Cartas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz

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CARTA DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA QUEIRÓS - 27 DE ABRIL DE 1920 Meu Be«be»zinho lindo: Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos). Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado... Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável. Enfim... Amanhã passo à mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella? Sempre e muito teu Fernando CARTA DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920 Bebezinho do Nininho-ninho: Oh! Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh! E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos. Oh! O Nininho é pequenininho! Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.

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Catálogo com sete correspondências entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz

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CARTA DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA QUEIRÓS - 27 DE ABRIL DE 1920 Meu Be«be»zinho lindo: Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos). Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado... Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.

Enfim... Amanhã passo à mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?

Sempre e muito teu Fernando

CARTA DE FERNANDO PESSOA A OFÉLIA QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920 Bebezinho do Nininho-ninho:

Oh!

Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!

E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.

Oh! O Nininho é pequenininho!

Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis ho'as.

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Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e meia. [desenho de uma meia] (isto é a meia das cinco e meia).

Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?

Jinhos, jinhos e mais jinhos. Fernando.

CARTA DE OFÉLIA QUEIRÓS A FERNANDO PESSOA - 23 DE MARÇO DE 1920 (à 1h20 da noite) Meu querido amor. Não calculas a minha grande alegria quando vi o Osório e lhe perguntei se tinha alguma coisa para mim e me disse que sim. Gostava muito de receber cartinha tua meu amor, mas confesso que não tinha lá muitas esperanças, como me disseste que não me admirasse se o Osório não fosse lá abaixo, eu pensei: nem ele me escreve, como já me preveniu... mas não o meu amorzinho é muito bonzinho (às vezes, porque outras é muito mau). É verdade que foi bom ser já no fim da nossa conversa que houve a interrupção, senão como eu não ficaria desgostosa, mas ao mesmo tempo achei piada. Eu venho escrever-te alguma coisinha porque não posso passar já sem te escrever qualquer coisinha. Sim meu filhinho amanhã encontrar-nos-emos à nossa hora habitual o que tomara já porque estou bem desejosa de te ver. Já tenho tantas saudades! A gente vê-se tão pouco! Tu querias estar sempre ao pé de mim, pois esse era também o meu maior desejo, mas infelizmente não pode ser... por enquanto... lá virá esse tempo, o que tenho esperança não há de vir muito longe. Depois há de sair pouco de casa sim? Hás de estar muito tempo ao pé da tua mulherzinha pequenina para a indenizares do tempo que esteve separada do seu Fernandinho querido. Depois naturalmente até te aborreces, ou não? Com que então há quarto para nós em casa de tua mãe? Está bem, então já não falta tudo, cabemos lá não é verdade? Quem me dera!... Sim as cartas são sinais de separação, e justamente por se estar separados é que se deve escrever o que não há forma de se dizer pessoalmente, mas tu escreves tão pouco... Aquela carta que escreveste quando estavas doentinho, essa sim, era grande e muito meiguinha. Sabes que tenho estado hoje muito contente?! Achei-te hoje mais meu amiguinho do que ontem, ou seja porque estivesses mais bem-disposto hoje. Não te descuides com o retrato não? Dá-mo o mais depressa possível.

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Olha Fernandinho, diz-me, não achas melhor eu qualquer dia dizer a minha irmã que tu já te declaraste? Que vieste ao meu encontro ou que me escreveste? Que achas? Eu acho que é melhor, porque qualquer dia ela vê-me ou veem-me e vão lhe dizer e depois é muito pior, far-lhe-ia mil confusões, e mesmo para ela não estar a pensar de ti uma coisa muito diferente. Amanhã o meu amorzinho fala-me a esse respeito sim? Achei muitíssima piada ao meiguinho chinês e agradeço-te muito. Como tu descobres estas coisas? O Montalvor disse-te alguma coisa? Achei imensa, mas mesmo imensa piada à almofadinha cor-de-rosa para pregar beijos, o que tu não inventas não inventa ninguém. Mas o pior é que a almofadinha agora não tem apanhado... alfinetes e já tem saudades. Adeus meu querido “Nininho” é uma hora e tal que para te conseguir escrever hoje tive que esperar para esta hora. Agradeço o teu quarteirão de milhares [de] beijos e envio-te um cento de milhares deles muito muito doces (ainda mais que os bombons). Já tenho saudades de ir dar um passeio até à “Índia”. Adeus meu filhinho pensa muito, muito muito na tua, muito tua. Ofélia “Pessoa” (quem me dera)

CARTA DE OFÉLIA QUEIRÓS A FERNANDO PESSOA - 2 DE JULHO DE 1920 (9½ da manhã) Querido Nininho Escrevo-te na cama donde me não posso levantar hoje, não te posso escrever muito é simplesmente para te prevenir não vás a [Rua] A[lmirante] Reis não calculas a pena que tenho de não poder ir hoje visto tu ires seja tão pouco! Não imaginas a noite horrível que passei, oh! que dores eu tive e sem chamar nunca minha mãe. Agora de manhã com uma coisa que me sucedeu é que estou um bocadinho assustada e principalmente minha mãe que está raladíssima, isto ainda é, tenho a certeza proveniente da tal asneira que fiz quando estava no escritório, lembras-te eu dizer-te? Olha Nininho se puderes e quiseres vai amanhã, porque eu devo ir, pelo menos assim o espero mas se não for escrevo-te. Agora não fiques ralado, porque eu não morro (que isso te importaria pouco) e se morrer é da maneira que te vês livre desta maçadora mais depressa. Não repares a letra não?

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Custa-me um bocado ter a cabeça de pé. Escreve-me sim? E pensa muito em mim. Adeus mil jinhos sem serem intrujinhos Da que será sempre tua e muito tua Ofélia

CARTA DE OFÉLIA QUEIRÓS A FERNANDO PESSOA - 3 DE JULHO DE 1920 Nininho querido, mas sempre mau... Venho escrever ao meu mau Nininho antes de me deitar, o que não tarda que o faça. Dizes na tua carta que nem podes apoquentar a meu respeito, tens por força que juntar a essa apoquentação, dúvidas, receios, várias coisas por vezes horríveis... Oh! Fernandinho que quererás tu dizer com estas palavras horríveis? Misteriosa doença? Não Nininho a minha doença nada tem de mistério, os mistérios faço-os eu por não ser uma coisa muito natural de se dizer, e que no entanto é a coisa mais natural de acontecer. Vê os juízos que de mim ficas fazendo, por amor de Deus, Nininho. A minha doença nada mais tem de mau que não seja prejudicar-me a saúde, e se hoje sofro sou eu a culpada com as asneiras que fiz para prejudicar-me, pois que dantes nada sofria e foi depois de estar no escritório que se me meteu na cabeça estragar a saúde, mas agora vou curar-me, pois fiquei ralada, receando as suposições que de mim faças. Palavra de honra que se não fosse uma coisa pouco própria de dizer eu hoje tinha-te dito, pois deu-me mesmo vontade de te contar tudo para te tranquilizar. Mas o Nininho não é parvo nenhum e deve já calcular o que é, e não fazer más suposições do seu bebé, que se magoa muito muito com isso. Promete Nininho Mau? Olha filhinho eu na 2.a feira vou ao médico, a um médico que há muitíssimo bom, na Rua S. João da Mata, é um velhinho, especialista, chamado Pierret. Eu não queria ir, mas minha irmã diz que se zangava comigo se eu não Fosse. Diz que se eu não fosse que te escrevia uma carta para tu te zangares comigo enquanto eu não fosse. Mas eu antes que isso suceda e que o Nininho se zangasse, vou já na 2.a feira sim? Depois te digo o que ele me disser sim? Eu arranjei tal trinta e um que isto não está nada bom, eu vejo bem, porque eu é que me sinto e isto é uma coisa com que se não pode brincar. Minha irmã chama-me estúpida e pergunta-me se eu não tenho pena de morrer. Olha Nininho, juro-te por tudo quanto para mim é de mais sagrado, juro-te pelo amor que te tenho, e dou-te a minha sincera palavra de honra que nunca me importei de morrer, nunca me preocupei, nem com a vida nem com a morte, e hoje só teria pena de morrer se eu tivesse a plena certeza que casava contigo. Isso sim, então desejaria tratar-me, prender-me à vida, mas Nininho, quem me diz a mim que eu nunca verei realizados os meus desejos?! E nesse caso, acredita que o digo de todo o coração, preferia morrer antes de ter essa

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certeza. Mas eu sou parva, e mesmo estúpida, eu sei, mas se eu não te amasse tanto Nininho!... e duvidas tu tanto de mim! Não duvides não meu amor? E não tornes a pensar nada de mau da minha doença não? Repito: Olha que é tudo quanto há de mais natural uma senhora ter. Compreendes, não compreendes? E perdoa-me Nininho, as minhas explicações conquanto lacónicas, um pouco incorretas, mas receio as tuas suposições. Depois de leres rasga esta carta sim? Beija-te muito muito a tua Ofélia

CARTA A OPHÉLIA QUEIROZ – 25 DE SETEMBRO DE 1929 Exma. Senhora D. Ophélia Queiroz: Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está proibida de:

(1) pesar menos gramas, (2) comer pouco, (3) não dormir nada, (4) ter febre, (5) pensar no indivíduo em questão.

Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo. Cumprimenta V. Ex. ª Álvaro de Campos eng. Naval

CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 9 DE OUTUBRO DE 1929 Terrivel Bébé

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Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim . Fernando.