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Caricatura política: arte revolucionária? ALINE DELL’ORTO CARVALHO ROMON A caricatura do século XIX é muito frequentemente entendida como essencialmente contrária ao poder instituído, trabalhando pela contestação para a sua deposição. Quando é encontrada na sua forma social, diz-se quase sempre que ela é fruto da censura política ou da mediocridade e covardia do artista. Esse tipo de julgamento é tributário da tradição caricatural francesa, que encontra seu principal representante no republicano Honoré Daumier e que conheceu numerosos casos de processo e prisão. O contexto brasileiro aponta, no entanto, algumas especificidades que convém levar em conta no que se refere à relação entre caricatura e poder. É justamente por ser uma parte essencial da cultura política brasileira que o seu caráter essencialmente contestador pode ser questionado. Nós propomos um olhar sobre a caricatura como uma forma satírica ilustrada de saber, pois ela refletiu e levou à reflexão a respeito dos principais debates do século XIX e tanto envolveu quanto encantou nossos maiores intelectuais. Apesar da caricatura brasileira ser fruto da celebridade que conheceu a caricatura francesa no século XIX ocidental, há diferenças entre as duas que, para além das semelhanças de traço, de formato, e de algumas claras imitações, merecem ser sublinhadas. Os artistas da geração de Daumier são quase todos de origem social média ou baixa, raramente provenientes das elites e, o principal, assim permaneciam. A ascensão à esfera da grande arte mostrava-se difícil ou quase impossível para esses homens que, além de suas raízes pouco prestigiosas, não exerciam uma profissão valorizada. Litógrafos, caricaturistas e jornalistas, combinação desastrosa. O próprio Daumier só pôde ter seu talento reconhecido por seus contemporâneos quando resolveu, no fim da carreira, tornar-se pintor. Ele começou a desenhar num momento conturbado politicamente, quando a França se debatia entre legitimistas, liberais, republicanos e as paixões políticas favoreciam o florescimento de uma caricatura política engajada. Por conta disso, viu sua obra ser retomada e revalorizada pelo partido republicano na década de 80 com o intuito de fabricar um cânon próprio. (MELOT, 2008: 88) Esta intervenção é inserida no quadro da tese de doutorado em História Les réseaux de la caricature à Rio de Janeiro, 1844-1898, realizada em co-tutela entre a École des Hautes Études en Sciences Sociales e a PUC-Rio com financiamento do Pres héSam.

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Caricatura política: arte revolucionária?

ALINE DELL’ORTO CARVALHO ROMON

A caricatura do século XIX é muito frequentemente entendida como essencialmente

contrária ao poder instituído, trabalhando pela contestação para a sua deposição. Quando é

encontrada na sua forma social, diz-se quase sempre que ela é fruto da censura política ou da

mediocridade e covardia do artista. Esse tipo de julgamento é tributário da tradição caricatural

francesa, que encontra seu principal representante no republicano Honoré Daumier e que

conheceu numerosos casos de processo e prisão. O contexto brasileiro aponta, no entanto,

algumas especificidades que convém levar em conta no que se refere à relação entre

caricatura e poder. É justamente por ser uma parte essencial da cultura política brasileira que

o seu caráter essencialmente contestador pode ser questionado. Nós propomos um olhar sobre

a caricatura como uma forma satírica ilustrada de saber, pois ela refletiu e levou à reflexão a

respeito dos principais debates do século XIX e tanto envolveu quanto encantou nossos

maiores intelectuais.

Apesar da caricatura brasileira ser fruto da celebridade que conheceu a caricatura

francesa no século XIX ocidental, há diferenças entre as duas que, para além das semelhanças

de traço, de formato, e de algumas claras imitações, merecem ser sublinhadas. Os artistas da

geração de Daumier são quase todos de origem social média ou baixa, raramente provenientes

das elites e, o principal, assim permaneciam. A ascensão à esfera da grande arte mostrava-se

difícil ou quase impossível para esses homens que, além de suas raízes pouco prestigiosas,

não exerciam uma profissão valorizada. Litógrafos, caricaturistas e jornalistas, combinação

desastrosa. O próprio Daumier só pôde ter seu talento reconhecido por seus contemporâneos

quando resolveu, no fim da carreira, tornar-se pintor. Ele começou a desenhar num momento

conturbado politicamente, quando a França se debatia entre legitimistas, liberais, republicanos

e as paixões políticas favoreciam o florescimento de uma caricatura política engajada. Por

conta disso, viu sua obra ser retomada e revalorizada pelo partido republicano na década de

80 com o intuito de fabricar um cânon próprio. (MELOT, 2008: 88)

Esta intervenção é inserida no quadro da tese de doutorado em História Les réseaux de la caricature à Rio de

Janeiro, 1844-1898, realizada em co-tutela entre a École des Hautes Études en Sciences Sociales e a PUC-Rio

com financiamento do Pres héSam.

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No Brasil, a situação foi outra, pois a experiência vivida por nossos caricaturistas levou

a caminhos diferentes. Manoel de Araújo Porto-Alegre, fundador da primeira publicação

satírica periódica do país, ganhou Paris em 1831, onde permaneceu até 1837. Aí foi

testemunha da agitação dos primeiros anos da Caricature e do Charivari, ambas publicações

de grande sucesso e muito perseguidas, e assistiu à instauração da censura prévia em 1835.

Sua viagem só foi possível no quadro de uma prática de financiamento de estudos no exterior

para os melhores alunos da Academia Imperial de Belas Artes. É interessante pensar que,

enviado à Europa para estudar as tendências artísticas, Porto-Alegre tenha portado sua

atenção à caricatura, que no Velho Mundo não possuía grande prestígio junto às instituições

oficiais, a imprensa sendo o depósito de talentos excedentes do mundo da arte.

A viagem à Europa era imprescindível à familiarização com a imagem satírica de

imprensa, que compreendia ainda as técnicas de impressão litográfica e xilográfica, já que seu

caráter de verdadeira experiência urbana era intransmissível. Flanar pelas ruas de Paris ou

Londres e tomar conhecimento das vitrines repletas de imagens, ouvir os comentários dos

passantes, ver a euforia causada pelos processos que sofriam os caricaturistas, eram

experiências que se precisava VIVER. Esse tipo de viagem não era no entanto dado a todos;

Araújo Porto-Alegre foi financiado pelo governo imperial como bolsa de excelência,

marcando de certa forma seu ingresso na “Boa Sociedade” através da sua arte. (MATTOS,

2004: 150) Portanto, é a sua posição de destaque na elite imperial brasileira que lhe permite

ter acesso a essa experiência moderna e se apropriar dela.

Porto-Alegre, de retorno ao Brasil, não tardou a publicar seus primeiros desenhos

satíricos avulsos, como A Campainha e o cujo, do mesmo ano de seu retorno. No entanto, é

apenas em 1844 que ele engendra a sua Lanterna Mágica, apropriando-se dos Cent et un

Robert Macaire, de Honoré Daumier e Charles Philippon. Ela foi uma publicação de 23

números onde o objetivo comercial foi desprezado pelo autor, excluído dos objetivos desta

nobre cruzada apresentada como uma obra clássica que tem por única motivação um

patriotismo GIGANTESCO. Tal recusa é um dos traços característicos do movimento

romântico: ao mesmo tempo em que se viram confrontados à necessidade de integrar-se ao

tão desprezado mercado em consequência do excedente de artistas produzidos por essa

geração, eles aderiram à visão de mundo romântica tão enraizada na época e que no Brasil,

estimulada pelo governo imperial, expressou-se muito fortemente pelo patriotismo nacional.

Araújo Porto-Alegre inaugura aquilo que nós gostaríamos de chamar de primeira onda

da caricatura brasileira, momento em que ela é uma das formas de expressão daqueles que são

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socialmente reconhecidos como artistas e se desenvolve sob a tutela do Estado Imperial,

servindo à sua ideologia nacional. O nacionalismo, para se consolidar, depende da aderência

dos sujeitos nacionais (THIESSE, 1999: ) e a caricatura tanto aderiu quanto contribuiu para a

aderência dos demais participantes da cultura política brasileira.

Port-Alegre contribuiu ainda de forma indireta ao fortalecimento dos laços entre

caricatura e poder. Os artistas que se dedicaram em algum momento a esse ramo das artes

mostram-se particularmente sensíveis à convivência entre ideal nacional e dependência do

mercado. Porto-Alegre tendo evoluído profissionalmente dentro do aparelho imperial e

chegado à direção da Academia de Belas Artes, propôs uma reforma do ensino com o

argumento de que a indústria brasileira sofreu com a exclusão dos artífices e artesãos do

mundo da arte, fazendo com que aos nossos produtos faltasse estilo, estética e gosto.

(FERRARI, 2008: s.p.) O seu objetivo é fornecer conhecimentos artísticos aos artesãos

permitindo a valorização de ambas junto à sociedade pondo em evidência sua importância

patriótica. Além de defender a utilidade dos artistas, ele aproxima sua atividade daquela dos

artesãos, visão pouco difundida entre os Românticos. Tal reforma responde às necessidades

do Império de aprimorar tanto a sua rede de ensino em geral quanto a qualidade de seus

artesãos (SQUEFF, 2000: 104) e de escoar o excedente de artistas formados pela AIBA.

O revés da realidade francesa se produz no Brasil: ao invés de esforçar-se para entrar no

mundo da arte, a caricatura brasileira emana dele, sendo grandes pintores que empunham o

lápis litográfico e que desejam fazer transbordar o seu senso de estética e o seu engajamento

nacionalista para o mundo da técnica e da indústria, ao qual pertence parcialmente a produção

satírica periódica. A imprensa é confundida com os produtos brasileiros expostos nas

Exposições Universais de 1873 (O IMPÉRIO DO BRASIL..., 1873: 323) e de 1876 (O

IMPÉRIO DO BRASIL..., 1876: 233), o que demonstra o quanto a imprensa e o seu humor

gráfico eram meios de comunicação característicos da modernidade e indispensáveis a um

país que almejava entrar no hall das nações civilizadas. Aqui, caricatura e poder tecem uma

relação ambígua e traçam caminhos que se aproximam ou se afastam.

Araújo Porto-Alegre perderia quinze anos depois o posto de mais brilhante caricaturista

com o desembarque em terras brasileiras do alemão Henrique Fleiuss, portanto saído de um

país em processo de unificação. Em companhia do seu irmão Carlos Fleiuss e do seu

companheiro de viagem Carlos Linde, ele funda o Instituto Artístico, responsável pela

publicação de litografias, xilografias, aquarelas, pinturas e fotografias. Os três artistas-

empresários entraram rapidamente na lógica de cooptação que regia então o mundo cultural

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brasileiro. (NOGUEIRA, 1984: 56-57) Tendo chegado ao país em 1858 com uma carta de

recomendação da parte de Karl von Martius endereçada diretamente ao Imperador, eles fazem

uma demanda, quatro anos depois, do título de imperial para o seu Instituto Artístico. O

requerimento foi feito dois meses após a fundação de uma escola de xilografia no seio dessa

casa, onde jovens seriam formados na arte de gravar em madeira, muito pouco difundida entre

os brasileiros. Ela certamente contribuiu para a resposta positiva que eles obtiveram em

outubro daquele mesmo ano.

Como não pertenciam à Academia de Belas Artes, não tinham título de nobreza ou

família tradicional, Fleiuss e seus sócios investiram-se muito para alcançar um lugar nas

periferias do poder, adquirir algum prestígio para si e, consequentemente, para os seus

negócios. O título de Imperial foi certamente um passo importante, assim como a publicação

de numerosos trabalhos supostamente movidos pelo amor de uma nação que não era a sua.

Produziram, além disso, retratos para presentear personagens importantes da vida da Corte,

como Gonçalves Dias e a própria família real. Os seus esforços frutificaram: como

recompensa pela sua “gentileza” Gonçalves Dias viu-se obrigado a colaborar com a Semana,

os membros da comissão da Exposição Nacional apoiaram junto ao Imperador a iniciativa de

Fleiuss de produzir um álbum comemorativo, ele casa-se em 1867 com a filha de um

conhecido médico e comendador e tem como testemunhas das bodas os políticos de primeira

grandeza Affonso Celso, Manuel Dantas, o Marquês de Paranaguá e Sá e Albuquerque.

(FLEIUSS, 1941: ?)

Não apenas nos aspectos sociais esses personagens estavam imersos na lógica imperial,

mas também de um ponto de vista ideológico, adotando o Romantismo como visão de mundo.

Num primeiro momento, o patriotismo prevalece e se mostra como a justificativa perfeita para

a produção de tais imagens, sejam elas de conteúdo político ou moral, como eu havia

apontado para o caso da Lanterna Mágica. Em meio a tantos serviços que o Instituto Artístico

reivindica ter prestado à pátria, encontra-se a Semana Illustrada, jornal satírico ilustrado

lançado em 1860 e o primeiro a ter uma vida perene e uma difusão relativamente ampla. A

publicação apareceu até 1876 em formato in-quarto e chegou, segundo fontes parcialmente

seguras, à tiragem de 5.000 exemplares, número bastante elevado para uma folha cujo público

era restrito principalmente em função do seu custo e levando-se em conta que a compreensão

desse tipo de humor dependia do conhecimento prévio da atualidade, logo da leitura de folhas

cotidianas ditas “sérias”.

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Eu pretendo evitar a análise anacrônica que põe em cheque a qualidade da revista em

função da ausência de engajamento com as causas que ocupariam a cena política a partir dos

anos 1860; e pretendo também evitar cair no seu oposto, qual seja, reconhecer a sua

importância exclusivamente no que diz respeito à “sátira geral dos cidadãos”. Eu gostaria de

argumentar, pelo contrário, que nesse primeiro momento de seu desenvolvimento na imprensa

brasileira, a caricatura inseriu-se no espaço de experiências e compartilhou a cultura política

dos seus contemporâneos, à maneira do seu tempo. Olhemos para a primeira imagem

publicada pela Semana Illustrada. [Imagem 1]

De maneira geral, o primeiro número apresenta ao público a revista e suas intenções,

suas filiações, seus engajamentos, visando a atrair um público leitor e, sobretudo, assinante. A

Semana Illustrada apresenta na sua edição inaugural o seu personagem-tipo, o Dr. Semana,

que está “começando a sua viagem pela América meridional”. Situado por Laura Nery na

linhagem dos gobbi do francês Jacques Callot, esse personagem é, como seu inventor,

estrangeiro a essa América que ele pretende observar satiricamente, o que fornece

legitimidade às suas críticas.

Ele se desloca com um carro puxado por seres mágicos e atrás dele uma fada carrega

um estandarte onde se lê a inscrição latina sol lucet omnibus cuja tradução poderia ser “o sol

brilha para todos”. O alto da imagem ilustra uma parte das tradições às quais Fleiuss se

remete: classicismo, cultura popular germânica e Iluminismo. É também através da metáfora

da luz que o programa da revista anuncia as suas intenções: “[...] usaremos por lanterna de

nossa boa vontade, procuraremos o homem fraco, caprichoso, reacionário, seu esconderijo

mais fundo, por entre o ouropel de suas grandezas”. O riso é uma linguagem que contém a

universalidade e a inteligência: “Faz como Martial: ri porque sabe, porque conhece nossos

senões”. Ele é uma consequência honrosa do conhecimento e conota ilustração.

Mas o mundo que o Dr. Semana observa não é mais aquele da Europa clássica ou do

Renascimento, nem sequer do Iluminismo, mas da moderna América do Sul. Com os

instrumentos de ótica forjados pela cultura europeia (a lanterna mágica, o binóculo, a

lanterna), o Dr. Semana deseja vigiar e punir essa população americana, assim como Fleiuss

fará com um outro instrumento europeu: a caricatura. Para entender melhor, mergulhemos

nesse mapa que ele como que sobrevoa.

Duas realidades opostas se completam: as cidades da costa, vistas como mais

desenvolvidas econômica e culturalmente, as vitrines do Império, são nomeadas e interligadas

por esse símbolo de progresso que é o trilho do trem; o interior, em oposição, é dominado por

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uma floresta virgem povoada por índios, um espaço onde a identidade americana sobrepõe-se

à brasileira pelo apagamento das fronteiras. O desenvolvimento do país, a redução das

distâncias que Porto-Alegre já em 1854 atribuía ao vapor são representados também pela

chegada de um paquete da Europa em direção ao porto do Rio de Janeiro. Esses paquetes

traziam mercadorias de qualidade, pessoas qualificadas, correspondências com novidades

vindas de fora, a imprensa recheada de modernidades, modelos a se seguir. Paralelamente, o

interior do país foi um elemento central da construção do Brasil. A filosofia imperial

assentou-se sobre uma expansão para dentro que permitia o aumento do número de súditos

brasileiros e a definição das fronteiras nacionais. A direção do carro de Fleiuss e do carro do

Brasil, metáfora corrente ao longo do século, é da costa para o interior.

A ausência de fronteiras internas aponta ainda para um outro elemento importante da

construção da nação brasileira: a centralização do poder na cidade do Rio de Janeiro,

“cabeça” do Brasil desde a chegada da família real em 1808. Ela era não apenas a residência

do Imperador, mas o local de onde irradiava todo o seu poder e toda a distribuição de favores

e privilégios de que mais tarde o próprio Instituto Artístico beneficiaria. (MATTOS, 2010)

Ainda que o pano de fundo dessa história seja natural, “selvagem”, o Rio de Janeiro, a capital,

deveria apresentar aspectos tanto clássicos, como as Belas Artes, a religião, quanto modernos,

como os valores europeus da civilização e do progresso e as novas tecnologias. Henrique

Fleiuss reforça sua adesão a essa cultura romântica, compartilhada especialmente pela

literatura, quando elege o indígena para representar o Brasil nos seus desenhos. E não é

qualquer índio: ele é civilizado, como os nas suas representações romanceadas. Esse caráter

heroico do índio a que os brasileiros já estavam tão afeitos é transposto do personagem para a

nação brasileira, apesar de variarem os “brasileiros” que estão incluídos nessa personificação

de acordo com o tom do desenho.

Ceder à cooptação não significa necessariamente conformar-se com tudo e o princípio

de uma publicação satírica é justamente a sátira, a crítica, ainda que não seja revolucionária.

Ao longo dos anos, Fleiuss observou o Rio de Janeiro sob seus aspectos políticos, sociais,

morais, sublinhando os seus defeitos, seus problemas, seus desvios. No número 10 do ano de

1860, um texto da série “Excursão” reproduz um diálogo fictício: “- E além aquele que ri tão

sardonicamente, quem é? – Não é ninguém: é a Semana Illustrada, homem incrédulo, que nos

averba de imprevidentes. Ele não crê em tantas dedicações desinteressadas pelo bem público.

Estudou os homens; pesou na balança social suas ambições e obrigações... por isso: descrê e

ri. Ri do candidato à municipalidade, que tem a mira na política. Ri do Vereador que não cura

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dos interesses de seus munícipes. Ri dos fiscais. Ri de muitos sistemas de obras; ri da falta de

cuidado em sua conservação. Ri de tanta coisa! E nós todos rimos com ele.” Como indica o

diálogo, os assuntos políticos, as eleições, o descaso dos representantes da nação, as disputas

partidárias não ficam de fora das temáticas tratadas pela revista. A posição manifestamente

neutra que reivindicam os colaboradores da revista faz todo sentido se pensarmos que a

posição do próprio governo era neutra: a nomeação de ministros pelo imperador prosseguia

oficiosamente a lógica da Conciliação, onde liberais e conservadores se revezavam no poder.

O Dr. Semana se atribui o papel de mediador nas disputas partidárias, sendo amigo de todos,

contanto que tenham assinatura da revista. No entanto, há uma característica importante a ser

notada: ele se permite desenhar apenas aqueles que, eleitos pelo povo, não foram diretamente

escolhidos pelo Imperador. Os ministros, que ocupam cargos por nomeação, são como que

intocáveis, suas ações representam sempre a última esperança do povo, nunca a

irresponsabilidade da categoria política.

Os desenhistas dessa primeira onda estiveram portanto envolvidos numa lógica de

cooptação e acreditavam numa visão de mundo romântica, apesar de não deixarem tanto de

compartilhar a cultura política do país quanto de trabalharem para o desenvolvimento da

modernidade brasileira que se instala.

No entanto, essa visão de um poder favorável ao desenvolvimento do país não tardaria a

sofrer uma radical mudança. Nesse processo relativamente longo de transformação, iniciado

nos anos 1860 e culminante nos anos 1870, duas visões de mundo coabitaram. É sabido que o

Império brasileiro, tendo-se engajado na maior guerra que o país já conheceu, favoreceu tanto

o nacionalismo efervescente quanto os questionamentos inconformados. O primeiro

caricaturista a ousar dirigir críticas ao Império foi Joseph Mill no seu Bazar Volante, fundado

em 1863 e impondo uma mudança que disse respeito não apenas às ideias difundidas pela

revista, mas também à sociabilidade dos caricaturistas e que ecoaria durante anos. Joseph Mill

também é originário do meio artístico cooptado pelo poder imperial. Participava das

Exposições Nacionais, tendo recebido, em 1866, menção honrosa nessa manifestação cultural.

Ele contrata um antigo desenhista da Semana Illustrada, Flumen Junius. Juntos, eles passaram

aos poucos a buscar não apenas a velha emancipação política da independência, mas a

emancipação civil da abolição, da laicização e da república. Ao mesmo tempo, eles

emanciparam a caricatura das redes imperiais, manifestando-se independentes e construindo

um grupo de desenhistas cuja sociabilidade residia no interior do meio jornalístico.

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Quatro revistas sucederam o Bazar Volante proclamando-se herdeiras umas das outras:

Arlequim, Vida Fluminense, Fígaro e A Lanterna. Nasce aqui um grupo de caricaturistas que

fará proliferar outras publicações, se identificarão com as suas próprias marcas e não aquelas

de uma outra arte, institucionalizada, vista como subserviente. Joseph Mill vai criar uma nova

origem para a caricatura: em texto de 1876, ele considera que a caricatura antes de Angelo

Agostini e João Pinheiro Guimarães havia sido embrionária, plagiária, com ideias mal

concebidas. Assim, ele elimina tudo o que foi anterior a essa nova geração de caricaturistas.

Ainda que Pinheiro Guimarães tenha desenhado para a Semana Illustrada, ele posteriormente

fez carreira nesses numerosos jornais caricatos de oposição.

Esses artistas se autoproclamam independentes e se afastam progressivamente da lógica

das medalhas e dos títulos. Como eu havia dito no início, a caricatura não conquista espaço no

mundo da arte, ela se expande para fora das suas fronteiras. Angelo Agostini e sua Revista

Illustrada fazem parte desse grupo e por isso propomos uma leitura da sua primeira capa.

[Imagem 2] A Revista Illustrada já nasce célebre por estar ligada ao nome de Angelo

Agostini, já considerado como grande desenhista da época. Mas é nessa publicação que ele

adquire toda a sua liberdade, pois, associado a um litógrafo, ele é plenamente responsável

pelo conteúdo gráfico e literário da revista. Ela era publicada em formato in-quarto, conta

com oito páginas, das quais quatro são ilustradas, e as estimativas de tiragem da Revista

oscilam entre 1.000 e 6.000 exemplares, não muito mais elevadas do que aquelas da Semana.

No centro da imagem nós podemos reparar na retomada do simbolismo da luz

materializado na vela, como referência ao saber, ao conhecimento que ela traz no seu

conteúdo, propondo um duplo sentido à palavra “ilustrada” do título. A luz funciona ainda

como ponte entre o presente e o passado, onde residem a Semana Illustrada e a Lanterna

Mágica e o ridendo castigat mores de Fleiuss é resignificado e adquire uma conotação mais

violenta, mais contestatória, ainda que não revolucionária.

Há, entre os dois desenhos que analisamos hoje, uma importante distinção de escala:

enquanto o Dr. Semana manipulava binóculos e uma lanterna mágica ilustrava o cabeçalho da

Semana, dois instrumentos que evocam a observação, os personagens da Revista Illustrada

empunham lápis e plumas como armas, intervindo diretamente na cena. A ação adquire

importância com relação à observação. O tempo é consequentemente outro: enquanto no

mapa de Fleiuss ele parece lento, quase imóvel, misturado a essa natureza atemporal,

quebrado por alguns vapores de trem e navio, em Agostini, ele é o tempo da cidade, móvel,

moderno, agitado. A moral cristã que Fleiuss tentava manter com seu ridendo castigat mores

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desaparece e cede lugar à constante mutação trazida pela modernidade e às novas

proposições. O passado fica no passado: “Juro por esta luz, que me está iluminando, que voto

ao mais completo esquecimento tudo quando deu-se até ontem à meia noite. Tudo! O passado

passou. » (REVISTA ILLUSTRADA, 1876: 2)

Enquanto o Dr. Semana está sozinho num espaço ideal, distante da realidade, enquanto

o seu mapa é visto de longe; a página da Revista está abarrotada de uma multidão anônima,

composta por uma maioria de homens brancos, mas que também comporta alguns poucos

negros e pobres. Essa multidão preenche a página até quase transbordar e a cidade deixa de

ser um canto no mapa para tornar-se a estrela. Representantes do poder militar, religioso e

político são apresentados ao pé da composição, acuados, ou no alto dos sobrados, atacados,

mas sempre encurralados. O antigo público de deputados que liam a Semana para rir-se dos

costumes da sociedade brasileira são agora satirizados para provocar o riso de um público

muito mais amplo.

O sentimento nacional não desaparece de cena nesse segundo momento da caricatura,

ele se torna espontâneo e se desliga do seu criador, no caso, o Imperador. Assim, pode-se

continuar sendo nacionalista sem necessariamente aderir ao império. Foi o que fez boa parte

da intelectualidade brasileira, que formava provavelmente grande parte do público dessas

publicações: aderiu às causas republicana, abolicionista, laica, carregando consigo os

caricaturistas. Ela colabora assim à ascensão de um novo tipo de poder, modernizante.

Assim, vimos que a caricatura brasileira nunca esteve alheia à cultura política, mas, ao

contrário, por estar completamente imersa nela e por ter sua origem no seio das elites

culturais, engaja-se com a mesma ideologia promovida pelo Estado e evita opor-se a ele. Se

ela ganha progressivamente em autonomia com relação a ele é mais uma vez por estar imersa

na cultura política que se transforma ao longo dos anos 1860 e por acompanhar o foco do

poder que se desloca. Assim, apesar de ser sempre considerada como antagônica ao poder

instituído, eu penso que ela está permanentemente em estrita relação com ele.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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das Belas Artes em 1855, por ocasião do estabelecimento das aulas de matemáticas,

estéticas, etc… 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 4, out. 2008. [Disponível em:

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MELOT, Michel. Daumier. L’art et la République. Paris: Les Belles Lettres / Archimbaud,

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THIESSE, Anne-Marie. La Création des identités nationales. Paris: Éditions du Seuil, 1999.

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[Imagem 1]: Henrique FLEIUSS, Semana Illustrada, n.1, 1861.

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[Imagem 2]: Angelo AGOSTINI, Revista Illustrada, n. 1, 1 de janeiro de 1876.