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CARLOS, MEU AMIGO QUERIDO

PREFÁCIO

As cartas são o mais importante documento de qualquer época. Quando a História se acelera, ou descansa em longos períodos de modorra, o desabafo dos insatisfeitos, dos inconformados, ou a resignada manifestação do tédio encontram sua expressão natural na correspondência.

A troca de cartas exige reciprocidade da inteligência. Ninguém escreve a quem não saiba lê-lo; exige-se, no mínimo, certo parentesco intelectual, certa identificação ética. As circunstâncias podem obrigar-nos a cumprimentar pessoas indesejáveis, mas não nos obrigam a dirigir-lhes cartas – a não ser quanto as usamos para manifestar o nosso desprezo.

As cartas são instrumento da política, e podem servir, como serviram aos apóstolos, para construir e fazer progredir doutrinas. Há porém, uma distinção fundamental entre as cartas escritas com a preocupação de que sirvam a qualquer objetivo, e as que nascem da afetividade.

Vera o Carlos têm, nestas cartas, a linguagem comum da sensibilidade poética. E há, entre os dois, certos sinais que os não iniciados talvez não consigam compreender. Os dois são mineiros; ele, Itabirano, ela diamantinense. O maciço montanhoso é o mesmo, as brumas matinais, que tanto marcam a infância, as mesmas. Mesmas as flores, mesmas as águas, não pode ser diferente o sentimento do mundo.

Assim se entendem o poeta septuagenário e a jovem escritora, A ironia, a suave ironia de Minas, escorre nas frases de ambos. Vera em sua primeira carta, fala da convalescença de Darcy Ribeiro, e em meio à constatação de que viviam um tempo triste, diz que “o máximo de felicidade é nascer burro, crescer ignorante a morrer de repente”.

E, em seguida, procura para a situação criada em 1964 a metáfora inusitada, dura, quase perfeita, ao ver “o mundo se transformando em um formigueiro”, com “os homens virando formigas”.

Em sua resposta, Carlos dá ânimo ao estilo forte, às vezes áspero, da escritora: “Para contar só o superficial ou o aveludado, realmente não vale a pena escrever”.

Como em tudo o que escreve, Vera trata o mundo com severa ternura. O mundo são os outros, os outros aos quais ela ama tanto, que o seu afeto se toma quase feroz. Ela não pode perdoar a burrice do amigo querido nem o mau caráter de alguém que tenha cruzado o campo de suas relações. Faltar à inteligência (e só nisso ela é cruel) ou faltar à honra é traí-la. É trair o seu código. Isto se torna claro em suas cartas a Carlos Drummond de Andrade.

Mas sobre o aspecto feroz da ternura prevalece o compromisso do amor. “Porque, que sentido pode ter a vida, a não ser assim? Já que a gente veio parar neste mundo, até agora não entendi para que) e já que, na construção particular da gente entrou essa carga de sensibilidade, a única solução que nos resta é sair distribuindo amor”.

Entre Carlos e Vera há, no entanto, o Brasil que se debate, que procura desembaraçar-se da noite. “Quanta burrice, meu Deus! Qualquer dia desses daremos de cara com Adão e Eva, tamanho o retrocesso”. É o combate entre as trevas, que recusam a luz da manhã, e os homens que trazem nas mãos os raios de sol. Um, deles é Juscelino. Da mesma idade que Carlos, senhor dos mesmos mistérios de Minas, o ex-presidente espera o seu instante. A Nação tem saudades de seu tempo, não só porque ele fosse o tempo do trabalho e do progresso, o tempo de Brasília e das indústrias de base, o tempo das estradas, dos portos da Sudene. Mas porque o seu fora o tempo da alegria e da liberdade.

Juscelino começa a freqüentar a correspondência a partir de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Ao responder a carta de Vera em que ele é mencionado, Carlos Drummond de Andrade escreve: “Outro dia avistei-me com JK, embora rapidamente, em reunião em casa de Plínio Doyle, onde ele enfrentou alguns chatos (em toda reunião há uma certa percentagem de cheios, você já reparou?)”.

Derrotado Juscelino por Bernardo Elis, Vera desabafa: “Eta humanidadezinha mixuruca, heim Carlos?”.

O poeta torna-se o excelente observador político que costumava ser, e responde, em carta de 10 de dezembro: “Compreendo seu desejo (o de JK) de penetrar naquele estranho recinto, ou em qualquer outro, já que lhe estão vedadas as portas naturais abertas ao temperamento político. Além do mais, ele tem o gosto da aventura e não é aventureiro quem só se anima a jogar na certa”.

No princípio de agosto da 1976 corre a notícia de que Juscelino morrera em acidente na Rodovia Rio-São Paulo. É o anúncio, estranho anúncio, de morte que viria, dias depois na mesmíssima rodovia, nas mesmíssimas circunstâncias do boato: acidente automobilístico. Vera, depois de telefonemas angustiosos, de ríspidos desmentidos que endereça aos jornalistas, vai encontrar o grande mineiro na paz de sua fazenda em Luziânia. E narra o encontro em sua carta a Carlos: “Achei-o muito triste e desapontado. Acho que ele está pressentindo alguma coisa. Boa não deve ser”.

Há, em seguida, o silêncio. O silêncio que acompanha o luto. Em julho de 1977, Vera volta a ser irônica com a sua própria amargura:

“Não dê muita importância às minhas magoas. É um defeito de construção”. Em 11.08.82, Carlos fala de seu dúbio sentimento, nas vésperas do se tornar

octogenário: “Não posso disfarçar que chegar a essa idade é bastante inconfortável, pois a Natureza vai reduzindo a titica as energias da mocidade e da madureza mas, evidentemente, me consola verificar que minha velhice desperta efusões generosas”.

Em fevereiro de 84, Vera diverte Carlos com a singular, descoberta (que o poeta cronista reproduz em sua coluna do Jornal do Brasil): “Sabe de uma coisa? Descobri o porquê de todo esse caos da nossa Pátria. Sabe o que é? A rampa. Sim, a rampa do Palácio do Planalto”, e expõe a sua teoria sobre o dobrar dos joelhos exigido pelo ato de subir escadas e sua influência sobre a mente e o caráter dos estadistas.

Carlos retruca: “Estou de acordo com você. A rampa é uma calamidade. Mas só a rampa?”.

O poeta se foi, talvez guardando, na imperecível memória dos mortos, a frase de sua amiga, em carta de 1984: “Meus Deus, como a gente é só! Como todo o mundo é só!”.

É melhor ler as cartas. Elas são a crônica da paisagem interior de dois grandes escritores mas trazem também, a notícia do aborrecido eclipse. Nada há de mais grotesco nas

ditaduras do que o medo dos que a exercem, e Vera descreve bem o ridículo da violência dos apavorados ao relatar o ambiente do hospital em que Darcy Ribeiro era assistido. Homens armados, como se aquele intelectual, de quem extirpavam o pulmão, fosse capaz de levantar-se e destruir, sozinho, os seus tanques, as suas divisões, os seus tecnocratas.

E, apesar de tudo, de todos os sofrimentos, ressaltam, das cartas, a fé no homem, a fé na gente brasileira, a esperança. A paz da casa entre verdes, que Vera oferece a Carlos e a Dolores, com seus pássaros, sua despensa de fazenda mineira, com suas quitandas, seus doces caseiros, o indispensável pão de queijo.

E a alegria, que é a poderosa vingança da inteligência contra a estupidez dos tiranos tiraninhos.

Mauro Santayana

Brasília, 14 de fevereiro de 1975

Meu Poeta:

Seguem estas coisas que prometi naquela tarde, em casa do Darcy.

Ouso remeter estas frases soltas com pretensão a poesia, para o seu julgamento franco. E A Ciclotímica.

Não pretendo publicar nada disto, nunca. Mas como sinto uma necessidade enorme de me exercitar intelectualmente de vez em quando, escrevendo alguma coisa, gostaria de saber se está valendo a pena ou se devo jogar tudo no lixo.

Tive muita alegria ao nos conhecermos naquele papo delicioso. O Darcy ficou felicíssimo e falamos horas sobre a sua pessoa. Como ele o admira! Não pode imaginar o quanto lhe fizeram bem aquelas quatro ou cinco linhas no jornal, em que o Senhor fala da alegria de vê-lo curado e do seu amor ao Brasil.

Escolhi um caminho novo, que me afastasse do convívio de criaturas sensíveis e inteligentes, para sofrer menos. Refiro-me à Imobiliária. Eu era Inspetora de Ensino e sempre ajudei o Darcy, desde a criação da Universidade de Brasília. Inútil. Todos os caminhos me devolvem aos amigos que realmente amo e admiro e me arrolam nos sofrimentos deles.

Ver Darcy, naquele hospital, cercado de policiais e naquele sofrimento todo, me arrasou. Na noite de Natal, 24 para 25, ele passou muito mal e só conseguimos dormir às 4,20 da manhã, ouvindo da vizinhança do hospital, durante toda a noite, aquela canção: “Noite Feliz”, “Noite de Amor”.

Lembro-me de uma frase que li há tempos, não sei onde: “É preciso não chorar, chorar é ceder e é preciso não ceder nunca”.

Mas choro, sem ceder. E é aquele choro por dentro, do impotente, do frustrado e

amordaçado que pergunta: quem resgatará tudo isto?

Ah, poeta. Como o Senhor deve sofrer com toda essa sua sensibilidade, tendo este mundo-cão ao seu redor.

Sabe que o Senhor nunca me escreveu uma carta? E sabe que eu adoraria receber uma?

Um grande abraço, terno e amigo. Vera

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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 19 de fevereiro de 1975.

Vera:

Depois do nosso conhecimento pessoal, naquele papo ameno em torno da poltrona do

Darcy convalescente, julgo-me no direito de estranhar o “senhor” cerimonioso de sua carta. Esta foi afetuosa e no clima daquele dia, mas o “senhor”, Vera, me coloca assim numa situação de monumento tombado e é meio inibitivo, sabe?

Não importa. Gostei muito de ler “A Ciclotímica”, não só por ser um esquizotímico, sempre curioso e até guloso das manifestações opostas, que me despertam uma saudável inveja, como ainda porque você consegue realmente dar expressão literária ao temperamento ciclotímico, e então a coisa assume um ar de coisa viva, palpitante, envolvente, que cativa o leitor. Seu estilo direto, objetivo, leal, desconhece a sofisticação. Só que parece esvoaçar sobre ele o estilo de uma garota mineira chamada Helena Morley. Penso que seria bom você encontrar, dentro da identidade de naturezas, a nota pessoal, privativa, que a caracterizará como escritora.

Na poesia essa nota já aparece com alguma nitidez, O ferido que vai para o trabalho, por exemplo, tem um cunho de expressão intransferível, que permanece na lembrança do leitor. Se você prestar mais atenção à técnica do verso, para assegurar a constância do ritmo, os resultados serão excelentes. As amostras que me enviou têm muita força poética.

Agora você já viu que eu também escrevo cartas. E se me responder mande para o meu endereço: Rua Conselheiro Lafayette, 60, ap. 701, ZC-37, pois ao JB só vou uma vez por mês, no dia sagrado de receber o salário.

Escrevendo para o Darcy, não deixe de dizer-lhe que ele continua presente no meu afeto, e que terei a maior alegria quando ele estiver reintegrado em nossa vida brasileira, em que mais precisamos dele que ele de nós. E para você, o abraço amigo e carinhoso do

Carlos

Brasília, 28 de fevereiro de 1975.

Meu estimado Carlos:

Sinto-me compensada de um monte de chateações e fossas, recebendo a sua carta e

sendo citada na sua coluna. Não esperava tanto, O Darcy vivia elogiando o que eu escrevia mas, como ele me

adora, considerava-o suspeito. E ele não entende nada de poesia, como eu também não entendo.

Vou tentar fazer o que você (que bom poder tratá-lo assim) sugere. Só que não tenho cuca mais para nada. Ando numa burrice invejável.

Para ser sincera, uma das frustrações de minha vida era não conhecê-lo. Já havia pedido a várias pessoas que nos apresentassem. Inutilmente.

Agora, me sinto muito sua amiga. Porque é de gente assim que preciso para me ajudar a viver. Amo as pessoas simples. Bacanas e simples.

Quando trabalhei na Universidade de Brasília, conheci homens maravilhosos, cultos e da maior simplicidade: Oscar Niemeyer, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Lauro de Oliveira Lima, Victor Nunes, Carlos Scliar, Almir de Castro, Alfredo Ceschiatti e Athos Bulcão.

Adorava o Anísio, sinto falta dele até hoje.

E a gente que tromba na vida, a todo momento, com imbecis fazendo pose de catedráticos, dizendo asneiras com voz grossa e se considerando as coisas mais importantes do mundo: os donos da verdade. E felizes, ainda por cima.

Dizem que o máximo da felicidade é nascer burro, crescer ignorante e morrer de repente. Acho que deve ser mesmo.

Quanto à Ciclotímica, ela foi escrita quando eu tinha mais ou menos vinte e sete anos.

Não tinha dinheiro para pagar um psiquiatra e resolvi debulhar tudo no papel. Não é exatamente a minha realidade vivida. Mas se parece muito.

Quando minha mãe morreu eu tinha oito anos e éramos nove filhos. O mais velho tinha dezoito anos e a mais nova, um ano. O meu pai começou a distribuir os filhos para os tios, mas acabaram os tios e ainda ficou menino. Então, eu fui parar com os meus avós em Diamantina.

O meu avô era maravilhoso e a minha avó aquela grossura: seca, áspera, dura. Passei alguns anos naquela chatice toda e depois voltei para a casa do meu pai, a pior

época da minha vida. A minha madrasta, louca de pedra, meu pai apaixonado por ela e nos maltratando (a

mim e três irmãos menores) para satisfazê-la. Um dia ainda vou contar tudinho.

Depois teve a ida para o Rio, quando me formei, e, durante os oito anos que vivi aí, convivi quase que diariamente com Alice Brant (Helena Morley).

Eu a adorava, e ela a mim. Foi uma fase deliciosa e tenho as coisas dela e do Augusto Mário, mais lindas, para contar.

Depois: Brasília. Depois 1964.

Essa fase será altamente censurada porque contarei, tim-tim por tim-tim, o que presenciei. Não parecia um episódio político. A impressão é de que o mundo havia se transformado num formigueiro. Homens virando formigas.

Nunca pensei assistir a tantas cenas deprimentes: covardia, medo, deslealdade, puxa-saquismo, dedo-duragem, cretinices várias.

Darei os nomes aos bois e vai ser uma lavagem de alma.

Prometo uma coisa: você e o Darcy vão ser os únicos a ler e opinar. É isto aí meu caro poeta. Minha vida em algumas páginas.

Esqueci de contar a coisa mais importante: crio três sobrinhos que vieram para a minha companhia em outubro de 1964 com um, três e quatro anos. São filhos de um irmão desquitado. São o que existe de mais importante na minha vida. Eu os crio maravilhosamente bem; faço com eles exatamente o contrário do que fizeram comigo. Está dando certinho.

Até breve, meu poeta.

E um grande abraço, com ternura.

P.S.: Esta cópia de carta é para você me conhecer melhor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 10 de março de 1975.

Vera, amiga:

Ora muito bem. Estamos amigos, e não foi preciso recorrer a intermediários. Não foi melhor assim? O encontro, em volta do Darcy, criou a boa relação, que as cartas consolidam.

Por falar em carta, não preciso dizer que me tocou sua prova de confiança. Junto restituo a cópia, que deve ficar em seu poder, e não no meu arquivo. É um documento admirável, mostrando a mulher valente e lúcida que você é, no controle dos seus sentimentos. Mas, pergunto — não indicará também um conceito talvez deformador da natureza da relação carnal? A Bíblia chama-a de “conhecimento”, e eu acho certo este nome. O conhecimento físico completa a imagem que temos do próximo. Ligá-lo a um estado de paixão é dar-lhe uma força que ele não tem em si. Já não falando no aspecto de necessidade biológica, que o legitima e lhe tira a sacralidade. Em suma, ou em princípio: não entendo porque o sexo, realizado com uma visão clara das coisas, corrompa a amizade. Mas este é um assunto que poderia ser discutido até o infinito, e eu não tenho paciência para discutir. Apenas manifestei o meu ponto de vista. Um dia, com você aqui no Rio, poderemos conversar a respeito. Sem perigo nenhum, ouviu? Sou um respeitável senhor de 70 e tantos anos...

Escreva o livro que você pretende, e conte tudo. Para contar só o superficial ou o aveludado, realmente não vale a pena escrever. Já temos um número excessivo de memorialistas que retocam e falsificam a vida. E você, com o seu talento, pode nos dar um retrato precioso de costumes e psicologia social e humana, do tempo que está vivendo. O que há de melhor nos livros do Nava, ao lado da criação literária, é a coragem.

Um grande abraço, com carinho, do Carlos.

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Brasília, 04 de abril de 1975

Carlos, amigo querido: Senti muitas saudades suas ontem, assistindo ao filme do Fernando Sabino. Que

delícia! Existir gente como você é das coisas mais importantes desta vida. Compensa, sabe? O menino que amava as plantas, os animais, as letras e as gentes simples, que poderia se transformar num anarquista-ativista, mas que escolheu ser funcionário público.

Um menino que veio vindo pela vida, trombando nas burrices e incompetências, e nas maldades, e se manteve puro. Tão puro que consegue transmitir ao mundo, a este mundo podre que aí está, a mensagem do amor e do sonho, de verdade e ternura; tão altivo que nos deixa a sensação de remorso quando some no final da rua, onde passa com seus passos mansos e seguros, sua pasta, seu olhar carinhoso e sua força moral.

Dá-nos a impressão de que alguma coisa devíamos ter feito, lutado, tentado, sei lá, para que este mundo se tornasse melhor, para que esta terra pudesse merecer gente assim passando por ela.

Imagino o orgulho que sua filha deve ter de você.

Saímos do cinema e fomos lá para casa comer pão de queijo e tomar uísque. O Pedro Nava, a Nieta, o Fausto Alvim e Márcia, filha do Cyro dos Anjos. Batemos papo até quase duas horas da manhã.

Pergunte ao Pedro Nava o quanto falei de você.

Contamos casos mineiros e rimos às pampas. O Darcy já está de partida. Irei aí na próxima semana despedir-me dele. Procurarei

você. A sua vida já está em ordem? Já tem empregada, tudo está normal? Já podemos bater

um papo tranqüilo? Tomara. Falaremos sobre o assunto da sua última carta. Acho que não me expliquei bem.

Conversaremos. Um abraço terno e saudoso.

Vera

Brasília, 06 de maio de 1975.

Carlos, meu querido:

Fiquei esperando a resposta à minha carta. Você agradeceu-me pelo telefone, acho

que não valeu. Carta é escrito, telefonema é falado, não devemos misturar as coisas. Já anda tudo tão bagunçado.

O Darcy foi embora ontem. Estive aí na quarta e quinta-feira passadas para despedir-me dele.

Achei-o muito fossento, mas consegui animá-lo um pouco. Falamos de você. Muito. Ele disse que se pudesse levar gente como nós — você, eu,

Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Otto, Oscar Niemeyer — para o Peru, ele se conformaria de ficar longe do Brasil. Estaria levando um pouco de sua pátria.

Sente que já não tem saúde nem ânimo para enfrentar outra fase de exílio. É incrível como a insegurança dos pretensos donos do nosso país gera o medo. Medo

de pessoas valorosas e potentes. Lembro-me de uma frase do Anísio Teixeira: “Nunca percebi no Darcy Ribeiro um só traço de subdesenvolvido”.

Mesmo durante a doença, quando não tinha certeza ainda do resultado dos exames e da extensão do câncer, ele foi de uma altivez e de uma coragem que chegou a me surpreender. Eu que já o conhecia tão bem e pensava sabê-lo de cór. Ah, Carlos! Ler a História do Brasil é muito bom, mas vivê-la é fogo!

Escreva a ele. Peça ao Fernando e Otto que façam o mesmo. Vocês não podem imaginar o resultado de cada gesto destes. E a maneira de abastecê-lo de entusiasmo e diminuir sua fossa. O endereço é:

Avenida Alfredo Benavides, 955, Apto 6-A, Miraflores — Lima — Peru.

O Fernando falou com você sobre a Ciclotímica? Ele gostou muito e está querendo publicá-la.

O Carlos Castello Branco acha também que devo publicar. Estou surpresa. Nunca imaginei que alguém pudesse pretender que outras pessoas, além das que gostam de mim, queiram ler a loucurada que escrevo.

Vamos ver o que vai acontecer. Se gostarem, ótimo, porque assim abrirá caminho para, no futuro, eu escrever o que prometi: a minha vida nua e crua. Se não, recolho-me à minha insignificância e fico vendendo imóveis mesmo.

Dei A Ciclotímica a Sarita Brant, e ela adorou. Perguntei se ela achou com pretensões a parecer com Minha Vida de Menina e ela me respondeu que não. Que, em alguns pontos, ela sempre me achou parecida com sua mãe (espírito crítico, visão do mundo diferente do resto da humanidade, inteligência imaginativa e criadora) mas o que eu escrevi é exatamente o que eu sou.

É uma opinião valiosa mas não é a mais importante porque ela me conhece profundamente e distingue, por isso, as nossas duas personalidades. Quem não me conhece, como um leitor comum, pode pensar realmente que eu esteja querendo plagiar Alice.

Você tem toda a razão quando me chama a atenção para isto.

Fale com o Fernando, por favor. Quem sabe eu poderia alongar a vida desta menina? A ciclotímica não tem nome e não situei o lugar onde ela viveu, exatamente porque quis retratar uma menina qualquer, numa cidade também qualquer do interior do Brasil.

Acho que toda menina mais inteligente um pouco que o normal, e mais sensível, deve ter os mesmos problemas. Lendo o que escrevi, talvez elas possam se identificar e se consolar ou reagir e passar a lutar, quem sabe?

Gostaria tanto de ouvir sua opinião. Se você achar que seria melhor um papo, juntamente com o Fernando, poderei ir aí num fim de semana.

Não gostaria de publicá-lo sem ouvir você.

Acabo de receber um telefonema do Colégio dos meus filhos. Estão com o aproveitamento péssimo em quase todas as matérias. São inteligentíssimos, diz a diretora, mas totalmente vagos. Nessa altura, não sei se devo achar ruim ou bom.

Afinal de contas, se eles se intelectualizarem muito poderão ser perseguidos como quase todos os intelectuais são. Se ficarem ignorantes, poderão ter um futuro formidável, mas eu não irei suportá-los..

Vou pedir a eles que estudem só um pouco, apenas para melhorar a barra no colégio. Um beijo, Carlos.

Escreva-me. Vera

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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 12 de maio de 1975.

Vera, amiga:

Foi bom você me ter dado o endereço peruano do nosso Darcy. Eu tinha mesmo intenção de escrever a ele, o que acabo de fazer. No dia da partida, ele quis vir aqui em casa para se despedir. Eu estava de saída para as obrigações do dia a dia e prometi ir ao seu apartamento, quando voltasse do centro. Mas o trânsito estava pra lá de enguiçado, e quando cheguei a Sousa Lima, o nosso homem já se mandara para o Galeão. Fiquei triste e chateado, pois por minha culpa não lhe dei o abraço de despedida — esse abraço que não faz somente parte do ritual, em alguns casos é um ato do coração, com ternura.

Pois é. Fico contente de saber que sua ciclotímica vai conhecer a vida em livro e circular por aí. Ela merece, e o Fernando Sabino, com quem conversei a respeito, acha que sua narrativa, pela matéria e pelo tratamento que você lhe deu, deve interessar o público. Disse-me

que a editora será provavelmente a Rocco, do Paulo Roberto Roxo, antigo gerente da Sabiá e uma flor de pessoa, que vai entrar de sola no mercado editorial apresentando os livros do Chico Anísio, até agora publicados pela José Olympio. Vamos todos torcer pela Ciclotímica!

Bem, não respondi sua carta anterior porque... sou ruim de correspondência, sabe? Não se aborreça se no futuro eu atrasar respostas ou conservá-las em estado de carta mental. Leve tudo isso à conta da minha condição de setuagenário e continue minha amiga, como eu me declaro de você e do seu jeito franco e desabusado, que é convite a gostar ou não gostar, de saída.

Um beijo, Vera. Carlos

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Brasília, 30 de junho de 1975.

Carlos, querido:

A Ciclotímica já está saindo do ovo e vai andar por aí. É uma sensação estranha esta de saber que alguém, além daquelas criaturas que eu

amo, irá ler o meu livro. O Juscelino está tão radiante quanto eu. Não o deixam lançar os seus livros, então ele

lançará o meu. Já o avisei que a festa será dele. Ele não compareceu, ainda, a nenhuma festa em Brasília, só fica na minha casa, na do

Carlos Murilo, e na do Ildeu. Pretendo fazer uma bela reunião de pessoas interessantes. Ele está tão precisado deste

carinho geral! Ainda não me recuperei totalmente do susto que levei outro dia: os meus filhos

estavam em Governador Valadares com os avós e eu soube, por intermédio da empregada de lá, ao telefone, que tinha havido um acidente com o carro do tio deles que os levava à fazenda do avó.

Só muitas horas depois, de enorme sofrimento e angústia, veio a notícia de que não foram eles e sim outros primos que haviam sofrido o acidente. E que, felizmente, não houve nada muito grave com eles. O carro que bateu no deles rodou pela ribanceira e morreu a família toda.

Cheguei à conclusão de que mãe e pai são sobreviventes. E cada susto que a gente leva que não sei como o coração suporta.

E você, meu querido, o que tem feito de novo? Muitos e belos poemas?

Adorei o seu último livro. Adorei demais.

Às vezes, quando a barra está pesando para o meu lado, leio os seus poemas e me tranqüilizo.

Que bom você existir.

E que privilégio tê-lo como um bom e querido amigo. Beijos para você e Dolores.

E o amor de Vera

P.S: Segue o Discurso do Marcos Freire

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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 24 de agosto de 1975

Vera, minha cara:

Eu, esquizotímico, recebo com satisfação a notícia de que em breve teremos A Ciclotímica nas livrarias, e prevejo para ela uma carreira feliz. Já estou batendo palmas e sentindo com você, por empatia, as emoções da estréia. Considere-me presente ao seu lado em Brasília, no ato do lançamento do livro, graças a uma operação espiritual que dispensa a viagem física.

Outro dia me avistei com JK, embora rapidamente, na reunião em casa do Plínio Doyle, onde ele enfrentou alguns chatos (em toda reunião há uma certa percentagem de chatos, você já reparou?) mas também se viu cercado de muitas pessoas simpáticas. Parece que vencerá sem susto a eleição na Academia, para conviver mais uma vez com os chatos e os não chatos.

Ainda bem que os seus meninos não estavam no carro daquele tremendo desastre em Governador Valadares. Avalio bem a emoção por que você passou.

Gostei muito do discurso do senador, de que só conhecia o resumo jornalístico. E o que se pode fazer no momento: discursos melancólicos, até que haja razões de alegria. Mas, na esfera particular, o livro de você nos dará uma dessas razões.

O abraço amigo do

Carlos ____________________________________________________________________________

Brasília, 28 de outubro de 1975.

Carlos, meu querido:

Tentei, de todas as maneiras, evitar o desastre. Primeiro, argumentando com o Juscelino para que ele desistisse de sua candidatura à Academia. Inútil. Ele queria porque queria ser candidato.

Pedi ao Otto que me ajudasse. Ele me respondeu: “A sua carta ao J. K. é um berro à moda do seu temperamento. Generosa, solidária.

Você tem razão, mas aqui baixinho, entre nós: deixe o homem se candidatar ao que quiser, ao que deixarem. Por quê não? Ele é um homem institucional. Fez a vida e a biografia segundo as instituições. Foi até Presidente da República — você já viu cargo mais acadêmico e institucional? Se ele se candidatar a segundo corneteiro da banda Santa Cecília de Brumadinho deixe, quê-que tem?”

Achei muita graça mas continuei lutando. Não adiantou nada. E o resultado foi o que vimos.

Quando me lembro da admiração que sentia pelo Guimarães Rosa e o ódio que tive quando ele morreu de Academia, chego a me consolar com a derrota do Juscelino.

A burrice dos outros até que nos tem ajudado. A nossa inteligência é que está em curto-circuito e não percebe isto.

Naquela noite, quando sai da casa da Maristela, tendo deixado o Juscelino naquele estado de tristeza de soldado ferido voltando da guerra perdida, escrevi-lhe uma enorme carta: “Você, com este temperamento agitado, não suportaria ficar naquele papo furado de gente que fica olhando para trás, pensando para trás, recordando o tempo que era considerado gênio, um elogiando a obra do outro, cada qual querendo parecer mais culto, ninguém preocupado com a situação do país, a miséria geral, com a amargura de cada um de nós, nem fazendo nada para tentar diminuí-la”.

E terminei a carta, assim: “Virão outros amanhãs, outras auroras. Auroras que trarão dias limpos e puros que, vistos de acordo com a consciência de cada um, parecerão mais limpos e mais puros, ainda. Que Deus lhe dê as auroras e os azuis que tanto merece”.

E ele mandou-me esta bela carta, aqui anexada. Êta humanidadezinha mixuruca, heim, Carlos?

Vou tentar encontrar um bom livro de ficção para ler. Não estou suportando a realidade. Estou no maior enjôo.

Só gosto de você e mais uma meia dúzia de gente. Beijos, meu querido. Até breve.

Vera

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Brasília, 25 de novembro de 1975. Carlos, querido:

Não foi por falta de bem-querer e de saudades que não lhe escrevi mais. E que a barra pesou para o meu lado.

A minha irmã teve outra crise de depressão, chorou dias e noites, sem parar, fiquei às voltas com o psiquiatra e com o meu pânico.

Agora ela melhorou e eu continuo no porão. Sinto-me o próprio Papai Noel com este saco de problemas de minha família nas costas. Nem trator agüentaria tal rojão.

Mandei cópias das minhas cartas e de Alice para o Hélio Pellegrino e ele adorou. Mandou-me uma carta belíssima, dizendo: “Você e Alice são da mesma raça espiritual. A mesma abertura para as coisas do mundo: quintais, árvores, frutas, rostos, caracteres humanos, gestos. A mesma vocação para a alegria”, e mais uma porção de coisas bonitas. Adoro o Hélio.

Só fiquei pensando: de que adianta ter vocação para a alegria? Vocação frustrada, podada, esta minha. De onde o Hélio terá tirado isto?

Você, como vai? Conte-me. Devo passar as férias de janeiro com os meus filhos, na minha casa de praia, na Bahia.

Caso possa, irei aí antes e o procurarei. Remeto-lhe estas cópias de cartas. A do Darcy veio mesmo em portunhol. Ele está

brigado com a Bertha e a secretária é peruana. Já lhe disse para estudar datilografia, ou caligrafia. Porque a sua letra é um verdadeiro horror. Quando ele me escreve cartas muito longas só leio o início e o fim, fico com preguiça de decifrar o meio.

Um beijo, querido.

Vera

Rio, 10 de dezembro de 1975

Vera, querida:

Também não foi por falta de saudade e bem-querer que não lhe escrevi mais. Nem por

malandragem. O que se passa comigo, e me deixa triste, é que a obrigação jornalística de escrever (faço isso há 50 anos, com intervalo de 10) me rouba a alegria de escrever pelo gosto de escrever, às pessoas do meu carinho. Falta de tempo, propriamente, não é, nem eu passo a semana inteira rabiscando três croniquinhas e mais algum trabalhos avulso, de encomenda. É um bloqueio diante do papel, da caneta ou da máquina, entende? Saber-me obrigado a escrever para jornal o resto da vida, como profissional autônomo (boa piada! autônomo!) me faz abominar a escrita, o alfabeto, o Correio. Me compreenda e perdoe.

Bem, seu livro está aqui me fazendo companhia; se o reabro, é você que está a meu lado, com toda a vivacidade, a inteireza, a rude e gostosa maneira de enxergar e julgar as coisas. Mas sinto nele, mais que o desabafo existencial, o vigor de um expressão literária que tanto poderia manifestar-se no caso da Ciclotímica, em feliz conjugação de tema e de forma nervosa de desenvolvê-lo, como em outros conteúdos humanos, observados. Você tinha necessidade de contar essa história, compreendo. E, ao contá-la, provou a sua força de fixadora de tipos e situações, de criadora de atmosferas tensas e empolgantes – de recriadora de vida, em suma. Não lhe parece que a novela abre caminho para outras realizações, já agora mais amplas, mais livres de condicionamentos individuais, porque foi o próprio mecanismo da ficção que você descobriu, ao penetrar no terreno da experiência vivida?

Pense nisso, minha querida, e passeie a vista em redor, assuntando o material imenso que Brasília, com seus novos tipos de convivência, ou a nossa Minas enroladíssima, fonte inesgotável de recalques e matreirices, oferecem a quem sabe manejar a linguagem escrita. E uma provocação que lhe faço, com intenção de assanhá-la. E nem sequer sou original, pois o Edgard Mata Machado, por outras palavras, sugeriu a mesma coisa.

Achei uma delícia a sua carta ao Juscelino, embora eu veja de outro modo o jeito dele, candidatando-se à Academia e expondo-se à derrota. Compreendo seu desejo de penetrar naquele estranho recinto, ou em qualquer outro, já que lhe estão vedadas as portas naturais abertas ao temperamento político. Além do mais, ele tem o gosto da aventura, e não é aventureiro quem só se anima a jogar na certa. Mas ouvi dizer que opositores dele, lá dentro, estão procurando convencê-lo a se candidatar de novo, mostrando-se arrependidos do voto contrário. Não é uma graça? Outra boa piada, a Academia.

Bem, não há outro jeito senão desejar a você, e ao seu povinho, essa coisa completamente sem sentido, chamada feliz Natal, feliz Ano Novo. Com esperança de alguma coisa melhorar, em alguma parte do mundo e até por aqui.

Um beijo do

Carlos

Brasília, 06 de julho de 1976.

Carlos, meu querido:

Vim, com o seu livro nas mãos, emocionada com a dedicatória. No avião, lia os seus

contos. Na página 1.156, vi este trecho: “Uma senhora de cabeça branca passou o dia, não, passou a vida cuidando de filhos de leprosos, e seu sono é bem merecido; graças a ela, nos pontos mais desolados do país, a vida foi salva de destruição e horror”.

Dei uma marcha-a-ré na vida e voltei ao ano de 1966, quando comecei a trabalhar com essa extraordinária Eunice Weaver. Pensava poder pegar uma carona no seu ideal.

E o não conseguir deixou-me frustrada para o resto da vida. Sempre senti necessidade de fazer coisas grandiosas em benefício dos oprimidos e dos desgraçados.

Nessa campanha com a D. Eunice, quando percebi que pessoas que trabalhavam (aqui em Brasília), simplesmente roubavam o arroz e o feijão que eram dados para os leprosos, fiquei enojada. Tive até arrependimento de me ter permitido saber até que ponto um ser humano pode degradar-se. Larguei tudo, quase vomitando de honor (veja as cartas).

Mas... senti um aperto no coração quando li suas palavras. Eu devia ter prosseguido. Porque, que sentido pode ter a vida a não ser assim? já que a gente veio parar neste mundo (até agora não entendi para que) e já que, na construção particular da gente, entrou esta carga de sensibilidade, a única solução que nos resta é sair distribuindo amor. Como você faz, como D. Eunice fez. Você, escrevendo belos poemas e anotando o que ou quem é válido na vida. Ela, salvando as criaturas e o mundo deste horror, que é a lepra.

Enquanto isto, eu fico dando uma de empresária metida a besta, sofrendo quando tenho dinheiro no banco e penso nas crianças famintas que não conseguem dormir, de tanta fome e fraqueza, tudo por causa do chamado vil metal.

Ah, Carlos, só fiz me confundir neste planeta terra. Não era nada disso que eu queria. No entanto, estou. Acho que, no fundo, o que pretendia mesmo, era me confundir para não ter tempo de parar, e pensar. E sofrer, consequentemente.

Mas, nesta confusão toda que eu aprontei, ficaram uns intervalos. Este, por exemplo, de entrar num avião com o seu livro, ler esta frase e sair dali seriamente decidida a fazer alguma obra grandiosa.

Talvez, no futuro, alguém possa dizer de mim: Uma mulher de cabelos grisalhos que mereceu seu sono, seus vários sonos, antes tão atormentados.

Vera Um beijo, meu querido,

com ternura.

Brasília, 10 de agosto de 1976.

Carlos, muito querido:

Foi uma loucura.

No sábado à tarde, eu estava em casa deitada, descansando, quando os dois telefones tocaram ao mesmo tempo. Eram jornalistas querendo saber se era verdade que o Juscelino havia morrido.

A notícia é que ele havia morrido num acidente na estrada São Paulo – Rio .

Eu tinha certeza que ele estava na Fazendinha porque eu também iria com ele, Déa, Carlos Murilo e mais alguns amigos. E lá não tem telefone.

Pedi aos jornalistas que não transmitissem a notícia, pois eu tinha certeza que era boato falso. Ele estava na Fazenda e eu ia tentar tirar a limpo o que teria acontecido.

E os telefones tilintavam. Mais jornalistas, Sarah, do Rio, as filhas, uma loucura. Tive a idéia de ligar para um posto de gasolina próximo à estrada que vai à

Fazendinha JK. Atendeu-me um garoto chamado Marquinhos e eu implorei a ele que pegasse um taxi

e fosse à Fazenda saber o que havia acontecido e, depois, me ligasse. E os telefones não paravam.

Quando, vinte e poucos minutos depois, o Marquinhos ligou dizendo que não havia acontecido nada, que encontrou o Presidente assustado e os carros da TV Globo e da TV Manchete lá, caí na maior choradeira e não conseguia parar.

Quando atendia ao telefone com aquela voz de choro e dizia que, graças a Deus, não havia acontecido nada, o jornalista, do outro lado, se assustava: Então, por quê você está chorando tanto?

Eu: De alegria, de alívio. Quanta loucura, meu Deus!

Quando é que este país vai tomar juízo e esses bandidos vão parar de fazer a gente sofrer?

Fui para a Fazenda com um amigo meu e, quando bati à porta, ouvi o Juscelino dizer: Agora é a Vera!

Achei-o muito triste e desapontado. Acho que ele está pressentindo alguma coisa. Boa não deve ser.

Beijos, meu querido. Faça um carinho na Dolores, por mim.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 1º setembro 1976

Vera, querida:

A Última carta de Juscelino para você, e a admirável “resposta” do seu coração a ele, tocaram-me fundo.

Obrigado amiga! Carinhosamente,

Carlos

Brasília, 14 de julho de 1977.

Meu querido:

Acho que você captou as minhas tristezas, hoje. Deve ser assim, ou devia ser assim.

Um radar, ou coisa parecida, que controlasse as emoções das criaturas e informasse às suas irmãs espirituais para que, num gesto de carinho ou numa palavra, as aliviasse.

Não sei se é porque estou sozinha (os meninos estão de férias) ou se é porque ando desanimada mesmo, o certo é que hoje, desses últimos dias de fossa, foi o pior de todos. E nem ao menos posso deitar-me e curtir a dita de uma maneira religiosa, mística. Não. Tenho que ir para o escritório, fingir normalidade, cumprimentar e falar com as pessoas, agüentar chateação, tudo. Não sei se é pior ou melhor, sei que é muito cansativo.

A Alice dizia que quando sentia muita tristeza só tomava líquido, com receio de engasgar e sufocar.

Tenho tentado me tapear bastante, não fiz outra coisa na vida. Mas existem momentos em que a barra pesa e a gente tem que separar o que misturou durante a vida, por esperteza, por defesa.

Acho que desse tipo de conversa você já deve estar exausto. Acho, também, que já me aliviei um pouco.

O seu carinhoso telefonema deu-me injeção de ânimo. Quero que você saiba de urna coisa, a respeito do livro: escrevo somente porque me

faz bem. Durante anos e anos joguei fora o que escrevi. E não tenho o menor arrependimento. O fato de publicar ou não as minhas coisas, não faz a menor diferença. Gostaria, isto sim, de tirar xerox do que escrevo e dar aos amigos que amo. Apenas esses eu gostaria que lessem.

Não conseguiria nunca escrever algo que não sentisse profundamente. E não gosto de estar mostrando a minha emoção aos outros.

Por que você fez aquela comparação entre a mi que sou e a eu que escrevo? Não percebeu que somos exatamente a mesma? Ou até você consegui enganar com as minhas tagarelices?

Vivendo, sou capaz até de me alegrar bastante; na realidade, dou a maior colher de chá à vida. Encanto-me com as coisas mais tolas. Rio com as menores bobagens. Fico feliz, às vezes, de poder ter uma esperança.

Mas, quando escrevo, não consigo me enganar. Só escrevo o que escorre lá de dentro. Os sustos contidos, os desapontamentos, as mágoas todas descem na enxurrada, aliviando-me.

Se a pessoa que lê não tem a mesma sensibilidade, não vai entender. Então, pra quê?

Se tem sensibilidade, vai sofrer. Então, pra quê também? Fico sempre achando que alguma coisa irá me fazer feliz. Por isso me arrisco tanto.

Gostaria de poder conversar com você um tempão, ouvindo e dizendo coisas. Sem pressa, sem receio, despojada.

Acho que a você teria coragem de dizer até as coisas que não ousei pensar alto, ainda. Seria tão bom se vocês se animassem a vir passar uns dias aqui.

Venham. Insisto.

Um beijo, meu querido. Não dê muita importância às minhas mágoas. É um defeito de construção.

Sua amiga, sempre

Rio, 27 de novembro de 1977

Querida Vera:

Ando muito antiepistolar, mas continuo gostando de gente, por isso tenho você

sempre presente e ao lado. Seu conto “A mãe solteira”, um texto lindo. Abraços muitos e de coração, do

Carlos

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Brasília, 24 de outubro de 1977.

Carlos, meu querido:

Pensei em ir abraçá-lo no dia 31. A Dolores desanimou-me, dizendo que vocês irão

fugir para debaixo de uma ponte qualquer. Como não sei nadar, desisti da idéia. Ando cheia de novidades:

O meu filho mais velho (dezessete anos) foi morar em Governador Valadares com os avós matemos. Escreveu-me uma linda carta dizendo que sentia receio de magoar-me, mas... o seu ideal era morar com os avós para ficar próximo de sua mãe que mora em Belo Horizonte. Sofri, entendendo. Quando ele veio para a minha companhia tinha quatro anos e foi o que mais sofreu com a separação dos pais, pois já havia convivido com a mãe e sentia saudades, naturalmente. Agora já se considera um homem e pensa que poderá ajudá-la.

Virá passar as férias aqui. E suas canas são cheias de saudades. Sei que ele deve sofrer a falta dos dois irmãos e a minha. Mas está na idade de se

decifrar e, conseguindo, se definir. Vamos aguardar. Outra novidade: Comprei uma casa linda, enorme, com sótão e piscina, construída

num terreno de 12.000 m2. Já estava alugada ao filho da Maria do Carmo Nabuco e, tão logo ele consiga outra para morar, iremos para lá. Acho que vai ser divertido porque a minha vida tem sido muito chata num apartamento. Trabalho a semana inteira, sábado faço os cabelos e as unhas e, no domingo, folga das empregadas, separo briga dos meninos e desço com os dois cachorrinhos quatro vezes ao dia. Lá na casa esta última tarefa será economizada, pelo menos.

Depois, adoro plantas. A minha infância inteira foi em cima de árvores, estudando ou lendo.

Ontem jantei com o Oscar Niemeyer e falamos muito de você. Com enorme carinho.

Ando com preguiça de viajar. Santa me telefona constantemente para que eu vá ao Rio, mas a falta de entusiasmo é total.

Senti muito o Darcy não ter vindo aqui. Ele estava feliz e tenso com a idéia de rever Brasília. Deu-se a melodia e ele não pôde vir.

Que rolo, hein Carlos?

Quanta burrice, meu Deus! Qualquer dia desses daremos de cara com Adão e Eva, tamanho o retrocesso.

Até breve, meu querido. Forças para agüentar a barra, saúde para suportar a vida e muita ternura para se sentir

compensado.

Grande beijo, Vera

Rio, 06 novembro, 1977.

Vera querida:

Estou passeando por terras distantes e encantadoras em companhia de você, nas páginas do livro que me mandou. E nem sinto a bambeza das pernas, ao acompanhar seus passos lépidos e ouvir suas palavras amigas. Então o rapaz que você criou já não está mais com você? Mas são assim as aves adultas: praticam a arte do vôo. Um dia elas voltam, e tornam a distanciar-se e tornam a voltar. Você modelou um ser humano; é o seu orgulho legítimo. Deu-lhe sentimento de liberdade e preparou-o para isto. Nunca o perderá no coração, fique certa.

Parabéns pela casa nova, que desejo fonte de alegria e paz para a futura moradora. Uma casa cercada de verde: haverá coisa mais linda?

Num beijo, meu agradecimento e todo o bem-querer do Carlos

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Brasília, 07 de dezembro de 1977.

Carlos, querido:

Que bom ter passeado com você, no seu pensamento. Tenho usado constantemente a imaginação. Sonhando momentos bons ao lado de pessoas que amo, por isso tenho estado com você.

Estou calma, agora. Aguardo a próxima travessia do ano com coragem. Atravessarei outro janeiro, outro fevereiro, tudo de novo, com a determinação de sempre. O sentimentalismo não mais me vencerá. Sei das coisas, entendo-as. Já devia estar preparada para os baques todos.

As suas palavras ajudaram-me.

Equilibrei-me. Muitos beijos.

Vera

Rio. 27.02.78

Vera, querida

Sua gentileza com sabor de limão merece uma ode. Que doce raro, fino, diferente dos

outros! Adorei. Adoramos. Agora vou ler os jovens-poetas de Brasília com o espírito inefavelmente disposto a gostar de todos eles: efeitos do limão que deixou de ser ácido para ser sublime!

Beijos do

Carlos

Brasília, 10 de maio de 1978.

Carlos, meu querido:

Tirei uma semana de férias para curtir um pouco a minha casa, que está cada vez mais

linda. Acordar cedo e sair passeando por este imenso gramado, observando as flores, os

pássaros, o cheirinho de grama, de orvalho, é uma verdadeira delícia! Tenho no meu terreno uma nascente, fiz uma represa e formei um pequeno lago, onde

os meus filhos colocaram peixes coloridos. Passo horas ali, pensando na vida e nas criaturas que eu amo. E fico admirada de

como consegui, sozinha, esta proeza: do absolutamente nada que eu possuía, chegar a ter uma casa deste tamanho, com este imenso terreno e nesta localização esplêndida.

Só e Deus. Ninguém me ajudou. Ao contrário: alguns tentaram me atrapalhar. Consegui criar os meninos direitinho, dei-lhes estudo e uma orientação correta para

enfrentar a vida. Plantei várias árvores e ainda escrevi livros.

Acho que justifiquei a minha existência. E que mereço esta paz que hoje estou sentindo.

Até um beija-flor fez um ninho próximo ao meu laguinho. E quando estou molhando as plantas, faço uma chuva fina para que ele possa banhar-se. E ele vem, banha-se e dança para mim, agradecendo.

Vocês adorariam passar uma temporada aqui. Eu mandaria o meu motorista buscá-los e, numa viagem tranqüila, de carro, vocês vinham passeando, sem pressa, parando em Ouro Preto, Paracatu, onde desejassem, descansando bastante no caminho e chegariam aqui tranqüilos.

E eu tiraria outras férias para curtir a companhia de vocês.

Animem-se. Beijos, abraços, saudades e muito amor de

Vera

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 30 de agosto. 1978.

Querida Vera

Viva a casa nova, com cara de casa, gosto de casa, cheiro (sem figueiredice) de casa! Pelas fotos e pelas palavras de sua carta, imagino a delícia moral que é viver num ambiente assim. Com a natureza fazendo esquecer a burrice ou a safanagem das pessoas. Obrigado, por mim e por Dolores, satisfeitos com o seu convite. Um dia, quem sabe? ai estaremos para curtir as delícias virgilianas em sua companhia.

Abraço carinhoso do

Carlos

Rio, 5 de janeiro, 1980. Vera Querida

Beleza de livro, “A Solidão dos Outros”. Sentimento humano, compreensão da vida

de cada um, latejando em cada conto. Você alcançou a expressão límpida que é o ideal da escrita literária. Parabéns! E o abraço agradecido e comovido de

Dolores e do Carlos

Brasília, 21 de março de 1981.

Carlos, meu querido:

Que bom você ter gostado da Solidão dos Outros! Só depois das opiniões sua, do Abgar e do Oswaldino Marques é que eu me sinto

segura.

Eu havia remetido os originais ao Paulo Rónai, através da Cora. A carta que ele me mandou, com aquela letra pequena e linda, veio repleta de elogios:

“Uma de suas qualidades é a arte de construção. Ainda que breves, as histórias são estruturadas, acabam exatamente onde devem”.

Fez restrição, apenas, ao conto “Hospital” que eu alonguei um pouco, conforme sugeriu.

E o Rónai termina, assim, a carta: “Não tenho outras restrições. Tudo o que escreve, em geral, tem um calor humano, uma densa palpitação que anima o estilo, natural, simples, de grande força caracterizadora. Você é, sem dúvida, uma escritora: tem o que dizer e sabe como dizê-lo”.

Fico, realmente, espantada de homens do nível intelectual de vocês me admirarem. Continuo com esperanças de que você e Dolores se animem e venham passar uns dias

comigo. Acabo de comer um delicioso pão-de-queijo. As minhas empregadas são mineiras —

de Montes Claros — daí, os docinhos maravilhosos que vocês tanto elogiam. E, com vocês aqui, acho que elas iriam caprichar.

O carinho e a ternura ficariam por minha conta. Que tal, queridos?

Beijos, abraços e o amor de Vera

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 20 de maio, 1981. Vera, querida:

Atrasadão, como sempre, venho agradecer a você o convite renovado para curtir sua

casa, com pão-de-queijo e outras doces mordomias mineiras. Olhe, Vera, não sou de sair da minha toca de urso itabirano, mas se um dia me der o ânimo viajeiro, fique certa de que irei pousar aí, e sei que será delícia grande estar a seu lado, na certeza de sua amizade fiel.

Obrigado, amiga. O abraço que aí vai é meu e de Dolores, com igual carinho.

Beijos do Carlos

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, l5 de novembro de 1981.

Vera querida, suas palavras carinhosas ao telefone e por telegrama, seus doces

incomparáveis, sua amizade firme e jovial – que bom, tudo isso! O velho casal se ilumina de alegria, por artes do coração de você. E é também de coração pleno que Dolores e eu lhe dizemos:

Obrigado!

Beijos do Carlos

Brasília, 06 de junho de 1982.

Carlos, meu amigo querido:

Imagine-se numa rede dessas, tendo à sua frente flores de todas as cores e tons e

vendo, lá longe, Brasília inteira (sede das indecisões nacionais). Pense em você sentado perto desse laguinho cheio de peixes coloridos e assistindo ao

pôr-do-sol mais belo do mundo. Tudo isso com o fundo musical de pássaros, os mais variados:

bem-te-vi, beija-flor, rolinha, passo-preto e maritacas. Era este o presente que eu gostaria de dar a você nesta data que deveria ser feriado

nacional: seu aniversário. Amo você pelo que nos transmite da beleza interior que possui. Na sua construção

particular entrou uma quantidade muito grande de sensibilidade, de inteligência e, principalmente, generosidade.

Seus poemas e suas crônicas são uma pílula de ânimo que nos mantêm vivos e esperançosos. Exemplo: Aquele artigo sobre a derrota do Brasil na copa do mundo. Nunca vi nada mais animador. E brilhante.

Querido: adoraria ter você e Dolores aqui comigo. Pense seriamente no assunto.

Beijos e abraços carinhosos de Vera

Rio, 21 de junho, 1982,

Vera querida:

De você só me vêm coisas boas, palavras de carinho e doces perfeitos. Que bom ter uma amiga assim, gostar de uma pessoa assim e contar com o seu afeto! Puxa, Vera, a gente ganha ânimo de continuar vivendo no meio surrealista deste Brasil de milicos e sacanas... Obrigado por tudo, amiga!

De Dolores e de mim vai o melhor abraço para você. Carlos

De boca doce de doce-de-leite

Grande Poema — e justo – do Oswaldino Marques.

Brasília, 05 de agosto de 1982.

Carlos, muito querido:

Neste mundo imenso, neste formigueiro de gente, é extraordinário existir alguém como você.

Num mundo onde as pessoas se agridem, se magoam, onde a ambição pessoal e o egoísmo imperam, é reconfortante saber que alguém, do seu cantinho, quieto, vai espalhando amor em forma de poemas, de crônicas, de cartas, de palavras afetuosas, às criaturas que merecem. E vai, corajosamente, criticando e espinafrando os pretensos donos do país, que pensam poder massacrar este nosso pobre povo, já tão exausto de sofrimento.

Os seus gestos de amor são uma benção para aqueles que se sentem sozinhos e desambientados neste mundo tão cheio de asperezas.

As palavras de revolta, se não conseguem machucar os insensíveis, ao menos confortam os que sofrem calados e não podem transmitir o que sentem.

E você, com esta bagagem toda de amor, chegando aos seus oitenta aninhos, heim, meu querido?

A Marly disse-me ao telefone que você está, mesmo, disposto a vir comemorá-los comigo.

Será possível tanta felicidade?

Bem que eu devia ter desconfiado: os pássaros estão excitados, cantando hinos variadíssimos, como se estivessem ensaiando para uma bela festa.

As plantas todas estão florescendo: o jasmim do cabo, as violetas, o manacá, a dama da noite, as margaridas e as rosas.

O pôr-do-sol está cada vez mais lindo, variando os desenhos e o colorido. É claro que tudo isto é para receber vocês.

Eles pressentem. Eles sabem. Vou escrever à Maria Julieta para que ela se anime e venha também. Aí então, será a felicidade total.

Este presentinho veio da Tanzânia, especialmente para você. Beijos, meus queridos.

E o amor de

Vera

Rio, 11 de agosto, 1982.

Vera muito querida:

Só agora, depois do seu telefonema, da sua carta e da esplêndida Rainha Nefertiti

negra na claridade do marfim que você mandou vir da Tanzânia para este seu amigo, é que comecei a realizar a idéia dos meus oitenta anos, a entrar dentro deles, a me sentir um verdadeiro ancião. Que sensação estranha, essa! Felizmente amenizada não só pelo seu incomparável doce de leite como pela quentura de suas palavras, pela certeza de encontrar em você um coração solidário, batendo no mesmo ritmo de fidelidade e ternura.

Obrigado, Vera, mas obrigado mesmo, por tudo que significa para mim esse desabrochar de carinho em torno da calva e alérgica figura de um octogenário. Não posso disfarçar que chegar a essa idade é bastante inconfortável, pois a natureza vai dobrando e reduzindo à titica as energias da mocidade e da madureza, mas evidentemente me consola muito verificar que minha velhice desperta efusões generosas como as de você e, portanto, não se frustrou em indiferença e solidão. Estou me sentindo muito aconchegado. Vera, muito mimado, muito criancinha rósea e rechonchuda, do alto dos meus oitenta aninhos! Meu Deus, você e suas mágicas, hein?

O convite para passar o dia “complicado” na delícia de sua casa (que, pelas fotos, vejo não ser uma casa, e sim o próprio Paraíso em edição moderna) é o que eu posso chamar de mais gostoso, delicado e comovedor. Bem que eu gostara de aceitá-lo, pois não há dúvida que se trata de solução ideal para o caso. Sucede, porém, que Maria Julieta deseja estar a meu lado na ocasião, e não pode ausentar-se do batente em período de aulas (o Centro de Estudios Brasileños. de Buenos Aires, tem mais de mil alunos, e ela é quem dirige esse pequeno mundo). Então, o jeito é o velhinho se mandar para a Argentina e lá passar sossegado o tal de “cumpleaños”.

Gratidão. É a palavra que sai de mim tão espontânea e aberta, no rumo de você e do seu santo lado esquerdo. Gratidão por me sentir amado e pensado tão lindamente por você. E Dolores participa dessa gratidão, solidária comigo.

Um beijo, Vera, e nele toda a alma do Carlos

P.S: O poema, copiado, seguirá depois.

Brasília, 19 de outubro de 1982.

Carlos, meu querido amigo:

Que bom você existir e ser meu amigo.

As criaturas confundem o mundo com um corredor e vão passando, passando, sem ao menos se preocuparem de deixar nele a marca de seus pés.

Quase ninguém pensa, age, assume, opina e luta. Em compensação, você vem vindo pela vida lutando, esbravejando, criticando,

analisando, julgando e espinafrando a burrice dessa cordeirada e de seus pretensos tutores. Como sou orgulhosa de sua amizade!

Ando desanimada com a literatura. Quando fico inspirada, tomo um comprimido e durmo, rápido.

No entanto, se eu não resistir à aventura de escrever outro livro, o impulso maior terá sido a vontade de dedicá-lo a você.

Adoro dar presente antes do aniversário para fazer “mais vista”, como diria a nossa querida Alice.

Tem doce de leite puro e doce de leite de coco. Dê um à Dolores e guarde um para a Maria Julieta.

Tomara que você goste do casaco. Foi feito com muito amor. Beijos, meu querido.

E toda a felicidade do mundo. Drummond, funcionário público Lá vai ele o poeta ferido para o trabalho atravessa a rua espera o bonde dá o sinal como todo o mundo que não é saudade Dá boa tarde escreve ofícios pára no meio que toda a frase

recorda o amor o amor que veio o amor que foi deixando a dor Vossa Excelência Deferimento e a dor no meio como um trator Atende as partes assina o ponto recorda versos no elevador Lá vem ele o poeta ferido com o seu cansaço toma sereno entra na fila da lotação como todo o mundo que não é saudade

Rio, 14 de novembro,1982.

Querida Vera:

Não foi preciso ler “O funcionário público” para verificar que você é poeta. Eu já sabia. Você tem um mundo de gestos e sentimentos que atestam a autenticidade do seu ser poético. Alegria espontânea, identificação com a natureza, coração imenso, culto da amizade. Tudo isso é verso, ritmo, poema em estado vital. E nossa relação o comprova. De você tenho recebido os mais lindos poemas de carinho que me iluminam por dentro.

Obrigado, Vera, pela beleza que você põe em gostar da gente, na tricotagem do bem-querer, na doçaria do pensamento. Fiz 80 anos e me senti garoto manado e feliz. Num beijo, a ternura e a gratidão do

Carlos

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Brasília, 22 de janeiro de 1983.

Carlos, meu querido:

Pior, muito pior, será quando as tristezas aumentarem e você não puder escrever

coisas belas como as que escreveu hoje para homenagear o Garrincha. Quando perdemos a grande escritora Helena Morley, a minha querida Alice, foi de

você que nos veio o consolo. Quando morreu a extraordinária Eunice Weaver, a grande protetora dos leprosos, foi

você quem nos enxugou as lágrimas. Quando perdemos a Copa, só as suas palavras nos aliviaram.

E quando veio aquele golpe ridículo de 64, só através de sua crônica respiramos um pouco de verdade, já que a maioria era só medo, bajulação e mentira.

Olha, Carlos: o trágico, o definitivamente arrasador será quando você parar de escrever as suas crônicas.

Porque aí, teremos que engolir os trancos todos, sem uma palavra sua para nos consolar.

Nós, brasileiros, que usamos um tipo de escafandro para nos isolar das burrices e insensibilidades externas, choraremos tanto e tão sozinhos que nos afogaremos em nossas próprias lágrimas.

A sua crônica de hoje me deixou neste estado de emoção.

Às suas cartas, lindíssimas, não respondi ainda porque ando muito burra para conseguir escrever algo que se aproxime do que elas contêm.

Na verdade fico é constrangida com tantos elogios a mim, e com a sua gratidão.

Ser sua amiga é o meu maior orgulho e privilégio.

Você me dá uma dimensão da vida tal que os meus grandes problemas se transformam em pequenos mosquitos.

Você – a sua figura – me faz recordar uma imensa montanha que vi certa vez, na encosta do mar, parecendo estar segurando as ondas violentas, não as deixando atingir e arrasar os velhos barracos e os pobres pescadores que os habitam.

Uma bela montanha, de costas para o mundo e de frente para a eternidade.

Você, meu querido, é o que de mais belo e sábio Deus colocou na Terra. Por isso o amamos tanto.

Eu, particularmente, te adoro. Num beijo, toda a ternura de

Vera P.S: Beijos carinhosos para a Dolores.

Estou remetendo docinhos de leite. Controle-se,

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 13 de abril, 1983

Vera querida:

Você é uma exagerada, puxa! Quando gosta de uma pessoa, não podendo oferecer-lhe o Paraíso, manda-lhe toneladas inefáveis de doces e frutas, que transferem o Paraíso para a boca... Com isso, a gente fica ameaçado de morrer de frutas e doces, porque é uma tentação ver todos aqueles sabores celestes ao alcance da gula. Minha querida, agora proíbo formalmente você de mandar-me novas oferendas gustativas. Seu maior e melhor presente, aquele que toca mais fundo o meu coração, é gostar de mim, que não mereço.

O beijo carinhoso e agradecido da

Dolores e do Carlos

Brasília, 15 de junho de 1983.

Carlos, meu querido:

Será que a dosagem maior de inteligência e sensibilidade na construção de um ser

humano já o predestina ao sofrimento? Será que o fato de termos sido orientados, na vida, dentro dos padrões morais de

justiça, liberdade e dignidade já nos coloca contra a humanidade? Será pretensão demais pensar que existe neste mundo:

Oxigênio – para que todos o respirem. Terra – para que todos a ocupem e dela retirem os alimentos.

Trabalho – para que cada criatura possa se sentir segura e digna de respeito? Pensar que a maior parte dos brasileiros acorda cedo, sai para o trabalho levando a sua

magra marmita, trabalha o dia todo, volta tarde da noite e já encontra os filhos dormindo – porque as crianças anêmicas e mal alimentadas dormem cedo.

Imaginar estes mesmos homens sem esperanças, sem confiança naqueles que dirigem a nossa Pátria, dá uma tristeza na gente, não é mesmo?

Ando desanimada. É burrice demais para um País só.

Beijos, meu querido. Amo vocês dois, muito.

Vera

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 31 de julho, 1983

Vera, querida:

Achei sua carta desanimada. Que é isso? Eles não conseguirão acabar com o Brasil, por mais besteiras ou malandragens que façam. Tem aí uma gente nova que vai adquirindo consciência das coisas e se habilitando para dar solução aos problemas. E há pessoas como você, de grande bravura e sensibilidade, que já demonstraram seu valor. Eu confio e espero, apesar de tantas decepções.

Ficamos aguardando sua visita, que há de ser um raio de sol nesta velha casa. Dolores melhora. E Maria Julieta está arrumando a trouxa para morar de vez no Rio.

Abraços e beijos carinhosos do

Carlos

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Brasília, 06 de setembro de 1983.

Carlos, meu querido:

É isto mesmo. Não devemos nos desanimar. Lembrei-me de Alice contando-me que, exilada em Paris, para poder dormir pegava

uma faca bem afiada e cortava o pescoço do Getúlio, mentalmente, todas as noites. Só quando a cabeça dele caía era que a dela conseguia desligar e adormecer.

Fiz coisa parecida: matei um bando de gente e implodi o Delfim. Não fosse a morte do nosso Alceu e eu estaria tranqüila.

Mas... quando penso que um homem dessa qualidade desaparece neste nosso país já tão pobre de gente fico com vontade de desanimar de novo.

E agora, Carlos? E você, meu querido?

Acompanhei de longe a sua operação, os primeiros dias e os novos primeiros passos. Fico feliz outra vez, sabendo que você vai “de vento em polpa”.

De agora em diante o Brasil pode virar de cabeça para baixo (é até bom porque passará a chover no Nordeste) e esta cambada de incompetentes pode fazer quebrar o país de vez que não vou me incomodar mais.

Você está bem, os meus filhos estão ótimos, as minhas flores estão lindas, o resto que se dane.

Agora, as novidades: O meu livro A Ciclotímica será reeditado pelo instituto Nacional do Livro e a Livraria Francisco Alves. Estou achando ótimo porque, agora, será distribuído e todo o mundo vai saber que ele existe.

A Maria Fernanda virá aqui no próximo dia 12 de setembro aniversário do Juscelino – apresentar, no Memorial, a peça O Romanceiro da Inconfidência. Considero uma das mais belas obras da Cecília.

Irei brevemente ao Rio, tão logo você esteja em condições de bater um bom papo. Aí, contarei as novidades. Se não existir nenhuma, inventarei, para distraí-lo um pouco.

Beijos, meu querido.

Até breve.

Vera P.S.: Lembranças e beijos para Maria Julieta e Dolores.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Não – às armas nucleares, Não – aos tormentos da guerra.

Minha canção, pelos ares, é um beijo vindo da Terra.

Vera, querida:

O que a gente pode desejar de melhor, em 1984, senão que você continue exatamente

a mesma que foi em 83 e antes, em sua vida toda: carinhosa, valente, criativa, solidária, alegre? E que os bens da vida, em saúde e paz, estejam sempre ao seu lado, como prendas merecidas?

O beijo fraterno deste seu amigo, de Dolores e de Maria Julieta. Carlos

Brasília, 15 de fevereiro de 1984.

Carlos, meu querido:

Desde o início do ano estou pretendendo escrever a você. Amei o seu cartão. Só mesmo você para me dizer tanta coisa bonita. Fico abastecida

para novas trombadas na vida. Continuo trabalhando como uma doida. Administro mil e cem imóveis e, nessa época

de imposto de renda, é uma loucura. Tenho que entregar mastigado, a cada proprietário, a declaração de rendimentos.

O Darcy esteve aqui há duas semanas e falamos muito de você. O Tom Jobim também. Que figura encantadora é o Tom Jobim, hein, Carlos? E

quanta ternura num homem só, meu Deus! Vocês dois ficaram com a metade da sensibilidade do mundo. A outra metade foi distribuída pelo resto da humanidade. Desordenadamente. Daí a confusão.

Sabe de uma coisa? Descobri o porquê de todo esse caos de nossa Pátria.

Sabe o que é? A rampa. Sim, a rampa do Palácio do Planalto. Antigamente era tudo na base da escadaria. E deve haver um mecanismo no

movimento do joelho que controla e alarga a mente, dá liberdade à imaginação e censura o indivíduo, para que se mantenha dentro dos limites da dignidade humana, do pudor e da vergonha na cara.

Os nossos antigos governantes subiam e desciam as escadarias dos palácios. E os aparelhinhos do joelho iam bombardeando os seus cérebros.

Agora... com essa invenção do Oscar, danou-se tudo.

Resultado: estrabismo intelectual, labirintite moral. E nós, que nem temos rampa, a sofrer as conseqüências.

É de lascar o cano, não é, meu querido amigo?

Ando com saudades, de verdade. Um dia desses irei vê-los.

Recebi um cartão de Maria Julieta. Responderei breve.

Beijos para Dolores e você, meus dois amores.

Vera

Rio, 19.3.1984.

Querida Vera:

A Ciclotímica vestida de novo e com o vigor antigo, as boas palavras de você para com esse velho casal – tudo é motivo de alegria e gratidão. Estou de acordo com você: a rampa é uma calamidade brasileira. Mas só a rampa?

Beijo e saudades do

Carlos

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Brasília, 28 de março de 1984.

Carlos, meu querido:

Fiz o maior sucesso ao ser citada na sua coluna. Todo mundo me telefonou: daqui, do Rio, de São Paulo e Belo Horizonte. Você abrandou muito o que eu escrevi. Medo deu ir para a cadeia?

Estávamos falando, ao telefone, sobre a entrevista do Nava.

Olha aí, já apareceu um comentário do Andreazza, todo irritadinho. Aquela de só o andar de baixo da cara do Maluf rir, enquanto os olhos ficam sérios, é genial. Se você convivesse de perto com os políticos, como eu convivo, cada um se achando mais importante que o outro, cada qual sonhando mais alto do que o outro, verificaria o banho de água fria que o Nava lhes deu. O Nava faz de seus oitenta anos uma trincheira e vai mandando fogo.

O nosso Darcy enlouqueceu de vez. Disparou. E quanto mais lhe dão corda, mas ele endoida. Você leu a entrevista dele? Conheço o Darcy desde menina, ele foi colega de pensão dos meus irmãos. Nunca regulou. E quando eu digo isso a ele, ouço gargalhadas sonoras. Conviver diariamente com ele é o mesmo que andar de avião de um motor só, e falhando. Ele disse que é do tipo da família Brant – não fica doido, piora. Não sei onde iremos parar. Quando não estamos sob o comando de incompetentes e burros, estamos subordinados aos inteligentes e loucos.

Só dando uma de anti-Herodes: mandando matar homens e mulheres de mais de trinta e três anos. Todo mundo. Deixar os jovens para ver se ainda há tempo de salvá-los. Deixá-los construir um mundo menos péssimo. A nossa geração foi um fracasso. Um terrível fracasso.

Vi um filme, uma vez, em que a história do assassino ficou em segundo plano para dar ênfase à história da vida de cada jurado. O jurado que estava brigando com a mulher mandou-o para a cadeia, naturalmente. O que perdeu o seu cachorro atropelado, dias antes,

idem. A mulher, cujo marido era veado, idem. Só aqueles que estavam com a vida sem grandes problemas o absolveram. É claro que o cara foi para a cadeia, a maioria está na pior.

Fico pensando: a gente tem que mergulhar na vida dessas criaturas para saber o que está se passando e porque elas odeiam tanto a nós, a humanidade. Se ninguém tomar estas providências a tempo vai ser um estouro só. O mundo, breve, vai explodir.

O chefão da Rússia está com falta de ar. Já imaginou o ódio que ele deve ter de quem respira?

O Reagan, vaidoso do jeito que é, está todo enrugado e com câncer de pele. Já imaginou o ódio que deve ter de quem tem a pele lisa e saudável?

Gostei do artigo sobre o meu livro, que você me mandou. O importante, agora, é que ele será lido, no mínimo, pelas crianças nas bibliotecas. E

o que me interessa. A minha mensagem é para essa gente que vem vindo aí e que não deve se amargurar com a insensibilidade dos que a cercam. Amar só a quem é amável. Ficar descomprometido com esse sentimento de ser obrigado a amar a mãe, pai, avó, essas tolices. Escolher, na vida, as pessoas que são válidas. E tentar sair da infância inteira, sem ser podada e insensibilizada.

Faço com os meus filhos exatamente o contrário do que fizeram comigo. E está dando certo.

Pois é, meu querido.

Acabei escrevendo uma longa carta. Gosto de dizer coisas a você. Beijos para a minha querida Dolores.

Diga à Maria Julieta que estou fazendo a blusa que lhe prometi. Breve mandarei.

Beijos, carinhos, saudades.

Vera

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Brasília, 28 de setembro de 1984.

Carlos, meu querido:

Ando com tantas saudades de você! Tantas! Mas a vida está meio madrasta para as

minhas bandas: amigos doentes, amigos morrendo, um sufoco! Acho que a gente passa uma parte da vida, até os quarenta, conhecendo e

cumprimentando as pessoas. A partir daí, começam as despedidas e não param mais. O seu artigo de hoje está tão bonito. E eu ando tão emotiva que chorei. Aquilo é o

Nava, é? Que figura humana foi este amigo, hein, Carlos? Mais uma triste e magoada despedida.

Mas... chega de tristeza.

Outro dia a Ignez perguntou-me porque eu não escrevia um livro sobre o momento político. Respondi-lhe que os críticos literários iriam dizer que eu estava plagiando o Kafka.

Como vão as minhas amigas Dolores e Maria Julieta? Beijos para elas. Na semana passada tomei um susto lascado. O Celso, meu filho, teve uma apendicite

aguda e fomos para o hospital, para que ele fosse operado. Por um triz não supurou. Graças a Deus!

Passei uma noite de cão. Levei o livro da Cora Coralina para me distrair, mas cadê que eu entendia uma só palavra? A minha cabeça estava a mil. De 23 e 30 da noite às 2 horas da manhã senti a carga do sofrimento e da solidão naquele quarto do hospital. Meu Deus, como a gente é só! Como todo o mundo é só!

E tome barulho de maca, de gemidos no corredor, mais sofrimento passando e trombando no sofrimento da gente.

No dia seguinte, quando o Celsinho já estava fora de perigo, entendi o porquê das declarações amáveis do Figueiredo, ao se aliviar das dores na coluna, sobre a queda do Aureliano: eu também estava de bem com a vida, achando o Figueiredo muito bonzinho e simpático.

Agora estou preocupada com o Ceschiatti. E assim: melhora um, piora o outro. Ele será operado do pulmão, brevemente, e eu irei até aí.

Arre, que carta triste! Mas vai assim mesmo porque não tenho nada de bom para contar e, se ficar esperando as alegrias, me arrisco a ficar mais uma longa temporada sem dar notícias e saber notícias de você.

Beijos, saudade, e muita ternura.

Vera

Rio, 13.11.84

Vera querida:

Recebi da Editora a 3ª edição de “A Solidão dos Outros”. Que bom ver o seu livro

ganhando espaço e respeito em nossas letras, pelo muito que contém de humano e de aguda percepção da vida!

Abraços, beijos do Drummond

Rio, 4 de junho, 1985

Vera querida:

Que gostoso o seu texto sobre a infância de Brasília! Adorei. E admiro cada vez mais sua arte de dizer as coisas com singeleza, graça e enorme carga de sensibilidade.

Abraços carinhosos do Carlos

Brasília, 13 de junho de 1985.

Carlos, meu querido:

Estive ontem à tarde no Senado assistindo a homenagem ao nosso Capanema. Senti

saudade de tanta coisa! O mundo está, mesmo, ficando muito triste. Ou serei eu? O senador Amaral Peixoto fez um discurso belo e emocionante, O seu nome foi citado

várias vezes, em todos os pronunciamentos. O do Abgar também.

Pedi ao Fernando Henrique Cardoso que remetesse a você todos os pronunciamentos, o que fará com prazer, pelo fato de admirá-lo muito. O que não é nada original. Todo mundo fica com os olhos brilhando quando falo de você. E eu fico toda orgulhosa.

Recebi o seu livro. Amei. Mas ainda acho que existe uma coisa mais bonita do que os seus poemas: você. A sua competência de passar pela vida com tanta generosidade. Os seus poemas dedicados aos amigos queridos, tão carregados de emoção e saudade. A sua capacidade de selecionar as pessoas que tentam (ou tentaram) descobrir e transmitir a beleza e dignidade da vida contribuindo, cada um, com o seu exemplo de altivez e grandeza, serenidade no julgamento dos outros e rigidez no julgamento dos seus próprios atos.

Por isso amo tanto você.

Novidades: O meu livro A Ciclotímica já foi editado na Inglaterra sob o título: A Lump In The Throat. Está bonito! Tão logo chegue às minhas mãos, remeterei o seu exemplar.

Beijos para você e minha querida Dolores.

Com ternura,

Vera

Rio, 27 de junho, 1985

Querida Vera

O Senador Fernando Henrique Cardoso (com quem aliás simpatizo intelectual e politicamente) deve estar muito ocupado com a sua candidatura a Prefeito de São Paulo, pois até agora não me mandou os textos dos discursos pronunciados no Senado em homenagem ao Capanema, conforme prometera a você. De qualquer modo, a sua carta já me deu prazer, pois mostrou que o meu velho e querido amigo não ficou esquecido de todo. Digo de todo porque o Ministério da Educação, onde ele labutou 11 anos e fez tudo aquilo que ainda hoje comprova a sua alta qualidade de homem público, nem sequer se pronunciou por ocasião do seu falecimento. Incrível, não?

Que bom saber que a Ciclotímica chegou à Inglaterra e vai comover os leitores de lá! Parabém pela merecida vitória.

Beijo carinhoso do Carlos

Vera, minha querida, muito obrigada pela linda lembrança. Gostei muito. Você é um

encanto, um amor. Um beijo e o coração da

Dolores

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Brasília-D.F., 23 de agosto de 1985.

Carlos, meu querido:

As saudades são muitas, mesmo.

Mas a minta vida andou tão embolada que cheguei a desanimar. O Leonardo, meu filho mais novo, depois daquela fase de depressão que contei a você

pelo telefone, entrou numa de capotar carro. Conseguiu capotar um Alfa-Romeo, que é o carro mais difícil de virar.

Agora, graças a Deus, ele está trabalhando na Transbrasil, de 6 da manhã às 2 da tarde e me deu um pouco de sossego.

Eu é que não durmo mais, acordo às 5 horas, assustada, com receio de que ele perca a hora.

O mais velho, aquele que foi embora aos 17 anos, e voltou, e foi de novo, já está de volta outra vez. Vai se casar em setembro, com uma moça de quem já tem um filhinho, uma graça. Já sou avó, portanto.

Enquanto isso, fico trabalhando feito uma boba, acho que para não ter muito tempo para pensar.

Estou escrevendo o meu livro de memórias, acho que vai ficar bom. Tão logo esteja pronto, remeterei a você uma cópia para saber sua opinião.

Dolores vai bem? Beijos para ela. E você, como está de saúde?

A Sarita virá na próxima semana, passar uns dias aqui. Quando ela voltar, levará um presentinho meu para você.

Saudades, muito carinho e beijos.

Vera

Rio, 9 de setembro, 1985.

Querida Vera.

Das notícias que você me mandou em sua carta, destaco uma: o livro de memórias.

Fico todo assanhado na expectativa de ler, em prosa cativante, as muitas coisas alegres ou tristes, mas sempre de interesse, que você tem a contar, como observadora alerta da vida.

Vá escrevendo e não pare, pois quando a gente começa a remexer no passado descobre como ele é vivo e rico de surpresas.

Dolores lhe manda um abraço apertado. E eu, um beijo carinhoso, Carlos

Ótima a evocação de JK.

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Brasília, 15 de outubro de 1985.

Meu querido:

Brasília está lindíssima, nesta época. Até a poucos dias, antes das chuvas, ela era triste, toda bege e cinza.

Bege, da grama seca, esturricada, do sol e da secura daqui. Cinza, dos prédios de concreto aparente do Oscar, e das largas avenidas.

Dentre as árvores antigas – do cerrado, surge o verde das folhas das árvores novas plantadas no início de Brasília.

Árvores e mais árvores foram plantadas, naquela época, ao lado daquelas retorcidas e sofridas, tentando compensá-las dos séculos de solidão.

Na primeira chuva, como num milagre, o gramado se transforma num imenso tapete verde.

E os vidros dos prédios, limpos pelas chuvas, refletem o azul do céu, ou a mancha vermelho-sangue que o pôr-do-sol deixa no seu rastro, ao se despedir da tarde.

Da minha chácara vejo o sol descer lentamente, pintando a cidade de cores variadas. Depois, as luzes das casas e das mas vão se acendendo e me emociono com a

quantidade de prédios, de luzes, de gente que povoa esta cidade que nasceu há, apenas, vinte e

cinco anos e que eu vi nascer.

Você precisa conhecer Brasília, Carlos. É extraordinária. E diferente de tudo que existe no mundo. E tudo muito farto: céu demais, verde excessivo, avenidas imensas e largas, prédios belíssimos, claridade de doer a vista, clima excelente.

E, da minha varanda, deitado na rede, você verá tudo isto. E com a vantagem de ainda sentir o cheirinho gostoso do jasmim do cabo e de manacá, que estão floridos.

Beijos, meu querido.

Mostre esta carta à minha querida Dolores para que ela também se anime e receba o meu beijo.

Vera

Rio, dezembro. 1985

Que me acode à cabeça e ao coração. neste fim de ano, entre alegria e dor?

Que sonho, que mistério, que oração?

– Amor

Vera querida, o que nesta casa desejamos para você é, no ano novo, toda felicidade que seu imenso

coração merece. Beijos de

Carlos e Dolores

_____________________________________________________________________ Brasília. 15 de janeiro de 1986.

Meu muito querido Carlos:

Veja que lindo o prefácio do Abgar. Fiquei radiante. Sabe que estou começando a

achar que escrevo bem, mesmo? Um pouco por exclusão, pois não tenho encontrado livros muito bons para ler. Outro tanto porque pessoas como você e o Abgar me elogiam.

Aceitei algumas sugestões do Abgar e modifiquei poucas frases, que ficaram bem melhores. De um modo geral, ele deixou as minhas loucuras todas sem, no entanto, deixar de fazer comentários divertidíssimos ao pé de algumas páginas. E uma figura humana extraordinárias e muito competente.

Obrigada pelo seu livro. Já li e achei interessantíssimo. Adorei você ter se lembrado do Rosário Fusco, uma figura excelente de quem ninguém fala nada, como se não houvesse existido.

Ando profundamente chateada com a doença do Castelinho. A coisa é, realmente, séria. Falei com ele ontem, ao telefone. Achei-o bastante deprimido. Não sei por quanto tempo ele ficará em Houston, fazendo aplicações. É deprimente imaginar um homem com a inteligência e a lucidez do Castello ter que enfrentar uma situação desse gênero.

Até logo, meu querido. Hoje eu não estou para bem-te-vi. E não é justo entristecer você.

Beijos para você e Dolores.

Todo o amor de Vera

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Rio, 14 de maio, 1986

Vera, querida

Estou me sentindo o elegante mais requintado deste inverno, graças ao seu adorável presente. Espero a qualquer momento sair no Zózimo ou no Swan, devidamente equipado para o inverno elegante.

Muito agradecido mesmo, querida Vera. O coração e as saudades do

Carlos

Brasília, 28 de maio de 1986.

Carlos, sempre querido:

Que bom você ter gostado do pulôver.

E assim: quando a barra pesa, começo a fazer tricô para descarregar os nervos. Nas enchentes, a cada cena daquelas que apareciam na televisão de boi morto

nadando, crianças aos prantos e em pânico, casas despencando, eu pegava as agulhas e a lá e, se não parasse a tempo, acabaria fazendo uma cortina inteira.

Na seca do Nordeste, naquela desgraceira toda, tome tricô, crochê, mais blusa. O seu pulôver, no entanto, foi feito num momento de muita ternura, com carinho e

capricho. É como se estivesse tecendo um abraço afetuoso, para aquecer um peito amigo e

querido que abriga o coração mais generoso do mundo. E o mais amado. Ganhei um belíssimo quadro do Scliar. Possuo amigos fantásticos e que eu adoro.

Nem sei se mereço tanto. Gostaria de ser mágica e, num sacudir de mãos, trazer você e Dolores para a minha

chácara, convocar os pássaros mais sonoros para cantar uma canção bem bonita e encharcá-los de carinho, diminuindo as saudades.

Beijos, meus queridos.

E o amor certo, seguro e cada vez maior de

Vera

Rio, 12 de setembro, 1986

Vera Querida

A segunda leitura de Ensolarando Sombras reforçou a impressão da primeira e me fez amar ainda mais o seu livro. A palavra impressa deu maior relevo e cor aos traços. E senti plenamente a formidável força vital que se irradia de você: nos bons e nos piores momentos, ela gera confiança, otimismo, alegria de viver.

Obrigado, amiga, pelas boas coisas que diz de mim. Eu mereço? Tenho dúvidas, e sei como o seu coração está encharcado de ternura e generosidade. Beijos e carinho de Dolores e do

Carlos

Rio, 5 de novembro, 1986

Querida Vera

Este velhinho gripado lamenta não poder ir ao lançamento do seu livro. Mas de coração estarei presente, com toda a ternura.

Merci pelo lindíssimo presente de aniversário. Não mereço tanto! Mas é uma glória saber que tenho em você a amiga ideal.

Beijos do Carlos

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Brasília, 08 de novembro de 1986.

Carlos, meu querido:

Obrigada pelas lindas flores e as palavras carinhosas de sua carta no dia do lançamento do meu livro.

Foi uma noite lindíssima. Não esperava rever tantos e tão queridos amigos. Estiveram lá, dentre muitos outros: Celso Furtado e sua irmã Antonieta, Tom Jobim e

Aninha (ficaram de nove à meia-noite), Scliar, Ceschiatti, Moacir Werneck, Fernando Sabino e Lyginha, Ana Maria Niemeyer, Maria Capanema, Marly de Oliveira, Evaristo de Moraes Filho, Maria Fernanda, Stela Ruy Barbosa, Yedda Lúcia Pitanguy, Victória Bocayuva, Tônia Carrero, Cora Rónai, Tizuka Yamasaki, Maria Lúcia Godoy, Miguel Proença, Roberto D’Ávila, Glorinha Sued, Gilda Nunes Leal (viúva do Victor), Elza Queiroga, Santa, Dorinha e Yole, sei lá mais quem. Um bando de amigos, mais de cem pessoas. Só citei os que você conhece. Estou em Brasília há mais de vinte e cinco anos e não esperava que os meus amigos fossem tão leais a ponto de saírem de casa neste calorão do Rio para me ver, abraçar e prestigiar.

Senti a Maria Julieta não ter podido ir. Senti, mais ainda, ela ter passado mal, já estando pronta para sair. Que doença bandida, hein Carlos?

Ela mandou-me flores, muitas flores e um montão de palavras carinhosas.

Gostaria de ter contado tudo isto e mais uma porção de coisas a vocês, pessoalmente, mas o trabalho me obrigou a voltar para Brasília no dia seguinte.

Fica assim: escreverei outro livro e, quando for ao Rio fazer o lançamento, vocês três irão. Combinado?

Três beijos: para você, Dolores e a minha querida Maria Julieta. Vera

Brasília, 21 de novembro de 1986.

Carlos, meu querido:

Certa vez, em casa do Hermes Lima, havia um senhor muito elegante e mais três amigos numa roda e eu falava, falava, parecia uma louca.

De repente o Hermes Lima me interrompeu e disse ao tal senhor elegante: não se assuste não, espere um pouco. Daqui a instantes ele dá uma paradinha, fica lúcida e diz, com calma, coisas inteligentíssimas e com nexo.

Mas ontem, conversando com a Maria Julieta ao telefone, agradecendo-lhe a belíssima crônica que escreveu na sua coluna do Globo sobre o meu livro, a linha telefônica caiu antes que eu voltasse ao normal.

Achei a Maria Julieta meio triste e resolvi distraí-la. Dizia mais ou menos o seguinte: sabe que eu descobri a origem de nossa infelicidade?

E ela: o quê? Foi exatamente o que disse: descobri. Foi a nossa alimentação na infância. Davam-nos

mingau de fubá, angu com couve e feijão, inhame com melado e queijo, canjica com amendoim e, achando pouco, ainda nos faziam engolir, durante o almoço, uma colher de óleo de fígado de bacalhau.

Esta deve ser a fórmula para construir gigante. E a gente ia ficando forte, ficando forte e com aspirações de conquistar o mundo.

E a tragédia começava: meninas endiabradas, moças sonhadoras e extravagantes, paixões alucinadas, impulsos, trombadas na vida, decepções do tamanho do mundo, nova paixão, novo tombo.

E o sangue forte, caudaloso, correndo nas veias e a gente se lascando. A Maria Julieta ria, com a loucurada toda. E dizia: e se não nos tivessem alimentado

tanto, seríamos felizes? E eu: claro, sem dúvida. Seríamos raquíticas, sem ânimo para nada e sempre com

sono. Talvez, hoje, fôssemos duas freiras pálidas na calmaria de um convento, sentadas num banco do jardim tomando sol e falando de coisas leves, só aspirando morrer para ganhar o Céu.

Do outro lado da linha eu ouvia, feliz, as gargalhadas da minha amiga. De repente entrou uma voz masculina: – É da sede do IBDF?

– Não senhor, aqui é da sede das indecisões nacionais. – De onde, minha senhora? – De Brasília, é claro. Ao fundo, a risada da minha querida amiga que foi sumindo, sumindo, até que a linha

caiu sem me dar tempo de ficar lúcida, calma e dizer coisas inteligentes e com nexo, como dizia o meu amigo Hermes.

Beijos meu querido. E muitas saudades.

Vera

Se você leu todas as cartas, entendeu porque eu as publiquei.

Se você conheceu o Carlos, confirmou que ele era uma criatura afetuosa, altiva, generosa, amiga e solidária. Se você sentia tristeza ao sabê-lo quieto, no seu

cantinho, tranqüilizou-se ao saber que ele possuía, além da mulher, da filha e dos netos, amigos e amigas que o encharcavam de carinho.

Achei que seria muito egoísmo guardar estas cartas só para mim. As dele, naturalmente. As minhas eu só coloquei para dar seqüência e sentido à

correspondência. Falávamos muito ao telefone. Algumas vezes, o assunto da carta era tratado no papo telefônico e, na carta seguinte, a conversa já era outra.

Vera