Cartas aos meus amigos

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1. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual EXPLICAO Estas Cartas aos meus amigos, que hoje se apresentam como livro, foram publicadas separadamente medida que o autor as foi produzindo. Desde a primeira, escrita a 21/02/91, at dcima e ltima, redigida a 15/12/93, passaram quase trs anos. Nesse lapso de tempo, ocorreram transformaes globais importantes em quase todos os campos da actividade humana. Se a velocidade de mudana continua a incrementar-se, como sucedeu nesse perodo, um leitor das prximas dcadas dificilmente entender o contexto mundial a que o autor faz continuamente referncia e, por conseguinte, no apreender muitas das ideias que se expressam nestes escritos. Por isso, haveria que recomendar aos hipotticos leitores do futuro que tivessem mo uma resenha dos acontecimentos verificados entre 1991 e 1994; haveria que sugerir-lhes que obtivessem uma compreenso ampla do desenvolvimento econmico e tecnolgico da poca, das fomes e dos conflitos, da publicidade e da moda. Seria necessrio pedir-lhes que escutassem a msica; vissem as imagens arquitectnicas e urbansticas; observassem as concentraes populacionais das grandes cidades, as migraes, a decomposio ecolgica e o modo de vida daquele curioso momento histrico. Sobretudo haveria que rogar-lhes que tentassem penetrar nos ditos e dizeres daqueles formadores de opinio: dos filsofos, socilogos e psiclogos dessa etapa cruel e estpida. Ainda que nestas Cartas se fale de certo presente, indubitvel que foram redigidas com o olhar posto no futuro e creio que somente dali podero ser confirmadas ou refutadas. Nesta obra no existe um plano geral, mas antes uma srie de exposies ocasionais que admitem uma leitura sem sequncia. No entanto, poder-se-ia tentar a seguinte classificao: A. - As trs primeiras cartas pem nfase nas experincias que cabem ao indivduo viver no meio de uma situao global cada dia mais complicada. B. - Na quarta, apresenta-se a estrutura geral das ideias em que se baseiam todas as cartas. C. - Nas seguintes, esboa-se o pensamento poltico- social do autor. D. - A dcima apresenta directrizes de aco pontual tendo em conta o processo mundial. Passo agora a destacar alguns temas tratados na obra. Primeira carta: a situao que nos cabe viver. A desintegrao das instituies e a crise de solidariedade. Os novos tipos de sensibilidade e comportamento que se perfilam no mundo de hoje. Os critrios de aco. Segunda: os factores de mudana do mundo actual e as posturas que habitualmente se assumem perante essa mudana. Terceira: Caractersticas da mudana e da crise em relao ao meio imediato em que vivemos. Quarta: fundamento das opinies vertidas nas Cartas sobre as questes mais gerais da vida humana, as suas necessidades e os seus projectos bsicos. O mundo natural e social. A concentrao de poder, a violncia e o Estado. Quinta: a liberdade humana, a inteno e a aco. O sentido tico da prtica social e da militncia; os seus defeitos mais habituais. Sexta: exposio do iderio do Humanismo. Stima: a revoluo social. Oitava: as foras armadas. Nona: os direitos humanos. Dcima: a desestruturao geral. A aplicao da compreenso global aco mnima concreta. A quarta carta, de capital importncia na justificao ideolgica de toda a obra, pode ser aprofundada com a leitura de outro trabalho do autor, Contribuies ao Pensamento (particularmente no ensaio titulado Discusses Historiolgicas) e, desde logo, com a conferncia A Crise da Civilizao e do Humanismo (Academia de Administrao de Moscovo, 18/06/92). Na sexta carta, expem-se as ideias do humanismo contemporneo. A condensao conceitual deste escrito faz recordar certas produes polticas e culturais das quais temos exemplo nos manifestos de meados do sculo XIX e XX, como acontece com o Manifesto 1 2. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Comunista e o Manifesto Surrealista. O uso da palavra Documento em vez de Manifesto deve- se a uma cuidadosa escolha para se pr distncia do naturalismo expresso no Humanist Manifesto de 1933, inspirado por Dewey, e tambm do social-liberalismo do Humanist Manifesto II de 1974, subscrito por Sakharov e impregnado fortemente pelo pensamento de Lamont. Ainda que se notem coincidncias com este segundo manifesto no que respeita necessidade de uma planificao econmica e ecolgica que no destrua as liberdades pessoais, as diferenas quanto a viso poltica e concepo do ser humano so radicais. Esta carta, extremamente breve em relao quantidade de matrias que trata, exige algumas consideraes. O autor reconhece os contributos das diferentes culturas na trajectria do humanismo, como claramente se observa no pensamento judeu, rabe e oriental. Nesse sentido, o Documento no pode ser encerrado na tradio ciceroniana como amide aconteceu com os humanistas ocidentais. No seu reconhecimento ao humanismo histrico, o autor resgata temas j expressos no sculo XII. Refiro-me aos poetas goliardos que, como Hugo de Orlees e Pedro de Blois, acabaram por compr o clebre In terra sumus, do Codex Buranus (o cdigo de Beuern, conhecido em latim como Carmina Burana). Silo no os cita directamente, mas volta s suas palavras. Eis a grande verdade universal: o dinheiro tudo. O dinheiro governo, lei, poder. basicamente subsistncia. Mas, alm disso, a Arte, a Filosofia e a Religio. Nada se faz sem dinheiro; nada se pode sem dinheiro. No h relaes pessoais sem dinheiro. No h intimidade sem dinheiro e mesmo a solido repousada depende do dinheiro. Como no reconhecer a reflexo do In Terra sumus, mantm o abade o Dinheiro na sua cela prisioneiro, quando se diz: ... e mesmo a solido repousada depende do dinheiro. Ou ento, O Dinheiro honra recebe e sem ele ningum amado, e aqui: No h relaes pessoais sem dinheiro. No h intimidade sem dinheiro. A generalizao do poeta goliardo: O Dinheiro, e isto certo, faz com que o tonto parea eloquente, aparece na carta como: Mas, alm disso, a Arte, a Filsofia e a Religio. E sobre esta ltima diz-se no poema: O Dinheiro adorado porque faz milagres... faz o surdo ouvir e o coxo saltar, etc. Nesse poema do Codex Buranus, que Silo d por conhecido, ficam implcitos os antecedentes que depois vo inspirar os humanistas do sculo XVI, particularmente Erasmo e Rabelais. A carta que estamos a comentar apresenta o iderio do humanismo contemporneo, mas para dar uma ideia mais acabada do tema nada melhor do que citar aqui alguns pargrafos que o autor exps na sua conferncia Viso Actual do Humanismo (Universidade Autnoma de Madrid, 16/04/93). ... Duas so as acepes que se costumam atribur palavra Humanismo. Fala-se de Humanismo para indicar qualquer tendncia de pensamento que afirme o valor e a dignidade do ser humano. Com este significado, pode-se interpretar o Humanismo dos modos mais diversos e contrastantes. No seu significado mais limitado, mas colocando-o numa perspectiva histrica precisa, o conceito de Humanismo usado para indicar esse processo de transformao que se iniciou entre o final do sculo XIV e o comeo do XV e que, no sculo seguinte, com o nome de Renascimento, dominou a vida intelectual da Europa. Basta mencionar Erasmo; Giordano Bruno; Galileu; Nicolau de Cusa; Thomas More; Juan Vives e Bouill para compreender a diversidade e extenso do humanismo histrico. A sua influncia prolongou-se a todo o sculo XVII e grande parte do XVIII, desembocando nas revolues que abriram as portas da Idade Contempornea. Esta corrente pareceu apagar-se lentamente at que a meados deste sculo ps-se novamente em movimento no debate entre pensadores preocupados com as questes sociais e polticas. Os aspectos fundamentais do humanismo histrico foram, aproximadamente, os seguintes: 1 - A reaco contra o modo de vida e os valores medievais. Assim comeou um forte reconhecimento de outras culturas, particularmente da greco-romana na arte, na cincia e na filosofia. 2 - A proposta de uma nova imagem do ser humano, do qual se exaltam a sua personalidade e a sua aco transformadora. 3 - Uma nova atitude relativamente natureza, qual se aceita como ambiente do Homem e j no como um sub-mundo cheio de tentaes e castigos. 4 - O interesse pela experimentao e investigao do mundo circundante, como uma tendncia a procurar explicaes naturais sem necessidade de referncias ao sobrenatural. Estes quatro aspectos do humanismo histrico convergem para um mesmo objectivo: fazer surgir a 2 3. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual confiana no ser humano e na sua criatividade e considerar o mundo como reino do Homem, reino que este pode dominar mediante o conhecimento das cincias. A partir desta nova perspectiva expressa-se a necessidade de construir uma nova viso do universo e da Histria. De igual maneira, as novas concepes do movimento humanista levam redefinio da questo religiosa tanto nas suas estruturas dogmticas e litrgicas como nas organizativas, que, naquele tempo, impregnam as estruturas sociais medievais. O Humanismo, em correlao com a modificao das foras econmicas e sociais da poca, representa um revolucionarismo cada vez mais consciente e cada vez mais orientado para a discusso da ordem estabelecida. Mas a Reforma no mundo alemo e a Contra-reforma no mundo latino tratam de travar as novas ideias repropondo autoritariamente a viso crist tradicional. A crise passa da Igreja s estruturas estatais. Finalmente, o imprio e a monarquia por direito divino so eliminados merc das revolues dos finais do sculo XVIII e XIX. Porm, depois da Revoluo francesa e das guerras da independncia americanas, o Humanismo praticamente desapareceu pese embora continuar como pano de fundo social de ideais e aspiraes que alentam transformaes econmicas, polticas e cientficas. O Humanismo retrocedeu perante concepes e prticas que se instalam at terminar o Colonialismo, a Segunda Guerra Mundial e o alinhamento bipolar do planeta. Nesta situao, reabre-se o debate sobre o significado do ser humano e da natureza, sobre a justificao das estruturas econmicas e polticas, sobre a orientao da Cincia e da tecnologia e, em geral, sobre a direco dos acontecimentos histricos. So os filsofos da Existncia que do os primeiros sinais: Heidegger, para desqualificar o Humanismo como uma metafsica mais (na sua Carta sobre o Humanismo); Sartre, para defend-lo (na sua conferncia O Existencialismo um Humanismo); Luypen, para precisar o enquadramento terico (em A Fenomenologia um Humanismo). Por outro lado, Althusser, para erguer uma postura Antihumanista (em Para Marx) e Maritain, para apropriar-se da sua anttese a partir do Cristianismo (no seu Humanismo Integral), fazem alguns esforos meritrios. Depois de percorrido este longo caminho e das ltimas discusses no campo das ideias, fica claro que o Humanismo deve definir a sua posio actual no s enquanto concepo terica como tambm enquanto actividade e prtica social. O estado da questo humanista deve ser perspectivado com referncia s condies em que o ser humano vive. Essas condies no so abstractas Por conseguinte, no legtimo derivar o Humanismo de uma teoria sobre a Natureza, ou uma teoria sobre a Histria, ou uma f sobre Deus. A condio humana tal que o encontro imediato com a dor e com a necessidade de super-la ineludvel. Tal condio, comum a tantas outras espcies, encontra na humana a necessidade adicional de prever no futuro como superar a dor e conseguir o prazer. A sua previso do futuro apoia-se na experincia passada e na inteno de melhorar a sua situao actual. O seu trabalho, acumulado em produes sociais, passa e transforma-se de gerao em gerao em luta contnua pela superao das condies naturais e sociais em que vive. Por isso, o Humanismo define o ser humano como ser histrico e com um modo de aco social capaz de transformar o mundo e a sua prpria natureza. Este ponto de capital importncia porque, ao aceit-lo, no se poder depois afirmar um direito natural, uma propriedade natural, instituies naturais ou, por ltimo, um tipo de ser humano no futuro tal qual hoje, como se estivesse terminado para sempre. O antigo tema da relao do homem com a Natureza ganha novamente importncia. Ao retom-lo, descobrimos esse grande paradoxo em que o ser humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo tempo que notamos nele uma constante: a sua historicidade. por isso que, esticando os termos, pode dizer-se que a natureza do Homem a sua Histria, a sua Histria social. Por conseguinte, cada ser humano que nasce no um primeiro exemplar equipado geneticamente para responder ao seu meio, mas sim um ser histrico que desenvolve a sua experincia pessoal numa paisagem social, numa paisagem humana. 3 4. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Eis que neste mundo social, a inteno comum de superar a dor negada pela inteno de outros seres humanos. Estamos a dizer que uns homens naturalizam outros ao negar a sua inteno, convertem-nos em objectos de uso. Assim, a tragdia de estar submetido a condies fsicas naturais estimula o trabalho social e a cincia para novas realizaes que superem essas condies, mas a tragdia de estar submetido a condies sociais de desigualdade e injustia estimula o ser humano rebelio contra essa situao em que se nota no o jogo de foras cegas, mas sim o jogo de outras intenes humanas. Essas intenes humanas, que discriminam uns e outros, so questionadas num campo muito diferente ao da tragdia natural em que no existe uma inteno. por isso que existe sempre em toda a discriminao um esforo monstruoso para estabelecer que as diferenas entre os seres humanos se devem natureza, seja ela fsica ou social, a qual define o seu jogo de foras sem que intervenha a inteno. Estabelecer-se-o diferenas raciais, sexuais e econmicas, justificando-as com leis genticas ou de mercado, mas em todos os casos estar-se- a operar com a distorso, a falsidade e a m f. As duas ideias bsicas expostas anteriormente: em primeiro lugar, a da condio humana submetida dor com o seu impulso por super-la e, em segundo lugar, a definio do ser humano histrico e social, centram o estado da questo para os humanistas de hoje. No Documento fundacional do Movimento Humanista declara-se que h-de passar-se da Pr-Histria verdadeira Histria humana logo que se elimine a violenta apropriao animal de uns seres humanos por outros. Entretanto, no se poder partir de outro valor central seno do ser humano pleno nas suas realizaes e na sua liberdade. A proclamao Nada por cima do ser humano e nenhum ser humano por debaixo de outro, sintetiza tudo isto. Se se pe como valor central Deus, o Estado, o Dinheiro ou qualquer outra entidade subordina-se o ser humano, criando condies para o seu ulterior controlo ou sacrifcio. Os humanistas tm claro este ponto. Os humanistas so ateus ou crentes, mas no partem do atesmo ou da f para fundamentar a sua viso do mundo e a sua aco; partem do ser humano e das suas necessidades imediatas. Os humanistas questionam o problema de fundo: saber se queremos viver e decidir em que condies queremos faz-lo. Todas as formas de violncia fsica, econmica, racial, religiosa, sexual e ideolgica, merc das quais se tem travado o progresso humano, repugnam aos humanistas. Toda a forma de discriminao, manifesta ou larvar, motivo de denncia para os humanistas. Assim est traada a linha divisria entre o Humanismo e o Antihumanismo. O Humanismo pe frente a questo do trabalho face ao grande capital; a questo da democracia real face democracia formal; a questo da descentralizao face centralizao; a questo da antidiscriminao face discriminao; a questo da liberdade face opresso; a questo do sentido da vida face resignao, a cumplicidade e o absurdo. Porque o Humanismo cr na liberdade de escolha possui uma tica vlida, porque cr na inteno distingue entre o erro e a m f. Deste modo, os humanistas definem posies. No nos sentimos sados do nada, mas sim tributrios de um longo processo e esforo colectivo. Comprometemo-nos com o momento actual e concebemos uma longa luta rumo ao futuro. Afirmamos a diversidade em franca oposio regimentao que at agora tem sido imposta e apoiada com explicaes de que o diverso pe em dialctica os elementos de um sistema, de maneira que ao respeitar-se toda a particularidade d-se via livre a foras centrfugas e desintegradoras. Os humanistas pensam o contrrio e destacam que, precisamente neste momento, o avassalamento da diversidade leva exploso das estruturas rgidas. por isso que enfatizamos na direco convergente, na inteno convergente e opomo-nos ideia e prtica de eliminao de supostas condies dialcticas num conjunto dado. Termina aqui a citao da conferncia de Silo. A dcima e ltima carta estabelece os limites da desestruturao e destaca trs campos, entre tantos outros possveis, nos quais esse fenmeno ganha especial importncia: o poltico, o religioso e o geracional, advertindo sobre o surgimento de neo-irracionalismos fascistas, 4 5. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual autoritrios e violentistas. Para ilustrar o tema da compreenso global e da aplicao da aco ao ponto mnimo do meio imediato, o autor d esse fenomenal salto de escala com o qual nos faz encontrar o vizinho, o companheiro de trabalho, o amigo... Fica clara a proposta de que todo o militante deve esquecer a miragem do poder poltico superestrutural porque esse poder est ferido de morte s mos da desestruturao. De nada valer futuramente o Presidente, o Primeiro- Ministro, o Senador, o Deputado. Os partidos polticos, os grmios e os sindicatos iro afastando- se gradualmente das suas bases humanas. O Estado sofrer mil transformaes e unicamente as grandes corporaes e o capital financeiro internacional iro concentrando a capacidade decisria mundial at sobrevir o colapso do Paraestado. De que poderia valer uma militncia que tratasse de ocupar as cascas vazias da democracia formal? Decididamente, a aco deve delinear-se no meio mnimo imediato e unicamente a partir da, com base no conflito concreto, deve ser construda a representatividade real. Porm, os problemas existenciais da base social no se expressam exclusivamente como dificuldades econmicas e polticas, portanto, um partido que leve adiante o iderio humanista e que instrumentalmente ocupe espaos parlamentares, tem significao institucional mas no pode dar resposta s necessidades das pessoas. O novo poder construir-se- a partir da base social como um Movimento amplo, descentralizado e federativo. A pergunta que todo o militante se deve fazer no quem ser primeiro-ministro ou deputado, mas sim como formaremos os nossos centros de comunicao directa, as nossas redes de conselhos vicinais; como daremos participao a todas as organizaes mnimas de base nas quais se expressa o trabalho, o desporto, a arte, a cultura e a religiosidade popular? Esse Movimento no pode ser pensado em termos polticos formais, mas sim em termos de diversidade convergente. Tambm no se deve conceber o crescimento desse Movimento dentro dos moldes de um gradualismo que v ganhando progressivamente espao e estratos sociais. Deve ser delineado em termos de efeito demonstrao, tpico de uma sociedade planetria multiconectada apta para reproduzir e adaptar o xito de um modelo em colectividades afastadas e diferentes entre si. Esta ltima carta, em suma, esboa um tipo de organizao mnima e uma estratgia de aco conforme situao actual. Detive-me somente nas cartas quatro, seis e dez. Creio que, diferena das restantes, estas requeriam alguma recomendao, alguma citao e algum comentrio complementar. J. Valinsky 5 6. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Desde h bastante tempo recebo correspondncia de diferentes pases pedindo explicao ou ampliaes sobre temas que aparecem nos meus livros. Em geral, o que se reclama clarificao sobre assuntos to concretos como a violncia, a poltica, a economia, a ecologia, as relaes sociais e as inter-pessoais. Como se v as preocupaes so muitas e diversas e claro que nesses campos tero que ser os especialistas a dar resposta. evidente que esse no o meu caso. At onde seja possvel, tratarei de no repetir o j escrito noutros lugares e oxal possa esboar em poucas linhas a situao geral em que nos cabe viver e as tendncias mais imediatas que se perfilam. Noutras pocas, ter-se-ia tomado como fio condutor deste tipo de descrio uma certa ideia do "mau estar da cultura", mas hoje, diversamente, falaremos da veloz mudana que se est a produzir nas economias, nos costumes, nas ideologias e nas crenas, tratando de rastrear uma certa desorientao que parece asfixiar os indivduos e os povos. Antes de entrar no tema, gostaria de fazer duas advertncias: uma referida ao mundo que j era e que parece ser considerado neste escrito com uma certa nostalgia, e outra que aponta ao modo de expr, no qual se poderia ver uma total ausncia de matizes, levando as coisas a um primitivismo de questionamento que no o modo como, na realidade, formulam aqueles que ns criticamos. Direi que quem como ns cr na evoluo humana no est deprimido pelas mudanas, antes deseja, na verdade, um incremento na acelerao dos acontecimentos, enquanto trata de adaptar-se crescentemente aos novos tempos. Quanto ao modo de expressar a argumentao dos defensores da "nova ordem", posso comentar o seguinte: ao falar deles no deixaram de ressoar em mim os acordes daquelas diametrais fices literrias, 1984 de Orwell e O Admirvel Mundo Novo de Huxley. Esses magnficos escritores vaticinaram um mundo futuro no qual por meios violentos ou persuasivos, o ser humano acabava submergido e robotizado. Creio que ambos atriburam demasiada inteligncia aos "maus" e demasiada estupidez aos "bons" dos seus romances, movidos talvez por um pessimismo de fundo que no cabe interpretar agora. Os "maus" de hoje so pessoas com muitos problemas e uma grande avidez, mas, em todo o caso, incompetentes para orientar processos histricos que claramente escapam sua vontade e capacidade de planificao. Em geral, trata-se de gente pouco estudiosa e de tcnicos ao seu servio que dispem de recursos parcelados e pateticamente insuficientes. Assim, pedirei que no tomem muito a srio alguns pargrafos, que so, na realidade, como um divertimento, quando pomos algumas palavras nas suas bocas que no dizem, mesmo que as suas intenes vo nessa direco. Creio que h que considerar estas coisas excluindo toda a solenidade (afim poca que morre) e, ao invs, question-las com o bom humor e o esprito de brincadeira que campeia nas cartas intercambiadas pelas pessoas verdadeiramente amigas. 1. A situao actual Desde o comeo da sua Histria a humanidade evolui trabalhando para conseguir uma vida melhor. Apesar dos avanos, hoje utiliza-se o poder e a fora econmica e tecnolgica para assassinar, empobrecer e oprimir diversas regies do mundo, destruindo, alm do mais, o futuro das novas geraes e o equilbrio geral da vida no planeta. Uma pequena percentagem da humanidade possui grandes riquezas, enquanto as maiorias padecem de srias necessidades. Nalguns lugares, h trabalho e remunerao suficiente, mas noutros a situao desastrosa. Em todas os lados, os sectores mais humildes sofrem horrores para no morrer de fome. Hoje, 6 7. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual minimamente, e pelo simples facto de ter nascido num meio social, todo o ser humano requer adequada alimentao, sade, habitao, educao, vesturio, servios... e chegando a certa idade necessita assegurar o seu futuro pelo tempo de vida que lhe reste. Com todo o direito as pessoas querem isso para elas e para os seus filhos, ambicionando que estes possam viver melhor. No entanto, hoje essas aspiraes de milhares de milhes de pessoas no so satisfeitas. 2. A alternativa de um mundo melhor Tratando de moderar os problemas comentados fizeram-se diferentes experincias econmicas com resultados dspares. Actualmente, tende-se a aplicar um sistema em que supostas leis de mercado regularo automaticamente o progresso social, superando o desastre produzido pelas anteriores economias dirigistas. Segundo este esquema, as guerras, a violncia, a opresso, a desigualdade, a pobreza e a ignorncia, iro retrocedendo sem se produzirem sobressaltos de maior. Os pases integrar-se-o em mercados regionais at se chegar a uma sociedade mundial, sem nenhum tipo de barreiras. E assim como os sectores mais pobres dos pontos desenvolvidos iro elevando o seu nvel de vida, as regies menos avanadas recebero a influncia do progresso. As maiorias adaptar-se-o ao novo esquema que tcnicos capacitados, ou homens de negcios, estaro em condies de pr a funcionar. Se algo falha, no ser pelas naturais leis econmicas, mas sim por deficincias desses especialistas que, como sucede numa empresa, tero de ser substitudos todas as vezes que seja necessrio. Por outro lado, nessa sociedade "livre", ser o pblico que decidir democraticamente entre diferentes opes de um mesmo sistema. 3. A evoluo social Dada a situao actual e a alternativa que se apresenta para a consecuo de um mundo melhor, cabe reflectir brevemente em torno dessa possibilidade. Com efeito, realizaram-se numerosas provas econmicas que trouxeram resultados dspares e, face a isso, diz-se-nos que a nova experincia a nica soluo para os problemas fundamentais. No entanto, no chegamos a compreender alguns aspectos dessa proposta. Em primeiro lugar, aparece o tema das leis econmicas. Ao que parece, existiriam certos mecanismos, como na natureza, que ao jogar livremente regulariam a evoluo social. Temos dificuldades em aceitar que qualquer processo humano e, desde logo o processo econmico, seja da mesma ordem que os fenmenos naturais. Cremos, ao invs, que as actividades humanas so no-naturais, so intencionais, sociais e histricas; fenmenos estes que no existem nem na natureza em geral nem nas espcies animais. Tratando-se, pois, de intenes e de interesses, tambm no temos razo para supr que os sectores que detm o bem-estar, estejam preocupados com a superao das dificuldades de outros menos favorecidos. Em segundo lugar, a explicao que se nos d relativamente a que sempre houve grandes diferenas econmicas entre uns poucos e as maiorias e que, no obstante isto, as sociedades progrediram, parece-nos insuficiente. A Histria mostra-nos que os povos avanaram, reclamando os seus direitos frente aos poderes estabelecidos. O progresso social no se produziu porque a riqueza acumulada por um sector tenha depois transbordado automaticamente "para baixo". Em terceiro lugar, apresentar como modelo determinados pases que, operando com essa suposta economia livre, hoje tm um bom nvel de vida, parece um excesso. Esses pases realizaram guerras de expanso sobre outros, impuseram o colonialismo, o neo-colonialismo e a partio de naes e regies; arrecadaram com base na discriminao e a violncia e, finalmente, absorveram mo-de-obra barata, ao mesmo tempo que impuseram termos de intercmbio desfavorveis para as economias mais dbeis. Poder argumentar-se que aqueles eram os procedimentos que se entendiam como "bons negcios". Mas se se afirma isso, no se poder sustentar que o desenvolvimento comentado seja independente de um tipo especial de relao com outros povos. Em quarto lugar, fala-se-nos do avano cientfico e tcnico e da iniciativa que se desenvolve numa economia "livre". Quanto ao avano cientfico e tcnico, de 7 8. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual saber que este opera desde que o homem inventou a moca, a alavanca, o fogo e assim seguindo, numa acumulao histrica que no parece ter-se ocupado muito das leis de mercado. Se, ao invs, se quer dizer que as economias abundantes sugam talentos, pagam equipamento e investigao e que, por ltimo, so motivadoras porque do uma melhor remunerao, diremos que isto assim desde pocas milenares e que to-pouco se deve a um tipo especial de economia, mas sim, simplesmente, a que nesse lugar existem recursos suficientes independentemente da origem de tal potencialidade econmica. Em quinto lugar, falta o expediente de explicar o progresso dessas comunidades pelo intangvel "dom" natural de especiais talentos, virtudes cvicas, laboriosidade, organizao e coisas semelhantes. Este j no um argumento, mas sim uma declarao devocional em que se escamoteia a realidade social e histrica que explica como se formaram esses povos. Desde logo, temos muito desconhecimento para compreender como que com semelhantes antecedentes histricos se poder sustentar este esquema no futuro imediato, mas isso faz parte de outra discusso: a discusso em torno de se existe realmente tal economia livre de mercado ou se se trata antes de proteccionismos e dirigismos encobertos que, de repente, abrem determinadas vlvulas, ali onde se sentem a dominar uma situao, e fecham outras em caso contrrio. Se isto assim, tudo o que se acrescente como uma promessa de avano ficar somente reservado exploso e difuso da cincia e da tecnologia, independentemente do suposto automatismo das leis econmicas. 4. As futuras experincias Como aconteceu at hoje, quando seja necessrio, substituir-se- o esquema vigente por outro que "corrija" os defeitos do modelo anterior. Desse modo e passo a passo, continuar a concentrar-se a riqueza nas mos de uma minoria cada vez mais poderosa. claro que a evoluo no se deter, nem to-pouco as legtimas aspiraes dos povos. Assim sendo, em pouco tempo sero varridas as ltimas ingenuidades que asseguram o fim das ideologias, as confrontaes, as guerras, as crises econmicas e as desordens sociais. Desde logo, tanto as solues como os conflitos se mundializaro, porque j no restaro pontos desconectados entre si. Tambm h algo certo: nem os esquemas de dominao actual podero sustentar-se nem to- pouco as frmulas de luta que tiveram vigncia at ao momento actual. 5. A mudana e as relaes entre as pessoas Tanto a regionalizao dos mercados como a reivindicao localista e das etnias apontam desintegrao do Estado nacional. A exploso demogrfica nas regies pobres leva a migrao ao limite do controlo. A grande famlia camponesa desagrega-se, deslocando a gerao jovem para a aglomerao urbana. A familia urbana industrial e ps-industrial reduz-se ao mnimo, enquanto as macro-cidades absorvem contigentes humanos formados noutras paisagens culturais. As crises econmicas e as reconverses dos modelos produtivos fazem com que a discriminao irrompa novamente. Entretanto, a acelerao tecnolgica e a produo massiva deixam obsoletos os produtos no instante de entrar no circuito de consumo. A substituio de objectos corresponde-se com a instabilidade e a desregulao na relao humana. A antiga solidariedade, herdeira do que em algum momento se chamou "fraternidade", acabou por perder significado. Os companheiros de trabalho, de estudo e de desporto, e as amizades de outras pocas, tomam o carcter de competidores; os membros do casal lutam pelo domnio, calculando, desde o comeo dessa relao, como ser a quota de benefcio mantendo-se unidos, ou como ser essa quota se se separarem. Nunca antes o mundo esteve to comunicado, porm os indivduos padecem cada dia mais de uma angustiosa incomunicao. Nunca os centros urbanos estiveram mais povoados, contudo as pessoas falam de "solido". Nunca as pessoas necessitaram mais do que agora do calor humano, no entanto qualquer aproximao converte em suspeita a amabilidade e a ajuda. 8 9. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a todo o infeliz que tem algo importante a perder e que esse "algo" etreo cobiado pelo resto da humanidade! Nessas condies, pode- se-lhe contar este conto como se se tratasse da mais autntica realidade... 6. Um conto para aspirantes a executivos "A sociedade que se est a pr em marcha trar finalmente a abundncia. Mas, parte os grandes benefcios objectivos, ocorrer uma libertao subjectiva da humanidade. A antiga solidariedade, prpria da pobreza, no ser necessria. J muitos concordam que com dinheiro, ou algo equivalente, se solucionaro quase todos os problemas; por conseguinte, os esforos, pensamentos e sonhos, estaro lanados nessa direco. Com o dinheiro comprar-se- boa comida, boa habitao, viagens, diverses, brinquedos tecnolgicos e pessoas que faam o que se quiser. Haver um amor eficiente, uma arte eficiente e uns psiclogos eficientes que repararo os problemas pessoais que pudessem restar, os quais, mais adiante, a nova qumica cerebral e a engenharia gentica acabaro por resolver. "Nessa sociedade de abundncia, diminuir o suicdio, o alcoolismo, a toxicodependncia, a insegurana citadina e a delinquncia, como hoje j mostram os pases economicamente mais desenvolvidos (?). Tambm desaparecer a discriminao e aumentar a comunicao entre as pessoas. Ningum estar pungido por pensar desnecessariamente no sentido da vida, na solido, na doena, na velhice e na morte, porque com adequados cursos e alguma ajuda teraputica conseguir-se- bloquear esses reflexos que tanto detiveram o rendimento e a eficincia das sociedades. Todos confiaro em todos porque a concorrncia no trabalho, nos estudos e no casal, acabar por estabelecer relaes maduras. "Finalmente, as ideologias tero desaparecido e j no se utilizaro para lavar o crebro das pessoas. Certamente que ningum impedir o protesto ou inconformidade com temas menores, sempre que para se expressarem paguem aos canais adequados. Sem confundir a liberdade com a libertinagem, os cidados reunir-se-o em nmeros pequenos (por razes sanitrias) e podero expressar-se em lugares abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou com publicidade que deslustre o "municpio", ou como se chame mais adiante ). "Mas o mais extraordinrio ocorrer quando j no se requeira controlo policial, pois cada cidado ser algum decidido que cuidar os outros das mentiras que algum terrorista ideolgico pudesse tratar de inculcar. Esses defensores tero tanta responsabilidade que acudiro pressurosos aos meios de comunicao, nos quais encontraro imediato acolhimento para alertar a populao; escrevero estudos brilhantes que sero publicados imediatamente e organizaro fruns, nos quais formadores de opinio de grande cultura esclarecero algum desprevenido que poderia ainda estar merc das foras obscuras do dirigismo econmico, do autoritarismo, da antidemocracia e do fanatismo religioso. Nem sequer ser necessrio perseguir os perturbadores, porque num sistema de difuso to eficiente ningum querer aproximar-se deles para no se contaminar. No pior dos casos, "desprogramar-se-o" com eficcia e eles agradecero publicamente a sua reinsero e o benefcio que lhes produzir reconhecer as bondades da liberdade. Por seu lado, aqueles esforados defensores, se que no esto enviados especificamente para cumprir essa importante misso, sero gente comum que poder sair assim do anonimato, ser reconhecida socialmente pela sua qualidade moral, assinar autgrafos e, como lgico, receber uma merecida retribuio. "A Empresa ser a grande famlia que favorecer a qualificao, as relaes e o lazer. A robtica ter suplantado o esforo fsico de outras pocas e trabalhar para a Empresa na prpria casa ser uma verdadeira realizao pessoal. 9 10. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual "Assim, a sociedade no necessitar de organizaes que no estejam incluidas na Empresa. O ser humano, que tanto lutou pelo seu bem-estar, ter finalmente chegado aos cus. Saltando de planeta em planeta ter descoberto a felicidade. Instalado a, ser um jovem competitivo, sedutor, aquisitivo, tiunfador, e pragmtico (sobretudo pragmtico)... executivo da Empresa!" 7. A Mudana Humana O mundo est a variar a grande velocidade e muitas coisas que at h pouco eram cridas cegamente j no se podem sustentar. A acelerao est a gerar instabilidade e desorientao em todas as sociedades, sejam estas pobres ou opulentas. Nesta mudana de situao, tanto as lideranas tradicionais e seus "formadores de opinio" como os antigos lutadores polticos e sociais deixam de ser referncia para as pessoas. No entanto, est a nascer uma sensibilidade que se corresponde com os novos tempos. uma sensibilidade que capta o mundo como uma globalidade e que se d conta de que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar acabam por implicar outras, ainda que se encontrem a muita distncia. As comunicaes, o intercmbio de bens e a veloz deslocao de grandes contingentes humanos de um ponto para outro, mostram esse processo de mundializao crescente. Tambm esto a surgir novos critrios de aco ao compreender-se a globalidade de muitos problemas, percebendo-se que a tarefa daqueles que querem um mundo melhor ser efectiva se se a faz crescer a partir do meio em que se tem alguma influncia. Ao contrrio de outras pocas, cheias de frases ocas com as quais se procurava reconhecimento externo, hoje comea-se a valorizar o trabalho humilde e sentido, mediante o qual no se pretende engrandecer a prpria figura, mas sim mudar-se a si mesmo e ajudar o meio imediato familiar, laboral e de relao a faz-lo. Os que gostam realmente das pessoas no desprezam essa tarefa sem estridncias, incompreensvel, ao invs, para qualquer oportunista formado na antiga paisagem dos lderes e da massa, paisagem na qual ele aprendeu a usar outros para ser catapultado para a cpula social. Quando algum comprova que o individualismo esquizofrnico j no tem sada e comunica abertamente a todos os seus conhecidos o que que pensa e o que que faz, sem o ridculo temor de no ser compreendido; quando se aproxima de outros; quando se interessa por cada um e no por uma massa annima; quando promove o intercmbio de ideias e a realizao de trabalhos em conjunto; quando claramente expe a necessidade de multiplicar essa tarefa de reconexo num tecido social destruido por outros; quando sente que mesmo a pessoa mais "insignificante" de superior qualidade humana que qualquer desalmado posto no cume da conjuntura epocal... Quando sucede tudo isto, porque no interior desse algum comea a falar novamente o Destino que tem movido os povos na sua melhor direco evolutiva; esse Destino tantas vezes desviado e tantas vezes esquecido, mas sempre reencontrado nas encruzilhadas da histria. No s se vislumbra uma nova sensibilidade, um novo modo de aco, como tambm, alm disso, uma nova atitude moral e uma nova disposio tctica perante a vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima, diria que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde h trs milnios atrs, hoje experimentam como uma novidade a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um quer ser tratado. Acrescentaria que, quase como leis gerais de comportamento, hoje se aspira a: 1.- uma certa proporo, tratando de ordenar as coisas importantes da vida, levando-as em conjunto e evitando que algumas se adiantem e outras se atrasem excessivamente; 2.- uma certa adaptao crescente, actuando a favor da evoluo (no simplesmente da curta conjuntura) e no cooperando com as diferentes formas de involuo humana; 3.- uma certa oportunidade, retrocedendo diante de uma grande fora (no perante qualquer inconveniente) e avanando na sua declinao; 4.- uma certa coerncia, acumulando aces que do a sensao de unidade e acordo consigo mesmo, e pondo de lado aquelas que produzem contradio e que se registam como desacordo entre o que se pensa, sente e faz. No creio que seja preciso explicar por que digo que se est "a sentir a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como cada um quer ser tratado", face objeco que levanta o facto de que assim no se actua nestes 10 11. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual momentos. Tambm no creio que me deva alongar em explicaes acerca do que entendo por "evoluo" ou por "adaptao crescente" e no simplesmente por adaptao de permanncia. Quanto aos parmetros do retroceder ou avanar diante de grandes ou declinantes foras, sem dvida que haveria que contar com indicadores ajustados que no mencionei. Por ltimo, isto de acumular aces unitivas perante as situaes contraditrias imediatas que nos cabe viver ou, em sentido oposto pr de lado a contradio, a olhos vistos aparece como uma dificuldade. Isso certo, mas se revemos o comentado mais acima, ver-se- que mencionei todas estas coisas dentro do contexto de um tipo de comportamento ao qual hoje se comea a aspirar, bastante diferente do que se pretendia noutras pocas. Tratei de anotar algumas caractersticas especiais que se esto a apresentar, correspondentes a uma nova sensibilidade, uma nova forma de aco interpessoal e um novo tipo de comportamento pessoal que, parece-me, ultrapassaram a simples crtica de situao. Sabemos que a crtica sempre necessria, mas quanto mais necessrio fazer algo diferente daquilo que criticamos! Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 21/02/91. 11 12. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual SEGUNDA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Em carta anterior, referi-me situao que nos cabe viver e a certas tendncias que os acontecimentos mostram. Aproveitei para discutir algumas propostas que os defensores da economia de mercado anunciam como se se tratassem de condies ineludveis para todo o progresso social. Tambm destaquei a crescente deteriorao da solidariedade e a crise de referncias que se verifica neste momento. Por ltimo, esbocei algumas caractersticas positivas que se comeam a observar naquilo que chamei "uma nova sensibilidade, uma nova atitude moral e uma nova disposio tctica perante a vida". Alguns dos meus correspondentes fizeram-me notar o seu desacordo com o tom da carta, j que, segundo lhes pareceu, havia nela muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se permitir ironizar. Mas no dramatizemos! to inconsistente o sistema de provas que apresenta a ideologia do neoliberalismo, da economia social de mercado e da Nova Ordem Mundial, que a coisa no de modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer que tal ideologia est morta nos seus fundamentos desde h muito tempo e que em breve sobrevir a crise prtica, de superfcie, que a que finalmente percebem aqueles que confundem significado com expresso; contedo com forma; processo com conjuntura. Tal como as ideologias do fascismo e do socialismo real tinham morrido muito tempo antes de se ter produzido o seu descalabro prtico posterior, tambm o desastre do actual sistema s mais adiante surpreender os bem-pensantes. No isto muito ridculo? como ver muitas vezes um filme muito mau. Depois de tanta repetio, dedicamo-nos a esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens dos actores e nos efeitos especiais, enquanto, ao nosso lado, uma senhora se emociona por aquilo que v e que, para ela, a prpria realidade. Assim, digo em meu descargo que no zombei da enorme tragdia que a imposio deste sistema significa, mas sim das suas monstruosas pretenses e do seu grotesco final, final que j presencimos em muitos casos anteriores. Tambm recebi correspondncia a reclamar maior preciso na definio de atitudes que se deveria assumir perante o processo de mudana actual. Sobre isto, creio que ser melhor tratar de entender as posies que tomam distintos grupos e pessoas isoladas, antes de fazer recomendaes de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a apresentar as posturas mais populares, dando a minha opinio nos casos que me paream de maior interesse. 1. Algumas posturas face ao processo de mudana actual No lento progresso da humanidade foram-se acumulando factores at ao momento actual, em que a velocidade de mudana tecnolgica e econmica no coincide com a velocidade de mudana nas estruturas sociais e no comportamento humano. Este desfasamento tende a incrementar-se e a gerar crises pogressivas. Esse problema encarado de diferentes pontos de vista. H quem suponha que o desajuste se regular automaticamente e, portanto, recomenda que no se trate de orientar esse processo, que, alm do mais, seria impossvel de dirigir. Trata-se de uma tese mecanicista optimista. H outros que supem que se caminha para um ponto de exploso irremedivel. o caso dos mecanicistas pessimistas. Tambm aparecem as correntes morais que pretendem deter a mudana e, dentro do possvel, voltar a supostas fontes reconfortantes. Elas representam uma atitude anti-histrica. Mas tambm os cnicos, os esticos e os epicuristas contemporneos comeam a elevar as suas vozes. Uns, negando importncia e sentido a toda a aco; outros, enfrentando os factos com firmeza ainda que tudo saia mal. Finalmente, os terceiros, tratando de tirar partido da situao e pensando simplesmente no seu 12 13. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual hipottico bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos. Como nas pocas finais de civilizaes passadas, muita gente assume atitudes de salvao individual, supondo que no tem sentido nem possibilidade de xito qualquer tarefa que se empreenda em conjunto. Em todo o caso, o conjunto tem utilidade para a especulao estritamente pessoal e, por isso, os lderes empresariais, culturais ou polticos necessitam de manipular e melhorar a sua imagem tornando- se credveis, fazendo outros crer que eles pensam e actuam em funo dos demais. Claro que tal ocupao tem os seus dissabores, porque toda a gente conhece o truque e ningum acredita em ningum. Os antigos valores religiosos, patriticos, culturais, polticos e gremiais ficam submetidos ao dinheiro, num campo em que a solidariedade e, portanto, a oposio colectiva a esse esquema so varridas, ao mesmo tempo que o tecido social se descompe gradualmente. Depois, sobrevir outra etapa na qual o individualismo radical ser superado... mas esse um tema para mais adiante. Com a nossa paisagem de formao s costas e com as nossas crenas em crise, no estamos ainda em condies de admitir que se aproxima esse novo momento histrico. Hoje, detendo uma pequena parcela de poder ou dependendo absolutamente do poder de outros, todos nos encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem claramente vantagem quem melhor est instalado no sistema. 2. O individualismo, a fragmentao social e a concentrao de poder nas minorias Porm, o individualismo leva necessariamente luta pela supremacia do mais forte e procura do xito a qualquer preo. Tal postura comeou com uns poucos que respeitaram certas regras de jogo entre si face obedincia dos muitos. De qualquer maneira, essa etapa esgotar- se- num "todos contra todos" porque mais tarde ou mais cedo desequilibrar-se- o poder a favor do mais forte e o resto, apoiando-se entre si ou noutras faces, terminar por desarticular um sistema to frgil. Mas as minorias foram mudando com o desenvolvimento econmico e tecnolgico, aperfeioando os seus mtodos a tal ponto que, nalguns lugares em situao de abundncia, as grandes maiorias transferem o seu descontentamento para aspectos secundrios da situao em que tm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o nvel de vida global, as massas postergadas contentar-se-o esperando uma melhor situao no futuro, porque j no parece que venham a questionar o sistema, mas sim certos aspectos de urgncia. Tudo isso mostra uma viragem importante no comportamento social. Se isto assim, a militncia pela mudana ver-se- progressivamente afectada e as antigas foras polticas e sociais ficaro vazias de propostas; propagar-se- a fragmentao grupal e interpessoal e o isolamento individual ser medianamente suprido pelas estruturas produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob uma mesma direco. Nesse mundo paradoxal, terminar-se- de erradicar toda a centralizao e burocratismo, rompendo-se as anteriores estruturas de direco e deciso, mas a mencionada desregulao, descentralizao, liberalizao de mercados e actividades ser o campo mais adequado para que floresa uma concentrao como no houve em nenhuma poca anterior, porque a absoro do capital financeiro internacional continuar a crescer nas mos de uma banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo sofrer a classe poltica, ao ter que proclamar os novos valores que fazem o Estado perder poder, com o que o seu protagonismo se ver cada vez mais comprometido. Por alguma razo se vo substituindo desde h algum tempo palavras como "governo" por outras como "administrao", fazendo os "pblicos" (no os "povos") compreender que um pas uma empresa. Por outro lado, e at que se consolide um poder imperial mundial, podero ocorrer conflitos regionais como noutro tempo aconteceu entre pases. Que tais confrontaes se produzam no campo econmico ou se trasladem arena da guerra em reas restritas; que como consequncia aconteam desordens incoerentes e massivas; que caiam governos completos e acabem por se desintegrar pases e zonas, isso em nada afectar o processo de concentrao a que parece apontar este momento histrico. Localismos, lutas intertnicas, migraes e crises continuadas 13 14. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual no alteraro o quadro geral de concentrao de poder. E quando a recesso e o desemprego afectem tambm as populaes dos pases ricos, j ter passado a etapa de liquidao liberal e comearo as polticas de controlo, coaco e emergncia ao melhor estilo imperial... quem poder ento falar de economia de livre mercado e que importncia ter manter posturas baseadas no individualismo radical? Mas devo responder a outras inquietudes que se me fizeram chegar relativamente caracterizao da crise actual e das suas tendncias. 3. Caractersticas da crise Comentaremos a crise do Estado nacional, a crise de regionalizao e mundializao, e a crise da sociedade, do grupo e do individuo. No contexto de um processo de mundializao crescente acelera-se a informao e aumenta a deslocao de pessoas e bens. A tecnologia e o poder econmico em aumento concentram-se em empresas cada vez mais importantes. O mesmo fenmeno de acelerao no intercmbio choca com as limitaes e a lentido que impem antigas estruturas como o Estado nacional. O resultado que se tendem a apagar as fronteiras nacionais dentro de cada regio. Isto leva a que se deva homogeneizar a legislao dos pases, no s em matria de taxas aduaneiras e documentao pessoal como tambm naquilo que tem a ver com a adaptao dos seus sistemas produtivos. O regime laboral e de segurana social seguem na mesma direco. Contnuos acordos entre esses pases mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um executivo comum, daro maior eficcia e velocidade gesto dessa regio. A primitiva moeda nacional vai cedendo lugar a um tipo de signo de intercmbio regional que evita perdas e demoras em cada operao de converso. A crise do Estado nacional um facto observvel no s naqueles pases que tendem a incluir-se num mercado regional, mas tambm noutros cujas maltratadas economias mostram uma estagnao relativa importante. Por todos os lados, levantam-se vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a reforma desses esquemas. Em pontos onde um pas se configurou como resultado recente de parties e anexaes, ou como federao artificial, avivam-se antigos rancores e diferenas localistas, tnicas e religiosas. O Estado tradicional tem que enfrentar essa situao centrfuga por entre crescentes dificuldades econmicas que questionam precisamente a sua eficcia e legitimidade. Fenmenos desse tipo tendem a crescer no centro da Europa, no Leste e nos Balcs. Estas dificuldades tambm se agudizam no Mdio Oriente, Levante e Asia Menor. Na Africa, em vrios pases delimitados artificialmente, comeam a ser observados os mesmos sintomas. Acompanhando essa descomposio, comeam as migraes de povos em direco s fronteiras, pondo em perigo o equilbrio zonal. Bastar que acontea um desequilbrio importante na China para que mais de uma regio seja afectada directamente pelo fenmeno, considerando, alm disso a instabilidade actual da antiga Unio Sovitica e dos pases asiticos continentais. Entretanto, configuraram-se centros econmica e tecnolgicamente poderosos que assumem carcter regional: o Extremo Oriente liderado pelo Japo, Europa e Estados Unidos. A descolagem e a influncia dessas zonas mostra um aparente policentrismo, mas o desenrolar dos acontecimentos assinala que os Estados Unidos somam ao seu poder tecnolgico, econmico e poltico a sua fora militar, em condies de controlar as mais importantes reas de abastecimento. No processo de mundializao crescente, tende a levantar-se esta superpotncia como regedora do processo actual, em acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este , no fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que parece, no chegou ainda a poca da paz, ainda que se tenha dissipado, de momento, a ameaa de guerra mundial. Exploses localistas, tnicas e religiosas; desordens sociais; migraes e conflitos blicos em reas restritas, parecem ameaar a suposta estabilidade actual. Por outro lado, as reas postergadas afastam-se cada vez mais do crescimento das zonas tecnolgica e economicamente aceleradas e este 14 15. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual desfasamento relativo agrega ao esquema dificuldades adicionais. O caso da Amrica Latina exemplar neste aspecto, porque ainda que a economia de vrios dos seus pases experimente um crescimento importante nos prximos anos, a dependncia relativamente aos centros de poder tornar-se- cada vez mais notria. Enquanto cresce o poder regional e mundial das companhias multinacionais, enquanto se concentra o capital financeiro internacional, os sistemas polticos perdem autonomia e a legislao adequa-se aos ditames dos novos poderes. Numerosas instituies podem hoje ser supridas, directa ou indirectamente, pelos departamentos ou as fundaes da Empresa, que est em condies em alguns pontos de prestar assistncia ao nascimento, qualificao, colocao laboral, casamento, lazer, informao, segurana social, reforma e morte dos seus empregados e seus filhos. O cidado j pode, em certos lugares, tornear aqueles velhos trmites burocrticos, tendendo a utilizar um carto de crdito e, pouco a pouco, uma moeda electrnica onde constaro, no s os seus gastos e depsitos, mas tambm todo o tipo de antecedentes significativos e situao actual devidamente computada. Claro que tudo isto j liberta uns poucos de lentides e preocupaes secundrias, mas estas vantagens pessoais serviro tambm um sistema de controlo embuado. Ao lado do crescimento tecnolgico e da acelerao do ritmo de vida, a participao poltica diminui; o poder de deciso torna-se remoto e cada vez mais intermediado; a famlia reduz-se e fragmenta-se em casais cada vez mais mveis e em constante mudana; a comunicao interpessoal bloqueia-se; a amizade desaparece e a concorrncia envenena todas as relaes humanas ao ponto de, desconfiando todos de todos, a sensao de insegurana j no se basear no facto objectivo do aumento da criminalidade, mas sim sobretudo num estado de nimo. Deve acrescentar-se que a solidariedade social, grupal e interpessoal desaparece velozmente; que a toxicodependncia e o alcoolismo fazem estragos; que o suicdio e a doena mental tendem a incrementar-se perigosamente. Claro que em todos os lados existe uma maioria saudvel e razovel, mas os sintomas de tanto desajuste j no nos permitem falar de uma sociedade s. A paisagem de formao das novas geraes conta com todos os elementos de crise que citmos acima e no fazem s parte da sua vida a sua qualificao tcnica e laboral, as telenovelas, as recomendaes dos opinadores dos meios massivos, as declamaes sobre a perfeio do mundo em que vivemos ou, para a juventude mais favorecida, o lazer da mota, as viagens, a roupa, o desporto, a msica e os artefactos electrnicos. Este problema da paisagem de formao nas novas geraes ameaa abrir enormes brechas entre grupos de distintas idades, pondo sobre a mesa uma dialctica geracional virulenta de grande profundidade e de enorme extenso geogrfica. Est claro que se instalou na cpula da escala de valores o mito do dinheiro e a ele, crescentemente, subordina-se tudo. Um contingente importante da sociedade no quer ouvir nada daquilo que lhe recorde o envelhecimento e a morte, desqualificando qualquer tema que se relacione com o sentido e significado da vida. E nisto devemos reconhecer uma certa razoabilidade, porquanto a reflexo sobre esses pontos no coincide com a escala de valores estabelecida no sistema. So demasiado graves os sintomas da crise para no os ver e, no entanto, uns diro que o preo a pagar para existir no final do sculo XX. Outros afirmaro que estamos a entrar no melhor dos mundos. O pano de fundo que opera nessas afirmaes est posto pelo momento histrico, no qual o esquema global de situao no entrou ainda em crise ainda que as crises particulares se propaguem por todo o lado, mas medida que os sintomas da descomposio se acelerem mudar de igual modo a apreciao dos acontecimentos, porque se sentir a necessidade de estabelecer novas prioridades e novos projectos de vida. 4. Os factores positivos da mudana O desenvolvimento cientfico e tecnolgico no pode ser posto em causa pelo facto de alguns avanos terem sido ou serem utilizados contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que se questiona a tecnologia dever-se-ia fazer uma prvia reflexo com respeito s caractersticas do 15 16. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual sistema que utiliza o avano do saber com fins esprios. Claro que o progresso na medicina, comunicaes, robtica, engenharia gentica e tantos outros campos, pode ser aproveitado em direco destrutiva. O mesmo se pode dizer relativamente utilizao da tcnica na explorao irracional de recursos, poluio industrial, contaminao e degradao ambiental. Mas tudo isso denuncia o signo negativo que comanda a economia e os sistemas sociais. Assim, bem sabemos que hoje se est em condies de solucionar os problemas de alimentao de toda a humanidade e, contudo, comprovamos diariamente que existe fome, desnutrio e padecimentos infra- humanos, porque o sistema no est na disposio de se dedicar a esses problemas, resignando aos seus fabulosos ganhos em troca de uma melhoria global do nvel humano. Tambm notamos que as tendncias para as regionalizaes e, finalmente, para a mundializao esto a ser manipuladas por interesses particulares em detrimento dos grandes conjuntos. Mas est claro que, mesmo nessa distorso, o processo em direco a uma nao humana universal abre passagem. A mudana acelerada que se est a apresentar no mundo leva a uma crise global do sistema e a um consequente reordenamento de factores. Tudo isso ser a condio necessria para conseguir uma estabilidade aceitvel e um desenvolvimento harmnico do planeta. Por conseguinte, apesar das tragdias que se podem avistar na descomposio deste sistema global actual, a espcie humana prevalecer sobre todo o interesse particular. Na compreenso da direco da Histria, que comeou nos nossos antepassados homindios, radica a nossa f no futuro. Esta espcie que trabalhou e lutou durante milhes de anos para vencer a dor e o sofrimento no sucumbir no absurdo. Por isso, necessrio compreender processos mais amplos do que simples conjunturas e apoiar tudo o que v em direco evolutiva, ainda que no se vejam os seus resultados imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e solidrios atrasa o passo da Histria. Mas difcil compreender esse sentido se a vida pessoal no se organiza e orienta tambm em direco positiva. Aqui no esto em jogo factores mecnicos ou determinismos histricos, est em jogo a inteno humana que tende a abrir caminho diante de todas as dificuldades. Espero, meus amigos, passar a temas mais reconfortantes na prxima carta, deixando de lado a observao de factores negativos para esboar propostas concordantes com a nossa f num futuro melhor para todos. Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 05/12/91. 16 17. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual TERCEIRA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Espero que a presente carta sirva para ordenar e simplificar as minhas opinies a respeito da situao actual. Tambm queria considerar certos aspectos da relao entre os indivduos e entre eles e o meio social em que vivem. 1. A mudana e a crise Nesta poca de grande mudana esto em crise os indivduos, as instituies e a sociedade. A mudana ser cada vez mais rpida tal como as crises individuais, institucionais e sociais. Isto anuncia perturbaes que talvez no sejam assimiladas por amplos sectores humanos. 2. Desorientao As tranformaes que esto a ocorrer tomam direces inesperadas, produzindo uma desorientao geral em relao ao futuro e ao que se deve fazer no presente. Na realidade, no a mudana que nos perturba, j que nela observamos muitos aspectos positivos. O que nos inquieta no saber em que direco vai a mudana e para onde orientar a nossa actividade. 3. Crise na vida das pessoas A mudana est a ocorrer na economia, na tecnologia e na sociedade; sobretudo est a operar-se nas nossas vidas: no nosso meio familiar e laboral, nas nossas relaes de amizade. Esto a modificar-se as nossas ideias e o que acreditvamos sobre o mundo, sobre as outras pessoas e sobre ns mesmos. Muitas coisas estimulam-nos, mas outras confundem-nos e paralisam-nos. O comportamento dos demais e o nosso parece-nos incoerente, contraditrio e sem direco clara, tal como sucede com os acontecimentos que nos rodeiam. 4. Necessidade de dar orientao prpria vida Portanto, fundamental dar direco a essa mudana inevitvel e no h outra forma de faz-lo seno comeando por si mesmo. Em cada um deve dar-se direco a estas mudanas desordenadas cujo rumo desconhecemos. 5. Direco e mudana de situao Como os indivduos no existem isolados, se realmente direccionam a sua vida, modificaro a relao com os outros na sua familia, no seu trabalho e onde lhes caiba actuar. Este no um problema psicolgico que se resolve dentro da cabea de indivduos isolados, mas sim mudando a situao em que se vive com outros mediante um comportamento coerente. Quando celebramos xitos ou nos deprimimos por causa dos nossos fracassos, quando fazemos planos para o futuro ou nos propomos introduzir mudanas na nossa vida, esquecemos o ponto fundamental: estamos em situao de relaco com outros. No podemos explicar o que nos acontece, nem escolher, sem referncia a certas pessoas e a certos mbitos sociais concretos. Essas pessoas que tm especial importncia para ns e esses mbitos sociais em que vivemos pem-nos numa situao precisa, a partir da qual pensamos, sentimos e actuamos. Negar isto ou 17 18. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual no t-lo em conta cria enormes dificuldades. A nossa liberdade de escolha e aco est delimitada pela situao em que vivemos. Qualquer mudana que desejemos operar no pode ser traada em abstracto, mas sim em referncia situao em que vivemos. 6. O comportamento coerente Se pudssemos pensar, sentir e actuar na mesma direco, se o que fazemos no nos criasse contradio com o que sentimos, diramos que a nossa vida tem coerncia. Seramos fiveis para ns mesmos, ainda que no necessariamente fiveis para o nosso meio imediato. Deveramos conseguir essa mesma coerncia na relao com outros, tratando os demais como queremos ser tratados. Sabemos que pode existir uma espcie de coerncia destrutiva, como observamos nos racistas, nos exploradores, nos fanticos e nos violentos, mas est clara a sua incoerncia na relao porque tratam os outros de um modo muito diferente daquele que desejam para si mesmos. Essa unidade de pensamento, sentimento e aco, essa unidade entre o trato que se pede e o trato que se d, so ideais que no se realizam na vida diria. Este o ponto. Trata-se de um ajuste de condutas a essas propostas; trata-se de valores que, tomados com seriedade, direccionam a vida, independentemente das dificuldades que se enfrentem para realiz-los. Se observarmos bem as coisas, no estaticamente mas sim em dinmica, compreenderemos isto como uma estratgia que deve ir ganhando terreno medida que passe o tempo. Aqui sim valem as intenes, ainda que as aces no coincidam no princpio com elas, sobretudo se aquelas intenes so mantidas, aperfeioadas e ampliadas. Essas imagens do que se deseja conseguir so referncias firmes que do direco em todas as situaes. E isto que dizemos no to complicado. No nos surpreende, por exemplo, que uma pessoa oriente a sua vida para conseguir uma grande fortuna, no entanto, essa pessoa pode saber antecipadamente que no a conseguir. De qualquer maneira, o seu ideal impulsiona-a ainda que no tenha resultados relevantes. Ento, por que razo no se pode entender que mesmo sendo a poca adversa ao trato que se pede com o trato que se d, mesmo sendo adversa a pensar, sentir e actuar na mesma direco, esses ideais de vida possam dar direco s aces humanas? 7. As duas propostas Pensar, sentir e actuar na mesma direco e tratar os outros como se deseja ser tratado, so duas propostas to singelas que podem ser entendidas como simples ingenuidades pela gente habituada s complicaes. No entanto, atrs dessa aparente candura, h uma nova escala de valores em cujo ponto mais alto se pe a coerncia, uma nova moral para a qual no indiferente qualquer tipo de aco, uma nova aspirao que implica ser consequente no esforo para dar direco aos acontecimentos humanos. Por trs dessa aparente candura, aposta-se no sentido da vida pessoal e social que ser verdadeiramente evolutivo ou caminhar para a desintegrao. J no podemos confiar que velhos valores dem coeso s pessoas num tecido social deteriorado dia-a-dia pela desconfiana, o isolamento e o individualismo crescente. A antiga solidariedade entre os membros das classes, associaes, institues e grupos vai sendo substituda pela concorrncia selvagem a que no escapa o casal nem a irmandade familiar. Neste processo de demolio, no se elevar uma nova solidariedade com base em ideias e comportamentos de um mundo que j era, mas sim graas necessidade concreta de cada um de direccionar a sua vida, para o que ter de modificar o seu prprio meio. Essa modificao, se verdadeira e profunda, no se pode pr em andamento por aco de imposies, por leis externas ou por fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo poder da opinio e da aco mnima conjunta entre as pessoas que fazem parte do meio em que se vive. 8. Chegar a toda a sociedade a partir do meio imediato. 18 19. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Sabemos que ao mudar positivamente a nossa situao estaremos a influir no nosso meio e outras pessoas compartilharo este ponto de vista, dando lugar a um sistema de relaes humanas em crescimento. Teremos que perguntar-nos: Por que razo deveramos ir mais alm de onde comeamos? Simplesmente por coerncia com a proposta de tratar os outros como queremos que nos tratem. Ou no levaramos aos outros algo que se mostrou fundamental para a nossa vida? Se a influncia comea a desenvolver-se porque as relaes, e portanto os componentes do nosso meio, se ampliaram. Esta uma questo que deveramos ter em conta desde o comeo, porque mesmo quando a nossa aco comea a aplicar-se num ponto reduzido, a projeco dessa influncia pode chegar muito longe. No tem nada de estranho pensar que outras pessoas decidam juntar-se na mesma direco. Afinal de contas, os grandes movimentos histricos seguiram o mesmo caminho: comearam pequenos, como lgico, e desenvolveram- se graas a que as pessoas os consideraram intrpretes das suas necessidades e inquietudes. Actuar no meio imediato, mas com o olhar posto no progresso da sociedade coerente com tudo o que se disse. De outro modo, para que faramos referncia a uma crise global que deve ser enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em indivduos isolados para quem os outros no tm importncia? Por necessidade das pessoas que coincidam em dar uma nova direco sua vida e aos acontecimentos, surgiro mbitos de discusso e comunicao directa. Depois, a difuso atravs de todos os meios permitir ampliar a superfcie de contacto. O mesmo acontecer com a criao de organismos e instituies compatveis com este projecto. 9. O meio em que se vive. J comentmos que to veloz e to inesperada a mudana, que este impacto se est a receber como crise na qual se debatem sociedades inteiras, instituies e indivduos. Por isso, imprescindvel dar direco aos acontecimentos. No entanto, como poderia uma pessoa faz-lo, submetida como est aco de eventos maiores? evidente que s se pode direccionar aspectos imediatos da vida e no o funcionamento das instituies nem da sociedade. Por outro lado, pretender dar direco prpria vida no coisa fcil, j que cada um vive em situao, no vive isolado, vive num meio. Este meio, podemos v-lo to amplo como o Universo, a Terra, o pas, o Estado, a provncia, etc. Contudo, h um meio imediato que onde desenvolvemos as nossas actividades. Esse meio familiar, laboral, de amizades, etc. Vivemos em situao com referncia a outras pessoas e esse o nosso mundo particular do qual no podemos prescindir. Ele actua sobre ns e ns sobre ele de um modo directo. Se temos alguma influncia, sobre esse meio imediato. Mas acontece que tanto a influncia que exercemos como a que recebemos esto afectadas, por sua vez, por situaes mais gerais, pela crise e a desorientao. 10. A coerncia como direco de vida Se se quisesse dar alguma direco aos acontecimentos, haveria que comear pela prpria vida e, para faz-lo, teramos de ter em conta o meio em que actuamos. Ora bem, a que direco podemos aspirar? Sem dvida, quela que nos proporcione coerncia e apoio num meio to varivel e imprevisvel. Pensar, sentir e actuar na mesma direco uma proposta de coerncia na vida. No entanto, isto no fcil porque nos encontramos numa situao que no escolhemos completamente. Estamos a fazer coisas que necessitamos, mesmo que em grande desacordo com o que pensamos e sentimos. Estamos metidos em situaes que no governamos. Actuar com coerncia, mais que um facto, uma inteno, uma tendncia que podemos ter presente, de maneira que a nossa vida se v direccionando para esse tipo de comportamento. claro que unicamente influindo nesse meio, poderemos mudar parte da nossa situao. Ao faz-lo, estaremos direccionando a relao com outros e outros partilharo essa conduta. Se a isso se objecta que algumas pessoas mudam de meio com certa frequncia, por causa do seu trabalho ou por outros motivos, responderemos que isso no modifica nada o exposto, j que sempre se estar em situao, sempre se estar num dado meio. Se pretendemos coerncia, o trato que 19 20. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual dermos aos outros ter de ser do mesmo gnero que o trato que exigimos para ns. Assim, nestas duas propostas encontramos os elementos bsicos de direco at onde chegam as nossas foras. A coerncia avana contanto avance o pensar, o sentir e o actuar na mesma direco. Esta coerncia estende-se a outros, porque no h outra maneira de faz-lo, e, ao estender-se a outros, comeamos a trat-los do modo que gostaramos de ser tratados. Coerncia e solidariedade so direces, aspiraes de condutas a conseguir. 11. A proporo nas aces como avano em direco coerncia. Como avanar em direco coerente? Em primeiro lugar, necessitaremos de uma certa proporo no que fazemos quotidianamente. necessrio estabelecer quais so as questes mais importantes na nossa actividade. Devemos priorizar o fundamental para que as coisas funcionem, depois o secundrio e assim seguindo. Possivelmente atendendo a duas ou trs prioridades, teremos um bom quadro de situao. As prioridades no podem inverter-se, tambm no podem separar-se tanto que se desequilibre a nossa situao. As coisas devem ir em conjunto, no isoladamente, evitando que umas se adiantem e outras se atrasem. Frequentemente, cegamo-nos pela importncia de uma actividade e, desta maneira, desequilibra- se-nos o conjunto... no final, o que considervamos to importante tambm no se pode realizar, porque a nossa situao geral ficou afectada. Tambm certo que s vezes se apresentam assuntos de urgncia a que devemos dedicar-nos, mas claro que no se pode viver postergando outros que so importantes para a situao geral em que vivemos. Estabelecer prioridades e levar a actividade em proporo adequada, um avano evidente em direco coerncia. 12. A oportunidade das aces como avano em direco coerncia. Existe uma rotina quotidiana dada pelos horrios, os cuidados pessoais e o funcionamento do nosso meio. No entanto, dentro dessas pautas h uma dinmica e riqueza de acontecimentos que as pessoas superficiais no sabem apreciar. H aqueles que confundem a sua vida com as suas rotinas, mas isto no assim de todo, j que muito frequentemente tm que escolher dentro das condies que lhes impe o meio. Na verdade, vivemos entre inconvenientes e contradies, mas convir no confundir ambos os termos. Entendemos por "inconvenientes" as molstias e impedimentos que enfrentamos. No so enormemente graves, mas claro que se so numerosos e repetidos aumentam a nossa irritao e fadiga. Certamente, estamos em condies de super- los: no determinam a direco da nossa vida, no impedem que levemos adiante um projecto. So obstculos no caminho, que vo desde a menor dificuldade fsica a problemas em que estamos a ponto de perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradao importante, mas mantm-se num limite que no impede de avanar. Coisa diferente acontece com o que chamamos "contradies". Quando o nosso projecto no pode ser realizado, quando os acontecimentos nos lanam numa direco oposta desejada, quando nos encontramos num crculo vicioso que no podemos romper, quando no podemos direccionar minimamente a nossa vida, estamos tomados pela contradio. A contradio uma espcie de inverso na corrente da vida que nos leva a retroceder sem esperana. Estamos a descrever o caso em que a incoerncia se apresenta com maior crueza. Na contradio, ope-se o que pensamos, o que sentimos e fazemos. Apesar de tudo, sempre h possibilidade de direccionar a vida, mas necessrio saber quando faz-lo. A oportunidade das aces algo que no temos em conta na rotina quotidiana e isto assim porque muitas coisas esto codificadas. Mas, no que se refere aos inconvenientes importantes e s contradies, as decises que tomamos no podem estar expostas catstrofe. Em termos gerais, devemos retroceder diante de uma grande fora e avanar com resoluo quando essa fora se debilite. H uma grande diferena entre o temeroso que retrocede ou se imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua sobrepondo-se s dificuldades, sabendo que, precisamente, avanando pode torne-las. Acontece que, s vezes, no possvel avanar, porque se levanta um problema superior s nossas foras e arremeter sem clculo leva-nos ao 20 21. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual desastre. O grande problema que enfrentemos ser tambm dinmico e a relao de foras mudar, ou porque vamos crescendo em influncia ou porque a sua influncia diminui. Quebrada a relao anterior, o momento de proceder com resoluo, j que uma indeciso ou uma postergao far com que novamente se modifiquem os factores. A execuo da aco oportuna a melhor ferramenta para produzir mudanas de direco. 13. A adaptao crescente como avano em direco coerncia. Consideremos o tema da direco, da coerncia que queremos conseguir. Adaptar-nos a certas situaes ter a ver com essa proposta, porque adaptar-nos ao que nos leva em direco oposta coerncia uma grande incoerncia. Os oportunistas padecem de uma grande miopia com respeito a este tema. Eles consideram que a melhor forma de viver a aceitao de tudo, a adaptao a tudo; pensam que aceitar tudo, sempre que provenha de quem tem poder, uma grande adaptao, mas claro que a sua vida dependente est muito longe do que entendemos por coerncia. Distinguimos entre a desadaptao, que nos impede de ampliar a nossa influncia; a adaptao decrescente, que nos deixa na aceitao das condies estabelecidas; e a adaptao crescente, que faz crescer a nossa influncia em direco s propostas que temos vindo a comentar. Sintetizando: 1. - H uma mudana veloz no mundo, motorizada pela revoluo tecnolgica, que est a chocar com as estruturas estabelecidas e com a formao e os hbitos de vida das sociedades e dos indivduos. 2. - Este desfasamento gera crises progressivas em todos os campos e no h razo para supr que se vai deter, antes pelo contrrio, tender a incrementar-se. 3. - O inesperado dos acontecimentos impede prever que direco tomaro os factos, as pessoas que nos rodeiam e, em suma, a nossa prpria vida. 4. - Muitas das coisas que pensvamos e acreditvamos j no nos servem. Tambm no esto vista solues que provenham de uma sociedade, instituies e indivduos que padecem do mesmo mal. 5. - Se decidirmos trabalhar para fazer face a estes problemas, teremos que dar direco nossa vida, buscando coerncia entre o que pensamos, sentimos e fazemos. Como no estamos isolados, essa coerncia ter que chegar relao com os outros, tratando-os do mesmo modo que queremos para ns mesmos. Estas duas propostas no podem ser cumpridas rigorosamente, mas constituem a direco de que necessitamos, sobretudo se as tomarmos como referncias permamentes e as aprofundarmos. 6. - Vivemos em relao imediata com outros e nesse meio onde temos que actuar para dar direco favorvel nossa situao. Esta no uma questo psicolgica, uma questo que se possa resolver na cabea isolada dos indivduos: um tema relacionado com a situao que se vive. 7. - Sendo consequentes com as propostas que tratamos de levar adiante, chegamos concluso que o que positivo para ns e para o nosso meio imediato, deve ser alargado a toda a sociedade. Junto a outros que coincidem na mesma direco, implementaremos os meios mais adequados para que uma nova solidariedade encontre o seu rumo. Por isso, apesar de actuar to especificamente no nosso meio imediato no perderemos de vista uma situao global que afecta todos os seres humanos e que requer a nossa ajuda, assim como ns necessitamos da ajuda dos outros. 8. - As mudanas inesperadas levam-nos a pensar seriamente na necessidade de direccionar a nossa vida. 9. - A coerncia no comea e termina em cada um, est antes relacionada com um meio, com outras pessoas. A solidariedade um aspecto da coerncia pessoal. 21 22. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual 10. - A proporo nas aces consiste em estabelecer prioridades de vida e operar com base nelas, evitando que se desequilibrem. 11. - A oportunidade do actuar tem em conta retroceder perante uma grande fora e avanar com resoluo quando esta se debilita. Esta ideia importante para efeitos de produzir mudanas na direco da vida, se estamos submetidos contradio. 12. - to inconveniente a desadaptao num meio em que no podemos mudar nada, como a adaptao decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as condies estabelecidas. A adaptao crescente consiste num aumento da nossa influncia no meio e em direco coerente. Recebam com esta carta os meus melhores cumprimentos. Silo. 17/12/91. 22 23. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual QUARTA CARTA AOS MEUS AMIGOS Estimados amigos: Em cartas anteriores dei a minha opinio sobre a sociedade, os grupos humanos e os indivduos em relao a este momento de mudana e perda de referncias que nos cabe viver; critiquei certas tendncias negativas no desenvolvimento dos acontecimentos e destaquei as posturas mais conhecidas de quem pretende dar resposta s urgncias do momento. claro que todas as apreciaes, bem ou mal formuladas, correspondem ao meu particular ponto de vista e este, por sua vez, situa-se num conjunto de ideias que lhe servem de base. Certamente por isto, recebi sugestes a animar-me a explicitar a partir de "onde" fao as minhas crticas ou desenvolvo as minhas propostas. Ao fim e ao cabo, pode-se dizer qualquer coisa com muita ou pouca originalidade, como sucede com as ideias que diariamente nos passam pela cabea e que no pretendemos justificar. Essas ideias hoje podem ser de um tipo e amanh do tipo oposto, no passando da frivolidade da apreciao quotidiana. Por isso, em geral, cada dia acreditamos menos nas opinies dos outros e de ns prprios, dando por assente que se tratam de apreciaes de conjuntura que podem mudar em poucas horas, como acontece com as oportunidades da Bolsa. E se nas opinies h algo com maior permanncia , na melhor das hipteses, o consagrado pela moda, que depois substitudo pela moda seguinte. No estou a fazer uma defesa do imobilismo no campo das opinies, mas sim a destacar a falta de consistncia nas mesmas, porque, na verdade, seria muito interessante que a mudana se desse com base numa lgica interna e no de acordo com o sopro de ventos errticos. Mas quem que est disposto a aguentar lgicas internas numa poca de palmadas de afogado! Agora mesmo, enquanto escrevo, noto que o que se disse no pode entrar na cabea de certos leitores porque, nesta altura, no tero encontrado trs possveis cdigos exigidos por eles: 1.- que o que se est a explicar lhes sirva de passatempo, ou 2.- que lhes mostre de seguida como podem utiliz-lo no seu negcio, ou 3.- que coincida com o consagrado pela moda. Tenho a certeza de que esta conversa que comea com "Estimados amigos:" e que chega at aqui, deixa-os totalmente desorientados como se estivssemos a escrever em snscrito. No entanto, de registar como essas mesmas pessoas compreendem coisas difceis que vo desde as operaes bancrias mais sofisticadas at s delcias da tcnica administrativa computada. A esses, torna-se-lhes impossvel compreender que estamos a falar das opinies, dos pontos de vista e das ideias que lhes servem de base; que estamos a falar da impossibilidade de sermos entendidos nas coisas mais simples se no tm correspondncia com a paisagem que tm armada pela sua educao e pelas suas compulses. Assim esto as coisas! Esclarecido o anterior, tratarei de resumir nesta carta as ideias que fundamentam as minhas opinies, crticas e propostas, tendo especial cuidado de no ir muito alm do slogan publicitrio, porque, como explica o sbio jornalismo especializado, as ideias organizadas so "ideologias" e estas, como as doutrinas, so ferramentas de lavagem ao crebro daqueles que se opem liberdade de comrcio e economia social de mercado das opinies. Hoje, respondendo s exigncias do Ps-modernismo, quer dizer, s exigncias da haute-couture (roupa de noite, gravata tipo lao, ombreiras, sapatilhas e casaco arregaado); da arquitectura desconstrutivista e da decorao desestruturada, estamos compelidos a que no encaixem as peas do discurso. E a no esquecer que a crtica da linguagem tambm repudia o sistemtico, estrutural e processual!... claro que tudo isto tem correspondncia com a ideologia dominante da Empresa que sente horror pela Histria e pelas ideias em cuja formao no participou e entre as quais no pde colocar uma substancial percentagem de aces. 23 24. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual Brincadeiras parte, comecemos j o inventrio das nossas ideias, pelo menos das que consideramos mais importantes. Devo realar que boa parte delas foram apresentadas na conferncia que dei em Santiago de Chile em 23/05/91. 1. Arranque das nossas ideias. A nossa concepo no se inicia admitindo generalidades, mas sim estudando o particular da vida humana; o particular da existncia; o particular do registo pessoal do pensar, do sentir e do actuar. Esta postura inicial torna-a incompatvel com todo o sistema que arranque da "ideia", da "matria", do "inconsciente", da "vontade", da "sociedade", etc. Se algum admite ou rejeita qualquer concepo, por lgica ou extravagante que esta seja, sempre ser ele prprio que est em jogo, admitindo ou rejeitando: ele estar em jogo, no a sociedade, ou o inconsciente ou a matria. Falemos, pois, da vida humana. Quando me observo, no do ponto de vista fisiolgico, mas sim existencial, encontro-me posto num mundo dado, no construdo nem escolhido por mim. Encontro-me em situao relativamente a fenmenos que, comeando pelo meu prprio corpo, so ineludveis. O corpo, como constituinte fundamental da minha existncia, , alm do mais, um fenmeno homogneo com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua o mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim diferenas importantes relativamente ao resto dos fenmenos, a saber: 1.- o registo imediato que dele possuo; 2.- o registo que atravs dele tenho dos fenmenos externos; e 3.- a disponibilidade de alguma das suas operaes merc da minha inteno imediata. 2. Natureza, inteno e abertura do ser humano. Porm, acontece que o mundo me aparece no s como um aglomerado de objectos naturais, mas sobretudo como uma articulao de outros seres humanos e de objectos e signos produzidos ou modificados por eles. A inteno que noto em mim, aparece como um elemento interpretativo fundamental do comportamento dos outros e assim como constituo o mundo social por compreenso de intenes, sou constitudo por ele. Desde logo, estamos a falar de intenes que se manifestam na aco corporal. graas s expresses corporais ou percepo da situao em que se encontra o outro, que posso compreender os seus significados, a sua inteno. Por outro lado, os objectos naturais e humanos aparecem-me como sendo prazenteiros ou dolorosos e trato de colocar-me face a eles modificando a minha situao. Deste modo, no estou fechado ao mundo do natural e dos outros seres humanos, antes pelo contrrio, a minha caracterstica precisamente a "abertura". A minha conscincia configurou-se intersubjectivamente j que usa cdigos de raciocnio, modelos emotivos, esquemas de aco que registo como sendo "meus", mas que tambm reconheo noutros. E, desde logo, est o meu corpo aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo. O mundo natural, diferena do humano, aparece-me sem inteno. Claro que posso imaginar que as pedras, as plantas e as estrelas possuem inteno, mas no vejo como chegar a um efectivo dilogo com elas. Mesmo os animais em que, s vezes, capto a chispa da inteligncia, aparecem-me impenetrveis e em lenta modificao de dentro da sua natureza. Vejo sociedades de insectos totalmente estruturadas, mamferos superiores a usar rudimentos tcnicos, mas repetindo os seus cdigos em lenta modificao gentica, como se fossem sempre os primeiros representantes das suas respectivas espcies. E quando comprovo as virtudes dos vegetais e dos animais modificados e domesticados pelo Homem, observo a inteno deste a abrir-se caminho e a humanizar o mundo. 24 25. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pessoal no Momento Actual 3. A abertura social e histrica do ser humano. -me insuficiente a definio do Homem pela sua sociabilidade, j que isto no contribui para a distino em relao a numerosas espcies; a sua fora de trabalho tambm no o caracterstico, comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a linguagem o define na sua essncia, porque sabemos de cdigos e formas de comunicao entre diversos animais. Ao invs, ao encontrar-se cada novo ser humano com um mundo modificado por outros e ao ser constitudo por esse mundo intencionado, descubro a sua capacidade de acumulao e incorporao no temporal; descubro a sua dimenso histrico-social, no simplesmente social. Vistas assim as coisas, posso tentar uma definio, dizendo: o Homem o ser histrico cujo modo de aco social transforma a sua prpria natureza. Se admito isto, terei de aceitar que esse ser pode transformar intencionalmente a sua constituio fsica. E assim est a acontecer. Comeou com a utilizao de instrumentos que, postos adiante do seu corpo como "prteses" externas, lhe permitiram alongar a sua mo, aperfeioar os seus sentidos e aumentar a sua fora e qualidade de trabalho. Naturalmente no estava dotado para os meios lquido e areo e, no entanto, criou condies para se deslocar neles, at comear a emigrar do seu meio natural, o planeta Terra. Hoje, alm disso, est a internar-se no seu prprio corpo mudando os seus rgos; intervindo na sua qumica cerebral; fecundando in vitro e manipulando os seus genes. Se, com a ideia de "natureza", se quis assinalar o permanente, tal ideia hoje inadequada, ainda que se queira aplic-la ao mais objectal do ser humano, isto , ao seu corpo. E no que se refere a uma "moral natural", a um "direito natural" ou a "instituies naturais", encontramos, opostamente, que nesse campo tudo histrico- social e nada a existe por natureza. 4. A aco transformadora do ser humano. Contgua concepo da natureza humana tem estado a operar outra que nos falou da passividade da conscincia. Esta ideologia considerou o Homem como uma entidade que operava em resposta aos estmulos do mundo natural. O que comeou em tosco sensualismo, pouco a pouco foi afastado por correntes historicistas que conservaram no seu seio a mesma ideia em torno da passividade. E ainda quando privilegiaram a actividade e a transformao do mundo em relao interpretao dos seus factos, conceberam a referida actividade como resultante de condies externas conscincia. Porm, aqueles antigos preconceitos em torno da natureza humana e da passividade da conscincia hoje impem-se, transformados em neo- evolucionismo, com critrios tais como a seleco natural que se estabelece na luta pela sobrevivncia do mais apto. Tal concepo zoolgica, na sua verso mais recente, ao ser transplantada para o mundo humano, tratar de superar as anteriores dialcticas de raas ou de classes com uma dialctica estabelecida segundo leis econmicas "naturais" que auto- regulam toda a actividade social. Assim, uma vez mais, o ser humano concreto fica submergido e objectivizado. Mencionmos as concepes que para explicar o Homem comeam de generalidades tericas e sustentam a existncia de uma natureza humana e de uma conscincia passiva. Em sentido oposto, ns sustentamos a necessidade de arranque a partir da particularidade humana; sustentamos o fenmeno histrico-social e no natural do ser humano e tambm afirmamos a actividade da sua conscincia transformadora do mundo de acordo com a sua inteno. Vimos a sua vida em situao e o seu corpo como objecto natural percebido imediatamente e submetido, tambm imediatamente, a numerosos ditames da sua inteno. Por conseguinte, impem-se as seguintes perguntas: como que a conscincia activa, quer dizer, como que pode intencionar sobre o corpo e atravs dele transformar o mundo? Em segundo lugar, como que a constituio humana histrico-social? Estas perguntas devem ser respondidas a partir da existncia particular, para no recair em generalidades tericas a 25 26. Cartas aos Meus Amigos sobre a Crise Social e Pess