Carta de Sado

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1 estudo Carta de Sado photos.com Escrito de Nitiren Daishonin MATÉRIA DE ESTUDO — BUDISMO NA VIDA DIÁRIA “Carta de Sado” Suplemento digital da revista Terceira Civilização A explanação deste escrito a ser utilizada nas atividades do BVD foi publicada na revista Terceira Civilização, edição n o 511, de março de 2011.

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Escrito de Nitiren Daishonin

Matéria de estudo — BudisMo na Vida diária

“Carta de Sado”

suplemento digital da revista Terceira Civilização

A explanação deste escrito a ser utilizada nas atividades do BVDfoi publicada na revista Terceira Civilização, edição no 511, de março de 2011.

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1. Trecho baseado em uma passagem do 23o capítulo do Sutra de Lótus.

Esta carta deve ser entregue a Toki. Deve também ser mostrada a Saburo Sae­mon, ao reverendo leigo Okuratonotsuji Juro, à monja leiga de Sajiki e aos meus outros seguidores. Enviem­me o nome dos que foram mortos nas ba­

talhas em Quioto e Kamakura. Por favor, peçam às pessoas que estão vindo para cá para me trazer a antologia dos textos não budistas; o segundo volume de Palavras e Frases do Sutra de Lótus; o quarto volume de Profundo Significado do Sutra de Lótus, com o comentário sobre esse volume; a coletânea de documentos oficiais de políticas e a de decretos imperiais.

As coisas mais terríveis deste mundo são a dor do fogo, o brilho das espadas e a som­bra da morte. Se até os animais têm medo da morte, não é de surpreender que os seres humanos também tenham. Se mesmo um leproso luta pela vida, imagine uma pessoa saudável. O Buda ensinou que o ato de cobrir todo um sistema de grandes mundos com os sete tipos de tesouros não se compara a oferecer o dedo menor ao Buda e ao sutra [de Lótus].1 O garoto Montanhas de Neve ofereceu o próprio corpo e o asceta Aspiração à Lei removeu a própria pele [para nela gravar os ensinos do Buda]. Como não há nada mais precioso que a própria vida, aquele que a dedica à prática budista, com certeza, atingirá o estado de Buda. Se alguém está disposto a consagrar a vida, por que pouparia qualquer outro tesouro pela causa do Budismo? Em outras palavras, se a pessoa reluta em se desfazer da riqueza, como poderia sacrificar a vida, que é muito mais preciosa?

Aprendemos que é nosso dever retribuir as dívidas de gratidão que temos com os outros, mesmo ao custo de nossa vida. Muitos guerreiros sacrificam a vida por seu lorde; talvez muito mais do que imaginamos. Um homem morre para defender a honra e uma mulher morre por seu marido. Os peixes lutam para sobreviver, lamentam pela pouca profundidade do lago onde vivem e cavam buracos no fundo para se esconder; porém, enganados pela isca, são fisgados. Os pássaros, temendo que as árvores em que vivem sejam muito baixas, escolhem os galhos mais altos para se proteger, mas, enganados pela isca, eles também são apanhados em armadilhas. Os seres humanos são igualmente vulneráveis. As pessoas geralmente se sacrificam por assuntos seculares insignificantes, mas raramente fazem o mesmo pelos preciosos ensinos do Buda. Assim, não é de surpre­ender que não atinjam a iluminação.

Há dois métodos de propagação do Budismo, o Shoju e o Chakubuku, e a escolha de um deles vai depender da época. Esses métodos são comparáveis às artes seculares literária e militar. Os grandes sábios da antiguidade praticaram os ensinos budistas de acordo com a época. O garoto Montanhas de Neve e o príncipe Sattva sacrificaram a vida quando lhes disseram que, em troca, poderiam ouvir os ensinos e que doar a pró­pria vida constitui­se na prática de Bodhisattva. No entanto, por que alguém deveria sacrificar a vida quando isso não é necessário? Numa época em que não há papel, a pes­soa deve usar a própria pele. Numa época em que não há pincel, a pessoa deve usar os próprios ossos. Numa época em que as pessoas louvam aqueles que observam os precei­

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tos e os praticantes do ensino correto, ao mesmo tempo em que denunciam aqueles que violam ou ignoram os preceitos, elas devem seguir rigorosamente os preceitos. Numa época em que o confucionismo ou o taoísmo são empregados para reprimir os ensinos de Sakyamuni, a pessoa deve arriscar a vida para advertir o imperador, assim como fizeram os mestres do Darma Tao­an, Hui­yüan e o Mestre Tripitaka Fa­tao. Numa época em que as pessoas confundem os ensinos Hinayana com o Mahayana, os ensinos provisórios com o verdadeiro ou as doutrinas exotéricas com as esotéricas, como se fossem incapa­zes de distinguir as pedras preciosas dos pedregulhos ou o leite de vaca do leite de mula, 2 devemos mostrar firmemente essas diferenças, seguindo o exemplo dos grandes mestres Tient’ai e Dengyo.

É da natureza dos animais ameaçar os fracos e temer os fortes. Nossos eruditos das várias escolas dos dias atuais agem exatamente da mesma forma. Eles desprezam um sábio que não possui poder, mas temem governantes maléficos. Essas pessoas nada mais são que serviçais aduladores. Somente quando derrota um poderoso inimigo, uma pes­soa é capaz de provar sua verdadeira força. Quando um governante maléfico se associa a reverendos que seguem ensinos errôneos e tentam destruir o ensino correto e eliminar um sábio, aqueles que possuem o coração de um rei leão com certeza atingirão o estado de Buda, como por exemplo Nitiren. Afirmo isso não por arrogância, mas porque estou profundamente comprometido com o correto ensino. A pessoa arrogante sempre ficará amedrontada diante de um forte inimigo, da mesma forma como ocorreu com o desde­nhoso asura que se encolheu e se escondeu em uma flor de lótus no Lago Eternamente Frio ao ser repreendido por Shakra. Se o ensino correto estiver de acordo com a época e a capacidade das pessoas, mesmo uma palavra ou frase capacitará as pessoas a entrar no caminho. No entanto, ainda que a pessoa estude mil sutras e dez mil tratados, será incapaz de atingir o estado de Buda se esses ensinos não forem apropriados para a época e nem para a capacidade das pessoas.

Vinte e seis anos já se passaram desde a batalha de Hoji,3 e o conflito4 já ocorreu duas vezes, no décimo primeiro e no décimo sétimo dias do segundo mês deste ano. O correto ensino de Aquele que Traz a Verdade jamais será destruído por não budistas nem por inimigos do Budismo, mas os discípulos do Buda com certeza poderão destruí­lo. Como o sutra explica, somente o verme que nasce no corpo do leão pode destruí­lo.5 Uma pessoa afortunada jamais será arruinada por inimigos, mas poderá ser destruída por aqueles de seu convívio. O atual conflito é o que o Sutra Mestre dos Remédios quer dizer com “a calamidade da revolta dentro do próprio domínio”. O Sutra Reis Benevolentes revela: “Quando os sábios tiverem partido, os sete desastres ocorrerão infalivelmente”. O Sutra da Luz Dourada afirma: “Os trinta e três deuses celestiais se enfurecem porque o rei permite que o mal se espalhe e não o detém”. Embora eu, Nitiren, não seja sábio, posso ser comparado a um, pois protejo o Sutra de Lótus exatamente como este ensina. Além disso, como há muito tempo obtive a compreensão do que rege o mundo, todas as

2. O leite de vaca indica o Sutra de Lótus, ao passo que o leite de mula, considerado venenoso, aponta to-dos os outros sutras. 3. Batalha travada em 1247 entre o clã Hojo e seus parentes da família Miura pelo controle da regência. O clã Hojo foi o vencedor. Em 1272, aproximadamente vinte e seis anos mais tarde, o governo de Kamakura foi novamente assolado por confli-tos internos.4. Referência à rebelião provocada por Hojo Tokisuke, um influente co-missário de Quioto, para derrubar o regente Hojo Tokimune, seu meio--irmão. Os conspiradores contra Toki-suke, em Kamakura, foram mor tos pelas forças do governo no décimo primeiro dia do segundo mês e o próprio Tokisuke foi atacado e morto em Quioto no décimo quinto dia. A referência “décimo sétimo dia” deve ter sido baseada em informação im-precisa ou deve ter sido um erro ao reproduzirem o documento original.5. Sutra da Face Semelhante ao Lótus.

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profecias que fiz nesta existência se realizaram. Por essa razão, jamais duvide de minhas palavras em relação às existências futuras.

No décimo segundo dia do nono mês do ano passado, quando fui preso, declarei em voz alta: “Eu, Nitiren, sou o pilar, o sol, a lua, o espelho e os olhos do clã que governa Kan­to.6 Se a nação me abandonar, os sete desastres ocorrerão sem falta”. Essa profecia não se realizou em apenas 60 dias e depois 150 dias mais tarde? E esses conflitos foram somente os primeiros sinais. Será lamentável quando o efeito se manifestar por completo!

As pessoas ignorantes questionam por que Nitiren é perseguido pelos governan­tes se ele é realmente sábio. Apesar disso, tudo está acontecendo exatamente como eu previa. O rei Ajatashatru atormentou seus pais e, por isso, foi aclamado pelos seis ministros reais. Quando Devadatta matou um arhat e feriu o Buda, Kokalika e outros deleitaram­se de alegria. Nitiren é o pai e a mãe do soberano e é como um Buda ou um arhat desta época. O soberano e seus subordinados que se alegram com meu exí­lio são verdadeiramente as pessoas mais desprezíveis e lamentáveis de todas. Aqueles reverendos caluniadores que se ressentiram por seus erros terem sido expostos po­dem estar alegres neste momento, mas, consequentemente, sofrerão tanto quanto eu e meus discípulos. Sua alegria é como a de Yasuhira quando este matou seu irmão mais novo e como a de Kuro Hogan.7 O demônio que destruirá o clã governante já está presente na nação. Este é o significado da passagem do Sutra de Lótus que diz: “Os demônios se apossarão dos outros”.8

As perseguições que Nitiren tem enfrentado são o resultado do carma criado em existências passadas. O capítulo “Jamais Desprezar” declara: “quando suas ofensas fo­rem expiadas”, indicando que o Bodhisattva Jamais Desprezar foi insultado e agredido por incontáveis caluniadores do ensino correto devido a seu carma passado. Isso é ainda mais verdadeiro no caso de Nitiren que, nesta existência, nasceu em uma família pobre e humilde da classe chandala. Em meu coração, cultivo a fé no Sutra de Lótus; porém, meu corpo, o de um ser humano, é basicamente o de um animal. Este corpo foi conce­bido de dois fluidos, um branco e um vermelho, de um pai e uma mãe que viviam de peixe e ave. Meu espírito habita este corpo, assim como a imagem da Lua é refletida na água lamacenta ou como o ouro que é embrulhado em papel imundo. Uma vez que meu coração acredita no Sutra de Lótus, não temo nem Brahma nem Shakra; no entan­to, meu corpo continua sendo o de um animal. Com tal disparidade entre meu corpo e minha mente, é natural que os tolos me desprezem. Não há dúvidas de que minha mente, comparada com meu corpo, brilha como a Lua ou como o ouro. Quem sabe que calúnias devo ter cometido no passado? Talvez eu possua o espírito do monge Intenção Superior ou o de Mahadeva. Pode ser que eu descenda daquelas pessoas desdenhosas que perseguiram o Bodhisattva Jamais Desprezar, ou esteja entre aqueles que se esque­ceram de que a semente da iluminação havia sido plantada em sua vida.9 Pode até ser que eu esteja ligado às cinco mil pessoas arrogantes10 ou tenha pertencido ao terceiro

6. Kanto refere-se ao governo de Kamakura.7. Yasuhira refere-se a Fujiwara Yasuhira (1155-1189), filho de Fu-jiwara Hidehira, lorde da Província de Mutsu, no nordeste do Japão. Yasuhira matou seu irmão e tomou o poder. Minamoto no Yoritomo, o xógum de Kamakura, ordenou-lhe que matasse Kuro Hogan Yoshitsu-ne, o irmão de Yoritomo; Yasuhira cumpriu a ordem a fim de provar sua lealdade. Mais tarde, no entan-to, Yoritomo mandou executá-lo a fim de consolidar o próprio poder no norte do Japão.8. Sutra de Lótus, 13o capítulo.9. A frase “aqueles que se esquece-ram de que a semente da ilumina-ção” refere-se aos indivíduos que, por causa das calúnias que come-tem, não se lembram de ter rece-bido as sementes da iluminação do Buda Sakyamuni há incontáveis kalpa de partículas de pó de um sis-tema de grandes mundos.10. De acordo com o capítulo “Meios” do Sutra de Lótus, cinco mil pessoas — monges, monjas, leigos e leigas — abandonaram a assembleia no momento em que Sakyamuni começou a pregar so-bre “a substituição dos três veícu-los pelo veículo único”, porque eles acreditavam que haviam alcançado o que, de fato, não alcançaram.

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grupo [que não acreditou no Sutra de Lótus] nos dias do Buda Excelência da Grande Sabedoria Universal.11 É impossível compreender o próprio carma.

O ferro, quando aquecido e forjado, torna­se uma excelente espada. As pessoas de valor e os sábios são testados com ofensas. Meu presente exílio não é resultado de ne­nhum crime secular, mas serve apenas para que eu possa expiar, na presente existência, as graves ofensas que criei no passado e me libertar dos três maus caminhos na próxima.

O Sutra Paranirvana afirma: “Surgirão no futuro aqueles que entrarão para a ordem monástica, se vestirão com trajes clericais e se gabarão por estudar meu ensino”. Pelo fato de serem insensíveis e negligentes, eles caluniarão os sutras da exatidão e semelhan­ça. O senhor deve estar ciente de que todas essas pessoas são seguidoras das doutrinas não budistas dos dias atuais. Aqueles que lerem essa passagem devem refletir profunda­mente sobre a própria prática. O Buda está dizendo que nossos reverendos atuais que se vestem com trajes clericais, mas agem com indolência e negligência, foram discípulos dos seis mestres não budistas durante a existência dele.

Os seguidores de Honen, que se denominam como escola Nembutsu, não somente desviam as pessoas do Sutra de Lótus, dizendo­lhes para “descartar, fechar, ignorar e abandonar”12 esse sutra, como também as incentivam a recitar simplesmente o nome do Buda Amida, que aparece nos ensinos provisórios. Os seguidores de Dainiti, conheci­dos como escola Zen, afirmam que os verdadeiros ensinos do Buda foram transmitidos fora dos sutras. Eles ridicularizam o Sutra de Lótus como mero polegar apontando para a Lua ou um monte de palavras sem sentido. Esses reverendos de ambas as escolas de­vem ter sido os seguidores dos seis mestres não budistas, que somente agora entraram para a linhagem do budismo.

De acordo com o Sutra do Nirvana, o Buda emitiu uma forte luz que iluminou os 136 infernos subterrâneos e revelou que não havia mais nenhum ofensor habitando esses infernos. A razão disso é porque todos os ofensores haviam atingido o estado de Buda por meio do capítulo “Revelação da Vida Eterna do Buda” do Sutra de Lótus. No entanto, é lamentável que os icchantika, ou pessoas de descrença incorrigível, que ha­viam caluniado o ensino correto, tenham ficado detidos pelos guardiães do inferno. Eles se multiplicaram até se tornarem as pessoas do Japão dos dias atuais.

Uma vez que o próprio Nitiren cometeu calúnias no passado, ele se tornou um re­verendo da Nembutsu nesta existência e, durante vários anos, também ridicularizou os praticantes do Sutra de Lótus, dizendo que “nenhuma pessoa jamais atingiu a ilumina­ção”13 por meio desse sutra, ou que “nem mesmo uma em mil pessoas”14 pode ser salva por esse sutra. Ao despertar de meu estado intoxicado pela calúnia, senti como se eu fosse um filho embriagado que, ao ficar sóbrio, lamenta­se de ter se alegrado por agredir os próprios pais. Apesar de ele se arrepender amargamente disso, já é tarde demais; seu ato maligno é extremamente difícil de ser erradicado. E ainda mais difíceis de eliminar são as calúnias cometidas contra o ensino correto, que deixam uma profunda mancha

11. Essa passagem está descrita no capítulo “Parábola da Cidade Imaginária” do Sutra de Lótus. Em um período de kalpa de partículas de pó de um sistema de gran-des mundos no passado, o Buda Excelência da Grande Sabedoria Universal pregou o Sutra de Lótus a seus dezesseis filhos. Estes, por sua vez, pregaram o sutra para as pessoas e algumas delas abraça-ram a fé e atingiram a iluminação. O terceiro grupo é formado por aqueles que ouviram o Sutra de Lótus naquela época, mas não o abraçaram. E, apesar de essas pes-soas terem nascido na época do Buda, ainda assim não acreditaram no Sutra de Lótus.12. Honen, no entanto, não empre-ga essas palavras dessa forma. Niti-ren Daishonin extraiu-as da Escolha Exclusiva da Nembutsu e reuniu-as em uma sentença. 13. Coletâneas de Ensaios sobre o Mun-do da Paz e da Alegria, por Tao-cho. 14. Louvando o Renascimento na Ter-ra Pura, por Shan-tao.

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no coração de quem as cometeu. Um sutra afirma que tanto a cor negra do corvo como a cor branca da garça, na verdade, são manchas profundas do carma passado deles.15 Os não budistas não reconheceram esse fato e defenderam que isso era obra da natureza. Na presente época, quando exponho as calúnias das pessoas no esforço de salvá­las, elas negam isso com todas as desculpas possíveis e argumentam usando as palavras de Honen sobre fechar as portas para o Sutra de Lótus. Isso não é surpresa vindo dos segui­dores da Nembutsu, mas até os reverendos das escolas Tendai e Verdadeira Palavra os apoiam ativamente.

No décimo sexto e décimo sétimo dias do primeiro mês deste ano, centenas de reve­rendos e seguidores leigos da Nembutsu e de outras escolas desta Província de Sado vie­ram me confrontar em um debate. Um líder da escola Nembutsu, Insho­bo, declarou: “O Honorável Honen não nos instruiu a abandonar o Sutra de Lótus. Ele simplesmente escreveu que todas as pessoas deveriam recitar a Nembutsu, e que seus grandes benefí­cios assegurariam o renascimento na Terra Pura. Mesmo os reverendos do Monte Hiei e do templo Onjo que foram exilados nesta ilha o elogiam, afirmando que seu ensino é ex­celente. Como o senhor ousa refutá­lo?” Os reverendos locais são ainda mais ignorantes que os reverendos da Nembutsu em Kamakura. Eles são absolutamente desprezíveis.

Como são terríveis as calúnias que Nitiren cometeu nas existências passada e presen­te! Uma vez que nasceram nesta nação maléfica e se tornaram discípulos de tal homem, não há como prever seu destino. O Sutra Paranirvana revela: “Bom homem, pelo fato de as pessoas terem cometido incontáveis ofensas e acumulado um grande mau carma no passado, elas devem saber que sofrerão as punições por tudo o que fizeram. Poderão ser desprezadas, amaldiçoadas com uma aparência feia, carecer de roupas e alimen­tos, buscar a riqueza em vão, nascer em uma família pobre e de posição inferior ou que mantém visões errôneas, ou ser perseguidas por seu soberano”. O sutra continua: “Podem sofrer várias outras perseguições e castigos. É graças aos benefícios obtidos por proteger a Lei que essas pessoas podem diminuir seus sofrimentos e punições nesta existência”. Se não fosse por Nitiren, essas passagens do sutra, com certeza, fariam do Buda um mentiroso. O sutra diz, em primeiro lugar, que: “Poderão ser desprezadas”; em segundo, “Poderão ser amaldiçoadas com uma aparência feia”; em terceiro, “Poderão carecer de roupas”; em quarto, “Poderão carecer de alimentos”; em quinto, “Poderão buscar a riqueza em vão”; em sexto, “Poderão nascer em uma família pobre e de po­sição inferior”; em sétimo, “Poderão nascer em uma família que mantém visões errô­neas”; e em oitavo, “Poderão ser perseguidas por seu soberano”. Essas oito sentenças aplicam­se unicamente a mim, Nitiren.

Aquele que escala uma montanha, mais cedo ou mais tarde, terá de descê­la. Aque­le que despreza o outro será desprezado. Aquele que desdenha o outro por sua bela aparência nascerá com uma aparência feia. Aquele que rouba alimentos e roupas cairá infalivelmente no mundo dos espíritos famintos. Aquele que ridiculariza uma pes­

15. Possivelmente a explicação de uma passagem contida no Su-tra Shuramgama (Sutra da Medi-tação Resoluta).

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soa digna que observa os preceitos nascerá em uma família pobre e de posição inferior. Aquele que calunia uma família que abraça o ensino correto nascerá em uma família que mantém visões errôneas. Aquele que ridiculariza o que mantém fielmente os pre­ceitos nascerá como uma pessoa comum e será perseguido pelo soberano de sua nação. Esta é a lei geral de causa e efeito.

No entanto, meus sofrimentos não se atribuem a essa lei causal. No passado, des­prezei os devotos do Sutra de Lótus. Ridicularizei também o próprio sutra, algumas vezes com louvor exagerado, outras, com desdém — esse sutra que é tão maravilhoso quanto duas luas brilhando uma ao lado da outra, duas estrelas juntas, um Monte Hua16 sobre outro ou duas joias unidas. É por isso que enfrentei os oito tipos de sofrimentos mencionados. Normalmente, esses sofrimentos aparecem um de cada vez ao longo do infinito futuro. Porém, Nitiren denunciou os inimigos do Sutra de Lótus de maneira tão voraz que todos os oito sofrimentos apareceram de uma só vez. Isso se assemelha ao caso do camponês que tem enorme dívida com o lorde de seu vilarejo e outras autoridades. Enquanto o camponês permanecer no vilarejo ou no distrito, em vez de pressioná­lo im­piedosamente, seus credores talvez prolonguem o pagamento ano após ano. Entretanto, se o camponês tentar ir embora, eles o cercarão e exigirão que ele pague tudo de uma vez. E é o que o sutra quer dizer com a seguinte frase: “Isso ocorre graças aos benefícios obtidos por proteger a Lei”.

O Sutra de Lótus afirma: “Haverá muitas pessoas ignorantes que vão nos caluniar e falar mal de nós e nos atacarão com espadas e bastões, com pedras e tijolos... eles procurarão os governadores, os altos ministros, os brâmanes e os senhores feudais [bem como os outros monges, e vão nos caluniar e falar mal de nós]... seremos banidos repe­tidamente”.17 Se os ofensores não forem atormentados pelos guardiães do inferno, eles jamais conseguirão [pagar por suas ofensas e] escapar do inferno. Se não fosse pelos governantes e ministros que agora me perseguem, eu não conseguiria expiar minhas ofensas passadas de calúnia ao correto ensino.

Nitiren é como o Bodhisattva Jamais Desprezar do passado e as pessoas dos dias atuais são como as quatro categorias dos budistas que insultaram e amaldiçoaram esse bodhi­sattva. Embora as pessoas sejam diferentes, a causa é a mesma. Apesar de as pessoas diferentes assassinarem os próprios pais, todas caem no mesmo inferno de incessantes sofrimentos. Se Nitiren está fazendo a mesma causa que o Bodhisattva Jamais Despre­zar, como seria possível ele não se tornar um Buda tal qual Sakyamuni? Além disso, as pessoas que agora o caluniam são como Bhadrapala18 e os outros [que amaldiçoaram o Bodhisattva Jamais Desprezar]. Elas serão torturadas no Inferno Aviti durante mil kalpa. Portanto, sinto profunda pena delas e penso se não há uma maneira de salvá­las. Aqueles que desprezaram e amaldiçoaram o Bodhisattva Jamais Desprezar agiram assim no iní­cio, mas, após certo tempo, abraçaram seus ensinos e rapidamente se tornaram seus se­guidores. Então, a maior parte de suas calúnias foi expiada; no entanto, mesmo a menor

16. Uma das cinco montanhas sa-gradas da China. 17. Sutra de Lótus, 13o capítulo. Na realidade, esse capítulo refere-se somente a “espadas e bastões”. A frase “pedras e tijolos”, contida no capítulo “Jamais Desprezar”, foi in-serida nesse contexto.18. Bhadrapala foi o líder dos qui-nhentos bodhisattvas que estavam envolvidos na perseguição ao Bo-dhisattva Jamais Desprezar.

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parte que permaneceu levou­os a sofrer terrivelmente, assim como alguém que mata os próprios pais mil vezes. As pessoas desta era se recusam terminantemente a se arrepender; por essa razão, conforme o capítulo “Parábolas” afirma, elas sofrerão no inferno durante incontáveis kalpa; poderão até sofrer no inferno durante kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos ou durante incontáveis kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos.

Além dessas pessoas, há aquelas que pareciam acreditar em mim, contudo, come­çaram a criar dúvidas ao me verem ser perseguido. Elas não somente abandonaram o Sutra de Lótus, mas, na verdade, acreditaram ser sábias o bastante para me ensinar. É lamentável que essas pessoas perversas venham a sofrer no Inferno Aviti por um tempo ainda mais longo que os seguidores da Nembutsu.

Um asura declarou que o Buda havia ensinado apenas dezoito elementos,19 mas ele próprio expôs dezenove. Os mestres não budistas alegaram que o Buda havia oferecido somente um caminho para a iluminação, no entanto, eles ofereciam noventa e cinco.20 De modo semelhante, os discípulos traidores declararam: “Embora o reverendo Nitiren seja nosso mestre, ele é enérgico demais. Nós propagaremos o Sutra de Lótus de maneira mais branda”. Com tal declaração, eles mostraram ser tão ridículos quanto o vaga­lume que ri do Sol e da Lua, um formigueiro que despreza o Monte Hua, poços e riachos que zombam dos rios e oceanos ou uma pomba que imita a fênix. Nam-myoho-rengue-kyo.

Nitiren

Vigésimo dia do terceiro mês do nono ano de Bunei (1272),ciclo do signo de mizunoe-saru.

Aos discípulos e seguidores de Nitiren.

Não há papel suficiente para escrever aqui na Província de Sado e levaria muito tempo para eu escrever a cada um. Apesar disso, mesmo se uma única pessoa ficar sem receber uma mensagem minha, isso poderá causar ressentimentos. Por essa razão, meu desejo é o de que as pessoas que possuem espírito de procura se reúnam para ler juntas esta carta de encorajamento. Quando grandes infortúnios ocorrem no mundo, peque­nos infortúnios tornam­se insignificantes. Não sei quão precisas são as notícias que chegam até mim, mas, com certeza, muitos devem estar lastimando profundamente a perda daqueles que foram mortos nas recentes batalhas. O que aconteceu com os reve­rendos Izawa e Sakabe? Enviem­me notícias de Kawanobe, Yamashiro, Tokugyo­ji21 e dos outros. Peço­lhes, também, a gentileza de enviar os Fundamentos do Governo da Era Chen-Kuan,22 a coletânea de contos dos clássicos não budistas e o registro dos ensinos transmitidos nas oito escolas. Sem esses textos, não poderei nem escrever cartas.

19. Dezoito elementos: Conceito completo das três categorias inter--relacionadas: os seis órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos, nariz, lín-gua, corpo e mente), os seis objetos percebidos por eles e as seis cons-ciências ou funções dos órgãos sen-soriais que percebem esses objetos. 20. Trecho baseado em uma passa-gem do Tratado sobre a Grande Perfei-ção da Sabedoria. Os noventa e cinco caminhos podem ser atribuídos ao fato de ter havido noventa e cinco escolas não budistas na época de Sakyamuni.21. Kawanobe, Yamashiro e Toku-gyo-ji eram seguidores de Daisho-nin. Acredita-se que eles tenham sido aprisionados em um calabouço após a Perseguição de Tatsunokuti.22. Obra escrita por Wu Ching du-rante a dinastia Tang. A obra anali-sa o estado das questões políticas entre o imperador e seus subordi-nados durante o era Chen-Kuan (627-649).