Carolina Chamizo Henrique Babo

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1 FACULDADE CÁSPER LÍBERO Mestrado em Comunicação Era uma vez ... outra vez A retomada e a reinvenção dos contos de fada pelo mundo (des)encantado da mídia Carolina Chamizo Henrique Babo São Paulo 2015

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FACULDADE CÁSPER LÍBERO

Mestrado em Comunicação

Era uma vez ... outra vez

A retomada e a reinvenção dos contos de fada

pelo mundo (des)encantado da mídia

Carolina Chamizo Henrique Babo

São Paulo

2015

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CAROLINA CHAMIZO HENRIQUE BABO

Era uma vez ... outra vez

A retomada e a reinvenção dos contos de fada

pelo mundo (des)encantado da mídia

Dissertação apresentada para a

obtenção do grau de Mestre em

Comunicação pela Faculdade

Cásper Líbero

Orientador: Prof. Dr. Dimas A.

Künsch

São Paulo

2015

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Babo, Carolina Chamizo Henrique

Era uma vez...outra vez: a retomada e a reinvenção dos contos de fada pelo mundo (des)encantado da mídia / Carolina Chamizo Henrique Babo. -- São Paulo, 2015 104 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Prof. Dr. Dimas A. Künsch Dissertação (mestrado) – Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação

1. Mídia. 2. Produtos Midiáticos. 3. Contos de Fada. 4. Narrativas. 5. Crepúsculo. Babo, Carolina Chamizo Henrique. II. Faculdade Cásper Líbero, Programa de Mestrado em Comunicação. III. Título.

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DEDICATÓRIA

À minha mãe, que sempre me incentivou à leitura e aos estudos, que me contou a

primeira história, que me deu o primeiro livro de contos de fada e que me presenteia

com eles até hoje.

Ao Davi. Meu amor, meu amigo, meu namorado, meu marido, meu príncipe encantado.

O responsável por realizar, todos os dias, meu próprio conto de fada de final feliz.

Ontem. Hoje. Amanhã. Para Sempre.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, Zeus, Odin, Osíris e Ilúvatar. A Hera, Friga, Ísis, Atena e Brigid, pela

vida consciente e inconsciente.

Às fadas e às bruxas pela inspiração, magia e encantamento.

Aos meus “filhos-caninos”, Chanel e Santino que, por estarem sempre ao meu lado, e

ouvirem tantas vezes esta dissertação, podem ser considerados, até mesmo, meus “co-

autores”.

Aos amigos (vocês sabem quem são) e familiares (vocês também sabem quem são) pelo

apoio, ajuda e compreensão.

A duas crianças bastante queridas com as quais eu tenho o privilégio de conviver,

Guilherme e Isabella. Crianças que ouviram tantas vezes a mesma história, com

redobrada atenção. Que assistiram ao mesmo filme, com total paciência. Que

incentivaram minhas teorias, com suas ideias sempre criativas.

Aos meus colegas de Mestrado que contribuíram direta ou indiretamente para este

trabalho. Especialmente para três garotas que estiveram comigo desde o início desta

jornada: Waleska, Titi e Marcela. A amizade de vocês dentro e fora da sala de aula

tornou este estudo, sem dúvida, mais produtivo e mais divertido.

Aos professores José Eugenio de Oliveira Menezes e Monica Martinez, por aceitarem

fazer parte dessa banca e por terem contribuído, por meio de suas ideias e

apontamentos, para meu exame de qualificação. A ajuda de vocês foi fundamental para

o desenvolvimento deste trabalho.

Ao professor Dimas Künsch, meu orientador, pelas aulas sempre inspiradoras, pelo

incentivo, pela dedicação e pela paciência. Sem seus “objetos mágicos” esta dissertação

não teria sido possível.

Aos demais professores, mestres, mentores do Mestrado, Simonetta Persichetti, Dulcília

Buitoni e Cláudio Novaes Pinto Coelho, que me guiaram com seus importantes

conhecimentos, ensinamentos, ideias e olhares.

Meu muito obrigada a todos vocês.

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“Há sempre um pouco de conto de fada acontecendo na vida”

(Marie Louise Von Franz)

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RESUMO

A proposta desta investigação é identificar o lugar e a importância dos contos de fada

para o ser humano e para a cultura, além de verificar os motivos da transposição dos

mesmos em distintas produções da atualidade (filmes, animações e seriados televisivos),

em um reflexo da indústria cultural em que passaram a ser reproduzidos. Assim, os

objetivos desta pesquisa concentram-se em compreender as razões da retomada e da

reinvenção dos contos maravilhosos, bem como em tecer comparações entre as histórias

“originais” e seus referencias contemporâneos. A hipótese geral apoia-se nos estudos de

Car Gustav Jung e em sua teoria de que possa haver uma espécie de compensação dos

temas arquetípicos de que determinada época mais precise. Nesse sentido, entendemos

que em um mundo fortemente marcado pela razão, o homem possa sentir cada vez mais

necessidade de entrar em contato com seus temas simbólicos, temas oferecidos pelos

contos de fada e pelas narrativas míticas e traduzidos, atualmente, pelos produtos da

cultura de massa. Como quadro de referenciais teóricos, utilizo-me, para o entendimento

dos contos como importantes instrumentos de ensinamentos para o homem, uma

abordagem voltada à linha da psicologia analítica e emprego os estudos de Carl Gustav

Jung e Marie Louise Von Franz. Para o tema correlato dos mitos, recorro a autores

como Joseph Campbell, Karen Armstrong, Mircea Eliade e Vladimir Propp. Na parte

específica do estudo desses contos já transformados em produtos pela indústria cultural,

emprego as teorias de Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Edgar Morin e Roland

Barthes. Para entender as diversas plataformas que esse contos podem assumir (a

oralidade, as páginas dos livros e as telas da televisão), o presente estudo encontra nos

ensinamentos de Harry Pross e Norval Baitello Junior o respaldo necessário. Por fim,

baseada nos estudos de Dimas Künsch, me apoio ainda na temática do pensamento

compreensivo, como aquele que abrange, reconhece e coloca em diálogo as diferentes

áreas, lugares e protagonistas do conhecimento. Além desses autores, me dedico ainda à

leitura dos contos maravilhosos, com destaque para as obras de Jacob e Wilhelm

Grimm, Charles Perrault, Hans Christian Andersen, Jeanne-Marie LePrince de

Beaumont, Joseph Jacobs, Carlo Collodi, Lewis Carroll, L.Frank Baum e J.M.Barrie.

Em termos metodológicos, parte-se da pesquisa bibliográfica, baseada nos autores

acima citados, e se segue adiante com um levantamento em sites especializados, que

possibilitem um mapeamento dessas produções. Além disso, a pesquisa compara os

produtos lançados pelos agentes do entretenimento e seu referencial mais direto, de

modo a compreender de que maneira essas narrativas mágicas e seus personagens se

transformam quando apropriados e modificados pela indústria cultural. Os exemplos

aqui estudados se preocupam em abranger tanto aquelas produções que se apropriam

abertamente de seus conteúdos, quanto as que aparentam ser narrativas distintas, mas

que também reproduzem a temática dos contos de fada. Como é o caso de Crepúsculo,

série estudada mais detalhadamente na presente dissertação por ser considerada como o

auge dessas reinvenções.

Palavras-chave: Mídia. Produtos midiáticos. Contos de Fada. Narrativas. Crepúsculo.

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ABSTRACT

The purpose of this research is to identify the place and the importance of fairy tales for

the human being, as well as for culture, and verify the reasons of their transposition in

different productions (films, animations and television series), as a reflection of the

culture industry in which came to be played. The objectives of this research focused on

understanding the reasons for the recovering and reinvention of the wonderful tales, as

well as on make comparisons between the “original” stories and their contemporary

references. The general hypothesis is supported by studies of Car Gustav Jung and his

theory that there may be a kind of compensation of archetypal themes that a particular

time needs. Therefore, we understand that in a world strongly marked by reason, the

human being can feel increasingly need to contact their symbolic themes, themes

offered by fairy tales or mythic narratives and translated, nowadays, by the mass

culture's products. Among the autors used to understand these stories as important

instruments for the mankind, this study approaches itself of the analytical psychology,

especially on Carl Gustav Jung and Marie Louise von Franz theories. For the related

subject of myths, the research applys the concepts of Joseph Campbell, Karen

Armstrong, Mircea Eliade and Vladimir Propp. In the particular part of the study of

these tales turned into products by the culture industry, have been used the theories of

Teodor W. Adorno, Max Horkheimer, Edgar Morin and Roland Barthes. To understand

the several platforms that stories can take (orality, the pages of books and television

screens), this study found in Harry Pross and Norval Baitello Junior ideas the support

needed. Finally, based on the studies of Dimas Kunsch, I employ the theme of

comprehensive thinking, to embrace, recognize and put in dialogue the different areas,

places and protagonists of knowledge. In addition to these authors, it was essential the

readind of the wonderful tales, especially the works of Jacob and Wilhelm Grimm,

Charles Perrault, Hans Christian Andersen, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont,

Joseph Jacobs, Carlo Collodi, Lewis Carroll, L.Frank Baum and J.M.Barrie. In terms of

methodology, we started with the study on the authors cited above, and followed with a

survey of specialized sites that allowed us a mapping of these productions. In addition,

the research compares the products made by the entertainment agents and their most

directly references, in order to understand how these magical narratives and characters

change when appropriate and modified by the culture industry. The examples studied

here intend to cover both productions: those that appropriate openly of its contents, and

those who appears to be distinctive narratives, but also reproduce the theme of fairy

tales. For this last case, the Twilight saga has been chosen for a deeper study because we

considered it the summit of these reinventions.

Keywords: Media. Media products. Fairy Tales. Narratives. Twilight.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 10

INTRODUÇÃO 12

CAPÍTULO 1: O RETORNO DA MAGIA 20

1.1. Eu acredito em fadas e em bruxas. E você? 20

1.1.1. Origens e principais representantes dos contos de fada 23

1.1.2. Importância e declínio dos contos de fada 26

1.2. A(s) retomada(s) 32

1.3. Compensações arquetípicas 39

CAPÍTULO 2: REINVENÇÕES (DES)ENCANTADAS 44

2.1. Dos contos orais aos visuais 44

2.2. Reinvenções 46

2.2.1. O processo de (des)encantamento 50

2.2.2. Reinvenções diretas 54

2.2.2.1. O arquétipo da grande mãe: a rainha má 55

2.2.2.2. O arquétipo do velho sábio: o reino encantado das fadas 58

2.2.2.3.. O arquétipo do herói: Valente 61

2.2.3. Reinvenções indiretas 65

CAPÍTULO 3: ERA UMA VEZ... OUTRA VEZ 70

3.1. Inquietação 70

3.2. Crepúsculo: a reinvenção de um conto de fada 71

3.2.1. Eros e Psique 76

3.2.2. A Bela e a Fera 77

3.2.3. A Pequena Sereia 79

3.2.4. O Patinho Feio 81

3.2.5. A Bela Adormecida 82

3.2.6. Branca de Neve 85

3.2.7. Cinderela 87

3.2.8. Chapeuzinho Vermelho 88

3.3. Desconstruindo Crepúsculo 91

(DES)CONCLUSÃO 96

REFERÊNCIAS 100

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APRESENTAÇÃO

O reino dos contos de fada é amplo, profundo e alto, cheio de muitas coisas: lá

se encontram todos os tipos de aves e outros animais; oceanos sem praias e

estrelas sem conta; uma beleza que é encantamento e um perigo sempre

presente; alegria e sofrimento afiados como espadas. Um ser humano talvez

possa considerar-se afortunado por ter vagueado nesse reino, mas sua própria

riqueza e estranheza atam a língua do viajante que as queira relatar. E, enquanto

está lá, é perigoso que faça perguntas demais, pois os portões podem se fechar e

as chaves se perder (TOLKIEN, 2013, p. 5).

Acredito que não haja outra maneira de começar esta dissertação sem que

precisemos recorrer a três palavras mágicas. Três palavras que, pronunciadas em

conjunto, são capazes de nos retirar de nosso “mundo real” e nos transportar

diretamente para um reino de magia e fantasia. Um lugar muito, muito distante,

conhecido por diversos nomes. País das Maravilhas. Terra do Nunca. Cidade das

Esmeraldas. Belo Reino. O mundo dos Contos de Fada, que começa com o “Era Uma

Vez”.

Um local habitado por príncipes, princesas, reis, rainhas, fadas encantadas,

bruxas malvadas, feitiços, poções mágicas, florestas, castelos e dragões. Estes e tantos

outros elementos e personagens povoam nosso imaginário desde que somos crianças.

Quantas vezes já ouvimos ou contamos essas histórias? Quantas vezes não torcemos

para o sapatinho caber no pé de Cinderela, para a Fera se transformar em um belo

príncipe ou para a Branca de Neve não morder a maçã envenenada? Mas ela sempre

morde, não é mesmo?

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E pensar que essas belas narrativas, contadas pelos seres humanos desde os

tempos mais remotos, são originadas em nosso interior, em contato direto com a nossa

essência, pois nascem e vivem dentro de nós. Elas podem nos alertar de perigos quando

estes nos são impostos, mostrando de que maneira devemos agir. Elas conseguem nos

propor os mais importantes ensinamentos, sempre de uma maneira espontânea, natural.

Ou são capazes simplesmente de ficar quietas, esperando que sejam chamadas, como a

princesa que dorme e aguarda o seu despertar.

Despertar esse que acontece quando entramos em contato com nossas narrativas,

com nossas imagens primordiais, arquetípicas (JUNG, 2012). Mesmo que elas não

sejam oferecidas em sua forma original, ou que tenham sido modificadas, alteradas.

Ainda assim. Quando reconhecemos algumas dessas estruturas é como se algo falasse

dentro de nós, como se algo mais forte que a própria consciência emergisse, como se

ouvíssemos um chamado.

Dessa forma, quando vi as histórias de que eu tanto gostava serem transformadas

uma a uma em contos reinventados, quando notei que as princesas estavam se

transformando em vampiras, quando desconfiei que os vilões estavam sendo

“perdoados”, e quando percebi que lobos (ou seriam lobisomens?) estavam sendo

adicionados às narrativas, não pude ignorar esses indícios. Algo de muito estranho

estava acontecendo. E precisava ser investigado.

Mas entrar no mundo das narrativas fantásticas é sempre muito perigoso. Há

quem diga que as pessoas que cruzam essa passagem não retornam mais. Ou, quando

retornam, estão mudadas, transformadas. Como se tivessem sido enfeitiçadas por uma

bruxa, ou encantadas pelas bênçãos de uma fada. Cruzar o Belo Reino é uma tarefa para

heróis e heroínas. Eu precisava me arriscar. E me arrisquei. E o que descobri?

Descobri que... ah, não. Não revelarei mais nada aqui. Para participar desta

aventura você precisará ler a pesquisa que está em suas mãos. Acho que já falei demais.

As boas histórias não necessitam de uma apresentação tão longa.

Voltemos então àquelas palavras mágicas do início do texto, o “Era Uma Vez”

que corresponde ao início da maioria dos contos maravilhosos. Mas apenas se quiser, é

claro. Você já foi alertado sobre os perigos dessa caminhada. A decisão de me seguir ou

parar por aqui é sua. Se você optar por parar, garanto que nenhum mal lhe ocorrerá e

que continuará sua vida tranquilamente. Se me seguir, por outro lado, chegará ao Reino

dos Contos de Fada e voltará dessa jornada um tanto transformado. A toca do coelho é

logo ali. Basta virar a página.

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INTRODUÇÃO

Desde o início deste século podemos observar um fenômeno bastante

interessante se voltarmos nosso olhar à produção cultural, em especial aos filmes,

seriados televisivos e animações realizadas nos Estados Unidos, fenômeno este que

pode ser entendido como o retorno da magia. Isso porque, a partir de 2001, uma série de

produções são lançadas baseadas na temática dos contos de fada, quer a referência a

essas histórias seja realizada de maneira direta, quer indireta.

Como exemplos dessa alusão explícita, podemos observar os títulos dos filmes

Branca de Neve; Peter Pan; Uma Garota Encantada; Irmãos Grimm; Encantada; Alice

no País das Maravilhas; A Garota da Capa Vermelha; A Fera; Branca de Neve e o

Caçador; Espelho, Espelho Meu; João e Maria: Caçadores de Bruxas; Oz, Mágico e

Poderoso; Jack, O Caçador de Gigantes; Malévola e Caminhos da Floresta.

Se recorrermos às animações, a lista é ainda maior e conta com Tinker Bell;

Tinker Bell e o Tesouro Perdido; Tinker Bell e o Resgate da Fada; Tinker Bel: O

Segredo das Fadas; Shrek; Shrek 2; Shrek Terceiro; Shrek Para Sempre; O Gato de

Botas; Deu a Louca na Cinderela; Deu a Louca na Chapeuzinho; Deu a Louca na

Chapeuzinho 2; Enrolados; A Princesa e o Sapo; Valente e Frozen, Uma Aventura

Congelante, além dos clássicos que, embora bem anteriores a essa retomada, aparecem,

de tempos em tempos, em sua versão remasterizada. Assim, temos Branca de Neve e os

Sete Anões; Cinderela; A Bela Adormecida; A Bela e a Fera e A Pequena Sereia,

sempre presentes nas prateleiras das lojas. Vale ainda acrescentar aqui, nessa lista de

produções que trazem os temas dos contos de fada de forma bastante explícita em seu

conteúdo, os seriados Once Upon a Time, Once Upon a Time in Wonderland e Grimm.

Além dessa forma de apropriação, em que as antigas narrativas são

transformadas e reinventadas sem perderem seu referencial original, há ainda outra

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forma de aparição dessas histórias a partir de produções que se utilizam das estruturas

ou personagens de contos de fada, sem que, no entanto, o público perceba o que está

consumindo.

Neste último caso, não existem referências diretas às antigas tradições ou aos

contos maravilhosos, em que eles certamente se inspiram ou dos quais se originam. Ao

contrário, são oferecidas novas histórias, ou mitologias contemporâneas, mas que

também apresentam como cenário central um reino, ou melhor, uma “galáxia muito,

muito distante”.

Esse é o caso das produções Star Wars, O Senhor dos Anéis, O Hobbit, Matrix e

Harry Potter, clássicos exemplos que fazem uma releitura de antigos mitos e contos que

os precederam. Ou, ainda, de um fenômeno recente, a saga Crepúsculo, a qual, como a

pesquisa se encarregará de mostrar, pode ser interpretada como o auge da reinvenção

dos contos maravilhosos, por refletir vários de seus personagens e a estrutura que

caracteriza esse tipo de narrativa.

Dessa forma, ao observarmos o retorno da magia ou, mais especificamente, essa

retomada em grande escala da temática dos contos de fada, revelada por meio dos

exemplos anteriormente citados, podemos entendê-la como um fenômeno a ser

investigado e pesquisado. Assim, esta dissertação tem, como tema, a retomada e a

reinvenção dos contos de fada no mundo (des)encantado da mídia.

No aspecto da retomada, a presente pesquisa se encarrega de investigar a

quantidade de produtos lançados desde o início do século relacionados aos contos

maravilhosos. Em relação à reinvenção, a dissertação volta seu olhar para a maneira na

qual esses produtos são oferecidos para o público. Já inseridos na dinâmica da indústria

cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), os contos de fada são modificados

livremente em histórias adaptadas e padronizadas.

Já o encantamento/ desencantamento aqui proposto será relacionado ao conceito

de mídia de tipo ampliado, baseado nas teorias de Harry Pross e em sua releitura feita

por Norval Baitello Junior.

Para Harry Pross, em seu livro Medienforschung (Investigação da Mídia), de

1972, a primeira mídia a que temos acesso é o próprio corpo e suas linguagens. Esse

será o ponto de origem e também o destino final de todo ato comunicativo. Quando o

homem decide comunicar fora de seu corpo, por meio de desenhos e,

consequentemente, por meio da escrita, inventa a mídia secundária. Assim, ele

desenvolve um sistema que amplia a sua mensagem no tempo e no espaço. O advento

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da eletricidade cria a mídia terciária, em que o emissor e o receptor precisam de

aparatos para se comunicar.

Podemos avançar a ideia aqui proposta, como um pressuposto desta pesquisa, e

sugerir que o encantamento dos contos de fada acontece, principalmente, em sua forma

oral, ao passar diretamente de um corpo para outro. Ou seja, para continuarmos

dialogando com Pross, no nível mais básico e elementar da comunicação de tipo

primário. O processo de desencantamento acontece quando essas narrativas são

transportadas para as páginas de livros e, posteriormente, para as telas da mídia

terciária, afastando os corpos, e impondo-lhes suas próprias histórias.

Como objeto, a dissertação se propõe a estudar o conjunto de produções

cinematográficas e televisivas provenientes dos Estados Unidos e lançadas desde o

início deste século, que se apropria da temática dos contos de fada.

Já o problema que deverá ser aqui pesquisado centra-se na investigação das

possíveis razões da crescente retomada e reinvenção dos contos maravilhosos, por meio

de filmes, animações e seriados televisivos. Além disso, os modos como se processa a

reinvenção dessas histórias também serão estudados.

Assim, a importância e relevância desta pesquisa justificam-se pela crescente

quantidade de produtos audiovisuais, baseados na temática dos contos de fada, quer no

título, história ou personagens centrais.

O objetivo geral deste trabalho é tentar compreender os motivos da retomada e

reinvenção dos contos maravilhosos, enquanto seu objetivo específico consiste em

procurar tecer comparações entre as histórias “originais” e seus referenciais

contemporâneos, buscando identificar como essas transposições acontecem e de que

natureza são as diferenças entre umas e outras.

Na tentativa de entender os motivos da retomada e da reinvenção dos contos de

fada, o presente trabalho oferece duas leituras possíveis para a compreensão desse

fenômeno. A primeira delas apoia-se nos estudos de Carl Gustav Jung e em sua teoria

de que possa existir uma espécie de compensação dos temas arquetípicos que

determinada época mais necessite. Para o psicanalista suíço, as obras de arte podem

surgir, muitas vezes, de maneira inconsciente ao artista, como uma forma de equilibrar a

inquietação refletida pela sociedade em que o mesmo vive. Assim, determinados temas

retornam “acalmando” o desejo de uma época.

Alguns dos artistas contemporâneos, no entanto, são representados pelos agentes

da indústria cultural, do entretenimento e, ao nos oferecerem esses contos, o fazem de

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maneira distinta de suas alusões diretas. Ao contrário de fornecerem as histórias mais

próximas possíveis de seus referenciais, as reinventam e transformam em produtos

padronizados.

Obviamente, distantes do propósito original ao qual os contos de fada se

destinavam, trazer ensinamentos sobre o mundo e sobre o próprio ser humano, os

contos reinventados assumem uma nova “missão”, muito mais voltada ao lucro, ao

consumo e à propagação de ideologias. Assim, ao contrário de “compensar” a

necessidade dos espectadores, os novos contos irão fazer com que ele deseje consumir

cada vez mais. E a indústria cultural sempre oferecerá o que ele busca, na tentativa de

impulsionar, ainda mais, o seu desejo de consumo.

Como quadro de referenciais teóricos, a presente dissertação apoia-se,

primeiramente, nos estudos mais aprofundados dos contos de fada e opta por entendê-

los a partir dos conceitos da psicologia analítica. Assim, por meio das teorias de Carl

Gustav Jung e de sua amiga e colaboradora Marie Louise Von Franz, é que essas

histórias serão compreendidas como formas de ensinamentos e importantes

instrumentos simbólicos para os seres humanos.

Após a leitura desses autores, mostra-se fundamental a apreciação dos estudos

de Joseph Campbell, já que ele ressalta a importância das narrativas para o homem e

expõe as semelhanças entre diversas mitologias e religiões, mostrando como seus

protagonistas podem representar várias faces de uma mesma história, mudando apenas

as condições sócio-culturais que os rodeiam.

Outros autores que serão utilizados na dissertação e que também voltam seus

estudos às antigas narrativas são Mircea Eliade e Karen Armstrong. Suas teorias em

relação à relevância dos mitos como importantes formas de conhecimento para os povos

ditos primitivos, ou ancestrais, e o descrédito dos mesmos em nossa sociedade atual,

torna-se fundamental para a abordagem do estudo.

Busco ainda nas teorias de Vladimir Propp, um importante instrumento de

auxílio para a compreensão literária dos contos de fada, já que esse autor identifica a

ocorrência dos mesmos esquemas narrativos entre povos que não poderiam ter tido

contato entre si, desvendando, assim, uma sequência de acontecimentos que determinam

como é formado um conto maravilhoso.

Outro aspecto essencial para a pesquisa encontra-se na importante relação entre

as mídias como plataformas que os contos de fada podem ser apresentados. Recorre-se,

portanto, aos estudos de Norval Baitello Junior e Harry Pross, em sua Teoria dos Media

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(já mencionada anteriormente). Assim será explicitada a importância da oralidade

dessas histórias, na mídia primária, quando as mesmas evocavam a memória, a

lembrança e dependiam dos corpos para serem conhecidas. Em sua atual transformação,

promovida pela mídia terciária, esses contos afastam-se de sua ideia original, que é

transmitir conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo, e aproximam-se de um

propósito distinto, buscando impulsionar o desejo de consumo, seja qual for a

mensagem apresentada pela narrativa.

Em relação à apropriação dos contos de fada e sua transformação em produtos

da indústria do entretenimento, encontro nos conceitos de Theodor W. Adorno e Max

Horkheimer, o auxílio necessário para a melhor compreensão da indústria cultural, lugar

no qual essas histórias serão, posteriormente, inseridas.

Ainda sobre essa temática, apoio-me nos estudos de comunicação de massa de

Edgar Morin, para demonstrar que a cultura de massa, um reflexo da indústria cultural,

desenvolve-se em função das necessidades individuais que emergem em cada época.

Dessa forma, cabe a ela fornecer, por meio de seus produtos, os temas, valores e

modelos que correspondam às aspirações de seus espectadores, audiências,

consumidores.

Nesse sentido, recorro ainda às ideias de Roland Barthes em relação aos mitos.

Este autor os compreende como formas de ideologia e reforça a proposta aqui

apresentada de que em nossa sociedade, fortemente marcada pelos produtos da indústria

cultural, as narrativas e, consequentemente, os contos de fada, são utilizados para

propagar o sistema de ideias da época em que são oferecidos.

Por fim, a presente dissertação recorre aos estudos de Dimas A. Künsch, em

especial sobre o que ele chama de pensamento compreensivo, como aquele que abrange,

reconhece e coloca em diálogo as diferentes áreas, lugares e protagonistas do

conhecimento. Assim, ao lado de um saber científico, levanta-se também a importância

dos saberes míticos, artísticos, filosóficos, religiosos e comuns. Inspirada pela ideia de

signo da compreensão, e não da explicação, como distingue Künsch, é que busco

estudar as narrativas, em especial, os contos de fada, como uma forma de entender o ser

humano e seu lugar no mundo.

A ideia de compreensão vincula este trabalho aos esforços teóricos do grupo de

pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da Compreensão”, do Programa

de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, e ao projeto de pesquisa

que dele deriva, “Conversando a gente se entende”, concluído em dezembro de 2014.

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Ficam claras, também, as vinculações diretas deste trabalho à linha de pesquisa

“Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”, desse mesmo Programa.

O estudo que aqui se propõe acerca da retomada e reinvenção dos contos de fada

utilizará, como base metodológica, em primeiro lugar, a pesquisa bibliográfica, uma vez

que importantes autores abordaram esse tema, sob as mais diversas perspectivas. Para

tanto, a investigação de suas teorias torna-se fundamental, como ponto de partida.

Aliado a esse estudo da bibliografia de referência, deve-se também fazer um

levantamento em sites especializados na tentativa de mensurar a quantidade de filmes,

animações e seriados surgidos nos últimos anos que se adequem à perspectiva dos

contos de fada. Assim, o mapeamento das produções que constituem o objeto de estudo

adquire uma importância fundamental para este trabalho.

Outro passo importante para o entendimento das crescentes modificações

propostas em novas histórias, pela indústria do entretenimento, será realizado por meio

de uma comparação entre algumas personagens bastante conhecidas pelo público

(representadas pelos arquétipos da Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói). Assim,

verificaremos como essas figuras eram apresentadas nos contos “originais” e como as

mesmas se manifestam quando adaptadas e transportadas para telas, revelando algumas

das características centrais perdidas, substituídas ou alteradas nesse processo.

Finalmente, por meio da verificação detalhada da série de livros/filmes

Crepúsculo, relacionando-a com seus principais referenciais (os contos de fada), tanto

em sua forma, quanto em seu conteúdo e, principalmente, em relação aos seus temas e

personagens centrais, pretendemos demonstrar como os contos foram condensados para

serem reinventados em um produto típico da cultura de massa a que pertence.

A pesquisa proposta se estrutura em três capítulos. O capítulo primeiro,

intitulado O Retorno da Magia, será o responsável pelo início efetivo de nossa jornada

ao mundo dos contos maravilhosos, discutindo sua aproximação “apenas” com as

crianças e compreendendo-os como fundamentais formas de conhecimento e

ensinamento, sobre o ser humano e o mundo. A importância dos contos e mitos e seu

posterior declínio serão, portanto, relatados nessa primeira parte do trabalho.

Esse capítulo também se propõe a mapear a retomada dos contos maravilhosos,

evidenciada desde o início deste século por meio de filmes, animações e seriados

televisivos, procurando encontrar as razões pelas quais esse fenômeno acontece. Assim,

utilizamos os estudos de Carl Gustav Jung, Marie Louise Von Franz, Joseph Campbell,

Karen Armstrong, Mircea Eliade e Dimas Künsch.

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O capítulo segundo, intitulado Reinvenções Des(Encantadas), propõe uma

reflexão acerca dos contos orais e sua transposição para as telas, em um reflexo da

indústria cultural para a qual os mesmos são reproduzidos e reinventados como

produtos do mercado de entretenimento.

Essa parte da pesquisa procura apresentar os dois tipos de reinvenções

encontrados nesses produtos: as diretas (aquelas que pelo título ou pelos personagens

centrais reconhecemos os antigos contos de fada) ou as indiretas (aquelas que

precisamos ler em suas entrelinhas para entender que estamos diante de temas

relacionados aos contos maravilhosos).

Nas reinvenções diretas, ao contrário de escolher uma ou outra história, opta-se

pelo estudo de três importantes personagens, manifestadas pelas figuras arquetípicas da

Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói. Quanto às reinvenções indiretas, voltamos

nossa atenção para as obras de fantasia transportadas para as telas, cuja repercussão em

nosso século tenha sido bastante significativa, em termos de público e arrecadação.

Além disso, por terem sido lançadas, ambas, em 2001 e, com isso, representarem o

início do que estamos chamando de retomada dos contos, nos debruçamos no estudo de

alguns aspectos dos filmes O Senhor dos Anéis e Harry Potter, responsáveis por conter

elementos importantes de contos de fada. Os autores utilizados aqui serão Norval

Baitello Jr, Harry Pross, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Roland Barthes, Edgar

Morin e, novamente, Carl Gustav Jung, Marie Louise Von Franz, Joseph Campbell e

Mircea Eliade.

Intitulado Era Uma Vez... Outra Vez, o capítulo terceiro volta sua atenção para

os quatro livros que constituem a série Crepúsculo (Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse e

Amanhecer), que, posteriormente, deram origem a cinco produções cinematográficas

(Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse, Amanhecer: Parte 1 e Amanhecer: Parte 2). Como

exemplo máximo da reinvenção indireta, proposta no segundo capítulo, esta parte da

dissertação, buscará as possíveis referências da autora Stephenie Meyer ao escrever essa

saga. Tal obra foi a escolhida por acreditarmos que esse seja o ápice das reinvenções

dos contos de fada, até o presente momento.

Na tentativa de relacionar essa série aos contos maravilhosos, comparando-a,

tanto em relação à temática quanto aos personagens centrais, este capítulo procura a

possível fonte de inspiração da autora e tenta mostrar que, ao contrário de uma história

de vampiros, este é um representante dos contos de magia. Para tal tarefa, o estudo

apoia-se fortemente nas ideias de Joseph Campbell e Vladimir Propp.

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Espera-se, com esse trabalho, que possamos chamar a atenção para a

importância das antigas narrativas como fundamentais formas de conhecimento. Nossa

sociedade contemporânea, fortemente marcada pelo logos e pela razão, parece ter se

esquecido dos ensinamentos que essas histórias são capazes de transmitir. Parece ter

desaprendido a ler os símbolos que os contos de fada são capazes de comunicar. Talvez,

por isso mesmo, vivenciamos uma profunda crise.

A pesquisa proposta pretende ainda contribuir para demonstrar que nossas

histórias ancestrais encontram-se em todas as partes mas, principalmente, dentro de nós

mesmos. Se elas são, constantemente, aproveitadas pelos produtos da indústria cultural,

é porque ainda tentam dialogar conosco, tentam nos dizer algo. Algo muito importante,

que devemos reaprender a ouvir.

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Capítulo 1

O RETORNO DA MAGIA

1.1. Eu acredito em fadas e em bruxas. E você?

Contos maravilhosos infantis são narrados para que em sua luz suave e pura os

primeiros pensamentos, as primeiras forças do coração despertem e vicejem;

uma vez que sua singela poesia, sua íntima verdade pode alegrar e instruir todo

e qualquer ser humano (GRIMM, 2012, p. 12-13).

Há quem pense que os contos de fada sejam apenas histórias de crianças.

Alegorias narradas aos pequenos antes de dormir ou uma forma de distração para que os

mesmos passem o tempo lendo um livro ou assistindo seu desenho preferido na

televisão, enquanto seus pais, os adultos, aqueles que acreditam não mais precisarem

disso, trabalham ou fazem algo muito importante. Essas pessoas se enganam por pensar

assim, pois, de acordo com os estudos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, os contos

são um dos mais admiráveis meios de comunicação que possuímos com o nosso

inconsciente. Ao lado dos sonhos, eles representam a forma mais pura de diálogo com

esse lado desconhecido de nossa psique, a porta que se abre para o “País das

Maravilhas”.

Mas o que é afinal um conto de fada? Alguns diriam tratar-se de histórias

fantásticas, narrativas que trazem ensinamentos, jornadas que proporcionam

aprendizados aos seres humanos, contos responsáveis por expor a aventura de um herói

que passa por diversos perigos e encontra, após uma virada surpreendente, um final feliz

ou merecido. Tentemos ir além. Mais interessante do que procurar uma explicação

Page 22: Carolina Chamizo Henrique Babo

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fechada e encerrada em definições, o ideal seria senti-los, compreendê-los, deixá-los

fluir livremente em momentos de magia e reflexão.

Como parte fundamental da psique, os contos de fada habitam nossa alma,

dialogando a todo o momento com o que temos de mais valioso dentro de nós: nosso

universo simbólico, nossa capacidade de criar narrativas, inventar histórias e

exteriorizar sonhos. Estudá-los e compreendê-los significa estudar e compreender não

somente a história humana, mas, e principalmente, a história de cada ser humano, uma

vez que eles pertencem aos reinos encantados do inconsciente e refletem diretamente na

nossa mais importante forma de representação simbólica, que é a própria vida.

Essas belas e, muitas vezes, sombrias narrativas, contadas pelos seres humanos

desde os tempos mais remotos, são originadas no interior, em contato direto com a

nossa essência. Jung denomina esse lugar, onde nascem e vivem as histórias,

inconsciente coletivo, sendo essa uma camada mais profunda do inconsciente, habitada

por conteúdos idênticos e compartilhada por toda a espécie humana. O inconsciente

coletivo surge como o espaço responsável por originar as nossas mais diversas formas

de mitologia. É ele o primeiro reino encantado da fantasia.

Povoado por estruturas comuns, denominadas por Jung arquétipos, que seriam,

em suas próprias palavras, “tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, imagens

universais que existiram desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2012, p. 13), o

inconsciente coletivo exibe a força que carrega em si ao oferecer histórias tão simples,

porém, que tocam diretamente a quem as escuta.

Por serem narrativas universais, os contos de fada moldam a vida de homens e

mulheres e refletem nossas alegrias e medos, enquanto nos auxiliam na compreensão de

nosso lugar no mundo. Jung os expõe de maneira inspiradora, quando afirma que: “o

conto, sendo um produto espontâneo, ingênuo, irrefletido da alma, só pode expressar

aquilo que é próprio da alma” (JUNG, 2012, p. 240).

Talvez, a mais bela noção tenha surgido nos estudos de Marie Louise Von Franz,

que compara essas narrativas, em uma poética metáfora, com o movimento realizado

pelo mar: “para mim, os contos de fada são como o mar, e as sagas e os mitos são como

ondas desse mar, um conto surge como um mito, e depois afunda novamente para ser

um conto de fada” (VON FRANZ, 2012, p. 33).

Ainda de acordo com essa autora, os “contos de fada são a expressão mais pura e

mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo (...). Eles representam os

arquétipos na sua forma mais pura, plena e concisa” (VON FRANZ, 2012, p. 9). Assim,

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podemos interpretar os contos de fada como histórias inspiradas pelo inconsciente

coletivo da humanidade que refletem nossos desejos e medos mais ancestrais.

Responsáveis por nos mostrar sombrios caminhos, inspirar os mais belos sonhos

e ensinar importantes lições, essas narrativas têm como principal “missão” nos guiar

pelos labirintos de nossa vida consciente, sempre com o auxílio do nosso mundo

simbólico, o inconsciente, que alguns aprendem a esquecer e que nós devemos aprender

a decifrar.

Nascidos nas profundezas de nossa alma, “esse ser eólico, de cores cintilantes,

semelhante a uma borboleta” (JUNG, 2012, p. 211), que sonha os sonhos do mundo, os

contos de fada emergem de nosso inconsciente para encantar e colorir a vida humana,

desde o mais remoto tempo. Seus motivos são surpreendentemente semelhantes e

repetem-se entre as mais variadas culturas. Ao contrário do que pensa a maioria das

pessoas, eles não são direcionados apenas às crianças e servem como guias para todos

nós. Por meio de seus símbolos, formam uma linguagem universal, que é compreendida

imediatamente. Por todos. Em todas as épocas. Em todos os lugares.

Infelizmente (ou felizmente) parece não haver combinação alguma de palavras

que represente sua real importância e que tenha condições de defini-los. Porque não se

trata de um apanhado de conceitos. Isso nunca. Trata-se de uma profusão de

sentimentos. Repletos de encanto e magia, os contos de fada devem ser lidos com o

coração. Tentar usar a visão para entendê-los seria um erro muito grave. Traria a

cegueira da alma.

Assim, devemos deixar que eles nos toquem, nos inspirem, nos mostrem seus

ensinamentos, nos encantem ou assustem, com suas belas fadas e terríveis bruxas.

Devemos acreditar nesses seres e, com seu auxílio, viajar para o reino desconhecido,

que habita nosso mais profundo mundo interior . Um mundo cheio de mistérios, os mais

diversos. A chave que abre essa porta parece, para alguns, impossível de ser alcançada

e, para outros, proibida. Mas, como nos alerta Jung, “nada excita mais a nossa

curiosidade do que uma proibição” (JUNG, 2012, p. 237).

Façamos a chave girar, portanto, e adentremos o mundo encantado, buscando as

origens dos contos e entendendo qual a sua verdadeira missão. Certamente, depois dessa

experiência, não mais veremos nessas histórias, narrativas “tolas” ou “infantis”.

Entenderemos sua importância e seus ensinamentos, sua beleza e seu horror. Cada vez

que uma luz brilhar enxergaremos uma fada e cada vez que as trevas surgirem em nossa

vida, saberemos que é obra de uma bruxa. Ah, mas elas não fazem por mal. De jeito

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nenhum. A luz e as trevas existem dentro de cada um de nós. Às vezes devemos

transgredir algumas regras, ignorar algumas fadas ou nos aliar a certas bruxas para

realizarmos a nossa jornada de aprendizado. Suas manifestações nos orientam. Seus

conselhos nos transformam. Seu pó é mágico e nos possibilita voar. Suas maldições são

necessárias e nos permitem amadurecer. Assim, quando uma voz ressoar, novamente,

bem baixinho em seu ouvido, preste atenção. Pode ser uma delas.

1.1.1. Origens e principais representantes dos contos de fada

Quando pensamos em contos de fada, logo lembramos de histórias conhecidas,

como Branca de Neve, Rapunzel, A Bela Adormecida ou João e Maria, para citarmos

apenas alguns exemplos. Esses e tantos outros contos foram reunidos pelos irmãos

Jacob e Wilhelm Grimm, no livro Kinder-und Hausmärchen (Contos da Infância e do

Lar), lançado, originalmente, em 1812. Os Irmãos Grimm, nascidos na Alemanha,

dedicaram uma boa parte de sua vida na compilação e divulgação dessas histórias,

recolhidas em diversas cidades de seu país e traduzidas, posteriormente, para o mundo.

Antes deles, porém, outro autor já havia aberto as portas para o gênero: o francês

Charles Perrault, conhecido por histórias como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela,

Barba Azul, O Gato de Botas, Pele de Asno e O Pequeno Polegar, entre tantas outras.

Sua obra mais famosa, Contes de Ma Mère l'Oye (Contos da Mamãe Gansa), lançado

em 1697, reunia as histórias que ele havia ouvido nos salões parisienses, época em que

trabalhara na corte do rei Luís XIV, e trazia, ao final de cada conto, uma espécie de

“moral da história”.

Ainda nessa mesma perspectiva, de coletar as narrativas de determinado país ou

cultura, outro importante autor deve ser destacado neste estudo: o australiano Joseph

Jacobs, conhecido por se preocupar em reunir os contos de fada ingleses e celtas,

fornecendo novas histórias ao público que se interessava por esse tipo de literatura.

Assim, ele coletou uma série de contos em quatro edições: English Fairy Tales (Contos

de Fada Ingleses), de 1890; Celtic Fairy Tales (Contos de Fada Celtas), de 1892; More

English Fairy Tales (Mais Contos de Fada Ingleses), de 1894; e More Celtic Fairy

Tales (Mais Contos de Fada Celtas), de 1894.

Dessas obras destacamos clássicos como João e o Pé de Feijão, Os Três

Porquinhos, Connla e a Donzela Encantada e Árvore Dourada e Árvore Prateada.

Destacamos aqui que os contos celtas, um pouco diferentes dos demais, fazem

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referências à mitologia desse povo, bem como aos lugares em que eles viviam. Assim,

um dos mais bonitos dessas coletâneas, por exemplo, Os Filhos de Lir, reproduz uma

história mitológica bastante conhecida e importante para essa cultura.

Claro que, se pensarmos nos contos dos Grimm, de Perrault ou de Jacobs,

perceberemos que algumas histórias se repetem. É o caso de A Bela Adormecida,

Cinderela ou Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, que aparecem nas obras dos dois

primeiros autores. Alguns detalhes são alterados, mas a base da narrativa e, até mesmo,

seu título permanecem o mesmo.

Ou, ainda, de Branca de Neve e Árvore Dourada e Árvore Prateada,

imortalizadas nas páginas dos livros dos Grimm e de Jacobs, respectivamente, com

algumas alterações, mas com a mesma mensagem central. Típicos exemplos de

manifestações arquetípicas do inconsciente coletivo, migrando entre povos e culturas

distintas e mostrando sua força e importância.

Existem ainda outras narrativas bastante conhecidas que não foram citadas até o

momento. É o caso de A Pequena Sereia, O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, A

Roupa Nova do Rei, A Princesa e a Ervilha, A Pequena Vendedora de Fósforos e A

Rainha da Neve. Estes contos são um pouco diferentes dos abordados até o momento, já

que não são mais reunidos de acordo com a cultura popular de determinada região. Ao

contrário, eles são escritos por um autor específico, o dinamarquês Hans Christian

Andersen e publicados também nos anos 1800, sob o título de Contos (1835-1872).

Assim, enquanto alguns compilavam, outros criavam suas próprias histórias.

Esse também é o caso de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont (A Bela e a Fera

- 1757), Carlo Collodi (As aventuras de Pinóquio - 1883) Lewis Carrol (Alice no País

das Maravilhas - 1865 e Alice no País dos Espelhos - 1871), L.Frank Baum (O Mágico

de Oz - 1900) e J.M.Barrie (Peter Pan - 1911), artistas responsáveis por escrever suas

narrativas.

Devemos ressaltar que esses contos traziam aspectos relacionados também ao

inconsciente pessoal dos autores. Este corresponde, na visão de Jung, a uma camada

mais superficial do inconsciente e nele estão armazenados conteúdos esquecidos ou

reprimidos, experiências pessoais, lembranças difíceis de serem trazidas à luz e que, por

isso mesmo, são mantidas escondidas do próprio indivíduo. Jung (2012, p.12) expressa

da seguinte maneira a distinção entre inconsciente pessoal e coletivo:

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Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente

pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre

uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou

aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos

inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de o

inconsciente não ser de natureza individual, mas universal. (...) Uma existência

psíquica só pode ser reconhecida pela presença de conteúdos capazes de serem

conscientizados. Só podemos falar, portanto, de um inconsciente na medida em

que comprovarmos os seus conteúdos. Os conteúdos do inconsciente pessoal

são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a

intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por

outro lado, são chamados arquétipos.

Assim, embora esses contos escritos por determinado autor, e não mais coletados

da cultura popular, tragam temas universais, originados do inconsciente coletivo, eles

também refletem conteúdos presentes no inconsciente pessoal de cada escritor,

acabando por revelar aspectos de sua própria personalidade.

Claro que os contos não se limitam a apenas esses escritores e essas obras. Se

buscarmos em outros países e culturas, também descobriremos novas histórias. Paro por

aqui, entretanto, por serem esses os mais conhecidos em nosso país, em decorrência dos

livros de contos de fada que chegam a nós e das adaptações que nos são oferecidas em

forma de animações, filmes ou seriados televisivos.

Assim, embora tenhamos maior contato com essa forma literária, especialmente

pelos autores citados anteriormente, devemos salientar que a origem desses contos

maravilhosos perde-se no tempo. Seu contorno original compreende histórias contadas

oralmente, havendo registros de sua existência entre as mais antigas civilizações. Marie

Louise Von Franz (2012, p. 11-12) afirma sobre isso:

Pelos escritos de Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas

crianças histórias simbólicas – “mythoi”. Desde então, os contos de fada estão

vinculados à educação das crianças.(...) Mas temos uma informação ainda mais

antiga, porque os contos de fada também foram encontrados nas colunas e

papiros egípcios, sendo um dos mais famosos o dos dois irmãos, Anubis e Bata.

Ele se desenvolve de modo paralelo a todos os outros contos sobre “dois

irmãos” que se podem coletar nos países europeus. Nossa tradição escrita data

aproximadamente de 3.000 anos e o que é mais interessante, os temas básicos

não mudaram muito. (...) Existem indícios de que alguns temas principais de

contos se reportam a 25.000 anos a.C., mantendo-se praticamente inalterados.

Ao contrário do mito, que apresenta uma forma mais elaborada, o conto de fada

oferece uma narrativa direta. Von Franz (2012, p. 35) acredita que essa “parece ser a

linguagem internacional de toda a espécie humana”. Se pensarmos com cuidado, os

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autores citados anteriormente, responsáveis por escrever ou compilar as mais famosas

histórias a que temos acesso são, em sua maioria, europeus, mas as narrativas que eles

contam são universais. Em qualquer lugar do mundo podemos sentir a dor de Cinderela,

maltratada pela madrasta e por suas irmãs ou a crueldade da Rainha Má, que persegue

sua própria filha, apenas pelo fato de a jovem ser mais bela do que ela.

Ainda relacionando os contos e os mitos, Von Franz acredita que estes últimos

sejam mais específicos e correspondam melhor a determinada cultura. Mesmo que seus

temas se repitam, os deuses e heróis recebem distintos nomes e características físicas de

acordo com o país de seu nascimento. Assim, por exemplo, Zeus, a autoridade máxima

do Olimpo, deus dos raios e trovões, só poderia ser grego, com sua pele branca, cabelos

negros e olhos azuis como o céu; enquanto o ruivo Thor, o deus que empunha o martelo

Mjolnir, e está associado aos trovões, relâmpagos e tempestades, teria uma

descendência nórdica. Portanto, eles estariam ligados “ao consciente coletivo cultural da

nação na qual se originaram” (VON FRANZ, 2012, p. 34). Já nos contos de fada, em

razão da maioria dos personagens não receberem nomes e suas características físicas

serem, raramente, explicitadas, eles parecem mais intimamente ligados a cada um e a

todos nós.

No entanto, fazer uma comparação entre mitos e contos de fada não é a proposta

da presente dissertação. Não há motivos para confrontá-los. Eles são formados pela

mesma essência, originam-se no mesmo lugar, falam para o mesmo ser, utilizam a

mesma forma de linguagem simbólica, comunicam a mesma mensagem e cumprem a

mesma “missão”: a de proporcionar ensinamentos e conhecimento.

1.1.2. Importância e declínio dos contos de fada

O mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como

devemos nos comportar (ARMSTRONG, 2005, p. 9).

“Era Uma Vez”. Três palavras mágicas capazes de nos retirar de nosso mundo

“real” e nos transportar diretamente para um reino encantado de imaginação e fantasia,

repleto de princesas, príncipes, rainhas, reis e fadas madrinhas. Porém, esse pode ser

também um local sombrio, habitado por bruxas, dragões, maldições e feitiços cruéis.

Um lugar em que abóboras transformam-se em carruagens, trapos em vestidos

de festas, um sapatinho encantado revela o verdadeiro amor, e feras são, na realidade,

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belos príncipes. Mas esse é também um espaço em que malvadas madrastas desejam

matar suas enteadas, meninas cortam seus próprios pés, pais decepam as mãos de suas

filhas, viajantes jogam boliche com pernas e cabeças humanas, crianças são

abandonadas sozinhas em uma floresta e sapos são arremessados contra paredes.

Esse reino encantado ou sombrio, ou melhor ainda seria dizer encantado e

sombrio, como somos todos nós, não é constituído apenas por histórias contadas para

distrair ou divertir. Esse reino traz uma série de ensinamentos capazes de instruir e

transformar os seres humanos. Ao entrarmos em contato com essas narrativas, desde

muito cedo, aprendemos determinadas lições que de outra maneira não poderíamos

conhecer. E, claro, nos deparamos com um tipo de conhecimento que nos arrebata, nos

prende, já que como poeticamente nos indica Joseph Campbell (2010, p. 31-32):

Nem sequer teremos que correr os riscos da aventura sozinhos; pois os heróis de

todos os tempos nos precederam; o labirinto é totalmente conhecido. Temos

apenas que seguir o fio da trilha do herói. E ali onde pensávamos encontrar uma

abominação, encontraremos uma divindade; onde pensávamos matar alguém,

mataremos a nós mesmos; onde pensávamos viajar para o exterior, atingiremos

o centro de nossa própria existência; e onde pensávamos estar sozinhos,

estaremos com o mundo inteiro.

Assim, essas narrativas míticas representam ensinamentos sobre a “sabedoria de

vida” (CAMPBELL, 1990, p. 22). Ao seguir a trilha ao lado de um herói, dormir os

cem anos da princesa que recebe uma maldição, adentrar na mais densa floresta ou

enfrentar o dragão, participamos de importantes aprendizados, ensinados pelo

inconsciente, e já realizados por outros seres humanos ao longo de toda a nossa história.

Deparamo-nos com perigos jamais imaginados (mas enfrentados diversas vezes) e

entendemos, simbolicamente, como superá-los. Ao compreender os mitos e contos de

fada compreendemos mais sobre nós mesmos, sobre nossa jornada, sobre nossa vida.

Karen Armstrong (2005, p. 10) afirma que:

Os mitos dão forma e aparência explícita a uma realidade que as pessoas sentem

intuitivamente. Eles contam como os deuses se comportam não por mera

curiosidade ou porque os contos são interessantes, mas sim para permitir que

homens e mulheres imitem esses seres poderosos e experimentem eles mesmos

a divindade.

Enquanto as culturas consideradas “antigas” valorizavam as narrativas míticas e

os contos de fada, a sociedade atual parece não ter tempo para esses ensinamentos.

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Parece não acreditar neles. A própria palavra “mito” costuma assumir o sentido de

“ilusão” ou “mentira”, enquanto a expressão “conto de fada”, de modo semelhante,

pode ser relacionada a uma situação fantasiosa ou irreal. Uma mulher que espera pelo

“príncipe encantado” é considerada uma sonhadora. O mundo que vivemos não tolera

“finais felizes”. Essa sociedade ainda não aprendeu uma lição muito importante,

ensinada por Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces (2010). Ela não aprendeu a

ler a “gramática dos símbolos” (CAMPBELL, 2010, p. 11).

Mas é claro que os contos de fada, assim como os mitos, não devem ser

interpretados em sentido literal. A beleza deles se encontra, justamente, na carga

simbólica que carregam. É no interior de nossa condição humana que eles se revelam de

maneira mais poética. É com nosso inconsciente, e não com o consciente, que eles

falam. Para Campbell (2010, p. 34):

O sóbrio e moderno julgamento ocidental tem como base uma total falta de

compreensão das realidades descritas nos contos de fadas, no mito e nas divinas

comédias de redenção. Essas formas, no mundo antigo, eram consideradas de

natureza mais elevada que a tragédia, manifestações de uma verdade mais

profunda, de percepção mais difícil, de estrutura mais sólida e de revelação mais

completa. O final feliz do conto de fada, do mito e da divina comédia do

espírito deve ser lido, não como uma contradição, mas como transcendência da

tragédia universal do homem. O mundo objetivo permanece o que era; mas,

graças a uma mudança de ênfase que se processa no interior do sujeito, é

encarado como se tivesse sofrido uma transformação.

E esse tipo de conhecimento deveria ser transmitido a todos os seres humanos,

de qualquer idade, em qualquer época e lugar, pois os temas dessas histórias, sua

bondade e violência, vivem dentro de nós. Associá-los apenas às crianças é um erro

comum e grave com o qual o homem convive já, infelizmente, há muitos anos, como

aponta Mircea Eliade (1963, p. 141):

Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido há muito tempo

em literatura de diversão (para as crianças e camponeses) ou de evasão (para os

habitantes das cidades), ele ainda apresenta a estrutura de uma aventura

infinitamente séria e responsável, pois se reduz, em suma, a um enredo

iniciatório: nele reencontramos sempre as provas iniciatórias (lutas contra o

monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a serem

solucionados, tarefas impossíveis, etc.), a descida ao Inferno ou a ascensão ao

Céu (ou ─ o que vem a dar no mesmo ─ a morte e a ressurreição) e o

casamento com a Princesa. (...) A dificuldade está em determinar quando foi

que o conto iniciou sua carreira de simples história maravilhosa, decantado de

toda responsabilidade iniciatória.

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Identificada por Marie-Louise Von Franz como uma “recusa do irracional”

(VON FRANZ, 2010, p. 7), por Joseph Campbell como uma “deficiência simbólica”

(CAMPBELL, 2010, p. 41) e por Karen Armstrong (2005) como o descrédito do mito, a

separação entre o mundo da razão, da ciência e da tecnologia e o mundo das narrativas e

dos símbolos pode ser a chave que Eliade precisava para desvendar em que momento a

importância dos contos começou a decair, perdendo seus contornos originais para ser

transformando em histórias de crianças.

Desde o século XVIII, com o advento do Iluminismo, o homem passou a

defender a ótica da razão e a desacreditar de tudo o que não pudesse ser “explicado” por

ela, como é o caso do pensamento mítico. Desenvolvemos uma visão científica dos

fatos que nos cercam e as narrativas que não se enquadram nesse esquema devem ser

deixadas de lado, como inferiores. O consciente superou, nesse sentido, os temas do

inconsciente, o racional se sobrepôs ao não-racional. E essas histórias simbólicas, que

tanto ajudavam (e ajudam) os seres humanos foram descartadas. De acordo com

Armstrong (2005, p. 13), no entanto,

é um equívoco considerar o mito um modo inferior do pensamento, que pode

ser deixado de lado quando as pessoas atingem a idade da razão. A mitologia

não é uma tentativa inicial de fazer história e não alega que seus relatos sejam

fatos objetivos. Como um romance, uma ópera ou um ballet, o mito é fictício;

um jogo que transfigura nosso mundo fragmentado e trágico e nos ajuda a

vislumbrar novas possibilidades.

Armstrong destaca ainda que essa negação dos temas míticos, em favor da era

do racional, pode ter acarretado uma espécie de embrutecimento da própria

humanidade. Para a autora, “o logos tornou nossa vida melhor de várias maneiras, mas

não houve um triunfo absoluto (...) talvez, devido à supressão do mito, tenhamos até

regredido” (ARMSTRONG, 2005, p. 113).

Dessa maneira, podemos entender que nossa sociedade experimente certo tipo de

esquecimento ou, até mesmo, descrédito pelos temas míticos. Marcada por um modelo

fortemente ancorado nas ideias de ciência e tecnologia, como “dogmas máximos” de

“verdade”, essa sociedade despreza tudo aquilo que não possa ser “provado

cientificamente” (SANTOS, 1989), descartando as grandes narrativas de modelo não

objetivo. Armstrong (2005, p. 15) é enfática ao falar sobre esse assunto:

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Nossa alienação moderna em relação ao mito não tem precedentes. No mundo

pré-moderno, a mitologia era indispensável. Ela ajudava as pessoas a encontrar

sentido em suas vidas, além de revelar regiões da mente humana que de outro

modo permaneceriam inacessíveis. Era uma forma inicial de psicologia.

Se os mitos foram e são, até hoje, tratados como uma narrativa “falsa” e

“mentirosa”, que deveria ser combatida em favor da ciência e da razão, podemos

imaginar o quanto foram rebaixados culturalmente os contos de fada. Por oferecerem

uma visão mais “pura” do inconsciente, no sentido de “crua” e “primitiva”, eles talvez

tenham sido, por isso mesmo, direcionados também para os seres mais “puros” e

“primevos”, as crianças. Seres simbólicos, que ainda não se deixaram dominar pela

razão e nos quais o lado emocional ainda fala mais alto e mais forte. Von Franz (2010,

p. 7) assim coloca essa questão:

Na sua origem, e até por volta do século XVII, os contos de fada se destinavam

menos às crianças que à população adulta. (...) Progressivamente, no entanto, o

desenvolvimento da corrente racional e seu corolário, a recusa do irracional,

fizeram com que os contos populares fossem vistos apenas como absurdas

histórias de velhinhas, que só serviam para distrair as crianças. Até há pouco

tempo, a maioria dos adultos não se exporia ao ridículo de levar os contos de

fada a sério. Estes, entretanto, já haviam se tornado objeto tanto de estudos

científicos como literários; diversas teorias foram elaboradas sobre o assunto e

as coletâneas dos contos se multiplicaram em diversos países.

Os estudos e teorias mencionados por Von Franz, cujo destaque podemos

observar especialmente nos campos da Psicologia, Antropologia, Literatura e Pedagogia

(ou, em nosso caso, na área da Comunicação), reforçam a ideia da importância dessa

forma literária para os seres humanos. Mircea Eliade (1963, p. 141-142) também

destaca a sua importância:

O conto reata e prolonga a “iniciação” ao nível do imaginário. Se ele representa

um divertimento ou uma evasão, é apenas para a consciência banalizada e,

particularmente, para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os

enredos iniciatórios conservam sua seriedade e continuam a transmitir sua

mensagem, a produzir mutações.

Assim, embora alguns ainda “sofram” desse mal, o descrédito pelo mito, nós,

que não fomos contaminados por essa “doença”, podemos identificar nessas histórias

uma das mais importantes formas de conhecimento a que temos acesso. Orientada pelas

Page 32: Carolina Chamizo Henrique Babo

32

bases do pensamento compreensivo1 ─ aquele que nega a postura absoluta e

inquestionável da ciência e se aproxima de outras formas de entendimento do mundo,

como a arte, o pensamento mítico, a religião e os saberes comuns ─, acredito que

quanto mais próximos estivermos de nosso mundo simbólico, mais saudáveis estaremos

em relação à vida. Dimas Künsch (2010, p. 21) aponta que:

O pensamento cognitiva e eticamente compreensivo, que avalia como nociva a

compulsão analítico-explicativa, entende-se bem com a ancestral necessidade

humana de contar histórias, tecer sentidos, narrar o mundo e a vida. As

narrativas – em qualquer área do saber e da experiência – , além de lançar luz

sobre os sentidos possíveis das coisas, conseguem revelar o teor das

interrogações que os seres humanos levantam sobre as grandes e às vezes muito

ordinárias questões que os preocupam e ocupam. Articulam sentidos possíveis

em dado momento da história e da cultura. Abrem, não fecham.

Para abrirmos e jamais fecharmos as portas de nosso inconsciente devemos saber

ouvir os contos. Entender quais as mensagem que eles nos transmitem. Compreender a

jornada que eles nos auxiliarão a enfrentar. Proporcionar um diálogo entre o consciente

e o inconsciente, entre a luz e as sombras.

Ter medo da bruxa malvada é uma atitude compreensível, mas, ao absorvermos

essa história até o fim, saberemos como enfrentá-la. Que outro tipo de conhecimento

nos ensinaria isso? A ciência? A razão? A tecnologia? Ora, mas elas nem acreditam em

fadas ou bruxas. Por isso são em geral assim, tão duras, críticas, falsamente assépticas.

Tão tristes. Pensam viver em um mundo sem magia, mas esse lugar não existe. Ou você

pensa que sim? Pois, como os contos nos ensinam, as fadas e as bruxas vivem dentro de

nós. A Era da Razão, em toda a sua infinita sabedoria, parece que ainda não conseguiu

desvendar esse mistério.

1 O pensamento compreensivo é objeto, na Faculdade Cásper Líbero, dos estudos e produções do grupo

de pesquisa “Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da Compreensão”, e base do projeto de pesquisa,

de que esta autora fez parte, até o final de 2014, quando foi concluído o livro “Comunicação, Diálogo e

Compreensão”. Neste livro, a autora contribuiu com o texto “O Diálogo de Pinóquio”, no qual propôs

uma reflexão acerca da importante conversa que realizamos todos os dias em busca de nosso próprio

equilíbrio: o diálogo entre o consciente e o inconsciente.

Page 33: Carolina Chamizo Henrique Babo

33

1.2. A(s) retomada(s)

Parece chegada a hora de restabelecer um diálogo, rompido nos últimos séculos

entre logos e mythos. Entre racional e não-racional. Ciência e arte. Ciência e

vida (KÜNSCH, 2010, p. 23).

Desde o início do século 21, podemos observar um fenômeno bastante

interessante se voltarmos nosso olhar à produção cultural, em especial aos filmes,

seriados televisivos e animações realizadas nos Estados Unidos, um fenômeno que se

poderia entender como uma espécie de retorno da magia. O ano de 2001 é marcado pela

estreia de duas das mais importantes franquias (relacionadas a mundos encantados) dos

últimos tempos, já que a primeira parte da trilogia O Senhor dos Anéis, inspirada na

obra do escritor inglês J.R.R.Tolkien, e o primeiro filme da saga Harry Potter, da

também britânica J. K. Rowling, são, ambos, lançados.

Além disso, esse é o ano de estreia de Shrek, a animação que tem como tema

central uma paródia aos contos de fada, mas que nem por isso deixa de citá-los ou

utilizá-los, para criar a sua própria história que também é, na realidade, um conto. E

ainda temos o relançamento, em versão platinum, do DVD Branca de Neve e os Sete

Anões, o primeiro dos clássicos Disney, lançado, originalmente, em 1937. Para

completar, há um filme baseado nesse mesmo conto, intitulado Branca de Neve.

A partir de então, isso que estamos chamando aqui de retorno da magia, ou, mais

especificamente, esse retorno à temática dos contos de fada, um fenômeno a ser

investigado, intensifica-se com outros títulos sendo produzidos ao longo dos anos, como

fica evidenciado nas tabelas a seguir.

As Tabelas 1 e 2 revelam as animações e filmes (respectivamente) que se

utilizam abertamente dos contos maravilhosos como fontes de inspiração. Já a Tabela 3

dedica-se a mostrar as produções cinematográficas que trazem, de maneira implícita,

alguns dos conteúdos presentes nessas narrativas, com destaque para a obra que iremos

estudar mais profundamente no terceiro capítulo, representada pela saga Crepúsculo. A

Tabela 4 indica os seriados televisivos que se apropriam dessas histórias, de maneira

direta ou indireta.

O período compreendido pelas tabelas tem início em 2001 e segue até a presente

data, neste mês de janeiro de 2015, antecipando alguns lançamentos previstos para este

ano.

Page 34: Carolina Chamizo Henrique Babo

34

Tabela 1: Contos de Fada com Referências Diretas - Animações (2001-2015)

2001 Shrek

Branca de Neve e os

Sete Anões (Edição

Platinum)

2002

Peter Pan De Volta à Terra

do Nunca

Cinderela II: Os

Sonhos se Realizam

A Bela e a Fera (Edição

Platinum)

2003

2004 Deu a Louca na Chapeuzinho Shrek 2

Aladin (Versão

Platinum)

2005 Cinderela (Edição Platinum)

2006

A Pequena Sereia (Edição

Platinum)

A Pequena Vendedora

de Fósforos (Curta de

Animação)

2007

Cinderela III Uma Volta no

Tempo Shrek Terceiro

Deu a Louca na

Cinderela

Peter Pan (Edição Platinum)

2008

A Pequena Sereia: A

História de Ariel Tinker Bell

A Bela Adormecida

(Edição Platinum)

2009

Tinker Bell e o Tesouro

Perdido A Princesa e o Sapo

Deu a Louca na Branca

de Neve

Branca de Neve e os Sete

Anões (Edição Diamante)

Pinóquio (Edição

Platinum) Coraline

2010

Tinker Bell e o Resgate da

Fada Enrolados Shrek Para Sempre

A Bela e a Fera (Edição

Diamante)

Como Treinar o Seu

Dragão

2011

Deu a Louca na Chapeuzinho

II O Gato de Botas

2012

Tinker Bell: O Segredo das

Fadas Valente

Cinderela (Edição

Diamante)

A Origem dos Guardiões

2013

A Pequena Sereia (Edição

Diamante)

Peter Pan (Edição

Diamante)

2014

Frozen: Uma Aventura

Congelante

Tinker Bell: Fadas e

Piratas

A Bela Adormecida

(Edição Diamante)

A Lenda de Oz

Como Treinar o Seu

Dragão 2

2015 Aladdin (Edição Diamante)

Page 35: Carolina Chamizo Henrique Babo

35

Tabela 2: Contos de Fada com Referências Diretas - Filmes (2001-2015)

2001 Branca de Neve João e o Pé de Feijão O Diário da Princesa

2002

A Fábula Moderna de João e

Maria

2003 Peter Pan

2004 A Nova Cinderela

Em Busca da Terra do

Nunca O Diário da Princesa 2

2005 Uma Garota Encantada Irmãos Grimm

Crônicas de Nárnia: O

Leão, a Feiticeira e o

Guarda-Roupa

2006 Penelope

2007 Encantada

Stardust: O Mistério da

Estrela

2008

Crônicas de Nárnia: Príncipe

Caspian

2009 Onde Vivem os Monstros

2010 Alice no País das Maravilhas

Crônicas de Nárnia: A

Viagem do Peregrino da

Alvorada

2011 A Garota da Capa Vermelha A Fera

2012 Branca de Neve e o Caçador Espelho, Espelho Meu

2013

João e Maria: Caçadores de

Bruxas Oz: Mágico e Poderoso

Jack, O Caçador de

Gigantes

2014 Malévola

2015 Caminhos da Floresta Cinderela Pan

Page 36: Carolina Chamizo Henrique Babo

36

Tabela 3: Contos de Fada com Referências Indiretas - Filmes e Animações (2001-

2015)

2001

Harry Potter e a Pedra

Filosofal

O Senhor dos Anéis: A

Sociedade do Anel

Star Wars Episódio II:

Ataque dos Clones

A.I. Inteligência

Artificial

2002

Harry Potter e a Câmara

Secreta

O Senhor dos Anéis: As

Duas Torres Encontro de Amor

2003

Matrix Reloaded/

Revolutions

O Senhor dos Anéis: O

Retorno do Rei Animatrix

2004

Harry Potter e o

Prisioneiro de Azkaban O Fantasma da Ópera

2005

Harry Potter e o Cálice

de Fogo

Star Wars Episódio III: A

Vingança dos Sith Menina Má.Com

2006

2007

Harry Potter e a Ordem

da Fênix

2008 Crepúsculo

2009

Harry Potter e o Enigma

do Príncipe

A Saga Crepúsculo: Lua

Nova Ondine

2010

Harry Potter e as

Relíquias da Morte: Parte

1 A Saga Crepúsculo: Eclipse Cisne Negro

2011

Harry Potter e as

Relíquias da Morte: Parte

2

A Saga Crepúsculo:

Amanhecer Parte 1

2012

O Hobbit: Uma Jornada

Inesperada

A Saga Crepúsculo:

Amanhecer Parte 2 Jogos Vorazes

2013

O Hobbit: A Desolação

de Smaug Jogos Vorazes: Em Chamas

2014

O Hobbit: A Batalha dos

Cinco Exércitos

Jogos Vorazes: A Esperança

Parte 1 Divergente

2015

Jogos Vorazes: A

Esperança Parte 2

A Série Divergente:

Insurgente

Cinquenta Tons de

Cinza

Page 37: Carolina Chamizo Henrique Babo

37

Tabela 4: Contos de Fada com Referências Diretas e Indiretas - Seriados

Televisivos (2001-2015)

2001

2002

2003

2004

2005

Supernatural: Primeira

Temporada

2006

Supernatural: Segunda

Temporada

2007 Tin Man

Supernatural: Terceira

Temporada

2008

True Blood: Primeira

Temporada

Supernatural: Quarta

Temporada

2009

True Blood: Segunda

Temporada

Vampire Diaries: Primeira

Temporada

Supernatural: Quinta

Temporada

2010

True Blood: Terceira

Temporada

Vampire Diaries: Segunda

Temporada

Supernatural: Sexta

Temporada

2011

True Blood: Quarta

Temporada

Vampire Diaries: Terceira

Temporada

Once Upon a Time:

Primeira Temporada

Grimm: Primeira

Temporada

Supernatural: Sétima

Temporada

2012

True Blood: Quinta

Temporada

Vampire Diaries: Quarta

Temporada

Once Upon a Time:

Segunda Temporada

Grimm: Segunda

Temporada

Beauty and The Beast:

Primeira Temporada

Supernatural: Oitava

Temporada

2013

True Blood: Sexta

Temporada

Vampire Diaries: Quinta

Temporada

Once Upon a Time:

Terceira Temporada

Grimm: Terceira

Temporada

Once Upon a Time In

Wonderland

Supernatural: Nona

Temporada

2014

True Blood: Sétima

Temporada

Vampire Diaries: Sexta

Temporada

Once Upon a Time:

Quarta Temporada

Grimm: Quarta

Temporada

Beauty and The Beast:

Segunda Temporada

Supernatural: Décima

Temporada

2015

Vampire Diaries: Sétima

Temporada

Once Upon a Time: Quinta

Temporada

Page 38: Carolina Chamizo Henrique Babo

38

As Tabelas 1 e 2 trazem, portanto, referências diretas, pois consistem em filmes

e animações que, em seu título ou em seus personagens centrais, apresentam de maneira

clara uma alusão aos contos de fada. Dessa forma, parece bastante evidente que as

produções Deu a Louca na Branca de Neve ou Espelho, Espelho Meu, por exemplo,

façam uma menção à história de Branca de Neve, enquanto A Garota da Capa

Vermelha, seja uma releitura de Chapeuzinho Vermelho.

A Tabela 3, por outro lado, traz em seu conteúdo uma série de produções

cinematográficas que se referem de maneira indireta a essas narrativas. Isso porque

precisamos ler em suas entrelinhas ou conhecer com mais profundidade a história para

saber que estamos diante de temas relacionados aos contos maravilhosos, como

veremos mais detalhadamente nos segundo e terceiro capítulos desta dissertação.

Já a tabela 4 apresenta os seriados televisivos que se utilizam dessa temática,

tanto diretamente, como nas produções Once Upon a Time e Grimm, por exemplo – que

trazem os personagens de contos de fada conhecidos por todos – quanto indiretamente,

em casos ilustrados por True Blood ou Vampire Diaries, ambas séries de vampiros,

povoadas também por fadas e bruxas. Essas últimas, aliás, bastante semelhantes a

Crepúsculo, trazem o amor de uma jovem mortal por um ser imortal.

O leitor poderia se questionar: de maneira direta ou indireta, os contos não

fazem parte das produções cinematográficas há muito tempo? É claro que sim. Temos

exemplos de histórias que remetem ao início do cinema, como podemos observar, já em

1901, no filme mudo de Georges Méliès, Bluebeard, uma adaptação do famoso conto

de Charles Perrault, Barba Azul.

A lista de produções desde essa época e até o ano 2000 segue ainda com

exemplos bastante relevantes. Se voltarmos nossa atenção para as animações da Disney,

teremos uma lista que conta com inúmeros clássicos da companhia, como Branca de

Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio (1940), Cinderela (1950), Alice no País das

Maravilhas (1951), Peter Pan (1953), A Bela Adormecida (1959), Robin Hood (1973),

A Pequena Sereia (1989), A Bela e a Fera (1991), Alladin (1992), Pocahontas (1995) e

Mulan (1998).

Devemos ainda nos lembrar de filmes de destaque como Alice no País das

Maravilhas (1933), O Mágico de Oz (1939), O Sapatinho de Cristal (1955), A Princesa

Prometida (1987), Hook: A Volta do Capitão Gancho (1991), A Floresta Negra (1997)

e Para Sempre Cinderela (1998), para citar apenas algumas de tantas produções. Como

exposto anteriormente, os contos também apresentavam além das releituras diretas,

Page 39: Carolina Chamizo Henrique Babo

39

algumas reinvenções indiretas. Ora, quem não se lembra de Uma Linda Mulher (1990),

uma nova versão de Cinderela? Ou de Edward Mãos de Tesoura (1990), uma bela e

tocante história de amor ao estilo de A Bela e a Fera?

Esse é o caso também de clássicos como A Princesa e o Plebeu (1953), Sabrina

(1954), Funny Face (1957), Bonequinha de Luxo (1961) e My Fair Lady (1964), filmes

estrelados por Audrey Hepburn e, todos eles, reinvenções do conto de fada Cinderela.

Talvez a própria Audrey fosse, ela mesma, a reinvenção de uma princesa. E por falar em

realeza, como esquecer que foi durante os anos 1950, mais precisamente em 1956, que

Grace Kelly, uma atriz, foi coroada Princesa de Mônaco?

Esse período, portanto, pode também ter sido marcado por uma retomada dos

contos maravilhosos, influenciada pelo cinema. É possível que não tenham existido

tantas produções como na atualidade, mas certamente havia algo de representativo no

espírito da época.

Outro marco que podemos estabelecer ao pensarmos em produções desse estilo

nos conduz à década de 1980. Década de ressurgimento dos estúdios Disney, com o

clássico A Pequena Sereia (1989). Década em que um conhecido seriado, apresentado

no Brasil pela TV Cultura, chamado Faire Tale Theatre (exibido entre os anos 1982 e

1987) foi transmitido. Década de lançamento de filmes como A História Sem Fim

(1984), Splash: Uma Sereia em Minha Vida (1984), O Mundo Fantástico de Oz (1985),

A Lenda (1985), Labirinto: A Magia do Tempo (1986), A Princesa Prometida (1987) e

Willow: Na Terra da Magia (1988). Década em que Diana e Charles se casaram (1981)

e em que Diana ficou conhecida como “Sua Alteza Real”. Mais uma princesa coroando

uma possível retomada desses contos. Mais uma vez a história de Cinderela reinventada

diante de nossos olhos.

Não podemos considerar apenas uma coincidência, portanto, que nosso tempo,

um tempo em que novamente estamos vendo uma série de contos de fada serem

recriados nas telas do cinema, tenha a sua própria princesa. Proveniente da Família Real

Britânica, William (filho de Diana e Charles) se casa, em 2011, com Kate Middleton. A

Cinderela, de “carne e osso”, radiante em seu vestido, faz mais uma aparição ao mundo

e toma a forma de Kate.

Cinderela, a animação, tem sua edição platinum lançada em 2012. E não é que

um dos lançamentos mais aguardados de 2015 seja, justamente, Cinderela, o filme da

Disney? Quantas vezes mais poderá ser Cinderela reinventada?

Page 40: Carolina Chamizo Henrique Babo

40

1.3. Compensações arquetípicas

Dessa forma, podemos constatar que, embora esse fenômeno pareça ter se

revelado ou ao menos se esboçado em décadas anteriores, ele se acentua nos últimos

anos, desde a virada de nosso século, de maneira bastante significativa. É o que

mostram as tabelas antes apresentadas e o que podemos sentir se olharmos ao nosso

redor, ampliando inclusive nossa visão para outros campos da produção cultural.

Evidencia-se que tal fenômeno não se restringe ao cinema e à televisão. O teatro,

por exemplo, torna-se também um espaço para essa retomada. Se pensarmos em

espetáculos da Broadway, identificamos a estreia, em 2002, de Wicked, um musical

baseado no romance de Gregory Maguire que narra as aventuras das bruxas de Oz, antes

da chegada de Dorothy. Um prólogo, portanto, para o clássico de L. Frank Baum, O

Mágico de Oz.

Nesse mesmo sentido observa-se, em 2006, a adaptação para os palcos de Peter

and the Starcatcher, uma peça inspirada pelo livro homônimo de Dave Barry e Ridley

Pearson, responsável por fornecer a história de Peter Pan antes de seu encontro com

Wendy e de relatar como este se tornou o líder dos meninos perdidos.

Ainda relacionada com Peter Pan, outra peça teatral, Peter and Alice, cuja

estreia aconteceu em 2013, baseia-se no encontro de uma mulher de 80 anos, Alice

Liddell, e de um rapaz de 30 anos, Peter Llewelyn, em uma exibição para homenagear

Lewis Carroll. Escrito por John Logan, o espetáculo propõe o confronto entre

encantamento e realidade ao estabelecer a reunião desses personagens: ela, a mulher que

inspirou Alice (aquela do País das Maravilhas); e ele, o garoto que não queria crescer.

Ou, ainda, podemos refletir sobre o universo das histórias em quadrinhos e

perceber que, também em 2002, há o lançamento da série Fábulas, distribuída pela DC

Comics, cuja narrativa centra-se nas personagens dos contos de fada que, expulsas de

seu universo fantástico, vivem agora em nosso mundo, mais especificamente, na cidade

de New York.

Dessa maneira, embora o pensamento mítico pareça ter sido desacreditado e sua

importância esquecida pela sociedade atual, como vimos na primeira parte deste

capítulo, é como se essa mesma sociedade estivesse necessitando justamente desse tipo

de conhecimento, como nunca antes. A impressão que se tem é que, acuados, em um

mundo fortemente marcado pelo cientificismo e pela tecnocracia, como apontam os

estudiosos do mito com os quais estamos conversando neste trabalho (Eliade, Campbell,

Page 41: Carolina Chamizo Henrique Babo

41

Armstrong e também Jung), chegamos ao nosso limite. Essa retomada, tão forte como

nunca, de conteúdos maravilhosos, revelar-se-ia, neste sentido, o sintoma de uma

deficiência simbólica.

Mergulhados numa crise, sentimos a necessidade da volta aos conteúdos iniciais,

arquetípicos, aqueles que, embora não possam ser comprovados sob a ótica da “razão”,

possuem a capacidade de nos transmitir, justamente por isso, uma importante e valiosa

mensagem. Campbell, no Prefácio da obra O Herói de Mil Faces (2010), fala dessa

verdade e dessa esperança vinculadas ao mundo das narrativas míticas:

A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos de

comparação possa contribuir para a causa, talvez não tão perdida, das forças que

atuam, no mundo de hoje, em favor da unificação, não em nome de algum

império político ou eclesiástico, mas com o objetivo de promover a mútua

compreensão entre os seres humanos. Como nos dizem os Vedas: “A verdade é

uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes” (CAMPBELL, 2010, p.

12).

Esse tipo de conhecimento, revelado pelas narrativas ancestrais e talvez

escondido em nossa sociedade, em decorrência do perfil assumido pela ciência e pela

filosofia de uma época, deve ser buscado novamente, quase que numa atitude de

desespero, “no círculo básico e mágico do mito” (CAMPBELL, 2010, p. 15).

Nossa época parece ter a necessidade de entrar em contato, novamente, com

essas imagens primordiais, esses arquétipos traduzidos pelos contos de fada. Não que

algum dia tenhamos nos afastado definitivamente deles. Isso jamais poderia acontecer.

Como “animais simbólicos” (CASSIRER, 2013) que somos, dependemos dessas

histórias, dessas narrativas, para o entendimento do mundo e de nós mesmos. Por mais

que a era da “razão”, do “logos”, tenha tentado nos separar do mundo dos mitos, isso

seria impossível, pois eles vivem dentro de nós e, de uma forma ou de outra, retornam a

nós quando mais necessitamos deles, como aponta Campbell (2010, p. 22):

Há nessas imagens iniciatórias algo que, de tão necessário para a psique, se não

for fornecido a partir do exterior, através do mito e do ritual, terá de ser

anunciado outra vez, por meio do sonho, a partir do interior ─ do contrário,

nossas energias seriam forçadas a permanecer aprisionadas num quarto de

brinquedos, banal e há muito fora de moda, no fundo do mar.

Page 42: Carolina Chamizo Henrique Babo

42

Assim, nosso inconsciente, mais especificamente, nosso inconsciente coletivo,

aquele que se liga com toda a espécie humana, povoado por arquétipos, inspirou os mais

diversos mitos e contos de fada. Histórias que podem ter sido reveladas por meio de

sonhos ou da imaginação e traduzidas, sem que o indivíduo percebesse, muitas vezes, o

que, de fato, estava contando, o que de fato estava escrevendo. Porque não era seu

consciente quem contava, quem escrevia. Mas seu inconsciente, como fica claro no

trecho a seguir:

Com um poeta aparentemente consciente e em pleno gozo de sua liberdade

pode acontecer o seguinte: que este poeta, apesar de consciente, esteja

absorvido de tal modo pelo impulso criativo, que já nem possa lembrar-se de

outra vontade; assim como o outro tipo que não consegue sentir diretamente sua

própria vontade na inspiração que se apresenta como alheia, embora o si-mesmo

fale claramente por ele. Assim sendo, a convicção do poeta de estar criando

com liberdade absoluta seria uma ilusão de seu consciente: ele acredita estar

nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível (JUNG,

2012, p. 75) .

De acordo com Jung, o momento em que encontramos um arquétipo é

caracterizado por uma “intensidade emocional peculiar” (JUNG, 2012, p. 82). Trata-se,

para o autor, de um momento numinoso, pois, nesse instante, “não somos mais

indivíduos, mas uma espécie; pois a voz de toda a humanidade ressoa em nós” (JUNG,

2012, p. 83). Ele continua:

Toda referência ao arquétipo, seja experimentada ou apenas dita, é

“perturbadora”, isto é, ela atua, pois ela solta em nós uma voz muito mais

poderosa que a nossa. Quem fala através de imagens primordiais, fala como se

tivesse mil vozes; comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que

qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino

pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós todas

aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvar-

se de todos os perigos e também sobreviver à mais longa noite (JUNG, 2012, p.

83).

Portanto, parece ser possível imaginar que, justamente por essa falta que

sentimos dos mitos e dos contos é que precisemos tão desesperadamente de sua volta.

Nossa sociedade, mais uma vez, tão fortemente marcada por uma espécie de furor

tecnológico necessita dos conteúdos não-racionais, primitivos. Jung nos fornece uma

interessante leitura acerca deste fenômeno, na obra O Espírito na Arte e na Ciência

(2012), a partir de sua teoria de que possa existir uma espécie de compensação dos

Page 43: Carolina Chamizo Henrique Babo

43

temas arquetípicos que determinada época mais necessite2. Nesse sentido, o

inconsciente ofereceria ao consciente os símbolos necessários na busca pelo equilíbrio

psíquico.

Para o psicanalista suíço, as obras de arte podem surgir, de maneira inconsciente

ao artista, como uma forma de equilibrar a inquietação refletida pela sociedade em que

ele vive. Assim, determinados temas retornam à mente do artista, que os reproduz,

“acalmando” o desejo de sua época. As tendências artísticas trazem à tona, despertam

“aquilo de que a respectiva atmosfera espiritual mais necessitava” (JUNG, 2012, p. 84).

Ainda de acordo com Jung (2012, p. 83-84):

Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é

dado a segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e uma elaboração e

formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial

é uma transição para a linguagem do presente artista, dando novamente a cada

um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que,

de outro modo, lhe seria negado. É aí que está o significado social da obra de

arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à

tona aquelas formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação

do presente, a ânsia do artista recua até encontrar no inconsciente aquela

imagem primordial adequada para compensar de modo mais efetivo a carência e

a unilateralidade do espírito da época.

Dentro dessa visão – que, como Jung defende, considera a “unilateralidade do

espírito” de uma época e a necessidade de uma “compensação” –, é possível encontrar

uma resposta, apontando nessa direção, para a retomada atual dos contos de fada. Uma

resposta possível, entre outras com as quais um pensamento de tipo compreensivo é

2 Na obra Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu (1991), Jung também aborda a teoria da

compensação, quando tenta compreender o fenômeno dos OVNIs no pós-guerra. Para o autor, a

população da época realmente via essas imagens no céu. Na situação em que viviam, na qual seu mundo

estava ameaçado, eles voltavam-se para o espaço onde os Deuses habitam, provavelmente, em uma

tentativa de encontrar auxílio em outro lugar, fora da Terra. Mesmo a forma na qual as “visões” das

espaçonaves eram relatadas assemelham-se, de acordo com o autor, a uma mandala, isto é, um motivo

que sempre existiu entre as mais distintas e distantes civilizações, um símbolo circular, um símbolo de

totalidade psíquica. Assim, na tentativa de compensar o horror dessa época, o inconsciente encontrava

maneiras de equilibrar o consciente, com símbolos que o “acalmariam”. Jung afirma que “a linguagem do

inconsciente não tem a clareza intencional da linguagem do consciente, porque se compõe da

condensação de muitos dados freqüentemente subliminares, cuja ligação com o conteúdo consciente é

desconhecida. A sua formação não acontece em virtude de um julgamento dirigido, mas segue um

“pattern” (padrão) instintivo, arcaico, que, devido ao seu caráter místico, não é mais aceito pela razão. A

reação do inconsciente é um fenômeno natural, que não se preocupa com a pessoa do homem, de forma

benevolente ou julgadora, mas é regulada exclusivamente pelas necessidades do equilíbrio psíquico”

(JUNG, 1991, p. 41).

Page 44: Carolina Chamizo Henrique Babo

44

incitado a dialogar. Se nossa época precisa deles, os artistas, aqui representados de

modo especial pelos agentes da indústria do entretenimento, nos fornecerão esses temas,

como veremos no próximo capítulo.

Page 45: Carolina Chamizo Henrique Babo

45

Capítulo 2

REINVENÇÕES (DES)ENCANTADAS

2.1. Dos contos orais aos visuais

Ao fazermos uma reflexão sobre os contos de fada, desde seu surgimento até a

sua atual apropriação, podemos perceber que essa era uma tradição passada oralmente

aos seres humanos e as histórias eram contadas sem a ajuda de nenhum aparato, senão a

própria voz e a imaginação. Enquanto as palavras fluíam, as imagens surgiam na mente

e a história tocava e encantava, tanto aquele que narrava quanto aquele que ouvia.

Reunidos em torno de uma fogueira, brincando em frente a uma lareira, ou,

sendo embalados no colo da própria mãe, os pequenos ou grandes corpos (já que como

vimos anteriormente os contos maravilhosos não são apenas histórias de crianças, mas

existem também para elas) experimentavam momentos inesquecíveis, marcados pela

voz e suas modulações, pelo rosto e suas expressões, pelas mãos e seus graciosos ou

agitados gestos. Enfim, pelo corpo e por sua presença.

Estamos, portanto, no campo a que o teórico da comunicação Harry Pross

denomina, em sua Teoria dos Media, mídia primária. O corpo e suas linguagens

aparecem, assim, como a primeira e mais importante forma de comunicação humana,

seu ponto de origem e também o seu destino final. Norval Baitello Junior, na obra A Era

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46

da Iconofagia, assim explica o conceito de mídia primária, desenvolvido por Harry

Pross em Medienforschung (Investigação da Mídia),

O corpo é a primeira mídia, vale dizer, o primeiro meio de comunicação do

homem. Isto quer dizer também, é o seu primeiro instrumento de vinculação

com outros seres humanos. Isto é o que significa mídia primária. O corpo é

linguagem e, ao mesmo tempo, produtor de inúmeras linguagens com as quais o

ser humano se aproxima de outros seres humanos, se vincula a eles, cultiva o

vínculo, mantém relações e parcerias (BAITELLO, 2005, p. 62).

No entanto, com o advento da escrita e, posteriormente, com a chegada dos

livros, essas narrativas encontrariam novas plataformas para serem apreciadas ou

fruídas. Assim, a oralidade que marcava os contos de fada seria substituída por uma

nova forma de “vê-los”. Aqueles dois corpos transformaram-se em apenas um e seu

livro.

As histórias, reunidas ou surgidas da imaginação dos artistas responsáveis por

compilar ou escrever os contos povoaram as páginas dos livros. Uma vez inseridas em

uma plataforma impressa e, sobrevivendo ao tempo de vida de seus criadores, elas se

eternizaram registradas no papel, para que assim possamos admirá-las e jamais esquecê-

las. Pois, de acordo com Baitello Junior (2005, p. 33), o tempo da escrita nos permite

isso, a contemplação e a imortalidade:

Ela (a mídia secundária) introduz um fator temporal novo, inventando o tempo

lento que é o tempo da escrita, da decodificação e da decifração. O tempo da

imagem registrada sobre materiais permanentes permite o tempo lento da

contemplação. (...) Quando se tem o tempo de ler um livro, ler um romance,

olhar um quadro, mergulhar numa imagem e contemplá-la, entra-se na realidade

regida por uma temporalidade distinta, aquela da permanência, da perenidade,

da imortalidade.

Resistindo ao tempo e sobrevivendo nas páginas dos livros, essas histórias

continuam a encantar quem as decifra, usando esse “tempo lento” a seu favor. E

continuam a maravilhar quem as lê e relê, até que seus olhos possam ser fechados, uma

vez que as palavras já foram reconhecidas e eternizadas, novamente, em sua mente.

Posteriormente, com o advento do cinema e da televisão, esses contos

novamente sofrem uma mudança em sua forma de serem apreciados. Compreendida a

partir de produções cinematográficas baseadas em antigas narrativas que serão

transformadas e recriadas, em obras de colorido alucinante e roteiros livremente

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adaptados, essa nova forma de contar histórias pode ser facilmente entendida quando

pensamos na retomada e na reinvenção dos contos de fada lançados em nosso tempo (e

observados nas tabelas apresentadas no primeiro capítulo).

Ainda mais afastadas dos corpos, essas narrativas, agora mediadas por uma caixa

de imagens (BAITELLO, 2005), característica da mídia terciária, propõem algumas

mudanças aos antigos contos. Mudanças cada vez mais profundas.

2.2. Reinvenções

Em nossa época, fortemente marcada pela presença da mídia terciária, alguns

dos artistas responsáveis por nos apresentar essas antigas histórias são os agentes da

indústria cultural (ADORNO, HORKHEIMER, 1985), da indústria do entretenimento.

Uma indústria responsável por padronizar a cultura, apresentando sua busca mais

imediata pelo lucro e pelo consumo, mas também reproduzindo ideologias e

legitimando discursos.

Na tentativa de compensar a nossa carência – na visão junguiana –, os agentes da

indústria do entretenimento propõem-se a nos oferecer esses temas simbólicos.

Entretanto, as versões fornecidas por eles são um pouco (ou muito) diferentes daquelas

da tradição oral, que, posteriormente, foram compiladas nos livros ou escritas pelos seus

autores.

As versões fornecidas pela indústria cultural, às quais podemos chamar de

releituras ou, como prefiro, reinvenções, são alteradas e modificadas, fazendo com que a

carência original jamais seja atendida. Dessa forma, sua principal “missão”, sob o ponto

de vista dos estudos de mitologia, que seria a de refletir ensinamentos sobre o mundo e,

principalmente, sobre o próprio ser humano, é substituída, numa certa ótica, pela

propagação de determinada ideologia e pela procura evidente de lucro e consumo por

parte dos grandes conglomerados de mídia.

Opto, portanto, por usar a palavra reinvenção para me referir a esse tipo de

fenômeno, porque ao contrário de uma adaptação, que modificaria apenas um ou outro

aspecto dos contos, essas histórias trazem, em seus roteiros, algumas novidades bastante

significativas, inventando novamente, re-inventando as narrativas que conhecemos.

Embora façam algumas referências bastante explícitas em relação aos contos, essas

alterações são notáveis. Campbell (2010, p. 242) fornece uma interessante leitura sobre

as modificações que podem ocorrer com os contos:

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As linhas gerais dos mitos e contos estão sujeitas a danos ou ao obscurecimento.

As características arcaicas em geral são eliminadas ou reprimidas. Os elementos

importados são revisados para se adequarem à paisagem, aos costumes ou às

crenças locais e, no processo, sempre saem prejudicados. Além disso, no sem

número de recontagens de uma história tradicional, é inevitável a ocorrência de

distorções acidentais ou intencionais. Para dar conta de elementos que se

tornaram, por esta ou aquela razão, sem sentido, são inventadas interpretações

secundárias, muitas vezes com uma habilidade considerável.

Ao nos oferecer esses temas arquetípicos, a partir de uma edição específica, a

indústria cultural desconstrói seus conteúdos originais, reelabora suas histórias e

reinventa os contos, apropriando-se de personagens e situações, alterando-os e

formatando-os, muitas vezes, à imagem e semelhança de seus interesses. Ela abastece,

constantemente, nossos anseios e impulsos, com produtos lançados em um espaço de

tempo programado para atingir diversas gerações e com personagens que aparentam ser

diferentes, mas são absolutamente iguais, respeitando a lógica na qual estão inseridos,

aquela que transforma a cultura em mercadoria e o público, em consumidor.

O início dessa reinvenção não é um fato novo, já que acontece desde o primeiro

longa de animação da Disney, o clássico Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937. Se

comparada com seu referencial mais imediato, o conto Branca de Neve, dos Irmãos

Grimm, essa história já apresenta uma série de alterações, propositalmente produzidas.

No conto dos Grimm, é a mãe, não a madrasta da menina, quem a persegue. São

três as tentativas de envenená-la e as vezes em que Branca de Neve confia na mulher.

Entretanto, a mudança principal acontece na maneira como a jovem desperta. O “beijo

do verdadeiro amor” é, na verdade, um tapa que a mesma recebe, após anos dormindo.

Por não aguentar mais carregar seu caixão de vidro de um lado para o outro, o

empregado do príncipe bate nas costas da jovem, que desengasga e acorda. Após esse

incidente, ela se casa com o monarca, convoca um baile real e mata sua mãe, fazendo-a

dançar até que seus pés queimem. A Disney, portanto, suaviza a história. O final feliz

aconteceria de qualquer maneira, mas a menina deveria passar muitos anos sob a

maldição antes de despertar.

Fato semelhante ocorre em A Pequena Sereia, conto de Andersen. Após ver um

belo príncipe e se apaixonar por ele, a menina faz um acordo com a Bruxa do Mar para

trocar sua cauda por pernas. Até aí, a Disney seguiu a história do dinamarquês. No

entanto, a jovem morre na narrativa original, transformando-se em espuma do mar e

brisa do ar. Desfecho bastante diferente, portanto, da animação, na qual o príncipe deve

lutar contra a bruxa e salvar a linda sereia de todos os perigos.

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E a famosa história do sapo que se transforma em príncipe com um beijo? Mais

uma das reinvenções da indústria cultural. No conto dos Grimm ao qual faz referência,

O Príncipe Sapo, a menina o arremessa contra uma parede por sentir nojo dele e, assim,

o encantamento se desfaz.

O leitor poderia imaginar que essas modificações não sejam, talvez, tão

relevantes para as considerarmos como reinvenções. Entretanto, se pensarmos em

termos psicológicos e mesmo sociais elas são bastante significativas. Há, nessas

histórias reinventadas, uma padronização das mulheres como princesas frágeis e dos

homens como príncipes destemidos que necessitam salvá-las. Já nas narrativas

consideradas ancestrais, as princesas não precisavam de um agente externo. A salvação

vinha de seu interior. De seu mundo inconsciente.

Jung acredita que para o ser humano ser pleno e integrado ele deve realizar o seu

“processo de individuação”, isto é, o diálogo entre consciente e inconsciente que

possibilita que ambos se completem, se integrem e que encontrem, por fim, o equilíbrio

psíquico. Este diálogo pode ser realizado quando prestamos atenção aos nossos sonhos,

quando ouvimos seus recados e quando mergulhamos no mundo das narrativas

fantásticas que chamamos de mitos e contos de fada.

Por isso é importante que essas histórias ancestrais não tenham todos os seus

elementos retocados ou suavizados, como propõem os contos reinventados da indústria

cultural. Claro que alguns de seus aspectos serão alterados, pois a cultura, como um

mecanismo vivo, já carrega em si esse movimento de constante transformação. No

entanto, por mais duras e dramáticas que algumas narrativas possam parecer, sua função

é justamente fazer com que enfrentemos nossos medos, nossas sombras. Que entremos

em contato com um lado que desconhecemos de nós mesmos. Um lado que evitamos.

Mas que também faz parte de nós.

Assim, as personagens dos contos de fada não precisam ser suavizadas ou terem

sua maldade ou bondade justificada, porque elas não representam seres humanos

completos. Elas são figuras arquetípicas que se comportam de determinada maneira, de

acordo com sua função na narrativa, realizando o que Von Franz (2011, p. 24) considera

como “a dança dos arquétipos”. Nesse sentido, a autora sugere que:

Nos contos de fada o herói não é um ser humano normal e não tem reações

humanas: ele não teme o dragão com que se defronta; ele não foge quando a

serpente lhe dirige a palavra; ele não se inquieta quando a princesa aparece à

noite ao lado de sua cama e o tortura ou o perturba. Ele é inteligente ou um

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boboca – uma pessoa tola, estúpida. Ele é corajoso, mentalmente ágil ou

esperto, ou algo parecido, e isso tudo de modo muito esquemático. E ele apenas

age através da história – deste, desse ou daquele modo, segundo sua natureza.

Se ele é corajoso, enfrenta tudo. Se é espirituoso, faz piada com tudo. Ele não

tem absolutamente psicologia nenhuma, por assim dizer, mas é uma figura

esquemática. Se o observarmos com atenção, veremos uma figura puramente

arquetípica (VON FRANZ, 2011, p.13).

E são exatamente esses arquétipos que aparecem alterados, mudados pela

indústria cultural. Quando a princesa, que antes “apenas” sofria uma maldição passa a

temer a bruxa e a fugir dela, necessitando de um príncipe que a resgate, a história

modifica seu sentido. A figura do herói (antes a princesa, agora o príncipe) é deslocada.

O diálogo entre consciente e inconsciente é também, portanto, transformado. A

mensagem que ele comunica é outra, diferente daquela que a narrativa ancestral

almejava transmitir.

Distantes do propósito original ao qual os contos de fada se destinavam, as

histórias reinventadas à moda da ambiciosa e criativa indústria cultural revestem-se de

outra “missão”, muito mais voltada ao consumo. Consumo do conto transformado em

filme ou animação. Consumo da boneca que representa a princesa. Consumo da pelúcia

criada como o melhor amigo do personagem central. Consumo do vestido que agora é

uma fantasia. Consumo do parque de diversões, o templo da magia.

Nesse cenário, o homem recebe suas narrativas ancestrais pelas mãos da cultura

de massa, que fornece a ele diversos produtos alterados e transformados. Este, engana-

se e tende a não procurar os conteúdos primitivos no lugar em que esses realmente estão

em sua forma mais autêntica: dentro de si mesmo, de seu inconsciente. Adorno e

Horkheimer explicitam essa relação, quando insistem que “cada espetáculo da indústria

cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia

permanente que a civilização impõe às pessoas. Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo

privá-las disso é a mesma coisa” (ADORNO, T.; HORKHEIMER, M, 1985, p. 132).

Assim, o conto de fada oral, tradicional, original que nos coloca em contato com

nosso inconsciente, com nossos deuses e nossos demônios, aparece, nos produtos da

indústria cultural, com uma nova roupagem, muito mais preocupada com a propagação

de determinado sistema de ideias do que com a transmissão dos ensinamentos

simbólicos de que falamos até o momento.

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51

Essas reinvenções aproximam-se, portanto, dos conceitos de Roland Barthes a

respeito do mito, já que este autor o considera como uma forma de ideologia, uma

“linguagem conotada”, na qual os espetáculos fazem transparecer os valores de

determinada época. Em sua obra Mitologias (1980), Barthes aborda o mito como

linguagem, como um sistema de comunicação representado pelo período histórico

correspondente. Ele afirma que “o mito é uma fala. Naturalmente, ele não é uma fala

qualquer (...). O mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem (...). O mito não

se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere” (BARTHES,

1980. p. 131).

Assim, afastados desses temas ancestrais e recebendo-os, de tempos em tempos,

pelas mãos dos agentes do entretenimento, que os oferecem de maneira transformada e

reinventada, não conseguimos realizar esse diálogo entre consciente e inconsciente de

forma plena, integrada, equilibrada, já que os símbolos e arquétipos fornecidos são

alterados.

A própria sociedade também reflete essa crise, esse desequilíbrio, exposto já no

primeiro capítulo, quando falávamos da “compensação” dos temas arquetípicos. Assim,

em um mundo cada vez mais “racional”, necessitamos, para encontrar justamente esse

equilíbrio psíquico, dos conteúdos “não-racionais”, representados pelas narrativas

míticas. Por isso, as consumimos cada vez mais. Mas, ao consumir os contos

maravilhosos de maneira alterada, reinventada, o diálogo que Jung propunha se torna

deficitário e entramos em uma espiral bastante cruel de consumo, engano e privação. O

que gera um novo consumo, um novo engano e uma nova privação. Infinitamente. Ou,

talvez, fosse mais adequado dizermos “para sempre”.

2.2.1. O processo de (des)encantamento

Poderíamos, portanto, sugerir que o encantamento dos contos de fada acontece,

principalmente, em sua forma oral, ao passar diretamente de um corpo para outro, por

meio das histórias ancestrais. O processo de (des)encantamento tem início quando essas

narrativas são transportadas para as páginas de livros e, posteriormente, para as telas da

mídia terciária próprias da cultura de massa, afastando os corpos, bloqueando a

imaginação dos mesmos e impondo-lhes suas próprias histórias. Edgar Morin (2002, p.

109) afirma que:

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Como toda cultura, a cultura de massa produz seus heróis, seus semideuses,

embora ela se fundamente naquilo que é exatamente a decomposição do

sagrado: o espetáculo, a estética (...). Como toda cultura, a cultura de massa

elabora modelos, normas; mas, para essa cultura estruturada segundo a lei do

mercado, não há prescrições impostas, mas imagens ou palavras que fazem

apelo à imitação (...). Como estão longe as antigas lendas, epopeias e contos de

fada, como estão diferentes as religiões que permitem a identificação com o

deus imortal.

Nas antigas culturas, a importância dos mitos e dos ritos que os reviviam podia

ser considerada gigantesca. Os homens primitivos, como coloca Mircea Eliade em sua

obra Mito e Realidade (1972), entendiam sua própria existência de acordo com os

eventos que haviam acontecido antes de seu tempo, “eventos que se passaram nos

tempos míticos, e que consequentemente constituem uma história sagrada, porque os

personagens do drama não são humanos, mas Entes Sobrenaturais” (ELIADE, 1972, p.

14).

Assim também podemos entender os contos de fada. Os personagens de suas

histórias, como os dos mitos, não são humanos, mas expressões, manifestações

arquetípicas que devem ser, como propõe Eliade (1972, p. 17), revividas por meio de

rituais. Para o autor:

Não basta conhecer o mito da origem, é preciso recitá-lo; em certo sentido, é

uma proclamação e uma demonstração do próprio conhecimento. E não é só:

recitando ou celebrando o mito da origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolam esses eventos miraculosos. O tempo

mítico das origens é um tempo “forte” porque foi transfigurado pela presença

ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais. Ao recitar os mitos reintegra-se àquele

tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, “contemporânea”, de

certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos

Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao “viver” os mitos, sai-

se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente

diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente

recuperável.

Ao rememorar os contos, ao “reatualizá-los” (ELIADE, 1972), ao recitá-los,

também podemos repetir o que essas figuras arquetípicas fizeram “in illo tempore”, no

tempo mítico. Ao narrarmos a história de Cinderela, por exemplo, a princesa calça

novamente, nesse tempo mágico, seu sapatinho de cristal, indicando, assim, ao príncipe

encantado que era ela a jovem que ele buscava. Nesse tempo mítico, todas podemos ser

Cinderelas “contemporâneas”. Por isso, os contos deveriam ser revividos, não alterados.

Re-contados, não re-inventados. Nesse sentido é que está se apontando nesse trabalho

para o seu (des)encanto. Quando recitados na oralidade da mídia primária, os revivemos

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em seu tempo mítico e o conto acontece novamente. Quando reinventados na

visualidade da mídia terciária, os acompanhamos em nosso próprio tempo e um novo

conto acontece, um conto alterado, transformado.

Por vivermos no esquecimento, no vazio, de como era a sua versão ancestral, sua

versão dos tempos “sagrados”, já que quase não mais os recitamos, aceitamos esses

novos produtos e acreditamos nos fascinar por eles. São eles agora os encarregados de

reatualizar, de reviver ou mesmo “recitar visualmente” os antigos contos. E como são

bonitas essas histórias de “finais felizes”, essas “novas versões” e essas imagens, cheias

de cores, nítidas e perfeitas! Ora, mas é claro que elas são lindas e é claro que nos

encantam, nos agradam, nos deslumbram. Mas não podemos esquecer das lições, dos

ensinamentos que as antigas narrativas nos traziam, já que é essa a principal missão de

um conto de fada. Lições que são também alteradas. Porque talvez o homem acredite

não mais precisar delas. Von Franz nos alerta sobre essa questão (2011, p. 28) ao

afirmar que:

Como explicava Jung, isso mostra que os símbolos coletivos do Si-mesmo se

desgastam. Religiões, convicções, verdades, tudo envelhece. Tudo o que foi

objeto de muitas discussões e que dirigiu a sociedade humana por um

determinado tempo é deficiente, no sentido de que envelhece. Esse objeto se

torna mecânico, demasiadamente conhecido, uma posse da consciência. As

pessoas acreditam que, por conhecê-lo, o possuem. Ora, isso afeta acima de

tudo os valores mais elevados, porque temas de menor importância variam

depois de pouco tempo e sem maiores consequências. Mas quando valores mais

elevados se desgastam, quando perdem sua qualidade numinosa de assombrar,

então, sem dúvida, o perigo é grande (...).“Lá vem aquela velha história de

novo; já ouvi isso umas vinte vezes. E daí? ” Uma reação assim provém dessa

qualidade negativa da consciência humana que consiste em desinteressar-se; a

consciência se torna a dona da verdade.

Assim, talvez, nosso tempo não esteja mais disposto aos antigos ensinamentos e

clame por mudanças. Encontre nesses novos contos reinventados, outras formas de

entrar em contato com as antigas narrativas. Não cabe a nós, fazer um julgamento

precipitado, condenando como uma terrível “maldição” ou celebrando como a mais

maravilhosa novidade, essas formas distintas em que os mesmos aparecem na

atualidade. Cabe, sim, conhecermos além dessas, também as narrativas ancestrais. A

grande questão seria, nos parece, recontar essas histórias na cultura contemporânea,

mantendo o nível dos desafios que elas evocam.

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Podemos entender, portanto, que perdemos algo nessas transposições. Perdemos

o contato entre os corpos. Perdemos ensinamentos antigos. Mas não podemos esquecer

também o que ganhamos. Por meio da mídia secundária, recebemos as histórias escritas.

Agora elas jamais serão perdidas, já que estão imortalizadas nas páginas dos livros.

Como negar que, talvez, se esses autores não tivessem reunido os contos de fada eles

não teriam sido esquecidos?

E na mídia terciária? Também devemos admitir o ganho e a perda. Os opostos

convivem, ou se complementam. Quantas pessoas, especialmente as crianças, não têm

contato com os contos apenas por meio desses produtos lançados pela indústria do

entretenimento? Teriam elas acesso a essas histórias sem as animações Disney? Será

que essas reinvenções também não nos transmitem seu próprio encantamento, seu

próprio ensinamento? Quem nunca chorou ao ver a Bela e a Fera dançando? Quem não

se emocionou ao assistir a cena dos balões de Enrolados? Quem não sabe cantarolar a

música da fada-madrinha de Cinderela ou dos anões de Branca de Neve? Incontáveis

foram as vezes que eu mesma disse que “acreditava em fadas” para ver a Sininho

renascer. E ela renasceu.

A cultura, para além dos formatos e jogos de interesse da indústria cultural,

mostra-se como um tecido vivo, que mistura seus elementos, recriando novos sentidos.

E esses contos, como manifestações do inconsciente que são, agarram-se a esses novos

sentidos, tecidos pela imaginação humana, e continuam aparecendo, se reinventando

para permanecerem ativos em qualquer tipo de plataforma que a humanidade escolher.

O corpo, as páginas dos livros, ou as telas do cinema.

De acordo com Edgar Morin, “uma cultura, afinal de contas, constitui uma

espécie de sistema neurovegetativo que irriga, segundo seus entrelaçamentos, a vida real

de imaginário, e o imaginário de vida real” (MORIN, 2002, p. 81). O autor prossegue

dizendo que “a cultura de massa, que contribui para a evolução do mundo, é evolutiva

por natureza. Evolui na superfície segundo o ritmo frenético das atualidades, flashes,

modas, vogas, ondas; evolui em profundidade segundo os desenvolvimentos técnicos e

sociais” (MORIN, 2002, p. 181).

Dessa maneira, podemos entender que indicar uma volta ao passado das

narrativas seria uma tarefa impossível. Propor uma apologia às histórias “originais” de

uma época oral seria ingênuo. Cabe a nós, como nos ensina o mago Gandalf, um

“mentor”, nascido de uma mídia secundária, “decidir o que fazer com o tempo que nos é

dado” (TOLKIEN, 2001, p. 44). Olhemos, então, esses novos contos com cuidado e

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deixemos que eles também nos ensinem, nos encantem ou nos assombrem, com suas

novas ou antigas histórias, com suas invenções ou reinvenções, encantadas ou

(des)encantadas.

2.2.2. Reinvenções diretas

Como podemos observar nas tabelas apresentadas no primeiro capítulo desta

dissertação, inúmeras são as produções de nosso tempo que retomam, ou melhor,

reinventam os contos de fada de maneira direta, seja por meio de filmes, animações ou

seriados televisivos. Diretas porque ao vermos seu título, personagens ou sua história,

logo entendemos que se trata de uma apropriação de determinada narrativa.

Podemos nos lembrar, por exemplo, de filmes como Oz: Mágico e Poderoso,

uma espécie de “prólogo” para a história de L.Frank Baum, O Mágico de Oz. Aqui,

conhecemos a jornada do tal mago antes de sua chegada à Cidade das Esmeraldas e

entendemos melhor sua personalidade. Descrito no livro apenas como um “farsante”, a

produção cinematográfica tenta revelar como funcionam os seus “truques”.

Ideias semelhantes a essas, que buscam desenvolver outros lados das histórias,

aparecem também em filmes como Alice no País das Maravilhas ou João e Maria

Caçadores de Bruxas. Ambas propõem que o espectador saiba como estão, atualmente,

as conhecidas crianças dessas narrativas. Alice, agora adolescente, retorna à terra de

magia que visitara em um “sonho”, enquanto João e Maria, já adultos, dedicam-se a

matar as bruxas que encontram em seu caminho.

No entanto, abordar cada uma dessas produções faria com que o estudo se

tornasse exaustivo, assumindo dimensões para as quais não está pensado. Por isso,

escolho me concentrar em algumas personagens bastante conhecidas pelo público,

representadas pelas figuras arquetípicas da Grande Mãe, do Velho Sábio e do Herói.

Embora as histórias sejam modificadas, essas representações sempre estarão nos contos,

não importa a maneira na qual eles sejam oferecidos.

Os temas e personagens das histórias orais ou dos contos reinventados pela

mídia terciária repetem-se, confundem-se, inspiram-se, citam-se. Originados pelo

inconsciente ou apropriados pela indústria cultural não seria, no entanto, a missão

desses conteúdos arquetípicos idêntica? Influenciar, de maneira instintiva, o pensar,

sentir e agir de homens e mulheres? Além de auxiliar na criação das histórias

fantásticas, os arquétipos, imagens de estrutura semelhante, que se repetem em todas as

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culturas, moldam a nossa jornada, definem quem nós somos, dialogam com nosso

interior e nos alertam para perigos. Ora, não seria por isso que as meninas ainda hesitam

antes de morder uma maçã?

2.2.2.1. O arquétipo da grande mãe: a(s) rainha(s) má(s)

Espelho, espelho meu, existe no mundo alguém mais bela do que eu? (GRIMM,

2012, p. 247)

O espelho. Ponto máximo do encontro com a imagem, esse foi o instrumento

utilizado pela Rainha Má para determinar quem seria no mundo a mulher mais bela. A

mãe (ou nas versões mais recentes, a madrasta) de Branca de Neve e sua obsessiva

busca pela juventude e beleza daria origem, com sua famosa questão, a uma das mais

significativas representações do arquétipo da Grande Mãe encontrada nos contos de

fada.

Nessa história podemos conhecer a faceta mais sombria, oculta e devoradora da

imagem arquetípica, justamente o aspecto que surge com maior destaque nos contos

maravilhosos. Os exemplos são inúmeros, basta que nos lembremos de Cinderela, A

Bela Adormecida, Rapunzel, Irmãozinho e Irmãzinha, João e Maria, Os Três

Homenzinhos na Floresta, A Moça Sem Mãos, Os Doze Irmãos, O Patinho Feio e

Árvore Dourada e Árvore Prateada, para citar só alguns dos mais conhecidos.

Há ainda o lado bondoso dessa imagem, que também pode ser encontrado nas

histórias. Talvez o mais representativo surja em A Protegida de Maria, no qual a

própria Virgem Maria apareça para abrigar e instruir a jovem heroína. Há ainda a mãe

zelosa e protetora dos contos O Lobo e os Sete Cabritinhos e Rosa Vermelha e Rosa

Branca.

Além das já citadas imagens arquetípicas dos contos, os mitos também trazem

uma rica variedade de aspectos que se revelam, ou se escondem dentro de nós. Podemos

nos manifestar em Hera ou Frigga, as deusas principais de seus respectivos panteões,

esposas perfeitas, mas de temperamento por vezes agressivo. Há ainda a possibilidade

de nos identificarmos com as forças criadoras, como Gaia ou Nut. Protagonizar o amor

incondicional aos filhos ou ao marido, em um reflexo de Deméter e Ísis. Proteger a

família e manter o fogo de seu lar sempre aceso, como Héstia e Brigid. Ou ainda sermos

todas ao mesmo tempo. A madrasta e a mãe, a deusa e a santa.

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Entretanto, se pensarmos na representação desse arquétipo nos produtos da

atualidade, podemos observar um interessante paradoxo. Nos contos ou mitos originais,

a Grande Mãe possui atributos positivos ou negativos sem que isso seja explicado ou

contextualizado. A imagem é boa ou má, porque os arquétipos trazem essas

propriedades inerentes a eles, “estes símbolos podem ter um sentido positivo, favorável,

ou negativo e nefasto” (JUNG, 2012, p. 88).

Como parte de nossa própria personalidade, que também tem em si essa

dualidade, eles refletem-se naturalmente nas histórias fantásticas. Não é preciso

esclarecer nada, pois nosso inconsciente coletivo, o local em que essas imagens irão

comunicar mais profundamente, não necessita de explicações. Em relação ao arquétipo

da Grande Mãe, Jung (2012, p. 88) afirma que:

Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do

feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que

cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, de

fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o

instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o

mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal.

A partir de três exemplos bastante atuais, que recriam justamente o conto de

Branca de Neve, os filmes Espelho, Espelho Meu, Branca de Neve e o Caçador e o

seriado televisivo Once Upon a Time, as Rainhas Más dessas histórias têm sua maldade

justificada por um passado que as transformou. Elas são perversas e cruéis porque

possuem um motivo.

Nossa sociedade parece entender, portanto, a maldade devido aos

acontecimentos que marcaram a vida das rainhas em questão. Esse é o principal ponto

de discordância, entre os contos maravilhosos e as contos reinventados de nosso tempo.

Nesses últimos, o belo torna-se mais importante que o bom, o oposto daquilo que o

original tenta retratar. Nele, Branca de Neve é mais bonita que a Rainha, em função de

sua bondade. Essa é a mensagem central da história.

Interpretadas pelas atrizes Julia Roberts, Charlize Theron e Lana Parrilla,

respectivamente, essas personagens, e não Branca de Neve, tornam-se as novas figuras

centrais da narrativa, em um reflexo e mesmo uma nova regra dessa sociedade que tudo

aceita, desde que a imagem que a embale seja prazerosa e desde que o espelho responda

que ela sempre será a mais bela.

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58

Outro exemplo bastante atual desse arquétipo pode ser observado quando

pensamos em Malévola. O filme, estrelado por Angelina Jolie, traz a história da bruxa e

não a de Bela Adormecida, na tentativa de justificar o motivo da maldição imposta à

jovem em seu nascimento.

Devemos lembrar aqui que a animação da Disney, de 1959, também já

apresentava uma alteração se comparada à história eternizada pelos Irmãos Grimm.

Enquanto na versão dos Grimm, a princesa sofria uma maldição e dormia durante cem

anos, sendo resgatada pelo príncipe após o fim desse período, na narrativa disseminada

pela Disney, ela despertaria apenas com o “beijo do verdadeiro amor”. Enquanto a

“fada” que lhe impunha a maldição o fazia porque havia sido esquecida, na animação,

Malévola era uma terrível vilã, a quem o príncipe deveria destruir antes de encontrar a

princesa.

Assim, a bela jornada de conhecimento e transformação da heroína seria

reduzida ao maniqueísmo próprio de nosso tempo: o Bem contra o Mal, as fadas e o

príncipe contra Malévola. Mas não é disso que o conto antigo tratava. Muito mais

profunda, muito mais capaz de transmitir ensinamentos, a história de A Bela

Adormecida reflete as “maldições” impostas pela vida (aqui, em especial, às mulheres) e

de que maneira somos capazes de superá-las para, quem sabe, ao fim dessa travessia,

recebermos um prêmio que, nesse caso, é o próprio príncipe.

Se essa reinvenção já parece distante do conto dos Grimm, com o filme

Malévola, qualquer traço da história ancestral é descartado. Aqui, conhecemos a jornada

da bruxa. Assim como no caso da Rainha Má, de Branca de Neve, é Malévola e não a

Bela Adormecida a personagem central da produção cinematográfica. É a história dessa

personagem que o público irá acompanhar, entendendo o motivo do feitiço, torcendo

por ela e emocionando-se quando o lado bondoso da Grande Mãe surge nessa figura.

Apresentada, inicialmente, como uma fada, Malévola apaixona-se pelo pai de

Aurora (A Bela Adormecida), quando este era ainda um jovem, mas acaba sendo traída

por ele. Como uma vingança, portanto, é que Malévola, impõe à jovem o feitiço do

sono.

Arrependida, porém, pela maldição, já que havia se afeiçoado à menina,

Malévola tenta desfazê-la, sem sucesso. No dia em que a jovem completa quinze anos

ela espeta o dedo no fuso de uma roca e cai adormecida. No entanto, a bruxa resolve

ajudar a garota tentando fazer com que o encantamento seja desfeito. Arriscando sua

própria vida, ela leva o príncipe, que Aurora acabara de conhecer, ao castelo para que

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este lhe desse o beijo do verdadeiro amor. Lá chegando, ele beija a garota que não

desperta de seu sono profundo.

Desesperada pelo que havia feito, Malévola se despede da mesma com um beijo

em sua testa e, para a surpresa de todos, a princesa desperta. Malévola prova, nessa

cena, que o verdadeiro amor realmente existe e que ela o sentia pela menina. O amor

que uma mãe sente pelo seu filho. Assim como nos ensina Jung (2012), ela é morte e

vida.

Dessa forma, os vilões, especialmente as Grandes Mães, parecem, nesses contos

da indústria cultural, nesses contos reinventados, surgirem com muita força para que o

público entenda suas motivações, compreenda sua maldade. Talvez o espectador esteja

um pouco cansado de heróis perfeitos, como nos adverte Campbell (1990, p. 15): “o ser

humano perfeito é desinteressante (...). As imperfeições da vida é que são apreciáveis”.

E se identifique com alguns vilões de nosso tempo. Ora, quem não torce, nem por um

momento, por Darth Vader? Quem não compreende as motivações do Coringa ou do

Magneto? E quem não prefere Loki ao próprio Thor?

E por falar em Darth Vader, não podemos esquecer que George Lucas já havia

lançado, anteriormente, uma trilogia justificando a crueldade de um dos maiores vilões

da história do cinema, antecipando esse movimento. Parece mesmo que eles estão cada

vez mais “na moda”. Se podemos ou não entender suas motivações, isso é outra história.

Literalmente outra história. A história do vilão.

2.2.2.2. O arquétipo do velho sábio: o reino encantado das fadas

Sua voz estava tão fraca que, no início, Peter não entendeu o que ela estava

dizendo. Mas depois conseguiu compreender. Sininho estava dizendo que

achava que ia melhorar se as crianças acreditassem em fadas.

─ Se vocês acreditam, batam palmas ─ gritou Peter. ─ Não deixem a Sininho

morrer!

Muitos bateram.

Alguns não.

Alguns monstrinhos até fizeram careta (BARRIE, 2012, p. 104).

Ora, perguntaria um ouvinte mais atento, por que se chamam contos de fada, se

nem todas as narrativas pertencentes a esse estilo exibem uma fada? Se apelarmos ao

senso comum, aquele que nos orienta em nossa própria experiência, a fada pode ser

descrita como um pequeno ser dotado de magia. Se recorrermos ao dicionário, temos a

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60

seguinte definição: “entidade fantástica com poder sobrenatural” (HOLANDA, 2010, p.

394). Em um dicionário de símbolos, podemos encontrar outras noções:

Mestra da magia, a fada simboliza os poderes paranormais do espírito, ou as

capacidades mágicas da imaginação (...) A fada participa do sobrenatural,

porque sua vida é contínua, e não descontínua como a nossa e como a de todas

as coisas vivas desse mundo (...) Por isso, as fadas jamais se deixam ver, senão

de modo intermitente, como os eclipses; embora subsistam, em sua essência, de

modo permanente. Poder-se-ia dizer o mesmo sobre as manifestações do

inconsciente (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 415, 416).

Magia, espírito, imaginação. O reino habitado por esses seres se oferece rico e

misterioso, como é rico e misterioso o mundo do inconsciente, em especial, do

inconsciente coletivo, do qual elas fazem parte, povoando-o, com suas agitadas asas e

experientes varinhas. Poderiam as fadas, então, ter fornecido o impulso que fizesse o ser

humano capaz de exteriorizar as suas próprias fantasias? Teriam elas conversado com o

homem primitivo para que ele contasse suas histórias, narrasse seus sonhos? Seriam elas

as responsáveis pelo surgimento das primeiras aventuras em nosso inconsciente?

Estariam elas nessas aventuras?

A resposta a todas essas perguntas seria sim, pois estamos no terreno do

encantado, do simbólico, do sobrenatural, da essência, da alma humana. Assim, se

chamariam contos de fada, pois todos eles possuem, sim, uma fada. Mesmo que não

apareçam nos contos, são esses seres os responsáveis por narrar as histórias aos seres

humanos. Histórias que, tocadas pela magia, pelo espírito, evocariam nossos mais belos

sonhos, mas também nossos mais profundos medos.

Essa relação das fadas com o espírito sugerem sua importância nas narrativas e

as associam com uma das manifestações arquetípicas mais emblemáticas da obra de

Jung, o Velho Sábio. Para este autor:

O Velho representa, por um lado, o saber, o conhecimento, a reflexão, a

sabedoria, a inteligência e a intuição e, por outro, também qualidades morais

como benevolência e solicitude, as quais tornam explícito seu caráter

“espiritual”. Uma vez que o arquétipo é um conteúdo autônomo do

inconsciente, o conto de fada, concretizando o arquétipo, dá ao Velho uma

aparência onírica, do mesmo modo que nos sonhos modernos (JUNG, 2012, p.

222).

Page 61: Carolina Chamizo Henrique Babo

61

Jung continua ao afirmar que:

A frequência com que aparece o Velho como arquétipo do espírito no sonho é

mais ou menos a mesma do que no conto de fada. O Velho sempre aparece

quando o herói se encontra numa situação desesperadora e sem saída, da qual só

pode salvá-lo uma reflexão profunda ou uma ideia feliz (JUNG, 2012, p. 218).

As fadas guiam os homens em seu próprio destino, tecendo o fio de sua vida,

como as parcas gregas, as moiras romanas, as nornas nórdicas, ou as protetoras da Bela

Adormecida, que revertem o feitiço da morte, em um sono profundo, alterando seu

futuro. “Em geral, reunidas em grupos de três, as fadas puxam do fuso o fio do destino

humano, enrolam-no na roca de fiar e cortam-no com sua tesoura quando chega a hora”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 415). Como o fuso é parte fundamental dessa

história, seu simbolismo torna-se claro no movimento de nascimento, vida e morte da

personagem, mostrando que suas fadas sempre a acompanharão e a auxiliarão.

Elas podem ser representadas também pela bela Fada Azul, de Pinóquio,

responsável por revelar a magia presente no inconsciente do boneco de madeira e que,

aliada à sua consciência, o grilo falante, poderá fazer com que ele ganhe vida, em um

dos mais poéticos processos de individuação já representados nos contos.

Ou ainda pela Fada Madrinha, a bondosa mulher que surge para presentear

Cinderela com um lindo vestido de baile e o tão sonhado sapatinho de cristal. Em

comum, essas personagens têm, além da magia, sua missão, pois surgem para ajudar o

herói ou a heroína da história, nos momentos mais difíceis de sua jornada. Portanto, elas

representam também a figura do mentor, que, de acordo com Joseph Campbell (2010, p.

19), pode ser assim descrito:

Presença constante nos mitos e contos de fada, cujas palavras ajudam o herói

nas provas e terrores da fantástica aventura. É ele que aparece e indica a

brilhante espada mágica que matará o dragão-terror; ele conta sobre a noiva que

espera e sobre o castelo dos mil tesouros, aplica o bálsamo curativo nas feridas

quase fatais e, por fim, leva o conquistador de volta ao mundo da vida normal

após a grande aventura na noite encantada.

Além dos contos de fada, no qual esse arquétipo pode ser retratado,

especialmente, pelas fadas, outras de suas facetas também podem ser encontradas nas

antigas narrativas e nos contos reinventados de nosso tempo. Assim, ele pode surgir

como Merlin, nas lendas arthurianas; ou Quíron, o sábio centauro da tradição grega, que

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teve entre seus principais discípulos os heróis Aquiles e Jasão; além das já citadas “trias

fatas” do destino (as parcas, nornas e moiras, responsáveis pelo fio da vida humana).

Atualmente, essa imagem aparece na forma dos personagens Obi Wan Kenobi e

Mestre Yoda, no clássico Star Wars; de Gandalf, na obra O Senhor dos Anéis; do mago

Dumbledore, ou do elfo Dobby (uma clara referência às “fadas domésticas” ou

“brownies” dos contos celtas), na história do bruxo Harry Potter; de Morpheus, no

filme de ficção científica Matrix; e de Alice, a vampira de poderes paranormais que

prevê o futuro e auxilia a jovem protagonista de Crepúsculo em sua jornada (como

veremos mais detalhadamente no terceiro capítulo desta dissertação).

Semelhantes em relação à missão dada às fadas, os Velhos Sábios dessas

histórias também têm como característica central o destino dos protagonistas. Cabe a

eles o encorajamento necessário na jornada ou aventura desses heróis, que propiciará a

morte ou o sono profundo dos mesmos, como seres comuns, e seu despertar, em um

retorno transformado.

Concebido pela magia e habitando o mundo fantástico, não importa qual a forma

que esse arquétipo possa assumir nas histórias ancestrais ou nos contos reinventados de

nosso tempo, ele sempre surgirá como uma fonte de auxílio nos momentos em que mais

precisarmos dele. Seja para tecer o fio de nossa vida, nos presentear com um vestido de

baile e sapatinhos de cristal ou para nos transformar em seres humanos reais.

2.2.2.3. O arquétipo do herói: Valente

Dizem que o nosso destino está ligado à nossa terra. Que ela faz parte de nós,

assim como fazemos dela. Outros dizem que o destino é costurado como um

tecido. Fazendo que o destino de um se entrelace com o de muitos outros. Essa

é a única coisa que buscamos ou que lutamos para mudar. Alguns nunca

encontram o destino. Mas existem outros que são levados a ele. (...) Alguns

dizem que o destino está além do nosso controle. Que não o escolhemos. Mas

eu sei a verdade. Nosso destino vive dentro de nós. Você só precisa ser Valente

o bastante para vê‐lo.3

Tema mais antigo que a própria descoberta da consciência no homem, o herói

simboliza o desenvolvimento da psique. Suas facetas e os estágios de sua história

podem ser entendidos como os estágios de evolução da nossa própria personalidade. Ele

aparece como um salvador da humanidade (ou de sua própria humanidade), passa por

3 Trechos inicial e final da animação Brave, da Disney.

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63

diversas provações, enfrenta os mais terríveis perigos e, por fim, tem um retorno

transformado.

Os exemplos na mitologia são incontáveis, como os gregos Aquiles, Hércules e

Prometeu; o irlandês Cúchulain; o nórdico Sigurd; o egípcio Osíris e o bretão Arthur,

além, é claro, de Jesus Cristo e Buda. Nas narrativas de nosso tempo, também podemos

enumerar alguns conhecidos representantes, como o bravo cavaleiro jedi Luke

Skywalker; o bondoso hobbit Frodo Baggins; Neo, o escolhido da Matrix; Bella, a

humana que se tornará uma vampira, e o bruxo adolescente Harry Potter.

Em relação aos contos de fada, enumerar os heróis de suas narrativas seria tão

difícil quanto enumerar as próprias narrativas. Suas estruturas, simples, puras e prontas

para atingirem qualquer ser humano tratam, justamente, do próprio ser humano. Assim,

cada um de seus personagens centrais é o herói da história, pois eles precisam

comunicar-se com o herói que os escuta.

Príncipes destemidos prontos para resgatar donzelas em perigo, como em A Bela

Adormecida, ou As Três Irmãs. Jovens que não temem o destino, enfrentando-o e

aceitando-o, como nos clássicos A Bela e a Fera e A Pequena Sereia. Garotas

responsáveis por sacrifícios em nome de sua família, como em A Menina Sem Mãos ou

Os Treze Irmãos. Meninas em busca do conhecimento acerca de si mesmas, como Alice

no País das Maravilhas.

Talvez o mais conhecido dos arquétipos seja também o mais simples de ser

compreendido, pois sua estrutura corresponde à nossa jornada; seus feitos, aos nossos

desafios; suas vitórias, às nossas conquistas e suas existências, às nossas vidas. Enfim,

os heróis somos todos nós. Para Von Franz, “identificar-se a esse estilo de personagem

é tão evidente e espontâneo que é difícil manter uma certa objetividade em relação a ele;

nós nos reconhecemos nele, vivemos suas aventuras imaginárias” (FRANZ, 2010, p.35).

Nos contos reinventados de nosso tempo, temos uma novidade bastante

interessante em relação a esse tipo de arquétipo. Sua tradicional faceta masculina,

caracterizada pelos príncipes que salvam as donzelas de suas torres, sofre uma inversão,

e as meninas das histórias é que parecem ganhar maior destaque. Von Franz (2011, p.

56-57) assim entende essa questão acerca do feminino:

Se observarmos com distanciamento, veremos que esses movimentos são

coerentes com o que acontece no inconsciente coletivo. Os movimentos

feministas também. Esses movimentos estão em relação, embora entre um e

outro possam ter pouco em comum. Mas, novamente, se estudarmos esses

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64

processos mais profundos que estão em desenvolvimento no inconsciente

coletivo, teremos em síntese o que está essencialmente acontecendo sob a

superfície (...). Essas são ondas de superfície provocadas por algo que está

acontecendo nas profundezas do oceano do inconsciente coletivo. O importante

é que essa imagem feminina quer vir à tona. Quando pesquisamos os contos de

fada, temos condições de ler o que realmente está por trás deles.

Se pensarmos no conglomerado Disney, essa mudança começa em Enrolados e

pode ser notada também em Valente e Frozen, Uma Aventura Congelante. Em

Enrolados, ao contrário da versão oferecida pelos Irmãos Grimm no qual ele se inspira,

o conto Rapunzel, a jovem que havia sido sequestrada por uma bruxa no dia de seu

nascimento não espera que um rapaz destemido a resgate. Ela vai agora em busca de seu

futuro. O príncipe assume as feições de um ladrão procurado na região, mas o final feliz

é, claro, mantido.

Frozen, Uma Aventura Congelante, por outro lado, modifica mais sensivelmente

a história na qual se guia, A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen. Aqui,

conhecemos a história de duas irmãs, Anna e Elsa, e de seu relacionamento. É pelo

amor delas que o final feliz acontece. Mais uma vez o “príncipe encantado” tem sua

“ideia original” modificada e aparece, até mesmo, como o vilão da história.

Valente, no entanto, parece ir mais longe e quebrar as barreiras impostas pela

própria Disney. Não podemos deixar de salientar que foi esse mesmo conglomerado

quem inventou ou padronizou a ideia de que uma princesa precisaria de um príncipe

para se livrar dos perigos. Quem conhece outros contos, não apenas os reinventados,

sabe que não é bem assim. Valente, um típico produto nascido dessa retomada dos

contos de fada, parece se aproximar muito mais das histórias ancestrais do que poderia

imaginar. Bastante semelhante a algumas narrativas antigas, em Valente, não há um

príncipe encantado. A própria princesa é quem decide sua vida, é ela quem traça seu

destino.

Essa animação representa uma daquelas reinvenções que tocam tão

profundamente que torna-se impossível não se encantar por ela. Pelo fato de não fazer

referência direta a uma ou outra história, mas sim a uma tradição, a uma mitologia, a

uma cultura específica, a celta, o espectador entrega-se a ela sem restrições.

A personagem central, diferente da padronização à qual as princesas Disney

foram submetidas e à qual o público está acostumado, tem longos e desalinhados

cabelos vermelhos. Cabelos que já indicam sua própria rebeldia, sua própria predileção

ao inconsciente, como indica Von Franz (2010, p. 21) no trecho a seguir:

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Os pelos, em geral, são simbolicamente significativos, mas esse significado

varia de acordo com a parte do corpo em que crescem. Cabelos na cabeça

costumam representar pensamentos e fantasias involuntários e inconscientes; é

por isso que, em sociedades primitivas, o cabelo tem mana. Às vezes, podemos

influenciar nosso ambiente muito mais por meio de nossas pressuposições

inconscientes do que pelos pensamentos conscientes. Por isso, o cabelo - o

poder espiritual de nossos pensamentos inconscientes - é tão importante.

Como se essa diferença na aparência física não fosse um traço suficiente para

sugerir alguma mudança nas heroínas da Disney, sua história evidencia outra importante

alteração. A jornada de redenção de Merida relaciona-se com sua mãe, não com um

príncipe encantado. O entendimento entre elas, o diálogo é que produz o aprendizado e

a mensagem central dessa tocante história.

Valente tem todas as características de um conto de fada. Um conto em que a

personagem principal, a princesa, segue luzes azuis (seu inconsciente) que a levariam a

encontrar seu destino, em que ela encontra uma bruxa (no melhor estilo Baba-Yagá4 das

histórias russas), em que sua mãe sofre uma maldição (transformando-se em um urso5),

em que ela completa sua jornada e encontra o seu final feliz.

Essa animação fala de um dos ensinamentos mais importantes de todos que é o

conhecimento de si mesmo. Não era essa a frase que repousava já há tanto tempo no

Templo de Apolo, em Delfos? Conhece-te a ti mesmo. Ambas devem se conhecer

melhor. Mãe e filha. Consciente e Inconsciente. Junta(o)s. Unida(o)s. Valente propõe o

diálogo. A reflexão. O entendimento. Valente é lindo, é encantado.

A partir dessa produção, a indústria cultural soube quais arquétipos deveria

ativar. Em uma época marcada por heróis masculinos cheios de testosterona, ela nos

apresenta uma menina comum, uma típica adolescente rebelde. Em uma época de

Grandes Mães vilãs, ela nos oferece uma mãe ursa. Com Valente, talvez, a indústria

4 Baba-Yagá representa uma espécie de bruxa bastante comum nos contos de fada russos. Descrita como

uma velha de fisionomia extremamente desagradável e atributos sexuais exagerados, como “seios

enormes”, essa personagem desempenha um papel importante nas narrativas. Ela pode aparecer ligada às

qualidades da maternidade, pode ser representada como intermediadora entre o mundo dos vivos e dos

mortos e, principalmente, se coloca como a senhora dos animais e “tem sobre eles um poder sem limites”

(PROPP, 2002, p.78). Sua função será determinante para o herói da história e ela poderá, ora ajudá-lo,

ora prejudicá-lo, mas sempre influenciará em seu futuro.

5 O fato da mãe de Merida ser transformada em um urso também representa uma simbologia essencial

para essa história. De acordo com o Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, “o urso é, no

mundo céltico, o emblema ou símbolo da classe guerreira (...) simbolicamente marca ainda mais o poder

feminino da classe guerreira (...) Simbolizaria, em suma, as forças elementares suscetíveis de evolução

progressiva, mas capazes também de terríveis regressões” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 924-

925). Justamente o papel representado pela mãe da heroína, uma rainha celta, que necessita regredir a um

estágio animal para, posteriormente, progredir ao dialogar com sua filha.

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cultural tenha ido longe demais. Tenha sido tomada pelo espírito de sua época e escrito

sem nem saber o que estava escrevendo. Jung compara os arquétipos com rios que, após

anos represados, voltam “a irromper em seu antigo leito” (JUNG, 1988, p.15). Talvez os

agentes do entretenimento tenham eles mesmos se deixado levar, como o rio. Os contos

de fada genuínos são assim.

Reinvenções como essa mostram que o encantamento e o desencantamento

andam juntos, ligados. Desencantadas são as histórias reinventadas que modificam, em

sua ideia original, o que de mais bonito e profundo aquele conto (ao qual ela faz

referência) trazia. Encantados são esses, como Valente, que apresentam temas e

ensinamentos que os antigos contos nos mostravam, mas em uma nova história.

E se, até agora, eu vinha falando que essas reinvenções eram todas

(des)encantadas, deparei-me com uma que não apenas me encantou, mas que me

arrebatou. Deixemos assim, então, entre parênteses esse (des) e busquemos o

encantamento no lugar que nos parece mais fundamental. Todos temos que saber ouvir

as luzes mágicas de nosso inconsciente e foi Valente que nos recordou disso. A heroína

de um conto inventado. O arquétipo reinventado. A água voltou a correr naquele rio. E o

volume é caudaloso, como o cabelo vermelho de Merida.

2.2.3. Reinvenções indiretas

As reinvenções indiretas, que incluem produções como Harry Potter, O Senhor

dos Anéis, O Hobbit e Crepúsculo, não foram colocadas neste estudo apenas como uma

menção ao tema da fantasia. Existe nessas obras uma alusão aos mais diversos contos de

fada, em relação a suas histórias e aos seus personagens. Ao contrário das reinvenções

diretas, estas escondem suas menções às antigas narrativas. Mas elas também estão

aqui. Só precisamos olhar com cuidado para encontrá-las.

J.R.R.Tolkien, por exemplo, compara, em seu livro Árvore e Folha (2013), os

elfos a fadas, relacionando-os, tanto na etimologia de sua palavra, quanto na aparência e

talentos que os mesmos apresentam. Além disso, esses são seres que habitam o que,

para esse autor, determina o mundo dos contos de fada, o reino encantando, o Faërie.

De acordo com Tolkien (2013, p. 09-10),

os contos de fada não são histórias sobre fadas ou elfos, mas histórias sobre o

Reino Encantado, Faërie, o reino ou estado no qual as fadas existem. O Reino

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Encantado contém muitas coisas além dos elfos e das fadas, e além de anões,

bruxas, trolls, gigantes ou dragões; contém os oceanos, o sol, a lua, o

firmamento e a terra, e todas as coisas que há nela: árvore e pássaro, água e

pedra, vinho e pão, e nós mesmos, seres humanos mortais, quando estamos

encantados.

Tanto nas obras O Senhor dos Anéis como em O Hobbit podemos perceber,

portanto, que Tolkien dialoga com o Reino Encantado. Seus personagens e sua magia

nos remetem aos contos de fada. Os elfos são apenas um dos exemplos (e talvez o mais

evidente) dessa inspiração. Assim, podemos entender que o mundo criado por Tolkien

contém os elementos de um conto, pois acontece nesse “reino ou estado no qual as fadas

existem”.

Vale ainda lembrar que, para o autor, as fadas não são criaturas diminutas, como

algumas histórias sugerem. Em sua opinião essas são as mais enfadonhas e o

“desagradavam quando criança” (TOLKIEN, 2013, p. 7). Talvez, por isso, suas fadas,

seus elfos, sejam do tamanho ou ainda maiores do que os seres humanos, muito

semelhantes a alguns contos celtas.

Essa relação fica mais clara se olharmos a história Connla and the Fairy

Maiden, parte da coletânea Celtic Fairy Tales (1970), de Joseph Jacobs. Nessa

narrativa, Connla, um jovem guerreiro, encontra uma bela donzela e, quando questiona

de onde ela vem, ele obtém a seguinte resposta:

Eu venho das Planíceis dos Sempre Vivos - disse ela -, ali onde não há morte

nem pecado. Lá sempre é feriado e não precisamos da ajuda de ninguém para

sermos felizes. E em todo nosso prazer não temos brigas. E como temos nossas

casas nas redondas colinas verdes, os homens nos chamam de povo da colina.

(JACOBS, 1970, p. 6)6.

Essa donzela deve ser traduzida como uma fada celta, especialmente por suas

qualidades e pela maneira na qual é chamada, “Hill Folk”. Como os “povos antigos”

acreditavam que pronunciar os nomes das fadas ou simplesmente a palavra fada podia

trazer má sorte, nos países de tradição celta, elas eram conhecidas como “ 'the little

people', 'the hill folk', 'the gentry', 'the strangers' (...) 'themselves', 'them that's in' or

'elves' ” (KERVEN, 2008, p. 164).

6 Tradução nossa do original: I come from the Plains of the Ever Living - she said - there where there is

neither death nor sin. There we keep holiday always, nor need we help from any in our joy. And in all our

pleasure we have no strife. And because we have our homes in the round green hills, men call us the Hill

Folk.

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A partir dessa descrição podemos, portanto, traçar um paralelo com os elfos de

Tolkien, especialmente pela questão da mortalidade, já que esses seres não envelhecem,

nem adoecem, e apenas se feridos mortalmente ou devido a uma grande tristeza é que

seus corpos podem morrer. Além disso, a Fairy Maiden leva Connla para esse reino,

chamado por ela de “Planície dos Sempre Vivos” e o rapaz nunca mais é visto. Mais

uma referência às obras de Tolkien. Quando Frodo (o herói de O Senhor dos Anéis)

completa sua missão, ele e seu tio, Bilbo (o herói de O Hobbit), vão embora para

Valinor, também conhecida como a “Terra dos Valar”, as “Terras Imortais” e, assim

como Connla, nunca mais retornarão.

Em Harry Potter, temos uma situação bastante semelhante. Há por trás da

história do bruxo mais famoso da atualidade algumas referências que nos remetem aos

contos de fada. Embora a mais óbvia delas seja, justamente, o fato de Harry descobrir

que é um bruxo, é na narrativa central idealizada pela autora que o conto realmente se

esconde.

Quando J.K.Rowling narra a história de um menino órfão criado pelos tios que é

transportado para um universo encantado de bruxas e encontra, em seus amigos, as

forças necessárias para vencer o mal, podemos fazer um paralelo com O Mágico de Oz.

A heroína dessa história, Dorothy Gale, também é órfã, mora com seus tios e é

transportada para um universo mágico de bruxas, encontrando em seus amigos as forças

necessárias para vencer o mal. Histórias muito semelhantes, com uma roupagem

diferente.

Enquanto Dorothy une-se ao Leão Covarde (que precisa encontrar sua coragem),

ao Espantalho (que necessita de um cérebro) e ao Homem de Lata (que busca seu

coração), Harry Potter (uma mescla de Dorothy e do Leão) já tem a coragem do animal

(não é à toa que sua casa é a Grifinória, cujo símbolo é exatamente um leão) e une-se a

Hermione Granger (a menina que sempre usa seu cérebro, sua razão, uma releitura do

Espantalho) e a Ronald Wesley (o garoto que traz os elementos de emoção, o coração,

do trio, uma reinvenção do Homem de Lata).

Até mesmo a cicatriz em forma de raio que Harry possui na testa em decorrência

de sua vitória, quando ainda bebê, contra o terrível bruxo “Você-Sabe-Quem”, pode ser

lida como um paralelo com o beijo que a Bruxa Boa do Norte dá em Dorothy após a

menina destruir, acidentalmente, a Bruxa Má do Leste, como fica explicitado nos

trechos a seguir, retirados dos livros Harry Potter e a Pedra Filosofal (2000) e O

Mágico de Oz (2013), respectivamente:

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Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte

curioso, tinha a forma de um raio.

- Foi aí que...? - sussurrou a professora.

- Foi - confirmou Dumbledore - Ficará com a cicatriz para sempre (ROWLING,

2000, p. 17).

Aproximou-se de Dorothy e deu-lhe um beijo suave na testa. No ponto onde

tocaram a pele da menina, seus lábios deixaram uma marca redonda e brilhante,

como Dorothy descobriu logo depois (BAUM, 2013, p. 29).

Vale lembrar ainda que por meio dessas cicatrizes, adquiridas ao destruírem, por

acaso, seus oponentes, tanto Harry quanto Dorothy tornam-se pessoas famosas e

facilmente reconhecíveis em seus novos reinos encantados.

Em Crepúsculo, as referências são ainda mais densas, já que não apenas um

elemento ou um conto de fada foram utilizados. Temos aqui uma colagem de diversas

histórias. O tema central refere-se a uma jovem que se apaixona por um vampiro e já

nos dá a primeira pista, em uma menção à A Bela e a Fera. Mas muitos outros contos

também serão explorados nessa narrativa, o auge das reinvenções até o presente

momento e, por isso, a série que será melhor estudada no terceiro capítulo desta

dissertação.

Podemos continuar essa busca por alusões indiretas com as outras produções que

também fazem parte da tabela, mas opto por parar por aqui, por acreditar que o leitor já

compreendeu como podemos tecer comparações entre os diversos produtos da

atualidade, buscando seus referenciais nos contos de fada. É claro que, com isso,

corremos o risco de não mais assistir a um filme ou a uma animação procurando apenas

diversão. Entretanto, esse é o preço que pagamos quando entramos no Belo Reino,

como nos adverte Tolkien. O espaço em que nossa alma se encontra encantada.

Passamos a procurá-lo e reconhecê-lo nos mais diversos lugares do mundo. De

Hogwarts à Rivendell.

Seguir o coelho branco, deixar-se levar pelo ciclone, tomar a pílula vermelha,

embarcar na plataforma 9 e 3/4, fazer parte da Sociedade do Anel, entrar na Millenium

Falcon, apaixonar-se pelo vampiro. Variadas são as formas de dialogarmos com esse

mundo mágico. Ancestrais ou modernas, em qualquer maneira que os contos escolham

se apresentar, devemos aprender a ler, ouvir, saber dialogar. Pois quem fala por meio do

Belo Reino é nosso inconsciente. Se ele escolhe a forma de uma fada alada, um elfo

majestoso ou um pequeno ser esverdeado, cujas palavras podem ser um pouco

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70

embaralhadas, isso depende de nosso tempo, de nossa época. Saber reconhecer

devemos, jovens Padawans.

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71

Capítulo 3

ERA UMA VEZ... OUTRA VEZ

3.1. Inquietação

Apenas àqueles que não conhecem nem um chamado interno, nem uma doutrina

externa, cabe verdadeiramente um destino desesperador; falo da maioria de nós,

hoje, nesse labirinto fora e dentro do coração. Ai de nós! Onde está a guia, essa

afetuosa virgem, Ariadne, para nos fornecer a palavra simples que nos dará

coragem para enfrentar o Minotauro e, depois, os meios para encontrarmos

nosso caminho para a liberdade, quando o monstro tiver sido encontrado e

morto? (CAMPBELL, 2010, p. 30)

Devo, antes de mais nada, alertar que este capítulo nasce a partir de um

sentimento de inquietação surgido após a apreciação de Crepúsculo, série escrita pela

autora norte-americana Stephenie Meyer. Composta por quatro livros (Crepúsculo, Lua

Nova, Eclipse e Amanhecer), que seria transformada, posteriormente, em cinco filmes

(Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse, Amanhecer:Parte 1 e Amanhecer:Parte 2), essa saga

expõe, basicamente, uma história de amor. O amor de uma mortal por um vampiro.

Ora, por que esse tema iria trazer tamanha aflição à minha mente? Por que eu

não conseguia parar de pensar nele? Certamente porque eu já havia ouvido essa história

em algum outro lugar e não conseguia me lembrar. Não conseguia ouvir o chamado de

que fala o mitólogo Joseph Campbell (2010). Eu estava perdida nesse labirinto. Ai de

mim! Mas Ariadne estava lá para me fornecer seu fio condutor.

Como se trata de uma narrativa povoada por seres imortais, procurei,

inicialmente, no lugar que, para mim, parecia mais óbvio. Recorri, dessa forma, a um

dos mais famosos contos de vampiros da literatura mundial, a clássica obra Drácula, do

irlandês Bram Stoker. Busquei ainda algumas referências nos livros de Anne Rice,

Page 72: Carolina Chamizo Henrique Babo

72

célebre autora de contos de terror e fantasia, conhecida, especialmente, pelas obras

Entrevista com o Vampiro e O Vampiro Lestat.

Nada. Os vampiros de Crepúsculo não se parecem com os clássicos do gênero.

Eles, até mesmo, modificam muitos dos conceitos centrais dessa literatura. Onde seria

então que essa alusão estaria?

Para tentar decifrar o mistério, eu deveria descobrir o motivo principal dessa

narrativa. Qual é, mesmo, o tema central da história? Trata-se de uma menina que se

apaixona por um vampiro, por uma fera, e altera seu mundo e o dele por conta disso.

Claro. A referência estava dentro de mim todo o tempo.

Por que essa saga havia se tornado tamanho fenômeno mundial? E, por que eu,

mais especificamente, uma mulher de 33 anos, teria me interessado por ela, uma série

de livros e filmes baseados em literatura infanto-juvenil? A resposta a essas perguntas

agora está bem clara. E o motivo é simples. Porque os temas que esses produtos

realmente evocam atingem muito profundamente. E atingem a todos. Pois vivem dentro

de nós. Não, esse não é um conto de vampiros. Trata-se de um conto de fada. E o meu

preferido sempre foi A Bela e a Fera. Não deixa de ser irônico.

3.2. Crepúsculo: a reinvenção de um conto de fada

Se condensássemos essa história e inseríssemos palavras como “Era Uma Vez”

ou “E Foram Felizes Para Sempre”, talvez, a ideia central ficasse mais clara para nosso

estudo. Iremos, portanto, reescrever quatro livros em algumas páginas e tentar captar,

resumidamente, a essência de Crepúsculo. Após essa leitura, pensaremos um pouco

melhor sobre ele.

ERA UMA VEZ, em uma cidade muito distante e ensolarada, uma

jovem extremamente branca, de olhos castanhos e cabelos castanho-

avermelhados, que vivia com seu mãe. Seu nome era Isabella Swan,

mas ela preferia ser chamada de Bella. Diferente de seus amigos, a

garota era bastante tímida e desajeitada e, por isso, sentia não

pertencer àquele mundo. Até esse momento, Bella nunca havia vivido

nada de especial em sua vida.

Porém, após sua mãe se casar novamente, Bella vai morar com seu

pai, em um lugar bastante chuvoso e escuro. O oposto daquilo que ela

conhecia. Embora a menina gostasse muito do pai, pensou que jamais

se acostumaria com essa nova vida.

Até que um dia ela conhece um grupo de jovens que mudará a sua

história e o seu destino. Eles eram cinco irmãos. Duas meninas (a

Page 73: Carolina Chamizo Henrique Babo

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delicada Alice, cujo rosto parecia o de uma fada, e a linda Rosalie) e

três meninos (o forte Emmet, o enigmático Jasper e o rapaz de

cabelos e olhos cor de caramelo, Edward). Foi por este último, que

Bella se apaixonou.

A princípio, o rapaz parecia querer se afastar dela, mas, aos poucos,

os dois foram ficando grandes amigos. Até que ele confessou o seu

amor. E com isso, teve que confessar também o seu segredo. Edward

era um vampiro. Ele tentou alertá-la do perigo que a jovem corria

ficando ao seu lado, mas Bella não lhe deu atenção.

A menina não se sentiu amedrontada por aquele ser, tão diferente

dela. Ao contrário. Ao descobrir a verdadeira natureza de seu amado,

sentiu-se ainda mais apaixonada e o único medo que enfrentava era o

de perdê-lo a qualquer momento. Por que um ser imortal se

apaixonaria por ela, uma simples garota humana?

Os dias se passaram e as juras de amor se tornaram mais intensas.

Edward não podia mais viver longe dela, mas temia pela sua

fragilidade. Os vampiros de sua família não se alimentavam de

sangue humano, apenas de sangue animal. Mas existiam outros, por

aí, que não poupariam a vida de sua amada.

Certo dia, quando brincavam na floresta, algo terrível aconteceu.

Outros vampiros apareceram por lá: James, Victoria e Laurent. Mas

esses eram diferentes de Edward e sua família. Eram vampiros muito

malvados. Após conversarem durante um tempo, James percebeu que

Bella era uma humana e decidiu que queria matá-la.

Desesperado, Edward decidiu que Bella precisaria abandonar a

cidade o mais rápido possível. Mas a menina só aceita a fuga após ter

certeza que seu pai ficaria a salvo, por isso bola um plano para

enganá-lo. Após simular uma briga com Edward, Bella deixa a casa,

dizendo que nunca mais voltará. Nessa fuga, ela recebe a ajuda de

Alice, que se oferece para levá-la a um lugar seguro.

Após chegarem nesse local, Alice e Bella precisam esperar pelas

notícias de Edward. Enquanto ele e sua família não destruíssem

James, a garota não poderia retornar. Nesse instante, Alice, que tinha

o dom de prever o futuro, tem uma de suas visões e desenha algumas

linhas em um papel. Bella vê o desenho de Alice e o reconhece como

um antigo estúdio onde a mesma praticava ballet. De acordo com

Alice, seria esse o local escolhido por James para matar a menina.

Após algum tempo escondida, Bella recebe um telefonema, no qual

ouve a voz de sua mãe e, logo em seguida a de James. Ele a havia

sequestrado. Para soltá-la com vida, o vampiro diz que a garota

deveria ir sozinha encontrá-lo. Bella, então, concorda com ele,

engana Alice e foge para o estúdio de ballet.

Lá chegando, escuta novamente a voz de sua mãe lhe chamando e

descobre que, na verdade, ela não havia sido sequestrada por ele. Era

apenas uma gravação. O vampiro havia mentido para Bella. A garota

tenta lutar contra ele, mas James a ataca e morde seu pulso, deixando

uma marca de meia-lua e o veneno dentro de seu corpo. Enquanto a

menina agoniza de dor, Edward e sua família chegam para resgatá-la

e destroem James. Após salvarem sua vida, Bella retorna à casa de

seu pai.

Page 74: Carolina Chamizo Henrique Babo

74

Preocupado com a garota, Edward percebe que Bella nunca ficará

totalmente segura ao seu lado e resolve afastar-se dela, para que esta

tenha, novamente, uma vida normal. Mas Bella fica inconsolável com

a partida de seu amado, e, em meio a esse desespero, passa por uma

série de provações e perigos, na tentativa de trazê-lo de volta.

Nesse cenário de dor, a garota encontra o apoio de um antigo amigo,

Jacob, um menino de pele queimada pelo Sol e cabelos negros. Ele

era descendente de uma antiga tribo indígena e também guardava

suas próprias histórias, lendas e segredos. Uma delas dizia que seus

ancestrais tinha um poder especial. Quando ameaçados por um

perigo sobrenatural, alguns deles poderiam transformar-se em lobos.

Essa lenda provou ser verdadeira quando Jacob sofreu a mutação.

A garota que amava um vampiro era, agora, amiga de um menino-

lobo. Bella não se deixou assustar por isso também. Mas, embora a

amizade de Jacob lhe trouxesse conforto, ela não conseguia esquecer

Edward, sentindo-se cada vez mais e mais triste. O que Bella não

sabia, no entanto, era que o lobo também estava apaixonado por ela.

Pressentindo o sofrimento da garota, Alice procura Bella, que lhe

conta o quanto padece longe de seu amado. Nesse momento, Alice tem

mais uma de suas terríveis visões. Dessa vez com Edward. Ela prevê a

morte do vampiro. Bella parte em busca de seu amor e lá chegando

consegue salvá-lo de seu destino, com a promessa de que eles nunca

mais iriam se separar.

Mas, quando retorna a sua casa, Bella encontra-se novamente em

uma situação de perigo. Dessa vez, porque a namorada de James,

Victoria, havia montado um exército de vampiros recém-criados para

matar a menina, uma vingança por Edward ter causado a destruição

de seu amado. No entanto, a família de Edward se alia com Jacob e

os demais lobos para que juntos possam salvar Bella.

A garota decide, então, que não poderia mais ser uma humana frágil.

Ela deveria se tornar aquilo que nasceu para ser, uma vampira. Mas

Edward, acreditando que Bella iria perder a sua alma se isso

acontecesse, resolve aceitar apenas com uma condição: se ela se

casasse com ele.

Bella aceita e o casamento é celebrado. Todos os amigos e familiares

dos noivos são convidados para essa alegre festa. O único que não

parece feliz é Jacob, o menino-lobo, que ainda nutre um sentimento

muito grande pela jovem e não quer que ela se case ou que se

transforme em uma vampira. Mas já estava decidido. E seria feito em

breve.

Bella e Edward partem para sua a lua de mel, em uma bela ilha

praticamente deserta. Lá, no entanto, a garota, ainda em sua forma

humana, engravida de uma criança mestiça: meio mortal e meio

vampira. Embora essa seja uma gravidez muito complicada, Bella

decide que fará de tudo para preservar a gestação. Nem que isso

custe a sua própria vida.

Após semanas de sofrimento, chega o momento do parto. Apenas

Edward e Jacob estavam com Bella no momento e cabe a eles realizá-

lo. Quando o bebê nasce, uma linda menina, chamada Renesmee, o

coração de Bella para de bater por um instante. Mas Edward injeta

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75

seu “veneno” de vampiro por todo o corpo da jovem e a mesma

adormece para renascer transformada.

Jacob, o menino-lobo, antes apaixonado por Bella, descobre estar

enganado o tempo todo. A partir de um “imprinting”, uma espécie de

“amor à primeira vista”, ele se apaixona por Renesmee, a criança-

mestiça, e promete esperar até que a garota tenha idade suficiente

para se casar com ele.

Após dias dormindo, Bella desperta com uma nova aparência. Ela era

agora uma vampira. Ao abrir seus olhos, pela primeira vez, a jovem

vê seu príncipe Edward e tem a certeza que viverá com ele por toda a

eternidade.

Quando tudo em sua vida parecia, novamente, em paz, um novo

problema surge e, dessa vez, seria o pior que eles já haviam

enfrentado. Uma antiga amiga de Edward, a vampira Irina, vê

Reneesme e, acreditando que a pequena menina seja uma criança

imortal, procura uma das mais antigas e poderosas famílias de sua

espécie, os Volturi, para contar a eles a infração cometida.

Insatisfeitos com a garota, os Volturi decidem que ela precisa ser

eliminada. Mais uma vez Alice prevê o que eles planejam fazer e Bella

e Edward resolvem pedir ajuda para outros vampiros.

Após mostrarem para seus amigos que Reneesme era uma criança

meio humana e meio vampira e não uma imortal, como os Volturi

suspeitavam, Edward e Bella conseguem diversos aliados para os

ajudarem. Quando finalmente os Volturi chegam para destruir a

criança, eles descobrem que Irina havia mentido, matando a vampira

e desistindo do proposto.

Finalmente tudo parecia bem. Após diversas provações, Bella estava

segura ao lado de sua família e de sua filha, que, de acordo com

Alice, cresceria saudável e teria Jacob ao seu lado para protegê-la.

E, é claro, ela e Edward, unidos pelo amor, viveriam felizes,

literalmente, para sempre, em sua imortalidade.

Narrada dessa maneira, acredito que tenha sido mais fácil a compreensão da saga

Crepúsculo como um conto de fada. E, ao contrário do que imaginei à primeira vista,

não foi apenas do meu conto favorito que a autora tomou algumas ideias emprestadas.

Ela parece ter se inspirado em vários contos de fada para narrar a sua mitologia

moderna, uma das mais famosas e lucrativas da atualidade7.

A lenda de uma jovem que se apaixona por um vampiro. A narrativa da garota

que deixa-se envolver por um lobo. O conto da donzela desengonçada que recebe ajuda

de uma vampira-fada-madrinha. O mito da menina que, após muitos dias dormindo,

acorda transformada. Definitivamente, a temática da adolescente que vive feliz para

sempre com seu amor. Descrita assim, parece que já ouvimos essa(s) história(s) antes

7 De acordo com o site <www.imdb.com>, os filmes da saga Crepúsculo ultrapassaram a marca de 1

bilhão de dólares de bilheteria, apenas nos Estados Unidos. Acesso em 19 de janeiro de 2014.

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também. Não ouvimos? Ouvimos sim. Mas, certamente, não as havíamos reconhecido.

Não até agora.

Disfarçada de uma narrativa povoada por vampiros, aqui parece se esconder um

conto de fada que, possivelmente, pode ter sido inspirado por alguns dos mais famosos

que conhecemos. Nas entrelinhas de Crepúsculo encontram-se traços de A Bela e a

Fera, A Bela Adormecida, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, A

Pequena Sereia e, até mesmo, O Patinho Feio. As personagens nos revelam essas

facetas primitivas, ancestrais, enquanto reinventam uma nova história. Uma história que

simula o que realmente parece ser.

Nascida de tantas faces, a série Crepúsculo surge como o auge das reinvenções

dos contos de fada que temos estudado até o momento. Podemos sugerir que ela é

constituída pelos pedaços de outras conhecidas narrativas, responsáveis por alegrar ou

assombrar nosso imaginário, há muito tempo. Narrativas povoadas por heróis e heroínas

que enfrentam diversos perigos para nos alertarem dos nossos próprios perigos. Assim,

esse novo conto é forjado por diversas partes, fragmentos das histórias ancestrais e, em

seu desejo de ser todas, acaba sendo nenhuma, ou melhor, acaba sendo uma colagem de

muitas outras.

Dessa forma, o conto de fada moderno Crepúsculo parece uma tentativa quase

desesperada pelo sucesso de uma franquia que usa, para atrair seus

leitores/espectadores, temas profundamente enraizados no inconsciente. Vivemos em

um mundo que necessita de histórias, narrativas, lendas, mitos, contos, mas que não

percebe que esses elementos simbólicos estão em todos os lugares, pois vivem dentro de

nós. Em uma história de vampiros se esconde uma “Fera”. A narrativa do bruxo mais

famoso da atualidade abriga um conto maravilhoso. A busca pelo Um Anel oculta o

reino encantado das fadas. Mas esses temas estão aí. Só precisamos reconhecer quando

um deles é tomado emprestado ou usado como fonte de inspiração.

Tentarei, nas próximas páginas, tecer comparações entre essa história e seus

possíveis referenciais, os contos maravilhosos. Há, certamente, muitas personagens que

possam ser abordadas nesse estudo, mas me concentro em quatro em particular: Bella (a

princesa), Edward (o príncipe), Alice (a fada) e Jacob (o lobo). Inicio nossa jornada

com uma história bastante antiga, narrada por Apuleio em seu romance O Asno De

Ouro.

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3.2.1. Eros e Psique

Quando Psique terminou todas as suas difíceis tarefas, o próprio Júpiter lhe deu

uma dose do elixir da imortalidade; assim, ela se encontra, hoje e sempre, unida

a Cupido, seu bem amado, no paraíso da forma perfeita (CAMPBELL, 2010, p.

120).

Escrito por Apuleio, no século II d.C., esse conto narra a história de uma bela

mortal, Psique, que, de tão bela, desperta a fúria da deusa Afrodite. Esta manda seu

filho, Eros, fazer com que a jovem se case com um monstro. No entanto, o próprio Eros,

atingido por uma de suas flechas, se apaixona pela garota e leva-a, em segredo, para

viver com ele em um magnífico palácio.

Sem poder ver seu amado, Psique acredita que ele seja uma criatura monstruosa,

mas apaixona-se mesmo assim. Este a alerta de que jamais poderá ser visto. Um dia,

porém, a jovem, influenciada por suas irmãs, resolve espioná-lo e descobre que se trata

do deus do Amor.

Inconformado com a traição de Psique, Eros a abandona. Desesperada, a jovem

vaga pelo mundo na tentativa de reconquistá-lo e Afrodite impõe a ela uma série de

tarefas. Na última delas, Psique cai em um sono profundo e Eros vai a seu encontro,

suplicando a Zeus que conceda a imortalidade para a sua amada. Tornada imortal, a

jovem une-se a Eros na eternidade e, juntos, eles geram uma filha, cujo nome é Prazer.

Acredito que sejam inúmeras as comparações que podemos tecer entre esse belo

conto e a narrativa moderna povoada por vampiros. Aqui, também temos uma jovem

mortal, Bella, que se apaixona por um ser imortal, o vampiro Edward. Ele, assim como

Eros, também a abandona. Ela também passa por uma série de provações. Cai em um

sono profundo e, por fim, torna-se imortal, como a alma de Psique. E, claro, o casal

também tem uma filha.

Embora seja bem clara a identificação de Bella com Psique, é com a relação

Edward/Eros que devemos aqui nos ocupar mais detalhadamente. Se, na série de livros,

essas semelhanças já parecem ser evidentes, já que o vampiro é sempre mostrado em

uma posição superior à da garota, indicando que ele seja uma criatura diferente, um ser

imortal, praticamente um deus, nos filmes elas tornam-se ainda mais precisas.

Em uma das cenas, Edward aparece com um par de asas, uma possível referência

a Eros. Aparentemente, elas pertenciam a uma coruja empalhada, presente na sala de

aula, mas, devido à marcação dos atores em cena, elas se tornam parte do deus dessa

história. Assim, o público vê as asas, mas não sabe a qual anjo ela pertence.

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Figura 1: Cena extraída do primeiro filme da saga Crepúsculo

Eros e Psique reflete, portanto, a linha central da narrativa moderna e revela a

primeira das faces da heroína Bella e do deus-vampiro Edward. Vejamos, outros

exemplos que possam ter influenciado na construção de Crepúsculo, começando por um

famoso conto de fada inspirado por essa história, A Bela e a Fera.

3.2.2. A Bela e a Fera

A Fera desaparecera e tudo o que a Bela viu a seus pés foi um príncipe mais

belo que o amor, que a agradeceu por ter desfeito seu encantamento. Embora o

príncipe merecesse toda a sua atenção, Bela não pôde deixar de perguntar onde

estava a Fera (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 117).

Bella e Bela têm mais em comum do que apenas seu nome. O amor que as

garotas nutrem por um monstro, uma Fera, determina a sua principal característica.

Ignorando a aparência ou a condição do ser amado, ambas descobrem que seus

“príncipes” são diferentes do que aparentam ser e devem aprender a amá-los para que

suas verdadeiras faces possam ser reveladas.

No conto escrito por Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, em 1757,

conhecemos a história de Bela, uma jovem que troca de lugar com seu pai e se torna

prisioneira de uma terrível Fera. No entanto, esse “monstro”, era, na verdade, um

príncipe que recebera a maldição de uma feiticeira e, apenas quando aprendesse a amar

e ser amado, esse encantamento poderia ser quebrado. Com o amor de Bela, a Fera é

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transformada e retorna à sua forma original. Mas a garota também sofre uma

modificação. Ela passa a amar além das aparências, transforma-se em uma princesa e

vive com seu príncipe, feliz para sempre.

Em Crepúsculo, a saga escrita entre 2005 e 2008, re/conhecemos a história de

Bella, uma jovem que se muda para a casa seu pai, em uma pequena cidade. Deslocada

por ser nova nesse lugar, a garota pensa que jamais irá se adaptar, até que conhece um

vampiro, Edward, e se apaixona por ele. Ignorando o fato de que o mesmo seja uma

criatura perigosa, a jovem inicia uma longa jornada na luta pelo seu amor. Por fim,

acontece a transformação que a torna também uma vampira e possibilita que os dois

vivam felizes para sempre.

No original, A Bela e a Fera, conhecemos, portanto, uma garota que, após o

convívio com um monstro, passa a enxergar por baixo de sua aparência amedrontadora

e descobre que ele é um ser bondoso. Na reinvenção dessa história, Crepúsculo, vemos

a história de uma menina que se apaixona por um vampiro e descobre que, por baixo de

sua condição amedrontadora, ele também é um ser bondoso. Ou seja, temos aqui a

mesma história. Recontada e modificada. Mas a mesma história.

A “linda menina órfã de mãe” é trocada por uma “bela garota, filha de pais

separados”. A “Fera”, um monstro terrível, é substituída por “Edward”, um vampiro.

Descrito como se fosse de outra época, por sua fala, gestos e escrita, Edward, um ser

imortal de 111 anos, esconde as características de um príncipe. Mas a Fera antiga

também não o fazia?

Afinal, o personagem original era um ser muito bondoso e romântico. Após

conhecer e se apaixonar por Bela, o mesmo se declara para a jovem, como fica evidente

no trecho “a amo muito e, seja como for, fico muito feliz por aceitar permanecer aqui.

Prometa que não me deixará” (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 112) ou em

“preferiria morrer a fazê-la sofrer” (BEAUMONT apud MACHADO, 2010, p. 112).

O romantismo presente em Edward, nossa Fera moderna, também pode ser

comprovado por inúmeros exemplos. Frases como “agora você é a minha vida”

(MEYER, 2008, p. 249) ou “o tempo todo sem perceber o que eu procurava. E sem

encontrar nada, porque você ainda não estava viva” (MEYER, 2008, p. 240) são apenas

algumas das mais significativas que preenchem as páginas dessa saga.

O que aqui se inverte, no entanto, é a aparência desses personagens. Longe de

ser um monstro horrível, o vampiro é muito atraente, tão perfeito que Bella até mesmo

duvida de sua existência, descrevendo-o como “lindo demais para ser real” (MEYER,

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2008, p. 208). Uma referência, portanto, ao deus em que o vampiro e a Fera se inspiram,

Eros.

Quanto à maldição imposta sobre os “monstros”, as semelhanças são também

bastante claras. Assim como o príncipe que sofre um feitiço e se torna uma Fera,

Edward recebe uma maldição quando se torna um ser imortal. A alma de ambos parece

apenas ser restituída com o encontro do amor. O amor de Bela pela Fera devolve a sua

alma na forma de sua humanidade. E o amor de Bella por Edward também a restitui, na

essência de sua união, quando Bella se torna uma vampira e os dois permanecem juntos.

Os temas da mudança de forma (humana-vampira) e da conquista da alma,

porém, não se limitam a essa narrativa e nos remetem a outra importante representante

dos contos de fada, uma jovem sereia idealizada por Hans Christian Andersen.

3.2.3. A Pequena Sereia

A Pequena Sereia foi gostando cada vez mais dos seres humanos e ansiava

profundamente pela companhia deles. O mundo em que viviam parecia tão

maior que o seu próprio (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p. 225).

Escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, o clássico conto A Pequena

Sereia narra a história de uma linda e curiosa sereia que deseja conhecer a superfície.

Apenas em seu aniversário de 15 anos, porém, ela consegue realizar seu sonho. Nesse

cenário ela vê um belo príncipe e apaixona-se por ele. Com o desejo de se tornar

humana e, com isso, adquirir uma alma para viver com seu amado na eternidade, a

jovem faz um acordo com a Bruxa do Mar. Em troca de sua voz, a Pequena Sereia

conquista um par de pernas, mas não seu príncipe. Desolada pela falta de amor, a garota

atira-se no oceano, tornando-se espuma do mar e, posteriormente, brisa do ar, com a

missão de espalhar alegria entre os seres humanos e, por fim, conquistar uma alma.

Assim como no conto de fada A Pequena Sereia, em Crepúsculo, Bella também

irá abandonar sua condição original para se tornar uma criatura mais parecida com seu

príncipe. A sereia de Andersen torna-se humana e a humana de Meyer torna-se vampira,

em uma mudança de natureza justificada pelo amor.

A Pequena Sereia precisa assumir a forma humana para ser amada e, com isso,

adquirir uma alma que possibilite a união com seu príncipe na eternidade. Bella não

quer envelhecer e morrer, mas manter-se para sempre jovem ao lado de Edward, seu

príncipe-vampiro. Ambas têm, portanto, um desejo bastante semelhante, baseado no

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conceito de imortalidade. Enquanto, na primeira, esse anseio parece mais poético,

simbolizado por uma alma, com Bella, a situação é bem mais literal, já que bastaria que

a mesma se transformasse em uma vampira.

Mas essa transformação iria custar justamente a poesia presente no conto que

essa série possivelmente se inspira, já que a alma da humana seria perdida. Se a

Pequena Sereia se transforma em uma humana na tentativa de buscar sua alma, Bella

perderia a sua quando se tornasse um ser imortal. Esse é o ponto crucial que faz Edward

resistir na mudança da garota, justificada pelos argumentos presentes no segundo livro

da série: “Todos dizem que somos amaldiçoados (...) Deus e o paraíso existem... e o

inferno também. Mas ele não acredita que haja outra vida para a nossa espécie (...)

perdemos nossa alma” (MEYER, 2008, p. 40).

Haveria apenas uma condição que faria o vampiro aceitar a mudança de Bella: o

casamento. Se a garota se casasse com ele, o mesmo a transformaria. Mais um ponto de

semelhança entre Crepúsculo e o conto de Andersen, já que para adquirir uma alma o

casamento também seria um passo essencial neste último, como a avó da sereia assim

coloca:

Só se um ser humano a amasse tanto que você importasse mais para ele que pai

e mãe. Se ele a amasse de todo o coração e deixasse o padre pôr a mão direita

sobre a sua como uma promessa de ser fiel agora e por toda a eternidade – nesse

caso a alma dele deslizaria para dentro de seu corpo e você, também, obteria

uma parcela da felicidade humana. Ele lhe daria uma alma e, no entanto,

conservaria a dele próprio (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p. 227).

Dessa forma, o amor do humano pela sereia, simbolizado pela união presente no

ritual do casamento, possibilitaria que ela adquirisse uma alma e que os dois ficassem

juntos para sempre, na eternidade. Em Crepúsculo, a proposta do casamento, a regra

imposta por Edward, é assim proferida: “Isabella Swan? Prometo amá-la para sempre...

a cada dia da eternidade. Quer se casar comigo?” (MEYER, 2009, p. 329).

Parece, portanto, que, na união com Edward, a alma de Bella não seria perdida.

Quem sabe, talvez, não tenha deslizado para dentro dele e o vampiro assim tenha

recuperado a sua própria? Já que, ao contrário do conto clássico, aqui, o final feliz existe

e é idealizado pelas palavras “E assim, alegremente, continuamos aquele parte pequena

e perfeita de nossa eternidade” (MEYER, 2009, p. 567). Não há mais provações

impostas à nossa sereia moderna. Ela conquistou o mundo que desejava, o dos

vampiros, deixando o seu próprio para trás.

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Mas será que aquele era mesmo o seu mundo? Já que a menina sempre pareceu

tão deslocada e desajustada, podemos considerar que ela nasceu para ser uma vampira.

Esse era o seu destino. Bella é uma garota que não se encaixava em lugar nenhum

porque esse não era o seu verdadeiro ambiente. Não é por acaso que seu sobrenome seja

Swan.

3.2.4. O Patinho Feio

Mas o que descobriu ele na clara superfície da água sob si? Viu sua própria

imagem, e não era mais uma ave desengonçada, cinzenta e desagradável de se

ver - não, ele também era um cisne (ANDERSEN apud MACHADO, 2010, p.

202).

Também de Hans Christian Andersen, a história do patinho que era discriminado

por ser diferente dos demais é bastante poética. Aqui, conhecemos um animalzinho que,

de tão feio, foi rejeitado por sua própria mãe e irmãos. Vivendo sempre viajando, pois

era expulso dos lugares, por causa de sua aparência, o mesmo passa por difíceis

situações, sendo “mordido pelos patos, bicado pelas galinhas, chutado pela criada que

dá comida às aves, ou sofrendo penúria no inverno” (ANDERSEN apud MACHADO,

2010, p. 202). Até que um dia descobre que não era um pato, mas um belo e encantador

cisne. Sua aparência distinta indicava que ele era de outra espécie, talvez, a mais bonita

das aves. E, assim, reconhecendo sua verdadeira natureza, ele sentiu-se muito feliz.

Facilmente reconhecível em Crepúsculo, essa personagem aparece como uma

das facetas de Bella Swan, a jovem que não nasceu para ser uma humana, um patinho;

mas para ser uma vampira, um cisne. Utilizada como uma metáfora pelo fato da garota

também ser distinta dos demais, sempre desajeitada e desastrada, a história do patinho é

aqui recriada indicando que Bella pertence a outra espécie. No primeiro livro da série

isso fica evidente, como no seguinte trecho:

Eu não me relaciono bem com as pessoas da minha idade. Talvez a verdade seja

que eu não me relaciono bem com as pessoas, e ponto final. Até a minha mãe,

de quem eu era mais próxima do que qualquer outra pessoa do planeta, nunca

esteve em sintonia comigo, nunca esteve exatamente na mesma página. Às

vezes eu me perguntava se via as mesmas coisas que o resto do mundo. Talvez

houvesse um problema no meu cérebro (MEYER, 2008, p. 18).

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Ela precisa se tornar quem nasceu para ser. Encontrar o seu lugar no mundo. E

esse lugar não é entre os humanos, mas entre seus semelhantes, os seres-imortais. Como

vampira, a garota desastrada e apenas bonita, torna-se uma mulher linda, de

movimentos precisos e controle invejável. Quando se olha no espelho, pela primeira vez

após a transformação, Bella assim descreve a sua aparência:

A criatura estranha no espelho era indiscutivelmente bonita (...) Ela era fluida

até mesmo imóvel, e seu rosto imaculado era pálido como a lua, em contraste

com a moldura do cabelo escuro e pesado. Seus braços e suas pernas eram lisos

e fortes, a pele cintilava um pouco, luminosa como uma pérola (MEYER, 2009,

p. 310).

Além disso, após a sua mudança, ou melhor, após descobrir sua verdadeira

natureza, Bella ainda terá poderes especiais e será capaz de produzir uma espécie de

“escudo” com sua mente, capaz de proteger a todos que ama, entre os quais seu

príncipe-vampiro, seu melhor amigo lobo e sua filha-mestiça.

E é essa filha, aliás, que irá fornecer os indícios que precisamos para continuar

tecendo nossas comparações e desfazendo a trama de referências, metáforas e citações

que permeiam essa obra moderna de toque primitivo, ancestral. A filha de Bella e

Edward, Renesmee, será a responsável por fazer a protagonista morrer e renascer. E

esse é um dos temas mais antigos das nossas narrativas, àquele por qual quase todos os

heróis passam: o sono profundo.

3.2.5. A Bela Adormecida

Ainda restava um desejo a conceder para a menina, e, embora a feiticeira não

pudesse suspender o feitiço maligno, podia abrandá-lo. Assim, ela disse: “A

filha do rei não morrerá, cairá num sono profundo que durará cem anos”

(GRIMM apud MACHADO, 2010, p. 122).

Existem diversas versões dessa narrativa, mas voltarei até a de Basílio, chamada

de O Sol, a Lua e Tália para seguir com esse quadro de alusões que a série Crepúsculo

faz aos contos maravilhosos. A história mostra-se bastante semelhante com as versões

de Perrault ou Grimm, mas é a inclusão de filhos que irá nos interessar aqui.

A antiga narrativa trata de uma bela jovem que, no dia de seu batizado é

amaldiçoada por uma malvada feiticeira. Ao completar 15 anos, a garota iria espetar seu

dedo no fuso de uma roca e morreria. Alterado por uma fada boa, o feitiço da morte se

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transforma em feitiço do sono. Com isso, Bela Adormecida e todo o reino dormiriam

por cem anos e após esse período, despertariam.

Na versão mais difundida, Bela Adormecida acorda, após cem anos, com um

beijo de amor de seu príncipe encantado, mas, no conto de Basílio, a garota só desperta

após ter dois filhos gêmeos (Sol e Lua, uma referência a Apolo e Ártemis, deuses da

mitologia grega). Faminta por sua mãe estar desacordada, uma das crianças suga a farpa

envenenada do dedo de Tália, que renasce de seu sono profundo indo, posteriormente,

ao encontro do pai das crianças, o monarca de um reino distante.

Em Crepúsculo também teremos uma criança. Grávida de um ser mestiço (meio

humano, meio vampiro), Bella espera até o nascimento de sua filha para ser

transformada. Fraca, pelas complicações de sua gestação, a heroína morre, já que seu

coração para por alguns segundos (maldição da morte), sendo reanimada pelo “veneno”

de seu amado, que irá trazê-la de volta à vida após o sono profundo (maldição do sono).

Esse é o momento de morte e renascimento, responsável pelo retorno transformado da

heroína moderna.

Durante esse período, Bella sofre terríveis dores com a modificação imposta a

seu corpo. Aquela humana deveria morrer para a vampira renascer. Após dias

dormindo, embora a jovem não soubesse exatamente o quanto, “poderiam ter sido

segundos ou dias, semanas ou anos” (MEYER, 2009, p. 292), ou, quem sabe, cem anos,

como indica o feitiço original, o “veneno” de Edward faz efeito e a transformação

acontece. Inspirada pela princesa, agora é Bella quem deve despertar.

No entanto, enquanto ainda dorme, a jovem nos fornece mais alguns indícios

que podem comprovar a inspiração da autora e, quem sabe, conduzir o público nessa

jornada pelo reino encantado dos contos de fada. Afinal, a figura de Bella (adormecida),

proposta pelo filme, tão delicada e serena nos faz lembrar de outra imagem, uma

fornecida pela Disney na animação A Bela Adormecida, como pode ser comprovado

pelas imagens a seguir.

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Figura 2: Cena extraída da quarta parte da saga Crepúsculo: Amanhecer Parte I

Figura 3: Cena extraída da animação A Bela Adormecida

Como podemos verificar nessas cenas, até mesmo as cores e os detalhes parecem

se manter. O azul do vestido, os lábios levemente pintados, os cílios realçados, o cabelo

caindo pelo corpo. Mas isso deve ser, provavelmente, apenas uma coincidência. Para

quem acredita nelas, é claro. Outra coincidência? O termo “veneno”.

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3.2.6. Branca de Neve

Quem me dera ter uma filha branca como a neve, vermelha como o sangue e

negra como esse batente da janela. Pouco tempo depois ela deu à luz uma

menina, branca como a neve, vermelha como o sangue e preta como o ébano, e

que por isso foi chamada de Branca de Neve (GRIMM, 2012, p. 247).

Imortalizado pela compilação de histórias reunidas por Jacob e Wilhelm Grimm,

o clássico conto Branca de Neve narra a jornada de uma jovem garota que, por ser mais

bonita que sua mãe (ou madrasta, nas adaptações mais recentes), é perseguida pela

mesma. Não suportando a beleza da garota, a Rainha deseja matá-la e, para isso, ordena

que o caçador arranque seu coração.

Sem coragem para executar tal tarefa, o criado retorna com o coração de um

animal, enganando a malvada mulher, e Branca de Neve encontra refúgio na casa de

sete anões. Quando a Rainha descobre que havia sido enganada, resolve ela mesma

matar a menina e vai até o lar dos anões, disfarçada de uma velha senhora. Ao oferecer

alguns itens envenenados, a mulher consegue enganar a jovem que, após morder uma

maçã, cai em um sono profundo. Mas, com a chegada de um belo príncipe, Branca de

Neve volta à vida e o final feliz acontece.

Na descrição da personagem central, já sabemos que alguns elementos desse

conto serão utilizados em Crespúsculo, afinal, Bella é extremamente branca, como

aponta sua descrição: “olhei meu rosto no espelho enquanto escovava o cabelo úmido e

embaraçado. Talvez fosse a luz, mas eu já parecia mais pálida, doentia. Minha pele

podia ser bonita – era muito clara, quase translúcida –, mas tudo dependia da cor. Não

tinha cor nenhuma ali” (MEYER, 2008, p. 18). Isso não seria o mesmo que dizer que a

menina era “branca como a neve”?

Mas as referências não se limitam à descrição física da personagem central.

Existem outros motivos aqui que podem servir de exemplo para a possível fonte de

inspiração da autora Stephenie Meyer. Um observador mais atento poderia perceber que

a capa do primeiro livro da saga Crepúsculo traz uma maçã, ou seja, uma lembrança

desse conto. No entanto, a primeira citação da obra8 nos remete a uma passagem bíblica,

referente à história de Adão e Eva, e do fruto proibido, que costuma ser representado

por uma maçã. Pensemos, então, um pouco mais além.

8 Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis

para que não morrais. Gênesis, 3:3 (MEYER, 2008, p. 9).

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O indício mais claro que liga o conto de fada moderno ao conto de fada antigo

reside no veneno. Três foram as tentativas da Rainha Má, a mãe de Branca de Neve,

para matar a menina. Um cordão envenenado, um pente envenenado e, finalmente, a

maçã envenenada. Na terceira chance, a malvada mulher consegue concretizar seu plano

e a garota cai desacordada, porque se engasga. Todos a julgavam morta, mas graças a

chegada de seu príncipe encantado, a jovem renasce e desperta de seu sono.

Há ainda uma versão celta desse conto, retratada na compilação de Joseph

Jacobs, Celtic Fairy Tales (1970), intitulada Árvore Dourada e Árvore Prateada em que

a mãe da jovem também consegue, depois de algumas tentativas, envenená-la. A garota,

assim como Branca de Neve, desperta anos mais tarde. Sendo assim, é sobre o veneno

que devemos refletir.

Em Crepúsculo, esse é justamente o substantivo escolhido para representar a

transformação da garota em vampira, é ele o “antídoto” para sua morte. Uma vez que

Edward insere seu “veneno” em Bella, a jovem irá sofrer uma mudança, morrendo

como humana e renascendo como vampira.

Mas por que a autora teria escolhido esse termo? Por que a palavra “veneno” e

não outra qualquer? Ora, porque, provavelmente, nossa princesa moderna também

deveria ser envenenada para renascer. Se ela já havia se apaixonado por um monstro e

sofrido a maldição do sono, o veneno também parece um elemento bastante importante

em sua jornada, guiada pelas princesas originais. E, claro, Branca de Neve não poderia

deixar de aparecer por aqui.

Se, no conto dos Grimm, a maçã envenenada foi a responsável por fazer com

que Branca de Neve caísse em um sono profundo, sendo resgatada por seu príncipe

encantado, em Crepúsculo o mesmo teria que acontecer. Após o nascimento de sua

filha, o “veneno” de Edward será injetado em seu coração, sendo o agente

transformador da mudança da garota em vampira, o que propiciará o tão sonhado final

feliz.

Mas essa mudança, aguardada ansiosamente pelo público, já havia sido prevista

por sua fada madrinha. Ou alguém imaginava que essa colagem contemporânea dos

contos maravilhosos não teria justamente uma representante das fadas?

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3.2.7. Cinderela

Bastou que a madrinha a tocasse com sua varinha, e no mesmo instante suas

roupas foram transformadas em trajes de brocado de ouro e prata incrustados de

pedrarias. Depois ela lhe deu um par de sapatinhos de vidro, os mais lindos do

mundo (PERRAULT apud MACHADO, 2010, p. 24)

De todas as versões de Cinderela, creio que a mais conhecida seja a de Charles

Perrault, já que cabe a este escritor a inserção de um elemento bastante especial para a

narrativa: o famoso sapatinho de cristal. Esse conto expõe a história de uma linda

menina desprezada pelas meias-irmãs e pela madrasta, sendo obrigada a trabalhar como

uma empregada em sua própria casa.

Certo dia, o príncipe organiza um baile para encontrar uma noiva e as irmãs de

Cinderela a impedem de ir. Muito triste, a menina recebe a visita de sua Fada Madrinha,

que lhe presenteia com lindos trajes e um sapatinho de cristal, para que, assim, ela possa

realizar seu desejo. Mas Cinderela deveria voltar antes da meia-noite.

Encantado com a beleza da menina, o príncipe acredita ter encontrado sua noiva,

mas Cinderela foge dele na hora combinada, deixando para trás apenas seu sapatinho.

Será este o responsável por fazer com que ele reencontre a garota e os dois vivam

felizes para sempre.

Em Crepúsculo, não existe uma malvada madrasta. Nem tampouco irmãs

invejosas (embora Bella possua duas amigas que cumpririam muito bem esse papel).

Mas há, sem dúvida, uma fada madrinha nessa história. Seu nome é Alice Cullen, a irmã

adotiva de Edward e a responsável por prever o futuro de todos, alertando-os dos

perigos e salvando-os com seus poderes especiais.

Não há nenhum mistério aqui, já que Alice é assim descrita logo em sua primeira

aparição “a menina baixa parecia uma fada, extremamente magra, com feições miúdas.

O cabelo era de um preto intenso, curto, picotado e desfiado para todas as direções”

(MEYER, 2008, p. 24). Em outra de suas descrições, a fada é comparada a um elfo:

“Alice – o cabelo curto e escuro em um halo desfiado em torno do seu rosto incrível de

elfo” (MEYER, 2008, p. 197).

Dotada de poderes especiais, como prever o futuro, a fada/elfo Alice possui um

fator determinante em toda a narrativa. Em cada uma das obras ela desempenhará um

papel fundamental. No primeiro livro, Crepúsculo, ela é a responsável por salvar a

menina ao descobrir o local de sua possível morte. Na segunda obra, Lua Nova, ao

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perceber que Bella estava em situações de perigo a mesma vai ao seu encontro, sendo

ainda a responsável por reuni-la novamente com Edward. Em Eclipse, Alice prevê a

volta de uma antiga inimiga e ajuda no treinamento de alguns parceiros inesperados. E,

finalmente, em Amanhecer é, por meio de sua visão, que uma guerra entre vampiros não

será desencadeada.

Além disso, há ainda em Alice o dom comum à fada de Cinderela, de presentear

a menina com vestidos de baile. Assumindo o papel de Fada Madrinha, cabe à vampira

vestir a personagem para a festa de formatura e para seu casamento, a condição exigida

para que a garota deixasse de ser uma simples mortal, uma simples Gata Borralheira, e

virasse uma vampira, uma princesa. Mas Bella não precisaria voltar antes da meia-noite.

Afinal, esse feitiço não poderia ser quebrado.

Assim, essa personagem assume algumas das características que uma fada pode

ter, tanto em sua descrição física, quanto em suas ações, tornando-se uma figura central

para a narrativa. Mas esse não é o único ser encantado que temos em nossa história

moderna. Há aqui também outro personagem bastante conhecido por todos, o lobo mau.

3.2.8. Chapeuzinho Vermelho

Sua avó mora muito longe? ─ perguntou o lobo.

Ah! Mora sim ─ respondeu Chapeuzinho Vermelho ─ Mora depois daquele

moinho lá longe, bem longe, na primeira casa da aldeia (PERRAULT apud

MACHADO, 2010, p. 78).

O conto de fada Chapeuzinho Vermelho narra a história de uma linda menina

que, ao visitar a sua avó, depara-se com um lobo no meio da floresta. Embora alertada

pela sua mãe, a garota conversa com o animal, contando-lhe o caminho da casa da

vovozinha. Chegando antes que a jovem, o lobo mau ilude a pobre velhinha, que é

devorada. Quando Chapeuzinho Vermelho finalmente entra na casa de sua avó nota que

ela está mudada. Seus olhos, orelhas, braços e boca estão maiores e a menina descobre

que foi enganada pelo lobo, sendo engolida por ele também. Na versão de Charles

Perrault, o conto acaba por aqui, mas os Irmãos Grimm acrescentam um caçador que

salva as duas da barriga do animal, trocando-as por pedras e, assim, castigando o lobo.

Mas antes de falarmos deste animal, não podemos deixar de citar a importância

que a floresta (cenário bastante comum nos contos de fada) também desempenha nessa

saga. O estudioso de contos maravilhosos Vladimir Propp (2002, p. 55) afirma que:

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O herói do conto – seja ele um príncipe, uma órfã expulsa ou ainda um soldado

fugitivo – infalivelmente vai dar em uma floresta, onde começam suas

aventuras. A floresta nunca é descrita com detalhes. Ela é densa, escura,

misteriosa, um pouco convencional, não totalmente verossímil.

Em Crepúsculo, a floresta também se apresenta como um elemento central,

aparecendo como a paisagem para algumas importantes passagens dessa narrativa.

Assim, podemos recordar que Bella vive na frente de uma floresta. Aliás, a cidade em

que ela mora é descrita como extremamente verde e chuvosa. A casa dos vampiros

também se encontra na floresta. É nesse espaço que Edward conta para a jovem o seu

segredo. Ou ainda que ela descobre que Jacob é um lobo. É aqui também que o vampiro

a abandona e que Bella é perseguida e salva diversas vezes.

Devemos ainda considerar que alguns dos mais marcantes eventos dessa história,

representados pelos ritos de passagem da heroína, acontecem na floresta. Nesse cenário,

Bella se casa com Edward. E cumpre, após o nascimento de sua filha, o ritual de morte e

renascimento, transformando-se em vampira. Propp indica a importância desse

elemento nos contos quando afirma que “a ligação entre o rito de iniciação e a floresta é

tão sólida e constante que é verdadeira também em sentido inverso. Toda vez que o

herói se encontra na floresta surge o problema da relação entre o assunto apresentado e

o ciclo iniciático (PROPP, 2002, p. 55)”.

Voltemos, agora, ao lobo. Ao lermos ou ouvirmos a história de Chapeuzinho

Vermelho é comum que nos perguntemos: mas por que a menina deu o endereço de sua

avó para o lobo mau? No entanto, talvez a resposta mais simples, mas também a mais

cruel seja: porque ela quis. Chapeuzinho Vermelho, como bem claro fica a leitura do

poema final de Charles Perrault9, deixa-se seduzir pelo lobo. Assim como Bella.

A princípio Bella é apenas amiga de Jacob, o menino-lobo da história. Ele não

representa um lobisomem, mas um ser humano com a capacidade de se transformar em

um animal, nesse caso, um lobo, como fica evidente na descrição a seguir:

9 “Vemos aqui que as meninas, /E sobretudo as mocinhas /Lindas, elegantes e finas, /Não devem a

qualquer um escutar./ E se o fazem, não é surpresa/ Que do lobo virem jantar./ Falo "do" lobo, pois nem

todos eles/ São de fato equiparáveis./ Alguns são até muito amáveis,/ Serenos, sem fel nem irritação./

Esses doces lobos, com toda educação,/ Acompanham as jovens senhoritas/ Pelos becos afora e além do

portão./ Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,/ São, entre todos, os mais perigosos” (PERRAULT,

apud MACHADO, 2010, p. 82).

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O lobo mais próximo, o castanho-avermelhado, virou a cabeça devagar ao me

ouvir arfar. Seus olhos eram escuros, quase pretos. Ele me fitou por uma fração

de segundo, o olhar profundo parecendo inteligente demais para um animal

selvagem. Enquanto aquilo me olhava, de repente pensei em Jacob - de novo

com alívio (MEYER, 2008, p. 199).

Inimigo mortal dos vampiros, esse seres são descendentes de lobos.

Representados pela tribo indígena quileute, eles mudam de forma quando necessitam

defender o mundo dos seres imortais. Entre eles, está o vampiro Edward. Assim, já

podemos perceber que há uma tensão entre os personagens desde a primeira obra. Os

inimigos ancestrais desejam a mesma garota.

Após a separação de Bella e Edward (que se afasta da jovem para protegê-la),

esta se aproxima de Jacob e acaba tendo sentimentos mais fortes que somente uma

amizade por ele. Apaixonada pelo vampiro, há algo dentro dela que também deseja o

lobo. Há algo dentro dela que indicaria ao lobo o caminho da casa de sua avó ou que

pediria um beijo apaixonado, como acontece no terceiro livro da saga:

Meus dedos agarraram seu cabelo, mas eu agora o puxava para mais perto. Ele

estava em toda parte. O Sol penetrante tornou minhas pálpebras vermelhas, e a

cor combinava com o calor. O calor estava em toda parte, eu não conseguia ver

nem sentir nada que não fosse Jacob. (...) Jacob tinha razão. Teve razão o tempo

todo. Ele era mais do que apenas meu amigo. Por isso era tão impossível me

despedir dele - porque eu estava apaixonada por ele. Também. Eu o amava,

muito mais do que devia e, no entanto, ainda não era o bastante (MEYER, 2009,

p. 377).

Não. Não seria mesmo o bastante. Decidida pelo vampiro, Bella abandona o

lobo. Mas a autora, sempre em busca de um final feliz, soluciona esse problema, com

uma saída simples e previsível. O lobo sofre um “imprinting”, uma espécie de “amor à

primeira vista” pela filha recém-nascida de Bella, sua ex-amada, e de Edward, seu

inimigo, nascendo, assim, outra história de amor entre Jacob, o lobo, e Renesmee, a

criança. Outra reinvenção de Chapeuzinho Vermelho.

Claro que, a partir de uma das visões da fada Alice, podemos entender que essa

será a nova heroína, de um possível e reformulado novo conto de fada moderno. Afinal,

Bella e Edward já são felizes para sempre, não precisamos saber mais nada a respeito

deles.

Mas e Renesmee e Jacob? O que acontecerá com esses personagens? Bem, essa

já é outra história. Ou será ela a mesma? Afinal o lobo não pode ser interpretado

também como uma Fera?

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Talvez aquela aflição e inquietação estejam voltando a me assombrar. Mas

agora, ao menos, já saberei onde procurar, pois a resposta se encontra em algum lugar

dentro de mim, bem lá no fundo da minha alma, quando ela se encontra encantada. E,

novamente, Ariadne estará lá para me oferecer seu fio. Ela estará lá para me guiar nesse

novo/velho labirinto.

Aliás, se pensarmos bem, essa inquietação, provavelmente, já voltou a perturbar

a nossa mente. Ou será que ninguém ainda percebeu que um novo fenômeno mundial, o

best seller Cinquenta Tons de Cinza, que este ano ganha uma adaptação para o cinema,

pode ser considerado uma reinvenção de A Bela e a Fera? Ou do Barba Azul?

Poderia uma “ficção erótica” esconder um conto de fada? Claro que poderia. E

claro que escondeu. Ou alguém duvida que o sedutor Christian Grey talvez seja uma

releitura de Eros, Fera e Edward? E que a jovem e inocente Anastasia Steele pode ser

outra das faces de Psique, Bela e Bella?

3.3. Desconstruindo Crepúsculo

Ora, se as personagens nos revelaram diversos aspectos dos contos de fada,

ainda faltaria a estrutura de Crepúsculo para ser desvendada. Responsáveis por perceber

a ocorrência dos mesmos esquemas narrativos em histórias de povos que dificilmente

poderiam ter mantido qualquer tipo de contato entre si, Joseph Campbell, a partir de sua

famosa “Jornada do Herói”, e Vladimir Propp, com suas “Funções dos Contos

Maravilhosos”, aparecem como nomes fundamentais para essa etapa da dissertação.

A personagem central dessa história, Bella representa a típica heroína de um

conto de fada e sua trajetória será a mesma que as das outras tantas que a precederam. A

linha central da saga adequa-se ao tema do Monomito, proposto por Campbell em sua

obra O Herói de Mil Faces (2010), e composto, essencialmente, por três estágios: a

Partida (onde o herói será apresentado), a Iniciação (lugar em que sua aventura irá

acontecer) e o Retorno (simbolizado pela volta transformada do herói).

Para este autor, se procurarmos nas diversas narrativas de todo o mundo, mais

especificamente, nos mitos e contos de fada, encontraremos sempre a mesma história e

o mesmo herói. Os detalhes físicos e culturais podem variar, mas a essência de sua

jornada é semelhante. Assim, temos que:

O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula

representada nos rituais de passagem: separação – iniciação – retorno, que podem

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ser considerados a unidade nuclear do monomito. Um herói, vindo do mundo

cotidiano se aventura em uma região de prodígios sobrenaturais; ali ele encontra

fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa

aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (CAMPBELL,

2010, p. 36).

A heroína de Crepúsculo, Bella, também cumpre esse papel. Há o tema da

Separação quando a garota é apresentada em seu mundo, mas percebe não fazer parte

dele. Aqui, ela, assim como indica Campbell, recebe um chamado à aventura, quando

conhece os vampiros e percebe que deverá sair de seu lar para adentrar em um novo

mundo. Também nesse primeiro momento, Bella encontra seu mentor, sua fada-

madrinha, Alice, que lhe fornece o auxílio sobrenatural com suas visões. A jovem passa

pelo primeiro limiar ao se deparar com os vampiros do mal e entra no ventre da baleia,

quando enfrenta seu oponente, James.

A Iniciação acontece quando Edward a abandona e Bella, a exemplo de Psique,

enfrenta um caminho de provas para recuperar seu amado. Essas provações irão incluir

uma amizade inesperada com um menino-lobo e mais um duelo com uma antiga rival.

Já tendo passado por esses perigos, virá a apoteose, com o casamento que a unirá para

sempre ao seu amado, e a benção última, simbolizada por sua gravidez.

Chega, portanto, o momento do Retorno da heroína. Após passar por uma morte

e renascimento, Bella desperta como uma vampira, mudando o destino de todos a sua

volta.

Seguindo uma linha de estudo comparativo semelhante à de Campbell, mas

voltada exclusivamente aos contos, Propp também identifica algumas particularidades

pertencentes a essas histórias, que ele denomina como maravilhosas ou “contos de

magia no sentido exato dessa palavra” (PROPP, 2010, p. 1), e determina que devemos

estudar as narrativas a partir das funções de seus personagens.

Em sua obra Morfologia do Conto Maravilhoso (2010), Propp identifica trinta e

uma funções referentes aos contos, mas ressalta que nem todos precisam conter cada

uma delas. Algumas se apresentam como as mais importantes e necessárias a essas

histórias, mas outras podem ser suprimidas sem que a narrativa perca seu contorno

original. Para o autor, “os contos de magia possuem uma construção absolutamente

peculiar, que se percebe de imediato e que determina esta categoria mesmo sem

tomarmos consciência do fato” (PROPP, 2010, p. 8).

Entendidas como “as partes constituintes básicas do conto” (PROPP, 2010, p.

22), essas funções determinam uma espécie de “fórmula mágica”, responsável por

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identificar uma narrativa desse tipo. Para o autor, os contos dessa categoria são

caracterizados por um afastamento, seguidos por uma proibição e transgressão dessa

proibição. Após esse momento, verifica-se:

um dano ou um prejuízo causado a alguém (rapto, exílio), ou então pelo desejo de

possuir algo (o czar manda seu filho buscar o pássaro de fogo), e cujo

desenvolvimento é o seguinte: partida do herói, encontro com o doador, que lhe dá

um recurso mágico ou um auxiliar mágico munido do qual poderá encontrar o

objeto procurado. Seguem-se: o duelo com o adversário (cuja forma mais

importante é o combate com o dragão), o retorno e a perseguição. Frequentemente

essa composição torna-se mais complexa. Quando o herói se aproxima de casa,

seus irmãos lançam-no em um precipício. Mas ele consegue retornar, passa por

uma provação cumprindo tarefas difíceis, torna-se rei e se casa, em seu reino ou no

do sogro. Esse é um relato esquemático e sucinto do eixo de composição que serve

de base a numerosos e variados enredos. Os contos que refletem esse esquema

denominam-se maravilhosos (PROPP, 2002, p. 4).

Se entendermos a saga Crepúsculo como um enorme conto de fada também

podemos observar o esquema de Propp nesses livros/filmes. O afastamento é

caracterizado pela saída de Bella da casa de sua mãe e a mudança para a casa do pai,

fato que desencadeará toda a história. A proibição acontece quando a heroína percebe

que não deve se relacionar com os vampiros e a transgressão fica clara no momento em

que a garota começa a namorar com um deles, Edward. A partir de então, ela conhece

os “vampiros do mal”, entre eles seu antagonista (aqui representado por James), e o

dano é revelado quando este ameaça matá-la e supostamente sequestra a sua mãe,

levando Bella diretamente ao seu encontro. A partida da heroína acontece, justamente,

nessa fuga e perseguição à James, enquanto o encontro com seu doador é caracterizado

pela obtenção do objeto mágico, a visão que a “fada” Alice lhe fornece. Sabendo onde

encontrar seu antagonista, Bella vai até ele e o duelo acontece. Por meio do auxílio de

seus aliados a jovem é salva desse conflito, retornando à casa de seu pai.

No entanto, outras provações são impostas à jovem no segundo capítulo de sua

jornada, quando esta é abandonada por Edward. Há ainda uma perseguição no terceiro

livro da saga, quando a namorada de James, Victoria, retorna para se vingar de seu

amado.

O quarto livro, que corresponde ao quarto e quinto filmes, apresenta o tema do

casamento, da tarefa difícil (quando Bella engravida) e de sua morte-renascimento (o

momento do parto), quando morre como uma humana e acorda transformada em

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95

vampira. O “felizes para sempre” é representado de maneira literal, pela imortalidade do

casal protagonista.

Assim, podemos identificar certas semelhanças entre os estudos de Campbell e

Propp. Ambos são caracterizados por um esquema que traz, primeiramente, a separação,

afastamento ou partida do herói. Após esse momento, segue-se o encontro com alguém

que lhe propiciará um recurso mágico, chamado pelo primeiro autor, de mentor e por

Propp, de doador. Em seguida, provas serão impostas para testar o herói e, quando o

mesmo for finalmente reconhecido, normalmente após uma morte-renascimento, ele

deve retornar à casa, portando o objeto de sua busca e transformado por essa

experiência.

Personagens e estrutura de contos de fada. “Jornada do Herói”, de Campbell e

“Funções”, de Propp. A saga Crepúsculo se encaixa de forma exemplar nos esquemas

narrativos oferecidos por esses estudiosos de mitos e contos maravilhosos. Ela se

enquadra em seus estágios. Realiza suas funções. Seria esse, então, um conto

maravilhoso? A resposta pode ser sim e não.

Sim, porque ela apresenta a estrutura de um conto. Reflete as facetas de alguns

dos mais conhecidos personagens de todos os tempos. Transmite alguns ensinamentos.

Assim, essa série poderia, nesse sentido, ser considerada, como um “conto de fada

moderno”.

Mas a resposta também é não, porque essa narrativa não parece nascer ou

dialogar com o inconsciente coletivo, como os antigos contos faziam, nem tampouco

refletir a magia, o conhecimento e a poesia dessas narrativas. Pelo contrário. Crepúsculo

surge como uma colagem de diversas histórias, em uma obra que se apropria de

personagens e situações conhecidas. Segue uma receita. E cria um conto artificial,

montado.

Assim, ela surge como o auge das reinvenções dos contos de fada ao narrar uma

história que esconde sua inspiração, mas que re-cria, re-inventa, por meio de diversos

fragmentos, as antigas narrativas. Mas que não se revela à primeira vista, pelo contrário,

simula sua verdadeira origem. E que, em razão disso, pode até enganar os olhos

daqueles que não percebem a magia que as histórias ancestrais são capazes de

transmitir. A magia que brota, que se revela. Que não está voltada ao consumo. Mas ao

encantamento e ao conhecimento. Mas ela não engana os meus. E nem os seus olhos.

Porque agora conseguimos enxergar. As reinvenções estão em todos os lugares, basta

procurá-las para que possamos (re)conhecê-las.

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Afinal, entre meninas desastradas e princesas encantadas escolho as princesas.

Entre cidades e castelos, fico com os castelos. Entre Feras e seres imortais, prefiro as

Feras. Entre lobos-maus e lobos-meninos... bem, nunca entendi a motivação de

Chapeuzinho Vermelho. Entre fadas vampiras e a Fada-Madrinha? Essa é fácil. Eu

sempre quis aquele sapatinho de cristal.

O final feliz não precisa ser literal para ser eterno. O Felizes para Sempre mora

dentro de cada um de nós. E ele não é manifesto na imortalidade de um vampiro. Mas

na lembrança que apenas essas histórias são capazes de proporcionar. Sejam contadas

pelas mães aos filhos, lidas ou assistidas pelas crianças e adultos ou lembradas, vividas

e coloridas pela própria imaginação. O local em que são mais encantadas. Como nossa

alma, que se revela com aquelas três palavras mágicas que começam as histórias. E que,

uma vez cativada, retorna diferente dessa jornada. Assim como eu. E como você.

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(DES)CONCLUSÃO

Não há melhor maneira de encerrar esta dissertação do que apresentar ao leitor

minha (Des)Conclusão. Uma referência, é claro, à Festa de Desaniversário do clássico

de Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas. Ora, se quem não faz aniversário faz

desaniversário, eu não poderia encontrar um nome mais adequado para o final deste

trabalho que pode ser, quem sabe, o início de um outro. Como uma “obra aberta”

(Umberto Eco), prefiro não concluir, mas “desconcluir”.

Este estudo pretendeu, basicamente, apontar, como objetivo geral, a retomada e

a reinvenção dos contos de fada, a partir de produtos cinematográficos e televisivos da

atualidade, buscando as causas desse fenômeno e revelando a maneira na qual eles

podem se apresentar. Além disso, como objetivo específico, procuramos realizar

comparações entre as histórias “originais” e seus referenciais contemporâneos.

Assim, na tentativa de compreender esse fenômeno, a pesquisa ofereceu ao leitor

duas possíveis leituras. A primeira delas, baseada nos estudos de Jung, apontou que sua

teoria da compensação dos temas arquetípicos que determinada época mais necessite

poderia oferecer um dos indícios necessários para compreendermos essa retomada dos

contos. Nesse mundo dominado pela razão, pelo logos, o homem necessita também de

seus conteúdos simbólicos, não-racionais, primitivos. Temas que podem ser oferecidos

pelas narrativas míticas e pelos contos de fada.

A segunda leitura tentou demonstrar de que maneira esses conteúdos são,

atualmente, oferecidos aos seres humanos e encontrou nos produtos da indústria cultural

sua principal forma de manifestação. No entanto, a partir de histórias bastante diferentes

de seus referenciais mais diretos, esses produtos não visam apenas transmitir os

ensinamentos que as antigas narrativas possibilitavam. Sua “missão” agora é outra,

muito mais voltada ao consumo, ao lucro e à propagação de ideologias.

Page 98: Carolina Chamizo Henrique Babo

98

Nesse sentido, a pesquisa também procurou apontar uma espécie de

desencantamento na qual esses “novos” contos podem estar submetidos. Ao compará-

los com as narrativas ancestrais, salientamos que estas eram transmitidas oralmente, em

contato direto entre os corpos. Ao serem transportadas para as páginas dos livros e para

as telas do cinema, elas sofreram algumas modificações que podem ter contribuído para

esse desencantamento. Entre elas, talvez a mais poética, mostra que o afastamento

desses corpos, a falta de rituais que proferissem os contos, os reatualizassem, os

fizessem ocorrer novamente em seu próprio tempo mítico, os tenha feito perder sua

“aura mágica”, seu “encantamento”. Além disso, a partir dessas transposições em

distintas plataformas, as histórias foram sendo modificadas até serem, finalmente,

reinventadas.

Em relação às reinvenções, distinguimos dois tipos distintos: as diretas (aquelas

que pelo título ou personagens centrais percebemos que estamos diante de um conto de

fada) e as indiretas (aquelas que devemos ler em suas entrelinhas para realmente

entender o que elas tentam esconder).

Ao estudarmos as reinvenções diretas, optamos por nos concentrar em

personagens bastante conhecidas pelo público e dedicamo-nos aos arquétipos da Grande

Mãe (representado pelas “Rainhas Más” das histórias), do Velho Sábio (materializados

pelas fadas) e do Herói. Ao observarmos a figura da Grande Mãe, percebemos uma

mudança bastante significativa entre os produtos da atualidade e os antigos contos de

fada. Nas narrativas ancestrais, essas personagens não tinham sua “maldade” justificada.

Nos referenciais contemporâneos, a variação é tanta, que elas se tornam, até mesmo, as

novas heroínas das narrativas.

Em relação ao Velho Sábio, o estudo procurou demonstrar as diversas facetas

que o mesmo aparece não percebendo, porém, nenhuma alteração tão significativa

quanto o arquétipo anteriormente citado.

A figura do herói também apontou uma modificação expressiva. Curiosamente,

no entanto, se aproximando dos antigos contos e não se afastando deles. Ao observar as

animações Disney, percebemos que as meninas, antes simbolizadas como princesas

indefesas, são retratadas, em suas três últimas produções (Enrolados, Valente e Frozen)

como jovens responsáveis por traçar seu próprio destino. Em razão desse fato, até

mesmo reconsideramos a metáfora do (des)encantamento e sugerimos que

encantamento e desencantamento caminham juntos. Precisamos observar cada produção

com cuidado, antes de afirmar que todas são, portanto, desencantadas.

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Ao observarmos as reinvenções indiretas, optamos por escolher algumas obras e

dedicamo-nos a elas com mais atenção. Assim, as mais significativas em termos de

público e arrecadação foram as escolhidas. O estudo apontou, portanto, as semelhanças

entre alguns aspectos das produções O Senhor dos Anéis e Harry Potter e os contos de

fada, destacando que personagens ou situações das antigas narrativas podem ser

reconhecidas nessas produções.

No entanto, foi a partir da saga Crepúsculo, que a presente dissertação teceu

diversas comparações entre os contos maravilhosos, demonstrando como eles se

escondem (e se revelam) em suas entrelinhas. Essa produção foi a escolhida por

representar o auge dessas reinvenções, não apenas fazendo referência a uma ou outra

narrativa ou personagem, mas a uma série delas.

Sugerimos, portanto, que alguns dos mais conhecidos contos de fada podem ter

servido de inspiração para a autora narrar a sua história moderna, de origem ancestral.

Além disso, o esqueleto central dos livros e filmes também segue a estrutura padrão dos

contos maravilhosos, mais um indício da utilização dos mesmos nessa reinvenção.

Esperamos, por fim, ter conseguido cumprir nossa “missão”, demonstrando,

nessa pesquisa, a importância das antigas narrativas como formas de conhecimento. Em

uma sociedade que parece ter se esquecido delas ou mesmo as desprezado como

pensamento inferiores, as “retomadas” e “reinvenções” que apresentamos nesse

trabalho, evidenciam que o ser humano sempre precisará de suas antigas histórias.

Mesmo que elas sejam modificadas, alteradas, transformadas. Devemos aprender a

ouvi-las e dialogar com elas. Conscientemente. Inconscientemente.

Isto posto, porém, devemos salientar que chamar de conclusão esta parte do

trabalho, seria o mesmo que encerrar aqui o mosaico de ideias que o compõe. Nota-se,

contudo, que ele é apenas o início, o ponto de partida, a provocação.

Muito se tem ainda a pesquisar e desvendar a respeito deste tema, cheio de

possibilidades. Podemos e devemos nos aprofundar em seu estudo com a mesma

dedicação e carinho em que este foi escrito. Ou ainda, podemos escolher apenas uma de

suas ramificações e, a partir daí, construir um novo objeto de pesquisa.

Fica em aberto, portanto, para quem mais desejar estudar o tema dos contos de

fada, das narrativas e dos produtos derivados dos mesmos e apropriados pela mídia.

Produtos ora encantados, ora desencantados. De referências diretas ou indiretas.

Conduzidos por princesas comuns ou princesas vampiras, heróis clássicos ou indefesos

hobbits, feiticeiras terríveis ou bruxos queridos, vilões “justificáveis” ou vilões “Que-

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100

Não-Devemos-Nomear”. Produtos assistidos na televisão, lidos com o coração ou

recitados e revividos pela imaginação. Aquele lugar em que as fadas habitam e nos

contam seus segredos. Segredos que nos guiam e nos orientam em nossa jornada. A

vida. Não adianta mais negar ou mesmo se questionar. Se você ainda está lendo esse

texto é porque, como eu, também acredita em fadas.

Sentimos saudade dos contos de fada, dos mitos. Dessas histórias que nos

ensinam, nos preenchem, moldam nosso comportamento, nos humanizam. Há, no

espírito de nossa época uma tristeza aparente por essa saudade, por esse distanciamento.

Precisamos de nossas narrativas novamente. Precisamos das princesas e das bruxas, das

fadas e dos dragões, das maçãs envenenadas e dos sapatinhos de cristal. Precisamos das

migalhas deixadas por João e Maria em seu caminho e iluminadas pela luz do Lua para

sairmos da floresta e voltarmos ao nosso lar.

Page 101: Carolina Chamizo Henrique Babo

101

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DVD (90 min), son., color., leg. Título original: Shrek.

SHREK 2. Direção de Andrew Adamson, Kelly Asbury, Conrad Vernon. USA. DreamWorks

Animation, 2004. 1 DVD (93 min), son., color., leg. Título original: Shrek 2.

SHREK Terceiro. Direção de Chris Miller, Raman Hui. USA. DreamWorks Animation, 2007. 1

DVD (93 min), son., color., leg. Título original: Shrek The Third.

SHREK Para Sempre. Direção de Mike Mitchell. USA. DreamWorks Animation, 2010. 1 DVD

(93 min), son., color., leg. Título original: Shrek Forever After.

VALENTE. Direção de Mark Andrews, Brenda Chapman, Steve Purcell. Walt Disney

Animation Studios, 2012. 1 DVD (93 min), son., color., leg. Título original: Brave.

Filmes

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DVD (100 min), son., color., leg. Título original: Red Riding Hood.

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2012. 1 DVD (108 min), son., color., leg. Título original: Alice In Wonderland.

AMANHECER: Parte 1. Direção de Bill Condon. USA. Summit Entertainment, 2011. 1 DVD

(117 min), son., color., leg. Título original: The Twilight Saga: Breaking Dawn - Part 1.

AMANHECER: Parte 2. Direção de Bill Condon. USA. Summit Entertainment, 2012. 1 DVD

(115 min), son., color., leg. Título original: The Twilight Saga: Breaking Dawn - Part 2.

BRANCA de Neve e o Caçador. Direção de Rupert Sanders. USA. Universal Pictures, 2012. 1

DVD (127 min), son., color., leg. Título original: Snow White and the Huntsman.

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CREPÚSCULO. Direção de Catherine Hardwicke. USA. Summit Entertainment, 2008. 1 DVD

(122 min), son., color., leg. Título original: Twilight.

ENCANTADA. Direção de Kevin Lima. USA. Walt Disney Animation Studios, 2007. 1 DVD

(107 min), son., color., leg. Título original: Enchanted.

ECLIPSE. Direção de David Slade. USA. Summit Entertainment, 2010. 1 DVD (124 min), son.,

color., leg. Título original: The Twilight Saga: Eclipse.

ESPELHO, Espelho Meu. Direção de Tarsem Singh. USA. 20th Century Fox Home

Entertainment, 2012. 1 DVD (106 min), son., color., leg. Título original: Mirror, Mirror.

JACK, o Caçador de Gigantes. Direção de Bryan Singer. USA. New Line Cinema, 2013. 1

DVD (114 min), son., color., leg. Título original: Jack the Giant Slayer.

JOÃO e Maria: Caçadores de Bruxas. Direção de Tommy Wirkola. USA. Paramount Pictures,

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LUA Nova. Direção de Keith Romine. USA. Summit Entertainment, 2009. 1 DVD (122 min),

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