CARDOSO, S. - Copérnico No Orbe Da Antopologia Política

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  • COPRNICO NO ORBE DA ANTROPOLOGIA POLTICA

    O PROJETO CRTICO DE PIERRE CLASTRES*

    Srgio Cardoso

    RESUMO Este texto, atravs da leitura de "Coprnico e os selvagens", busca desenhar o perfil do projeto crtico que anima os diversos segmentos da obra de Pierre Clastres. Destaca-se, de um lado, sua apreciao dos procedimentos e pressupostos mobilizados pela antropologia poltica (a partir da perspectiva privilegiada oferecida pelas propostas metodolgicas de J.-W. Lapierre); de outro, as novas balizas orientadoras que emergem do interior desta avaliao para o estabelecimento legtimo da cincia. O autor procura, enfim, apontar o sentido da "converso heliocntrica" proposta por Clastres para a disciplina, bem como assinalar a radicalidade de seu projeto crtico. Palavras-chave: antropologia poltica; Pierre Clastres; J.-W. Lapierre.

    SUMMARY Based on his a reading of "Copernicus and the savages", the author seeks to sketch a profile of Pierre Clastres' project of criticism that moves the manifold segments of his work. The article highlights, on the one hand, Clastres' account of procedures and assumptions adopted by political anthropology (from the priviliged perspective offered by the methodological proposals of J.-W. Lapierre); on the other hand, the author discusses the reference points that emerge from this internal evaluation to legitimize its establishment as science. Finally, the author stresses the meaning of the "heliocentric conversion" proposed by Clastres to political anthropology, as well as the radical overtones of his political project. Keywords: political anthropology; Pierre Clastres; J.-W. Lapierre.

    , em geral, com interesse, mas tambm com certo desconforto, que o leitor mais severo e exigente percorre as pginas de "Coprnico e os selvagens", o ensaio de abertura do livro que estampa com mais nitidez os contornos da investigao etnolgica de Pierre Clastres1. Entre as razes mais imediatas desse incmodo, provavelmente se destacar, em primeiro lugar, a existncia de uma certa inadequa- o, no texto, entre o fundo e a forma. Pois, trata-se de uma resenha, notcia crtica e orientao para leitores, como o so, afinal, as matrias da publicao que originalmente o acolhera. E, no entanto, o autor, transgredindo as convenes do gnero notcia apreciativa e levando talvez demasiadamente a srio as exigncias de uma crtica, prope uma verdadeira revoluo na antropologia poltica: pretende apontar os obstculos que bloqueiam o caminho da cincia e definir os rumos da converso que viria legitim-la.

    (*) O presente trabalho, com algumas modificaes, repro- duz um dos captulos da pri- meira parte de tese de douto- rado defendida em 1991 na Universidade de So Paulo, sob o ttulo: A crtica da antropolo- gia poltica na obra de Pierre Clastres. Busca-se aqui, atra- vs de um comentrio do en- saio "Coprnico e os selva- gens", desenhar o perfil do projeto crtico que anima os diversos segmentos da obra desse autor.

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    Ocorrer, talvez, ao leitor se alguma simpatia sugerir a moderao de suas reservas que a revista Critique, fundada por Georges Bataille, e preocupada em detectar e processar interesses e rumos da produo cultural contempornea, permite a seu colaborador presumir um destinatrio sofisticado e receptivo a inovaes (quando no inclinado aos modismos), o que o estimularia a correr certos riscos ou a ceder ao apelo de uma empresa saudavelmente provocadora. No entanto, ainda assim, tal leitor dificilmente se desembaraar da convico de que a ocasio comentrio de um livro do politlogo Jean-William Lapierre e o veculo caderno de resenhas se mostram demasiado acanhados para a ambio do intento e o alcance da proposta que exigiriam, com certeza, o respaldo de um enquadramento mais sustentado, a fiana e a autoridade de uma verdadeira obra crtica. Assim, no supreendente que seu ressaibo se acentue e desande em franca desconfiana, quando se inteira de que este texto "de circunstncia" no se apia em um outro mais composto, mas que ele prprio conforma e sustenta a obra, ao invs de apenas, como de praxe, bordar sua franja polmica (a experimentao de suas intuies e intenes) ou seu prolongamento pedaggico.

    De fato, se deixarmos de lado seus textos de carter propriamente etnogrfico Chronique des Indiens Guayaki e Le grand parler , veremos que o trabalho etnolgico de Clastres reduz-se a apenas duas coletneas de ensaios La Socit contre l'tat e Recherches d'Anthropologie Politique, publicado postuma- mente , e que estas renem trabalhos de gneros, origens e intenes diversas: resenhas, rplicas, contribuies a obras coletivas, ensaios sobre temas circunscri- tos ou estudos em vista de investigaes de maior flego. Ele no escreveu, enfim, o "grande livro". Deste modo, o tom menor do gnero ensastico, no sentido mais amplo e trivial da expresso, que, neste autor, carrega a responsabilidade no limite de sua capacidade de resistncia da inveno e explicitao das razes maiores da obra. Pois encontramos a, sem dvida, autor e obra, mesmo na falta daquela articulao assumida, fatual ou idealmente, em um discurso mais acabado. Poderamos mesmo dizer que Pierre Clastres um dos poucos etnlogos contem- porneos aos quais se pode atribuir sem dificuldade a designao de "autor", se entendermos que a autoria no s assinala o surgimento de um pensamento original e o estabelecimento de um novo campo discursivo, mas ainda funciona como marca e selo de seu reconhecimento pblico em meio s controvrsias das interpretaes, interrogaes e debates que o novo espao de questes suscita. E se Clastres se faz autor, neste sentido forte da palavra, exatamente por sua pretenso de realizar uma verdadeira revoluo "copernicana" na etnologia, ou ainda pela conexo intrpida por ele estampada no ttulo mesmo deste ensaio: Coprnico e os selvagens. Assim, como se v, as reticncias do leitor incidem sobre um ponto sensvel. Elas pem sob suspeio a realidade desta autoria a imputao de responsabilidade intelectual que esta designao lhe assegura quando acredita que a tese no esteja lastreada por procedimentos compatveis com a gravidade de suas denncias e a ambio de seus propsitos.

    E h ainda mais nesse texto para alimentar as apreenses de um leitor austero. Trata-se, evidentemente, de sua inteno revolucionria. Todos sabemos que nosso tempo tem aprendido a suspeitar deste gnero de pretenso. Revoluo reivindica- da nem sempre revoluo possvel, a postulao de um saber, por si s, no o faz legtimo. Se as revolues so sempre crticas, no o so sempre at o fim, como verdadeira capacidade de fundao e construo. Como, pois, levar a srio mesmo que se tenha por eles alguma simpatia, ou complacncia os arroubos revolucionrios de um jovem etnlogo iconoclasta que com sua pretendida nnnnnnn

    (1) Referimo-nos a "La socit contre l'tat" (Clastres, 1974), coletnea de ensaios publica- dos a partir de 1962, aos quais se juntou um texto original (Chapitre: "La socit contre l'tat") que maneira de um longo posfcio retoma, ali- nhava e amplifica os diversos temas e abordagens dos textos anteriores, acentuando sua es- treita articulao.

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    revoluo na antropologia consegue, ao que parece, realizar tambm o anelo e o sonho das grandes revolues polticas visto que entende dar foros de legitimidade (mostrar a possibilidade) idia de sociedades de liberdade e igualdade, sem opresso e explorao? Proeza do revolucionarismo, se dir: ele pretende estabelecer como cincia a antropologia poltica dando-nos, por acrsci- mo, a certeza da realidade dos ideais que acompanham toda a experincia poltica da modernidade. Tudo parece, portanto, sugerir a extravagncia deste pensamento que se quer ironicamente "copernicano", que pretende fazer cincia mas, ao que parece, se extravia e vaga pelo mar sem bordas da metafsica2. Mas ainda assim, certamente, conviremos em que estas justificadas desconfianas no devem como acontece frequentemente dissuadir o leitor mais exigente da necessidade de uma considerao detida e paciente das articulaes do discurso, sob pena de se azedarem seus prprios motivos em preveno e preconceito. Correr-se-ia o risco de devolver obra aquilo mesmo que se suspeita que ela carregue: pressa, crtica irresponsvel e preconceito. Passemos, pois, ao acompanhamento atento do movimento de sua interrogao.

    "Coprnico e os Selvagens" ocupa-se da questo do poder poltico nas sociedades ditas arcaicas ou primitivas. Mas no diretamente o poder poltico o objeto das consideraes desse ensaio; a antropologia poltica, a regio do saber delimitada por ele, "o espao do poltico no centro do qual o poder pe sua questo" (Clastres, 1974, p. 8). Trata-se, como j aventamos, de um ensaio crtico. E a pergunta formulada na sua abertura mesma se encarrega de nos advertir de que esta inteno crtica deve ser compreendida de maneira exigente, pois evoca sem rodeios, por seu prprio lxico, exigncias e ambies enraizadas na tradio do criticismo: "Pode-se questionar, seriamente, a respeito do poder?" (Clastres, 1974, p. 7). De um lado, o enunciado aponta para a tarefa de apreciao de um saber estabelecido (pois visa, para alm do trabalho de Lapierre, e a partir dele, aos princpios da operao da disciplina), pe em questo seu bem-fundado, examina seu rigor. De outro lado, remete como o texto adiante confirma ao exame das condies da "seriedade" de um tal saber: possvel questionar, seriamente, a respeito do poder? Como a antropologia poltica pode estabelecer-se de modo legtimo?

    O advrbio inscrito na formulao da questo acentuando-lhe o sabor kantiano j evocado no ttulo do artigo permite, pois, ao leitor presumir de imediato seu interesse pelo conhecimento propriamente "cientfico", o saber cuja seriedade estaria, desde Kant, avalizado pela crtica da nossa faculdade de conhecimento. O prprio autor lembra em seguida a quebra do velho confinamen- to da questo poltica ao pensamento especulativo com o surgimento, neste domnio, "de uma pesquisa de vocao propriamente cientfica" (Clastres, 1974, p. 7). Investigao recente, segundo lembra ainda: apenas "h duas dcadas aproxi- madamente"3, a antropologia teria passado a se interessar pela dimenso poltica das sociedades arcaicas, manifestando, assim, por sua extenso etnologia, a inteno de abarcar a questo do poder em toda sua amplitude (projeto, como se dizia ento, de "generalizao do poltico" Balandier, 1978, p. 5). Ser, portanto, esta configurao do saber, esta especializao tardia da antropologia social, o alvo de sua operao crtica:

    [...] o atraso se recupera, as lacunas so preenchidas; h doravante textos e descries suficientes para que se possa falar de uma antropologia poltica, nn

    (2) bastante frequente a atri- buio de um carter "metaf- sico" ao pensamento de Pierre Clastres, mesmo que nem sem- pre de maneira explcita. Lem- bramos, pois, apenas alguns casos em que se detecta o uso mesmo desta expresso: Lapi- erre, 1977, p. 350; Giannotti, 1983, p. 60; Viveiros de Castro, s/d, p. 32, nota 3.

    (3) Isto se escreve, lembremo- lo, no final dos anos 60, e todos os retrospectos da disci- plina concordam em que ela comea a consolidar-se a par- tir de 1940, o ano da publica- o do African political syste- ms, organizado por M. Fortes e E.E. Evans-Pritchard, e de The Nuer deste ltimo. O primeiro texto, como se sabe, traz o clebre prefcio de Radcliffe- Brown, que se formula, de uma certa maneira, como um mani- festo inaugural da disciplina.

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    medir seus resultados e refletir sobre a natureza do poder, sua origem e, enfim, as transformaes que a histria lhe impe segundo os tipos de sociedades em que ele se exerce (Clastres, 1974, p. 8).

    O leitor, encontrando-se no primeiro pargrafo, poderia no pesar bem estas palavras. Poderia entender que a interrogao do poder poltico, mesmo tendo tomado muito recentemente o caminho da cincia, j acumularia, entretanto, um material descritivo e um equipamento analtico suficientes para configurar uma disciplina original nos domnios da antropologia; e que pareceria chegado o momento de uma avaliao do trajeto percorrido e de um balano de seus resultados: apreciar o rigor e o alcance dos conceitos e hipteses fundamentais que delineariam os interesses da disciplina bem como os procedimentos observados no exerccio de suas investigaes. Cautela elementar, poderia pensar, e mesmo rito rotineiro inerente prtica de toda cincia, j que, ao que se sabe, mesmo bem estabelecidas e firmadas, nenhuma delas "progride" por simples acumulao de observaes e experincias, mas sobretudo por rearranjos internos ou mesmo por fraturas mais profundas nos seus estabelecimentos metodolgicos ou no quadro de seus enunciados "tericos". No pareceria, ento, normal e mesmo corriqueiro que o antroplogo Clastres, sensvel como outros contemporneos seus a tal urgncia, se dispusesse a uma tarefa assim?

    O texto que h pouco destacamos sugere, como se viu, outro caminho. Ao lembrar que o projeto de Lapierre no se prope apenas a "medir os resultados" da cincia, mas tambm a refletir sobre a natureza do poder e sua origem projeto que qualifica, de imediato, como "ambicioso mas necessrio" , ele antecipa, ainda que talvez um tanto veladamente, seu prprio propsito: o de assentar as fundaes da disciplina, o de coloc-la no caminho seguro da cincia. "Uma antropologia poltica possvel? Poderamos duvidar que sim a considerar a onda crescente da literatura consagrada ao problema do poder" (Clastres, 1974, p. 17), lemos mais adiante. Ora, o livro que Clastres examina se destaca, conforme assinala, dessa literatura e configura "uma empresa digna de interesse" (Clastres, 1974, p. 8) justamente porque nos confronta com a exigncia da constituio desse saber (ainda que Lapierre se iluda sobre o alcance desta questo, compreenda mal seus requisitos e se mostre incapaz de dar sua pretenso um encaminhamento adequado). Desse modo Clastres, ao denunciar-lhe o projeto, mantm seu prop- sito, o intento talvez extravagante de reavaliao crtica da disciplina, de exame de sua seriedade, mediante a reflexo sobre seus fundamentos. Operao crtica portanto; mas crtica, em primeiro lugar, de uma outra que se mostra incapaz de levar a cabo, seriamente, seu projeto de reconsiderao das condies da cincia no terreno do poltico, e que vai, por sua vez, buscar compreender as exigncias da sua constituio.

    No seria difcil, no entanto, ocorrer ao leitor familiarizado com o contexto do debate metodolgico em que intervm "Coprnico e os selvagens" que o livro de Jean-William Lapierre que o ensaio comenta4 nada mais seria para Clastres que um pretexto para consideraes sobre os rumos da disciplina que tal trabalho, por si s, no seria capaz de suscitar. Assim, poderia acreditar que o interesse do crtico pela obra se esgotaria inteiramente no nvel das determinaes de circunstncia que costumam marcar uma resenha desde a oportunidade da edio do livro comentado at os interesses momentneos do pblico e mesmo da publicao que nnn

    (4) Trata-se do ensaio publica- do em 1968 Essai sur le fondement du pouvoir politi- que (Lapierre, 1968). Este tex- to, remanejado e com acrsci- mos, republicado em 1977 com outro ttulo: Vivre sans etat? Essai sur le pouvoir politi- que et l'inovation sociale (La- pierre, 1977). A adio mais importante a de uma extensa quarta parte, denominada "Dis- cussions", em que o autor, co- mentando as crticas de que foi alvo o primeiro texto, procura esclarecer suas posies mais importantes.

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    a acolhe. Seria um equvoco, todavia, pensar desta maneira. E certo que a considerao das linhas principais do trabalho de Lapierre permite situar melhor esta questo e compreender a visada privilegiada que suas formulaes metodol- gicas oferecem para uma apreciao abrangente dos caminhos tomados pela antropologia poltica. No se trata, evidentemente, de buscar numa perspectiva gentica ou etiolgica a origem da crtica de Clastres nas teses de Lapierre (at porque em seu ensaio "Filosofia da chefia indgena", de 1962, as balizas fundamen- tais de seu projeto j parecem nitidamente acertadas5, mas de verificar que, nelas, podem ser detectados de modo mais contundente os pressupostos e desenvolvi- mentos do tipo de procedimento por ele visado. O interesse da "dmarche" de Lapierre est, certamente, em que ela explora com mais audcia (e portanto com maiores riscos) o problema espinhoso da constituio da antropologia poltica como disciplina cientfica, num momento em que a confiana cientificista dos funcionalistas de primeira hora no comparatismo parece definitivamente abalada e o "mtodo comparativo" parece destinado ao exerccio de uma espcie de "bricolage" sem princpios (como uma "sistemtica" de correlaes estabelecidas em domnios mais ou menos circunscritos), incapaz de assegurar as pretenses legisladoras da cincia.

    O projeto de Lapierre permite tambm detectar com clareza a soluo que se configura na disciplina para estes impasses. De um lado, no se dispondo mais a operar, como Radcliffe-Brown, com a pressuposio da homogeneidade dada do campo oferecido s comparaes (e a convico apressada que a acompanha de descobrir "caracteres universais e essenciais" quase a cada regularidade detectada), e no se resignando tambm tarefa infindvel de to-somente "identificar e repertoriar tipos" (com o apoio das disciplinas histricas e da etnografia), vai procurar solucionar o problema da totalizao do campo destinado s operaes da cincia estabelecendo sua homogeneidade pela via especulativa da sua definio. Em outras palavras: se o campo oferecido ao procedimento comparativo da cincia no dado, se no pode ser pressuposto, pode ser posto, definido, de modo a oferecer novamente um terreno ntido e seguro para a atividade da cincia. De outro lado, no se dispondo mais a construir suas tipologias por diferenas qualitativas ("diferenas especficas") advindas da observao e respaldadas pela unidade pressuposta do gnero (o domnio, homogneo, da instituio que permite circunscrever o espao das unidades comparveis), Lapierre se prope a oper-las segundo diferenas quantitativas, que resguardariam a homogeneidade do campo estabelecido pela definio e garantiriam a pertinncia das comparaes, de modo a assegurar, finalmente, a certeza cientfica. , exatamente, essa orientao metodolgica que Clastres vai detectar (e desmontar) no seu comentrio da obra de Lapierre, que tem o mrito de formul-la com alguma nitidez e de procurar guiar por ela, com bastante propriedade, a operao da cincia, enquanto outros empreendimentos parecem tomar esta direo com maior hesitao, e praticar esse caminho de modo mais laxo.

    Assim, ao nos aproximarmos do texto de Clastres, verificamos que ele procura, de imediato, o arcabouo metodolgico da obra comentada, e que, na sua sucinta apresentao do procedimento de Lapierre, destaca os momentos da definio do campo o domnio do poltico e da classificao de suas variaes quantitativas , os dois movimentos iniciais do mtodo, encarregados da determinao das unidades a serem, finalmente, no terceiro momento, submetidas empresa propriamente dita das comparaes. E, na verdade, veremos que Clastres ignorar quase que por completo em todo seu comentrio este terceiro momento, nnn

    (5) Muitos leitores de Clastres insistem neste ponto. Conferir, por exemplo, Michel Cartry e Claude Lefort nos seus artigos de homenagem a Clastres pu- blicados em Libre n 4, 1978. Lefort, depois de mostrar que "Philosophie de la chefferie indienne" "lanava os funda- mentos de sua antropologia poltica", acrescenta: "Ainda muito pouco dizer isto: este texto continha j, no essencial, a interpretao do mundo dito primitivo ou selvagem, que ele no cessar em seguida de enriquecer. Fato singularssi- mo: foi sem hesitao, sem tateios, sem desvios somos tentados a dizer: sem conhecer a labuta da investigao que Clastres encontrou o ca- minho de sua obra, e foi sem esmorecimento que o seguiu" (Lefort, 1978, p. 49). Mas que o leitor saiba compreender estas linhas, pois seu autor o fil- sofo sbrio do "trabalho da obra" e da reflexo sobre a indeterminao essencial das obras de pensamento. Segura- mente a interpretao do mun- do selvagem proposta por Clastres continuou a ele prprio e a ns a dar a pensar.

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    que justamente aquele que, para o autor, carreia o aspecto mais inovador da sua proposta: aquele, exatamente, encarregado de dar ao mtodo um alcance "explica- tivo" (pois j no visa mais apreenso das "regularidades" de uma determinada funo estudada, o conhecimento de suas "leis gerais", mas busca explicar os fenmenos inicialmente circunscritos as variaes da varivel postulada pela definio , relacionando-os ou comparando-os metodicamente a outras ordens de fenmenos discriminados tambm especulativamente guisa de hipteses explicativas no interior do sistema social). A este registro do procedimento responsvel pelo estabelecimento da inovao como origem do poder poltico6 , Clastres somente atende j no final de seu texto (cf. Clastres, 1974, p. 21), e apenas para observar que, se a correlao entre poder e inovao estabelecida por Lapierre for correta ("ela nos parece rigorosa e convincente", diz), ela se limita apenas a uma modalidade de instituio poltica e tem, portanto, to-somente um alcance regional e circunscrito. O problema do mtodo comparativo faz-nos compreender P. Clastres no est propriamente, como sempre acreditou a tradio de sua crtica, no registro mesmo da comparao; no est fundamentalmente, como sempre se denunciou, no risco de comparar fenmenos heterogneos o que levou, de Boas (1949) a Shapera (1953) e a Beattie (1964), recomendao de diversos procedi- mentos para conter seu emprego abusivo ou naquele de aplicar-se a fenmenos idnticos, que o conduziriam a resultados tautolgicos ou simplesmente "banais" (cf. Lvi-Strauss, 1958, p. 19; e 1973 pp. 22-3). Seu problema j se configura no nvel da exigncia de delimitao de um sistema de classes, est na sua dificuldade para estabelecer um campo, qualquer que seja, para as comparaes. A questo fundamental no , portanto, se os fenmenos circunscritos so demasiado heterogneos ou idnticos (dificuldade impossvel de conjurar de uma vez por todas), mas a da possibilidade mesma de circuncrev-los, de designar um campo determinado ao exerccio das comparaes.

    Comecemos, no entanto, por acompanhar sua apresentao do procedimen- to de Lapierre, para podermos, depois, examinar a crtica que vem, logo em seguida, exposta de maneira extremamente concisa (e precisa), e que o restante do texto nada mais far, na verdade, que desdobrar. Assim, sobre o procedimento, Clastres comea por lembrar que seu ponto de partida o estabelecimento de uma amostragem que contempla um leque "impressionante" de sociedades, "uma coleta quase completa, por sua variedade geogrfica e tipolgica, daquilo que o mundo "primitivo" poderia oferecer de diferenas em face do horizonte no-arcaico, sobre cujo fundo se desenha a figura do poder poltico em nossa cultura" (Clastres, 1974, p. 9). Em vista da grande diversidade apresentada por este universo de sociedades (que "s tm em comum diz precisamente a determinao de seu arcasmo"), revela-se necessrio classific-las, de modo a "introduzir um mnimo de ordem nesta multiplicidade". E como, ento, Lapierre opera esta classificao?

    (6) O exerccio de seu mtodo permite a Lapierre estabelecer uma correlao "necessria" de alcance explicativo, segun- do diz entre o poder polti- co (e suas variaes) e os di- versos graus de inovao so- cial (ou "integrao de dife- renas socioculturais" pelo sis- tema social) detectados em di- ferentes sociedades. A com- provao de uma correspon- dncia termo a termo do es- pectro das variaes destas duas sries que vem susten- tar sua tese final de que a inovao a origem do poder poltico ("o poder poltico pro- cede da inovao social" Lapierre, 1968, p. 529; cf. tam- bm Lapierre, 1977, p. 172 e p. 292, nota 1) e tambm o ttulo da primeira verso de seu tra- balho: "Essai sur les fonde- ments du pouvoir politique".

    [...] Aceitando aproximadamente as clssicas classificaes propostas pela antropologia anglo-saxnica para a frica, ele observa cinco grandes tipos "partindo das sociedades arcaicas nas quais o poder poltico mais desenvol- vido para chegar finalmente quelas que apresentam [...] quase nada, e at mesmo absolutamente nada de poder propriamente poltico" (p. 229). Orde- nam-se, pois, as culturas primitivas em uma tipologia fundada, em suma, sobre a maior ou menor "quantidade" de poder poltico que cada uma delas oferece observao. E visto que esta quantidade de poder tende em uma de n

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    suas direes para um ponto zero, admitir-se- que "[...] certos agrupamentos humanos, em condies de vida determinadas que lhes permitem subsistir em pequenas 'sociedades fechadas' puderam prescindir de poder poltico" p. 225 (Clastres, 1974, p. 9).

    A primeira indicao a ressaltar neste texto sua observao de que o critrio da classificao quantitativo, que a tipologia se estabelece como uma gradao de "quantidades". Porm, logo soa estranho que ela possa coincidir "aproximadamen- te" com as "clssicas classificaes da antropologia anglo-saxnica para a frica". Pois, como sabido, estas taxionomias no operam com a quantidade, mas a partir da construo de diversos modelos funcionais dos sistemas polticos, descritiva- mente e, portanto, qualitativamente elaborados, j que tm em vista no intil repetir abstrair regularidades qualitativas ou, como dizem Fortes e Pritchard, as "principais caractersticas" (Fortes e Pritchard, 1940, p. 28) das sries elaboradas, que permitiriam atingir "generalizaes cientficas vlidas" (idem, p. 28) ou "concluses de tipo geral e terico" (idem, p. 29). J vimos tambm que Lapierre justamente procura inovar em relao a estas classificaes (depurando-as de seu carter qualitativo e forando-as a aparecer sob o aspecto "quantidade") para fazer que a srie inicialmente visada no caso, aquela das instituies polticas surja como homognea e comparvel a outras sries configuradas de modo semelhante em registros distintos procedimento este que daria ao mtodo um alcance verdadeiramente explicativo e cientfico (em oposio "pretenso metafsica" Lapierre, 1977, p. 350 do procedimento anterior, que visaria a conhecer a natureza ou a essncia das instituies). Ora, como possvel, ento como de fato acontece , que estas classificaes "aproximadamente" se recubram? Logo compreendemos que, se tal verso, abertamente "quantitativa", das velhas tipolo- gias possvel, porque esta traduo j estava como que "preparada" (no sentido que esta palavra tem no contexto das cincias experimentais) por elas, porque elas j guardavam uma cumplicidade subterrnea com a aritmtica desta nova distribuio. Na verdade, o que a operao de Lapierre revela que a constituio da srie a partir de "modelos descritivos" no s est guiada por uma unidade prvia de medida, como tambm se estabelece segundo a maior ou menor distncia dos casos considerados em relao a este medidor do sistema, confessando, pois, claramente, sua afinidade com a operao quantitativa agora proposta (e mostran- do-se mais prxima do que se poderia pensar do "velho evolucionismo" sobretudo quando se considera que o modelo lhe sempre fornecido, no final das contas, pelas instituies do Estado7.

    Porm, o que se pode apreender com clareza por esta operao quantitativa da classificao e que , na verdade, o ponto sutilmente enfatizado por Clastres no trecho que consideramos a dificuldade que encontra o procedimento para determinar a srie completa das classes e, assim, mapear a compreenso inteira do campo do poltico. Dificuldade no negligencivel quando se pretende conhecer os "caracteres universais e essenciais" do sistema poltico (como Radcliffe-Brown ou Evans-Pritchard) ou quando se pretende apontar-lhe o fundamento (como Lapier- re), e mesmo preciso dizer para qualquer pretenso de cunho "explicativo" que se queira mais modesta. O que o procedimento quantitativo de Lapierre permite detectar com clareza (e que os procedimentos descritivos frequentemente camuflam) que a determinao das classes pelo mais e o menos relativamente categoria "poder poltico" que permite operar o conhecimento leva n

    (7) O prprio Lapierre denun- cia o carter etnocntrico das classificaes "dualistas" como, por exemplo, a de Fortes e Pritchard (Lapierre, 1977, p. 323) que oporiam sociedades com e sem "governo" ou mes- mo de Estado e sem Estado (cf. Fortes e Pritchard, 1981, p. 32). Mas no percebe que no bas- ta, para contornar seu etno- centrismo, "complexificar" es- tas classificaes, refin-las, se mantm o princpio operador de sua seriao as institui- es governamentais e se mantm nas extremidades da srie as mesmas duas classes (sociedades sem governo e sociedades dotadas de institui- es governamentais "plena- mente desenvolvidas", ou seja, especializadas e complexas cf. Lapierre, 1977, p. 71).

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    construo de uma srie que tende para o zero mas no admite sua incluso, ou ainda que "uma classe zero", justamente, escaparia da medida que possibilita a classificao. Por isso, diferentemente de seus predecessores, ao afirm-la, Lapierre como que hesita e deixa transparecer no texto o lapso da resistncia e a marca da hesitao: "[...] partindo das sociedades arcaicas escreve em que o poder poltico mais desenvolvido para chegar, finalmente, quelas que apresentam [...] quase nada, ou mesmo nada de poder propriamente poltico" (Lapierre, 1968, p. 229 grifo nosso). Desse modo, tomando uma direo bem conhecida (aquela, como veremos adiante, que demarca na antropologia a figura do "arcasmo"), incluir o tipo zero em sua classificao: "[...] certos agrupamentos humanos em condies de vida determinadas, que lhes permitia viver em pequenas 'sociedades fechadas', puderam prescindir do poder poltico" (Lapierre, 1968, p. 525).

    Clastres capta com preciso a dificuldade enfrentada pelo procedimento e a capitaliza em sua crtica assinalando os embaraos em que ela enreda a cincia. No difcil prever esse caminho: dado que o mtodo incapaz de processar o momento de origem da srie, o momento zero ser concebido como homogneo s demais classes, uma a mais dentre as gradaes do sistema. Mas como pensar, nesse caso, a determinao desta classe? O comentrio que segue a exposio do mtodo nos encaminha, de imediato, na direo desta questo:

    Reflitamos sobre o princpio mesmo desta classificao. Qual seu critrio? Como se define aquilo que, presente em maior ou menor quantidade, permite designar tal lugar a tal sociedade? Ou, em outros termos: o que se entende, mesmo que a ttulo provisrio, por poder poltico? A questo, se admitir, importante, visto que no intervalo suposto, separar sociedades sem poder e sociedades de poder, deveria dar-se, simultaneamente, a essncia do poder e seu fundamento. Ora, no se tem a impresso, a seguir as anlises, todavia minuciosas, de Lapierre, de assistir a uma ruptura, a uma descontinuidade, a um salto radical que, arrancando os grupos humanos de sua estagnao pr-poltica, os transformaria em sociedade civil. Deve-se, ento, dizer que entre as sociedades de sinal "+" e as sociedades de sinal "-" a passagem progressiva, contnua e da ordem da quantidade? (Clastres, 1974, p. 2).

    De um lado, assim, ao conceber uma passagem progressiva contnua entre o momento zero e as demais classes do sistema, Lapierre nada mais faz do que escamotear o embarao maior do caminho comparativo, a saber, que a natureza mesma desse procedimento o impede, congenitamente, de tocar um marco zero. Pois, como j vimos, o sentido da operao de tendncia para zero, afastamento indefinido em direo a um mais e um menos, que esboa um campo, mas mostra- se incapaz de atingir-lhe o ponto de origem, de circunscrever seu espao verdadeiro8. O momento zero no pode pertencer srie das classes; v-se excludo pela exigncia de continuidade (homogeneidade) do campo assinalado s comparaes.

    De outro lado, no entanto, se se integra como o faz abusivamente Lapierre o descontnuo srie das classes, constata-se que sua "determinao" s pode ser negativa. Ela indica apenas sua diferena bruta em relao unidade de medida do sistema, pois s esta capaz de identificar os casos considerados e de mediar sua assimilao ao quadro articulado das classes. Em outras palavras: a nnnnn

    (8) Isto, justamente, condena a classificao a flutuar num es- pao sem bordas (ou apenas esboado pela imagem inicial fornecida pela definio); e termina por inviabiliz-la, mos- tra Clastres, "pois entre os dois extremos sociedade de Es- tado e Sociedade sem poder figurar a infinidade dos graus intermedirios, fazendo, no limite, de cada sociedade particular uma classe do siste- ma" (Clastres, 1974, p. 10).

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  • SRGIO CARDOSO

    incluso de zero no quadro das classes no s no faculta srie o acesso sua origem como tambm no redunda em qualquer proveito para o conhecimento deste "tipo" de regulao poltica. "Consequentemente comenta Clastres num caso como no outro, na hiptese da descontinuidade entre no-poder e poder, ou na da continuidade, parece que nenhuma classificao das sociedades empricas poderia nos esclarecer sobre a natureza do poder poltico nem sobre as circunstn- cias de seu surgimento, e que o enigma persiste em seu mistrio" (Clastres, 1974, p. 10). De Radcliffe-Brown a Lapierre o caminho comparativo torna inexorvel a frustrao dos projetos de conhecer a natureza do poder (ambio alimentada pelo primeiro) ou sua origem (aspirao acalentada pelo ltimo).

    O que se trata de compreender, entretanto, o modo pelo qual Lapierre acredita resolver, no exerccio efetivo de sua classificao das modalidades de regulao poltica, esta situao paradoxal do momento zero denunciada pela crtica. preciso verificar como procede para que este "tipo" de regulao possa, ao mesmo tempo, ser subsumida entre as gradaes do Sistema e representar uma descontinuidade em relao s outras classes; e, mais ainda, a que preo tal "soluo" pode ser obtida.

    possvel perceber, de pronto, que a investigao desta questo passa pela compreenso do estatuto conferido por Lapierre s instituies polticas, remeten- do-nos, assim, ao problema da "definio", cuja correo e propriedade foram postas pelo antrpologo como um dos requisitos para a construo da cincia. Podemos, no entanto, abreviar a abordagem deste aspecto da questo remetendo- nos diretamente ao comentrio de Clastres. Segundo ele, no que tange concepo do poder, Lapierre toma o caminho mais tradicional do pensamento poltico9, compreendendo-o sob o modelo das relaes mando-obedincia ("o poder se realiza numa relao social caracterstica: mando-obedincia" Lapierre, 1968, p. 10) ou, enfim, como uma relao de coero. Isto, justamente, mostraria com clareza a dificuldade envolvida na determinao do estatuto poltico das sociedades da primeira classe da srie. Pois, ou a se observam relaes de mando e coero e, ento, elas poderiam integrar o quadro classificatrio, ou no se observam tais relaes e, consequentemente, estariam excludas do mbito do saber proporciona- do pela operao do mtodo.

    Lapierre protesta contra esta interpretao. Seja no artigo-resposta ao ensaio de Clastres que aqui comentamos (Lapierre, 1976), seja na verso remanejada de seu livro, ele acusar o crtico de reduzir, de maneira abusiva, suas indicaes sobre a regulao poltica ao aspecto da coero e da violncia (cf. Lapierre, 1976, p. 996; e 1977, pp. 346 e 304): "Clastres no cessa diz ele de confundir a autoridade e a potncia" (Lapierre, 1977, p. 346). Pois, se verdade que a regulao poltica se efetiva como relao mando-obedincia, preciso entender que esta, diferentemente da relao dominao-submisso (fundada na potncia de indivduos ou grupos), se estabelece pelo reconhecimento de uma autoridade, e que o poder desta autoridade est vinculado apreciao, por parte dos que obedecem, da legitimidade das regras que ela impe (cf. Lapierre, 1977, pp. 304 e 305). Assim, o poder no seria apenas coero e violncia, mas tambm consenso e legitimidade. Ora, o que devemos comear por observar que tal "correo" que, alis, no estranha inspirao do argumento de Clastres10 tem um sentido preciso, e que podemos encontrar na histria da antropologia poltica algumas referncias para interpret-la e para balizar simultaneamente os compromissos de Lapierre.

    (9) "[...] sobre este ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o po- der como monoplio do uso legtimo da violncia) e a etno- logia contempornea, o pa- rentesco mais prximo do que parece, e as linguagens diferem pouco por partirem do mesmo fundo: a verdade e o ser do poder consistem na violncia e no se pode pensar o poder sem seu predicado, a violncia" (Clastres, 1974, p. 10).

    (10) Certamente nos pergunta- mos, ao ler o texto de Lapierre, sobre o propsito destas ob- servaes; sobretudo quando vemos que ele prprio de- pois de indicar que a autorida- de implica consenso e a po- tncia, sanes vai, exata- mente, dizer que "sua unio dialtica se efetua na legitima- o, pela autoridade, do uso da violncia" (Lapierre, 1977, p. 346). Dificilmente se expri- miria melhor o sentido dos parentescos que Clastres atri- bui a esta concepo do poder poltico.

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  • COPRNICO NO ORBE DA ANTROPOLOGIA POLTICA

    Esta nfase na autoridade e na legitimidade que respaldariam a coero poltica, embora seja quase banal no quadro mais amplo da reflexo poltica, faz um percurso extremamente interessante no mbito da antropologia, e indica um deslocamento significativo nas suas referncias tericas. J Radcliffe-Brown, como sabemos, para definir o campo poltico, busca a perspectiva do direito: define os limites de uma sociedade poltica, fundamentalmente, pelo comum reconhecimen- to de regras, ou como o espao da vigncia de um direito. "Ao tratarmos dos sistemas polticos diz ele no seu clebre "Prefcio" a Sistemas polticos africanos , estamos tratando, por um lado, do direito e, por outro, da guerra" (Radcliffe- Brown, 1981, p. 9), que se refere, esta, principalmente, ao plano das relaes da sociedade com o seu exterior. Mas o direito concebido nesse autor sobretudo como "justia repressiva" (idem, p. 9) ou como o domnio da coero legtima, o que o leva a definir a "organizao poltica" como o campo do "exerccio organizado da autoridade coercitiva" (idem, p. 9). Enfim, o campo do poltico o da fora autorizada autorizada por submeter-se aos procedimentos ordenados e regulados por um direito. Mas a nfase em Radcliffe-Brown dada, na verdade, ao exerccio da fora, como permite constatar ainda outra de suas definies a que vem no final do texto a que nos referimos do sistema poltico: "A organizao poltica de uma sociedade diz ele o aspecto da organizao total que se ocupa do controle e da disciplina do uso da fora fsica" (idem, p. 24). Ora, esta nfase na coero, ou na organizao que atende ao aspecto repressivo do direito, j antecipa o destaque por ele conferido instncia de um sujeito ou de um titular desse direito, pois este surge sempre mediado por uma organizao ou por uma instituio especfica (que pode ser, no limite, a prpria comunidade, mas no enquanto apenas age segundo ordenaes jurdicas, mas quando ela prpria funciona como organismo judicirio, quando "julga [...] e inflige castigo" idem, p. 11. Tanto que o esboo mais ntido de classificao das instituies polticas que se detecta em seu texto obedece ao princpio da diferenciao das organiza- es mediadoras das sanes penais: a prpria comunidade (por si prpria ou pela mediao de seus ancios), juzes (indivduos detentores de autoridade) ou um tribunal de justia civil "plenamente desenvolvido" (idem, p. 15). Assim, aqui, num certo sentido, o poltico implica sempre fora e governo, mesmo que exercidos pela prpria comunidade.

    Com Evans-Pritchard que parte basicamente das mesmas referncias j vemos, no entanto, deslocar-se esta nfase dada por Radcliffe-Brown s formas do exerccio da justia repressiva para o prprio direito, para suas regras. Ele no acentua mais as instituies mediadoras da ordem jurdica, mas esta prpria ordem, a existncia da regra ou o reconhecimento pela sociedade de alguma forma de direito. Isto, justamente, lhe permitir admitir a existncia de uma "regulao imediata", sem a mediao de qualquer instituio especfica, e tambm definir claramente o domnio de uma "poltica sem governo", cuja regulao se estabele- ceria pelo equilbrio de um sistema de oposies (constitudo pela oposio das diversas linhagens segmentares), cujo "fator estabilizador dir ele no uma organizao jurdica ou militar muito ordenada, mas simplesmente a soma total das relaes intersegmentos" (Fortes e Pritchard, 1978, p. 46, grifo nosso). Assim, aqui, a "coero organizada" se resolve na prpria existncia da ordem, podendo-se dispensar qualquer instncia de mediao desta ordem instncia, justamente, em que Radcliffe-Brown identificava o poltico.

    Lucy Mair, vinte anos depois, com seu Primitive government, de 1962, ir como que concluir este deslocamento (e devemos insistir que s nos interessa nnnnnn

    (11) Veja-se, neste sentido, sua crtica interpretao dada por Gunter Wagner aos linchamen- tos como aes espontneas, no ensaio sobre os Bantus, includo no African political systems, que ele prefacia. Rad- cliffe-Brown comenta: "Minha opinio a de que em aes coletivas deste tipo, em que se pode dizer que a comunidade julga e a comunidade inflige castigo, podemos ver a forma embrionria do direito crimi- nal. O fato de muitas vezes no haver o julgamento resulta de a ofensa ser quase eviden- te, bem conhecida de toda a comunidade" (Radcliffe-Bro- wn, 1981, p. 10).

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  • SRGIO CARDOSO

    baliz-lo, tendo em vista assinalar os alinhamentos de Lapierre), ajustando-lhe o foco e dando-lhe uma articulao mais rigorosa que aquela de Evans-Pritchard12. Lembremos sucintamente os elos centrais da articulao de sua posio (mesmo correndo o risco de alguma impropriedade, por no podermos aqui fazer justia a certas nuances de seu trabalho). Veremos que a autora parte da existncia como dado de uma ordem social (se as "relaes pacficas so vistas como o normal, e o conflito como excepcional" Mair, 1962, p. 36 , isto atesta a vigncia de uma "rule of law" no interior dos grupos sociais considerados). Ora, desde que h ordem, h tambm desordem e conflito, visto que para usar sua sentena mais insistentemente repetida pelos epgonos "no h sociedades em que as regras sejam automaticamente obedecidas". Havendo desordem, haver, por sua vez (visto que a ordem social no se desagrega), reparao das ofensas e dos danos que ela traz "redress for wrongs" , reparao que, sendo regulada, implica o reconhecimento de regras de reparao. Ora, ser, justamente, o domnio destes procedimentos regulados de "redress for wrongs" que configurar para a autora o campo poltico. Assim, dir ela, "a comunidade poltica o povo que aceita em comum uma regra jurdica ('a commom rule of law')" (idem, p. 38), referindo-se esta regra, como tambm em Radcliffe-Brown, justia repressiva ou punitiva, reparao das ofensas que vm comprometer as relaes normais e pacficas da "comunidade poltica". Esta regra, no seu "mnimo" (e logo veremos que nela se identifica o "minimal government"), implica apenas "o princpio de que certas aes so ofensas, e de que uma pessoa que sofre uma ofensa est autorizada ('entitled') a buscar reparao ('to redress')" (idem, p. 36). Enfim, o que delimita, fundamentalmente, o espao de uma comunidade poltica , agora, to-somente a existncia de um comum reconhecimento de regras relativas reparao dos danos causados pela quebra da ordem social. Isto, justamente, permite a Mair, como ocorre tambm em Evans-Pritchard, falar em "poltica sem governo" (figura qual corresponde, na verdade, o seu "minimal government"), ou seja, indicar a ocorrncia de sociedades que dispensam qualquer instituio mediadora das regras polticas, as quais, portanto, parecem ser, para ela, to primitivas ou originais quanto aquelas detectadas nas relaes pacficas que configuram a ordem social. Assim, na verdade, a "ordem social" conteria no somente as regras, "sociais", das relaes pacficas mas tambm as regras, "polticas", de resoluo dos conflitos derivados da quebra das relaes pacficas (as regras de reparao da sua infrao). Em certas sociedades, aquelas de "primitive government", estas regras "polticas" garantiriam ininterruptamente e em virtude de sua simples existncia (pois sua manuteno prescindiria da interveno de qualquer instituio especializada na sua efetivao) a reconstituio do equilbrio social. Assim, em tais sociedades, o uso da fora na reparao das ofensas seria governado por regras e convenes (convenes estas sobre a extenso ou os limites do emprego da regra) vistas por Mair como exigncias ("claims") e obrigaes reconhecidos e efetivados por todos outro modo de dizer que nelas a regulao poltica seria imediata13. A autora afirma, no seu ponto de partida, que a regulao poltica necessria porque as regras sociais "no so automaticamente obedecidas", ou seja em outras palavras , que a regulao poltica a mediadora da ordem social. Ora, tudo se passa, no entanto, nas sociedades de "minimal government", como se as regras "polticas" (as regras que governam a reparao da desobedincia s regras sociais o "redress for wrongs") fossem automticas. E se nestas sociedades primitivas a regulao poltica surge como "automtica" (j que prescinde de qualquer princpio mediador de sua vigncia ou de sua efetividade) devemos concluir que nelas a "funo nnnnnnn

    (12) No deixa de ser significa- tivo, para contextualizarmos os debates que comentamos, as- sinalar que o livro de Pritchard The Nuer, de 1940, foi traduzi- do para o francs (d. Galli- mard) em 1968, poca mes- mo em que esto sendo publi- cados os textos de Lapierre, Balandier e o do prprio Clas- tres.

    (13) Por exemplo, no seria necessrio pensa Mair qualquer instncia institucio- nalizada para levar um Nuer sociedade que ela, reto- mando Pritchard, analisa mais longamente a cumprir sua obrigao de vingana pelo assassinato de um parente e de apoiar os membros de sua al- deia ou linhagem em lutas con- tra os vizinhos, ou mesmo con- tra outros membros da linha- gem, o que se faz segundo regras de alinhamento muito bem definidas.

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    poltica" seria, ao fim e ao cabo, apenas aquele aspecto da ordem social encarrega- do de sua auto-regulao espontnea ou preciso dizer natural. Tudo se passa, pois, como se fosse imediata na sua efetividade a prpria ordem social. Este breve excurso j nos permite, certamente, vislumbrar o sentido (e os corolrios) da nfase de Lapierre na dimenso "autoridade" regulao "reconhe- cida" do poder poltico; ou ainda perceber o motivo de sua observao de que a dimenso coercitiva deste poder est caucionada pelo consenso ou pelo reconhecimento da legitimidade das regras que impe. O que a est em causa, como podemos verificar agora, a localizao da dimenso poltica das sociedades primitivas na prpria existncia de seus ordenamentos "jurdicos" (suas regras coercitivas e punitivas) e sua vigncia imediata no nvel da prpria sociedade, sem a exigncia de instituies mediadoras de sua efetivao. Tanto assim que, quando Clastres ope a experincia etnogrfica das "chefias" americanas desprovidas de poder de mando ou de instrumentos de coero14 identificao que ele estabelece entre o poltico e as relaes mando-obedincia e, ainda, afirmao dela decorrente do carter coercitivo do poltico nas sociedades primitivas, Lapierre estar pronto para responder que seu crtico incorre, ele prprio, em poderamos dizer "um engano de objeto": pois no seriam as chefias que nos dariam acesso dimenso poltica destas sociedades, mas a existncia de um consenso sobre "regras" e a vigncia imediata destas regras no interior destas sociedades. Na verdade, as chefias teriam, assim, em tais sociedade, um carter apenas epifenomenal (tanto que se prescindiria delas em muitos casos cf. Lapierre, 1977, p. 77); pois, se h chefe e se ele no manda acredita Lapierre , porque este no seria mais que um portador acidental da lei estabelecida15, cuja legitimidade surgiria, imediatamente, para os membros da sociedade como incontestvel: "a ausncia de todo instrumento [mediador] da potncia pblica tem como contrapartida 'a presso da opinio pblica'" (Lapierre, 1976, p. 997). De modo que, dir ele, "o lugar real da potncia que sustenta a autoridade do chefe a violncia coletiva, ameaa sempre presente, que no hesita em torturar para extirpar todo desejo de viver de maneira diversa que os ancestrais, de mudar de vida. Ao invs da lei separada, longnqua, desptica, a lei do Estado, constatamos aqui continua ele uma lei imanente, terrivelmente prxima a todo instante, marcada na carne e no menos desptica, a lei do grupo" (idem, p. 997, grifos nossos). Isto lhe permite, portanto, concluir que "o paraso perdido de P. Clastres [as sociedades de poder no-coercitivo] aquele do pequeno grupo humano homogneo, unnime, homeosttico, definitivamente submetido pela tortura legitimidade de uma palavra incontestvel" (idem, p. 997). Enfim: "sociedades em que o poder poltico exercido imediatamente pela presso do conjunto do grupo" (idem, p. 999).

    Dispomos ento, agora, de uma perspectiva mais ampla para apreciarmos o caminho tomado por Lapierre para justificar a incluso tida por Clastres como ambgua e paradoxal de uma classe zero em seu sistema classificatrio. Compreendemos que, se ele pretende que tal classe integre a srie medida pelo poder poltico (concebido, devemos ter bem presente, como a funo de regulao convencional das condutas dos membros de uma sociedade), porque, de um lado, se detectaria (como tambm pensa Lucy Mair) nas unidades sociais subsumidas nesta classe a existncia de regras reconhecidas por todos os membros do grupo relativas aos comportamentos coercitivos e punitivos a serem observados nos casos de infrao da ordem (isto validaria, ento, a incluso da classe na srie "poder poltico"); e, de outro lado, porque esta regulao prescindiria de qualquer nnn

    (14) "[...] Todas ou quase todas so dirigidas por 'leaders', che- fes, e, caracterstica decisiva e digna de reter a ateno, ne- nhum destes 'caciques' possui 'poder'. Vemo-nos, pois, con- frontados com um enorme conjunto de sociedades em que os detentores do que, alhures, denominaramos 'poder' so, de fato, sem poder, em que o poltico se determina como campo isento de toda coero e de toda violncia, isento de toda subordinao hierrqui- ca, em que, em uma palavra, no se d nenhuma relao mando-obedincia" (Clastres, 1974, p. 11). preciso obser- var que esta arguio fundada na experincia tem, no mo- mento do texto em que se inscreve, um valor apenas per- suasivo, e no demonstrativo; pois ser ainda necessrio "res- tabelecer na sua verdade os dados recolhidos e conheci- dos" (Clastres, 1980, p. 28), como diz o autor em um caso semelhante inscrito noutro contexto (a referncia a rein- terpretao, por parte de M. Sahlins, do material etnogrfi- co disponvel sobre a econo- mia das sociedades selvagens). (15) " verdade diz Lapierre que, sobre as sociedades de perfil demogrfico restrito, a maior parte dos testemunhos convergem nisto: a palavra do chefe tem autoridade sem ter necessidade de recorrer a qual- quer fora pblica organizada. Isto ocorre porque a legitimi- dade desta palavra no pode- ria ser contestada. Ela se fun- da, com efeito, no assentimen- to unnime do grupo, inculca- do ao longo de toda a educa- o das crianas, violentamen- te marcado sobre o corpo no momento da iniciao dos jo- vens e continuamente refora- do pelos ritos. Transgredir a ordem social tradicional, con- testar a palavra do chefe que diz e rediz o costume ancestral seria expor-se a ser rejeitado pelo conjunto do grupo, ex- cludo das relaes sociais, o que equivale, praticamente, a uma sentena de morte. O che- fe 'primitivo' no tem o mono- plio do uso da violncia leg- tima porque tem o monoplio do uso da palavra legtima e porque ningum pode tomar a palavra para opor-se dele sem cometer um sacrilgio condenado pela opinio p- blica unnime [...]. O que Clas- tres chama 'poder no-coerci- tivo' na 'sociedade primitiva' o recurso legtimo violncia por qualquer homem adulto e o monoplio do uso poltico da palavra pelo chefe" (Lapier- re, 1977, p. 355). Observao semelhante pode tambm ser encontrada em Lapierre, 1976, pp. 996-7.

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    instituio especializada para assegurar sua vigncia (isto a destinaria, ento, ao grau zero da classificao que mede, justamente como j mostramos , o grau de especializao e complexidade da funo poltica, ou das instituies de controle da observncia das normas sociais).

    O leitor, com certeza, no ter dificuldade agora em pilhar a manobra de prestidigitao pela qual Lapierre se encarrega de solucionar seu problema. Se para ele o domnio do poltico circunscreve os processos de regulao convencional ou artificial das aes coletivas (cf. Lapierre, 1977, p. 280, entre outros), como pode identificar processos desta ordem nas unidades sociais da classe zero, se nelas nada aparece como verdadeiramente institudo, se elas so desprovidas de qualquer "instituio" mediadora da regra que justamente assinalaria o carter "artificial" da regulao? Ou ainda: como falar nesse caso em regulao convencional se, na verdade, as regras desta ordem "poltica" as normas de regulao dos conflitos aparecem como dadas ("imanentes ao grupo"), e sua aplicao como autom- tica ("imediata")? compreensvel, portanto, que o autor incorra no lapso revelador pois certamente se trata de um de referir-se, como vimos ainda h pouco (vide supra), a este tipo de "regulao poltica" como sendo "homeosttico"16, isto , como um ajuste auto-regulado, adaptativo e automtico que justamente seria prprio das formas de socializao (de "ajuste, concordncia, sincronizao dos comportamentos individuais" Lapierre, 1977, p. 58) "naturais" (cf. idem, p. 60).

    Eis, portanto, o resultado e o preo do procedimento metodolgico proposto por Lapierre no que tange s sociedades "primitivas": a classificao operada, simulando incluir no universo do poltico, previamente definido, as sociedades em que no se observariam instituies especializadas na "coero legtima" (coero que constituiria o poltico, concebido como relao mando-obedincia), termina por excluir tais sociedades do prprio universo social, por alij-las para o domnio da natureza, ou, se se preferir, por alinh-las no quadro de uma sociabilidade anloga quela das "sociedades animais" (cf. idem, p. 59).

    Podemos verificar, ento, que a crtica de Clastres ao procedimento compa- rativo do autor vai direta e certeiramente a seu alvo: ela acusa exatamente a naturalizao das sociedades primitivas inscrita na "dmarche" metodolgica prescrita (e praticada) por Lapierre com a inteno de recuperar para o compara- tismo o crdito de um procedimento verdadeiramente cientfico.

    (16) ele mesmo que diz: "Segundo ns prprios, o con- ceito de homeostasia aplica-se s sociedades animais. No acreditamos que ele ajude a compreender o modo de regu- lao das sociedades humanas (ou das organizaes indus- triais)" (Lapierre, 1977, p. 59).

    No limite dir Clastres ao concluir suas observaes sobre este projeto uma sociedade apoltica [pois determinada por um "controle social imediato"] no teria nem mesmo lugar na esfera da cultura, mas deveria ser colocada ao lado das sociedades animais regidas por relaes naturais de dominao- submisso (Clastres, 1974, p. 19).

    Ao comentar em "Coprnico e os selvagens" o livro de Lapierre, Clastres visa portanto, nele, ou atravs dele, problemas de h muito enraizados no solo da disciplina. Na verdade, o propsito expresso da vertente crtico-apreciativa do ensaio o de levar o leitor a reconhecer nos meandros da proposta metodolgica de Lapierre os compromissos envolvidos na noo mesma de "arcasmo" que, hoje ainda, podemos ver mobilizada para a designao do objeto da etnologia. assim que, apenas examinado o procedimento proposto por Lapierre, o ensaio convida o leitor a interrogar tambm "a atitude mental que permite a elaborao de uma tal nn

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  • COPRNICO NO ORBE DA ANTROPOLOGIA POLTICA

    concepo" (Clastres, 1974, p. 12), levando-o, deste modo, a considerar os traos principais desta figura que veio revezar na disciplina o "primitivo" dos evolucionis- tas. Cada um desses traos, mostrar o autor, procede de um mesmo tipo de operao: a "determinao" pela diferena, pela simples oposio unidade de medida que permite processar o "conhecimento". Enfim: sempre a mesma projeo da "classe zero" ndice negativo, sinalizao bruta da ausncia das referncias mobilizadas para a operao do conhecimento.

    "Consideremos diz Clastres os critrios do arcasmo: ausncia de escrita e economia de subsistncia. Nada h a dizer sobre o primeiro porque se trata de um dado de fato: uma sociedade conhece a escrita ou no a conhece. Em contrapartida, a pertinncia do segundo parece menos assegurada. O que , com efeito, 'subsistir?" (Clastres, 1974, p. 12), pergunta ele. Assim, vai logo apontar como o faz, alis, em vrias outras oportunidades (cf. Clastres, 1974, p. 162, 169; 1980, p. 129; entre outros) a "vacuidade cientfica" desse conceito "que traduz muito mais as atitudes e hbitos dos observadores acidentais face s sociedades primitivas que a realidade econmica sobre a qual repousam estas culturas" (idem, p. 13). Em ltima anlise, como mostra, este conceito assinala apenas que tais sociedades no produzem excedentes (o que falso) e que no tm mercado (o que, no sendo falso, tampouco nos proporciona um conhecimento verdadeiro)17. Ora, este o mesmo tipo de operao que se detecta na considerao do poltico:

    a saber, que o modelo ao qual referido e a unidade que o mede so constitudos de antemo pela idia do poder tal que a desenvolveu e formou a civilizao ocidental [...] toda forma, real ou possvel, de poder da em diante redutvel a esta relao privilegiada que exprime a priori sua essncia. Se a reduo no possvel, porque nos encontramos aqum do poltico. A falta de relao mando-obedincia implica ipso facto na falta de poder poltico (idem, p. 15).

    (17) No nos parece necess- rio, aqui, desenvolver os ter- mos dessa crtica. Lembramos apenas que sobre a questo da economia primitiva podem ser ainda procurados seu prefcio ao livro de M. Sahlins ("L'economie primitive", in Clastres, 1980, pp. 127-45), sua entrevista a L'Anti-Mythes, o ensaio "La socit contre l'etat", in Clastres, 1974, pp. 162-70, e ainda algumas passagens de seu ltimo texto (Clastres, 1980, pp. 164 e 165), "Les marxistes et leur anthropologie".

    Enfim, reencontramos a a mesma "concepo deficitria" das sociedades primitivas: falta, ausncia ou vazio das determinaes assinaladas pela "definio" enunciada no ponto de partida. E visto que estas determinaes sempre espelham os referentes mais imediatos ou "em todo caso, as mais familiares", diz ele (idem, p. 162) da nossa cultura (o Estado coercitivo, a lei escrita, o mercado como espao de realizao da explorao e o desenvolvimento da "Histria"), surgem, em contraponto, "sub species privationis", as notas do ponto de origem: sociedades arcaicas, privadas de Estado, de escrita, de mercado e de histria (cf. idem, p. 162) apolticas, a-histricas (porque estacionrias e porque, pela ausncia de escrita, subtradas aos mtodos de investigao histrica) e de economia de subsistncia.

    Pode-se pretender que esta "concepo deficitria" das sociedades primitivas se constitua como um "juzo de fato" sobre estas sociedades. Clastres, por seu lado, procurar evidenciar que este "fato" "dissimula, na verdade, uma opinio, um juzo de valor" (idem, p. l6l), e que, no registro do poltico (mas tambm, em seguida, no nvel de cada uma das demais determinaes atribudas a estas culturas), tal concepo "compromete a possibilidade de constituir uma antropologia poltica como cincia rigorosa" (idem, p. l6l). E no lhe ser difcil mostrar que essa assimilao do fato pela norma no configura apenas o etnocentrismo do procedi- mento, mas assinala tambm a origem do evolucionismo mitigado que continua a nnn

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    onerar a operao do conhecimento. De um lado, o juzo privativo, resvalando do plano factual e constatativo para o registro normativo, faz que a "falta", positivamen- te atestada, se veja de imediato interpretada como "carncia" (imperfeio e aspirao por, tendncia para); de outro lado, a afirmao da carncia permite forjar a fico de uma "necessidade" que vem mediar, de modo categrico, a distncia aberta entre o momento da falta e o fim, o momento da posse de seu fim ou de sua "completude". Desse modo, a sequncia falta-carncia-necessidade (privao, finalidade, determinismo), que faz da cultura da escrita, do mercado e do Estado o "Tlos" de toda sociedade (cf. Clastres, 1974, pp. 15, 16, 18 e 19), permite a Clastres compreender "o velho compadrio" (idem, p. 16) entre etnocentrismo e o evolucio- nismo18 que conformam a "atitude mental" presente na concepo do "arcasmo" da qual tributrio o procedimento postulado por Lapierre na construo de sua etnologia poltica.

    Devemos, no entanto, observar que, se a perspectiva do arcasmo retoma a trilha etnocntrica da escola evolucionista, e se, ao fim e ao cabo, partilha com ela a mesma velha convico ocidental de que "a histria tem um sentido nico" (Clastres, 1974, p. 17), o modo de operao, as exigncias e os resultados dos procedimentos num caso e noutro no so os mesmos, como vem atestar a prpria configurao do mtodo no trabalho de Lapierre. Seja na perspectiva do primitivis- mo, seja na do arcasmo, a operao classificatria supe, de um lado, a homogeneidade do domnio em que se dispem as classes e, de outro, uma complexificao progressiva destas classes o que lhe permite orden-las em sries (pelo menos virtualmente) contnuas. No entanto, o evolucionismo, supondo a universalidade de cada um dos gneros de instituio investigado pois responderiam a necessidades permanentes das culturas , pretende, na verdade, apenas mostrar ou clarificar a "razo" ou a legalidade da complexificao destas instituies, as leis de suas "transformaes", e no propriamente a sua origem. E, a rigor, o conhecimento destas leis pode advir da considerao de um corte qualquer da srie, o que o dispensa de operar efetivamente com uma classe zero e lhe permite ostentar um interesse bastante moderado em identificar as formas "mais simples" dos diversos gneros de instituio. E enfatizemos bem: isto no apenas porque o "simples" no pode ser explicado, mas sobretudo porque lhe interessam, precipuamente, as relaes entre os tipos (as variaes) que, elas, lhe permitem compor o quadro da sua "evoluo"19. J na perspectiva do arcasmo vamos encontrar uma pretenso mais ambiciosa: a de totalizar o campo oferecido s comparaes (contornando o inconveniente da sua flutao em direo a sempre menos e sempre mais, que se observa no evolucionismo), e de dar conta da origem das instituies. Deste modo a perspectiva do arcasmo passar da totalizao virtual do campo das variaes admitida por seus predecessores (totalizao garantida pela pressuposio da total homogeneidade das culturas e mesmo pela suposio como j vimos observar Merleau-Ponty de uma cincia total "j feita nas coisas") para a reivindicao de uma totalidade atual (consignada na pretenso de alcanar a classe zero). Ou seja: a totalidade no mais, agora, apenas pressuposta, mas supostamente operada pela cincia atravs do recurso do mtodo, j no seu ponto de partida, a uma definio universal, certa e segura, do domnio investigado20. Ora, esta ambio de totalizar devendo fazer jus questo da origem obrigar, como j vimos em Lapierre, operao com uma classe zero, operao que se revela, no entanto, inteiramente incompatvel com os requisitos de homogeneidade e continuidade exigidos para o exerccio do "mtodo comparativo". Clastres assinala esse impasse com extrema argcia no seu comen- nnn

    (18) O discurso contempor- neo do arcasmo reiteraria, as- sim, "a velha convico oci- dental, frequentemente parti- lhada de fato pela etnologia, ou ao menos por muitos de seus praticantes, de que a his- tria tem um sentido nico, de que as sociedades sem poder so a imagem do que no somos mais e de que nossa cultura para elas a imagem do que preciso ser. E no somente nosso sistema con- siderado o melhor como se chega mesmo a atribuir s so- ciedades arcaicas uma certeza anloga. Porque dizer que "ne- nhum povo niltico pde ele- var-se ao nvel da organizao poltica centralizada dos gran- des reinos bantus" ou que "a sociedade lobi no pde dar- se uma organizao poltica" , num certo sentido, afirmar a existncia de um esforo por parte destes povos para dar-se um verdadeiro poder poltico. Que sentido faria dizer que os ndios Sioux no tiveram xito em realizar o que os Astecas haviam atingido, ou que os Bororos foram incapazes de se elevar ao nvel dos Incas?" (Clastres, 1974, p. 17). (19) Confira-se, neste sentido, o belo ensaio de Hlne Clas- tres, "Primitivismo e cincia do homem no sculo XVIII" (Dis- curso n 13, pp. 187-208), em que a autora vai mostrar, justa- mente, as dificuldades enfren- tadas pelo comparatismo do sculo XVIII para compreen- der as sociedade selvagens (ti- das como simples). Este im- passe s ser vencido quando, com o surgimento do evoluci- onismo biolgico de Darwin e da nova cincia da "Pr-Hist- ria", estas sociedades "ganham a dimenso histrica que lhes faltava" (idem, p. 102), surgin- do, ento, tambm elas, como passveis de explicao. Isto que, segundo a autora, viria abrir as portas para o evoluci- onismo amplo praticado no final do sculo XIX pela antro- pologia "cientfica".

    (20) Observe-se que se pode- ria dizer que, na perspectiva de Boas, a totalizao no se- ria nem atual nem virtual, mas dados os limites que impe ao exerccio dos procedimen- tos comparativos apenas possvel (com o inconveniente, evidentemente, de no se po- der, nesse caso, conferir dis- ciplina a "segurana" e a abran- gncia que talvez se esperasse da cincia).

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    trio. A tentativa de manter o caminho evolucionista procurando, entretanto, como que forar a efetivao do que ele mantm na virtualidade (a totalizao de um determinado domnio do conhecimento) acaba por expor toda a fragilidade do procedimento; pois, como vimos, mostra-se incapaz de incluir verdadeiramente as sociedades "arcaicas" no campo definido para suas operaes. A ambiguidade do estatuto destas sociedades, mostra Clastres, se flagra, facilmente, j na incapacidade do etnlogo para design-las seno por indicaes metafricas:

    Por ter diz o comentador , na trilha de Lowie, abandonado como ingnuas as doutrinas de Morgan ou Engels, a antropologia no pode mais (pelo menos quanto questo do poltico) exprimir-se em termos sociolgi- cos. Mas como, de outro lado, muito forte a tentao de continuar a pensar segundo o mesmo esquema, recorre a metforas biolgicas. De onde o vocabulrio acima assinalado: embrionrio, nascente, pouco desenvolvido etc. (Clastres, 1974, p. 16).

    A imagem do "embrio" extremamente significativa, pois materializa com preciso os termos da dificuldade epistemolgica assinalada. Mostra que as sociedades "arcaicas" (originrias) no podem aparecer, exatamente, como ele- mentares, simples, pois, nesse caso, j se revelariam positivamente marcadas pelas determinaes do gnero que preside a distribuio das classes. Assim, acuadas entre zero e a primeira unidade buscam a soluo de compromisso; e surgem, ento para usar uma expresso de Clastres , como verdadeiros "fetos culturais" (idem, p. 17). Sociedades "fechadas", "estagnadas", "no-diferenciadas", "de econo- mia de subsistncia" e "tecnologia rudimentar": "as sociedades arcaicas seriam 'axolotls' sociolgicos comenta o ensaio incapazes de aceder, sem ajuda exterior, ao estado adulto, normal" (idem, p. 17; cf. ainda p. 169, Clastres, 1980, p. 107).

    O preo final a ser pago por este tipo de procedimento no plano da etnologia poltica, no difcil constatar, o de sua inviabilizao como disciplina especfica da antropologia. Pois, ao se mostrar incapaz de determinar o postulado "momento zero" de especializao da "funo poltica" aquele das sociedades arcaicas de que, justamente, se ocupa a etnologia terminar sempre, na verdade, por diluir o poltico no social (cf. idem, p. 18) e por atribuir a estas sociedades alguma forma de "controle social imediato" (cf. idem, p. 19). Assim, diz o ensaio, "no o descobrindo onde se esperava encontrar, acreditar-se- descobri-lo em todos os nveis das sociedades arcaicas. Tudo cai a partir de ento no campo do poltico, todos os subgrupos e unidades (grupos de parentesco, classes de idade, unidades de produo etc.) que constituem uma sociedade so investidos, a qualquer pretexto e sem qualquer propsito, de uma significao poltica, que acaba por recobrir todo o espao social e por perder, consequentemente, sua especificidade. Porque, se h poltico por toda parte, no h em parte alguma" (idem, p. 18). Pensar uma etnologia "poltica" torna-se, afinal, sem sentido (quando justamente se pretendia-se fund-la).

    "Pode-se questionar, seriamente, sobre o poder poltico?" perguntava-se Clastres na abertura do ensaio. Compreendemos agora que, algumas pginas adiante, repetindo a pergunta, ele possa dizer que, a considerar a literatura nnnnnnnnn

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    consagrada questo, poder-se-ia duvidar desta possibilidade (cf. idem, p. 17). Com efeito, o exame do travamento metodolgico erguido neste terreno para alicerar a construo da cincia parece indicar que resta quase tudo por fazer. Mas entenda-se bem: quase tudo, no tudo. Pois a empresa apreciativa e negativa deixa um saldo; projeta quase como um diapositivo fotogrfico um reverso afirmativo, positivo. Deste modo, a parte final do texto se dedica exatamente a recolher e processar este saldo, as indicaes deixadas pelo trabalho crtico para a construo da disciplina, para uma investigao finalmente "sria" sobre o poder poltico. A crtica converte-se, ento, em direo e programa para a construo da cincia.

    De cada um dos fios da trama desembaraada no movimento apreciativo do texto destaca-se algo como uma coordenada ou uma orientao que vem armar um conjunto de balizas orientadoras para a constituio da disciplina. A denncia da concepo naturalista que leva diluio do poder poltico das sociedades arcaicas no registro do social (e como se pode constatar ao esvaziamento da significao poltica central das chefias primitivas) faz emergir a postulao da universalidade do poder poltico como instituio mediadora da "ordem" social (ainda que como atestar a segunda indicao proveniente da crtica tanto esta "ordem" quanto a "funo" mediadora devam ser pensadas nas sociedades "arcaicas" em sentido completamente diverso do que tm nas no-arcaicas). Trata-se do item 1 do pequeno rol de concluses estabelecido por Clastres: "No se pode diz ele dividir as sociedades em dois grupos: sociedades de poder e sociedades sem poder. Acreditamos, ao contrrio (em total conformidade com os dados da etnografia), que o poder poltico universal, imanente ao social (seja o social determinado pelos "laos de sangue" ou pelas classes sociais)" (idem, p. 20). Esta afirmao comporta uma ilao (assinalada com o nmero 3 no texto): se o poder poltico universal, "mesmo nas sociedades em que o poder poltico est ausente (por exemplo onde no existem chefes), mesmo a conclui Clastres , o poltico est presente [...] Pode-se pensar o poltico sem a violncia, no se pode pensar o social sem o poltico. Em outros termos: no h sociedade sem poder" (idem, p. 22). Isto mostrar que nas sociedades arcaicas no a presena das chefias que epifenomenal e acidental (como pretendem Lapierre e, mais amplamente, todo alinhamento concepo do arcasmo) mas sua ausncia ("misteriosamente talvez diz o texto alguma coisa existe nesta ausncia" idem, p. 21). Em seguida, a crtica epistemolgica da afirmao da continuidade da classe zero em relao s demais variaes da srie classificatria impor a premissa da desconti- nuidade desta "classe", ou seja, a diferena ou a oposio da unidade que mede o conjunto (a relao mando-obedincia ou o poder poltico coercitivo) relativamen- te ao ponto de origem do campo por ela delimitado. Isto equivale a admitir que o poder poltico "se realiza de dois modos principais: poder coercitivo, poder no- coercitivo [e que] O poder poltico como coero (ou como relao mando- obedincia) no o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realizao concreta do poder poltico em certas culturas, tal como a ocidental" (idem, p. 20).

    Estas so as indicaes centrais contrastadas pela crtica como orientao para a tarefa de constituio da disciplina. Porm, junta-se a elas ainda uma terceira, suplementar, procedente da crtica da "inovao" como fundamento do poder poltico (a concluso de todo o trabalho etnolgico de Lapierre, e no mais imediatamente de suas asseres metodolgicas). Se a correlao estabelecida entre poder poltico e inovao social (cf. Lapierre, 1968, p. 529 e insistimos nnnn

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    em que a correlao, no obstante a convico de Lapierre, no causal) estiver correta (como parece a Clastres que est: "a demonstrao, apoiada em inmeros exemplos diz ele parece-nos rigorosa e convincente" idem, p. 21), ou ainda, se onde h inovao h poder poltico (coercitivo), ento conclui o crtico "ela nos traz [...] um ensinamento precioso, a saber, que o poder poltico como coero, ou como violncia, a marca das sociedades histricas, isto , das sociedades que trazem em si a causa da inovao, da mudana, da historicidade" (idem, p. 22).

    Estas trs asseres resultantes da empresa crtica a universalidade do poder, sua realizao em dois modos fundamentais, e a correlao de sua modalidade coercitiva com a inovao e a Histria articulam-se pois, de imediato, como um "esquema" de orientao para a construo da cincia. Oferecem-se como sugerimos anteriormente como um conjunto de projees que esboam e permitem a explorao do campo do poltico ou, mais precisamente ainda, articulam as questes fundamentais que definem os horizontes da investiga- o da cincia. Assim, dado que este "esquema diretor" tem como suas clusulas principais a indicao da universalidade do poder e a da sua realizao em duas modalidades essenciais (coercitivo e no-coercitivo), veremos que a pauta da construo da cincia estabelecer, de um lado, a exigncia de compreenso do domnio geral do poder e, de outro, a exigncia da investigao dos termos da oposio (ou da "passagem") de uma de suas modalidades outra, ou ainda, a investigao da "razo" de sua necessria diferena. E podemos verificar tambm que esta segunda questo, quando completada com a reivindicao da correlao entre poder coercitivo e Histria a terceira proposio resultante da crtica , desdobra-se naquela da "diferena" (ou especificidade) da Histria, e traduz-se na pergunta posta pelo texto: "o que a Histria?" (idem, p. 22). assim, pois, que Clastres apresenta a "tarefa" da disciplina como consignada em duas grandes interrogaes: (1) O que o poder poltico? Ou seja: o que a sociedade? (2) Como e por que se passa do poder poltico no-coercitivo ao poder poltico coercitivo? Ou seja: O que Histria?" (idem, p. 22).

    Devemos advertir que a compreenso desta segunda questo exige do leitor algum cuidado. Sua formulao pode lhe sugerir a concluso indevida da existncia de uma seriao temporal entre as duas modalidades de poder defini- das em oposio. No entanto, no lhe ser difcil perceber que tendo sido recusada sua disposio em uma srie contnua (justamente, este, o ponto de partida da crtica) ser indevido subsumi-las em qualquer ordem (necessria) de sucesso, seja cronolgica (destituda pela crtica do evolucionismo), seja lgica (destituda pela crtica do carter etnocntrico do procedimento). Assim, mesmo que uma tal relao entre elas possa posteriormente ser restabelecida (em funo evidentemente de razes diversas e em bases outras que a da tradio denunciada), aqui neste registro da crtica , ainda que provisoriamente, preciso admitir que os termos da formulao dizem respeito to-somente oposio de dois "tipos" que, ento, ao menos neste momento da investigao, devem ser entendidos como reversveis ("Como e por que se passa do poder poltico no-coercitivo ao coercitivo?" e vice-versa).

    Observe-se, no entanto, atentamente este empreendimento de balizamento do campo da disciplina e de estabelecimento de seus eixos centrais; pois exatamente ele, na obra de Clastres, o portador ou o piv da sua controversa "revoluo copernicana". Devemos, em primeiro lugar, destacar uma mudana fundamental no procedimento proposto: o que agora demarca o espao destinado nnn

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    s operaes da cincia no mais a empresa terica21 da definio do poltico (quer seja esta pensada como "descritiva", quer tenha um carter especulativo; quer seja atribuda aos poderes da imaginao ou s faculdades do entendimen- to), mas , na verdade, a prpria empresa crtica, cujo movimento negativo de destituio produz concomitantemente a sinalizao de novos contornos para a disciplina. Dito de outro modo: o campo recortado pela cincia no se define mais por um "conceito" (imagem-guia encarregada de medir os caminhos a serem percorridos pelo conhecimento; encarregada de identificar o que pode, ou no, ser por ele recolhido e que, assim, afasta para o domnio do impensvel ou do nada o que j no est l, de alguma forma, posto neste ponto de partida22), mas apenas se esboa, mediante uma malha de ndices sinais de direo tramada e fiada no avesso do movimento crtico. No h mais, deste modo, um verdadeiro poder poltico, apreendido e recortado numa definio como um sol que projetaria e iluminaria o campo de operao da cincia. E se observar que em nenhum momento a investigao de Clastres pretende ajustar ou readequar as definies propostas mudar de sol, poder-se-ia dizer (ou ainda repensar, como se diz, "o arsenal de conceitos e hipteses que guiam as investigaes", empreitada que o texto, como j vimos, poderia de incio sugerir ao leitor). Ele interroga apenas o prprio exerccio metodologicamente configurado da cincia, confrontando-o, criticamente, s ambies e exigncias desta mesma cincia, para pensar as condies de sua efetiva constituio. Assim, na verdade, o que sua crtica acusa fundamentalmente (aponta como o "obstculo epistemo- lgico que a politologia no soube at o momento superar" Clastres, 1974, p. 19 , obstculo responsvel por seu etnocentrismo e pela concepo das sociedades no-ocidentais como "exticas", ou simplesmente excentradas em relao ao "sol" erigido pela cincia) a obstinao da disciplina em refletir sobre o poder a partir da certeza sobre sua "forma verdadeira", sua persitncia em "fazer desta forma a medida de todas as outras e at mesmo o seu Tlos" (Clastres, 1974, p. 19). Enfim para expressarmo-nos em termos epistemolgicos , a crtica acusa a submisso do exerccio do conhecimento tutela de imagens e conceitos que lhe so oferecidos na etapa metdica da definio como "princpios". Seja no caso em que a disciplina se deixa guiar por uma suposta "natureza do poltico" pressuposta ou apresentada como uma "evidncia natural" seja naquele em que o pensamento, acreditando conquistar sua autonomia, trama especulativamente a definio do campo destinado a suas operaes, num caso e noutro esta cincia se revela incapaz de responder por seu "ponto de origem" e inviabiliza a compreenso das culturas "arcaicas" condenando-as ao exotismo. Enfim: seja pelo caminho da pressuposio da "universalidade" da funo poltica, como em Radcliffe-Brown, seja, como em Lapierre, por aquele da posio de um campo do poltico, chega-se sempre "concepo deficitria" destas sociedades e "se deixa [consequentemente] degradar a cincia em opinio" (Clastres, 1974, p. 19).

    (21) A expresso utilizada aqui no seu sentido mais usu- al, naquele em que compre- endida por oposio "expe- rincia", ou ainda naquele sen- tido que ela tem, por exemplo, na afirmao de Radcliffe-Bro- wn de que "em cincia a ob- servao e seleo do que se deve registrar exigem ser con- duzidas por teoria" (Radcliffe- Brown, 1981, p. 7). (22) Vale a pena lembrar mais uma vez o texto que assinala este tipo de operao como a raiz do etnocentrismo: "Toda forma, real ou possvel, de poder da em diante redut- vel a esta relao privilegiada que exprime a priori sua es- sncia. Se a reduo no possvel, porque nos encon- tramos aqum do poltico: a falta de relao mando-obedi- ncia significa ipso facto a falta de poder poltico" (Clastres, 1974, p. 15). (23) exemplar, nesse senti- do, o comentrio de Pierre Birnbaum em seu ensaio inti- tulado "Sur les origines de Ia domination politique: pro- pos d'Etienne de Ia Botie et de Pierre Clastres". Segundo Birnbaum, Clastres, abando- nando a questo da origem sociolgica do Estado (que La Botie proporia "mesmo se lhe era impossvel, enquanto fil- sofo, encontrar suas razes l- timas", diz Birnbaum, 1977, p. 11), "sublinha [...] o funciona- mento natural do corpo social que ele considera como um todo funcional sacralizado pe- los rituais e os costumes que se impem de maneira absoluta" (idem, p. 17). Assim "Clastres parece reencontrar os prprios fundamentos do pensamento conservador tradicional e se afasta da perspectiva crtica esboada por La Botie. Ele adota, com efeito, tanto a pro- blemtica organicista, cara aos tradicionalistas do sculo XIX, quanto sua recusa do raciona- lismo e do individualismo a partir dos quais foram elabora- dos os modelos clssicos da democracia liberal. Clastres jus- tifica, consequentemente, a nn

    de uma revoluo copernicana que se trata diz Clastres. No sentido em que continua at o presente, e sob certas relaes, a etnologia deixou as culturas primitivas girarem em torno da civilizao ocidental, e num movi- mento, centrpeto, poder-se-ia dizer. Que uma reviravolta completa de perspec- tivas seja necessria (desde que se queira realmente enunciar sobre as sociedades arcaicas um discurso adequado a seu ser e no ao ser da nossa) n

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    o que nos parece demonstrar fartamente a antropologia poltica (Clastres, 1974, p. 23).

    O trajeto percorrido nos adverte suficientemente contra as interpretaes mais ingnuas da "converso heliocntrica" (idem, p. 23) aqui proclamada. Ela tem sido, como sabemos, frequentemente entendida como a proposta de uma correo do centro que determina (ou do sol que ilumina) o raio de compreenso do campo do poltico, o qual se deslocaria, ento, das instituies polticas de Estado para aquelas das sociedades arcaicas. esta interpretao superficial e arbitrria da metfora mobilizada por Clastres a responsvel pelas acusaes mais, ou menos, explcitas, mais, ou menos, condescendentes segundo o caso de que esta "reviravolta completa de perspectivas" (idem, p. 23) marcaria a "volta do bom selvagem na ideologia ocidental depois de dois sculos de ausncia" (Lapierre, 1976, p. 1000; cf. tambm pp. 997 e 999; 1977, p. 370; Niola, 1978, p. 173, entre outros). Ela tenta rebater para o terreno de Clastres s cegas a pecha do naturalismo, sem qualquer ateno ao trabalho da crtica que, justamente, o denuncia como solidrio do travamento metodolgico da disciplina tal como, claro, estes mesmos intrpretes teimam em pratic-la23.

    Ora, evidentemente, aqui a imagem da "converso heliocntrica" no capitaliza o deslocamento dos antigos referenciais cosmolgicos por Coprnico mas a converso epistemolgica, a revoluo observada por Kant no mbito das cincias da natureza em vista da instruo do seu processo da metafsica. Seu mote a revoluo kantiana justamente porque " de uma revoluo copernicana que se trata" (Clastres, 1974, p. 23), como exclama o prprio autor no final de seu texto sem que esta analogia, afinal explicitada, surpreenda o leitor que desde a evocao contida no ttulo do ensaio pde, por todo o percurso, ir-lhe atestando o papel verdadeiramente estruturador do discurso. Porm, o importante quando nos vemos obrigados a relembrar tudo isso que, a esta altura, podemos perceber com toda clareza que, se a investigao kantiana sobre as condies de possibili- dade da cincia serve a Clastres de motivo, ela no lhe serve entretanto, certamente, de paradigma, de modelo. Pois, como se pode facilmente verificar, o caminho de orientao propriamente kantiana , na verdade, aquele dos projetos de constitui- o da disciplina visados (atravs da obra de Lapierre) por sua crtica. So eles que mais, ou menos, consequentemente, segundo o caso buscam o modelo das cincias experimentais (consideradas por Kant) para o estabelecimento do seu arsenal de definies e "hipteses tericas", posto como condio da apreenso e inteligibilidade dos fenmenos visados pela antropologia poltica. Clastres no nos prope sua "revoluo" como um simulacro daquelas pelas quais Tales, Galileu, Torriceli, Stahl ou o prprio Coprnico levaram suas investigaes "ao caminho seguro da cincia" ao compreenderem que "a razo s v o que produz ela mesma a partir de seus prprios planos, e que deve tomar a dianteira com os princpios que determinam seus juzos" (Kant, 1968, p. 19); pois, nos faz vislumbrar o final deste caminho no terreno da antropologia poltica: a reiterao do etnocentrismo24.

    E, no entanto, no preciso reconhecer que o projeto de Clastres guarda efetivamente a inspirao da revoluo copernicana? No se passaria com ele "precisamente como com a primeira idia de Coprnico, [que] vendo que no podia ter xito na explicao dos movimentos celestes admitindo que toda a multido das estrelas se movia em torno do espectador, tentou melhor sorte fazendo girar o nnnnnn

    proeminncia do pensamento mstico e religioso que simbo- liza a adorao do todo" (idem, p. 17). Ora, no deixa de ser curioso ver o mesmo Birnbaum vir juntar-se a Lapierre para afirmar a existncia, nas socie- dades primitivas, de um "po- der da opinio pblica unni- me" (cf. idem, p. 13)! (24) Nesse ponto e apenas nesse concordamos com o comentrio de Marc Richir (1987, pp. 68-70) sobre o sig- nificado desta "revoluo co- pernicana". Depois de arrolar uma srie de possibilidades de interpretao da "converso" proposta por Clastres, ele acrescenta: "No se cai menos no paradoxo se se interpreta a revoluo copernicana que aqui reivindicada como um eco da revoluo copernicana tra- zida cena por Kant. Pois, se retomarmos sem refletir o que dela se retm comumente, a saber, que no nosso conhe- cimento que deve se regular pelos objetos, mas que so os objetos que devem se regular pelo nosso conhecimento, o perigo grande, seno ime- diato, de reforar, tratando-se da etnologia, as iluses do et- nocentrismo" (Richir, 1987, p. 69). No mais, no entanto, Ri- chir vai construir ainda que sumria e apenas indicativa- mente uma teoria complexa sobre a questo. O problema desta interpretao, no entan- to, no s o de se afastar do texto que visa, para captar de fora seu sentido, mas , no nosso entender, sobretudo o de "esquecer" o carter origi- nalmente apenas balizador ou orientador das "concluses" ou "ilaes" advindas da crtica empreendida por Clastres, para transform-las, de imediato, em uma "teoria". Ora, se houver alguma "teoria" no pensamen- to clastriano se assim qui- sermos qualificar a articulao da sua etnologia , ela no ser a da "relatividade dos pon- tos de vista" sobre a instituio social (que se realizaria no re- gistro invariante da "fun- o poltica"), mas ser, como veremos adiante, a do sentido desta instituio ("O que o poder poltico?") e das formas fundamentais de sua realiza- o ("O que a Histria?"). (25) Parafraseamos aqui, como se v, o conhecido texto de Coprnico na carta-dedicat- ria de seu livro ao papa Paulo III: "[...] pensei, pois, que se me daria no menos facilmen- te [que a seus predecessores antigos] o direito de fazer uma tentativa; de tentar se, dando terra um certo movimento, no se poderia encontrar sobre as revolues dos orbes celestes demonstraes mais seguras que as de meus predecesso- res" (Coprnico, 1974, p. 9).

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  • SRGIO CARDOSO

    prprio espectador em volta dos astros imveis" (Kant, 1968, p. 19)? O processo movido "definio" como origem do procedimento etnocntrico que faz girar a multido de culturas em torno daquilo que, para o espectador, se constitui como a evidncia mesma sobre a natureza do poder poltico (ainda quando esta "evidncia" venha de um movimento especulativo de estabelecimento da sua definio), no lhe indica, justamente, a necessidade, semelhante do astrnomo, de tentar verificar se, dando a esta terra fixa "um certo movimento", no se poderia encontrar sobre as formas de constituio poltica destas culturas demonstraes mais firmes que as de seus predecessores25? O projeto de Clastres sua revoluo copernicana certamente, em primeiro lugar, o de devolver ao terreno do poltico, assim fixado, "um certo movimento", de restituir-lhe, como se poder ver, o movimento da interrogao. "O que o poder poltico?", "O que a Histria?" sero agora questes que se identificam com o prprio exerccio da cincia; so os termos mesmos de suas investigaes fundamentais e no mais questes prvias sua operao ou ao processamento propriamente cie