Cartas a um jovem juiz.pdf

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  • Dedico este livro o todos os magistrados brasileiros, especialmente aosmeus colegas do Superior Tribunal de Justia, com destaque para Na-poleo Nunes Maia Filho, amigo de toda a vida, com quem cotidiana-mente reflito sobre a misso do juiz.

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  • Dedico-o tambm aos meus pais, Alcimor e Sria, minhamulher, Magda, e aos meus filhos e netos, de sangue ede afeto, Juliana, Caio, Tercius, Ano Amlia, Luana, Jaime,Esteia, Maria Isadora, Joo e Letcia.

  • INTRODUO

    Desde 1967, encontro-me na atividade forense, iniciada quando mematriculei na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear,poca em que me inscrevi como solicitador acadmico na Ordem dosAdvogados do Brasil. Depois, atuei como advogado e, posteriormente,ingressei na magistratura, tendo antes exercido, por muitos anos, o ma-gistrio jurdico naquela faculdade.

    Tenho, pois, mais de dois teros da minha existncia vividos nessa ricaambincia da busca pela efetivao da justia.

    Envolvi-me tanto e to profundamente nos afazeres do Judicirio e tal minha identificao com suas ingentes tarefas que no saberia maiscomo viver fora dele. Contudo, nunca deixo de me lembrar de que hvida l fora. Mais at: de que a vida est l fora.

    Conheo muito bem a magistratura, em razo de ter exercido vriasfunes estratgicas no Judicirio nacional: presidente e vice-presid-ente do Superior Tribunal de Justia, tendo sido diretor de sua revista,alm de haver integrado e presidido turma, seo, o Conselho de Ad-ministrao e todas as suas comisses; ministro do Tribunal Superi-or Eleitoral, corregedor-geral da Justia Eleitoral e diretor da EscolaEleitoral Nacional; membro do Conselho Nacional de Justia e cor-regedor nacional de Justia; presidente e vice-presidente do Conselhoda Justia Federal e coordenador-geral da Justia Federal, tendo sidotambm, nessa instituio, diretor do Centro de Estudos Judicirios epresidente da Turma Nacional de Uniformizao da Jurisprudncia dosJuizados Especiais Federais, bem como do Colgio de CorregedoresFederais.

  • Como participante de vrios eventos da Cpula JudicialIbero-americana e como presidente da Comisso Conjuntade Poderes Judicirios Europeus e Latino-Americanos,cargo para o qual fui eleito para um mandato de quatroanos, conheci a estrutura do Judicirio de vrios dos 41pases que integram a cpula, todos com juizes de elevadaqualificao - nenhum, contudo, a superar a qualificaodos nossos. Nesses anos todos, visitei pessoalmentedezenas de vezes, e por motivaes distintas, varas etribunais federais, do trabalho, estaduais e eleitorais, con-hecendo as peculiaridades de cada um.

    Quanto mais conheo a magistratura brasileira, mais tenhoorgulho dela, pois formada, em sua quase unanimidade,por homens e mulheres de inexcedvel devotamento Justia, sendo rigorosamente excepcionais e minguados osexemplos que a desonram. No que tange a esses desviosde conduta, temos todos o dever de combat-los e elimin-los de nossos quadros.

    Sou, pois, um entusiasmado defensor da magistraturabrasileira. E o sou at quando, mesmo sem ter vocaopara algoz, vejo-me no dever de punir algum colega. Pres-enciei, nesse tempo vivido, muitas e profundas mudanasna postura de todos os chamados operadores do Direito:juizes, advogados e membros do Ministrio Pblico.

    Senti muitas alegrias e sofri poucas decepes. Aprendimuitas lies. A maior delas talvez tenha sido a de que noh nada mais fcil de ser praticado nem mais difcil de seresquecido do que uma injustia: chaga que jamais cicatrizana alma de quem a sofreu, desgraa uma vida.

  • Quando fui convidado a escrever estas Cartas a um jovemjuiz, dois grandes sentimentos tomaram conta do meu es-prito: o primeiro foi de alegria e prazer pela distino de fig-urar na excelente galeria dos escritores da srie de Cortasa um jovem.... que a Editora Campus/Elsevier em boa horainiciou; o outro foi de perplexidade, ante o que deveria dizera um jovem bacharel em Direito que se sente atrado pelacarreira da magistratura.

    Pensei inicialmente que pudesse comear fazendo umaretrospectiva da histria geral do Direito e das doutrinasque tentam explic-lo luz de impulsos sociolgicos dassociedades humanas ou das formas de dominao e depoder entre as classes sociais ou ainda das construesideolgicas e filosficas que sempre permeiam os estudosde histria social. Mas logo abandonei essa idia porquesenti que minhas cartas ficariam muito parecidas com umacoleo de trabalhos acadmicos ou com exposies cans-ativas de teorias jurdicas.

    Depois imaginei que poderia escrever uma breve histriado Poder Judicirio no Brasil, expondo as vicissitudes daformao de nossa magistratura desde os seus primrdios,e mais uma vez me assaltou o fantasma de que produziriaapenas trabalhos de interesse restrito.

    Ento me lembrei de que o estilo epistolar, por muitos con-siderado um verdadeiro gnero literrio, cultivado desdesculos e de que nele o que os autores fazem exporsuas reflexes sobre os temas desenvolvidos nas cartas,sempre com propsitos informativos e em linguagem es-sencialmente informal. Recordei que as famosas Epstolaspaulinas, escritas pelo estruturador teolgico do Cristian-ismo - o Apstolo Paulo de Tarso, havido como um dos

  • mais importantes santos -, no continham elucubraeseruditas, mas ponderaes inspiradas na vivncia de seuescritor e sobretudo em sua experincia pessoal da conver-so violenta na estrada de Damasco.

    Em seguida, vieram-me mente As cartas persas, que oBaro de Montesquieu escreveu entre os anos de 1711 e1720 e publicou, em Paris, em 1721, nas quais descrevesuas impresses sobre a rica e complexa civilizao persaradicada na rea onde hoje se acha o Ir -, deixando im-portantssimos testemunhos sobre as instituies sociais,as lnguas e os costumes da Prsia/que permanecemsendo lidos com interesse.

    Quero lembrar que o notvel Ea de Queiroz escreveu suasCartas de Inglaterra sem pretenses magisteriais, descre-vendo, com insupervel brilhantismo, as coisas e as institu-ies vitorianas com a riqueza de detalhes que todos con-hecemos e admiramos ao lado de seus romances perfeitosOprimo Baslio, de 1878, e Os Maias, de 1888.

    H ainda as Cartas do crcere, que Antnio Gramsci escre-veu entre 1910e 1920, com reflexes- mais uma vez essetermo! - sobre a organizao que imaginava ser a prx-ima sociedade socialista; alis, nosso Frei Beto publicou em1970 uma coletnea de escritos sob esse mesmo ttulo, re-latando sua passagem pela priso.

    A voc, que se inicia na magistratura ou nela pretende in-gressar, deixo meu estmulo; nada obstante todas as vicis-situdes, no h misso mais nobre que a de julgar.

  • SUMRIO

    1. O INGRESSO NA MAGISTRATURA

    2. O JUIZ E A FUNO DE JULGAR

    3. INTERPRETANDO AS LEIS COM JUSTIA

    4. O JUIZ E AS EXPECTATIVAS DA SOCIEDADE

    5. O SABER E OS SABERES DO JUIZ

    6. ANALISANDO PESSOAS E FATOS

    7. O JUIZ E A IMPRENSA

    8. O JUIZ E AS RELAES COM OS COLEGAS

    9. O JUIZ, OS TRIBUNAIS EA JURISPRUDNCIA

    10. O JUIZ E O MINISTRIO PBLICO

    11. O JUIZ, A POLTICA E OS POLTICOS

    12. A LINGUAGEM DO JUIZ

    13. A FAMLIA E OS AMIGOS

    14. O JUIZ E OS ADVOGADOS

    15. AT BREVE, COLEGA!

  • 1. O INGRESSO NA MAGISTRATURA

    O exerccio da magistratura sempre se associou a uma espcie defascnio sobre a mente e a vontade dos que escolhem a profissojurdica - e isso desde os mais remotos registros da histria - no quetoca ao papel dos juristas e advogados na sociedade, mesmo quando ainiciao na carreira da advocacia e da judicatura ainda no se achavasistematizada da forma como hoje se encontra.

    No Brasil, o ingresso na magistratura comum se d por duas viasdistintas. A primeira delas a seleo de candidatos por concursopblico, que habilita o bacharel em Direito a iniciar a carreira em seudegrau primrio, como juiz substituto. A segunda a escolha direta,pelo chefe do Poder Executivo correspondente - governador de estadoou presidente da Repblica -, de advogado militante ou membro at-ivo do Ministrio Pblico, na faixa etria entre 30 e 65 anos, com dezanos de profisso, notrio saber jurdico e reputao ilibada, para com-por Tribunal de Justia, Tribunal Regional Federal ou Tribunal Regionaldo Trabalho, aps prvia incluso em lista sxtupla elaborada pela re-spectiva classe e submetida ao crivo do prprio tribunal, o qual indicarao governador ou ao presidente, conforme o caso, trs dos seis nomesque lhe forem apresentados - o chamado quinto constitucional.

    No Supremo Tribunal Federal, que composto por 11 ministros, opresidente da Repblica escolhe um nome, que, levado ao exame doSenado Federal e sendo aprovado, ser nomeado pelo chefe do gov-erno. Note-se que a escolha presidencial desses ministros independede qualquer indicao ou lista prvia, como tambm independe de oescolhido j ser membro do Poder Judicirio.

    Quanto ao Superior Tribunal de Justia (STJ), que composto por 33ministros, deve-se observar que as vagas destinadas s classes dos

  • advogados e do Ministrio Pblico (federal e estadual), emnmero de 11, correspondem a um tero dos lugares deministros da Corte. Das outras 22 vagas, 11 so preenchi-das por membros dos Tribunais Regionais Federais e 11por desembargadores dos Tribunais de Justia dos estadose do Distrito Federal, cujos nomes, tanto daqueles comodestes, so levados ao presidente da Repblica em listatrplice elaborada pelo STJ, sendo um por ele escolhidoe submetido apreciao do Senado Federal. Uma vezaprovado, o presidente da Repblica o nomear.

    J o Tribunal Superior do Trabalho integrado por 27 min-istros, dos quais um quinto egresso das classes dos ad-vogados e do Ministrio Pblico do Trabalho; os demais sorecrutados dentre juizes dos Tribunais Regionais do Tra-balho, seguindo o mesmo processo anteriormente citado.

    O Superior Tribunal Militar tem em sua composio 15 min-istros: dez oficiais-generais do Exrcito (quatro), da Mar-inha e da Aeronutica (trs de cada arma) e cinco civis (trsadvogados e dois, por escolha paritria, dentre juizes aud-itores e membros do Ministrio Pblico da Justia Militar),todos escolhidos livremente pelo presidente da Repblica epor ele nomeados aps aprovao do Senado Federal.

    pressuposto indispensvel para a nomeao dos minis-tros, tanto do Supremo quanto dos Tribunais Superiores, termais de 35 e menos de 65 anos.

    A Justia Eleitoral tem uma configurao bem diferenciada,pois integrada por juizes com mandato de dois anos, per-mitida uma reconduo. Cada Tribunal Regional Eleitoral(um em cada estado e no Distrito Federal) composto pordois desembargadores, dois juizes de Direito (escolhidos

  • livremente pelo respectivo Tribunal de Justia), um juiz fed-eral (escolhido pelo Tribunal Regional Federal que tenhajurisdio no estado) e dois advogados - estes escolhidoslivremente para cada vaga, em lista trplice, pelo Tribunal deJustia, sendo um nomeado pelo presidente da Repblica.J o Tribunal Superior Eleitoral integrado por trs minis-tros do Supremo Tribunal Federal, por ele livremente escol-hidos, dos quais dois sero presidente e vice; dois ministrosdo Superior Tribunal de Justia, tambm por ele livrementeescolhidos (um ser o corregedor-geral eleitoral); e dois re-crutados da classe dos advogados, escolhidos, para cadavaga, em lista trplice pelo Supremo Tribunal, sendo umnomeado pelo presidente da Repblica.

    A Emenda Constitucional n. 45 criou o Conselho Nacionalde Justia, que tem como funes primordiais controlar aatuao administrativa e financeira do Poder Judicirio e ocumprimento dos deveres funcionais dos juizes. Esse r-go, composto de 15 conselheiros, presidido por um min-istro do Supremo Tribunal Federal, tendo como corregedornacional de justia um ministro do Superior Tribunal deJustia. Os conselheiros so escolhidos pelo Supremo (seuministro, um desembargador e um juiz estadual); pelo STJ(seu ministro e dois juizes federais, um do segundo grau eoutro do primeiro); pelo Tribunal Superior do Trabalho (seuministro e dois juizes do Trabalho, um do segundo grau eoutro do primeiro); pelo procurador-geral da Repblica (ummembro do Ministrio Pblico da Unio e um do MinistrioPblico Estadual). O Conselho Federal da Ordem dos Ad-vogados do Brasil escolhe dois advogados, a Cmara dosDeputados escolhe um e o Senado Federal, tambm um.Uma vez aprovados os nomes pelo Senado Federal, o pres-idente da Repblica os nomear para um mandato de doisanos, permitida uma s reconduo.

  • Porm, o ingresso na carreira da magistratura, quando obacharel em Direito a inicia por seu primeiro degrau - juizsubstituto -, nem sempre se fez pelo critrio da seleointelectual dos candidatos, por meio de concurso, comoagora se conhece entre ns,, tendo havido outrora, nos re-motos tempos coloniais, at mesmo a prtica da eleiopopular de magistrados, embora restrita e vista como algoexcepcional e raro.

    Se lanarmos nosso olhar perscrutador sobre a vida dosgrandes juristas do passado, demorando-o sobre a dosmais notveis juristas romanos, que tanta importnciativeram e tm para a evoluo do Direito praticamente emtodas as sociedades ocidentais, veremos que a maior partedeles adquiriu fama e prestgio exercendo a magistratura.Cumpre lembrar, porm, que naqueles tempos ser magis-trado representava ocupar uma posio poltica de altaproeminneia, por significar proximidade com a estrutura doprprio poder imperial, j que os magistrados eram escol-hidos pelo imperador.

    Parece evidente que o prncipe selecionasse os juizes entreos seus mais chegados e fiis amigos juristas; entretantoisso no quer dizer que a escolha contemplasse pessoasinabilitadas para o relevante mister de julgar, como se apreferncia do imperador fosse calcada em razes de purae simples amizade e confiana. Muito pelo contrrio, osluminares do Direito, reconhecidos juristas e acatadosdoutrinadores, eram o alvo preferencial dessas escolhas.

    preciso terem conta, na avaliao desse critrio antigo,que a ordem jurdica e as leis dos imprios de ento guar-davam estrita relao de dependncia com as estruturas,as polticas e as prticas administrativas gerais. Assim,

  • a perturbao de sua aplicao por juizes eventualmentedescomprometidos com essas estruturas, polticas e prtic-as do governo poderia provocar rupturas indesejveis, por-quanto a correo de tais desvios demandaria tempo e dis-pndios de vulto, numa poca em que as coisas eram di-fceis, lentas e complicadas.

    Como se pode ver, esse processo de seleo de magis-trados no est de todo abolido nos dias de hoje,encontrando-se importante sobrevivncia de sua prtica,pois os magistrados das cortes superiores em quase todosos pases do mundo contemporneo continuam sendoescolhidos pelo chefe do poder poltico, embora sob aslimitaes institucionais que, ao longo dos sculos, foramsendo estruturadas para conter o subjetivismo e a pre-potncia dos governantes. Esse processo de limitaes vontade do governante, em todos os aspectos da vida polt-ica, e no apenas no que diz respeito seleo de magis-trados, tem sua gnese nos chamados movimentos liberaise constitucionalizantes dos sculos XVIII e XIX, de inspir-ao iluminista, voltados precisamente ao objetivo de es-tabelecer sobre a vontade subjetiva dos prncipes o atendi-mento de certas exigncias que lhes so externas e superi-ores.

    Anote-se que a escolha de magistrados pelo critrio do con-curso pblico uma conquista democrtica bem recente secomparada ao critrio tradicional e multissecular da escolhapela vontade do prncipe, velha e revelha de muitos e mui-tos sculos de prtica na histria das diversas civilizaes.A seleo pelo critrio do concurso pblico significa, no sepode esconder, um gigantesco passo no sentido de demo-cratizar a escolha, j que contempla a qualificao intelec-tual do candidato como o trao mais importante do pro-cesso seletivo, alm de simbolizar ou assinalar a autonomiadefinitiva do Poder Judicirio e sua independncia em re-lao ao Poder Executivo. Talvez importe sublinhar que o

  • aspecto de conquista da escolha de juizes pelo mrito in-telectual derive da supresso da interferncia do prncipeno processo de seleo, o que emblemou - historicamente- um corte de grandes e graves conseqncias polticasnos privilgios do rei, que assim ficou despojado do poder,sem dvida relevantssimo, de nomear juizes a seu bel-prazer, sem limitaes subordinantes de sua vontade ab-soluta. Essa considerao se inscreve no quadro das ex-altaes descontentes da burguesia do sculo XVIII e dasidias antiabsolutistas do liberalismo militante.

    Merece registro o fato de que a retirada da designaode magistrados do poder do monarca foi um golpe mortalno absolutismo dos prncipes na poca das revolues lib-erais, de que a Revoluo Francesa, de 1789, fez-separadigma, como do geral reconhecimento - golpe queteve por pano de fundo a desconfiana da populao nosjulgamentos da magistratura designada pelo sistema do an-tigo regime.

    Sem embargo dessas notveis vantagens institucionais, inegvel que a apurao da qualificao intelectual, cal-cada no mrito de cada um, embora necessria, no semostra suficiente para dar conta do amplo plexo de virtudesque a sociedade espera de seus juizes, dentre as quaisest a temperana, qualidade que torna o homem mod-erado e sereno, capaz de agir com sobriedade e parcimnianos juzos sobre a conduta dos outros homens, seus direit-os e interesses, controlando suas gigantescas paixes eapetites exacerbados ou sua nsia desmedida de poder,que, segundo dizem, s termina com a morte.

  • A temperana, virtude desejvel em todos os homens, eno apenas nos juizes, no se apura no concurso pblicopara magistrado, e at parece que nem se d a ela umdestaque que a distinga das demais exigncias da seleopblica, em que o aspecto da democratizao do acesso docandidato magistratura prestigiado ao mximo e vistoquase como o nico a ser louvado. claro que as virtudespodem ser desenvolvidas, do mesmo modo que os con-hecimentos cientficos, mas, como estes, pressupem queexista no sujeito individual a predisposio consciente parase deixar contaminar dessas qualidades, que trazem con-sigo a tranqilidade e outros atributos, inclusive a fortalezadiante das adversidades e das tempestades comuns navida profissional do magistrado.

    s escolas de magistratura, est reservado um papel fun-damentalmente estratgico, do mais alto valor: completar oprocesso de seleo pblica dos magistrados, preparando-os para o exerccio da funo julgadora e escolhendo, pelocritrio do desempenho global, aps aprovao intelectual,os que demonstram preparo emocional e perfil para a ju-dicatura e os que ainda demandam o desenvolvimento deoutros aspectos pessoais. evidente que dessa comple-mentao da seleo pblica precisa ser eliminada a notade subjetivismo; entretanto, a dificuldade de tal implemen-tao no deve servir para desalentar ou desanimar os queso responsveis por sua realizao.

    Quando recebe o diploma universitrio, quase sempre ob-tido com ingentes esforos pessoais e familiares, o jovembacharel em Direito tem, sua frente e escolha de seutalento e empenho de sua vontade, um leque de opesprofissionais dignificantes e compensadoras: primeira-mente, pode interessar-se pelo exerccio da advocacia,pblica (em seus diversos ramos) ou privada, para o que

  • deve antes ser aprovado no exame da Ordem dos Ad-vogados do Brasil, que, de ano para ano, torna-se mais ex-igente, feio de um concurso para magistrado; em se-gundo lugar, pode encaminhar-se para a carreira do Min-istrio Pblico ou da Defensoria Pblica, cujo xito pres-supe grande dedicao aos estudos jurdicos e sacrifciode horas e horas de lazer; pode, ainda, interessar-se pelomagistrio jurdico, essa to nobre atividade do jurista, vistacom admirao no passado e hoje em dia, infelizmente,muitas vezes desprestigiada nas universidades pblicas eprivadas. Longe, muito longe do jovem bacharel deve estara decepo ou a fraqueza, pois, na vida do profissional doDireito - seja qual for a atividade a que se dedique no hlugar para debilidades e falta de confiana em si mesmo:nas atividades jurdicas, o profissional se faz e se refaz to-dos os dias, incansavelmente.

    Voltando seleo de magistrados pelo critrio do con-curso pblico, ressalto que a estamos tratando do ingressodo jovem bacharel em Direito na carreira da magistratura,ou seja, o jovem bacharel ultrapassando o primeiro portalde uma carreira profissional invejvel pela admirao quesuscita, desafiadora pelas qualidades e virtudes que pres-supe e compensadora pelas satisfaes materiais, intelec-tuais e espirituais que permite realizar, sobretudo a grandeoportunidade de preservar a harmonia social, equilibrar osconflitos e promover a pacificao entre os desavindos.

    Deve-se enfatizar que a aprovao em concurso pblicopara ingresso na magistratura no tarefa para os de-sprovidos de fora de vontade, de capacidade de aplicaoe de mtodo de trabalho sistemtico, mas o para os queapresentam essas qualidades e que certamente sero con-templados com o sucesso nesse empreendimento. A forade vontade d ao jovem a condio primria para vencer as

  • vrias etapas do certame e no desistir diante de suas di-ficuldades, levando-o a compreender que a privao atualdo lazer o custada sua vitria futura e da ob-teno de umlugar exponencial na sociedade democrtica.

    A capacidade de aplicao faz o jovem concentrar seus es-foros no programa do concurso, estudando com obstin-ao todos os itens das disciplinas jurdicas exigidas e seimpondo com afinco a prioridade de trabalho intelectual quea seleo no dispensa. 0 mtodo de trabalho sistemticoenseja ao jovem distribuir as tarefas de estudo nas dispon-ibilidades do seu tempo, mormente quando tem de reservarparcelas de esforo para outros afazeres, como o trabalhopara manter a si mesmo e sua famlia, fato comum em nu-merosos casos.

    Uma dificuldade adicional nada desprezvel verifica-sequando o jovem no dispe de recursos materiais para ad-quirir livros jurdicos e revistas especializadas, freqentarcursinhos preparatrios, muitas vezes indispensveis, di-ante da insuficincia dos conhecimentos adquiridos na uni-versidade, ou subsidiar os estudos ou mesmo ter acesso internet, visando ampliar os conhecimentos. Essa a pro-jeo, na vida individual dos jovens bacharis em Direito,da brutal e arrogante desigualdade de oportunidades queinfelicita nossa sociedade, excluindo aprioristicamente dosbenefcios da civilizao e da cultura vasta parcela da pop-ulao jovem, que, de outro modo, seria importantssimana construo do nosso futuro comum. Isso parece dar aidia de que a carreira de magistrado est reservada ouaberta somente aos jovens de classe mdia, aqueles que,com a ajuda da famlia, podem suportar os nus das despe-sas do concurso; no entanto, essa viso falsa e precon-ceituosa. Na verdade, no h como deixar de proclamar

  • que as chances so desiguais, como desigual a vida dasdiferentes camadas sociais, mas no so poucos os jovensde classe social deprimida e mesmo miservel que con-seguiram - com esforos magnficos - vencer as condiesadversas em que nasceram e ascender social e cultural-mente, sobrepujando concorrentes abonados e bem-nas-cidos.

    Dir-se- que tal a exceo, mas eu respondo que so tonumerosos os exemplos que me abalano a dizer que setrata de luta a qual pode ser vencida pela obstinao e pelacoragem, pelo esforo pertinaz e pela confiana nas pr-prias potencialidades. No se trata de fomentar herosmoe sacrifcios ingentes, mas de se espelhar em casos con-cretos de sucesso que tm de extraordinrio sobretudo agarra de seus protagonistas. Tive e tenho muitos colegasno Superior Tribunal de Justia que confirmam essa minhaconvico.

    Ocorre-me agora a histria bblica do velho patriarca No -o homem da arca -, que recebeu de Deus a incumbncia deconstruir aquela famosa embarcao gigante e, no vendomaterial a seu dispor, perguntou perplexo a Jav: "Comofarei isso, Senhor?" E recebeu esta resposta estimuladorae proftica: "Comea e eu te ajudarei!"

  • 2. O JUIZ E A FUNO DE JULGAR

    No desempenho da funo de julgar, o juiz trava obrigatoriamente con-hecimento com uma realidade humana que tende a ser em extremocomplexa, isto , a realidade das relaes existenciais que se ocultamnas demandas e nos desdobramentos do processo. Ignorar que o pro-cesso esconde a vida de seres humanos o mesmo que trat-loscomo meros nmeros indiferentes e reduzir a funo julgadora a algosobremodo banal; isso ocorre quando o julgador se afasta dos requisi-tos ticos de sua atuao para seguir padres meramente tcnicos desua atividade, quase sempre coincidentes com vises simplificadas esimplistas do Direito, como se este fosse apenas um conjunto de regrasburocrticas ou operacionais.

    A perfeita compreenso da funo de julgar deve passar, incontorna-velmente, pela compreenso da complexidade da vida humana e sociale das relaes vitais que se armam e se expandem nesse ambiente, asquais no se esgotam nos silogismos legais, por mais completos quepretendam ser ou por mais perfeitos que possam ser imaginados porseus elaboradores.

    Afirma-se que a complexidade dos julgamentos que pressupe a ex-istncia e a atuao de juizes sensveis, cultos e preparados, pois, separa julgar fosse suficiente conhecer a letra da lei, paro ser juiz bastariasaber ler, como gosta de repetir um magistrado meu amigo. Para ele,os juizes deveriam portar conhecimentos - vastos conhecimentos - emmuitas cincias humanas, como a Sociologia, a Histria e a Histria dasIdias, a Histria das Religies e da Economia Social, a Antropologia,a Poltica e a Administrao, inclusive a Psicologia e o Direito, natural-mente, mas este em ltimo lugar, pelo menos se seu conceito se iden-tificar, como muito amide se fazia no passado - e ainda se faz com oconceito de conhecimento dos textos das leis ou de legalismo.

  • inegvel que a Cincia do Direito, certamente por causada excessiva valorizao de seu objeto imediato - a lei es-crita -, tendeu, ao longo de seu desenvolvimento histrico,a absorver o vis chamado de positivista, que fundamenta,sem dvida alguma, a idia do legalismo, redutora doDireito sua dimenso legal ou normativa, escrita ou pos-itivada, atribuindo lei funo exaustiva da regulao davida social e de seus variados e mltiplos problemas e en-caminhando o jurista quele prefalado vis tcnico ou leg-alista.

    No entanto, como proclamam os que no se conformamcom essa viso ou essa posio dogmtica legalista no quetoca compreenso do Direito, a lei manifestamente in-suficiente para dar conta da complexidade dos problemasda vida social, como advertia Lourival Vilanova, ou nestaoutra forma, dita por Mrio Moacir Porto, a lei no esgota oDireito, assim como a partitura no esgota a msica. Essa arazo para a variedade desses problemas impor diferentesvises ou consideraes sobre a funo de julgar, que afuno em cujo exerccio se mostram as distintas vertentesde compreenso das solues possveis para problemasconcretos e desafiadores, crescentemente diversificados ecomplexos.

    No se pode negar que a chamada viso positivista doDireito - e tambm de sua celebrada corrente legalista -teve na Histria do Direito um papel nada desprezvel, quefoi o de expressar limitaes ao magnfico poder estatal,mxime nas pocas em que esse poder se confundia coma vontade do prncipe, o qual no deixava aos indivduos aele subordinados qualquer margem de segurana, tendo-sepresente a imprevisibilidade das manifestaes subjetivasda autoridade autocrtica, a cujo respeito Max Weber es-

  • creveu pginas de notvel exemplaridade. muito con-hecida e sempre referida nas discusses sobre a funolimitadora das leis escritas a expresso o Estado sou eu,que se atribui ao famoso monarca francs Lus XIV, parasimbolizar a completa ausncia de direitos subjetivos queeventualmente servissem de proteo ou de resguardo aseus sditos, expresso que depois foi vertida para a fr-mula legal porque eu quero, traduzindo o mesmo sentidodaquela outra.

    Como se sabe, foi para frear o absolutismo dos monarcasque se criaram os sistemas de leis escritas, baseadas emcertos princpios e impostas ao prncipe, muitas vezes porvia revolucionria, como garantias mnimas dos cidados,no mais sujeitos a seus arbtrios; foi atentando para aprimazia dessa ordem sistmica que Ortega y Gasset afirm-ou, referindo-se ao Direito, que os princpios derrubaramos prncipes. Decerto, foi em derredor dos sistemas de leisescritas que se desenvolveram verdadeiros mitos jurdicos,chegando-se ao cmulo de identificar as leis escritas como prprio Direito, ou o Direito com o ordenamento positivoou positivado, com desprezo ou desdm pelo universo dosvalores - como a justia e a equidade -, tudo em nome dasegurana, da ordem e da previsibilidade das solues dasdemandas e dos conflitos.

    Esse quadro jurdico pode ter servido - e por certo serviuno obstante os exageros, ao propsito poltico da limitaodo poder dos monarcas, mas no serve para regular por in-teiro as relaes - complexas relaes, convm lembrar -de nossa vida social contempornea. Por isso a atualidadeda crtica ao positivismo contida na reflexo de que o lei

  • manifestamente insuficiente para dar conta da complexid-ade dos problemas da vida, antes mencionada neste texto,pois os fatos da vida so muito mais ricos que as previsesdos legisladores, por mais ricas que sejam suas experin-cias e por mais profundos que sejam seus conhecimentos.

    Contudo, ningum poder negar que o positivismo jurdico,com seus ideais de segurana, certeza e previsibilidade,carrega-se de enormes atrativos intelectuais, sobretudo nassearas do Direito Penal, do Direito Administrativo e doDireito Tributrio, sempre afirmando o primado da legalid-ade estrita com o intuito de proteger os indivduos.

    Segundo esse primado, no se admitem penas sem crimesprvios nem crimes sem seus tipos exaustivos predefinidospor escrito em todos os seus elementos; ele protege osindivduos contra os arbtrios de quaisquer autoridades,quando, por exemplo, determinam condutas que esto forados limites de sua competncia ou que visam a objetivosque no atendem ao interesse geral, ou, ainda, protege opatrimnio das pessoas contra exigncias tributrias ilimita-das, inoportunas ou indevidas.

    Como essas protees - melhor seria dizer essasgarantias- foram providas por meio de leis escritas, parecenatural que estas tenham adquirido um prestgio social ex-traordinrio, como de fato ocorreu, e que a formao dosjuristas (e dos juizes, por extenso) tenha enaltecido essemesmo prestgio, o que tambm ocorreu.

    Entretanto, preciso refletir sobre o fato de que essasgarantias formais, solenes ou escritas foram historicamente

  • vocacionadas para a imediata proteo das pessoas e deseus interesses legtimos, da se entender que sua inter-pretao no pode afastar-se dessa vocao original dosistema de leis escritas, embora isso nem sempre se tenhaverificado na prtica da exegese desses textos de proteo.

    Devido a essa distoro ou ao abandono do sentido, que eudiria libertrio, dos primeiros tempos do positivismo jurdico,juristas da mais alta estirpe intelectual e doutrinria,mestres como Conrad Hesse, na Alemanha, Norberto Bob-bio, na Itlia, e Paulo Bonavides, no Brasil - para citar apen-as esses luminares -, desenvolveram a doutrina do ps-positivismo, que no descarta o valor do sistema de leis es-critas, mas traz para seu interior e coloca no centro da or-dem jurdica os valores do humanismo em sua dimensoexata e contempornea de proteo da pessoa humana.

    Bem por isso, a vocao da moderno Cincia do Direitopara a proteo da pessoa humana leva inevitavelmente superao da velha hermenutica do sistema de leis es-critas: ultrapassa o dogma da legalidade e o substitui peloconceito multiabrangente de juridicidade, afasta a insindic-abilidade do mrito dos atos administrativos, em favor dapreponderncia dos interesses primrios da sociedade, in-scritos na cultura do povo e na Constituio, e relativiza afora dos comandos legais em prol da interpretao con-forme a justia e a equidade.

    evidente que isso implica rever os paradigmas da atu-ao do juiz no processo de revitalizar o sentido de pro-

  • teo e amparo que o sistema das leis escritas tinha emseus primrdios, de modo que os desvios no se tornem ocaminho nem a distoro se transforme no padro.

    Esse o projeto da evoluo do Direito para encontrar seudestino de libertar a pessoa humana das vrias formas deopresso que a esmagam - no apenas nas sociedadesdeprimidas -, permitindo que as pessoas desenvolvam suaspotencialidades espirituais. Se o juiz no se deixar tocarpor essa ideologia, permanecendo fechado nas casamatasdas construes tericas do passado da Cincia do Direito- da velha Cincia do Direito em que o interesse estatal nopodia sofrer oposio nem o prncipe cometia erros, comcerteza estar deixando de contribuir para a consolidaodo humanismo e permitindo que as idias dos mortos gov-ernem a vida dos vivos, com prejuzos incalculveis para aimplantao da justia, sobretudo numa sociedade como anossa, intensamente desigual.

    A desmistificao da lei escrita ou da concepo (alis, toarraigada!) de que o sistema positivo d todas as soluesjustas ou, ainda, o abandono do legalismo dogmtico comodoutrina do Direito so enormes tarefas cujo cumprimentodepende essencialmente dos juizes em sua atividade cotidi-ana de tornar o sistema jurdico eficaz.

    Depende tambm, claro, dos doutrinadores e dos pro-fessores, que do os fundamentos compreensivos e inter-pretativos dos institutos jurdicos, como tambm, emboramuito pouco, da obra dos legisladores, que tm o encargode estruturar o sistema e fornecer as grandes linhas desua organizao. Contudo, a funo e a responsabilidadede tornar operantes e eficazes seus propsitos de proteoso inapelavelmente dos julgadores.

  • Direi que essa funo dos juizes incorpora ou assimila atarefa de integrao dos excludos nos benefcios da pro-teo do sistema jurdico, maneira de uma funo dis-tributiva de proteo jurdica, que o Direito moderno tem,ao lado - e em complementao - de suas funes de reg-ulao e de controle. Essa funo distributiva , em outramedida e em outros termos, a funo de incluso dos con-tingentes populacionais que ainda permanecem margemda proteo, como se seus direitos subjetivos no existis-sem ou pudessem ficar ao arbtrio de algum.

    Essa dimenso inclusiva da jurisdio e dos juizes de-manda alteraes relevantes no modo de pensar a que to-dos estamos habituados, em que se deu nossa formaoacadmica, nutrido nos paradigmas do privatismo e do jfalado positivismo legalista, em cujo ponto alto terico sesitua o endeusamento da lei, trazendo em si a averso ssolues que no repetem nem reproduzem suas palavrasou diretrizes explcitas. O mal que isso faz jurisdio in-clusiva torna-se a cada dia mais evidente, pois todos con-hecemos casos em que a aplicao da lei produziu resulta-dos funestos do ponto de vista da justia e da equidade.

    A funo inclusiva da jurisdio se apresenta concreta-mente na possibilidade de modificao dos roteiros do or-denamento jurdico, para absorver a potestade de influir emcertas decises governamentais, de sorte que determina-dos bens da vida - bens estratgicos -, como emprego,sade, educao, acessibilidade social, moradia e efetivoacesso justia, a inserida a soluo das demandas emtempo que permita a fruio do resultado, faam-se semel-hantes ao po nosso de cada dia - e no sejam maisconsiderados e servidos como iguarias de festa, segundoafirmei em outra oportunidade.

  • 3. INTERPRETANDO AS LEIS COM JUSTIA

    Um dos problemas que mais afligem os juizes de boa formao hu-manstica a aplicao das leis aos casos correntes ou concretos,quando sua sensibilidade de julgador detecta a presena inquietanteda injustia, consistente na dico da norma escrita que incitado aaplicar. verdade que sempre esteve na conscincia dos juristas -exceto na daqueles militantes do positivismo impenitente - o entendi-mento de que as normas escritas demandam interpretao e de queessa atividade dos juizes, a da interpretao, desenvolve-se segundocertas premissas de raciocnio lgico, mas tambm de valorao doscontedos das leis, sem o que - na percepo de alguns- no se real-izaria a justia, ou a soluo encontrada no seria justa, embora sepossa dizer que seria legal. A nenhum de ns estranho o tormentosoproblema da justia, no faltando os que dizem que ela algo tosubjetivo e rebelde conceituao que empreendimento impossveldefinir-lhe o exato contedo.

    Mesmo os que participam dessa desalentadora concluso sabem de-tectar uma injustia quando a encontram, e isso j suficiente paraafirmar que a justia um bem que se pode alcanar; basta persegui-locom obstinao e denodo, o que me faz lembrar a reflexo de Cala-mandrei ao dizer ser preciso acreditar na justia, que, como todas asdivindades, s se revela queles que nela creem.

    A virtude da justia, que deve ser a lurea do julgador, situa-se no cel-ebrado meio-termoaristotlico, que recomendava aos homens, comocritrio da felicidade e da justia, evitar o excesso das coisas. Os ro-manos, sempre eles, com suas reflexes objetivas, traduziram a liodo filsofo para a expresso in mdio virtus-a virtude est no meio - ou,ainda, para a expresso summum jus, summa injuria - suprema legal-idade, suprema injustia.

  • Na ponderao de Aristteles est o embrio da razoabilid-ade, hoje to em voga na exegese dos textos jurdicos, jque, como refletia, o dose certa paro se beber, a quantiacerta a ser doada, o discurso suficiente a ser feito, tudo issopode variar de pessoa para pessoa, do mesmo modo que aquantidade de comida para um campeo olmpico pode serexcessiva para um atleta iniciante.

    Fiz questo de lembrar essa lio por inteiro, para melhorcompreenso de sua concluso, isto , cada um de nsaprende qual a medida certa pela experincia: observ-ando e corrigindo o excesso e a falta em nossa conduta.

    O dficit de justia nas solues judiciais derivaria, em ger-al, como se alega e amide se percebe, da pouca consider-ao - ou da desconsiderao - que o juiz teria dispensadoa todas as variveis da questo, inclusive quelas que noteriam sido expostas com a desejvel clareza pelos pat-ronos das partes. Isso imporia ao magistrado ir alm dasrazes e das contrarrazes deduzidas pelos litigantes pormeio de seus advogados, a j se denotando um problemaprvio cognio judicial, calcado na tradicional assertivade que ao juiz no se permite decidir a demanda fora oualm das argumentaes trazidas ao cenrio dos autos doprocesso.

    Essa assertiva tem de respeitvel no apenas sua ancian-idade, mas tambm o prestgio de doutrinadores excelentese, sobretudo, serve finalidade de disciplinar e mesmo fa-cilitar a tarefa do julgador, por dispens-lo de investigar ou

  • ponderar o que no lhe foi explanado; serve, igualmente, finalidade de proporcionar s partes a segurana de quea soluo da demanda obedecer quele canone da ad-strio do magistrado s razes dos litigantes, assim seevitando a surpresa de algum vir a sofrer condenao emface de circunstncia - ou mesmo argumentao - contraa qual no teve a oportunidade processual de oferecer im-pugnao.

    Lembro-me de um fato que ilustra o que estou expondo,ocorrido h muitos anos em Fortaleza: um notvel juiz dacapital, que depois veio a ser desembargador do Tribunalde Justia do Cear, deixou - por iniciativa prpria, isto ,sem deduo de argumentao da parte - de decretar odespejo de um inquilino que era servidor pblico do estadopor saber, de cincia prpria, j que era magistrado estadu-al, que o pagamento dos vencimentos da categoria estavacom atraso de mais de seis meses. O caso pode hoje pare-cer trivial, mas representou, naquela poca, uma soluoinusitada, porque o senhorio no estava obrigado a se sub-meter a essa circunstncia particular de seu inquilino, e seudireito retomada do imvel, diante da impontualidade re-iterada do pagamento dos aluguis, parecia algo que nopoderia ser negado. Mas o foi, sob o fundamento de que odevedor se achava em situao involuntria de insolvncia,embora nem mesmo tenha contestado aquela ao.

    Caberia refletir se alguma outra causa impeditiva da solvn-cia de aluguis por parte do inquilino poderia ser aceitacomo escusa vlida - por exemplo, uma doena pessoal,uma perda extraordinria ou qualquer outra -, devendo-seter presente que o senhorio tambm tem suas obrigaesfinanceiras a cumprir e que a mora de seus devedores (in-quilinos) poder lev-lo igualmente insolvncia, a no ser

  • que tambm encontre juizes com aquela mesma sensibil-idade para postergar o desempenho de suas obrigaes.Narro essa breve e exemplar histria para mostrar que umsimples ato de tolerncia judicial, mesmo fundado em razode inegvel humanitarismo, deve ser ponderado em todasas suas repercusses e conseqncias, pois s raramenteesgotar em si todo o plexo de efeitos previsveis. E issosem contar com o temido efeito multiplicador, que podedesencadear, qui pondo em alerta - ou at em perigoiminente - um setor inteiro da atividade econmica de umasociedade, o que se evidencia de todo indesejvel.

    0 certo que essa questo da maior ou menor liberdadedo juiz no que toca sua vinculao aos textos de leisquando decide as lides continua sendo uma questo abertana dinmica das atividades dos julgadores. A propsito,h algumas escolas judicirias que sistematizam a posiodos magistrados quanto a esse relevante tema, embora ossistemas processuais no bastem para dar soluo defin-itiva s demandas. No plano normativo ou positivo, diz-seque, no Brasil, o juiz livre para julgar, entretanto, essaafirmativa diz respeito quase exclusivamente anlise dasprovas trazidas aos autos dos processos, ainda que - ex-cepcionalmente - por iniciativa do prprio magistrado, queno fica mais, quanto a esse ponto, refm das postulaesdas partes, de sorte que essa liberdade judicial, pode-sedizer, limitada pelas prprias normas.

    Os sistemas processuais em geral no trazem a afirmaoda liberdade de julgar segundo a livre conscincia do juiz,mas apenas segundo sua livre apreciao das provas -,o que , sem dvida, algo muito diferente. Veja-se, comoexemplo, que as decises dos juizes do Brasil s podembalizar-se pela equidade nos casos previamente listadosem lei.

  • Vale dizer que, no comum dos casos, o juiz deve aplicara lei, ou seja, a norma escrita, como, alis, determina ex-pressamente nosso Cdigo de Processo Civil, o que pareceindicar que o legislador aceitou aquela famosa iluso deque a norma positiva contm as solues de todos os prob-lemas concretos, pelo menos em estado latente, cumprindoao julgador - to s - descobrir essas potencialidades, queestariam ocultas no ordenamento, embora acessveis a elepelo mecanismo do raciocnio jurdico.

    Essa escola no , porm, detentora da verdade judicial -ou, pelo menos, no detentora de toda a verdade judicialmormente se levarmos em conta que a recente apariodos princpios jurdicos nos cenrios do processo relativizoua primazia do sistema ou da escola da aplicao da lei,ensejando que slidas consideraes metanormativas pas-sassem a sofrer influncia da formao das solues judi-ciais. Questionado o sistema da aplicao da lei pelo juiz,surgiram suas importantes variantes sistmicas, todas elasradicadas no respeito s leis, mas admitindo a j aludida in-fluncia dos valores, encartados nos princpios jurdicos.

    Diria, mas sem qualquer pretenso categorizante ou intuitode sistematizar doutrinas, que o sistema da aplicao da leij cedeu seu passo ao sistema ou escola da interpretaoda lei, que se acha em franca e veloz expanso, em cujosquadrantes cuida o julgador de verificar se a lei a prprialei - est em harmonia ou consonncia com as dices eas garantias constitucionais. A estas atribui-se a merecidaposio de proeminncia sobre os ditames legais, queagora devem ser interpretados - da o nome do sistemaou da escola - sob a luz intensa dos dispositivos con-stitucionais, dando-se prioridade ao querer constitucional,ainda que sem apregoar a necessidade direta de proclamar

  • a incompatibilidade da lei com a Constituio, processosempre custoso e difcil, inclusive por servir de matriz in-cidncia de formulaes extrajurdicas. Penso que a cha-mada escola da interpretao conforme segue exatamentea tendncia ou o rumo dessa vertente compreensiva domundo das normas legais, devendo-se fazer sua ne-cessria integrao com as superiores normas da Constitu-io, sem, todavia, eliminar do sistema a norma inferior (alei).

    Outro sistema ou escola judiciria que certamente haverde ocupar as atenes dos juristas o que denomino sis-tema ou escola da adequao, que tambm no reivindicaa eliminao do quadro normativo, mas advoga sua super-ao em situaes (ou casos) em que a incidncia de certanorma produziria mais malefcios do que vantagens, maisdesgastes do que proveitos jurisdio, podendo-se afirm-ar que h uma autntica desadequao das previses le-gais aos casos a cuja regulao se destinavam. Tal situ-ao ocorre com muita freqncia nas hipteses em quea relao processual se trava com uma pessoa hipossufi-ciente num dos polos da demanda, quando o uso do sis-tema da aplicao normativa ou mesmo o da interpretaode certos institutos jurdicos ou processuais gera resultadosdesastrosos para a justia e para o sentimento de justiaque domina a mente e o esprito do juiz.

    Essa disfuno normativa se entremostra em toda a suagrande complexidade quando se trata, por exemplo, desolucionar demanda em que a parte alega a condio detrabalhador rural, soldado da borracha ou ex-combatenteda Segunda Guerra Mundial, situaes em que submetera alegao aos rigores jurdicos da prova material significaobstar o reconhecimento da qualidade apta a credenciar apercepo de uma penso. No entanto, a lei escrita impe a

  • exibio de tal meio probatrio, afirmando ser insuficiente aprova exclusivamente testemunhal, o que no se compatib-iliza com as situaes subjetivas concretas, dada a imensadificuldade - ou mesmo a impossibilidade - de a parte teracesso ao meio probatrio material, sem dvida alguma demximo valor.

    O que pretendo fixar to s que as leis sempre precisamser compreendidas no contexto humano a que se destinam,pois foram elaboradas para produzir felicidade, e no in-justia, para promover o bem comum, e no a frustraocoletiva. Essa compreenso, porm, exige que os jul-gadores tenham a perfeita conscincia de seu papel trans-formador e de sua capacidade de realizar o ideal de justia,mesmo dentro do quadro normativo posto ou positivado,sem violar a segurana que o Direito promete, mas insinu-ando para dentro dele as categorias transcendentes dosvalores, sobretudo o da equidade, que os romanos consid-eravam a sntese da justia.

  • 4. O JUIZ E AS EXPECTATIVAS DA SOCIEDADE

    Ningum hoje duvida de que a sociedade guarda, em relao ma-gistratura e aos juizes, grandes e esperanosas expectativas, acredit-ando que, por meio de sua atuao eficiente, podem ser equacionadose resolvidos seus problemas mais graves e mais antigos. E essas ex-pectativas, se esto longe de ser ilusrias, tambm esto longe de al-canar concretizao em curto prazo de tempo; entretanto, represen-tam a confiana nas instituies judicirias e no meio pacfico e civiliz-ado de solucionar dissdios. Se assim no fosse, instalar-se-ia a totalinsegurana nas relaes da vida social, e cada um cuidaria de defend-er seus interesses com o emprego dos prprios meios, retornando-seao estado de barbrie ou da famosa guerra de todos contra todos - bel-lum omnium contra omnes -, a que aludiam os primeiros filsofos docontratualismo, dentre os quais o celebrado Thomas Hobbes.

    A primeira dessas expectativas - creio eu - refere-se certamente cel-eridade processual ou soluo das pendncias dentro de horizontetemporal aceitvel, qual seja, aquele que permite parte vitoriosa usu-fruir os resultados da batalha judicial em que foi vencedor; mas sempre preciso lembrar que a pressa inimiga da perfeio e que aceleridade processual - por ser seguramente um valor mantido em altoapreo - no a sntese nem a finalidade do processo: o processo nose esgota em si mesmo nem em suas caractersticas, ainda que estasse apresentem avaliao de todos como objeto de encmios e, aomesmo tempo, de constantes preocupaes. Essa expectativa bsicapode ser atendida, a meu sentir, com o aumento do nmero de r-gos julgadores, o reforo de suas estruturas de apoio e o emprego dosmeios tecnolgicos de ponta, como a informtica virtualizada, mesmose sabendo que isso evidentemente no basta; exige-se, de igualmodo, a mudana de paradigmas mentais dos operadores do aparatodo Poder Judicirio.

  • Na minha viso, a essncia do processo a realizaoda justia, e, para atingir essa meta, muitas vezes se con-somem largos lapsos de tempo, embora a demasia dotrmite processual no encontre defensores. Na verdade, otempo que se gasta no processo tem sido e continua sendoa cruz dos magistrados e dos doutrinadores. Contudo, o ex-cesso de tempo algo que o juiz no pode sozinho com-bater, cumprindo dizer que a prpria estrutura da jurisdio,com a adoo de muitos e sucessivos meios recursais einstncias sobrepostas, responde por alta percentagem naapurao da responsabilidade da mora judiciria.

    Por outro lado, a existncia desses meios impugnativosplurais e da hierarquizao orgnica do Judicirio descansasua lgica na convico - arraigada em nossa culturajurdica - de que as decises posteriores e talvez as de-cises dos tribunais contm a possibilidade de melhoriadas solues anteriores e de que o erro, casual ou volun-trio, parece ser uma companhia sempre constante dassentenas e acrdos; por causa disso, as idias de mod-ernizao judiciria oscilam como um pndulo entre a con-servao da pluralidade recursal e a reduo das oportunid-ades de impugnao das decises.

    Aproveito a referncia a esse assunto para explanar umponto que h muito me chama a ateno e mesmo me de-safia: se nossa tradio consagra graus jurisdicionais emque as instncias superiores so de composio colegiada,no seria contrariar essa tradio advogar a reduo dosmeios recursais ou eliminar pura e simplesmente alguns re-cursos? Mas manter a pluralidade recursal no idnticoa fomentar a postergao da soluo definitiva das deman-das? De que modo seria possvel racionalizar o uso dosrecursos sem maltratar o direito de reviso das decisesjudiciais, quando se sabe que essa reviso, em centenas

  • e centenas de casos, mostra-se um imperativo da justia?Quem no conhece casos em que a deciso do juiz ou dotribunal alberga violenta infrao garantia das pessoas,a seus direitos ou legtimas e justas pretenses, quer naseara civil quer na criminal, e, talvez, sobretudo nesta?

    Essas indagaes freqentam a problemtica das expect-ativas sociais quanto ao desempenho dos juizes ou, melhordiria, quanto capacidade do Poder Judicirio de dar res-postas to rpidas quanto o exige a urgncia da vida mod-erna, e no h como deixar de reconhecer a indiscutvel le-gitimidade de tais preocupaes. Sobre elas, teremos, per-manentemente, de aplicar nossa criatividade, e chego apensar que, se o fizssemos hoje, j estaramos em atra-so, pois as deficincias de nosso aparelho judicirio se vmacumulando h muito tempo, e essa acumulao no se ex-plica somente pela formao fragmentria do sistema.

    No entanto, o que quero sublinhar no terreno das expect-ativas da sociedade o contedo das decises dos juizese dos tribunais. Ser que nossos magistrados estoatendendo a essas expectativas ou esto adotando - muitasvezes - posturas olmpicas quanto ao quadro das aspir-aes sociais e apenas realizando trabalhos tcnicos denotvel elaborao, imprimindo nas decises suas con-vices e aspiraes pessoais, seus valores ideolgicos ousua autodefinio como portadores da lucidez ou como apura encarnao do prprio bem?

    Deixo - muito de propsito - margem do objeto destacarta uma relevante indagao: o juiz est realmente aptoa apreender essas aspiraes sociais e tem a sensibilidadenecessria para interpret-las com fidedignidade? Con-quanto no faa praa dos postulados positivistas, tenho dereconhecer que neles se alojam valores - palavrinha queos juspositivistas no ouvem com agrado - capazes de pro-

  • teger a integridade das pessoas e de seus patrimnios eque essas salvaguardas, por serem construes normatiz-adas, devem-se impor observncia dos julgadores, aindaque no meream sua adeso ideolgica.

    Posso at entender - mas no aceitar ou justificar - que ojulgador queira ser o superior censor da norma e esteja toimbudo de seu mister justiceiro que se aventure pessoal-mente em atitudes que a lei no autoriza. Se, entretanto,no aceitarmos as limitaes de nossas aes pelo formatodo sistema jurdico, teremos de, a cada dia, inventar denovo a roda e descartar as elaboraes judiciosas de nos-sos antepassados, que trabalharam em ambientes sociaismais estveis e pacficos e - qui por essa razo -puderam produzir instrumentos de atuao judicial cuja ap-licao protege todos contra a prepotncia de alguns.

    Nas cogitaes em torno desse tormentoso assunto,sempre vem tona a velha advertncia de que os fins nojustificam os meios, mesmo que a muitos soe oca e inev-itavelmente superada, preferindo alguns acostar-se re-flexo atribuda a Maquiavel em seu livro 0prncipe, emboracaptada - penso eu - sem exatido quanto ao pensamentogeral de seu imputado autor. importante e necessrio queos fins da jurisdio sejam atingidos, mas no por meios es-cusos ou condenveis pela moral, porque isso seria a con-trafao da jurisdio, talvez igual aceitao da torturapara obter a confisso do acusado. Vem-me mente ex-emplificar ou ilustrar essa ponderao com as recentes di-vulgaes da prtica de tortura de prisioneiros tidos comoterroristas na priso americana de Guantnamo; apesar deningum aplaudir o terrorismo e os terroristas, quem erguea voz para defender a tortura contra eles?

  • Ser que parecerei romntico ao afirmar minha confianano processo judicial equilibrado e na atuao do juiz serenoe consciente de que est limitado pelos direitos subjetivosde quem se submete a sua jurisdio? Ou ser que oaplauso da arrogncia e da ilimitao procedimental termin-ar por prevalecer sobre as pautas civilizadas e que s hrazes para desnimo e desalento?

    Tenho para mim que a sociedade espera de seus juizesque tenham comportamento altivo e saibam realizar, pormeio do processo judicial, a segurana das pessoas. Cul-tivo a idia de que no encontra respaldo na conscincia detodos o sentimento de vingana, nem mesmo contra crimin-osos confessos, e cito como exemplo a discusso da penade morte, a ser aplicada aos cometedores de crimes abje-tos: talvez uma maioria eventual de opinies se manifest-asse por sua adoo, mas certamente nenhum magistradose abalanaria a justific-la.

    Pode-se dizer, claro, que esse um exemplo extremo,e certamente o . Todavia, respondo que o desrespeito sgarantias processuais das pessoas, sobretudo das que seacham submetidas jurisdio penal, uma forma sim-blica de pena de morte, pois as injustias e crueldades quese cometem nessa seara liquidam a autoestima, reduzem eat eliminam a fora de reao contra a adversidade, pro-vocando destruies que s pode aquilatar quem conheceos efeitos irreparveis de uma ao penal contra uma pess-oa inocente.

    Na verdade, de que vale a absolvio tardia, e como seroreparadas as leses psicolgicas e emocionais que o in-devido processo provocou? No hesito em afirmar que asociedade deseja que os infratores de suas regras sejam

  • punidos, at mesmo que sejam punidos com severidade;por outro lado, acredito que as demasias dos julgadores, odespotismo judicirio, a quebra das garantias processuaisno contam com o abono dos setores sociais civilizados. por isso que advogo a mudana de paradigmas do Judi-cirio, no s os estruturais, mas tambm, e principal-mente, os relativos ao comportamento dos magistrados, desorte a se comprometerem mais abertamente com a pro-teo das pessoas, com a defesa de suas garantias, deseus patrimnios e de continuidade de suas atividades l-citas. No devem impressionar o juiz - ou ecoar em seuesprito - o discurso que postula seu envolvimento nasaveriguaes punitivas, a idia do Direito Penal do inimigo,o sentimento de vingana social, pois o mal que isso faz jurisdio enorme e provoca mais descrdito nas institu-ies do que os erros de julgamento.

    totalmente equivocado pensar que a sociedade se com-praz com a violncia institucional ou que a injustia lheagrada, que lhe d satisfao ver que os julgadores estoassociados aos inquisidores ou que o Judicirio est em-penhado em subjugar classes, setores ou atividades.

    No confortvel apregoar que a desconfiana a regraou que as autoridades so corruptas, mas as informaesque so transmitidas sociedade realmente induzem essaspercepes, dando a iluso de que ela deseja que os juizessejam vingadores.

    O eminente jurista Clio Borja, ex-ministro da Justia edo Supremo Tribunal Federal, lamentava, em entrevista aum grande jornal, que tinha a impresso de que os juizes

  • puseram de lado a Cincia do Direito, passando a decidiras causas sob certa intuio do justo, assinalando que ojusto no uma sensao, o justo se demonstra, no essa vontade de se abrir opinio popular, que conduza uma insegurana brutal. Concordo com o fato de que asensao do justo no serve para fundamentar decises,inclusive porque essa sensao tem razes no subjetivismoindividual e produz o sentimento messinico, inaceitvel emquem detm o poder de julgar. A lei limita o julgador; a lei o freio eficaz contra seus impulsos subjetivos e sua partic-ular percepo de justia, s vezes contra sua vocao depaladino.

    0 sentimento revanchista, mesmo que seja socialmente di-fundido, no pode ter o abono da jurisdio: preciso quetodos entendamos que o modo desejvel de coibir abusos,reprimir infraes, punir delinqentes, prevenir desmandosou apurar ilcitos o que respeita as conquistas da civiliza-o, as criaes da cultura, os direitos humanos e as prer-rogativas processuais das pessoas. No se atingir o bem-estar de todos, o bem comum da sociedade, se os rgosda jurisdio banalizarem a violncia a pretexto de realizarsuas metas, desprezarem as garantias sob a alegao demaior celeridade ou eficincia em suas aes, pois, comoj recomendava o jurista romano Marco Tlio Ccero, deve-mos ser servos da lei para que possamos ser livres.

    No se pode esconder que muitas aes antiticas pro-vocam nossa justa indignao e suscitam nossa revolta;impe-se, contudo, que, ao julgar, o juiz proceda como ohistoriador Tcito ao se propor a escrever a histria deRoma, sine ira et studio - sem ira nem parcialidade -, asubentendida a imparcialidade, profcua virtude dos magis-trados, justamente a que faz seu agir distinto do agir comumdos outros homens.

  • 5. O SABER E OS SABERES DO JUIZ

    Diz-se muitas vezes que o conhecimento jurdico no basta - ou, pelomenos, no deveria bastar - para o processo de escolha dos juizes, eessa afirmao, em geral, expendida quando se fala do processo se-letivo dos magistrados por meio de concurso pblico, tal como prat-icado no Brasil h vrias e vrias dcadas. 0 conhecimento jurdico, certo, no traz consigo, necessariamente, a aptido ou a vocao parao exerccio da funo de julgar - misso que, na verdade, exige muitomais que o domnio dos saberes ditos formais, embora tal assertiva nodeva ser tomada sempre ao p da letra.

    Tenho como fora de qualquer dvida sensata que o saber jurdico bsico e indispensvel ao desempenho das atividades do Direito, emparticular das atividades do poder jurisdicional, no podendo conceberum juiz que no tenha seguro domnio das pautas essenciais do orde-namento jurdico ou das solues que o sistema jurdico tem por pref-erenciais ou dominantes. A exigncia da amplitude dos saberes do juiz- incluindo conhecimentos que seriam de outras reas do saber hu-mano - leva-nos a pensar num tipo ou padro de juiz que seria aqueleem que se acumulam conhecimentos do Direito escrito, ou Direito le-gislado, e conhecimentos da Cincia da Jurisprudncia, alcanandoesse conceito no apenas o domnio dos precedentes judiciais - queseriam a jurisprudncia em seu sentido estrito ou limitado mas tam-bm o domnio das chamadas tendncias verificveis no movimento deevoluo do Direito, que ainda no esto acolhidas nos julgamentos ou,pelo menos, no acolhidas de forma expressa ou explcita.

    Essa ltima expectativa - a de que o juiz deve dominar as tendnciasevolutivas do Direito - parece envolver em si a idia de que ele precisaestar antenado com o que acontece no mundo, em especial no mundodo Direito, e, mais ainda, no universo que mais prxima e diretamenteo cerca, representado pelas relaes da sociedade em que vive e tra-

  • balha. Talvez aqui esteja o ponto de equilbrio do juiz mod-erno, pois, sem dvida, no haver de pautar suas decisespelas manifestaes sociais - por mais ruidosas e legtimasque sejam -, como, de igual modo, no haver de dar ascostas ou fechar os ouvidos a elas, devendo antes usar seusaber para ponderar os interesses e projetar no futuro asconseqncias de suas decises.

    Um campo jurdico em que muito freqentemente colidemas idias dos juizes o da aplicao das normas do DireitoSancionador, como o Direito Penal e o Direito Administrat-ivo Disciplinar. Nele, conflitam as sugestes de exasper-ao das sanes - talvez at mesmo para torn-las exem-plares - e as idias de mitigao dos rigores da lei sanc-ionadora, mormente nos dias atuais, quando os chamadosdireitos fundamentais da pessoa humana passaram a ocu-par espaos cada vez mais largos nas cogitaes dos juris-tas, expandindo sua sombra humanitria sobre relaesque se inserem no grande conjunto chamado Direito San-cionatrio mnimo, com muita influncia e fora na elabor-ao das leis sancionadoras e nas reformas das leis ex-istentes, principalmente daquelas que regulam o processosancionador.

    Diria eu que as recentes leis de reforma do processo penalbrasileiro - e fao essa observao com otimismo - cam-inham no sentido de aumentar a cota de garantias indi-viduais aplicveis na fase pr-processual ou de investig-ao e, sobretudo, na fase judicial da atuao do poderpunitivo.

  • Tenho anotado a tendncia - aqui cabe com preciso essapalavra - de se distinguirem na ao penal os elementosjustificadores da sua promoo daqueles que justificam apriso cautelar, por exemplo, em contraposio inclinaoanterior de um grande nmero de juizes criminais pratica-mente ter como idnticos esses elementos, como que res-taurando a priso cautelar automtica, ou seja, quando agravidade do ilcito, expressa na quantidade da pena com-inada em abstrato, chegar a determinado nvel, ser de-cretada a priso do acusado. Em outras palavras, seriacomo o retorno ao tempo em que, se a pena em abstratofosse igual ou superior a determinado patamar, a prisocautelar deveria ser decretada inevitavelmente.

    Do mesmo modo, v-se na seara do Direito Tributrio umaespcie de recrudescimento de prticas sobremodo invas-ivas da economia privada das empresas, o que faz a juris-dio atuar sob a idia ou a suposio de que as estrutur-as empresariais funcionam de forma autnoma, sendo ab-strada sua sintonia com os azares do mercado, com a re-trao dos clientes e com as crises de confiana e de in-vestimentos. Tudo isso passa pela mo do juiz, que muitasvezes no se apercebe de que est lidando com aspec-tos vitais de muitas pessoas, vendo diante de si to s aexigncia formal e sonora de obrigaes e deveres. Ilustraessa orientao a resistncia s tcnicas jurdicas de recu-perao de empresas e limitao procedimental das con-stries patrimoniais por via eletrnica.

    Contudo, observa-se, em contrapartida, que cresce dia adia a preocupao de muitos juristas e juizes com a eficciados sistemas processuais de defesa dos direitos e das liber-dades das pessoas, a que no ficam indiferentes os ma-gistrados que esto mais ligados ou atentos s conquistasda cultura e da civilizao. E a contribuio ao desenvolvi-

  • mento dessas idias ser tanto maior quanto mais amplofor o plexo de saberes dos juizes. Com certeza, tudo issodepende de serem os magistrados portadores de saberesmais extensos e mais sofisticados, pois o antigo conhe-cimento extensivo das leis escritas, ou o conhecimentolegalista, que bastava ao exerccio jurisdicional do pas-sado e fazia a reputao dos juristas, agora manifesta-mente insuficiente para essas novas e importantes tarefasintelectivas do Direito.

    No creio que cometa algum exagero quem diz que oDireito moderno est sendo buscado de forma crescentealm dos textos normativos - e no apenas em razo dosurgimento dos princpios e de sua fora impositiva, masigualmente por causa da idia cada vez mais ntida de quea exiguidade das normas no abarca a complexidade doDireito. Isso representa um desafio aos saberes dos juizesou aos saberes que ultrapassam o conhecimento dos tex-tos legais, embora estes continuem sendo relevantes, semdvida alguma.

    Talvez o que se tem em mente quando se alude a essesoutros saberes seja o acervo de experincias que se ima-gina deva o juiz acumular. Tenho para mim que a figurado julgador est associada, no imaginrio popular, figurade uma pessoa sapiente, at mesmo de um sbio, naacepo que a palavra tinha no tempo dos juizes bblicos,que assimilavam conhecimentos variados sobre as mais di-versas cincias e justamente por isso eram consideradosos mais prudentes e qualificados para orientar as soluesdos dissdios.

    Um dos mais famosos juizes bblicos, o celebrado Salomo- chamado de rei dos reis dominava tanto o conhecimento

  • das leis comuns de Israel quanto as coisas da tradio oral,dos costumes, da religio dos antepassados, sobretudo dosistema econmico e produtivo do reino, que preservavacom atento cuidado, o que lhe permitiu exercer a direosocial com grande equilbrio. A histria da disputa entreduas mulheres pela maternidade da mesma criana, queele solucionou com sabedoria, uma das lendas em tornode seu nome que explica o prestgio da expresso justiasalomnica, talvez o nome ancestral de nossa contem-pornea justia de equidade, mas isso seria outra histria.

    No acredito que a permanncia desse mito seja nefasta -pelo contrrio, at admito que seja favorvel porque deve-mos lembrar que a posse de muitos saberes induz no juiza virtude da prudncia, to essencial ao ato de julgar. Alis,por falar nisso, recordo que o grande escritor Machado deAssis estimava que a prudncia era a maior das virtudesem tempo de revoluo, embora a locuo prudente re-voluo parea um oximoro (essa palavrinha esquisita in-dica as expresses cujos termos so reciprocamente ex-cludentes, coisa to ao gosto dos poetas, tais como silncioensurdecedor, noites brancas, boatos fidedignos ou cresci-mento negativo).

    Devemos anotar, entretanto, que o termo revoluo, nocontexto machadiano, deve ser entendido tanto como con-flagrao social violenta visando derrocada de instituiesquanto como desafios dirios e constantes, como os queo juiz enfrenta em seu dia a dia. Reitero que a ampliaodos saberes do julgador se opera seguramente pela via doestudo dedicado e pela observao das coisas do mundo eda realidade da vida, lembrando que, na antigidade, j sedizia que a vida a verdadeira mestra de todos ns, idiaque Ccero, jurista, poltico e orador romano, desenvolveu

  • com tanto esmero que considerado o pai dessa preciosareflexo.

    Por certo, estamos falando aqui do saber de experinciasfeito, a que Lus de Cames aludiu em seu monumentalpoema pico e nutico sobre a viagem de Vasco da Gama,enfatizando precisamente esse aspecto dos sabe-res hu-manos, aqueles que vm com o decurso do tempo e coma transmisso interminvel dos dias. Mas, se os juizeschegam cada vez mais jovens ao exerccio da magistratura,ser que se pode esperar deles a prudncia ou o saberprudente dos mais velhos?

    Sinto-me tentado a dizer que a juventude do juiz no lheimpede o discernimento prudente - h magistrados jovensde grande prudncia e magistrados mais velhos dela alta-mente carecidos; entretanto, se a falta de experincia cura-se com o tempo, a falta de aplicao parece que no temcura. Conheo muitos juizes jovens e outro tanto de juizesmaduros que carregam em si as revoltas do mundo, soinsensveis, indiferentes e distantes, exercendo as funesda magistratura com a mais perfeita conscincia de suaparticular propriedade - e isso deveras lamentvel, porquemais desservem do que ajudam a construo da confianano Judicirio.

    Vejo tanta desateno e desapreo a problemas cruciantese graves, autntico alheamento realidade da vida social,que me pergunto e no me respondo o que se passa namente desses juizes - jovens e velhos - empenhados em

  • demonstrar mais poder do que autoridade, mais fora doque razo, mais conhecimento formal do que saber jurdico,entendendo o Direito por vieses curtos e incompletos,quando podem ter frente uma ampla ave-nida de realiz-aes concretas e positivas. Ser que isso se poderia ex-plicar pela cupidez da notoriedade, ainda que passageira,pelo desespero pelo noticirio, pela nsia de uma evid-ncia, ainda que fugaz, ou de ser visto como justiceiro?No sei, mas tudo isso resvala para a falta de saber, afalta de compreenso ou de entendimento, e nem se pense- porque seria equivocado - que assim procedem essaspessoas por ignorncia jurdica, j que possuem calibradosconhecimentos da lei escrita e da letra dos enunciadosnormativos.

    Talvez lhes falte a advertncia do apstolo Paulo de quea letra mata, mas o esprito vivifica; nessa conhecida pas-sagem de uma de suas famosas cartas, aludia ele pre-cisamente amplificao do conhecimento teolgico parabem realizar as tarefas pastorais.

  • 6. ANALISANDO PESSOAS E FATOS

    Eminente ministro do Supremo Tribunal Federal ainda hoje lembrado,Mrio Guimares, escreveu um livro intitulado 0 juiz e a funo de julgar- obra j antiga -, em que expressou suas cogitaes e conselhos sobrea atividade judicante, fazendo recomendaes sobre o tratamento queo juiz deve dispensar s partes do processo e chamando a atenopara o fato, de todos sabido, mas nem sempre lembrado, de que, para olitigante, aquela questo a lide mais importante do mundo. Outro min-istro da Suprema Corte, em tempo ainda mais remoto (1915), publicouum relevante estudo - Do Poder Judicirio - analisando com riqueza dedetalhes o funcionamento judicial, pondo nfase na figura do juiz: esselivro de autoria do ministro Pedro Lessa, que tambm teve marcantepassagem naquele pretrio.

    Sobre a atividade de julgar, at comum dizer-se que uma prer-rogativa exclusiva da divindade e que os homens dela participam porafoiteza e temeridade, de certo modo absorvendo a funo divina. Essaidia a respeito da atividade judicante muito persistente na histria ju-dicial e encontra eco em recomendaes dos livros sagrados de todasas religies, sendo conhecida a advertncia do Mestre da Galileia "nojulgueis para no serdes julgados" ou aquela outra ainda mais precisae ameaadora: "com a medida com que medirdes, medir-vos-o a vs."

    Qual ser o grande anteparo moral e emocional do julgador para nose sentir exposto s inquietantes conseqncias da injustia que suadeciso possa produzir? Claro que a indiferena ou o alheamento, a in-sensibilidade ou a distncia somente podero ser invocados por quemno tem em si o sentimento de humanidade, que se no deve ausentardo esprito de ningum, muito menos do esprito de quem tem a mis-so de distribuir justia. Cada processo a histria individual de umapessoa, sua vida, projetos, sonhos e esperana de conforto e xito; por

  • isso, diz-se que cada processo uma pessoa e encerranele os problemas de uma existncia, hospeda uma vida,mas isso s vezes no valorizado em toda a sua extensoou no percebido em toda a fabulosa profundidade. Muitoamide uma demanda judicial representa o sucesso ou ofracasso de uma vida inteira de trabalho, qual se d, porexemplo, num pedido de reintegrao de um servidor de-mitido, de um empregado mandado embora, numa pre-tenso de ingresso numa carreira pblica, sendo o postu-lante excludo do certame por uma interpretao curta oupreconceituosa.

    Quando decide um caso, no convm ao juiz ficar presoaos ditames da lei escrita, imaginando que sua aplicaoautomtica e descomprometida seja capaz de gerar ajustia, de dar soluo compatvel com a esperana de pa-cificao. A propsito, atual e precisa esta advertncia deCarlos Drummond de Andrade, chamando a ateno paraa realidade de que as coisas sutis, as construes elabora-das, sensveis e prestantes no desabrocham como por en-canto do pragmatismo ou do experimentalismo. Diz o po-eta itabirano que as leis no bastam; os lrios no brotamda lei. E poderia ter acrescentado que os lrios brotam dasinceridade com que se aplicam as leis - forma elegante epotica de dizer que a exegese sempre necessria, que por ela que se descobrem as potencialidades da lei e quesem ela a lei um texto frio, improdutivo e incapaz de gerarlrios.

    A nica forma de realizar objetivos humanos no domnioda jurisdio vestir-se o juiz da pele da humanidade, ja-mais imaginando que, sem essa condio, ser capaz deentender tudo que o processo esconde. A verdade do pro-cesso se revela naturalmente pela prova. No entanto, a

  • prova, para ser entendida em sua integralidade, dependedo fato de o julgador permitir que a fora de seu significadoatue sobre sua convico e seu esprito, no a fora daprova trazida para os autos, uma vez que essa - mesmo im-portante - no d a medida dos fatos. As provas tambmtm sua complexidade e se mesclam com a realidade davida, de modo que nem sempre so perfeitas e nem sempreservem ao propsito de espancar dvidas. Na avaliao decada prova, o juiz no um autmato, um cego ou umsurdo, que no percebe alm dela o real, o possvel, o usu-al ou o que geralmente acontece, pois o juiz, como ob-serva Couture, no deve ficar adstrito a ser um assistentede pedra, mas deve ter uma postura mais ativa.

    Relembro agora um caso que apreciei h muitos anos, emque se discutia a prescrio ou a decadncia do direito deum homem recusar a paternidade de um filho de sua es-posa, quando este j tinha mais de 20 anos, e a suspeita dano paternidade surgiu de forma casual e inesperada, nomomento de uma transfuso de sangue em que o pai com-pareceu como doador. No h dvida alguma de que, pelaletra da lei, a ao denegatria de paternidade no prosper-aria, tendo em vista a dico incontornvel que prev a ex-tino desse direito, que surge no azo do parto.

    Pergunto: teria realmente nascido para aquele marido odireito de ao antes de se inculcar em seu esprito advida fundada que somente surgiu no momento daquelatransfuso de sangue? Como contornar a questo do pere-cimento do direito de ao diante da translcida previsonormativa?

    No quero debater se esse homem agiu bem ou mal ao in-tentar essa ao, nem se o exame de sangue (DNA) tem ou

  • no a carga de indiscutibilidade que lhe conferida; queroapenas referir que somente pela observao objetiva doque acontece na vida que seria possvel afastar da ini-ciativa processual desse homem a inviabilidade decorrenteda prescrio. No sei se correta ou incorreta a assert-iva de que essa ao mereceria tramitar, mas sei que a ex-cluso apriorstica de seu trmite desfaz a idia longamenteacariciada na doutrina e na jurisprudncia dos tribunais deque o todo o direito corresponde uma ao que o assegura.A discusso que se d, em ltima anlise, nesse cogitadocaso, sobre qual deve ser a verdade mais prestigiada: areal ou a processual?

    claro que aqui estamos falando do prprio instituto daprescrio, to caro ao Direito em todas as pocas, pelopoder pacificador que tem, e no me abalano a dizer se,em caso como o que acabo de mencionar, sua aplicaoser feliz ou infeliz. Tenho, porm, a convico de que esse um problema moral e de que sua soluo exige do juizuma compreenso que deve ir alm da cincia da norma,talvez mesmo invadindo a reflexo dos filsofos histricosquando problematizavam as hipteses e os argumentos hi-potticos, pensando que, em certas ocasies, preciso for-mular juzos argumentativos sucessivos, como se fossemdegraus, para se chegar ao cume de uma soluo ajustadaao problema da existncia.

    A questo das provas - alm das pessoas - sempre foi tor-mentosa, mas os fatos das causas so sempre rebeldes, ej se criou a idia, alis, cultivada com esmero, de que noprocesso o que se busca a verdade ficta, que est na ra-iz das presunes. A verdade ficta, entretanto, que bastaao processo civil, ser que basta tambm ao processo pen-al, no qual as coisas devem ser captadas por sua realid-ade, e no por sua aparncia? Ser que os juizes, no af

  • de esclarecer os fatos, devem tornar-se investigadores, ou,se assim fizerem, estaro afastando-se de sua decantadaneutralidade?

    E se a prova trazida pelas partes for deficiente, incompletae enganosa? Eis a um mundo de possibilidades infinitaspara o juiz exercer sua capacidade de criar solues, real-izar a justia e, assim, justificar que sua mente compro-metida com a justia e que as dinmicas de sua atividadevisam promoo humana, sem o que poder at realizarum trabalho volumoso, mas carente do sentido humansticoque tem de permear a funo de julgar.

  • 7. O JUIZ E A IMPRENSA

    J foi dito, para destacar a importncia da imprensa, que o fato porela no veiculado no est no mundo, e o que est no mundo afetaa questo posta nos autos de um processo, ainda que nelesformalmente-no esteja.

    Imprensa e Judicirio so dois pilares fundamentais para a fruio dademocracia, a qual no pode sobreviver sem a liberdade da primeira ea independncia do segundo. necessrio, tambm, para reforo daconsolidao da democracia, que haja interconexo entre ambos, nosentido de que, em momentos de crise, a imprensa pode ser esteiopara assegurar a independncia do Judicirio, e o Judicirio pode ser oponto de sustentao para o exerccio da liberdade de imprensa.

    Contudo, a relao entre magistrados e jornalistas, por diversasrazes, nem sempre harmoniosa. H, em comum, uma espcie dedesconfiana mtua - diria mesmo que com conotao preconceituosa- a demonstrar a existncia de um desconhecimento recproco.

    No que h de mais fundamental, o jornalista no quer ser julgado, eo juiz no quer ser criticado, embora seja imperioso reconhecer queas crticas muitas vezes procedem, de que so exemplo os casos decorrupo, desperdcio e gastos excessivos e pouca dedicao ao tra-balho.

    Outras tantas vezes, as crticas so indevidas por decorrerem dedesconhecimento ou compreenso incompleta da realidade. Assim sed quando atribuda culpa exclusiva ao Judicirio pela morosidade nasoluo dos conflitos, sem se fazer qualquer referncia quantidade

  • excessiva de processos, ao aumento crescente de deman-das. Para se ter uma idia, basta dizer que se iniciam noBrasil, por ano, cerca de vinte milhes de novas aes, semfalar nas leis processuais anacrnicas, fatores que con-spiram contra um desenvolvimento clere dos feitos.

    Tambm despertam crticas infundadas as decises que ojuiz se v compelido a tomar devido sua obrigao deestar vinculado ao comando posto na lei, as quais even-tualmente vo de encontro s expectativas imediatas daopinio pblica. Isso ocorre, por exemplo, quando a polciaprende e o Judicirio solta porque algum direito de defesafoi afrontado. Ademais, a imprensa no se conforma emno ter acesso a processos que correm em segredo dejustia, por fora de lei, como nestes casos exemplificat-ivos: proteo criana e ao adolescente - proibio dedivulgar fatos negativos referentes a eles com fotografia,nome, apelido, parentesco, residncia e filiao, bem comoa proibio de divulgar infraes de natureza penal em queeles apaream -; casamento, filiao, separao e divrcio;em matria penal, sigilo para a elucidao do fato quandoexigido pelo interesse da sociedade, a critrio do juiz; sigilode diligncias, gravaes e transcries referentes a cor-respondncias e comunicaes.

    Por outro lado, sabemos que a liberdade de imprensa tendea se exercer de modo absoluta Alis, preciso lembrarque s em situaes extremamente excepcionais se poderfalar em direito absoluto - e nem mesmo o direito vida o ,como se sabe (legtima defesa, por exemplo).

    Assim, em ponderao sobre outros direitos (como o deresguardo imagem), o jornalista pode ser processado

  • quando provoca danos morais por excessos eventualmentecometidos.

    Mas imperioso que o juiz compreenda, como ouvi alhures,que a imprensa j no apenas cronista da realidade; cadadia mais vai-se tornando protagonista, chegando mesmo acontribuir para sua criao ao formular e modificar valorese conceitos e afetar o comportamento social.

    necessrio, de mais a mais, que a magistratura percebaque a imprensa, a par de ter o direito de informar, tem o de-ver de informar, pois h subjacente o direito do cidado deser informado, reconhecido como direito de cidadania. A in-formao deve ser entendida como um bem social, e o jor-nalista, no exerccio de sua profisso, presta-se a uma fun-o social.

    A liberdade de imprensa, entretanto, tem suas distores:s vezes, a imprensa julga antes de apurar, manipulando averdade, como observa o jornalista Israel Drapkin; soneganotcias ou retarda sua publicao; mistura notcias comopinies condenatrias ou de aprovao; amplia fatos in-significantes ou reduz o destaque de fatos relevantes; util-iza frases sentimentais, despertando simpatia ou antipatia;confunde interesse pblico com interesse do pblico, nodestaque do jornalista Betch Cleinman.

    Veja-se, ainda, que a grande quantidade de meios e vecu-los de informao no gera pluralidade de temas ou abor-dagens, pois a indstria miditica, ao contrrio das demais,no oferece produtos diferentes.

  • Feitas essas digresses, no hesito em afirmar que hojeem dia quase lugar-comum dizer que a imprensa e a liber-dade de imprensa so os ndices mais seguros do grau dedesenvolvimento democrtico de qualquer sociedade atual.Na verdade, esses ndices no se limitam imprensa emsuas formas tradicionais (escrita, falada e televisiva), masalcanam mesmo outras formas ou veculos de divulgaoe difuso do pensamento e da palavra, da imagem e dasidias, dentre as quais tem evidente destaque a rede decomunicao global (internet).

    No h voz autorizada que no se levante para assinalara correlao entre a liberdade de comunicao e de ex-presso e o desenvolvimento democrtico ou para conden-ar qualquer tentativa de cercear o exerccio do direito de im-prensa.

    No so poucos nem desprezveis os resultados positivosde muitas iniciativas saneadoras, atingindo tanto o setorpblico como o setor privado da sociedade, que foram de-flagradas por matrias de jornalistas investigativos, sobre-tudo no que se refere desassistncia de sade, educaoe segurana, para citar essas reas mais sensveis. Tam-bm sobre ilcitos administrativos e crimes brutais cujosautores certamente ficariam na sombra da impunidade se aimprensa no tivesse desencadeado tais denncias. Con-tudo, sem embargo desses efeitos plenamente apreciveise inegavelmente positivos, deve-se reconhecer que a di-vulgao prematura de notcias acerca de fraudes, escn-dalos, crimes, irregularidades e casos de corrupo pro-voca leses sempre graves reputao e imagem daspessoas apontadas como envolvidas, que no so pass-veis de reparao fcil, oportuna ou completa.

  • Pode-se dizer que esse o preo da liberdade de im-prensa, advindo da esta indagao: prefervel suportaresses danos ou proibir a divulgao dessas notcias? Serque estamos dispostos a pagar o preo ou a suportar osreveses? Haver um antdoto contra eventuais evidentesdemasias, que a prpria imprensa muitas vezes reconheceem ato de elogivel mea culpa?

    A reputao das pessoas um patrimnio muito vulnervel,um acervo facilmente atingvel e prejudicado, sem que setorne possvel a reparao compatvel com a aspereza oua magnitude do dano. Como, ento, reparar os erros da im-prensa, to dramticos quanto os erros judicirios? Comoevitar a divulgao de qualquer notcia que depois se revelainfundada, se o prprio processo judicial, com todas assuas garantias e cautelas, no raro produz resultados in-consistentes?

    Na verdade, muitas vezes o desmentido dispara reaesainda mais desgastantes da reputao da pessoa atingida,o que faz com que muitas dessas vitimas prefiram calar-se, engolir a desfeita, amargar no ntimo o desgosto de tertido seu nome indevidamente envolvido em noticirio des-favorvel a promover a apurao de responsabilidades ouculpas.

    Alm disso, cabe assinalar a tendncia natural do leitor oudo ouvinte de qualquer m notcia - diria at mesmo queh uma tendncia do ser humano em sua generalidade -de dar maior crdito a quem acusa pela imprensa do que aquem por ela se defende. Essa constatao pode ser tidapor pacfica e o grande fantasma que assusta as pess-

  • oas alcanadas por divulgaes malvolas. Muitas vezes, ainterpretao que se faz de uma notcia verdadeira umasombra de desconfiana e suspeita que se estende sobreos fatos.

    O motivo dessa reao talvez esteja no lastro de desconfi-ana que serve de suporte descrena coletiva nas coisasdo bem e na maior fora ou na brilho que as coisas des-favorveis geralmente carregam, ou mesmo no peso dacarga de experincias negativas, frustraes e decepesque cercam muitos desses acontecimentos. Parece haveruma espcie de ansiedade coletiva em impingir saness pessoas notrias ou pblicas, muitas vezes sem maiorpreocupao com a consistncia ou a veracidade dos in-formes, e a divulgao pela imprensa serve muito bem aesse propsito.

    A preveno desses resultados indesejveis, claro, noest em proibir as informaes, mas em estabelecer critri-os para sua divulgao, como da indispensvel funojornalstica. A fixao de critrios mais confiveis na divul-gao de notcias espetaculosas - sem dvida atrativas quedeve ficar a cargo do prprio veculo em necessria ativid-ade de autocontrole, aumenta seguramente sua credibilid-ade, dando a necessria responsabilidade pelos excessosque forem cometidos, alm de preservar a dignidade daspessoas que podem ser atingidas pela divulgao apres-sada, maliciosa ou inverdica.

    A informao deve ser prestada com responsabilidade, ori-entada por princpios estabelecidos em cdigo de tica,como forma de provocar prvia reflexo, ainda que mnima,sobre o que vai ser divulgado. que h um interesse fixopelo deslize, pelo inusitado, pelo escndalo, pela acusao,e quanto mais notria for a pessoa visada, quanto mais im-

  • portante for sua figura, maior ser esse interesse. Ser issonatural e prprio do ser humano?

    O certo que, quando se divulga um escndalo, qualquerque seja, quase todos os leitores ou ouvintes creem naveracidade da notcia, mas, quando se divulga seu desmen-tido - ainda que revestido da mesma espetaculosidade sopoucos, muito poucos os que o leem e, dentre eles, menorainda o nmero dos que pem f em sua verso; as ex-plicaes no merecem crdito, mas as invectivas so tidaspor verdadeiras.

    Em face disso, surge a seguinte indagao: qual deve sera reao de um juiz diante da solicitao jornalstica sobredetalhes de algum processo que esteja submetido suaapreciao? Creio que o magistrado no deve recusar-sea atender o jornalista e a passar-lhe as informaes queforem solicitadas. Se no houver lanado deciso no pro-cesso, deve informar claramente a ele essa circunstn-cia e explicar que no lhe lcito antecipar pela imprensauma soluo que ainda no est formatada. Na maioriados casos, o jornalista entender essa limitao funcionale respeitar a tica do magistrado do mesmo modo comorespeita a prpria tica. Se j tiver proferido deciso nosautos, poder entregar ao agente da imprensa uma cpiade sua manifestao escrita se o feito no correr em se-gredo de justia, dando explicaes sobre o caso, visto quea linguagem jurdica est repleta de tecnicismo, que carecede elucidao.

    Como me observou um querido amigo jornalista, os meiosde comunicao esto em permanente busca de fatos, in-formaes, notcias. Nos ltimos anos, em especial, temsido crescente o interesse por informaes oriundas do

  • Poder Judicirio, uma vez que elas interferem diretamenteno dia a dia das pessoas.

    O juiz precisa estar preparado para manter contato diretocom jornalistas, cujas caractersticas profissionais sobastante incomuns, devendo o jornalista ser visto como umpblico em si mesmo, com significado duplo: ao mesmotempo em que fim, tambm meio para atingir os demaispblicos. Em geral, ele est sempre pressionado pelotempo, pois o que no conseguir apurar e publicarem umdado momento acaba sendo superado pelos novos aconte-cimentos ou pela publicao de um veculo concorrente. um profissional que, como outro qualquer, tem obrigaese prazos a cumprir e, portanto, merece respeito por seu tra-balho. Por isso mesmo, indispensvel atend-lo; fugir docontato a alternativa menos aconselhvel, podendo impli-car a perda de um espao para divulgao ou, pior, o riscode no se veicular o ngulo da instituio em uma crise quea envolva.

    Ademais, sempre bom no perder de vista que o nicofato que no chegar ao conhecimento da imprensa o fatono ocorrido.

    Por fim, todas as informaes devem ser prestadas, salvoas protegidas por determinao legal, pois, pela crena quetenho, quanto mais o Judicirio for conhecido, mais sercompreendido e menos ser criticado.

  • 8. O JUIZ E AS RELAES COM OS COLEGAS

    O propsito desta carta me d o ensejo de refletir sobre a amizade,essa indefinvel sensao de segurana que nos acomete quando es-tamos na companhia de pessoas por quem temos afeio. Quem podeviver feliz sem a companhia dos amigos? Certamente essa indagaotem como resposta: ningum, a no ser os eremitas. Mas ns, os ma-gistrados, estamos longe de ter a vocao para o isolamento; muitopelo contrrio, nossa atividade exige de ns a convivncia como fat-or de desenvolvimento das faculdades de nosso intelecto, o que s seconsegue na proximidade com nossos semelhantes. Alis, de que va-leriam as virtudes intelectuais se no servissem para sedimentar asconquistas da convivncia cordial entre os homens?

    muito comum - e penso que nisso h grande veracidade - comparar-se um verdadeiro amigo a um irmo, e at se diz q