Carreira e vida pessoal: cada vez mais difícil de conciliar

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Jornal da FEBRASGO – março 2007 P ERSONAGEM Carreira e vida pessoal: cada vez mais difícil de conciliar por Luciano Guimarães colaboração de Paula Craveiro O s residentes brasileiros vêm passando por momentos difíceis. Após uma greve que chamou a atenção da sociedade brasi- leira, em 2006, com passeatas nas ruas e a mobilização de centenas de pessoas, a manifestação terminou após a obtenção de um reajuste de 30% no valor da bolsa-auxílio. Parcela considerável dos residentes trabalha mais de cem horas semanais, muitos atuando em plantões exaustivos, de 48 horas seguidas, sem intervalos para descanso. Este ainda é um fato negativo que precisa ser resolvido, pois são grandes as chances de erros médicos. Além disso, as longas jornadas também preju- dicam a atualização profissional, chamada no meio de educação médica continuada. “Atualmente, segundo levantamento do Conselho Federal de Me- dicina (CFM), o médico tem quatro atividades simultâneas e, cada vez mais, precisa trabalhar para compensar o achatamento gradual de seus ganhos”, afirma o neurologista Cid Célio Jayme Carvalhaes, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) e ex- presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia. “Em cinco anos, o profissional precisa obter cem pontos em atividades de educação continuada. Caso contrário, com o avanço da tecnologia e dos pro- cedimentos, ficará desatualizado em menos de 8 anos”. A seguir, confira como três profissionais lidam com este pro- blema cotidiano, conciliando, da maneira que podem, a vida pessoal com a carreira. DENISE CRISTINA MÓS VAZ OLIANI Ginecologista formada há 20 anos e especialista em ultra-so- nografia há 17 anos. É docente do Departamento de Gineco- logia e Obstetrícia, chefe do Serviço de Imagem em GO da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e diretora do Instituto de Medicina Reprodutiva e Fetal. JF: Por que você decidiu se especializar em ultra-sonografia e o que mudou da época em que fez US para os dias atuais? Denise: Era algo que faltava para complementar a profissão. Quando me especializei, acabei assumindo funções na US e gostei bastante. A carreira teve mudanças consideráveis. Somente neste ano, a US passou a ser obrigatória nos pro- gramas de residência. Antes; o médico precisava pagar para fazer um curso a respeito. JF: Como você concilia a vida profissional e a pessoal? Denise: Minha carga de trabalho é de aproximadamente 55 horas por semana, divididas em 40 horas na faculdade e o restante no consultório. A grande vantagem é que trabalho o tempo todo com o meu marido, que também é médico, tanto na faculdade quanto no consultório. Optei por não ter filhos, para poder cuidar da carreira. Um filho tomaria muito tempo, dificultando o desenvolvimento na profissão. JF: Como você atualiza seus conhecimentos? Denise: Tenho reuniões todas as manhãs com meus residen- tes da ultra-sonografia, para repassar conceitos; a cada 15 dias, nos reunimos para discutir medicina fetal; às sextas-fei- ras, à tarde, novamente no juntamos para discussão de casos publicados em revistas internacionais; e, uma vez por mês, voltamos a discutir mais casos. Também uso bastante a inter- net e participo de congressos e seminários, inclusive no exte- rior, para onde vamos duas vezes ao ano. JF: Essas funções de chefia a deixam mais estressada do que antes? Denise: Sim, com certeza, mas há vantagens, pois em cargo de chefia, passei a ver a profissão de modo dife- rente. Hoje, aprendo muito com meus 18 re- sidentes. Estou me adaptando à carga de trabalho. Ser chefe me ensina a controlar esse problema. JF: E como são suas horas de lazer? Denise: Como trabalho também aos sábados, o domingo para mim é sa- grado. Gosto muito de ler, fazer caminhadas e viajar. Sempre que podemos, vamos a Ribeirão Pre- to (SP), onde moram meus pais. Creio que o importante é fazer o que se gosta.

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Março/2007 | por Luciano Guimarães e Paula Craveiro | Jornal da Febrasgo n.84

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Carreira e vida pessoal: cada vez mais difícil de conciliarpor Luciano Guimarãescolaboração de Paula Craveiro

Os residentes brasileiros vêm passando por momentos difíceis. Após uma greve que chamou a atenção da sociedade brasi-leira, em 2006, com passeatas nas ruas e a mobilização de

centenas de pessoas, a manifestação terminou após a obtenção de um reajuste de 30% no valor da bolsa-auxílio.

Parcela considerável dos residentes trabalha mais de cem horas semanais, muitos atuando em plantões exaustivos, de 48 horas seguidas, sem intervalos para descanso. Este ainda é um fato negativo que precisa ser resolvido, pois são grandes as chances de erros médicos. Além disso, as longas jornadas também preju-dicam a atualização profissional, chamada no meio de educação médica continuada.

“Atualmente, segundo levantamento do Conselho Federal de Me-dicina (CFM), o médico tem quatro atividades simultâneas e, cada vez mais, precisa trabalhar para compensar o achatamento gradual de seus ganhos”, afirma o neurologista Cid Célio Jayme Carvalhaes, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia. “Em cinco anos, o profissional precisa obter cem pontos em atividades de educação continuada. Caso contrário, com o avanço da tecnologia e dos pro-cedimentos, ficará desatualizado em menos de 8 anos”.

A seguir, confira como três profissionais lidam com este pro-blema cotidiano, conciliando, da maneira que podem, a vida pessoal com a carreira.

DENISE CRISTINA MÓS VAZ OLIANI Ginecologista formada há 20 anos e especialista em ultra-so-nografia há 17 anos. É docente do Departamento de Gineco-logia e Obstetrícia, chefe do Serviço de Imagem em GO da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e diretora do Instituto de Medicina Reprodutiva e Fetal.

JF: Por que você decidiu se especializar em ultra-sonografia e o que mudou da época em que fez US para os dias atuais?

Denise: Era algo que faltava para complementar a profissão. Quando me especializei, acabei assumindo funções na US e gostei bastante. A carreira teve mudanças consideráveis. Somente neste ano, a US passou a ser obrigatória nos pro-gramas de residência. Antes; o médico precisava pagar para fazer um curso a respeito.

JF: Como você concilia a vida profissional e a pessoal?

Denise: Minha carga de trabalho é de aproximadamente 55 horas por semana, divididas em 40 horas na faculdade e o restante no consultório. A grande vantagem é que trabalho o tempo todo com o meu marido, que também é médico, tanto na faculdade quanto no consultório. Optei por não ter filhos, para poder cuidar da carreira. Um filho tomaria muito tempo, dificultando o desenvolvimento na profissão.

JF: Como você atualiza seus conhecimentos?

Denise: Tenho reuniões todas as manhãs com meus residen-tes da ultra-sonografia, para repassar conceitos; a cada 15

dias, nos reunimos para discutir medicina fetal; às sextas-fei-ras, à tarde, novamente no juntamos para discussão de casos publicados em revistas internacionais; e, uma vez por mês, voltamos a discutir mais casos. Também uso bastante a inter-net e participo de congressos e seminários, inclusive no exte-rior, para onde vamos duas vezes ao ano.

JF: Essas funções de chefia a deixam mais estressada do que antes?

Denise: Sim, com certeza, mas há vantagens, pois em cargo de chefia, passei a ver a profissão de modo dife-rente. Hoje, aprendo muito com meus 18 re-sidentes. Estou me adaptando à carga de trabalho. Ser chefe me ensina a controlar esse problema.

JF: E como são suas horas de lazer?

Denise: Como trabalho também aos sábados, o domingo para mim é sa-grado. Gosto muito de ler, fazer caminhadas e viajar. Sempre que podemos, vamos a Ribeirão Pre-to (SP), onde moram meus pais. Creio que o importante é fazer o que se gosta.

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NEIVANA MAR DOS SANTOS FONTES Especializada em GO pela Universidade de Manaus há 10 anos. É docente da cadeira de GO na Universidade do Amazo-nas e coordenadora do programa de Planejamento Familiar e Contracepção do Hospital Universitário Francisca Mendes, administrado pela Universidade Federal do Amazonas. Tam-bém é médica plantonista cooperada da Cooperativa Médica de Ginecologia e Obstetrícia (Copago).

JF: Que atividades médicas você desempenha e quanto tem-po, em média, elas consomem?

Neivana: Atuo nas áreas de cirurgia e contracepção. Tam-bém sou residente plantonista e, como faço parte de uma cooperativa, não tenho tempo suficiente para fazer con-sultório. Sem contar que o trabalho acadêmico e as tarefas do hospital ocupam uma grande parte do meu dia, aproxi-madamente 70%.

JF: Como você se atualiza?

Neivana: Como estou diretamente ligada à universidade, acabo me atualizando enquanto realizo pesquisas acadê-micas ou ao preparar minhas aulas. Para poder sanar as dúvidas e questionamentos em geral de meus alunos, sou constantemente obrigada a ir atrás de informações, seja em livros, cursos ou internet. A própria dinâmica de aprendiza-do, a interação entre os alunos e eu, torna-se uma fonte de novos conhecimentos.

MARCELO MARSILLAC MATIAS Ginecologista com consultório próprio, contratado do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas e plantonista de sobreaviso do Hospital Mãe de Deus, todos em Porto Alegre (RS).

Jornal da Febrasgo: Qual a sua carga de trabalho atual?

Matias: Ultrapassa com certeza 70 horas semanais, sendo 60 horas dedicadas ao Hospital Presidente Vargas, que é federal e municipalizado. Lá, atendo no Centro Obstétrico, no ambu-latório e no bloco cirúrgico. As demais horas são gastas no consultório, geralmente no final das tardes.

JF: Como você atualiza seus conhecimentos?

Matias: A maioria da atualização é feita por meio da internet. Hoje, a educação continuada requer tempo e investimento, coisas que os médicos não têm. Mas sempre que possível, até porque faço parte da Comissão de Ética e de Ensino do Hospital Presidente Vargas, busco conhecimento na literatura médica e em periódicos.

JF: Trabalhar tanto não prejudica esse processo de educação continuada?

Matias: Sim, é claro, pois a falta de tempo dificulta cada vez mais a atualização de conhecimentos médicos. Em função

disso, não só eu, mas a maioria dos profissionais tem apenas os finais de semana para isso. Sou sócio da So-ciedade Brasileira de Ginecologia, participo de cursos e seminários, mas mesmo freqüentar esses eventos está ficando complicado.

JF: Como são as suas atividades de lazer?

Matias: São praticamente dedicadas à família, principal-mente à minha filha de dois anos de idade. Dificilmente conseguimos ir ao cinema ou a um parque, porque a profissão toma muito o nosso tempo. Mi-nhas horas de lazer são pratica-mente passadas em casa.

JF: Como você concilia a vida profissional e a pessoal?

Neivana: Quando se é sozinho, a vida é mais simples. A partir do momento que tem mais alguém envolvido – no meu caso, duas crianças ainda pequenas –, é preciso ter muito jogo de cintura. Felizmente sempre pude contar com o apoio de meus familiares. Porém, em alguns momentos é preciso abrir mão de certas coi-sas, fazer uma opção. Não dá para abandonar minha profissão, pois é algo a que me dedico há anos. Mas também não posso esquecer dos meus filhos, que são prioridade em minha vida.

JF: E como são suas horas de lazer?

Neivana: Por passar muito tempo au-sente, busco dedicar esses momen-tos inteiramente a eles. Tento fazer quase todos os programas que eles gostam, como levá-los para andar de skate e patins, ir ao cinema, jogar boliche. Mas, sempre que possível, procuro também sair para dançar, que é uma coisa que eu gosto muito, mas quase não tenho tempo de fazer.