Carlos Alexandre Barros Trubiliano - A Mulher No Sertao

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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 Noticias do Sertão: A vigilância e representações femininas no Jornal A Cruz durante a Marcha para Oeste (1937-1945) Carlos Alexandre Barros Trubiliano O período republicano da história do Brasil conhecido por Estado Novo (1937-1945), foi marcado por significativas mudanças para o Mato Grosso. O programa de colonização Marcha para o Oeste, anunciado pelo Presidente Vargas em 1937, renovou não só as expectativas de desenvolvimento para o Estado, mas, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade da chegada de novos agentes sociais, representados, de um lado, por empreendedores/investidores e, de outro, por novos personagens urbanos, a exemplo de trabalhadores, jogadores, prostitutas, etc., que desde o final do século XIX compunham o universo de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Em linhas gerais, ambos poderiam significar uma ameaça às elites dominantes locais. Os primeiros, em razão da possibilidade de disputarem cargos políticos tradicionalmente controlados por elas; os segundos por se constituírem em membros das chamadas "classes perigosas", os quais caberia às elites disciplinar e de quem estas deveriam se diferenciar. Em decorrência disso o período foi, ao que tudo indica, marcado por reordenamentos no interior das elites locais, que se empenhavam na construção de imagens positivas de Mato Grosso. Em detrimento do “estigma da barbárie”, com o qual este era tradicionalmente representado, as imagens produzidas sobre Mato Grosso procuravam caracterizá-lo como terra das oportunidades, o que fica exemplificado no termo a “Canaã do Oeste”, por meio do qual Mello e Silva referiu especificamente a porção Sul do antigo Estado, emoldurada pelas garantias da ordem e da lei, ou seja, da “civilização” i . Frente a esse quadro e partindo-se da premissa de que o Estado Novo foi responsável pelo desencadeamento de uma política familista, no interior da qual à mulher brasileira foi reservada a função estratégica de se transformar em auxiliar do Estado no processo de disciplinarização dos indivíduos pertencentes às camadas subalternas da sociedade, visando construir o trabalhador produtivo e melhorar a própria qualidade da raça, a proposta deste artigo é apontar de que maneira a mulher mato-grossense se enquadrou no referido processo de mudança da imagem de Mato Grosso e de suas elites, utilizando como fonte de estudo as imagens que sobre ela foram emitidas pelos jornais que circulavam na época, em especial o jornal Católico A Cruz.

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A mulher no sertão

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  • Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro APERJ

    Praia de Botafogo, 480 2 andar - Rio de Janeiro RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

    Noticias do Serto: A vigilncia e representaes femininas no Jornal A Cruz durante a Marcha para Oeste (1937-1945)

    Carlos Alexandre Barros Trubiliano

    O perodo republicano da histria do Brasil conhecido por Estado Novo (1937-1945), foi marcado por significativas mudanas para o Mato Grosso. O programa de colonizao Marcha para o Oeste, anunciado pelo Presidente Vargas em 1937, renovou no s as expectativas de desenvolvimento para o Estado, mas, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade da chegada de novos agentes sociais, representados, de um lado, por empreendedores/investidores e, de outro, por novos personagens

    urbanos, a exemplo de trabalhadores, jogadores, prostitutas, etc., que desde o final do sculo XIX compunham o universo de cidades como Rio de Janeiro e So Paulo. Em linhas gerais, ambos poderiam significar uma ameaa s elites dominantes locais. Os primeiros, em razo da possibilidade de disputarem cargos polticos tradicionalmente controlados por elas; os segundos por se constiturem em membros das chamadas "classes perigosas", os quais caberia s elites disciplinar e de quem estas deveriam se diferenciar.

    Em decorrncia disso o perodo foi, ao que tudo indica, marcado por reordenamentos no interior das elites locais, que se empenhavam na construo de imagens positivas de Mato Grosso. Em

    detrimento do estigma da barbrie, com o qual este era tradicionalmente representado, as imagens produzidas sobre Mato Grosso procuravam caracteriz-lo como terra das oportunidades, o que fica

    exemplificado no termo a Cana do Oeste, por meio do qual Mello e Silva referiu especificamente a poro Sul do antigo Estado, emoldurada pelas garantias da ordem e da lei, ou seja, da civilizaoi.

    Frente a esse quadro e partindo-se da premissa de que o Estado Novo foi responsvel pelo desencadeamento de uma poltica familista, no interior da qual mulher brasileira foi reservada a funo estratgica de se transformar em auxiliar do Estado no processo de disciplinarizao dos indivduos pertencentes s camadas subalternas da sociedade, visando construir o trabalhador produtivo e melhorar a prpria qualidade da raa, a proposta deste artigo apontar de que maneira a mulher mato-grossense se enquadrou no referido processo de mudana da imagem de Mato Grosso e de suas elites, utilizando como fonte de estudo as imagens que sobre ela foram emitidas pelos jornais que circulavam na poca, em especial o jornal Catlico A Cruz.

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    sabido que, com a expanso e o aprimoramento das tcnicas de informao, tornou-se possvel a aplicao dos meios de controle de massa. Os jornais so um exemplo desses meios, influenciando os costumes, as tradies, o comportamento e as opinies, tendo interferncia nos

    campos poltico, social, econmico, artstico e literrio, entre outros, alterando conceitos, modificando hbitos e provocando transformaes imediatas na sociedade sem, contudo, modific-la.

    Frente ao extraordinrio desenvolvimento da capacidade de reproduo das informaes e sua fora de persuaso sobre as pessoas, o uso adequado dos meios de comunicao de massa passou a ser encarado como um forte instrumento polticoii. Nessa perspectiva a imprensa transformou-se em uma instituio de natureza privada, porm com dimenses pblicas. Assim que, para Getlio Vargas, para quem o primeiro dever do Estado era o de polir a inteligncia e temperar o carter do cidado, a imprensa constitua-se no maior elemento para um bom governo iii.

    Com base nisso, no Estado Novo foram criados, com o Decreto n. 1.915, de 27 de dezembro de 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e em seguida, em 1940, os Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIP), com a funo de realizar servios de propaganda e publicidade dos ministrios, departamentos e estabelecimentos da administrao pblica federal, bem como organizar e dirigir as homenagens a Vargas. Em suma O DIP tornou - se o rgo coercitivo mximo da liberdade de pensamento e expresso durante o Estado Novo e o porta-voz autorizado do regimeiv.

    Conscientes da fora representada pela imprensa, as elites mato-grossenses lanaram mo dos jornais como veculos para a divulgao de modelos comportamentais, especialmente para as mulheres que, durante o Estado Novo, eram vistas como elementos essenciais do projeto estatal de civilizao da sociedade, fossem as chamadas classes perigosas dos grandes centros urbanos, ou as populaes que habitavam as reas ainda identificadas como serto, supostamente destitudas dos padres ideais

    de civilizao. Nesse contexto, a imprensa constituiu-se em importante instrumento para a formulao,

    divulgao e reforo de padres de comportamentos sociais, no interior dos quais as mulheres foram caracterizadas como biolgica e psicologicamente frgeis em relao ao homem, devendo, portanto, estarem submetidas a eles. Representadas como portadoras de certas qualidades inerentes ao sexo feminino, entre elas a ternura, a delicadeza e a intuio, seu lugar por excelncia deveria ser o lar e suas tarefas deveriam estar restritas aos cuidados com os maridos e filhosv.

    Vale ressaltar que desde a vitria dos revolucionrios de 1930, as relaes entre o Governo e a Igreja comearam a se estreitar, com esta ltima ganhando terreno na esfera poltica. Em 1932, o

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    Cardeal Dom Sebastio Leme fundou a Ao Catlica Brasileira e a Liga Eleitoral Catlica

    congregando intelectuais como Tristo de Atayde e parcela da classe mdia. Como reflexo disso, nas eleies para a Constituinte de 1934 os Catlicos contriburam para a vitria de inmeros deputados, os quais lutaram para realizar o velho sonho dos polticos ligados Igreja, de restituir o Catolicismo como religio oficial do povo brasileiro, privilgio perdido com a Constituio de 1891, leiga e positivista. Assim, a Constituinte de 1934 acatou algumas das principais reivindicaes das lideranas catlicas. Entre outras, a nova Constituio foi promulgada em nome de Deus, o Catolicismo institudo como religio oficial, o matrimnio considerado indissolvel, o casamento religioso oficialmente reconhecido, alm da implantao, nas escolas primrias e secundrias, do ensino facultativo da religio Catlica.

    Seguindo os ditames da aliana do projeto Estanovista com a Igreja Catlica, o semanrio A Cruz, veculo de divulgao da Liga Catlica de Mato Grosso editado em Cuiab, mas com ampla circulao em todo Mato Grosso, transmitia em seus artigos normas de conduta cuja pretenso era educar a famlia, transmitindo, entre outras mensagens, hbitos sexuais sadios, considerados fundamentais numa sociedade marcada por inmeras presses, entre as quais o surgimento de novos personagens e espaos urbanos tpicos das grandes cidades, tais como as casas de jogos e de prostituio. Em sua edio de maro de 1939, o jornal a Cruz trazia o seguinte artigo:

    sabido que o homem, escravizado pela carne, procura cohonestar as suas derrotas com motivo de ordem intelectual... no resta aos nossos rapazes desfibrados outros expedientes seno confessar sinceramente que a razo nica de sua vida incontinncia a fraqueza de sua vontade a derrota de seu espirito pela carne ... ensinar a mocidade masculina que no s a castidade e a continncia, no so nocivas a sade, mas virtudes muito recomendadas ainda sob o ponto de vista mdico e higinico" ( A Cruz ,05/03/1939: 04) .

    Para a nova elite urbano-burocrtica mato-grossense, grupo ansioso por ascender posies sociais que lhe garantisse prestgio poltico e segurana material, no era apenas necessrio incorporar novos hbitos e condutas importadas das grandes cidades do pas. No sendo mais suficiente, como

    mecanismo de diferenciao social, ser branco, catlico e proprietrio, era preciso ser civilizado, ter gosto e ser higienizado.

    No obstante a meno aos mdicos e higienistas, cujo papel como organizadores da vida pblica e privada foi fundamental no final do sculo XIX e inicio do XX, era me que A Cruz atribua um papel central para a sadia educao fsica e mental dos filhos, como se observa em alguns

    dos dez mandamentos ou conselhos destinados aos meninos, publicado pelo semanrio em janeiro de 1939:

    1 Amar a tua me sobre todas as mulheres.

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    2 No abrigues pensamentos que tua me no possa conhecer, nem cometas aes que ela no possa ver.

    3o Declararte culpado, antes que mentires hipocritamente

    4o Vivas em tua casa com amor e alegria, a ponto de desvanecer amarguras e atenuar tristezas.

    5o Pense em ser modesto, de preferencia a ser belo, e sempre bom.

    6o Procurar ter convices sinceras, f pura, conhecimentos slidos e inexorvel caridade.

    7o Trabalha no lar, como si no tivesses o auxilio de tua me.

    8o Aprende a arte de escutar com pacincia, fala sem encolirizar-te, sofre e goza sem extremos, e ters conseguido muito para seres feliz.

    9o Acostuma-te a, ver em tua casa a melhor das residncias e em teus pais os melhores amigos.

    10Trata e estima a todos, irmos, amigos, e criados. vi

    Essencial no processo de formao do cidado civilizado e higienizado, o papel da me seria estendido s professoras: [...] a mulher mato-grossense conhece, sobretudo, que s o amor resgata, eleva, purifica e redime e que o mundo novo ser o que forem as mes e as mestras de hoje, atuando no esprito do homem de amanhvii. Nesse sentido A CRUZ fazia coro ao discurso de Getlio Vargas proferido no centenrio da escola Pedro II:

    "A palavra do professor no transmite apenas conhecimentos e noes do mundo exterior atua igualmente pela sugestes emotivas, inspiradas nos mais elevados sentimentos do corao humano. Desperta nas almas jovens o impulso herico e a chama dos entusiasmos criadores. Concito-vos, por isso, a utiliza-lo no puro e exemplar sentimento do apostolado cvico - infundido amor terra, o respeito s tradies e crena inabalvel no grandes destinos do Brasil".viii

    Instituio essencial no esquema de edificao do carter individual e coletivo, a Igreja tambm cobraria das mulheres um papel fundamental na formao dos filhos, lembrando-as de que a educao crist seria um complemento indispensvel para a construo do novo Homem:

    a vs que me dirijo, Mes crists, que sois encanto de vossos filhos estremecidos. Reconhecendo vossa misso sublime, sado em vs as cooperadoras de Deus na obra grandiosa de preparar os eleitos do Senhor. Deus quis por vosso meio alegrar o vosso exlio, condenando-vos ao vosso mais precioso tesouro: os filhos. Estes filhos, fruto de vosso sacrifcio e amor incompreensvel, tm um destino nobilssimo. So vossos sim, mes, mas tambm so de Deus, e para Deus devem ser encaminhados. Misso gloriosa, responsabilidade tremenda! A educao crist dos filhos o complemento indispensvel para a formao do Homem... E por isso, Deus no raro escolheu seus sacerdotes dentre as famlias que, com cuidado especial, educam cristmente seus filhos... Lembrai-vos dessas verdades, Mes, e meditai um instante sequer na larga recompensa que Deus vos prepara.ix

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    No raro essa mulher - me mestra mato-grossense seria idealizada na figura de Maria, a

    exemplo do poema comemorativo ao dia das mes do ano de 1944, publicado no Jornal do Comercio de Campo Grande, no dia 08 de maio daquele ano:

    gloriosa Maria vs que sois boas e pura Tem de mim compaixo

    Vil pecador imploro

    Um doce Olhar de perdo

    E eu que nasci em maio

    Mez da me do Salvador

    Dedico a Virgem Maria

    Respeito e grande amor.x

    Sensveis s mudanas em curso no pas e fora dele, os jornais mato-grossenses no deixavam de perceber a emergncia da mulher moderna. Atribuindo a ela um lugar de destaque e ativo naquele processo de transformaes, apontavam-na, porm, como importante auxiliar para a manuteno da ordem e das instituies. Para tanto, estabelecia-se a dicotomia entre dois plos da imagem feminina, ou seja, entre a figura mitolgica de Eva que, representada como a mulher ftil e sedutora que utiliza seus encantos para levar o homem ao pecado, seria identificada como plo negativo, e Maria em cuja figura repousava o verdadeiro esprito feminino do amor desinteressado e altrusta. Assim, num artigo intitulado A mulher e o modernismo, provavelmente escrito por uma mulher, A Cruz deixava transparecer o quo tmidas ainda podiam ser consideradas as conquistas femininas, em razo da persistncia de um modelo feminino idealizado:

    Mulher somos a salvadora do mundo... j uma vez ela o perdeu com o nome de Eva, aliciando com seu amavius, o homem para a transgresso da lei. De outro feito redimiu, sobre a bela encarnao da virgem me, Maria a mulher das dores, personificada de esprito feminino de renncia e sacrifcio, morrendo de morte mais dura que a prpria morte, na paixo do filho. Agora cabe novo mulher, na encruzilhada trgica do mundo moderno, salvar ou perder a humanidade. Ela o salvar, estou certa. Ela salvar o mundo desde que se disponha a ser Maria e no Eva. A dar o exemplo do amor e da abnegao, e no da vaidade e apego aos gostos efmeros. A influir, pelo esprito de vontade e bondade, na formao do homem novo. A ser guia, amiga e companheira do homem e no seu superior .xi

    Dessa perspectiva, enunciava-se o verdadeiro sentido do feminismo:

    O sculo XX o sculo da mulher... As conquistas feministas valem sem dvida pela aquisio de maiores direitos e graves deveres... para essas bonequinhas de salo que visualizam

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    o feminismo como apenas vantagens materiais e poder fazer o que os homens podem fazer, saiba que o homem sempre outorgou, egoisticamente, todos os direitos dando mulher, na comunho do lar, to somente as obrigaes. Hoje so meeiros, participantes em ambas as coisas. A mulher moderna auxiliar e colaboradora de seu companheiro doutro sexo. Trabalha, lida, atira-se como ele ao vrtice da vida e sofre junto dele, nessa luta spera que a existncia. Mas para isso h que entrar blindada de ao da sua resistncia moral, armada, como as clssicas Minervas, da sua couraa, da sua inteligncia, e ao mesmo tempo aureolada como as Madonas da nossa crena desse ato sobrenatural de virtude que a fora, e da graa que a beleza. S assim a mulher realiza o verdadeiro feminismoxii.

    A mensagem era clara: embora reconhecendo que o sculo XX era o sculo das mulheres, sendo

    um dos mais importantes produtos do movimento feminista a elaborao de um "novo homem", supostamente ciente de suas atribuies de pai e marido, para o articulista de A Cruz a "nova mulher", lanada no "vrtice da vida", jamais deveria perder de vista seu papel mais essencial na sociedade, o de me e esposa, sob a ameaa de colocar em risco sua graa e a prpria feminilidade e, mais que isso, ser identificada, no caso da mulher da elite, "bonequinha de salo", ftil e vulgar.

    Reforando argumentao acima, podemos tomar como exemplo a crnica intitulado "Governo de criana", publicado no jornal A Cruz, onde o articulista Padre Ascnio Brando advertia:

    "A criana est no cartaz. E nenhuma dessas madamas elegantes quer saber de criana. Prefere criar bul-dog de raa, ou cachorrinho Lulu a criar e educar filhos [...] Ai de vs que abraais o matrimnio [...] e recusais cumprir a mais bela e um dos fins essenciais: a criao e a educao dos filhos! Ai de vs! Ai de vs"!xiii

    Mostra da anttese dessa mulher ftil e egosta era oferecida, conforme a imprensa mato-grossense, por Dona Maria Muller esposa do interventor do Estado, Julio Muller, e presidente da

    Legio Brasileira de Assistncia, que na sua intensa atividade pblica dava, s mulheres de seu nvel social e s das camadas mdias, o exemplo da verdadeira natureza feminina cuja principal caracterstica residia no senso de caridade ao prximo. Ao lado de homens de negcios, funcionrios, senhoras e um grupo das melhores damas da sociedade, gente que tem muita coisa que fazer diariamente, preocupaes familiares, deveres e negcios que jamais esquecem do prximo, ela fazia, segundo o Jornal do Comrcio, notvel obra de filantropia e de proteo do povo brasileiroxiv. Porm, seguindo o procedimento de fazer com que as elites mato-grossenses absorvessem os padres cavalheirescos e de modernidade vigentes nos grandes centros urbanos do pas, padres que diferenciavam essas elites dos membros das camadas subalternas e que deveriam ser seguidos sob o risco de deixarem de gozar dos estatutos de ordem e civilidade, a imprensa local no descuidava de transmitir notcias, geralmente transcritas de jornais vindos de So Paulo ou do Rio de Janeiro, abordando questes relativas s normas de comportamento, sade e s ltimas tendncias da moda

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    feminina no Brasil e no mundo. Exemplo disso aparece no Suplemento Esportivo da edio de 6 de maio de 1944 do Jornal do Comrcio, de Campo Grande, que, transcrevendo uma nota da agncia internacional Press Praga, aconselhava a prtica de esportes como imperativo boa sade fsica e

    mental das mulheres que estudavam e trabalhavam fora de casa, sugerindo inclusive os mais adequados:

    Toda mulher que trabalha, quer lutando com difceis temas nas faculdades, nas reparties pblicas ou em casa, tem necessidade preeminente de 5 vezes por semana fazer um pouco mais de exerccios. Procurando paz e sossego nesses dias vertiginosos, o ciclismo depois da natao o exerccio mais indicado para as mulheres..."xv

    Ao mesmo tempo, a coluna procurava esclarecer, atendendo a pedidos de leitoras (e possveis consumidoras) de vrios estados do pas, quais eram os trajes mais adequados, em termos de conforto e da lgica da moda, para a prtica do ciclismo (sempre lembrando que, como citado acima, em Campo Grande o traje feminino de banho j havia sido anteriormente regulamentado):

    Para o ciclismo j no se usam mais as famosas calas saias, que tantas controvrsias causaram anos atrs. As mais usadas so as graciosas trs-quartos, pouco abaixo do joelho, conjunto criado por Agnes Barret, da Califrnia. Formado por blusa de cambraia de xadrez verde claro, com mangas compridas [...] os sapatos so verdes no mesmo tom que a cala de linho, e possuem as golas juta cor de palha...xvi

    As transformaes tecnolgicas e econmicas ocorridas no mundo no so acompanhadas no campo da mentalidade social, as caractersticas atribudas ao sexo feminino na imprensa mato-

    grossense so um reflexo disso, ao compor um modelo de mulher aparentemente universal, mas, contendo elementos da estereotipia tradicional (que circunscreve ela ao mbito do lar). Mesmo com o mundo mudando, basicamente o que difere a "mulher moderna" da "antiga" a quantidade e qualidade de produtos que rodeiam a primeira, sob outros aspectos, os dois esteretipos so semelhantes: a "mulher moderna", tem sua volta os resultados do progresso tecnolgico, sendo que esta deve ser obrigatoriamente casada, dona de casa, me e esposa dedicada, seguindo a risca um modelo burgus, idealizado pelas elites e vinculado nos jornais. De fato as representaes femininas vinculadas nos jornais de Campo Grande serviam efetivamente para estabelecer modelos e normas de conduta tanto para as classes perigosas quanto para aqueles desejosos de pertencerem s elites locais, alm de vender imagens positivas da cidade, lugar onde a civilidade e a modernidade andavam juntos com a natureza, a moral e tradio. Porm podemos questionar qual foi verdadeira eficcia de tais representaes para as mulheres que vivenciavam as diferentes realidades do campo e da cidade ou, ainda para aquelas dos mltiplos extratos sociais e tnicos, tais como a mulher indgena, a negra, a operria, a camponesa, a dona- de -casa, a mulher da elite? Essas so algumas questes que podero contribuir para que se desenvolvam futuras pesquisas.

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    i SILVA, Melo. Cana do Oeste: Sul de Mato Grosso. Campo Grande: Brasiliense, 1948. ii PEREIRA, Moacir. Imprensa: um caminho para a liberdade. Florianpolis: Lunardelli/UFSC,1980.

    p.119. iii

    CARONE, Edgar. O Estado Novo (1937-1945), Rio de Janeiro, Difel, 1976. p.171. ivARAJO, Rejane. verbetes temticos DHBB. Centro de Pesquisa e Documentao Histrica Contempornea/ FGV. 2005. vROCHA, Rosngela Vieira - Imagem Desfocada (Estudo Sobre Indstria Cultura, Ideologia e Mulher). Dissertao de Mestrado. So Paulo, USP. 1982. p.85. viJornal A Cruz. 08/01/1939, p.03. viiJornal A Cruz, 11/02/1940, p.4 viiiVARGAS, Getlio - A Nova Poltica do Brasil. RJ: Livraria Jos Olynpio Ed , 1938, vol. V. p. 106-107 ixJornal A Cruz, 01/09/1942, p.3. xJornal do Comercio 08/05/1944, p.3 xi

    Jornal A Cruz, 20/01/1940, p.2. xii

    Jornal A Cruz, 10/09/1942,p.4. xiii

    Jornal A Cruz, 05/03/1939, p. 6. xivJornal do Comercio, 08/05/1944, p.2 xv

    Jornal do Comercio, 06/05/1944, p.2 xvi

    Idem.