam crescer ainda mais na crençado poder das orações e do ensino como veículo à cura espiritualdo mundo!

Teu Nome é minha cura, Ó meu Deus, e a lembrança deTi meu remédio. Aproximar-me de Ti, é minha esperança emeu amor por Ti, meu companheiro. Tua misericórdia pormim é minha cura e meu socorro nesse mundo como novindouro. Tu em verdade, és o Todo Generoso, o Onisciente,a Suprema Sabedoria.10

Finalizo esse pequeno e falho relato, com a pura intenção

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de que essa oração revelada pelo Médico Divino, Bahá�’u�’lláh,esteja ecoando eternamente nos domínios de cada espíritoque se encontre restrito às limitações das enfermidades, dasdebilitações e das dores físicas e espirituais. Que essa oraçãoesteja nos domínios sagrados do anjo Gabriel e do queridojovem Luiz Caetano.�”

A Deus Recife

Um, dois, três, e outros mais foram se achegando à praçaNossa Senhora de Boa Viagem com os quadros da exposiçãobahá�’í embaixo dos braços. Alguns senhores conversavamtranqüilamente quando a movimentação começou. Eleschegaram, colocaram os quadros apoiados na grade de proteçãodo canteiro principal e começaram a dividir os folhetos entreas duplas que logo se espalharam pela praça e pelo calçadão.

Era o último dia de atividades da Caravana de Badasht noRecife, e os jovens vieram para dar adeus à praia que tanto osacolheu naqueles dias abençoados e que lhes desejava a todomomento uma �“boa viagem�” como se já soubesse que todoseles partiriam, mais cedo ou mais tarde. Uma praia acostumadacom despedidas. Já presenciara tantas nos fins de verão eferiados prolongados. Turistas, viajantes de passagem,retirantes às avessas, faziam parte de seu cotidiano, assimcomo quebrar nas pedras e amanhecer às cinco horas. Paraela, todos eram apenas mais Severinos. Se jovens ou não, nãofazia a menor diferença.

Mas para eles nada daquilo era natural. Uma ligação, da quala praia era inconsciente, havia sido estabelecida entre eles.Algo que só podia ser explicado ao contemplar seus semblantesenquanto ensinavam. Sim, eles não eram os mesmos.Transfiguravam-se no exato momento em que começavam afalar. Havia uma eloquência hipnótica em suas faces e palavras,que fazia seus interlocutores se entregarem. Muitosdemonstravam euforia em seus sorrisos. Outros simplesmente

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emudeciam. Alguns cediam às lagrimas. Claro, não se tratavade Boa Viagem; aquelas coisas aconteciam por Bahá�’u�‘lláh. Masera como declamar uma poesia a alguém que se ama. O objetodo amor não é o lugar em que se declamou, mas sem dúvida elese torna especial e eterno por conta disso.

Não importava o que Boa Viagem pudesse pensar sobre eles.Queriam se despedir e acharam que ensinar uma última vezseria a melhor forma para dizer adeus. A Deus! Ofereciam aEle aquela despedida sobre a areia que já se tornara sagradaem seus corações:

�“Com certeza aquele foi um dia marcante para mim. Já nacalçada da praia, depois de termos conversado com duaspessoas, encontramos o Elias, um senhor aproveitando osúltimos momentos da tarde. Ele estava sentado à margem dapista de cooper, embaixo de um coqueiro. Ainda em pé, comeceia ensinar e entreguei-lhe um folheto de orações. Turadj pôs-se a falar sentado ao lado dele auxiliando-me. Porém, o Sr.Elias, que escutava atentamente, não desejava apenas escutar.Parece-me que tinha muitas coisas a dizer. Foi quando assim ofez, que entendi que deveria sentar, achegar-me, e escutá-locom muita atenção. Ele falava sobre Deus. A maneira humildee simples de se expressar fazia um mar de emoção se moverem meu coração. A pureza e imensa sensibilidade de seucoração, evidente no brilho de seus olhos e na expressão deseu semblante, era algo que falava de sua ligação com Deus eque me marcava profundamente.

Depois dessa emocionante conversa, eu e Turadj oconvidamos para ir até a exposição que estava na praça.Despedimo-nos e ficamos a observá-lo. Para nossa surpresa,naquele mesmo instante, ele se levantou e foi em direção àexposição. Nossa emoção era tanta que não tivemos comoconter as lágrimas. Turadj olhou para mim e disse: �‘vai comele�’. Acho que aquilo foi direto a meu coração e sai correndoem direção ao senhor abençoado.

Na exposição, ele estava muito feliz. Sentiu-se acolhido e

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por isso começou a falar dos problemas que estava passando ede como aqueles acontecimentos estavam fazendo com queele se afastasse de Deus. Profundamente sincero, afirmoupara nossa completa desordem emocional, que havíamos sidoenviados por Deus. �‘Vocês são abençoados pois estão realizandoo nobre serviço de divulgar a mensagem de Deus!�’, dizia ele.

Por horas ele conversou comigo e com Sobhan que estavapresente. Já era hora de partirmos. Não só para o fim daqueledia, mas para o fim da Caravana em Recife. E eu nunca podereiesquecer dos olhos do Sr. Elias brilhando enquanto falávamosda Fé e alegrávamos seu coração em um momento de tristezaem sua vida.�”

�“Nós estávamos fazendo ensino direto na praia e naqueleúltimo dia meu parceiro era o Otávio. Em um determinadomomento, Bahá�’u�’lláh nos separou e fui ensinar sozinha a umjovem. Após me apresentar, conversamos muito. Ele eraevangélico e no começo não aceitou o Prometido desta época.Eu já havia argumentado de várias formas até que resolviconvidá-lo até à exposição bahá�’í na praça. Lá então, o senti setransfigurar e percebi que já aceitava o fato de Jesus Cristonão ser o único Mensageiro de Deus. Fiquei muito feliz porperceber que pude abrir os olhos espirituais de uma pessoa. Éuma emoção marcante e sem dúvida Bahá�’u�’lláh estava ao meulado dando-me forças.�”

Após o ensino, todos se reuniram no �“quartel general�” paraa última reunião de amigos. Não apareceram contatos,infelizmente. E foi assim que decidiram fazer uma reunião deorações. Enquanto fechavam os olhos para ouvir a primeiraprece, fez-se ouvir uma palavra ressoando entre as almas:gratidão. Como expressa-la? Como agradecer pelos Elias doscaminhos de ensino percorridos em Recife ou pela a inspiraçãoe guia para encontrar esses mesmos Elias? O que erguer aocéu a fim de mostrar gratidão pelas provações que osassediaram na fase inicial de sua jornada? O que dizer alémde �“somos gratos�”, ao fato de terem sido tão bem acolhidos

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por uma comunidade entusiasmada com sua chegada epermanência? O que fazer para retribuir, nem que fosse pelamedida de um pequeno e insignificante grão de areia, o amorque agora habitava em seus corações? Que maneira poderiaser apropriada para louvar a Deus pela unidade indivisível criadaentre cada um deles? Impotência e incapacidade predominavamem suas mentes enquanto refletiam sobre isso ao som daspalavras sagradas recitadas ou musicadas. E esses pensamentospermaneceram durante o silêncio final, para só então um delespronunciar algumas poucas palavras em despedida.

Fez-se entrar, então, flores aos donos da casa que duranteaqueles dias haviam os acolhido em sua residência com imensahospitalidade. Abraços carinhosos e o pronunciamento dopioneiro. Não eram preciso palavras. Seus olhos diziam aquiloque era mais importante. Rasos, comprimiram-se lentamente,e uma pequena lágrima se formou. A voz era rarefeita. Sinônimode emoção. �“Enquanto outros jovens estão nesse mundo aforaperdidos, vocês estão hoje aqui, construindo a nova civilizaçãomundial. O que pode ser melhor que isso?�” A indagação fez-see completou-se silenciosa. A emoção não haveria de seguir omesmo caminho. Permanece incompleta, continua. Faz-se erefaz-se. Naquela noite. Hoje. Sempre.

Malas se reproduzem?

Anissa e Tahereh babavam no sofá da sala por volta das9:30h. A noite passada havia se estendido até tarde para elas.Era a �“baladona�”, como chamavam a festa de despedida queaconteceria em cada comunidade. Até então, não havia nenhumproblema, se não fosse o fato de estarem a trinta minutos dohorário combinado para saírem de viagem.

�– Vocês têm mesmo certeza de que querem viajar às dezda manhã? �– Sima perguntava a todos já impaciente. Já era adécima vez que repetia a pergunta com o telefone ligado na

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mão e esperava ouvir um consenso dessa vez. Sim. Não. Nadade consenso! Como não poderia ser diferente, alguns disseram�“sim�” mais alto e foi isso que ela repetiu ao �“Seu Alberto�”,dono da �“H-100�”, a van que estava sendo locada para levartodos a João Pessoa. Mas até aquele momento chegar, umabatalha de negociações teve de ser travada.

Ônibus ou Van? Essa era a primeira decisão a ser tomada.Desde que a idéia da Caravana foi lançada, os jovens de Recifejá falavam da possibilidade de seguir viagem com uma Van aoinvés de um ônibus interestadual normal. E foi assim que elesaprenderam que possibilidades carregam consigo duas coisas:chance de escolha e problemas. �“Como vamos para JoãoPessoa?�”, alguém perguntava. E logo depois outro alguémrespondia, às vezes até com prazer: �“temos duas opções, deônibus ou de van!�” Mas nunca!, nunca falavam �“temos umproblema que é ter duas opções!�” Quando se aproximou o diada partida, pararam de falar que tinham duas opções econcordaram que era a hora de escolher uma logo. Ligarampara João, Carlos, Renato, Nivaldo, Norberto, (...), todos donosde frete, e no final da maratona de pesquisas, concordaramque era melhor viajar com um deles.

Sprinter ou H-100? A segunda decisão causava calafrios nogrupo inteiro. Mas era presente. Com um simples levantamentode fatos, talvez conseguiriam definir mais esse ponto. Noentanto, como Sobhan brincava, eles tinham de seguir o �“padrãoda Caravana�” e começavam a destilar um emaranhado decomentários que os levavam ao caos. Enfim, depois de muito tempo,concordaram em locar a H-100 do �“seu Alberto�” com a condiçãode que ele trouxesse um reboque para carregar as malas.

Malas. Elas também eram sinônimos de problemas,principalmente quando calcularam a quantidade dos passageirose multiplicaram por dois. Total? Vinte e oito! Mas isso era ateoria, só André tinha uma mala, uma mochila, uma pasta e umcarrinho de bagagens. E foi só depois que Anissa e Taherehacordaram, que elas e todos os outros tiveram consciênciaque teoria matemática é diferente da prática de uma viagem

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como aquela. Para ser mais exato, matematicamente, aocomeçarem o trabalho de reunir as malas na sala perceberamque talvez devessem elevar à potência dois o número depassageiros.

Já se passavam das onze horas quando tudo estava prontopara partir. Toda a bagagem se aglomerava na sala, inclusiveos colchonetes que levariam para as próximas duas cidades eque �“não devem ser dobrados e sim enrolados�” como advertiaSima, dona dos oito que estavam de partida. Qualquer um queassistisse ao trabalho juraria estarem eles montando umaverdadeira trincheira de guerra. Ainda mais quando o elevadorde serviço chegou e numa corrente humana foram empilhandoa bagagem. Três vezes, o elevador desceu e subiu, com umdeles trabalhando como ascensorista. Lá embaixo, as malasforam empilhadas mais uma vez e ainda teriam de ser levadaspara fora do prédio. Outra corrente. De mão em mão, e sob osgritos motivadores �“vambora, cambada de preguiçosos!�”, �“maisrápido, lesmas de plantão!�”, �“é para hoje, turma do bem bom!�”,as malas foram sendo carregadas até o portão de saída doprédio e ali esperariam pela hora de embarcarem para JoãoPessoa. As despedidas foram demoradas até que Surush eLeila abraçassem a todos. Os dois não seguiriam viagem,infelizmente. Leila, após voltar para Brasília, enviou umpequeno e sensível relato que termina com um apelo urgente euma declaração sincera:

�“Durou apenas uma semana está glória única de poder serum instrumento da amada Causa de Deus. Certamente umasemana inesquecível na qual fui capaz de, através de tantasalmas sedentas, contemplar na forma mais simples, a grandezaúnica de Deus. Anjos abençoados cantavam serenamente umamelodia doce que ao meu coração trazia prantos de alegria. Acada hora que eu me divertia a ensinar, os corações de todosaqueles amados de Deus se iluminavam em êxtase pelo súbitosentimento de alegria e gratidão. Tamanho era o brilho dosolhos de todos que, transbordando júbilo, não sabíamos comoagradecer esta oportunidade de servir à Abençoada Beleza.

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Certamente, não fora esta uma simples caravana; fora está averdadeira Caravana de Badasht. Uma viagem de ensino na qualtodos os nossos pequenos sacrifícios fizeram brotar árvorescom muitos frutos. Foi esta uma demonstração de dedicaçãoque promoveram transformações eternas na vida de cada umdos privilegiados amados de Deus. �‘As horas passam como ocintilar de uma estrela�’, deixaremos todos os nossos enfermose sedentos irmãos a esperar perdidos no caminho daobscuridade? Levanto-me agora, ao lado de tantos outrosjovens soldados que se dedicam, dentro de seu cotidiano, aoserviço da Causa.�”

A Caravana de Badasht partiu na H-100 do �“seu Alberto�”,com um reboque lotado atrás. Apertados, exceto Fernandoque foi à frente guiando o motorista que não precisava serguiado, os jovens trataram de ocupar seu tempo. Algunsresolviam palavras cruzadas, outros escutavam música e o climade festa e alegra era presente. Um deles assim escreveu:

�“A paisagem muda a cada segundo e Recife vai ficandogradativamente para trás. Deixar Recife me fez relembrarde alguns momentos especiais na tentativa de fincá-los namemória para que algum dia e de alguma forma eu pudesserevivê-los mentalmente.

Rostos excepcionais, reações diversas dos ouvintes, laçoscriados, emoções vividas, tudo vinha à tona. Meu pai, seu rostoe gesto em um dia especial. Seus efeitos sobre mim e seusignificado, ainda permanecem indecifráveis e ocultos. Nãocorrer o risco de descrevê-los indignamente. A praia, apracinha, e o sentimento de �“como é simples sair para ensinar�”,colocar o pé fora de casa, andar cinco minutos e ensinar,transmitir a Mensagem.

Os sete dias foram mais rápidos que um veloz estalo e agorarelampejam em minha mente enquanto o grupo segue para seupróximo destino, João Pessoa, dar continuidade em sua missão:saudar o nascimento de um Novo Dia.�”

As coisas corriam muito bem, estavam cumprindo com o

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cronograma do projeto, e na noite anterior, finalmente, haviamrecebido a confirmação de que Bianca viajaria com eles. Entretodas as provações, ela estava vivendo mais uma, muitoparticular, mas que deixara todo o grupo na expectativa atéentão. Ela mesma relata os acontecimentos dos dias em Recife:

�“Uma grande provação me abateu enquanto a Caravana sefirmava e já trabalhava em Recife. Meus pais não são bahá�’ís epara eles se mostrava imensamente difícil me permitir viajarjuntamente com 13 jovens e trabalhar na difusão dessa religiãode nome curioso. Lembro-me dos meus apelos a eles que, pormais emocionados e feitos com afinco, pareciam não surtirefeito. Parecia inaceitável que a filha deles abdicasse doconforto e segurança do seu lar para viajar pelo nordeste emnome dessa Fé. O que hoje percebo é que Bahá�’u�’lláh me colocouem prova. Almejava ver o meu esforço e o meu grau de purezadentro daquela viagem.

Dois episódios, nos quais a presença de Bahá�’u�’lláh se fezvisível, foram decisivos para minha adesão total e irrestritaà Caravana: Uma conversa entre Sina Daliry e meu pai, e umacarta que escrevi a minha mãe.

Sina é um bahá�’í abnegado, que sempre se mostrou deprontidão durante meu caminhar como bahá�’í e que hoje, tenhocomo uma figura altamente significante e admirável em minhavida. Sua conversa com meu pai foi muito esclarecedora.Enquanto proferia aquelas palavras coesas e bem articuladasao telefone, eu me tomei em lágrimas e ali do seu lado comeceia suplicar que Bahá�’u�’lláh confirmasse meus intuitos e meu maispuro desejo de servir. Após ter desligado o telefone, Sinaveio em minha direção e meio a um abraço forte e paterno,disse: �‘Bianca, as provações e sacrifícios já se iniciaram! Tenhafé e constância no amor de Bahá�’u�’lláh e Ele há de te permitirviajar.�’ Estava notória a presença de Dele naquele recinto edurante todo aquele processo de �“negociações�”.

A carta que escrevi à minha mãe foi simples. Ela detalhavanosso itinerário, nossa programação, nossas hospedagens,

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atividades, etc. Só no fim de toda essa minuciosa explicaçãofoi que me entreguei em um pedido de libertação e apoio.Escrevi: �‘(...) Com toda a pureza que existe em meu coração,me dirijo a você, mãe, e digo: Meus intuitos dentro e foradessa Caravana são nobres e dignos de confiança. Permita-me,dê-me segurança, dê-me asas para que meu vôo nessa vida sejaequilibrado e sempre apoiado pela figura e lembrança de minhaamada mãe (...)�’

Somente no último dia de permanência da Caravana emRecife foi que recebi o consentimento dos meus queridos paispara alçar vôo no firmamento do serviço. Estava, novamente,entregue às dádivas e a todo o clima de espiritualidade. Podia,enfim, dar meus primeiros passos à minha maior maturidadecomo bahá�’í; adentrei de corpo, alma e coração, no projeto querevolucionaria valores/padrões externos e internos e quealertaria muitas almas do nordeste brasileiro que Bahá�’u�’lláhé o Mensageiro dessa época em que vivemos e que Sua Causapromoverá a melhora do mundo.�”

Bianca e seus 13 amigos estavam finalmente em João Pessoa.A H-100 percorreu longas áreas da cidade até chegar no Bessa,bairro onde ficariam dentro da capital paraibana. Olhando parafora da janela, na expectativa da chegada, um deles escreveuas seguintes impressões:

�“Sinto medo. Mas ainda não entendo porque. É um medoreal, de que as coisas não dêem certas, de que eu não sejadigno, de que algo aponte que esse não é o caminho certo. Pormais que tudo diga o contrário, ainda sinto medo. Será quedeveria me permitir? Acho que não. Principalmente agora, queestamos entrando em João Pessoa. A cidade parece-me tãobela. Dizem que é a cidade mais verde do Brasil. Do Brasil?Acho que do mundo.. não sei. Acho que posso escutar as vozesde boas vindas sendo emitidas cada vez que adentramos maisem suas veredas. Sim, sinto que somos bem vindos, como se acidade já estivesse a nossa espera. Ou melhor, à espera deBahá�’u�’lláh, afinal não viemos em nossos próprios nomes e sim

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pelo Máximo Nome de Deus. Bom, acho que isso não é novidade,o Nome Dele é bem vindo em qualquer lugar, mesmo que essefato não esteja evidente. Mas, há algo de diferente aqui. JoãoPessoa. Que nome engraçado. Seu João nos dá boas vindas, emPessoa! Ele próprio está aqui a nos dizer, �“entrem; tirem ossapatos; fiquem à vontade, posso trazer um suco gelado paramatar-lhes a sede; se quiserem sair para ensinar, a cidade éde vocês; tudo o que eu puder fazer em seu benefício, assimnão hesitarei; a seu serviço, jovens de Bahá.�” Sim, há algo dediferente aqui. Não sei explicar, mas sinto algo diferente. Omedo permanece, mais diminui, de pouco em pouco, à medidaque a Pessoa de João nos saúda ternamente!�”

Era a terceira vez, então. A primeira havia sido da salapara ao elevador. A Segunda do elevador para fora do prédio.E agora era da H-100 para dentro do apartamento 204 doResidencial Ícaro que a corrente humana carregava a bagagemrecorde. O Bessa, como afirmavam os bahá�’ís da comunidade,era um bairro novo que começava a se estruturar. A despeitodesse fato, o local onde iriam passar sua estada na cidade eramuito bem situado, estando perto do Shopping Manaíra e doHíper Bom Preço, principal cadeia de supermercados nonordeste do país.

O prédio era de quatro andares sem elevador. De um andarao outro, eram dois lances de escada em ziguezague, sendoque entre um lance e outro havia patamares vazios à altura dopeito, os quais possivelmente seriam enchidos de terra parase tornarem belas jardineiras. Esses patamares criavam umaligação entre os andares, e foi por isso que um deles subiu nafutura jardineira para passar as malas de uma andar ao outro,cortando caminho e evitando perda de tempo. Assim, quando acorrente já alcançava o primeiro andar, uma senhora que desciaacompanhada de uma garota chamou a atenção dos recéminquilinos ao fato de que não deveriam fazer tanto barulho.�“Eu sei que vocês são muito lindinhos, cheios de energia, mascontrolem o volume, ok?�”, disse com um certo tom irônico navoz. Porém, quando viu um deles em cima da jardineira, ficou

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estupefata e algumas vezes seguidas repetia um tanto quantoalterada que �“vocês não podem subir ai de jeito nenhum.�” O�“jovem-atalho�” desceu imediatamente e pediu desculpas pelotranstorno. Despediram-se e na saída ela solicitou ao porteiroque ficasse atento ao grupo, quanto ao barulho e quanto aométodo inusitado que estavam empregando para carregar suasmalas. O porteiro entendeu, embora tivesse simpatizado coma turma que acabara de entrar. Até achou que era bonito vertodos trabalhando de forma tão unida. Era uma equipe! Na voltada senhora ao prédio, ele relatou que �“eles se comportaram eobedeceram�”, recebendo em troca um sinal satisfeito.

A porta do apartamento foi aberta e uma imagemimpressionante os tomou. Ele estava mobiliado! Semimobiliado.Havia dois sofás azuis, uma mesinha redonda, uma geladeira, eoutros mantimentos, incluindo água. Isso já era o máximo, umavez que não esperavam absolutamente nada a não ser oapartamento, nu e cru. Coladas na porta de vidro que separavasala e sacada, a estavam algumas mensagens de boas vindas,escritas pela comunidade local:

�“Bem Vindos à Comunidade Bahá�’í de João Pessoa. Dizemque nesta cidade o sol nasce primeiro. Mas temos certeza queeles nunca viram uma constelação de jovens estrelasbrilhantes, navegando na arca carmesim, guiada por CometasGêmeos, anunciando o inicio da nova era e mostrando o caminhopara Nova Jerusalém. Ao brado de Yá Bahá�’u�’l-Abhá!�”

Entrando, além da sala e cozinha, havia uma área de serviçocom banheiro e três quartos. O primeiro era uma suite, ondeas meninas dormiriam. Os rapazes ficariam no quarto normal.E o outro, onde mal cabia uma cama, seria transformado maistarde em sala de orações. Além do banheiro dos fundos e o dasuíte, um terceiro completava os cômodos do apartamento.

Dizem que é no prelúdio que podemos entender o meio e ofim do espetáculo. E aquele já havia demonstrado tudo o queaconteceria nos próximos sete dias em João Pessoa. Como osjovens iriam lidar com os fatos, no entanto, era ainda uma

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incógnita. Nesse espetáculo dirigido por Bahá�’u�’lláh haviaroteiro definido. Agora era a vez dos personagensimprovisarem, e quem sabe, seguir o roteiro até o �“grandfinale�”.

Não espero nada de vocês

Os jovens foram divididos em três equipes. A primeiraficaria em casa consultando. A segunda faria compras nosupermercado. E finalmente a última estaria livre para fazero que quisesse, o que significava �– praia �– na maioria das vezes.Estavam satisfeitos pela divisão, afinal era um bom presságiode que as coisas se realizariam de forma mais organizadanaquela etapa do projeto.

O grupo consultivo, composto por três jovens eleitos portodos os participantes, chamava-se Comitê Executivo. Naavaliação final da fase em Recife, foi dada essa sugestão, aqual se aderiu imediatamente, pela criação de um grupo quepudesse cuidar de uma série de assuntos de ordem prática eorganizacional, eximindo o corpo plenário de consultar sobretodos os detalhes. Dessa forma, o Comitê Executivo se tornouum ícone de que o grupo estava alcançando mais maturidade, oque se estendeu até o final do projeto.

A primeira decisão do Comitê naquela tarde foi eliminartodos os outros existentes, criados em Recife. Centralizaramtudo e criaram postos de serviço e responsabilidade para todasas tarefas domésticas, de espiritualização e de ensino. Nofinal do dia um cartaz foi pendurado na parede com ocronograma das atividades para todo período, o qual era oresultado de algumas horas de consulta. O cartaz recebia umaolhada estranha, depois um sorriso, e finalmente o veredicto:legal!

Aqueles que foram ao supermercado na missão de comprarcomida e mantimentos perceberam que a mamata domésticahavia terminado. Salgadinho, chocolate e balas tiveram de ser

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trocados por arroz, salsicha, pão, água sanitária e mais ummonte de coisas que não estavam nas prateleiras coloridasdas sessões de porcarias alimentícias. Nova cidade, novacomunidade, novo estágio, novos desafios, a começar pelabarriga. Voltaram quase anoitecendo com um monte de sacolasdo Híper Bom Preço. Embora muitas, a comida não duraria trêsdias. Nem a comida, nem o apetite por comê-la. Se existe algoque a maioria deles estava longe de aprender é a cozinhar,especialmente Setareh que traumatizou a todos logo naprimeira refeição. Seu arroz é inesquecível. Infelizmente.

Os turistas que formavam o terceiro grupo chegaram comuma boa notícia e outra má. A boa primeiro: a praia era muitobonita, tinha um calçadão legal e um clima agradável. A ruim:se quisessem ensinar por lá teriam de andar muito. Acabaramdescobrindo, sem alternativa, que andar é um ótimo exercício,principalmente se feito diariamente, e ainda melhor se estivervinculado com alguma atividade de ensino. Quase uma hora,quase todos os dias.

Enfim, após os preparativos iniciais, o Sr. Ali Eftekharí,Sr. Said Dana e sua esposa Mônica e seu filho Shahdad detrês anos de idade, vieram à reunião de abertura dasatividades da Caravana de Badasht em João Pessoa. Poucosrepresentantes de uma pequena comunidade bahá�’í, sem dúvida.Números, na maioria das vezes, não representam qualidade.Naquele momento menos ainda. A reunião era alegre, espirituale emocionante da mesma forma como fora em Recife, e osbahá�’ís presentes, desejavam ajudar de todas as maneiraspossíveis. Já estavam fazendo isso e o apartamento e a belarecepção provavam sua atenção antecipada. Dali em diante,essa ajuda estaria mais presente ainda, especialmente nosmomentos de provações. Uma dezena de instrumentosdomésticos seria trazida até o apartamento, emprestados pelo�“tio�” Ali. A residência dos Dana se transformaria em palco dereuniões de amigos e orações, bem como de jantares que Mônicapreparava, incluindo as maravilhosas sobremesas. O escritóriobahá�’í, perto do apartamento, serviria como local de apoio ao

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grupo, donde poderiam buscar materiais, incluindo a exposiçãopara ensino e folhetos bahá�’ís diversos. Enfim, mesmo pequena,a comunidade local demonstrou muito zelo pelo projeto, mesmoantes das atividades se iniciarem por lá.

Cada jovem seguiu explanando livremente suas expectativaspara a estada na cidade e suas motivações para terem aderidoà Caravana. Essa era uma forma de todos expressarem seussentimentos, demonstrarem à comunidade as intençõescontidas no projeto e o que se esperava alcançar através dele.Após todos falarem, a palavra foi dada a Said. Olhou para todoscomo se não soubesse o que falar. Breve silêncio finalizadocom o esclarecimento, �“fale das expectativas da comunidadeem relação ao projeto�”. Ele sorriu e devolveu a pergunta:

�– Expectativas? Não posso falar em nome da comunidadeinteira, mas quero que saibam que não tenho expectativas. Eunão espero nada de vocês. Eu não poderia esperar. Hoje vocêsestão aqui, organizaram um belo projeto de ensino, vieram demuito longe, e nós os recebemos. Tudo o que fizemos por vocêse ainda aquilo que poderemos fazer é porque conta de nossaconsciência de que devemos ajudá-los a servir à Bahá�’u�’lláh. Épor Ele que vocês estão aqui e não por nós. E é Ele que esperaalgo de vocês. O que deveria eu esperar?

Os sorrisos foram abertos ao final daquelas palavras, ditasvagarosamente e com um tom que denotava imensatranqüilidade. Tio Ali falou então, durante algum tempo, sobrea importância de terem escolhido Badasht para o nome doprojeto e contou-nos outras estórias inspiradoras da Fé. Muitasabedoria fluía de sua presença erudita e inflamava os coraçõesali presentes.

Após o compartilhar inicial, muitas sugestões sobre asatividades de ensino foram dadas. Estratégias, métodos,horários, e principalmente, lugares.

�– A praça de esportes da praia de Manaíra concentra muitojovens e ficam por lá no período da tarde �– diziam os anfitriões�– e se vocês quiserem podem ensinar também da praça do

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Tambaú, em frente ao Hotel Tambaú, onde há uma grandeconcentração de pessoas, tanto nativas como turistas. Háainda a possibilidade de ensino no Cabo Branco, pois demanhãzinha muitas pessoas caminham no calçadão.

A reunião terminou com um bolo de chocolate imenso, trazidopor Mônica a fim de alegrar a parte social. E como alegrou! Amuito os olhos de todos se dirigiam entre um momento e outropara cima da mesa que sustentava aquela verdadeira obra dearte. Ao contrário do que acontecem nos museus e suas placasde �“não toque nas peças�”, aquela obra foi totalmente destruídae devorada pelos �“visitantes�”.

Shahdad estava adorando tudo. Brincava com os jovens e anoite não precisava terminar. Mas enfim, é hora de ir paracasa, e ele se despediu chorando (baixinho), não �– a todo pulmão!Nada o aquietaria, nenhum pedido, nenhum brinquedo, nenhumapromessa. Assim, desceu pelas escadas do Ícaro nos braçosdo pai. Os jovens do 204, assim como a senhora do 301,conhecida deles desde que chegaram pela tarde, escutaramos altos lamentos do menino por volta das 23:30 hs, até queenfim entrou no carro com portas e janelas fechadas. Vamosdormir que já é tarde, decidiram.

Assim como decidido pelo Comitê Executivo, na manhãseguinte todos saíram para ensinar. Em duplas, percorreramas imediações de sua residência, no próprio Bessa, um bairrode prédios e comércio. Não era nada apropriado, pois emprédios é quase impossível fazer o velho ensino de porta-em-porta, além do que no comércio as pessoas quase sempre nãotêm tempo para dedicarem-se a ouvir alguém perambulandona rua. Assim fizeram, pois da noite para manhã não havia tempopara que se consultassem a respeito dos lugares sugeridospela comunidade. A experiência não foi boa, para a maioria deles,exceto para alguns, assim como narram os dois relatos:

�“O primeiro dia de ensino foi uma espécie de provação.Fomos ensinar numa área comercial, perto de onde estávamos.Eu fui com Bianca. Conversamos com guardadores de carros etranseuntes. Quando retornamos, estavam todos

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decepcionados pelas características do local. Percebemos queos paraibanos não eram tão receptivos quanto ospernambucanos, derrubando o mito de que a cultura nordestinaé a mesma em todo o Nordeste.�”

�“Era um dia de ensino nas redondezas do nosso larprovisório. Conversamos com um grupo de taxistas, Tahereh eeu, durante um bom tempo e depois com um pequeno meninoque logo descobrimos haver sido abordado por algum de nossosamigos. Já não sabíamos para que lado seguir. Olhei para mim,estava sem forças. Sentia-me sem vigor para prosseguir emminha tarefa, era um verdadeiro sentimento de incapacidade.Mas não entendia por que esse era meu estado se tão poucohavíamos ensinado e o caminho pela frente era do tamanho dotempo de ensino que ainda não terminara. Senti-medesconfortável.

Com desânimo apenas caminhava rumo a lugar nenhum, maspoucos passos foram necessários para Aquele que a tudopercebe mostrar seu sinal. Avistei ao chão um folheto deorações Bahá�’ís, sujo, amassado, pisoteado. O descuido a quesubmeteram o pequeno e indefeso papel me causou grandeamargura por evidenciar-me um insensível repúdio a nossa tãoamada Fé por parte de alguém. Foi como flagrar uma infraçãogravíssima. Achamos sensato recolher o folheto. Talvez acolhê-lo e amenizar sua dor, assim a nossa também.

Ao regressarmos ao apartamento, numa mesa, estivecontando ao André o ocorrido. Ele recordou-se de um fato sobreo assunto e assim a conversa fluiu. Ao falarmos do sentimentoque nos tomou naqueles momentos ele lembrou de comoBahá�’u�’lláh os descreve ampla e belamente na Epístola de Fogo.Calei então. A conversa prosseguiu com Tahereh, creio, tambémpresente à mesa, mas eu entrei num estado de reflexão. Concluíque era chegada a hora de ter meu inédito encontro com areferida Epístola. Silenciosamente me dirigi ao nosso quartinhode orações. Lá dentro e cá dentro: atrito... faísca... fogo...alento! Paradoxo real.

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Hoje guardo o causador de tudo isso, o folheto, no meulivro de preces. Mirá-lo é lembrar dos sofrimentos deBahá�’u�’lláh e protegê-lo é proteger a Fé.

�“Já estávamos voltando do ensino no primeiro dia em JoãoPessoa. Eu e Vinícius conversávamos na volta e ainda haviafolhetos na mão. Atravessando a rua vi um grupo de operáriosda construção civil na calçada à frente do grande edifício queestava sendo construído. Grande mesmo, sem dúvida não havianenhum do mesmo tamanho por onde conseguíamos avistar. Dealguma forma senti que deveríamos ensinar a eles eimediatamente me veio à mente uma analogia interessante.Fomos até eles e eu perguntei apontando para a construção:

�– Boa tarde, o que vocês estão fazendo aí?�– De tudo um pouco �– um deles respondeu �– chapiscando,

erguendo paredes, aprumando alicerce, o que tiver para fazera gente faz!

�– Bom, muito bom! �– Respondi, respirei e continuei �– masaté onde me consta, vocês são responsáveis pela construçãode um dos prédios mais altos desse lugar, e talvez da cidadeinteira!

Os olhos de todos eles se arregalaram com surpresa pelaafirmação convicta. Sem lhes dar a oportunidade de pensar,finalizei minha introdução:

�– Um mundo melhor é como um prédio em construção, e nóssomos seus construtores, seus peões de obra. Há aqueles queem suas vidas, assim como na construção, pensam que suaspequenas ações se limitam a elas mesmas, �“chapiscar, erguere aprumar�”. Mas há outros que lembram que, por menores quesejam as ações, elas estão contribuindo para a construção deum mundo melhor! Se vocês vierem para o trabalho lembrandoque estão ajudando a realizar um grande empreendimento,talvez queiram pensar que podem também auxiliar no maiorde todos os empreendimentos �– construir um mundo melhor!Construir um mundo melhor! Essa é a missão que Bahá�’u�’lláhdeu a todos os homens...

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A surpresa era evidente, em todos os semblantes. Aqueleshomens simples sentiram-se com um poder nas mãos que erainexplicável. Um poder que lhes era ofertado por mim e Viníciusseguindo as instruções de um Profeta de Deus chamadoBahá�’u�’lláh. A tarde terminava, e eu acho que eles gostaram devoltar ao trabalho quando soou a sirene do fim do intervalo.�”

204 em chamas

Dona Graça, síndica do Residencial Ícaro, estava preocupadadesde a tarde anterior. Na verdade, o fato do 204 estar vaziojá a preocupava a algum tempo, o que se intensificou à medidaem que se aproximava a �“Micaroa�”, o carnaval temporão deJoão Pessoa. Se até os dias de folia o apartamento não tivessesido alugado, a probabilidade de um bando de baderneirospassar alguns dias por lá era alta. Ela não era contra a Micaroa,até achava que a cidade ficava mais alegre nessa época do ano,o problema é que já não tinha idade para ficar discutindo commoradores. Nem idade e nem saúde, nos próximos dias elaseria submetida a uma cirurgia, e o fato de ser viúva agrava asituação.

Quando então ela viu 14 jovens, sete felizes casais, subiremaos risos as escadas de seu pacífico residencial e ainda porcima, trepados na jardineira dos andares, seus alertasvermelhos entraram em ação, piscando e buzinando uma únicamensagem: perigo! Na noite do mesmo dia, porém, ala recebeua visita cordial de dois deles. Na verdade sua filha, pois ela jáestava na cama, muito cansada das atividades durante o dia. Àmenina, eles entregaram um folheto de orações bahá�’ís e outrointrodutório sobre a religião, despedindo-se amistosamente.

Na manhã do dia seguinte, Dona Graça leu os dois folhetos,e grata, maravilhou-se com as palavras neles contidas. Ah!Especialmente as orações que tratou de fazer naquele mesmoinstante. Ao terminar seu momento de comunhão, sentiu-se

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satisfeita com a atitude dos jovens e tranqüila, levantou-seao seu dia que começava bem, e se tudo desse certo, terminariada mesma forma.

Ao longo do dia, ela entrou e saiu do prédio algumas vezes,ora a pé, ora de carro. Porém, não encontrou nenhum de seusjovens moradores para agradecer os folhetos e falar do quantohavia se sentido bem por ler as palavras de Bahá�’u�’lláh. Tambémnão queria ir até o apartamento deles só para isso. Esperariauma oportunidade. E ela chegaria. Não exatamente da formaque ela imaginava, mas sem dúvida chegaria.

Por volta das 18 hs já se ouvia o teor das conversas em altovolume que provinham do 204. Às 18:30 hs, relatou mais tardeo Sr. Ricardo, morador do 203, o som foi ligado num �“rockpauleira�” como ele mesmo dizia. Às 19 hs o volume do som foiaumentado e ele tinha a impressão que os jovens vizinhosestavam dançando aos pulos. O volume das vozes aumentarajunto com a música. Risadas., Gritos. Algazarra. O prédio haviase tornado uma espécie de caixa acústica e todo aquele barulhoecoava pelos corredores acima e abaixo. Às 20 hs, então, doisjovens saíram descendo e gritando pelas escadas, e de portasabertas, o 204 emitiu seu grito final.

Dona Graça recebeu três ligações telefônicas naquela noite.A primeira à 20:01 hs de um dos moradores, o Sr. RicardoFonseca, residente a muitos anos no apartamento 203. ASegunda às 20:02, imediatamente após o término da primeiraconversa. Dessa vez, a Sra. Solange Chagas, do 401, ondemorava com sua filha e neta. Finalmente, a terceira ligação,recebida às 20:04 hs, após o término da anterior e de ingerirdois comprimidos, um para pressão alta e outro para dor decabeça. Três telefonemas diferentes, de três moradoresdiferentes, mas que tinham algo em comum: exigiam umapostura firme e decisiva da Sra. Graça Almeida Prado, viúva,às vésperas de uma cirurgia e síndica do Residencial Ícaro.Algo precisava ser feito em relação à balbúrdia insuportávelcriada pelo grupo de jovens inquilinos.

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Não havia outra saída, e sua oportunidade tinha chegado.Mas já não esperava agradecer absolutamente nada. Sua visitanão seria cordial e trataria o incidente de forma justa, e issoem sua cabeça significava um vai ou racha definitivo.

Desce do terceiro ao segundo andar e bateu à porta. O somnão estava tão alto como antes e o barulho das conversas erisadas era quase suportável, Tahereh atendeu.

�– Quem é o responsável pelo grupo? �– Perguntou séria eseca. Tahereh ficou sem ação e nada disse até que André selevantou. Ele não era responsável por nada, mas preferiuassumir naquele momento e dar as costas ao chicote depalavras que já era declarado a açoitá-los.

�– Acabo de receber três telefonemas de moradores desseprédio. Ninguém está agüentando esse barulho que vocês estãofazendo! �– Dona Graça falava com total incisão e André apenasescutava mudo e acuado. Continuou:

�– Acaso esse barulho todo volte, eu não hesitarei em chamaros proprietários, o responsável da imobiliária, e inclusive apolícia, se for necessário. É a última vez que aviso!

Realmente seria. Ao voltar para seu apartamento depoisde deixar um rosto jovem e atônito no andar de baixo, preferiuacabar com tudo aquilo na mesma hora. Discou. Primeiro aosproprietários e depois à imobiliária. Se tudo corresse bem,não precisaria ligar à 22ª Delegacia de Polícia, da qual tinha onúmero ao lado do telefone para casos de emergência.

Desceu outra vez, avisando que já havia contatado osinteressados e que uma solução ao problema seria dada aindanaquela noite. André mais uma vez escutava calado até a últimamenção, que entristeceu em amargura sua alma e coração:

�– Eu recebi seus folhetos e gostei muito das orações. Vocêsse dizem um grupo religioso e que vieram aqui em uma missãoespiritual, mas não é o que eu e os moradores desse prédioestamos percebendo. Não posso entender que vocês tenhampalavras tão diferentes de suas ações!

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Ela se despediu e foi embora. André ficou ao pé da porta.Parecia Ter visto um fantasma �– estático, mudo e com os olhosdistantes e desfocados.

O Sr. Ali chegou acompanhado de Said e Mônica, algum tempodepois de ter sido contatado pelos proprietários. Umtelefonema nada educado. E para que a tensão do ambiente sedissipasse, sugeriu-se que se fizessem orações. O Sr. Ali foiembora, depois de reiterados pedidos de Said, que queriapoupá-lo se encarregando totalmente de cuidar do problema.

O Sr. Décio e a esposa, proprietários do 204, chegaram aoseu apartamento e esperavam presenciar tudo menos aquiloque escutavam em silêncio atrás da porta. Orações., Os jovensfaziam orações. Não havia nenhum outro barulho além dasmelodias lindas de algumas orações. Todos achavam que haviasido uma grata coincidência o casal bater à portaimediatamente após o término das orações. Said tratou derecebê-los, ao que se sentaram junto aos jovens na sala. Poralguns momentos, eles não entenderam o que estavam fazendoali. Haviam sido chamados pela síndica que, nervosa ao telefone,exigia que viessem para resolver �“um grave problema que seinstalou em nosso prédio com a maldita Micaroa�”. Agora, noentanto, a cena parecia completamente contraditória. Só haviauma solução. Chamem a síndica para que ela explique o que estáacontecendo aqui.

Dona Graça, após ser recebida por Said e sorrirconstrangida a todos, sentou-se ao lado do casal visitante erelatou, com memória detalhista, toda a seqüência de fatos.Não distorceu nenhum deles a seu favor, embora falasse semmoderação alguma. Alguns dos jovens, sentindo que o grupoestava sendo caluniado, embora na prática não estivesse,tentaram cortar a fala da síndica e o clima tornou-se maistenso ainda. Então, Said que coordenava aquela reunião nadaamistosa, disse que todos teriam uma oportunidade de falar,mas que agora a palavra era de Dona Graça e ela não deveriaser interrompida. Ela, por sua vez, continuou seu discurso que

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depois de alguns minutos, tornou-se prolixo e guiado pelaconvulsão emocional que a tomava.

Ao final, Said pediu que André falasse em nome do grupo,uma vez que estava a par dos acontecimentos. Ele não quis daruma Segunda versão dos fatos. Até porque ela não existia.Preferiu iniciar falando dos propósitos do projeto no qualestavam envolvidos e do quanto ele estava sendo maravilhoso,especialmente para cada jovem individualmente. Continuouafirmando que aquela atividade de caráter espiritual estavasendo promovida por jovens no apogeu de sua energia eentusiasmo, e que não era natural esperar que durante 24horas do dia eles mantivessem uma postura que demonstrasseessa natureza elevada, embora buscassem esse objetivo. Aofinal, concluiu confirmando toda a exposição da Dona Graça e,portanto solicitou sinceras desculpas em nome de todo grupo.

As armas foram baixadas naquele momento. Todos, semexceção, perceberam que o ambiente mudarainstantaneamente, e sem muitas palavras mais, a reuniãoterminou em sorrisos aliviados. A síndica foi a primeira a sair.Apesar de tudo, ao final iria para casa descansar e quem sabe,rezar uma das orações bahá�’ís. Os proprietários ainda ficarammais alguns minutos, pedindo desculpas pelo incidente. Nãoprecisavam, mas pediram. Após sua partida, o grupo foi reunidopor André que fez questão de ler um trecho da palestra sobreMovimento Bahá�’í da Juventude, proferida pelo Sr. FarzanArbáb, membro da Casa Universal de Justiça. O trecho falavade disciplina espiritual, a mesma que faltara aos participantesda Caravana de Badasht, a começar pelo próprio André. Aspalavras do Sr. Farzan Arbáb eram como tapa de luva. Bem dado.

O apartamento 204 adormeceu silencioso àquela noite. Nasque se seguiriam, nem tanto. Porém, não houve mais incidentesque pudessem incendiá-lo com provas e testes, assim comoacontecera logo no início da estada em João Pessoa. Na verdade,o fogo que tomou aquele recinto, estava agora no coração dosjovens. E eles, atentos a seus próprios erros, ardiam aoretomar sua meta: o serviço.

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Orações inesquecíveis

�“Se a aflição e a adversidade nos visitarem, volvamos nossasfaces para o Reino e a consolação celestial será abundante�” 11,assim instruiu �‘Abdu�’l-Bahá em uma de suas palestras. Depoisdas últimas turbulências no mar do serviço, tudo o que elesqueriam era essa �“consolação celestial�” prometida peloMestre. Problemas de unidade já estavam surgindo, às vezespor coisas muito pequenas como as decisões sobre refeições;o espírito de serviço havia sido solapado bruscamente; e oentusiasmo, alegria e radiância, presentes todos os dias nossemblantes daqueles jovens, estavam minguando. Algoprecisava ser feito imediatamente.

A primeira providencia nesse sentido já havia sido tomadapelo Comitê Executivo: as reuniões de aprofundamento deveriamcumprir com seu papel e trazer uma carga de espírito renovadoem cada sessão. Para tal, o Livro 6 �– �“Ensinando a Fé�” �– do CursoRuhí foi de fundamental importância. Eles não estudavam o livrono formato correto de um círculo de estudos, mas retiravam ostextos mais interessantes e realizavam sessões deaprofundamento criativas, colando cartazes coloridos na parede,percebendo interações entre as palavras sagradas e consultandoamplamente sobre os significados das mesmas.

No primeiro estudo, o Amado Guardião deu uma verdadeiraaula de ensino. Os jovens aprenderam que o verdadeiro métodoeficaz de ensino é estar sensível a quem se ensina. A mensagemdeve ser passada de acordo com a capacidade do ouvinte. Eraassim que �‘Abdu�’l-Bahá fazia. Nunca tinha em mente o que iriadirigir às pessoas com quem encontrava. Ele as mirava eescutava seus anseios, para somente depois começar a falar.Além disso, o Guardião indica muitas qualidades que devemestar presentes no ato sagrado do ensino e abre um lequeamplo de possibilidades e alternativas de abordagem, bem comoda diversidade humana que não deve ser ignorada peloinstrutor. Segue o texto:

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�“Não devem ser provocativos nem passivos, e nemfanáticos, nem excessivamente liberais, em suasexposições das feições fundamentais e distintivas de suaFé. Devem ser cautelosos ou audazes, devem agirrapidamente, ou aguardar uma oportunidade, usar o métododireto ou indireto, conciliar ou desafiar, estritamente deacordo com a receptividade espiritual da ama com a qualentram em contato, seja esta de fidalgo ou plebeu, do norteou do sul, leigo ou sacerdote, capitalista ou socialista,estadista ou príncipe, artesão ou mendigo. Em suaapresentação da Mensagem de Bahá�’u�’lláh, não devem falhar,nem hesitar. Não devem desprezar os pobres, nem sertímidos em presença dos grandes. Em sua exposição dosfatos relativos à Fé, nem devem realçar demasiadamente,nem diminuir a verdade da qual são campeões, quer seja darealeza seu ouvinte, quer seja ele um príncipe da Igreja,um político, ou um negociante, ou um homem da rua. A todos,igualmente, grandes e humildes, ricos ou pobres, devemeles, em uma hora tão crítica, oferecer com mãos abertas,coração radiante, língua eloqüente, e com infinita paciência,lealdade incondicional, grande sabedoria e corageminabalável �– a Taça da Salvação às multidões confusas,famintas, desorientadas e acabrunhadas de medo.�” 12

Muitas outras sessões como aquela, sempre antes dapartida para o ensino, viriam a se realizar dali em diante,gerando maior compreensão da tarefa que realizavam e levandosuas almas a um patamar mais elevado de espiritualidade.

Além do aprofundamento, por iniciativa de alguns entre eles,decidiram realizar uma noite mística seguida de uma vigília de orações.Um dos participantes assim relata esse importante acontecimento:

�“A palavra agora era disciplina espiritual! Depois datempestade, viria a calmaria. A noite seguinte seria de vigília.Hilana preparou uma vivência inesquecível, uma espécie denoite mística. Sob as luzes trêmulas das velas, em silêncio eapós a leitura de textos sagrados, escrevemos em pedaçosde papel todos os obstáculos no ensino. Foram lidas palavras

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como medo, insegurança, temor e timidez. Logo após, todosestes pedaços foram jogados em uma panela para seremqueimados, o que representaria a superação destes obstáculos.Logo após, tomamos chá e ficamos juntos, em silêncio, cada umcom seus pensamentos. A vigília havia criado um estado de oraçãoe às quatro horas da madrugada fui acordado para continuá-la.Fiz as Epístolas de Ahmad, do Fogo e a do Sagrado Marinheiro(pela primeira vez). Sentia uma energia espiritual que pareciavibrar em todos os aposentos. Aquele foi um cenário de provaçõese vitórias. Mas era também o principal responsável pelaconstrução da identidade da Caravana. A convivência diária, quetambém trouxe provações, aumentou, e muito, a unidade do grupo.Creio que nos sentíamos quase como irmãos. Aquele apartamentodeixará muitas saudades, e tenho certeza de que estará semprenas lembranças da Caravana.�”

Na manhã seguinte, então, algo surpreendente aconteceucomo segue relatado:

�“De nossa intensa ligação espiritual, sempre surgiram marespoderosos de emoção que nos levavam numa maré de lágrimasà presença do Bem Amado. E isso já acontecia antes da Caravanaser concebida, mas sem dúvida, intensificou-se em seus diasde serviço e provas. Após uma noite em vigília de orações,acordei naquela manhã ainda não satisfeito. Acho que ninguémestava. Nossa necessidade de Deus era bem maior que seishoras de orações. Como sempre, bastou �‘um olhar e o dedo deBahá�’u�’lláh�’, como Turadj diz, e estávamos os dois no quartode orações. Um quarto retangular, minúsculo. Sentamos depernas cruzadas, um em frente ao outro, e começamos a orar.Geralmente ele entoava ou recitava orações em Farsí e Inglês,sempre do jeito que lhe é característico: voz limpa e alta,inspirando convicção e devoção. Eu fazia as orações emportuguês, geralmente para o ensino e provações. Nósmergulhávamos num estado de completa contrição.Anestesiados, a noção do tempo parecia mais vaga. E quandoesse estado era alcançado, um de nós recitava a Epístola doFogo, sempre a nossa preferida.

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Naquela manhã foi Turadj quem a recitou. Avançavaconfiante por alguns parágrafos, mas às vezes a voz falhava,dando lugar ao pranto. Eu me lançava àquela maré da mesmamaneira, sabendo que logo chegaria a resposta de Deus, tantona Epístola, como em nossos corações. Ele continuou até o final,pausando mais vezes a sua leitura enquanto Deus conversavacom Bahá�’u�‘lláh. A sensação é indescritível. Mas havia em mimum pensamento constante: se Bahá�’u�’lláh sofreu todas as coisasque Ele relata naquela Epístola, como poderíamos acreditarque nós, Seus seguidores, não tenhamos que sofrer, pelo menosem um mínimo grau? E mais: se Ele confessa Sua própriahumildade perante a Presença de Deus, o que deveríamos fazernós, ínfimos que somos, enquanto viventes de testes eprovações? E finalmente: estamos contados ou não entre ospoucos campeões mencionados ao final da Epístola?

Estávamos em silêncio e de olhos fechados após o términode nossas orações. �“Alláh�’u�’Abhá, Alláh�’u�’Abhá, Alláh�’u�’Abhá�”,ouvi um coro se aproximando. A porta do quarto se abriu e vi oinesperado: nossos companheiros, entoando em uníssono aPalavra Sagrada, um a um, entraram naquele minúsculoaposento. Literalmente, estávamos apinhados. Não só em meurosto, como na quase totalidade dos outros, vi lágrimasbrotarem como flores na primavera. Várias orações foramfeitas, por unidade e pelo ensino. Como sempre, uma mão foiao centro seguida das outras, e o brado: Yá Bahá�’u�’l-Abhá!�”

Uma orla de três nomes

Após as orações e aprofundamento, que alimentavam achama ardente de servitude e unidade acesa depois do �“calorda tribulação�” na noite �“da Graça�”, os jovens saíram paraensinar. O Comitê Executivo, que já havia separado o grupoem duplas, sugeriu que as atividades fossem realizadas ao longoda orla de João Pessoa. Parte das duplas sairiam para a praia

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de Manaíra e suas quadras esportivas, outras seguiriam maisadiante até o Cabo Branco, e a terceira leva se estabeleceriana praça do Tambaú. Os dois primeiros grupos ensinariam emseus postos até o entardecer, reunindo-se com o terceiro parafinalizar as atividades.

Assim partiram, cada qual levando suas cotas de folhetos.Os que rumaram em direção à praça levavam também aexposição de cartazes, uma corda para varal de roupas eprendedores. Além disso, seguia com eles um violão que naqueledia seria usado para ensino pela primeira vez.

Hilana liderava esse grupo e sua parafernália Ao chegarem,perceberam que a comunidade tinha muita razão em sugerir oTambaú como local de ensino. Aquilo fervilhava de gente!Andando pela avenida que os levariam até a praça, Hilana eseus companheiros avistavam dois grandes quiosques à beirado mar. Entre os dois, um pier levava turistas por cerca decem metros adiante. Do outro lado da avenida, um centrocomercial servia o ano inteiro como feira de artesanato e osartistas locais tinham ali um belo e movimentado espaço paraexpor e comercializar suas obras. À esquerda dos quiosquesestava o início da praia de Manaíra, onde naquele momentomuitas almas já deveriam estar recebendo a mensagem. Àdireita, uma rua estreita e movimentada por carros e pessoasà paisana os levaria até seu destino.

A praça do Tambaú, na verdade, não era uma praçapropriamente dita. Não havia bancos, tampouco canteirosjardinados. Se parecia mais com um largo, um calçadão.Plantados de dez em dez metros, muitos coqueiros davamsombra e um clima agradável ao ambiente. Andando pela praça/largo se encontrava mais uma feira de artesanato, desta vezem sua formação mais tradicional, com barracas ependuricalhos. À frente, o Hotel Tambaú, com seu formatoarredondado, parecendo um disco voador aterrizado. A todomomento, ambulantes passavam vendendo toda sorte decomidas e guloseimas, as quais não conseguiam concorrer com

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as imbatíveis tapiocas, vendidas nos dois trailers sempreparados em um canto da praça, e que mais tarde se tornariamparada obrigatória da juventude bahá�’í.

Em meio à movimentação intensa de pessoas, Hilana, �“a nossapequena�”, como carinhosamente a chamavam, tirou da mochila acorda e solicitou ajuda para amarrá-la entre dois coqueiros.

�– Temos permissão para isso? �– um deles perguntou. E Hilana,concentrada e determinada, pelo canto do olho respondeu:

�– É o que vamos saber em instantes!Talvez os artistas presentes sofressem constantes

fiscalizações por parte da prefeitura e órgãos competentes,sempre a fim de conferir seus alvarás de permanência e outrosdocumentos afins. Porém, durante alguns dias, dois coqueirosdaquela praça foram usados como suporte de varal. Em vez deroupas, vários cartazes coloridos falando de uma religiãochamada Fé Bahá�’í estavam pendurados. Um grupo de jovenstransitava em torno deles, abordando pessoas e criando umamovimentação diferente. Às vezes, um dos jovens se sentavano chão e começava a tocar umas músicas que falavam de Deus,de Bahá�’u�’lláh e de coisas semelhantes, como também asconhecidas do �“Legião�”, do �“Paralamas�” e de outros. Arriscavaaté algumas levadas de Blues, improvisando a letra na horacomo repente nordestino. E, no entanto, a despeito disso tudo,eles não foram abordados sequer uma única vez, e era comose já fossem figuras conhecidas da área. Não porque os quepassavam sentissem familiaridade, mas sim pela forma naturalcomo chegavam, armavam o palco de seu show e começavam oespetáculo. Diziam que estavam �“ensinando a Fé�”:

�“A praça do Tambaú se tornou um marco para mim durantea Caravana. Por uma série de pequenos fatos que, se relatadosaqui, estenderiam demais essa estória. Mas o que fica gravadoem minha mente, coração e espírito, é a imagem do ensinonaquele lugar.

Quando chegávamos, geralmente num grupo pequeno, parasó depois recebermos a companhia de todos os outros, as

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pessoas, especialmente os artistas da feirinha de artesanato,olhavam-nos atentamente. Ainda mais quando a exposição saíada mochila e era �“pendurada no varal�”. Uma dupla ficava emvolta dela atendendo os curiosos que paravam para olhar echamando outros que passavam distraídos. Em duplas, orestante se espalhava por toda a extensão da praça e dasruas e travessa adjacentes.

Então eu me sentava. Não havia banco, tinha de ser no chão,ou no máximo em uma daquelas tampas de ferro redondas parao sistema de água, esgoto, telefone, coisas assim. Tirava o�“Di Giorgio�”, violão emprestado pelo querido Daniel Dalmaschio,e começava a cantar. Eu nunca havia feito aquilo, o que mecausava certo constrangimento. Quer dizer, totalconstrangimento! Sem amplificador de som, acabei descobrindoque show acústico ao ar livre acaba com a garganta. Mas eu nãome importava com isso. Uma oração de cura no fim do diacertamente resolveria o problema vocal. Então cantava alto ea voz vinha do coração. Eu queria que a música chegasse aosouvidos de todos os amigos que estavam ensinando naquelemomento e, quem sabe, inspirá-los ainda mais. Não sei seconsegui, mas eu chamava a atenção inquestionavelmente. Vezou outra, de longe, alguém ficava observando minha atuação equando eu percebia, lá estava alguém abordando o observador efalando de Bahá�’u�’lláh. Alguns meninos de rua vinham sentar-seem minha volta e �“peixe quer mar�” saia da cartola mais uma vez.

Às vezes eu cantava várias seguidas, mas quando paravapara refletir sobre o que estava acontecendo ali, era tomadopor uma visão surreal: uma praça, campo de batalha; luz versusescuridão; fogo versus véus; um violão, epicentro de energia eentusiasmo; corações, amor; quatorze jovens, quatorzesoldados, paladinos, guerreiros, cavaleiros e amazonas;folhetos, armas espirituais; uma exposição, tanque de batalha;pessoas transitando, reféns inocentes nas mãos do inimigo; oensino, garantia de bênçãos, confirmações e vitórias. Legiõesinteiras de anjos. Imaginava que se eles fossem coloridos epudéssemos vê-los, a praça do Tambaú se transformaria em

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uma obra de arte com milhares de tons sutis. E eu observavatudo aquilo em silêncio, até que voltava em mim e recomeçavaa tocar e cantar.�”

�“Os aprofundamentos de João Pessoa marcaram muito aCaravana. Estudávamos textos do Guardião que diziam que osmuitos véus que as pessoas têm nos corações deveriam serqueimados no ensino. Hoje, as pessoas estão �”confusas�” e�“acabrunhadas de medo�”. E foi exatamente isso que viacontecer quando eu e Jorge encontramos na rua um vendedorde quadros. Quando o Jorge foi entregar o folheto de orações,ele disse que não queria porque era ateu. Ele era um senhormuito cético, sem esperança alguma, crítico da naturezahumana e muito inteligente. Disse que a massa era controladapela mídia e que não refletia sobre a realidade; ficava imersanum sono profundo, o que não deixa de ser verdade. Ele tambémhavia passado por grandes sofrimentos na vida. Foi mestremaçom mas, quando ficou durante seis anos de cadeira derodas, ninguém foi ajudá-lo e por isso abandonou a maçonaria.Tinha também um preconceito muito forte contra judeus.Estava, realmente, confuso e acabrunhado de medo. Aos poucos,Jorge foi lançando a ele algumas perguntas que estimularam areflexão. Ele se sentiu desafiado de início. Sentiu que não eramais um grupo religioso qualquer e começou a gostar daconversa. Ficamos conversando durante uns 40 minutos. Aospoucos, estas perguntas e as respostas dadas pelo Jorge foramretirando os véus daquela alma. No final, este senhor não sórecebeu as orações, mas pediu folhetos com outrasinformações sobre a Fé Bahá�’í. Ele também elogiou muito onosso trabalho e a nossa iniciativa. Foi uma grande vitória paranós! Eu e Jorge ficamos muito alegres! Era uma sensação muitoboa dar um pouco mais de esperança para um povo tãodesacreditado! Estas são as recompensas que recebemosquando ensinamos!�”

�“Chegamos no Tambaú para ensinar, eu e Nilanna. A partemais difícil era escolher a primeira alma para oferecer amensagem. Achamos que eram perfeitos para tal aqueles dois

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rapazes sentados em frente às suas obras em exposição nafeirinha que havia por lá. Avançamos até eles e começamos afalar. Preliminares passadas, eles trouxeram um banquinhopara nós. Só tinham um. Primeiro as damas. Nilanna sentou.Encantava-me o jeito dela escutar os dois. Atenta e serena.Às vezes sorria levemente, mais com os olhos do que com aboca, e eu tinha certeza que os interlocutores percebiam essamudança sensível. Já estávamos a uns dez minutos ali quando amãe de um deles chegou. O rapaz pediu a bênção ao que ela aconcedeu com um beijo no rosto. Mais algumas amenidades efomos apresentados:

�– Esse dois jovens estão aqui falando da religião deles, a Fé...�– Bahá�’í!, dissemos.�– Sim, Fé Bahá�’í.A senhora recém chegada abriu um sorriso surpresa e nos

relatou o seguinte:�– Na noite passada eu tive um sonho. Sonhei que um grupo

de jovens viria me falar de uma religião. Eles eram divididosem duplas,, assim como vocês dois estão agora. No sonho euestava com outras pessoas que foram indo embora, mas osjovens me cercaram, brincando de roda e cantando ao meuredor. Eu estava constrangida, era a única senhora daqueleambiente, mas não queria ir embora como os outros. O sonhoassim terminou.

Bom, se ela tinha ficado surpresa, que susto foi o nossoentão? Falamos da Fé a ela por muito pouco tempo e logo elase foi, ao contrário do que havia sonhado. Aos rapazes, porém,continuamos falando por mais tempo, que se despediramagradecidos pela conversa.

Fico pensando se um dia aquela senhora se tornará bahá�’í.Talvez tenhamos perdido a oportunidade de guiá-la. Talvez...�”

�“De manhã cedo, quando eu acordei, sentia uma necessidademuito grande de fazer oração. Mal vi as pessoas, fui direto aoquartinho de oração e fiquei um bom tempo por lá. Aquela foi a

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primeira vez que eu fiz a Epístola do Fogo durante os dias daCaravana, o que me marcou muito.

Vinícius e eu saímos para ensinar e foi um dia maravilhoso.Quando já estava perto da hora de voltarmos senti mais umavez a necessidade de orar. Eu olhava aquele mar, o brilho dosol ali por perto, Sobhan e o Turadj ensinando. Então peguei olivro de orações na mochila do �“Vini�” e sentei numa sombra, àfrente do mar, meditando, orando e pedindo a Deusdesprendimento, agradecendo as provações e que nostornássemos almas guiadas por Sua Vontade no ensino daCausa.�”

�“Nos outros dias, fomos ensinar por meio de uma exposiçãona praça do Tambaú. Foram bons dias de ensino. Recordo-mede um senhor evangélico com quem conversei. Quandoentreguei a ele as orações, ele perguntou se era da Bíblia. Eudisse que eram orações bahá�’ís. Ele, então, recusou-as dizendoque �“só Jesus salva�”. Mas eu disse que admirava a fé que eletinha em Deus e que queria entregar a ele a palavra de Deus.Realmente, não me recordo muito bem o que eu disse. Mas ofato foi que no final, ele não só aceitou o folheto como tambémdisse que viria à Brasília e iria visitar �“a sua igreja�”. Quandonos despedimos, ele me entregou o seu cartão. Após estaexperiência, percebi que não havia porque ter medo de ensinara evangélicos. Devemos confiar na inspiração divina paraensinarmos com sabedoria, escolhendo as palavras certas.Temos de estar desprendidos. A religião deve ser causa deunidade, e não de preconceitos e inimizades, não é isso queaprendemos?�”

�“Tahereh me chamou para olhar umas pulseiras que ela queriacomprar para presentear a todos os amigos. Na verdade, ela queriasaber se eu iria usar acaso ganhasse. Ao chegar e me deparar como objeto, pensei estar diante da essência do mau gosto!

�– Táta, prometo guardar com muito carinho. Guardar!Ela fez aquele bico bem conhecido e disse que assim ela

não compraria. Bom, eu não podia dizer que usaria, era muito

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para mim e eu teria de transcender meus princípios no que dizrespeito ao vestuário, enfim... sem a menor chance!

Na pequena discussão do �‘compra, não compra�’, percebi queo dono da barraca estava lendo um folheto bahá�’í. O que eu nãosabia é que Tahereh já havia ensinado a ele a minutos atrás.Ele abriu o folheto diante de nós e teceu alguns comentáriosirônicos sobre o princípio de igualdade entre homens emulheres. Para ele, aquilo não estava escrito na Bíblia e porisso não continha a menor verdade. Num discurso machista,disse que as mulheres deveriam ter seu lugar na sociedade,mas sempre estariam abaixo dos homens. Seu discurso eracoeso, como o da maioria dos evangélicos, mas extremamenteinsipiente.

Todas essas coisas ele disse olhando para Tahereh que,nitidamente transtornada com a chuva de palavras, malconseguia olhar nos olhos do rapaz. Eu tinha certeza que umolhar firme em sua direção seria o bastante para fazê-lo recuarem suas asserções nada educadas e por isso mantive-me quietonessa postura. Ele olhou somente uma vez para mim e eupercebia que ele subjugava Tahereh, especialmente naquelemomento que falava da submissão feminina. Conclui que jábastava e tomei a palavra sem pedir desculpas:

�– Senhor, porque considero as palavras da Bíblia comosagradas, eu nunca zombaria delas. As palavras contidas nofolheto que tem em suas mãos são sagradas para nós, e o fatode que o senhor não as considera assim, não deveria fazê-lopensar que tem o direito de menosprezá-las. Com sua licença.

Eu olhei para Tahereh indicando que deveríamos ir emboranaquele momento. O rapaz não disse nenhuma palavra.Observou-nos caminhar até o momento que me virei e aponteiem sua direção dizendo:

�– Ah! E quando estiver rezando para Jesus, não esqueça depedir guia para essas duas almas que o senhor conheceu agora!

Acho que ele esperava tudo, menos um pedido de oração. Eunão saí feliz, mas estava satisfeito por ter defendido a nobreza

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da Causa, muitas vezes diminuída pelos comentários queouvimos durante o ensino.�”

�“Algumas pessoas que encontramos no ensino são tãoincisivas em seus comentários que, ao invés de nos sentirmoschateados, somos levados a encarar o fato como uma simplese curiosa situação. Uma dessas experiências vivenciei ao ladode Jorge e Bianca. Fomos ensinar na praia quando encontramosum homem que devia ter uns trinta e poucos anos. Quandocomeçamos a falar a ele sobre a Fé, descobrimos que eraevangélico. Ele olhava muito para mim que nesse dia estavacom batom e brinco. No meio da conversa, referindo-se a mim,ele nos disse que uma pessoa vaidosa não podia ser salva, afinalos anjos do céu não usam esse tipo de �‘tentação�’. Para ele, eudeveria me reciclar para ter meu lugar no céu. Saí de lá compena da visão que aquele homem tinha sobre salvação.�”

�“Eu estava feliz por ser a primeira vez que eu sairia paraensinar com Anissa. Ela sempre voltava entusiasmada do ensinoe eu imaginava que aquela tarde seria muito boa.

Ensinamos a algumas pessoas na calçada de Manaíra atéresolvermos abordar aqueles que estavam na areia da praia.Um senhor e duas senhoras, com seus sessenta anos, acreditoeu, estavam tranqüilos embaixo de seu guarda-sol. Pareciaperfeito para transmitir a mensagem e foi o que tentamosfazer sem êxito. Eu ainda estava me ensaiando para começarquando ele disse ser �“católico apostólico romano�” e que nãomudaria de religião. Eu disse a ele que não queria vê-lo mudarde religião, mas que apenas nos ouvisse falar da Fé.Contrariado, novamente interrompeu. Ele estava na praia, comorelatou, para descansar e não tinha o menor interesse emescutar. Tentei mais uma vez e fui cortado bruscamente �–�“não estou interessado�”. Da última vez foi Anissa que tentou.Frustrou-se, o senhor estava irredutível e já começava a serrude em suas palavras. Ok. Não era o dia. Nós nos despedimose Anissa pediu que fizéssemos orações naquele momento embenefício daquela alma.

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Continuamos, afinal, nada de desânimo. E foi aí queconhecemos a �‘Carla Peres�’. Ela estava com um belo maiôcolorido, sentada na areia da praia. Na verdade ela estavabrincando com areia. Até que sua mãe a chamou. �‘Ela é fã daCarla Peres�’, explicou a moça, e por isso ganhou esse apelido.Nós a ensinamos durante um bom tempo e falamos de RevelaçãoProgressiva e outros princípios, à medida que ela seinteressava mais por ouvir. Como sua casa era muito longe,seria difícil ela aparecer na reunião à noite, mas nós anotamoso endereço para enviar-lhe algo sobre educação, assunto aoqual ela demonstrara interesse.

Na despedida, a pequena Carla Peres, que ficou brincando todoo tempo com a sua nova amiga, a Nissinha, não queria que elafosse embora. À distância ela continuava a dar adeus para (nós?),acho que só para Anissa, que devolvia o aceno sorridente e feliz!�”

�“Era uma honra para eu sair para ensinar com a dupla maisfamosa da Caravana, Tatá e Tutú (Tahereh e Turadj). Fomosao Tambaú aguardar três jovens que havíamos ensinado no diaanterior e que �‘juraram�’ voltar à praça no horário marcado.Enfim, estávamos lá, mas os jovens não apareceram. Quegrande furo, ficamos com �‘cara de tacho�’. Tahereh pegou oviolão e começou a tocar. Eu e Turadj acompanhávamosestalando os dedos. De repente, um homem se aproximouaplaudindo. Ele tinha um sorriso aberto (que eu julguei ser umsorriso de bêbado), e sentou-se conosco assim que oconvidamos. Talvez, naquele momento, ele não estivessealcoolizado, mas achei que talvez tivesse tendência para tal.Nós queríamos ensinar a ele, afinal, por sua própria vontadeele havia se aproximado e isso era �‘um inequívoco sinal de Deus�’.Uma recompensa pelo �‘bolo�’ que levamos. Somos realmenteingênuos demais! Aquele sorridente não estava muito afim deescutar, exceto as músicas que Tahereh cantava. O tempo foipassando entre músicas e estórias de sua vida que ele contava.Disse que era amigo de muitos artistas, entre eles o próprioRei do Brega, Reginaldo Rossi. Verdade ou não, seguimostentando ensinar e nada de sucesso. Ele se despediu ao final

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várias e várias vezes. Apertava a mão de Turadj e agradecia.Apertava a minha mão e agradecia. E, finalmente, com umadelicadeza que não combinava com sua estampa, tomava a mãode Tahereh e a beijava com uma reverência comovedora,agradecendo as músicas e elogiando seus belos olhos verdes.Depois recomeçava o processo. Ele foi embora e voltou algunsminutos depois. Pediu-nos dinheiro para beber água (quepassarinho não bebe). Eu sabia! Aquele sorriso era realmentemuito suspeito! Se for verdade que no ensino se encontra detudo, a nossa noção de �‘tudo�’ tinha aumentado bastante naqueledia. Tahereh que o diga!�”

�“No final do dia sentimos o quanto estávamos protegidospor Bahá�’u�’lláh. Anissa andava com uma pequena bolsinha azul,onde tinha dentro todo o dinheiro da galera para pagar o alugueldo apartamento, cerca de 200 reais. Antes de irmos embora,enquanto comíamos a famosa e habitual tapioca, Anissapercebeu que não estava com sua bolsinha. Eu e Turadj tambémnão estávamos com ela. �“Perdemos o dinheiro!�”, pensamos jádesesperados. Porém, ao lembrarmos dos locais por ondehavíamos passado durante o ensino, lembramos de umalanchonete dentro da qual ensinamos para sua dona. Turadj foicorrendo até lá sem a garantia de encontrá-la, ainda mais como dinheiro.

A bolsinha estava lá, com o nosso aluguel dentro, guardadapela senhora que tinha em suas mãos o folheto de orações quehavíamos entregado e que ela adorara como disse a Turadj. Maisum pouco de ensino não faz mal a ninguém, e ele sabia disso!

Nós estávamos completamente protegidos pelas HostesDivinas durante aquela tarde e nos outros tantos dias daCaravana. E por vários momentos percebíamos issoclaramente.�”

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Os primeiros na América

A tarde de ensino no último dia havia terminado. Últimatarde de uma série de outras tão profícuas que deram a JoãoPessoa um lugar muito especial ao coração de cada jovem quepor lá esteve naqueles dias de janeiro. Como em Recife,saudade já era grande. Eles tinham de comemorar, e nadamelhor que a �“Baladona�” para aumentar ainda mais o astralpositivo do grupo.

Bom, a noite não começara agradável a todos. Deve-se fazermenção à facção nitidamente criada. De um lado, Turadj eNilanna e sua avassaladora paixão pelo ritmo local: o forró. Deoutro, André e Tahereh com sua avassaladora aversão à dança.E foi só quando André chegou ao apartamento, depois de umacaminhada pela praia, que se deparou com a derrota final ao�“arrasta-pé�”. Turadj e Nilanna comandavam os casais, algunsdos quais eram formados só por meninas, dançando ao som de�“escrevi seu nome na areia...�”, letra de um xote muitoconhecido. A cena era cômica. Todos dançando e Taherehsentada na sacada somente observando a movimentaçãoentusiasmada dos amigos. Quiseram arrastar o pé de André,mas ele rapidamente fugiu para ficar com sua companheira deideologia musical.

�“Azar deles�”, é o que pensavam os outros, �“pois não sabemo que estão perdendo�”. Uma música atrás da outra, semprecom volume moderado para não serem convidados à rua umanoite mais cedo, ia tornando o salão de dança do 204 cada vezmais animado. Os casais trocavam de par e vez ou outra osdois maestros faziam correções na forma com que seus alunos-discípulos dançavam. E aquele era somente o principio da noite.

O grupo só voltou a estar completamente unido quandodecidiram jantar. Dirigiu-se à praça de alimentação do HíperBom Preço e logo após atenderam ao convite do Tio Ali paraque fossem até sua casa para uma despedida. Lá chegando,uma verdadeira recepção havia sido preparada pelo querido

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pioneiro. Recebia cada um com abraços e beijos, e sua sala deestar foi ficando cheia. Também chegaram Said e Mônica, ealgumas orações em agradecimento e louvor a Deus foramrecitadas.

Quando o Tio Ali começou a falar a sala já estava impregnadade um clima de muita amizade. Contou algumas estórias, trouxeuma foto de quando era criança e brindou a todos com seuamor. Só depois veio o brinde com refrigerantes, biscoitos esorvete. Era a forma singela que aquela comunidade e seu maisantigo pioneiro possuíam para dizer adeus, e quem sabe, atélogo. E não só na lembrança, como também no coração, asimagens daquela noite permanecem registradas com muitocarinho. Despediram-se.

Mas a noite ainda não estava terminada. Pelo contrário, elaapenas começava para todos e disso tinham certeza apósreceberem de Valentim, filho mais velho de Said, os convitespara uma boate itinerante que, naquela noite, estavapromovendo o lançamento de um energético, desses que cadagole eqüivalem a xícaras inteiras de café. O importante nãoera a cafeína em si, afinal ânimo e energia sobravam em cadaum deles, mas sim o fato de poderem passar uma noite alegrejuntos.

Por volta da uma da madrugada, em dois táxis, chegaram àfrente da �“Côco Doido�”. Esperavam mais gente, é verdade,mas a música alta já os convidava à pista. E foram! Após brevereconhecimento do local, colocaram os esqueletos parachacoalhar. Techno, Dance, House, Funk, Hip Hop, Axé, Sambae Melody embalaram a todos noite adentro. Ainda mais depoisque o DJ enviou um abraço �“aos jovens da Comunidade Bahá�’í�”em sua lista de informes durante uma das músicas. Obra deValentim que estava fazendo de tudo para que eles tivessemuma noite maravilhosa.

Entre muita música, sorrisos e alegria contagiante, láestiveram até pouco antes das cinco da manhã. De onde estavainstalada a boate até a praia contava-se cinco quadras. E foi

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para lá que se dirigiram logo após a Baladona. Ainda estavaescuro, mas não por muito tempo. Na praia, andaram pelo pierdo Tambaú, por onde transitavam durante seus últimos diasde ensino. Na ponta, estavam dois homens com suas varas depesca ao mar. �“Deus ajuda quem cedo madruga�” diz o ditado. Eeles caminhavam lentamente naquela direção final.

O mar, aberto franco em toda a sua longa extensão, estavarevolto logo que uma claridade tímida foi tornando a escuridãomais amena. O tumulto de suas águas lembrava o tumulto datransformação. E eram tantas! Aqueles dias em João Pessoatraziam uma percepção inequívoca de cada uma delas. Ospensamentos voavam com o vento forte e frio que lhesalcançava o rosto. Alguns em silêncio. Outros preferiam asorações. Um deles se lançou à água que, naquela hora do dia,devia estar especialmente gelada. Eles aguardavampacientemente.

Foi então que o primeiro raio de sol brilhou sobre a América,e aqueles jovens que o aguardavam sorriram em boas vindas.Um raio. Uma só palavra. Gratidão. E após ele, outros brilharam,e um sol gigante apareceu por entre as nuvens deitadas sobreo longínquo horizonte. Em uma ligação magnética, o Astro Rei eseus súditos deslumbrados permaneceram em contemplação,mirando-se mutuamente. E embora muitos pensamentos esentimentos transitassem nas veredas de seus corações, essecaminhar era de um movimento retilíneo, calmo e sereno. Umacerteza, que não se sabia ao certo de onde procedia,apresentava-se junto àquela cena. Uma certeza de que haviaem cada um deles um sol nascendo naquele momento, perfeitae simultaneamente ao que ora estava no céu. Assim como oobjeto de sua inspiração, os sóis interiores afastavam aescuridão dos jovens reunidos. O frio do vento e a agitação domar, dentro e fora deles, dava lugar ao calor e tranqüilidadedo nascer de um novo dia. Por isso estavam ali: para contemplaro nascer de um novo dia dentro de si mesmos e para JoãoPessoa, para o nordeste, para o Brasil, para a América.

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E talvez, porque vivenciavam esse nascimento especial,naquele mesmo dia viajariam como os Reis Magos fizeram adois mil anos atrás. Natal era a próxima e última escala daCaravana de Badasht.

Os três jovens restantes

Dez dos 14 jovens que estavam servindo em João Pessoaseguiram viagem para Natal. Hilana, Sara e Sobhan deixaramo grupo que perdia três de seus grandes servidores. Alémdeles, o próprio Jorge, que residia em Natal, teve de abandonaras atividades para voltar a Recife e aplicar um treinamentojunto à comunidade local. Em sua despedida escreve avaliandoo que significou a Caravana para si próprio:

�“Para resumir os meus sentimentos depois da Caravana,posso dizer que tive a certeza, durante e depois deste projetotão audacioso, de que realmente tinha compreendido um poucomais sobre a maneira misteriosa com a qual Bahá�’u�’lláh guianossas vidas. Talvez o aprendizado mais valioso durante aquelesdias foi a verdade de �‘muito são chamados, poucos sãoescolhidos�’. E mais: somos nós afinal quem decidimos sequeremos estar entre os escolhidos ou não.�”

A exemplo da primeira viagem, a segunda foi muitoagradável. Talvez até mais! Com menos pessoas na Van, quedessa vez foi locada sem grandes dificuldades, eles viajarammais confortavelmente. E assim, num piscar de olhos, jáestavam rodando pelas ruas de Natal. Quando a tarde jácomeçava a dar lugar à noite, a Caravana de Badasht foirecebida às portas da sede local bahá�’í por uma jovemsorridente e anfitriã.

Exultante, Magnólia saudou a todos dando boas vindas,enquanto trabalhavam para levar toda a extensa bagagem paradentro. Magnólia já sabia, a muito tempo, da vinda da tal

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Caravana à sua cidade. Pensou até em participar das atividadesantecipadamente, como Jorge o fez, mas preferiu esperá-laatingir seu posto final. Esperou ansiosa, sem dúvida, pois paraela era uma verdadeira bênção receber tantos outros jovens,amigos ainda desconhecidos, aos quais ela dispensaria muitoamor, ofereceria seus serviços, e colaboraria de todas asmaneiras para o bom andamento das atividades, em especial,as de ensino. Nesse espírito, oferecido por ela, cada um dosjovens visitantes teve motivos para acreditar que a estadaem Natal seria carregada de bênçãos, maiores e menores,assim como até então havia acontecido, dia após dia.

Além de Magnólia, Brenno foi mais um dos que uniram seusesforços em torno do projeto. Convidado por Nilanna e Vinícius,seus primos, e após topar com todos os jovens que lá estavam,ele não teve dúvida de que seu lugar nos próximos sete diasseria a sede bahá�’í, ou em qualquer outro que porventuraviessem a estar, desde que pudessem permanecer unidos emtorno dos ideais de serviço e com a alegria costumeira vista eouvida entre eles.

Aline, finalmente, seria a última a se levantar para servirao projeto. Ela foi à Festa de 19 Dias, realizada na noiteposterior à chegada da Caravana, e lembrou que estava indo aum ambiente muito agradável e espiritual, assim como todasas festas que a comunidade local promovia. No caminho elaimaginou todos cantando as músicas bahá�’ís, mesmo sem violãoou afinação. Já podia ouvir a melodia das orações alcançaremseus ouvidos e sentir as singelas emoções provocadas pelasPalavras Sagradas. Não sabia o teor, mas de antemão lembravada leitura da Carta de 19 Dias, enviada todos os meses pelaamada Assembléia Espiritual Nacional. E ao final de sua pequenaviagem entre pensamentos, achou que já podia adivinhar asdelícias servidas na parte social. Ao chegar, no entanto,deparou-se com algo que ela sequer poderia imaginar: jovens,vários deles, com jeitos e acentos diferentes vindos de várioslugares. Rostos que ela nunca havia presenciado antes, masque tinham uma familiaridade singular. Todos eles eram bahá�’ís.

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Mais espantada ainda ficou quando descobriu o motivo dapresença de todos eles: o serviço. Então, dali até o momentoem que ela fez questão de ser incluída como participante doprojeto, o tempo assinalou pouco mais de uma hora. Ela sabiaque havia chegado o momento de promover certas mudançasem si mesma, e via naquela oportunidade algo que não lheescaparia. Eu quero, eu posso e eu vou. Três verbos e fim deperíodo!

Assim, no final daquela noite se completaria o número de19 jovens participantes da Caravana de Badasht. Emboraespecial e curioso, o fato foi constatado como meracoincidência. Ou não, como diria Caetano. Ao final, o 19 soariacomo mais um detalhe místico que se relacionava ao ato deensino. Nem exaltado, nem subestimado, eles mesmos sóperceberam-no após o término do projeto.

Enfim, eles haviam chegado e as �“boas vibrações�” já pecorriamo espaço de sua nova casa. Uma casa muito grande! A sede bahá�’íde Natal possui uma peculiaridade que a torna única. O formatode seu terreno. De frente para a pequena fachada da casa, nãohá como saber a imensidão do que está por trás dela. E é verdade,a área deve ter uns 6 metros de largura por uns 80 decomprimento. Uma minhoca esticada! Na entrada um salão quasequadrado com um corredor para os fundos. Caminhando ao fundoe desvendando sua extensão, na seqüência vinham duas salasanexas onde estava o escritório da sede, outro salão parareuniões, uma copa, uma cozinha, um quarto e um banheiro. Porém,ainda havia mais. Saindo pela porta da cozinha, um corredor levavaa um banheiro externo, uma edícula de dois ambientes, a área deserviço e a um imenso quintal com frondosas mangueiras que,naquela época, ofereciam generosamente seus frutos todos osdias. Uma sede muito grande, com muitas vantagens, entre elas,a possibilidade de fazer uma caminhada matinal sem sair para arua. Privilégio sem igual? Talvez, mas a verdadeira virtude contidanaquela sede local bahá�’í viria aparecer somente depois, quandoSilvio, um dos membros da Assembléia Local, chegasse para daras boas vindas.

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Firmeza e Lealdade ao Convênio

�– Sejam bem vindos! �– Dizia Silvio a todos, enquantocumprimentava àqueles que já conhecia e se apresentava aosque lhe eram desconhecidos.

�– Eu acho que vocês vão gostar muito de Natal. É uma cidademuito acolhedora, com suas aprazíveis belezas naturais e umacomunidade bahá�’í cheia de energia. �– continuou ele sob aatenção dos visitantes. �– E também gostaria de anunciar quetodos serão martirizados nos próximos dias! Um olhar sérioem direção e todos, e logo após, o costumeiro sorriso indicandouma de suas �“maravilhosas�” piadinhas. Como ele mesmo dizia:�“ninguém consegue contar uma pior do que as minhas!�” O climade descontração já ia as tantas quando ele enfim anunciou quea Assembléia Local havia preparado uma reunião pararecepcionar oficialmente a Caravana. A tal reunião havia sidodividida em duas partes. Na primeira, as regras de convivênciadentro da sede seriam lidas e estudas e na segunda, os outrosdetalhes, tanto das questões logísticas como do andamentodo próprio projeto, seriam detalhadamente explanados.

�– A Assembléia consultou sobre a permanência dos amigosem nossa comunidade e quis auxiliá-los de todas as formaspossíveis. �– Terminou sua explanação preliminar. Continuariase não lhe perguntassem sobre a reunião comunitária.

�– Que reunião? �– Devolveu ele a indagação um tanto quantopreocupado e surpreso. Um dos jovens explicou:

�– Como a Caravana de Badasht foi uma idéia e iniciativaindividual, sendo organizada em apenas um mês, estava previstono cronograma de atividades uma reunião a fim de apresentaro projeto à comunidade local, fazê-la saber de seus objetivose métodos, para que assim, alguns levantamentos para serviçopudessem ser naturalmente absorvidos. Além disso, nessareunião poderíamos ouvir os anseios da própria comunidade,colher sugestões diversas e fazer a sua execução adequar-seda melhor maneira às expectativas de cada lugar. Por isso a

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chamamos de reunião comunitária, a qual deveria ser realizadahoje à noite, primeira entre as seis que passaremos aqui.

Silvio escutava a tudo, àquela altura, com o semblantealterado pela notícia:

�– Ninguém nos avisou absolutamente nada. A Assembléianão foi informada dessa reunião. O que sabemos da Caravana éque ela é formada por um grupo entusiasta de jovens que viriamsomar forças ao desenvolvimento de nossa comunidade. Alémdisso, imaginamos que vocês possuem uma organização própria,com suas metas a cumprir, mas nenhum detalhe nos foicomunicado.

O que dizer? Nenhum deles sabia, mas afinal, no lugar dareunião comunitária, tiveram uma reunião com o irmão de Silvio,André Azevedo. Ele sorriu ao início. Um sorriso parecido comaquele que seu irmão costumava abrir ao contar suas anedotasdo �“arco da velha�”. André também possuía a mesmaespirituosidade, o que fazia a todos pensarem que era algoligado às informações genéticas transmitidas por suas geraçõespassadas. Algumas brincadeiras e a reunião começou.

�– Sejam bem vindos! �– era a exclamação inicial de André,assim como fora de Silvio e Magnólia. Havia uma preocupaçãosem igual de fazer os viajantes se sentirem assim, o quesempre constituiria uma das principais exortações do AmadoMestre �– a acolhida radiante de amigos e estranhos. Tinha deser assim, ainda mais naquele momento em que se preparavampara falar de regras, o que nunca fora tarefa fácil de serexecutada. Alguns dizem que isso se deve à tendência naturaldo ser humano em quebrá-las, mas a questão fica semexplicação plausível quando se lembra que todo ser humano énobre por natureza e capaz de conhecer seu Criador. Dequalquer forma, a palavra regra traz uma carga negativa quenão seria benéfica à reunião e talvez seja por isso que elecontinuou assim:

�– Bom, a Assembléia me solicitou realizar essa reunião juntocom vocês para transmitir algumas... (regras) ... alguns

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procedimentos para o bom convívio dentro de nossa sede bahá�’í.Mesmo sem a palavrinha abominável de forma explícita, umarrepio pela barriga foi sentido por cada um que escutava seuanfitrião.

1. Horário de silêncio. (Como assim, horários para dormir?Eu já sou maior de idade para ser lembrado que tenho dedormir cedo. Onde já se viu, sair de casa, viajar pelo Brasilafora, vir até um projeto de ensino, chegar nessa cidade ereceber um relógio cuco programado para enviar afora o odiávelpassarinho e lembrar-me que tenho de ir para a cama?Francamente, se eu quisesse isso tinha ido servir ao exércitoe não a esse projeto.)

2. Homens separados de mulheres. (Certo, eu atécompreendo que eles desejem zelar pelo nome da Fé, masparece que eles estão desconfiados da gente. Como se todostivessem antecedentes ruins e que por isso fosse necessáriodecretar oficialmente que temos de dormir separados.Coitados dos meninos �– dormirão naquele quartinho apertadopróximo do quintal.)

3. Manter a sede limpa. (Calma aí �– isso já é demais! Elespensam que nós não nos preocupamos com essas coisas? EmJoão Pessoa essa foi uma das questões mais comentadas nasconsultas. Disciplina era o nosso lema. E agora isso se encontrano código de leis que temos de cumprir. Nós temos plenaconsciência disso, não somos obrigados a fazê-lo.)

(4, 5, 6, mais de 10). (Quando é que isso vai terminar? Achoque já estamos cientes de tudo, não? Vamos nos comportar,se é isso que desejam. Podemos jurar se for preciso, masvamos logo dizer boa noite.)

Naquela noite, em meio à imaturidade do grupo, André tevede avançar por entre o estatuto de funcionamento da sedecomo valente guerreiro. Se do lado dele havia uma simplessolicitação de sua Assembléia Local, do outro, alguns jovensde semblantes cerrados o contemplavam desapontados. Mas aAssembléia sabia das dificuldades que essa reunião

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evidenciaria. Por isso mandou um experiente soldado paradesvencilhar-se da missão. E o fez com maestria. Ele mesclavamomentos de seriedade com pequenas brincadeiras,amenizando o tom da leitura dos tópicos e a tornando menosmaçante. No final, abriu uma caixa de chocolates que repousavaa seu lado sob os olhares atentos de todos.

�– Meu presente de boas vindas! �– Exclamou oferecendo,além de sua nobre atitude, a doçura daqueles doces suculentos.Doçura era algo que os olhares necessitavam, muito antes daspróprias papilas gustativas. A despeito do presenteachocolatado, havia um amargo com o qual foram dormir naquelanoite. Algo estava errado e o pensamento de �“amanhã serámelhor�” funcionava como principal elemento de auto persuasãoque impunham a si próprios.

O dia seguinte amanheceu e, de acordo com a programaçãonormal, eles deveriam sair para ensinar, voltar na hora doalmoço, para que a tarde trouxesse a avaliação, o primeirotempo de folga e finalmente a reunião de amigos à noite. Issoera o programado. Bem diferente do que acabou acontecendo.Quando o último se levantou, por volta das nove horas, pensouque já estava muito atrasado para o café e inclusive para oaprofundamento e orações. No entanto, ao chegar na copa,encontrou um de seus amigos a conversar com Sílvio.

�– Se eu desejo sair para ensinar agora �– dizia ele �– ninguémpode me impedir, certo? Silvio respondeu:

�– Sem dúvida! Sem dúvida! Cada um tem direito e o deverde ensinar a Fé, e isso é Bahá�’u�’lláh quem determinou no SeuLivro de Leis... (continuou falando da importância do ensino).

�– Então porque eu teria de ficar para consultar com todosvocês? �– Questionou mais uma vez a decisão que havia sidotomada, de que não sairiam para ensino naquela manhã a fim deconsultarem sobre todos os outros aspectos ainda nãomencionados entre eles.

�– Veja bem... �– disse e pensou rapidamente, em resposta aojovem �– você não precisa ficar se não quiser. O que estou

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tentando explicar é que a sistematização é algo que devemoster em mente quando organizamos projetos de ensino. Essaconsulta servirá para sistematizarmos nosso trabalho a fimde obter-mos os melhores resultados no fim do período. Talvezo seu ensino essa manhã seja coroado de bênçãos, mas semdúvida, seria melhor se junto a ele tivéssemos desenvolvidouma abordagem sistemática. Se você ficar, poderá ajudar-nos a desenvolver isso.

Essa troca de impressões se estendeu por outros váriosminutos. Silvio recorreu a muitos argumentos para se fazercompreender, sempre tomando o cuidado de não invalidar odesejo e a iniciativa individual do jovem. Por outro lado, estejá o compreendia muito bem, aceitava seu discurso, mas nãoconcebia que tivesse de viajar tanto para ensinar e uma vezfrente à oportunidade, não pudesse agarrá-la com unhas edentes. �“Eu vim para o ensino, não para consultas�”, esse era opensamento predominante. Quem estava com a razão?Certamente os dois. A reunião começou e todos estavampresentes com Silvio, inclusive seu companheiro de conversadurante o café da manhã.

Foi uma longa reunião. A começar, uma explanação sobre aCaravana de Badasht e seus �“comos�”. Como surgiu. Como sepreparou. Como se desenvolveu. Como se executou. Como seavaliou. Como ela chegou. Terminada essa primeira etapa, apalavra seguiu com a comunidade, representada pelo cordialanfitrião. Agradeceu a presença de todos e falou algumaspalavras para demonstrar o quanto era importante e honrosorecebê-los. Continuou desfazendo alguns mal entendidos,especialmente quanto aos anseios da Assembléia Local. Falouda preparação prévia e das consultas da instituição a fim deprover uma ótima estadia a todos, bem como para o melhoraproveitamento da mão de obra que ora recebia. Continuoudetalhando os planos de trabalho concebidos na localidade, osbairros-meta e a metodologia de ensino por eles utilizada. E,finalmente, anunciou que o Membro do Corpo Auxiliar, Sr.Sadat, acompanharia os trabalhos da Caravana, aproveitando

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que o mesmo já estaria coordenando o grupo de instrutoreslocais durante a semana local de ensino que, coincidentemente,começaria naquele mesmo período.

Não havia nada de errado. As ponderações levantadas erammuito plausíveis e indicavam o zelo com o qual a comunidadelocal tratava os amigos viajantes. Mas não era assim que osjovens se sentiam. Desde o primeiro impulso em direção aoprojeto, a idéia havia sido desenvolvida pela própria energiajuvenil posta em movimento pela iniciativa individual. Todosos detalhes haviam sido concebidos através dessa mesmaenergia. Primeiramente por dois jovens, depois pelos outros,que foram se levantando para servir e, finalmente, por aquelesque participavam do projeto em si. Eles haviam passado porgrandes provas juntos e aprenderam com seus próprios erros.A concepção da Caravana cresceu, os passos dados foramconfirmados, a unidade de corações entre eles se desenvolveue eis!, tinham uma identidade, criada com sorriso e lágrima,com suor de batalhas no ensino da Causa e dentro de seuspróprios corações. Seus ouvidos não conseguiam captar deforma pura tudo aquilo que era transmitido e um alerta de�“perigo, estão querendo tomar nossa identidade!�”, ecoava altoem suas mentes.

De qualquer maneira, a reunião havia sido satisfatória. Maisdo que imaginavam ao se sentarem para o início da mesma.Sílvio, principalmente, sentia que tudo já estava certo e quedali em diante o projeto seguiria seu ritmo normal. Pensavaassim por acreditar que a consulta produziria bons resultadosnos próximos dias e porque estava verdadeiramentesensibilizado com o que os jovens contaram sobre a Caravana.Em seu coração, ver a juventude presente e em pé,apresentando-se para o serviço, fazia-o recordar,invariavelmente, de seu tempo como instrutor viajante. Assimcomo aqueles que lá estavam, ou talvez muito mais, a algumtempo atrás ele também viajara por muitas cidades levandoconsigo o Chamado do Reino. Ele via a si próprio na faceentusiasmada de cada um dos jovens sentados em sua presença,

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e uma saudade fez seu peito comprimir-se. Quando falaramda espiritualidade na Caravana, contaram dos efeitos da últimavigília de orações em João Pessoa, Silvio se emocionou,provavelmente lembrando de outras tantas que participaraem seus longos anos de serviço à Fé. Nos próximos dias elemesmo organizaria a vigília oferecida em prol das atividadesem Natal, com direito a flores e incensos, música apropriadae um belo tapete estendido à frente da foto de �‘Abdu�’l-Bahá edo Livro Sacratíssimo. Ele era um bahá�’í dedicado, ativistaem sua própria comunidade, a ver alguns outros novoscompanheiros trilhando o mesmo caminho.

O resto daquele dia, assim como o seguinte, continuouexperimentando uma fase de adaptação. Da Caravana àcomunidade local e vice-versa. Por mais que consultassem, muitascoisas ainda pareciam mal resolvidas, o que gerava um espíritode descontentamento e desânimo por parte de todos.Começaram a surgir novos sinais de indisciplina e os horáriosnão estavam sendo cumpridos. O estado de limbo instalou-semais uma vez. E somente com a chegada de Sadat essas questõesforam permanentemente sanadas. Ele vinha diretamente daTerra Santa, após a Conferência Internacional dos CorposContinentais de Conselheiros e da Inauguração da SedePermanente do Centro Internacional de Ensino. Como bemlembrou um deles, parafraseando, �“abençoado é o visitante deAkká e abençoado é o visitante do visitante de Akká�”.

Sadat veio carregado do espírito dos lugares sagrados, oque lhe somava uma serenidade ainda maior do quenaturalmente possuía. Seu jeito calmo e contínuo de falar, eseu rosto de expressões afetuosas que se inclina levementeà direita, quase como um ritual, enquanto transmitia um belosorriso, produziam inspiração naqueles que com ele serviam. Edessa forma, na tarde do terceiro dia, mais uma reunião foiconvocada, dessa vez por ele, na qual estavam presentes algunsmembros da Assembléia Local. Ao saber disso, a Caravanainteira se pôs em comoção mais uma vez. Estavam cansados deconsultas e a situação parecia uma tormenta infindável.

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Decidiram, ao final, que o Comitê Executivo ficaria para areunião enquanto o resto do grupo sairia para o ensino.

A consulta, que seria definitivamente a última, estendeu-se por horas. Algumas das questões tratadas nas reuniões comAndré e Silvio foram mais uma vez trazidas à tona, provendomaior compreensão a todos, principalmente a Sadat que recémchegara. Aos poucos, durante àqueles momentos, as �“arestascortantes�” foram sendo desbastadas e as intenções de todosse tornaram evidentes.

De um lado havia uma Assembléia Local. Ela fora comunicadaàs pressas da vinda de vários jovens e imediatamente dedicouseu tempo ao assunto. Ofereceu sua sede local para hospedá-los, convocou um Membro do Corpo Auxiliar para ajudá-los,informou os locais onde se costumava ensinar e solicitou quealguns procedimentos fossem tomados para que pudessem,posteriormente às atividades do projeto, acompanhar todosaqueles que foram ensinados. Do outro lado, a Caravana deBadasht, sua vontade de servir, sua energia galvanizada peloensino, seu apelo espiritual e sua juventude. Naquela consultaperceberam que todas essas características poderiam sermantidas, e que havia uma complementaridade evidente entreelas. A Assembléia contemplou a possibilidade de utilizar todaa mão de obra juvenil. A Caravana aquiesceu às solicitações deuma instituição sagrada. E o que se produziu nessa interaçãosaudável entre o indivíduo e a instituição, o poder e aautoridade, o crente e o Convênio, além de sorrisos e um estadode espírito renovado, foram dias de ensino profundamenteinspiradores.

Os jovens participantes da Caravana de Badasht, mais umavez, haviam mergulhado em provas e Bahá�’u�’lláh, assistindo atodos eles, resgatou suas almas desse mar turbulento eedificador. Em suas profundezas, no Recife, haviam aprendidocom sua própria inexperiência que há de se ter inúmerasvirtudes e capacidades para servir, em especial, um desejopuro de simplesmente se levantar para cumprir com essa

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determinação. Em João Pessoa, esse mesmo mergulho criou emseus corações a reflexão sobre disciplina espiritual, individuale coletiva, sua importância e os efeitos benéficos e essenciaisque ela produz. Agora em Natal, a mais preciosa pérola haviasido contemplada nessa viagem por aquelas águas de provação.Sua firmeza e lealdade ao Convênio haviam sido testadas. Noinício, agiram com imaturidade. Mas aos poucos, Bahá�’u�’lláh osreuniu novamente, enviando, simbolicamente, de Seus aposentosnesse mundo, a Terra Santa, um de seus servos escolhidos.

Últimos dias de ensino

�“Andávamos, eu e Bianca, em torno da Praça Cívica, ondeconsagrávamos nosso ensino. Tudo estava muito agradável,especialmente a temperatura que caíra bastante com oentardecer, regredindo a uns 27 graus. Uma leve brisa, domar até a praia, corria umas dez quadras por entre casas eprédios até nos tomar delicadamente. Eu estava me sentindomuito bem, pleno, e o caminhar era lento, porém convicto.Abordamos uma mulher às margens da praça, um senhor sentadoao lado de uma clínica médica, outra senhora que andavaapressada em direção ao ponto de ônibus, para que só depoisdessas experiências se concretizasse a mais fabulosa delas.

Uma caminhonete diminuiu a velocidade até parar ao ladode onde estávamos. Dentro dela, um casal indagou sobre alocalização do �‘Nordestão�’, um supermercado de Natal. Sorri,amistosamente, informando como chegar até seu destino. Poracaso, mesmo sendo um forasteiro, sabia bem onde osupermercado ficava, uma vez que era exatamente nele quefazíamos compras para a sede. Eles, por sua vez, despediram-se enquanto eu estendia em sua direção um par de folhetosbahá�’ís. Após agradecerem, a caminhonete acelerou e seguiuconforme minha explicação, �‘dobre aqui à esquerda, siga pelapraça, passe o sinal e entre a direita.�’

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Eu já me preparava para continuar andando, quando alguémfalou em minhas costas:

�– É bom dar informações quando sabemos, não é?Ainda naquele lapso ínfimo de tempo entre sua abordagem

e minha resposta, lembrei das palavras de Bahá�’u�’lláh naEpístola de Ahmad, quando se refere à Própria missão: �‘cabe-Lhe apenas transmitir essa mensagem clara.�’ 13 As duas frasesconfluíam na mente:

É bom dar informações quando sabemos, não é?Cabe-Lhe apenas transmitir essa mensagem clara.É bom dar informações quando sabemos, não é?Cabe-Lhe apenas transmitir essa mensagem clara.Aquela voz atrás de mim parecia me cobrar algo que deveria

fazer: �‘muito bem, você sabe dessa Mensagem. Que talcompartilhá-la comigo, afinal, é bom dar informações quandosabemos, não é?�’

E então me virei. A voz era de um rapaz, vestido com roupasmuito simples e inclusive sujas, de altura mediana, cabeloscastanhos sobre um rosto jovem, e o mais impressionante:dois olhos verdes que emitiam um olhar incompreensível.Permaneci em silêncio por breves momentos, sem deixar defitá-lo, nem ele a mim. Pensei em �‘Abdu�’l-Bahá: �‘Quando estásprestes a principiar teu discurso, volve-te primeiro aBahá�’u�’lláh e implora as confirmações do Espírito Santo; então,abre os lábios e diz o que te for inspirado ao coração �– istoporém com a máxima coragem, dignidade e convicção.�’ 14 E enfimcomecei a falar:

�– Você acha que tem alguma importância para o mundo? Vocêacha que algo pode mudar aqui na Terra porque você existe?Há algo em você que seja de benefício para a melhora da vidada humanidade?

As minhas perguntas, como navalhas cortantes, pareciamdilacerar o coração daquele jovem rapaz. Nitidamente, em seusolhos, que diziam muito de seu estado interior, percebia que

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ele estava confuso e assustado com a carga que eu acabara depor sobre sua consciência. Creio que nunca pensara sobre isso,muito menos vivenciara situação semelhante. Um completodesconhecido estava esperando uma reação à pergunta quefizera a instantes atrás, algo que nunca lhe questionaram antes.Mesmo com um ar de constrangimento, de sua e minha parte,mantive-me silente a aguardar a resposta. Bianca ao lado,observava-nos atentamente. Poderia interferir, quebrar o malestar daqueles segundos que pareciam demorar uma eternidade,mas não fez menção alguma, sequer em palavras ou gestos.

�– Não. �– respondeu com tristeza baixando por um momentoos olhos. Aquela era a minha deixa e segui falando:

�– É exatamente isso que todos nós pensamos. E é por issoque o mundo não muda. Ou você acha que as coisas vão melhorarquando os políticos, ou os ricos, ou os presidentes e reis, ou osartistas da tv tomarem uma atitude? Infelizmente não. Seriamais fácil esperar que eles se levantassem para assim fazer,mas não é essa a Vontade de Deus. Ele criou cada ser humanopara levar adiante a tarefa de fazer o mundo melhorar. E comosabia que isso seria muito difícil, Ele nos concedeu as coisasnecessárias para facilitar o nosso caminho, as ferramentasnecessárias para consertar o mundo. A autoridade dos políticos,o dinheiro dos ricos, o poder dos presidentes e reis, a famados artistas, nada disso pode levar o mundo a ser melhor. Porquenão são a autoridade, o dinheiro, o poder e a fama, asferramentas que Deus nos deu. Você imagina quais são essasferramentas, onde elas estão guardadas?

Enquanto eu falava, ele continuava a me assistir com osolhos vidrados. Parecia absorver cada palavra e cadasignificação de tudo o que eu dizia. Mais! Ele absorvia aspróprias bênçãos que os anjos do Senhor haviam trazido àquelemomento. Não respondeu à minha pergunta, tampouco euesperava resposta. Estendi a mão sobre seu peito, e com apalma repousada sobre ele segui ensinando:

�– Aqui. Dentro de seu coração. Nesse lugar sagrado, estão

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todas as ferramentas necessárias para mudar o mundo. �– Sorrie continuei, agora em um tom mais ameno �– Você sabia disso,que seu coração é uma caixa de ferramentas? Ele devolveu osorriso com certa hesitação enquanto eu continuava:

�– Deus te deu a suprema bênção de ser um espelho de todasas Suas virtudes e atributos. Todos eles estão dentro do seucoração �– continuava com a mão estendida em seu peito �– e sevocê olhar para si descobrirá essa verdade.

�– O mundo precisa de amor para melhorar, e Ele é o Deusde Amor, e assim concedeu ao seu coração esse mesmo amor.

�– O mundo precisa de generosidade para melhorar, e Ele éo Deus de Generosidade, e assim concedeu ao seu coraçãoessa mesma generosidade.

�– O mundo precisa de compaixão para melhorar, e Ele é oDeus de Compaixão, e assim concedeu ao seu coração essamesma compaixão.

As afirmações ressoavam diretamente na �‘caixa deferramentas�’ daquele rapaz, e seu semblante começava a setransfigurar completamente diante de mim. Na verdade, emexata medida, eu mesmo devia estar tomado por algodiferente, pois senti que estávamos envolvidos por uma mesmaforça que gerava todas aquelas emoções. Bianca, não maisassistia calada. Suas lágrimas se precipitavam a gritar coisasque só os corações ouviam. E naquele momento, com o dedolevantado em direção ao rosto daquele desconhecido irmão dealma, perguntei mais uma vez:

�– Quero que me diga então. E essa é a última vez que vouperguntar! Você acha que tem alguma importância para omundo? Você acha que algo pode mudar aqui na Terra porquevocê existe? Há algo em você que seja de benefício para amelhora da vida da humanidade?

Ele sorriu, e imediatamente disse um �‘sim�’ a mim e Bianca,mas principalmente a si mesmo. Nós nos abraçamos ao final,quando falei da Fé em si, entregando os folhetos e o convidandopara a reunião de amigos logo à noite.

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Eu já não lembro de seu nome. E sequer posso imaginar poronde caminha com sua �‘caixa de ferramentas�’. Talvez eu nuncamais o encontrarei. Resta-me uma única certeza, que é naverdade um alento quando a saudade se faz mais presente.Quando ele se apresentar, no dia de seu regresso, à Presençado Bem Amado, poderá relatar que certo dia dois jovens olembraram que havia nele um coração repleto de coisas boas,coisas de Deus. E sinto que através desse único momento,nossas almas permanecem unidas em uma ligação misteriosa,da qual eu mal posso fazer menção, senão a simples afirmaçãode que é assim, inexplicavelmente.�”

�“Naquele dia acordei querendo ficar sozinha, com umsentimento estranho dentro de mim. Fiquei, praticamente, amanhã toda isolada e quieta no quintal da sede. Antes de sairpara o ensino, à tarde, os abraços de André, Anissa e Biancame fizeram liberar parte daquele sentimento. Foi com umdesabafo de coisas que eu mesma não entendia e não conseguiconter as lágrimas. Saí da sede chorando, abraçada com minhaamiga Bianca, até o ponto do ônibus que nos levaria a Gramoré.

Ao chegarmos lá, fizemos orações na casa dos bahá�’ísmoradores do bairro e tomei uma nova energia. De casa emcasa, eu e �‘Bibi�’, batíamos palmas e ensinávamos. Comecei anotar que os problemas desapareciam à medida que o ensinose fazia mais pleno. Eu me focava no amor que estavatransmitindo para aquelas almas, e ia esquecendo qualquermotivo pelo qual chorava há algum tempo atrás.

Com toda a certeza eu posso dizer que aquele foi um dosdias mais marcantes para mim, porque foi quando eu mais mesenti desprendida de tudo, dos meus sentimentos ruins e demim mesma, de minha vontade física de estar em casadescansando e desprendida de qualquer resultado. O maisimportante: eu ensinava sem pensar no que poderia receberem troca, ensinava por amor a Bahá�’u�’lláh. Não ficava calculandose alguém iria para a reunião de orações naquela noite, nem seelas iriam se declarar. Apenas centrava meus esforços emtransmitir a todos aquela verdade na qual eu acreditava com a

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máxima convicção, dentro do amor que tenho por Bahá�’u�’lláh.Eu sentia uma força nas minhas palavras que não vinha de mim.Olhava dentro dos olhos das pessoas e tenho certeza de queelas sentiam o que havia em meu coração. Elas não ouviam, elassentiam o que eu dizia!

Naquela tarde, um dos senhores a quem ensinamosperguntou seu eu era uma �‘pastora�’, pelo fato de estar tãoinflamada com as coisas que dizia. Outras pessoas falavam doamor que sentiam vir da gente, ou de como era bonito e louvávelver jovens da nossa idade divulgando uma Mensagem de Deus.Eu dava testemunho de que o ato do ensino é, além de levar aMensagem às almas (plantar sementes), edificar a nós mesmos,um aprendizado, engrandecimento espiritual, uma perfeitarevitalização.

Bom, depois daquele dia cheio de energias diferentes,voltamos para a sede e eu fui para o quintal, sentei e fiqueiolhando aquela escuridão, as árvores ao fundo, o coqueiro naminha frente e pensando como Deus criou tudo em tão perfeitaharmonia. Sentia a necessidade de alguém para conversar eme apoiar, quando percebi a presença de Bahá�’u�’lláh do meulado, e me dei conta de que eu não precisava de mais ninguém,que só Nele deveria depositar minha total confiança pelacerteza de que, em qualquer momento de minha vida, Eleestará, está e sempre esteve a meu lado.

Quando alguns vieram para o quintal, eu estava chorando esai rápido para frente da sede. Não queria que ninguém mevisse naquele estado. Porém, de repente, ouvi pessoas vindomais uma vez na minha direção e eu não tinha para onde �‘fugir�’.André vinha com o violão cantarolando: �‘Tatá, abra a janelameu bem, a noite está tão bonita, quero cantar para você!!!!�”Atrás dele estavam Anissa, Bianca, Nilanna, Seta, Breno eOtávio. Como eles foram especiais naquele momento! Todoscantaram juntos para mim, depois cada um sozinho, por muitotempo. Eles me abraçaram e minha felicidade, que já eraimensa, não cabia mais no coração. Apenas um dia de ensino.Apenas um!�”

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�“Mais uma tarde de ensino se iniciava. Mal sabia eu que alembrança daquela tarde iria me acompanhar por um espaçode tempo ilimitado. O cenário do ensino deu-se em um bairroda periferia de Natal, bem próximo a sede local: Cidade Alta.Eu e Magnólia, que havia se juntado à Caravana naqueles dias eque fazia juz a seu nome, exalando o perfume e a beleza deuma flor do Santo Jardim de Abhá, percorremos uma ruaestreita, batendo de porta a porta e conclamando as pessoasàs boas novas de Bahá�’u�’lláh. A cada casa visitada um novodiscurso, uma nova vivência. Portas se abriam, outras sefechavam. Sorrisos eram estampados, desconfianças eramgeradas. Vidas eram expostas, vidas silenciavam. Assimseguimos, incessantes e com o coração a palpitar. Precisávamosensinar, precisávamos envolver os corações das pessoas como amor supremo, o amor divino. Precisávamos livrar as visõesde tanto obscurantismo e cegueira espiritual, trazer aquelaspessoas a uma nova e efetiva consciência e postura espirituais.Enfim, precisávamos através do ensino, coração a coração,espírito a espírito, mostrar aos moradores daquela simplesrua de pedras que o Bem Amado dos Mundos, Bahá�’u�’lláh, tinhasido enviado por Deus há 157 anos atrás e que, num lugar muitodistante dali, havia revelado diretrizes espirituais que trariamluz ao mundo e centelhas de fé a cada coração, a cada espíritovigilante.

Percorremos boa parte daquela estreita e longa rua, atéchegarmos à porta de uma pequena oficina de consertos eletro-eletrônicos. Um local muito simples que logo se tornou radiantee agradável para o ensino. Havia quatro jovens sentados quenos receberam com seus corações e ouvidos espirituaisabertos. Lembro que, tanto �“Mag�” quanto eu, não nospreocupamos em abordar as verdades absolutas da Fé, nemmuito menos dos princípios e lógicas inequívocas da mesma.Numa sincronia espantosa falávamos do nosso amor, da nossaconvicção pela Fé que revolucionara nossas vidas, da Fé quenos permitira tornarmo-nos pontos de luz para o meio quevivemos, que insuflara em nossos corações a motivação para a

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melhora do nosso eu interior e para a conseqüente melhora dahumanidade e de nossa geração. Finalizado aquele discurso tãoinflamado percebi a presença e a inspiração dos anjos deBahá�’u�’lláh rondando aquele lugar. Não hesitamos e, em facede tanto amor e carinho provindos daqueles quatro jovens,convidamos a todos para uma reunião de amigos logo à noite.Curiosamente, ao começar a descrever o endereço da sede,uma das jovens, a Patrícia, o complementou sem erro algum.Como ela saberia até o número da sede local se nunca haviapassado ou estado por lá? Misticismo e mistério me vinham acabeça. Era impossível acreditar em tal precisão.

A noite chegou e trouxe ao nosso encontro aqueles quatrojovens. A reunião se deu em meio a sorrisos, um clima de intensaamizade e de vários questionamentos que eram por eleslevantados em sua ânsia por saber mais sobre a nova religiãoque ora descobriam. Foi possível lançar no solo fértil de seuscorações a semente do amor. Quão feliz eu me encontrava! Éextremamente gratificante e confirmador ver olhos a cintilar,sorrisos se descerrando, almas a serem guiadas por totalinfluência do Alto. É gratificante saber que Deus te tem comoum instrumento a arar o solo fértil dos corações humanos. Senti-me útil e viva; senti-me um pouco mais digna por ter sidoescolhida à essa tarefa eterna, de servir e amarincondicionalmente! A noite terminava e tive de me despedirdaqueles jovens, com certo pesar. Meu desejo sincero e puroera que eles continuassem naquela trilha, naquela busca, naquelaluz. Os vi desaparecerem a caminho de suas casas, mas em meucoração ficara marcado o sorriso de cada um.

Já de volta ao Recife, após o término da Caravana, recebium telefonema muito especial. Magnólia me falava sobre aassiduidade dos quatro jovens nas reuniões locais e da simpatiae amor que eles estavam cultivando, diligentemente, porBahá�’u�’lláh. E por fim me contou que Patrícia, a enigmática esorridente jovem, descendia de uma família cigana e que erapossuidora de alguns dons extraordinários. Em uma dasreuniões subseqüentes, havia confidenciado à Magnólia uma

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estória envolta pela mesma carga mística do dia em que aencontramos pela primeira vez: Eis a estória:

�‘Enquanto vocês estavam à porta de minha casa, falandosobre a Fé Bahá�’í, eu não consegui fazer distinção entre suaaura e a de Bianca. Foi como se elas se fundissem em uma só.E depois, ao chegar na Reunião de Amigos, visualizei uma uniãoentre as auras de todos os bahá�’ís presentes.�’

Lembro da confusão e da alegria que aquele relato metrouxe. Até hoje ele ecoa em minha mente e confirma que obrilho e a luz emanados pelos espíritos bahá�’ís, quando estescomungam nas sendas do serviço e do amor puro e liberto aDeus, promovem a iluminação e o encantamento nos coraçõesdas pessoas. Percebi quão máxima é a urgência em nostornarmos como luzes brilhantes a atingir o coração de cadaum dos tristes e aflitos seres humanos, assim como �‘Abdu�’l-Bahá sempre exortou em seus escritos e preces.�”

�“João. Não podia haver nome mais simples. E simplicidade éuma grande virtude, pois esconde as outras de contemplaremo orgulho próprio. E eu descobri isso quando o conheci, emfrente à sua casa e depois dentro dela. Quando bati palmas,ele veio andando muito devagar. Atendeu-me em seus mais deoitenta anos. E quando soube que o assunto tão importanteque eu tinha para tratar era Deus, abriu a porta com agilidadeem seus menos de vinte anos, convidando-me a entrar.

Eu estava começando a contar �‘que Deus havia enviado seuManifestante e que seu nome era Bahá�’u�’lláh que em portuguêssignifica A Glória de Deus e que ele trouxe a unidade aeliminação de preconceitos a igualdade de direitos entrehomens e mulheres e que existem milhões de bahá�’ís em todoo mundo sendo a segunda religião mais difundida do globo comsua cadeira de representação na ONU...�’ (aquele discursomecânico, sem pausas, que faz do ensino um ato sem vida),quando João me ofereceu água, ou suco, talvez até bolachinhasde polvilho que ele disse serem muito boas para comer à tarde.

Calei a voz.

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João falou. Começou no início do século. Contou de seus paise familiares e de seu gosto, desde muito jovem, porautomóveis. Sonhava com o dia que tivesse seu próprio carro,e talvez por isso tenha escolhido trabalhar como caminhoneiro.Casou-se e teve três filhos. A menina, hoje casada, mora emAlagoas com o marido que é doutor de direito. O mais velhoera militar �– dos melhores! O mais novo morava com uma tianuma cidade do interior. Gostava de vaquejada. Infelizmente,muitos anos já haviam se passado desde de que vira pela últimavez cada um deles. Sequer telefonavam. Sua esposa estava nohospital. Sofria de um mal no bucho. Não podia sair de lá. Nãomesmo. E ele, aposentado, vivia completamente só, esperandoa morte que não tem hora para chegar.

Calei a alma.João falou. Apesar de tudo, sabia que ia até Deus e que a

vida lá no céu era bem melhor que aqui na terra dos homens. Eentão, sem saber o que dizer, depois de muito tempo vivendoaquela vida que não era a minha, mas que de repente estavaem mim, recorri à Palavra Sagrada.

Orei com voz e alma.João repetia cada palavra baixinho.João chorou.Então nos despedimos e eu andava, indo embora, pensando

que a simplicidade era a coisa mais misteriosa da vida.�”�“Essa seria a última tarde de ensino promovida pela

Caravana. O Sol já providenciava seu descanso e a orla dacidade de Natal encontrava-se num misto magnífico de cores.Eu havia sido escalada para ensinar com Aline. Nós fomos atéuma praça, em frente ao mar, e nos dividimos para ensinar àsduas pessoas que lá se encontravam. Um senhor de meia idade,com feições fortes e roupas simples abriu um sorriso radiantee terno enquanto eu caminhava em sua direção. Aquele sorrisofoi suficiente para abolir qualquer intimidação e nos levou àuma longa e intensa conversa. Expus, com grande convicção eforça (dois requisitos para um ensino efetivo), uma visão

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básica sobre a amada Fé Bahá�’í. Aquele homem, a cada frasemencionada, balançava sua cabeça em consentimento e logoseus olhos se encheram das lágrimas mais verdadeiras quepude visualizar em minha vida. Acredito que, meio a umsentimento de máxima identificação, ele me expôs o relatode uma vida árdua, na qual o sofrimento se mostrava constante,na qual seu amor e firmeza em Deus eram ano a ano, dia a dia,hora a hora, colocados em prova. Naquele momento, suaslágrimas não eram mais vistas e sim as minhas. Um homem,suas árduas vivências e seus cinqüenta anos de devoçãoirrestrita e fé inabalável no Senhor dos Mundos, no CriadorSupremo! Sr. Francisco, homem franzino, de pequeno porte,que carregava em seu peito um coração imenso iluminado pelaFé em Deus. Coração açoitado, repleto de estigmas, masvisivelmente inabalável. Coração, que naquela tarde, recebeuem lágrimas a Mensagem divinamente revelada por Bahá�’u�’lláhe que piamente crê na unicidade de Deus. Junto com a noiteveio nosso abraço final. O abraço de duas almas que secomunicaram espiritualmente; que ensinaram uma a outra areal missão e propósito da vida: conhecer e adorar a Deus!Grata, imensuravelmente grata sou por ter conhecido essememorável senhor!�”

�“Quando a tarde chegou, Gramoré era o bairro escolhidopor metade das duplas de ensino. A quase uma hora da sedebahá�’í, chegar até lá era uma verdadeira viagem. Desde apreparação para aquele que fora destinado a ser o último dos20 dias de ensino, a sensação de nostalgia já nos tomava porcompleto. André e eu formávamos uma das duplas de ensino ea caminho do bairro escolhido, permaneci escutando meuquerido amigo falar. Ele falava de nossa amizade, construídanaqueles dias abençoados, e com entusiasmo narrava diversosfatos, alguns emocionantes e outros muito engraçados. Nemvi o tempo passar!

Durante o ensino tive a oportunidade de integralmentededicar minha atenção a feição daqueles que recebiam seuprimeiro contato com a Fé. André, naturalmente, e talvez

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imperceptivelmente, consentiu ao meu pedido para ocupar maisuma vez a posição de ouvinte.

Vi reações muito sinceras e puras, imbuídas de grandebeleza espiritual. Rostos lindos, um a um cravados em minhamemória como pedras preciosas. Ninguém mais terá acesso aelas, exceto André, meu cúmplice.

Ensinamos para uma família de cristãos e depois a umasenhora que fazia crochê na porta de casa. Brinquei com omenininho, provavelmente neto dela, e na despedida pergunteise ele não queria vir comigo. Ele disse que não, mesmo quandofalei que na minha casa havia muitos doces e brinquedos. Depoisdisso, alcançamos alguns jovens na frente de um mercadinho.Foi engraçado ver André imitar Sherlock Holmes para falarsobre o princípio da livre e independente busca da verdade.Os três rapazes olhavam com muita atenção a explanaçãoentusiasmada. Finalmente, abordamos uma menina. Acho quetinha uns 15 anos, ou menos. Começamos a falar da Fé para elaquando sua mãe apareceu na frente da casa. Ficou no portão,ouvindo as coisas que estávamos dizendo. Ela estava muitotocada pelos ensinamentos e, quando nos despedimos, agradeciainsistentemente a visita. Dona Rosângela foi a última alma aquem transmitimos a Fé durante a Caravana de Badasht.

Findado nosso tempo, caminhávamos de volta, ao fim da tardee sobre aquelas ruas de chão batido, para tomar o ônibus evoltar à sede. Naquela noite havíamos programado umaatividade de despedida, como encerramento oficial do projeto.André estava quieto e eu bem sabia que seu coração deviaestar muito apertado. Expressando a sua tristeza, encostousua cabeça em meu ombro dizendo:

�– Acabou... acabou Nissinha...Minha resposta foi emitida mecanicamente. Acho que já

esperava tal afirmação:�– Não André... não acabou. Tudo está só por iniciar!Essa era a minha realidade.�”

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Olhos sobre o passado,o presente e

o futuro

Olhares foi o que o final da Caravana de Badasht reservoupara todos os jovens servidores de Bahá. Na verdade, foi issoque ela também reservou a eles em todos os dias anteriores.Quando por exemplo, seus olhares se cruzavam, e num estalotinham a certeza de seu amor recíproco. E o que dizer da formacom que se descobriam durante o ensino? Lá estavam eles,mirando atentamente aqueles que recebiam a Boa Nova do Diade Deus. Um pouco de sensibilidade e em mais um estalo adescoberta daquilo que a alma do outro necessitava. Foi tambémcom olhares que aprenderam a sorrir e a chorar. E quando assimfaziam, descobriam que assim poderiam viajar, ir a mundosinsondáveis contidos nos corações das pessoas. Agora desejavamse despedir, e os últimos momentos haveriam, por uma obrigaçãomística, de trazer um adeus dito com os olhos.

Se fosse somente adeus, talvez a tarefa seria fácil. Mashavia muito mais a ser dito:

�“Meu amigo. Meu irmão. Agora que olhamos, olhos nos olhos,parece que a eternidade se resume nesse momento. A vidaganha um significado diferente, e respirar tem em si umamotivação mais grandiosa. No entanto, o tempo continua acorrer e a nos separar. Quando o dia amanhecer, depois dessaúltima noite, teremos de ver, um ao outro, partir em direçõesdiferentes. Nossos caminhos, que por vinte dias foram osmesmos, terão de ganhar a bifurcação da vida e nos levarãopara veredas distantes. Ah! Essas coisas inevitáveis me custamtanto admitir, que hoje já acordei buscando respostas aos meusporquês. Por que tem de ser assim? E procurei em mim. Eprocurei em você. E conclui que deveria perguntar diretamentea Deus. Como filho, que se rebela sem entender os desígniosdo pai, resmunguei minhas reclamações reivindicando um finaldiferente à estória desse tempo. Acho que Deus deveria estar

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sorrindo enquanto contemplava meu desassossego. Sorrisosereno, pois Ele sabia que não havia motivos para meu estadode espírito. Então, quando me acalmei, fui inspirado pelalembrança de um versículo:

�“A distância é aniquilada, e não impede a estreita eíntima associação de duas almas cujos corações estãoestreitamente unidos, ainda que estejam em dois paísesdiferentes.�” 15

Queria eu ser mais virtuoso e desprendido para não sofrere deixar você partir. Desejo profundamente fazer de meucoração um receptáculo da verdade desse versículo. Masenquanto ainda é árdua, para mim, tal tarefa, permita-mederramar uma lágrima desde já. Agora. Vê? O brilho que cintilaquando a luz do amor a atravessa está tentando exprimirmuitas coisas. Principalmente aquelas que motivam esse meupranto calado. Lembra do primeiro dia em que nos encontramos?Foi tão confortante perceber em você a confirmação de queeu não estaria sozinho. E de quando ensinamos juntos?Caminhávamos pelas ruas a buscar almas atentas e era sublimequando atingíamos nosso objetivo. Lembra de nossossentimentos? Um pouco de incapacidade e impotênciamisturado à sensação de nos tornarmos um pouco mais dignosdo nome bahá�’í. E o que dizer das risadas incontidas nosmomentos de brincadeira? Ríamos de tudo, até das nossaspróprias provações. Deus nos uniu tanto que passeei por vocêe me encantei com tudo o que vi.

Mas enfim, dizemos adeus. Vai!, não quero prolongar adespedida. Vai!, leva um pouco de mim, dá cá um pouco de você.E desse pouquinho façamos o tanto suficiente para lembrarmosum do outro. E quem sabe, quando já distantes, e quando essesnossos olhos se fecharem para os interiores se abrirem,possamos estar novamente frente à frente, e ao invés de adeusdigamos até breve, amigo amado!�”

Por mais de uma hora, essa dinâmica que havia sido preparadapelo Comitê Executivo trouxe à tona uma emoção indizível.

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Aos pares eles exercitavam essa forma diferente de sedespedir. Alguns pares apenas trocavam olhares, outrospreferiam dizer coisas, e outros ainda necessitavam de muitase muitas palavras. Ao final, o qual era determinado pela própriadupla, abraços expressavam todos os sentimentos epensamentos restantes. Então outra dupla se formava para aexperiência singular experimentar.

Finais sempre são assim. Possuem uma carga de nostalgiaantecipada, que faz a memória se tornar mais aguçada erapidamente buscar os detalhes de tudo o que acontecera. Enesse caso não foram poucas as coisas. Desde o dia 26 denovembro de 2000, Dia do Convênio, até aquele 23 de janeirode 2001, que se despedia rapidamente, muito havia sidoregistrado nas páginas das estórias pessoais de cada um dos19 jovens participantes da Caravana de Badasht, assim comoentre as comunidades do Recife, João Pessoa e Natal, de tantosbahá�’ís que foram encontrados nesse caminho e das instituiçõesque se envolveram na execução do projeto. Além disso, ummilênio havia terminado para dar lugar ao início de um novo,totalmente novo.

Tanto em tão pouco tempo. Menos de dois meses. Do impulsoao desfecho, do primeiro aos últimos abraços, uma fraçãoinsignificante da roda do tempo havia girado, e um paradoxovivo fora criado. Como explicar, deduzir, provar, teorizar,filosofar; como inclusive quantificar? Pela razão humana seriaimpossível obter resposta a essa pergunta. Deveria-se pensarque esse tanto se realizou por operação ativa dos jovens queno nordeste estiveram? Atribuir às comunidades e àsinstituições o mérito desse feito seria uma forma de atingiro objetivo da pergunta? Alguém realmente poderia levantar odedo nessa sala de aula da vida e dizer, �“sim eu sei a resposta�”?Aqueles jovens não possuíam capacidades e virtudes a mais doque os outros tantos espalhados pelo país. Pelo contrário,tiveram de passar por provações justamente por essa falta.Eles não estavam com a vida muito bem resolvida para poderemrealmente se lançar a um projeto como aquele. De forma

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diferente, muitos estavam imersos em sérias dificuldadescom os estudos, com a família, com suas próprias incertezasinternas. Alguns deles não tinham sequer dinheiro e juntarammoeda a moeda para viajar. Nada de extraordinário, passariamdespercebidos como mais um rosto individual em meio a umamultidão. Quando o pensamento se dirige às comunidades einstituições, porém, vê-se experiência, a qual os jovens nãotinham. Experiência, vontade e canais apropriados. Mas asdificuldades foram muitas. O tempo muito curto. A comunicaçãoescassa. Não! Inúmeras provas de que Deus é o único Oniscientee Onipotente são dadas nas escrituras sagradas, e dia apósdia, lê-se ao final das orações essa mesma e inequívocarealidade.

Então, resta um único caminho: a Vontade de Deus. Naquelesdois meses, essa Vontade Soberana abarcou a tudo e realizoumaravilhas que deslumbraram os espectadores. Dois mesesque funcionaram como um testemunho vivo do que é capaz essamesma Vontade. Ela pôs em movimento os anseios dosindivíduos, catalisou seus processos de transformação, dasdúvidas criou certezas e os mobilizou ao nordeste. Enquantoisso, fez a ordem administrativa oferecer a segurança daconsulta, guiou a direção para a qual elas apontariam e proveuinspiração suficiente para aparecerem decisões precisas.Parafraseando as palavras do Mestre, a Vontade de Deusproveu e tornou seguro o caminho. E uma vez iniciada a Caravana,imergiu todos eles em provas adocicadas pela certeza de quea ajuda viria em seguida. E veio! Ela enviou sua ajuda atravésdos anjos escolhidos. Hostes inteiras, selecionadasespecialmente para aquela batalha. Cumpriu com Sua própriapromessa. Fez exatamente aquilo que realmente quis.Assegurou a vitória e provou que um de Seus milagres épermitir que pessoas comuns façam coisas incomuns.

Essas eram as conclusões enquanto deixavam suas mentesvagar pelos dias passados. E talvez por esse motivo, a sensaçãopredominante afirmava que o fim da Caravana de Badasht davalugar ao início de outras caravanas, simplesmente. A primeira

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de muitas outras. Primeira? Sem dúvida não. Ela foi apenasmais uma demonstração de que o Plano Divino está em curso esegue avante através da Vontade de Deus. E Deus não nasceuagora, existe desde o início que não teve início; e desde entãopromove coisas como essas. E Ele continuará a existir até ofim que não terá fim. Que descoberta confortável, não? Ela éum sinal de que o futuro já está garantido, porém com umpequeno e essencial impasse a resolver. Algo com que aquelesjovens questionavam a si próprios, enquanto percebiam tudoem volta se tornar passado, ao se dirigirem à rodoviária deNatal na manhã chuvosa de sua partida:

Quando a cena desse futuro certo chegarTeremos sido, desde já,

Espectadores ou protagonistas?A resposta é certa, clara, infinita

Sem fim, dos espectadores, é a lista.Agora é o tempo de atuar

Servir, sorrir, amar!

! ! ! !

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ApêndiceTextos do Pós Caravana de Badasht

�“Se eu realmente descrever tudo o que essa Caravana metrouxe de bom, vou ficar infinitas horas escrevendo, falando,sorrindo, e me emocionando! Mas acho que a palavra chave paratudo é Transformação. Aprendi tanto com cada amigo e comas pessoas que nós encontrávamos no nosso caminho de ensino.!�”

�“Caravana de BadashtBarreiras, dificuldades, orações...Mas em contrapartida,Vitórias somadas comDúvidas e certezas.O que será que causa tantosSentimentos e emoção?Que causa tanta alegriaE chega a deixar os corações conturbados?Que amor é esse,que por ser tão grandeatinge a todos que estão as suas voltas?Como o fogo que flamejaem seus corações equeima a todos queencontram em seu caminho.Que brilho nos olhos são esses?Que tornavam-se uma constanteA cada dia, a cada oração,a cada abraço apertado...Que lágrimas são essas?Que são de alegria,de amor, emoção,felicidade, força.Lágrimas que rolavamnos rostos desses jovense que em abraços calorosos,

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em olhares e oraçõeseram como tempestades e torrentesde lágrimasE a reviravolta que isso causou?Não houveram danos.Houveram aprendizados,experiências,uma nova visão...Uma nova chama que se ascendeunos corações deles,desses 19 jovens...Uma chama que irá transformara vida delesÉ um misto de Amor, Ensino,Amor, Convicção, Desprendimento,Provações, Aprendizado, Transformação,Alegria, Amor a Bahá�’u�’lláh.�”

�“A Caravana de Badasht certamente marcou a vida de cadaum de seus membros. Foi uma das maiores experiências daminha vida! O que aprendemos em uma viagem de ensino nãoestá em livros de sociologia, história ou relatos de projeto deensino, como este. Nos damos conta de realidades que nãofazem parte da nossa vida. Podemos conhecer o povo de cadalocal, suas características, sua cultura, sua visão de mundo,seu jeito de falar e de viver. Aprendemos as peculiaridadesde cada lugar. Conversamos com pessoas que, em outra ocasião,não conversaríamos. Percebemos que cada pessoa é um mundodiferente que tem muito a nos ensinar. Temos a oportunidadede transmitir esperança, amor e carinho a pessoas muitosofridas e necessitadas. Por estarmos ensinando e servindo aBahá�’u�’lláh, sentimos uma alegria que não é deste mundo.Podemos finalmente responder à pergunta �“Pode a juventudetransformar o mundo?�” Sim! A juventude pode mover o mundo!E quem não desejará deixar a sua marca? Quem ficará defora e não participará desta revolução espiritual? Vamos

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empunhar a bandeira do Movimento Bahá�’í de Juventude e levá-la aos mais distantes rincões do Brasil com o brado de YáBahá�’u�’l-Abhá!�”

�“CaminharAh! CaminharVerbo tão queridoA ti almejoEm meu livre arbítrioHá em mim um indicativoDe que talvez o pretérito tenha sido imperfeitoE por isso desejo no presente e no futuroFazer tudo aquilo que não foi feitoE embora esse pedido �“que eu caminhe�”Seja subjetivamente conjugadoÉ para mim a real práticaPara deixar definitivamente a inércia de ladoAh! CaminharNão te negues a mim, assim, imperativamenteAntes transfigure-se plenoEm minha vida e em meu caminho à frente�”

�“Durante os dias da Caravana muito de minhas vãsimaginações sobre o significado e as bênçãos do ensino foramrepudiadas e a cada dia uma visão real e concreta de talexperiência me era fantasticamente evidenciada. Senti, então,por várias vezes, a dor do crescimento, pois minhas debilidadese fraquezas em seus graus reais se tornavam perceptíveisnesses rápidos dias. Aceitá-las, analisá-las e corrigi-las eradesde então tarefa constante, árdua e eterna. Tão agigantadose numerosos defeitos em paralelo com algumas poucasqualidades criavam em mim uma vontade literal de correr, natentativa de fugir de mim mesma. Não o fiz, nem farei. Só merestava a todo momento acreditar no meu gradualcrescimento, ver o fim das coisas e confiar. Em mim? Não �– naProvidência divina.�”

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�“A Caravana de Badasht não foi apenas um sonho! Elarealmente aconteceu e provocou mudanças no interior de cadaparticipante. Todos os tipos de pessoas foram abordados, asreações foram inúmeras. Nós lembrávamos que nosso papelcomo bahá�’í é ensinar essa Fé tão amada pelos quatro cantosdo mundo, e não deixar nenhum ser humano à margem dosensinamentos divinos. Vamos levar avante o brado de YáBahá�’u�’l-Abhá!�”

�“Cada dia em que despertei, seja em Recife, em João Pessoaou em Natal, uma total renovação se manifestou. Para mim epara meus queridos companheiros, aqueles eram dias deacréscimo em nossas vidas. Um acréscimo de comunhão divina,de maior discernimento e visão espiritual, de maiorcompreensão e absorção das orações e dos escritos que líamosou recitávamos, de maior cumplicidade e entrega entre os queali se encontravam, de deleite pela proximidade do Bem Amadoe na unidade plena com seus seletos servos, e sobretudo,acréscimo da convicção que o ato de servir é simples quandoenvolto em pureza; atrai, como um imã poderoso, as benções eo auxílio luminoso da Assembléia do Alto e de Seus Anjos!�”

�“As 9 estrofes da servitude1. Não fui eu, de minha apatiaÓ meu Bem Amado SenhorQue desejei levantar-me, naquele diaPara servir-Te e ensinar Teu amor2. Sei que foi Tua a convocaçãoClara, poderosa, sensível, envolventeQue ecoou em meu cativo coraçãoE fez-me saber de Tua Vontade evidente3. Sem alternativa, viajei para longeLevando comigo Tua terna lembrançaA proteção e o poder do Teu Nome

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Servir era minha sublime esperança4. E Tu, cumprindo Tua sagrada promessaEnviaste as bênçãos e confirmações dos céusTestemunhei, então, este fogo que não cessaA queimar e purgar as almas de seus véus5. O dar testemunho se tornou sinceroEu vivia a Tua Presença a cada momentoPartilhava de Teus tesouros que tanto esmeroE Te convocava, Pai, quando necessitava o alento6. Haveria para mim outro destinoSenão ver meu coração se apaixonar?Percorreria eu outro caminhoSenão o de sentir a alma sublimar?7.Não! Meu amor por Ti é de Teu desejoNão! Este caminho foi por Ti traçadoPor isso, humildemente, aproveito o ensejoSuplico-Te contrito e extasiado:8. Se devo considerar Tua Palavra�‘O começo como sendo o próprio fim�’ 16

Não posso esperar estar terminadaEsta viagem que começou com Teu sim9. Aguardo em lágrimas e prantoQue de alguma forma Tu me digasDeste Teu servo, o que queres tantoÓ Senhor, Tu que matas e revivificas�”

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CARAVANA DE BADASHT

Referências

1 Nabíl-i-A’zam, Rompedores da Alvorada II, p. 43.2 ‘Abdu’l-Bahá, Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, p. 240.3 Bahá’u’lláh, Orações e Meditações Bahá’ís, p. 71.4 ‘Abdu’l-Bahá, Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, p 6.5 ‘Abdu’l-Bahá, Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, p. 206.6 ‘Abdu’l-Bahá, Orações e Meditações Bahá’ís, p. 49.7 ‘Abdu’l-Bahá, Orações e Meditações Bahá’ís, p. 53.8 Bahá’u’lláh, Epístolas de Bahá’u’lláh, p. 216.9 O Báb, citado em Rompedores da Alvorada I, p. 134.10 Bahá’u’lláh, Orações e Meditações Bahá’ís, p 35.11 ‘Abdu’l-Bahá, Palestras de ‘Abdu’l-Bahá em Paris, p 89.12 Shoghi Effendi, citado em O Indivíduo e o Ensino, p. 30.13 Bahá’u’lláh, Orações e Meditações Bahá’ís, p. 162.14 ‘Abdu’l-Bahá, Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, p. 245.15 ‘Abdu’l-Bahá, Seleção dos Escritos de ‘Abdu’l-Bahá, p. 92.16 Bahá’u’lláh, Epístolas de Bahá’u’lláh, p. 203.

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