Carmem Izabel Rodrigues

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1 Economia informal no bairro do Jurunas, Belém-PA 1 Carmem Izabel Rodrigues (UFPA-PA) Marcos Trindade Borges (UFPA-PA) Resumo: Se o termo economia informal nasceu na década de 1970, em referência direta ao contexto africano (OIT, 1972; HART, 1973), os estudos, pesquisas e projetos de desenvolvimento das últimas décadas provaram que ele se aplica aos mais diversos contextos econômicos e políticos, históricos e etnográficos, atravessando das pequenas organizações locais à economia mundial globalizada. Na Amazônia, o termo economia informal é hoje amplamente conhecido e utilizado, da mídia aos setores administrativos, legislativos e judiciais do estado e prefeituras locais. Belém, capital do Estado do Pará, é uma cidade de origem colonial, com quase quatrocentos anos de existência, cuja região metropolitana inclui hoje cerca de dois milhões de habitantes, dos quais, segundo estatísticas variadas, mais da metade vive de rendimentos derivados das atividades no setor informal da economia. O bairro do Jurunas, formado em grande parte por migrantes ribeirinhos a partir da expansão da cidade no sentido paralelo ao rio Guamá, caracteriza-se pela forte presença da informalidade nas formas de ocupação do espaço de moradia, na autoconstrução, no transporte coletivo e no comércio de rua, como atividades econômicas desenvolvidas por uma parcela significativa de seus moradores. Palavras-chave: economia informal, comércio de rua, Jurunas Introdução Em um artigo intitulado A economia informal metropolitana, Melo e Vasconcelos (2008), utilizando dados do IBGE e ECINF para comparar a evolução do número de agentes no setor informal da economia brasileira, de 1997 a 2003, por Região Metropolitana, encontraram um dado surpreendente em relação à cidade de Belém (PA): o crescimento do setor informal, no período analisado, foi de 12,25 %, enquanto a média nacional variou de um acréscimo de 3,59% em Vitória a um decréscimo de 2,40% em Fortaleza 2 . 1 Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 2 e 5 de julho de 2012, em São Paulo SP, Brasil. GT 02 Abordagens etnográficas de mercados informais, ilegalismos, comércios ilegais e práticas de controle. 2 Cif. Melo e Vasconcelos: A economia informal metropolitana: um estudo baseado na ECINF/IBGE.UFF/Economia, TD 231, março/2008.

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Carmem Izabel Rodrigues

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    Economia informal no bairro do Jurunas, Belm-PA1

    Carmem Izabel Rodrigues (UFPA-PA)

    Marcos Trindade Borges (UFPA-PA)

    Resumo: Se o termo economia informal nasceu na dcada de 1970, em referncia direta

    ao contexto africano (OIT, 1972; HART, 1973), os estudos, pesquisas e projetos de

    desenvolvimento das ltimas dcadas provaram que ele se aplica aos mais diversos

    contextos econmicos e polticos, histricos e etnogrficos, atravessando das pequenas

    organizaes locais economia mundial globalizada. Na Amaznia, o termo economia

    informal hoje amplamente conhecido e utilizado, da mdia aos setores administrativos,

    legislativos e judiciais do estado e prefeituras locais. Belm, capital do Estado do Par,

    uma cidade de origem colonial, com quase quatrocentos anos de existncia, cuja

    regio metropolitana inclui hoje cerca de dois milhes de habitantes, dos quais, segundo

    estatsticas variadas, mais da metade vive de rendimentos derivados das atividades no

    setor informal da economia. O bairro do Jurunas, formado em grande parte por

    migrantes ribeirinhos a partir da expanso da cidade no sentido paralelo ao rio Guam,

    caracteriza-se pela forte presena da informalidade nas formas de ocupao do espao

    de moradia, na autoconstruo, no transporte coletivo e no comrcio de rua, como

    atividades econmicas desenvolvidas por uma parcela significativa de seus moradores.

    Palavras-chave: economia informal, comrcio de rua, Jurunas

    Introduo

    Em um artigo intitulado A economia informal metropolitana, Melo e

    Vasconcelos (2008), utilizando dados do IBGE e ECINF para comparar a evoluo do

    nmero de agentes no setor informal da economia brasileira, de 1997 a 2003, por

    Regio Metropolitana, encontraram um dado surpreendente em relao cidade de

    Belm (PA): o crescimento do setor informal, no perodo analisado, foi de 12,25 %,

    enquanto a mdia nacional variou de um acrscimo de 3,59% em Vitria a um

    decrscimo de 2,40% em Fortaleza2.

    1 Trabalho apresentado na 28 Reunio Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 2 e 5 de julho

    de 2012, em So Paulo SP, Brasil. GT 02 Abordagens etnogrficas de mercados informais, ilegalismos, comrcios ilegais e prticas de controle. 2 Cif. Melo e Vasconcelos: A economia informal metropolitana: um estudo baseado na ECINF/IBGE.UFF/Economia, TD 231, maro/2008.

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    Se em nmeros absolutos o maior crescimento do setor informal foi registrado

    na cidade de So Paulo (de cerca de um milho a um milho e duzentos mil

    trabalhadores) e o maior decrscimo absoluto na cidade do Rio de Janeiro (de setecentos

    e vinte mil a seiscentos e setenta mil trabalhadores), o percentual relativo cidade de

    Belm impressiona. Como explicar um dado to atpico, cuja disparidade desafiante nos

    convida a refletir sobre as incertezas dos dados e da realidade?

    A primeira resposta vincula diretamente esses dados ao movimento migratrio

    campo-cidade, que se intensificou no sculo XX, especialmente na segunda metade do

    sculo: o xodo rural, ao mesmo tempo causa e produto dos processos de urbanizao e

    periferizao das cidades, da aglomerao no-planejada, em ocupaes irregulares, das

    populaes migrantes. Dados estatsticos corroboram esse processo de exploso

    demogrfica, quando as populaes rurais e ribeirinhas migraram para as cidades

    grandes e mdias em seu prprio estado e regio, ou para outros estados e regies do

    pas, em busca de empregos e servios essenciais a um novo modo de vida urbano3.

    Anlises econmicas, sociolgicas e demogrficas confirmam essa tendncia,

    vinculada a processos de modernizao que atingiram os pases emergentes, na

    passagem do sculo XIX para o XX, e em contexto de globalizao crescente, que

    envolve as cidades em todos os pases do mundo atual. Relatos impressionantes

    descrevem como as formas, os usos e funes dos diversos espaos urbanos tm sido

    modificados, acrescidos, alterados e deteriorados, a partir da presena macia desses

    migrantes, redesenhando o espao e as funes da cidade.

    Este trabalho busca entender processos cotidianos de produo da vida de

    migrantes ribeirinhos que moram no bairro do Jurunas, em Belm, inseridos no

    chamado setor informal da economia, com um foco nas interaes que eles estabelecem,

    a partir do bairro e de suas redes de relaes, para obteno de trabalho e renda.

    O mercado informal em Belm

    3 Seguindo Milton Santos (2003), Melo e Vasconcelos afirmam que essa exploso demogrfica nas metrpoles resulta tanto da expulso da mo-de-obra rural em consequncia do latifndio como das

    modificaes rurais-urbanas introduzidas pela tecnologia moderna no campo, que pressionou os agricultores a abandonarem o meio rural e buscarem as cidades (2008, p.4).

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    Na Amaznia, o termo economia informal hoje amplamente conhecido e

    utilizado, da mdia aos setores administrativos, legislativos e judiciais do estado e

    prefeituras locais. Belm, capital do Estado do Par, uma cidade de origem colonial,

    com quase quatrocentos anos de existncia, cuja regio metropolitana inclui hoje cerca

    de dois milhes de habitantes4, dos quais, segundo estatsticas variadas, mais da metade

    vive de rendimentos derivados das atividades no setor informal da economia.

    O mercado informal em Belm absorve uma parcela significativa da populao

    economicamente ativa5. As estatsticas oficiais variam, mas se aproximam e podem

    ultrapassar os 50 %. Esses trabalhadores se localizam nas principais vias e grandes

    corredores de circulao da cidade, assim como nas praas, feiras e mercados6.

    A informalidade das atividades econmicas e comerciais em Belm, atualmente

    to notvel, chega a ser naturalizada pelos moradores da cidade, enquanto na mdia

    local a cidade representada como a repblica dos camels (Salles, 2004; apud Pires,

    2008, p. 185), uma cidade tomada, sitiada, invadida pelos ambulantes 7. Como

    vendedores de produtos ou prestadores de servios, em barracas, bancas ou tabuleiros,

    em bicicletas, vans, carros ou carrinhos de mo, os ambulantes dominam a cena

    cotidiana, nos portos, nas feiras, nas ruas e caladas do centro da cidade e at nos

    bairros mais distantes, da Regio Metropolitana de Belm.

    A anlise de Mrcio Oliveira (2009) sobre camels e ambulantes 8 no centro

    comercial de Manaus, confirma que as atividades informais dominam o espao central

    da cidade, em um contexto de integrao precria e contraditria desses sujeitos.

    A pesquisa realizada por Valber Pires (2008, 2010) sobre os camels o Centro

    Comercial de Belm 9, baseada na teoria durkheimiana da integrao social, enfatiza o

    4 A regio metropolitana de Belm inclui os municpios de Belm (1 milho hab), Ananindeua (500.000),

    Marituba, Benevides e Santa Brbara. 5 Segundo dados oficiais, cerca de 80% da populao economicamente ativa da Regio Metropolitana est

    localizada nos setores de comrcio e servios, enquanto 19% esto na indstria e construo civil e 1% na

    agricultura (Pires, 2008, p. 150). 6 Entre os estudos realizados sobre mercado informal e trabalhadores informais na regio metropolitana

    de Belm, utilizamos os de Ana Laura Sena sobre o comrcio ambulante de produtos alimentcios (1998,

    2002), o de Valber Pires sobre os camels no centro comercial (2008, 2010). Utilizamos tambm a

    pesquisa de Mrcio Oliveira (2009) sobre os camels de Manaus. 7 Sobre os discursos e representaes da mdia sobre os camels de Belm, ver Almeida (2008, Cap. 8). 8 Nos trabalhos aqui citados, Pires (2008, p. 236) e Oliveira (2009, p. 86) fazem uma distino entre

    camels (trabalhadores informais que se estabelecem de forma fixa, em barracas e bancas) e ambulantes

    (trabalhadores itinerantes que circulam pelo entorno das bancas registradas, oferecendo produtos e servios, como gua, frutas, lanches e almoo).

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    avano da informalidade em Belm como fruto de um processo mais amplo, de

    desintegrao do prprio mercado local (2008, p.19). Segundo o autor a situao dos

    camels de Belm pode ser analisada sociologicamente luz do conceito de

    informalidade precria, pois a ocupao que desempenham desprotegida e insegura,

    sua renda restrita e varivel, suas condies de trabalho so degradadas e a eficincia

    econmica de sua atividade reduzida e limitada (2008, p.242).

    Espalhados por reas comerciais estratgicas da cidade, vendendo dentre

    outros, bugigangas e produtos piratas, em barracas feitas de metal e cobertas

    de lona, instaladas nas caladas ou no meio da rua, ou com produtos espalhados pelo cho das caladas, situao cada vez mais comum, os

    camels desfrutam, em sua maioria, de uma situao material pouco

    confortvel. Um primeira aproximao permite afirmar que eles enfrentam

    resistncias tanto da sociedade em geral quanto do poder pblico e empresarial (2008, p. 22).

    O autor parte de trs perguntas: o que explica o crescimento da atividade dos

    camels em Belm? Como entender essa atividade no Centro Comercial de Belm na

    dinmica do mercado de trabalho local? Quais os reflexos sociais presentes (na) e

    decorrentes (da) expanso dessa atividade? (2008, p. 25).

    Os dados obtidos na pesquisa apontam para um perfil de trabalhadores informais

    que no diferente de outras cidades brasileiras: os camels do Centro Comercial de

    Belm so jovens que nunca tiveram emprego com carteira assinada, desempregados

    que foram dispensados do mercado de trabalho formal, moradores dos subrbios,

    pobres, etc (p. 244). Muitos deles j trabalharam com carteira assinada, muitos so

    muito jovens e pela baixa qualificao nunca conseguiram um emprego formal; muitos

    gostariam de trabalhar com carteira assinada (p. 243).

    Apesar de espalhados por vrios pontos da Regio Metropolitana, os camels

    concentram-se em trs espaos principais da cidade: do entorno do Shopping

    Castanheira ao Entroncamento; no entorno do Terminal Rodovirio e do Mercado de

    So Brs; no Centro Comercial de Belm (Pires, 2008, p. 235).

    9 Segundo dados estimativos, os trabalhadores em atividades informais cresceram de 205 mil em 1997

    para 360 mil em 2004, para 400 mil em 2008 (Pires, 2008, p. 22) e podem ter ultrapassado os 500 mil.

    Trinta mil camels esto espalhados pela Regio Metropolitana de Belm, dos quais cerca de dez mil esto concentrados no Centro Comercial de Belm (Id., ibid).

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    O mapa abaixo indica as principais reas de concentrao das atividades dos

    vendedores informais em Belm, partindo do ponto inicial da cidade at a principal via

    de entrada e sada da cidade: o Centro Comercial de Belm; a Praa da Repblica; a

    Praa do Operrio e o entorno do terminal Rodovirio, em So Brs; o entorno do

    Shopping Castanheira, no Entroncamento. O mapa aponta tambm a ligao entre o

    centro comercial de Belm e o entorno do Porto do Aa, principal local de

    concentrao das atividades informais no bairro do Jurunas:

    Em sua maioria, os camels e ambulantes que ocupam diariamente o centro

    comercial de Belm moram em bairros perifricos mais distantes ou mais prximos. Um

    desses bairros Jurunas, formado em grande proporo por migrantes ribeirinhos, a

    partir da expanso da cidade no sentido paralelo ao rio Guam. Sua localizao

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    geogrfica, beira do rio, influenciou fortemente a dinmica migratria para o bairro10

    ,

    que se estabeleceu como uma extenso do bairro da Cidade Velha, o mais antigo da

    cidade, onde se localiza o centro histrico e comercial de Belm (Rodrigues, 2008),

    assim como as relaes scio-econmicas e culturais presentes no bairro, mediadas pela

    constante circulao de produtos e pessoas entre os lugares interioranos e a capital,

    atravs dos portos de entrada e sada11

    da cidade.

    Formado em grande parte por migrantes ribeirinhos o bairro caracteriza-se pela

    forte presena da informalidade nas formas de ocupao do espao de moradia, na

    autoconstruo, no transporte coletivo e no comrcio de rua, como atividades

    econmicas desenvolvidas por uma parcela significativa de seus moradores. Buscamos

    aqui entender as estratgias de insero desses migrantes em atividades informais, a

    partir de redes de relaes pessoais, atravs das quais, mesmo em condies precrias e

    desiguais e revelia dos poderes pblicos que os vigiam e dos direitos sociais que no

    os alcanam , transformam a cidade e o bairro em que vivem.

    Hernando de Soto (1987) aponta as transformaes ocorridas na capital peruana,

    a partir da presena intensificada de ribeirinhos que migraram para a cidade entre as

    dcadas de 1940 e 1980, em busca de melhores condies de vida:

    A migrao indgena fez com que a populao urbana quintuplicasse e a

    cidade se reorganizasse. Apareceram novas atividades que pouco a pouco

    vem substituindo as tradicionais. Habitaes modestas e apinhadas em torno da cidade, com uma multido de oficinas instalada, exrcito de ambulantes,

    vendendo nas ruas, incontveis linhas de micronibus, riscando-as,

    parecendo ter brotado do nada, alargando e adensando o espao urbano [...]

    Chegados cidade, eles perceberam que no poderiam incorporar-se s atividades sociais e econmicas estabelecidas legalmente e lhes era

    sumamente difcil ascender formalmente habitao, educao e sobretudo

    empresa e ao trabalho [...] Para subsistir, os migrantes se transformaram em informais. Para viver, comerciar, manufaturar, transportar e at consumir, os

    novos habitantes da cidade tiveram que faz-lo ilegalmente [no sentido de

    utilizar] meios ilegais para satisfazer objetivos essencialmente legais, como construir uma casa, prestar servios ou desenvolver uma indstria. Nesse

    sentido [...] no so informais os indivduos, mas seus feitos e atividades. A

    informalidade [...] uma zona de penumbra que tem uma extensa fronteira

    com o mundo legal e onde os indivduos se refugiam quando os tributos para cumprir as leis excedem seus benefcios (De Soto, 1987, p. 35-46).

    10 Segundo dados oficiais, a populao do Jurunas aumentou em 100% de 1950 a 1960, passando de

    15.000 para 30.000 habitantes. De 1960 a 1970, cresceu quase na mesma proporo, passando de 30.000

    para cerca de 50.000 pessoas e, em 1980, os 60.000 habitantes, populao que permanece estvel nos dias

    atuais (Rodrigues, 2008, p. 80-81). 11 Atualmente existem cerca de cinquenta portos pblicos e privados na parte sul da cidade, s margens do rio Guam, dos quais vinte e dois localizam-se no bairro do Jurunas (Rodrigues, 2008).

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    O autor seleciona trs setores especficos da vida urbana habitao, transporte

    e comrcio para demonstrar como modos informais de viver na cidade so

    estabelecidos pelos migrantes para, de fato, sobreviverem diante das condies reais e

    da impossibilidade de o fazerem, de direito. No processo social de viver e sobreviver na

    cidade, os migrantes peruanos apropriaram-se de terrenos para viver e produzir,

    instalando-se em ruas como ambulantes para trabalhar ou invadindo as vias principais

    da cidade para prestar servios de transporte. Em todos esses casos desobedeceram

    abertamente s disposies legais vigentes e desafiaram as instituies (p.46-47).

    A anlise de De Soto (1987) sobre a amplitude da informalidade na economia

    peruana aplica-se perfeitamente ao Brasil e Amaznia, guardadas as devidas

    propores. Em Belm, nos bairros de periferia e mesmo em algumas reas centrais, a

    informalidade, a par de sua invisibilidade estrutural, visvel nos modos como parcelas

    significativas dos moradores da cidade produzem sua sobrevivncia diria e reproduzem

    seus modos de vida, ocupando novos territrios na cidade.

    Como vendedores de produtos ou prestadores de servios, em barracas, bancas

    ou tabuleiros, em bicicletas, vans, carros ou carrinhos de mo, os ambulantes dominam

    a cena cotidiana, nos portos, nas feiras, nas ruas e caladas do bairro e da cidade.

    Fabricando produtos artesanais/industriais, cultivando alimentos agrcolas e animais de

    criao em quintais domsticos urbanos ou periurbanos; vendendo esses produtos, bens

    e servios a comerciantes estabelecidos ou diretamente aos consumidores, nas ruas,

    praas, feiras e mercados; ocupando terrenos urbanos e construindo suas habitaes

    revelia dos poderes pblicos; circulando em bicicletas ou transporte alternativo; os

    trabalhadores ditos informais articulam essas atividades atravs de amplas redes de

    relaes, que tambm existem, em grande parte, nos interstcios da informalidade e/ou

    ilegalidade.

    Como no estudo das relaes entre o forte processo migratrio ocorrido na

    cidade de Lima (1940-1981) e as estratgias de insero desses migrantes na cidade (De

    Soto, 1987), a informalidade tambm ser enfocada aqui como um caminho alternativo,

    que esses migrantes escolheram ou encontraram sua disposio, em condies

    socioeconmicas extremamente difceis de viver a vida na cidade de Belm.

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    Dimenses da informalidade no bairro do Jurunas

    O bairro do Jurunas, constitudo em grande proporo, por migrantes ribeirinhos,

    a partir da expanso da cidade no sentido paralelo ao rio Guam12

    , caracteriza-se pela

    forte presena da informalidade nas formas de ocupao do espao de moradia, na

    autoconstruo, no transporte coletivo alternativo e no comrcio de rua, como

    atividades econmicas desenvolvidas por uma parcela significativa de seus moradores.

    A imagem abaixo, produzida com base em pesquisa sobre reas de concentrao

    de habitaes irregulares nas principais cidades do pas, sob o rtulo de aglomerados

    subnormais (IBGE, 2011, p.30), apresenta graficamente os resultados obtidos na cidade

    de Belm. Essas reas correspondem aos bairros localizados no eixo sul-sudeste,

    margem do rio Guam, como o Jurunas, conforme indica o mapa.

    Especialmente nas reas mais prximas ao rio, que apresentam grande

    concentrao de migrantes originrios das cidades e localidades ribeirinhas, grande

    parte do solo urbano foi constitudo atravs da apropriao, para moradia e/ou

    12 Esses migrantes so oriundos principalmente do baixo e mdio Amazonas ou das reas ribeirinhas

    prximas a Belm (rio Guam e seus afluentes Acar, Moju e Capim; rio Tocantins e Ilha do Maraj).

    Mais da metade chegou ao bairro entre as dcadas de 1950 e 1980, perodo que corresponde, segundo o IBGE, ao momento de grande incremento populacional do bairro (Rodrigues, 2008, p. 80-81).

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    atividades comerciais ou industriais13

    , de terrenos tomados das guas dos diversos

    canais que recortavam o bairro, mesmo depois de diversos projetos de aterramento

    realizados no local14

    . Alguns setores importantes do bairro surgiram desse processo de

    ocupao , nas dcadas de 1950-6015

    .

    Em pesquisa anterior (Rodrigues, 2008) encontramos, entre as atividades de

    trabalho declaradas por moradores do bairro, um predomnio daquelas ligadas a vendas

    de bens ou servios, dentro ou fora do espao do bairro, recobrindo um leque variado

    de profisses masculinas e femininas. Entre estas, predomina a categoria vendedor16

    .

    Conforme referido anteriormente, muitos trabalhadores informais que moram

    no bairro trabalham no centro comercial de Belm, espao ocupado e compartilhado

    diariamente por vendedores ambulantes de diversas procedncias, com os quais

    disputam, diretamente, a clientela com os lojistas que ainda permanecem no local.

    Como os ambulantes estudados por Ana Laura Sena (2002) e Valber Pires (2008), os

    vendedores que trabalham no bairro, especialmente no cruzamento e no entorno das

    ruas Bernardo Sayo e Fernando Guilhon, ocupam as principais vias de circulao,

    disputando com motoristas, ciclistas e pedestres, os espaos exguos e muitas vezes

    cheios de entulhos, como as caladas mais movimentadas, os pequenos espaos

    contguos s lojas e muros dos estabelecimentos comerciais ou prdios de servios de

    atendimento ao pblico.

    So vendedores de alimentos, que vendem em pequenos carros transformados

    em barracas, ou em bancas de madeira. Vendedores de frutas, verduras e legumes, que

    transportam seus produtos em carros de mo. Vendedores de porta em porta (prestao),

    que chegam de bicicletas ou motocicletas, carregando redes, cadeiras e mesas

    13 Destacam-se os bares, lanchonetes, aougues, mercearias e restaurantes; bancas de venda de aa,

    frango, carne, verduras, farinha e carvo; sucatarias, armarinhos, bancas de apostas (jogo do bicho),

    pontos de venda de gs de cozinha; oficinas de sapatos, de vidros, de mveis, de baterias para carros e de

    eletroeletrnicos; lojas de materiais de construo, madeiras, redes, vassouras, confeces; produtos

    nuticos (cordoaria), produtos de umbanda, rao para animais; depsitos de bebidas, sales de beleza,

    farmcias e igrejas pentecostais (Rodrigues, 2008). 14 O primeiro projeto importante foi um dique de concreto construdo da dcada de 1940, para conter as

    guas do rio. O ltimo o Portal da Amaznia, obra da Prefeitura de Belm, que pretende ampliar e

    remodelar toda a orla sul da cidade. 15 Como as reas denominadas Laranjeiras, Alan Kardec, Radional II, na fronteira Jurunas-Condor. 16 Vendedor ambulante, de perfumes e cosmticos; de roupas, bolsas e calados; de produtos farmacuticos; de produtos alimentcios; de churrasco, bebidas e cigarros, tira-gosto, lanches, doces e

    salgados, picol, bombons; de horti-fruti, peixe, camaro e mariscos; de aa; de Cds e DVDs, de

    relgios, de produtos eletrnicos (Rodrigues, 2008, p. 82).

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    dobrveis/portteis, panelas e outros apetrechos domsticos, e vendem sob contrato

    verbal, recebem semanalmente cada parcela do valor total acordado. Vendedores de Cds

    e DVDs piratas nas ruas e praas, mercados e feiras, que vendem vista mas tambm a

    crdito para os outros feirantes, vizinhos ou conhecidos. So tambm trabalhadores da

    construo civil ou do setor de servios. So operadores de transporte alternativo, que

    convivem cotidianamente com a violncia das ruas (assaltos) e o controle legal que

    muitas vezes tambm pode terminar em violncia e priso dos envolvidos. So tambm

    migrantes que ocuparam terrenos pblicos e privados, ou adquiriram lotes no

    regulamentados em reas alagveis a preos mais baratos, e partiram para a

    autoconstruo de casas de madeira, alvenaria ou mistas.

    Apresentamos a seguir alguns relatos de experincias desses trabalhadores.

    Elias tem 30 anos, ensino fundamental incompleto, e se define como pedreiro.

    Nasceu no Acar e veio para Belm (Jurunas) aos 18 anos, para trabalhar com um tio

    que tambm era pedreiro. Gostaria de ser mestre de obras, porque o mestre de obra ele

    no pega nem na ferramenta, eles j pegam na planta, n! Eles j do ordem pro

    pedreiro. Mas reconhece que s pode virar mestre depois que fizer o curso, n?.

    Gosta de trabalhar por conta prpria, pois tendo conhecimento, tu vais ganhar mais um

    pouco, n! Trabalhando pro outro tu vai ganhar s aquele salrio que acertar contigo.

    Como desvantagens, afirma que tu no tens seguro de nada, s o que tu ganhas, se tu

    no guardar e acontecer algum acidente, no tem de onde tirar, n! Vai para o trabalho

    de bicicleta, e ganha uma mdia de 400 reais por semana. Ele mesmo construiu a casa

    de madeira, no terreno herdado da famlia da esposa, onde mora seis pessoas, e esto

    guardando um dinheiro pra fazer de alvenaria (entrevista realizada em 24/04/2012).

    Pel tem 32 anos, ensino fundamental incompleto, e se define como pedreiro

    habilitado, pois ainda no pedreiro formado. Nasceu na Conceio (atual Fernando

    Guilhon), filho de migrantes de So Joo do Capim (me) e Terra Alta (pai). O pai era

    carpinteiro, profisso que aprendeu com o seu pai, mas quando o servio de carpintaria

    comeou a faltar, mudou de profisso para pedreiro, profisso que ento aprendeu com

    o sogro. Pel trabalha at hoje com o pai, como ajudante de pedreiro. Vai de bicicleta

    para o trabalho, e ganha 350 reais por semana. Ele, seus pais, a esposa e duas filhas

    moram em cmodos que eles mesmos construram nos fundos da casa da av materna.

    Quanto profisso, afirma que

  • 11

    [...] no tem praticamente nenhuma vantagem, s que a gente ganha mais um

    pouquinho. A gente pode ganhar todo dia. Pode ganhar tambm por semana,

    entendeu? E assalariado tem aquelas vantagens tm as coisas de carteira de trabalho, tem negcio de frias, a gente no tem isso. Se tivesse um estudo

    melhor, at que compensava, era melhor estudar do que trabalhar nessa

    profisso (entrevista realizada em 24/04/2012).

    Jesus tem 40 anos, nvel mdio completo e define-se como autnomo. Nasceu no

    interior do Muan (Maraj) e veio para Belm aos 13 anos, para fazer tratamento de

    sade, ficando hospedado na casa da irm, onde mora at hoje. Comeou trabalhando

    como entregador de material de construo. Depois trabalhou no comrcio, na barraca

    de um conhecido, onde vendia bolsas, chapus, culos e sandlias, e depois resolveu

    abrir seu prprio negcio na feira do Jurunas. Hoje possui uma barraca na rua Fernando

    Guilhon, na calada do Colgio Arthur Porto, onde vende o mesmo tipo de produtos,

    que adquire em lojas atacadistas do centro comercial, mas tambm tem um vendedor

    que entrega pessoalmente alguns produtos na sua barraca. Transporta os produtos em

    vans, Kombi, nibus e txi. Dos atacadistas compra a dinheiro e crdito (carto de

    crdito), quanto ao vendedor faz o pagamento dos produtos atravs de nota promissria,

    com 15 dias de prazo para pagar. Com a renda de 20 a 30 reais por dia, em media 210

    reais por semana, ajuda a sustentar a casa da irm, onde moram o cunhado, o sobrinho, a

    esposa do sobrinho e o filho destes (entrevista realizada em 25//8/2011).

    Socorro tem 45 anos, ensino fundamental incompleto e define-se como

    vendedora. Nasceu em Igarap-Miri, e aps a morte do pai, veio para Belm (bairro do

    Jurunas) com cinco anos de idade, com a me e dois irmos. Ainda jovem trabalhou

    como domstica, manicure e em algumas lojas do comrcio (contratada como

    temporria). Iniciou o trabalho na barraca com o companheiro, mas a parceria no deu

    certo, e acabou montando sua prpria barraca, na mesma calada do colgio Arthur

    Porto, h cerca de um ano. Ela vende mdias piratas, bijuterias, pilhas importadas. Ela

    tambm adquire seus produtos no comrcio, pagando vista, na hora, e os

    transporta em vans, kombis ou nibus. Ganha de 40 a 70 reais por dia, em mdia 250 a

    300 reais por semana, e sustenta trs pessoas: ela, o filho e a esposa do filho. Sua casa

    prpria e foi doada por um parente (entrevista realizada em 25/08/2011).

  • 12

    Benedito tem 47 anos, nvel fundamental completo e define-se como autnomo.

    Nasceu em Belm, no bairro do Jurunas, e aprendeu o ofcio de confeiteiro,

    acompanhando o pai, mas no era um trabalho, porque no tinha carteira assinada.

    Como achava que ganhava pouco, comeou a fabricar e vender salgados para diversos

    camels e ambulantes que possuem carros de lanches instalados no centro comercial,

    at que abandonou o patro e passou a trabalhar como autnomo, por conta prpria.

    Hoje, alm do trabalho de revenda de salgado, tem um ponto comercial alugado, uma

    pequena lanchonete, onde trabalha e paga um ajudante. Precisa se deslocar muitas vezes

    durante o dia, do Jurunas Cidade Velha, atividade desgastante e perigosa, porque tem

    que carregar todo o material em uma bicicleta cargueira. Benedito ganha cerca de cem

    reais por dia, e sustenta uma famlia de quatro pessoas. Sua casa de herana, na

    verdade so quatro casas, so quatro filhas que minha v tinha, ento o terreno foi

    dividido em quatro. Considera seu trabalho perigoso por causa da madrugada, n!

    Porque a gente tem que sair cedo de casa, tem que sair muito cedo, j fui assaltado

    vrias vezes. Tambm j teve problemas com a fiscalizao (Diviso de Polcia

    Administrativa) por conta da lanchonete, pois tentou uma vez vender cerveja e contratar

    msicos pagodeiros. Ento

    [...] eles foram l e viram que era uma lanchonete, e disseram: Ns no viemos aqui pra lhe prender, mas pra lhe orientar, ento, se voc tiver dentro

    da lei ali trabalhando e tal... Voc tem que se legalizar! Ento, se voc no se legalizar, a prxima visita l vai ser pra lhe intimar mesmo, voc vai ser

    intimado e vai responder processo (entrevista realizada em 24/04/2011).

    Mauro tem 36 anos, nvel mdio e define-se como autnomo. Nasceu em Tom-

    Au e veio com a famlia morar na Cidade Velha na dcada de 1980. Casou-se e foi

    morar no Jurunas, junto famlia da esposa. Participa de uma associao de operadores

    de transportes alternativos que transportam passageiros diariamente, atravs de uma rota

    que circula entre o Ver-o-Peso e a Praa do Operrio, em So Brs, pelos bairros da

    Cidade Velha, Jurunas, Condor, Guam e Cremao. Segundo o interlocutor,

    Essa rota surgiu como decorrncia de prticas anteriores de grupos de feirantes moradores do bairro [Jurunas] que precisavam transportar seus produtos para o Ver-o-Peso, desde a madrugada at as primeiras horas do

    dia. H cerca de quinze anos atrs, esses feirantes uniram seus esforos e

    recursos e passaram a comprar kombis usadas para realizar esse transporte.

    Como um desdobramento dessa ao, passaram tambm a transportar pessoas e mercadorias, de forma alternativa, para diversos locais de trabalho

    no bairro e fora dele, mas concentrando-se principalmente nas rotas

  • 13

    alternativas mais praticadas pelos moradores do bairro. O movimento das

    Kombis comeava mais ou menos a partir das trs horas da madrugada e

    encerrava nas primeiras horas da manh. Esse transporte alternativo passou a concorrer com as poucas linhas oficiais de nibus que circulavam nessa rea

    (Arsenal, Jurunas-Conceio e Ceasa-Ver-o-Peso). Com o passar do tempo,

    essa atividade foi ocupando cada vez mais espao e incluindo novos trabalhadores, de modo que existem hoje cerca de duzentos e cinquenta

    operadores no sistema [profissionais do volante] e quatro vezes mais o nmero de cobradores, j que o sistema funciona vinte e quatro por dia.

    Ento percebemos que o sistema economicamente vivel. Hoje o transporte alternativo transporta cerca de nove a dez mil pessoas por dia, pois cada

    carro que opera no sistema faz em torno de duzentas passagens por dia. E o

    valor da passagem de dois reais.

    Mas no ltimo governo [do Prefeito de Belm] as aes da CTBEL

    comearam muitas operaes de apreenso dos veculos, o que no acontecia

    antes. Na luta pela legalidade, foi preciso migrar para uma cooperativa, porque a CTBEL, num primeiro momento, dizia que ns tnhamos que

    formar uma cooperativa. Ns formamos a cooperativa mas infelizmente no

    foi legalizada, como haviam prometido que seria. Com isso, houve um

    inchao e por isso tem muito operador para uma rota s. Depois de muita luta, o prefeito falou que a Lei Orgnica do municpio no entende

    cooperativa como empresa. Ento tnhamos que formar uma empresa. A o

    prefeito pediu que ns agregssemos todas as cooperativas da regio metropolitana a uma nica empresa chamada TRANSUNI. Mas ns sempre

    fomos contra o que foi adotado l, e nossa cooperativa foi uma das que ficou

    fora da TRANSUNI. Isso fortaleceu nosso movimento aqui no Jurunas.

    Hoje, tudo que se fala em [transporte] alternativo passa basicamente pelo Jurunas, por fora disso: a CTBEL fica aqui prximo, tudo acontece

    geralmente aqui, as apreenses [de veculos]. A gente est nessa luta, a gente

    entende que s dessa forma, reivindicando mas se organizando, que se conseguir essa to sonhada mudana [da lei Orgnica] para que depois

    venha a regulamentao. A gente est esperando essa mudana de governo.

    J fomos chamados por diversos candidatos para ver se a gente consegue mudar isso.

    Conforme o interlocutor, alm das discusses e contradies internas, as tenses

    com os rgos pblicos (Polcia Federal, Polcia Militar, Polcia Civil, Ministrio

    Pblico) tambm so constantes. Estas instituies tm feito operaes peridicas de

    combate aos mais variados crimes na cidade de Belm, voltando algumas dessas

    aes contra o sistema de transporte informal. A operao intitulada Tolerncia Zero

    tem conseguido impedir o funcionamento do sistema de transporte alternativo em

    alguns finais de semana.

    Dentro desse conturbado cotidiano vivido, por esses trabalhadores de

    transporte alternativo, afirma que preciso manter a vigilncia constante e a

    participao ativa dos integrantes do grupo, tanto nos contatos internos quanto nas

  • 14

    reunies com os rgos responsveis pela fiscalizao da atividade. Essas atitudes so

    fundamentais no caminho nada fcil formalizao e dignidade de ser um

    cidado, pois

    uma questo muito perigosa que ns fazemos, ns temos conscincia

    disso! Tem que ter muito jogo de cintura e principalmente vontade, porque a cada dia uma dificuldade. Tudo que ns queremos fazer com muita

    dificuldade. A gente sonha um dia poder trabalhar, poder chegar em casa e

    dizer: Poxa! Hoje eu trabalhei e ningum me perseguiu[...] [porque] quando tem operao a gente tem que se livrar de todo mundo: do

    DETRAN, da CTBEL, da polcia militar, de todo mundo. muito difcil!

    Mas a gente t otimista. Creio que nossa hora t chegando, a mudana t

    chegando.

    Para o entrevistado, a legalizao do transporte alternativo muito relevante e a

    discusso sobre o assunto est muito presente na atualidade. Destaca que a questo tem

    que encabear as propostas dos futuros gestores da cidade de Belm e da regio

    metropolitana, a fim que se chegue a uma soluo para a problemtica do transporte

    urbano, visto que o transporte formal no consegue atender a demanda populacional que

    vem crescendo nos ltimos vinte anos na cidade, enquanto as polticas pblicas de

    mobilidade ficaram quase que estagnadas. E se esse quadro de interesse poltico no

    mudar, a tendncia a expanso do transporte informal, pois

    [...] tanto quanto as novas possveis solues de mobilidade urbana, o

    transporte alternativo no pode ficar de fora dos projetos de planejamento

    urbano, pois caso contrrio, parte da cidade ficar sem a cobertura necessria locomoo dos trabalhadores, dos estudantes, dos feirantes, comerciantes,

    enfim, daqueles que dependem cotidianamente do transporte formal e

    informal, e este ltimo continuar crescendo sem precedentes nos bairros perifricos, como o caso do Jurunas.

    Por fim, segundo o interlocutor, o grupo pensa na possibilidade de conseguir

    uma representao no poder legislativo, o que diminuiria as dificuldades do processo de

    formalizao da atividade. Entretanto o entrevistado, que seria o potencial candidato,

    acha que ainda no o momento e nem sua pretenso concorrer a um cargo no

    legislativo municipal (entrevista realizada em 05/05/2012).

    Consideraes Finais

  • 15

    Espaos alternativos, trabalho alternativo, vidas em alternncia. O processo

    histrico e o contexto sociolgico da economia local indicam que as formas de insero

    dos migrantes, atravs das atividades informais, so totalmente integradas s suas redes

    sociais e suas formas de conhecimento e acesso realidade mais imediata. Os dados

    etnogrficos aqui apresentados, mesmo limitados, indicam que a obteno do lugar de

    moradia, o modo de construo da habitao, as formas de insero no mercado de

    trabalho local e as formas de circulao para realizar todas essas atividades, passam por

    uma rede de contatos entre parentes e amigos e conhecidos.

    Podemos ento supor ento que o crescimento acentuado do setor informal na

    cidade, em parte conseqncia direta tanto da migrao rural quanto do deslocamento

    de trabalhadores de outros estados e regies do pas, e em parte resultado do processo de

    reestruturao produtiva que hoje afeta a economia mundial, deve tambm levar em

    considerao as estratgias operacionalizadas pelos novos moradores da cidade, que

    procuram e encontram, atravs das conexes disponveis, alguma insero no mercado

    de trabalho local. Essas conexes articulam pessoas que j esto no setor informal, e

    essa dinmica de insero tender a ampliar o nmero de (novos) integrantes.

    As anlises de Ana Laura Sena (2002), Vlber Pires (2008) e Mrcio Oliveira

    (2009) sobre camels e ambulantes no centro comercial de Belm e Manaus, para alm

    das condies de subordinao formal ou informal ao capital, para alm das condies

    precrias de trabalho e existncia, apontam para as formas de resistncia dos sujeitos

    que vivem na informalidade precria (Pires, 2008, p. 243). Os recentes movimentos

    sociais dos camels nas reas centrais da cidade, demonstram que j no podem ser

    tratados como indivduos desconhecidos ou totalmente invisveis aos olhos das

    instituies estatais e dos demais segmentos que reivindicam uma cidade organizada e

    formal. Trata-se agora de processos de reconhecimento dessa parcela de trabalhadores

    como sujeitos detentores de direitos essenciais qualidade de vida urbana.

    Se do ponto de vista dos atores dominantes (Estado, Prefeitura e comerciantes

    legalizados) os camels desorganizam o centro da cidade, fugindo s regras de

    ordenamento e normatizao impostas como corretas, da perspectiva de suas prprias

    prticas e agenciamentos, eles resistem s diversas imposies e determinaes dos

    dominantes e, utilizando-se de mltiplas redes sociais e desenvolvem tticas de

    integrao na estrutura social (Oliveira, 2009, p. 14-27) para sobreviver. Este autor

  • 16

    enfatiza as dimenses espaciais e sociais do mercado de trabalho, para entend-lo como

    um locus onde os sujeitos do mundo do trabalho mantm laos de sociabilidade e redes

    sociais que no se inserem em uma lgica estritamente econmica ou poltica, como

    um lugar no apenas de estratgias de sobrevivncia [mas] de promoo e integrao

    de vnculos sociais na sociedade de mercado.

    A visibilidade dos trabalhadores informais, gritante em qualquer cidade do

    mundo, pode ser diretamente proporcional ao no reconhecimento de seus direitos

    legais como cidados. Mas pode tambm abrir espaos de contestao e afirmao

    desses direitos, possibilitando aos sujeitos lutar todos os dias, contra a ordem dominante

    que define o ordenamento territorial da cidade, percorrendo e/ou ocupando as vias

    pblicas oferecendo produtos e servios, estabelecendo seus espaos de trabalho por

    conta prpria, instalando seus equipamentos nesses espaos, desenhando seus prprios

    movimentos na cartografia social e poltica da cidade.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    DE SOTO, Hernando (1987). Economia subterrnea: uma anlise da realidade peruana.

    Rio de Janeiro: Globo.

    HART, Keith (1973). Informal income opportunities and urban employment in Ghana.

    In: Journal of Modern African Studies, 11:3, p. 61-89.

    IBGE. Censo Demogrfico 2010 (2011). Aglomeraes subnormais: primeiros

    resultados. Rio de Janeiro. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    ILO (1972). Incomes, Employment and Equality: a strategy for increasing productive

    employment in Kenya. In: Journal of Modern African Studies. Geneva, 11, 3 (p. 61-89).

    MELO, Hildete e VASCONCELOS, Leonardo (2008). A economia informal

    metropolitana: um estudo baseado na ECINF/IBGE. UFF/Economia. TD, 231.

    OLIVEIRA, Mrcio Arajo (2009). Trabalho informal e redes sociais: os camels da

    Praa da Matriz, em Manaus. Dissertao de Mestrado do Programa de Ps-Graduao

    em Sociologia, ICHL/UFAM.

  • 17

    PIRES, Vlber de Almeida (2008). Os camels e a sociedade: um estudo dos camels

    do centro comercial de Belm pelo enfoque terico da integrao. Dissertao de

    Mestrado, Programa de Ps-Graduao em Planejamento do Desenvolvimento, Ncleo

    de Altos Estudos Amaznicos, Universidade Federal do Par, Belm.

    ___________ (2010). Informalidade precria e integrao social: consideraes

    sociolgicas acerca da atividade de camels no centro comercial de Belm. II Encontro

    da Sociedade Brasileira de Sociologia da Regio Norte, Belm, UFPA-NAEA.

    RODRIGUES, Carmem Izabel (2008). Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e

    construo de identidades em espao urbano. Belm: NAEA-UFPA.

    SENA, Ana Laura (1998). Dimenses da informalidade em Belm. Paper do NAEA-

    UFPA, 113.

    __________ (2002) Trabalho informal nas ruas e praas de Belm: estudo sobre o

    comrcio ambulante de produtos alimentcios. Belm: NAEA-UFPA, 2002.