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António Ribeiro Sanches Cartas sobre a Educação da Mocidade Universidade da Beira Interior Covilhã – Portugal 2003

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António Ribeiro Sanches

Cartas sobre a Educação daMocidade

Universidade da Beira InteriorCovilhã – Portugal

2003

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Conteúdo

Das Escolas e dos Estudos dos Cristãos até o tempo de Carlos Magno, no ano 8001Reflexões sobre as Escolas Eclesiásticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

Continua a mesma matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5Ideia das Obrigações da Vida Civil e do Vínculo da mesma Sociedade. . . . . 7A constituição fundamental da Sociedade Cristã. . . . . . . . . . . . . . . . . 8

Continua a mesma matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Continua a mesma matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Como os Eclesiásticos introduziram governar os Estados Católicos pelas con-gregações dos primeiros Cristãos e pelas regras dos conventos. . . . . . 13

Das Universidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18Dos Estudos da Universidade de Coimbra depois da sua Renovação no ano 155319

Resumo do referido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21Efeitos que causaram em Portugal as Escolas e as Universidades da Europa e do

mesmo Reino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Continua a mesma matéria. Efeitos que causaram nos costumes as Leis

referidas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Continua a mesma matéria sobre a Escravidão e Intolerância Civil. . . . 26

Que a nossa Monarquia se podia conservar com a Educação Eclesiástica quetínhamos enquanto conquistava, mas que não é suficiente depois de aca-badas as Conquistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Objecto que devia ter a Educação da Mocidade Portuguesa no tempo del ReiDom João o Terceiro, e parece que ainda hoje. . . . . . . . . . . . . . . 30

Da Natureza da Educação da Mocidade e do Objecto que deve ter no Estadoonde é nascida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Qualidades dos Mestres para ensinar a ler e a escrever,. . . . . . . . . . . . . 35Do que haviam de aprender os Meninos além de ler, escrever e contar, etc.. . . 36Das Escolas da Língua Latina e da Grega, Humanidades, e da Língua Materna. 37Dos Mestres e dos Discípulos das Escolas do Latim, etc.. . . . . . . . . . . . 39Necessidade que tem o Reino de Escolas em modo de Seminários. . . . . . . 40

Continua a mesma matéria, e das Pensões das Escolas do Latim no Reinopor causa da Educação da Mocidade das Colónias e das Conquis-tas de Ultramar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Das três Classes de Discípulos das Escolas Latinas, etc.. . . . . . . . . . . . . 41Continua a mesma matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Digressão sobre as Pensões e sobre a Língua Latina tanto no Reino como nasColónias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Da terceira Classe de Estudantes que aprenderia nas Escolas Reais a LínguaLatina, Grega, etc.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

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iv António Ribeiro Sanches

Dos Estudos Maiores ou Colégios Reais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46Sobre o ensino que deve preceder as Escolas Maiores, quer dizer, da Física e da

Legislação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48Em que lugar se haviam de ensinar as ciências referidas. . . . . . . . . . . . . 50Da Educação da Fidalguia e dos Fidalgos que têm Assentamento e Foro na Casa

Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50Que sorte de Educação convém à Fidalguia Portuguesa que seja útil a si e à sua

Pátria?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52Continua a mesma matéria. Em que lugar devia ser educada a Fidalguia e

Nobreza de Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53O que são as Escolas Militares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54Propõe-se uma Escola Real Portuguesa para ser nela educada a Nobreza e a

Fidalguia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Em que idade deviam entrar os Educandos na Escola Real Militar?. . . . . . . 56Consequências por não criarem as Mães seus filhos. . . . . . . . . . . . . . . 57Dos Mestres da Escola Real Militar para a Arte da Guerra e das Ciências. . . . 58Das Línguas e Ciências que se deviam ensinar nesta Escola e em que tempo?. 59Ponderação sobre a Língua Latina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60Empregos e Honras com que haviam de sair os Beneméritos desta Escola. . . 61Utilidades que resultariam tanto ao Reino como ao Soberano do exacto exercício

desta Escola Militar que se propõe.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

Ilustríssimo Senhor

Quando V. Ilustríssima foi servido comunicar-meo Alvará sobre a reforma dos Estudos, que S. Majes-tade Fidelíssima foi servido decretar no mês de Julhopassado, e juntamente as Instruções para os profes-sores da Gramática Latina, e logo determinei mani-festar a V. Ilustríssima, o grande alvoroço que mecausou a real disposição sobre a educação da Moci-dade Portuguesa; mas embaraçado com alguma de-pendência que então me inquietava, e com a saúdemui quebrantada ao mesmo tempo, não pude satisfa-zer logo o meu desejo; não só aplaudindo o útil destalei, mas também renovando os mais ardentes votospela vida e conservação de S. Magestade que Deusguarde, que com o seu paternal amor cuida tão efi-cazmente no aumento, como também na glória dosseus amantes e fiéis Súbditos.

Esta lei, Ilustríssimo Senhor, incitou o meu ânimo,ainda que pelos achaques abatido, a revolver no pen-samento o que tinha juntado da minha leitura sobrea Educação civil e política da Mocidade, destinadaa servir à sua pátria tanto no tempo da paz como noda guerra. Ninguém conhece melhor a importânciadesta matéria, que V. Ilustríssima, e nesta considera-ção é que determino patentear-lhe não só uma sucintahistória da Educação civil e política que tiveram osCristãos Católicos Romanos até os nossos tempos,mas também uma notícia das Universidades, com autilidade ou inconvenientes, que delas resultaram aoEstado Civil e Político, e à Religião. Espero que serádo agrado de V. Ilustríssima que me ocupe nesta in-dagação por algum tempo, e que admirará, depoisde ser servido lê-la, a admirável providência de S.M. Fidelíssima, expressada neste Alvará que venhoa ler novamente. Verá V. Ilustríssima que não temosinveja aos Imperadores Teodósio, Antonino Pio, oua Carlos Magno; porque ainda que todas as monar-quias, e Repúblicas decretaram leis para reger-se aEducação da Mocidade, não li até agora que Sobe-rano algum destruísse os abusos da errada, e que emseu lugar decretasse a mais recomendável. Mostra-rei pelo discurso deste papel, que toda a Educação,que teve a Mocidade Portuguesa, desde que no Reinose fundaram Escolas e Universidades, foi meramenteEclesiástica, ou conforme os ditames dos Eclesiás-ticos; e que todo o seu fim foi, ou para conservar oEstado Eclesiástico, ou para aumentá-lo.

Somente S. Majestade Fidelíssima foi o primeiroentre os seus Augustos Predecessores, que tomou asi aqueles Jus da Majestade de ordenar que os seusSúbditos aprendam de tal modo, que o ensino pú-blico possa utilizar os seus dilatados Domínios. Sóeste grande Rei conheceu que como a alma governaos movimentos de todo o corpo para conservá-lo: as-

sim ele, como alma e inteligência superior do seu Es-tado, era obrigado (a) promover a sua conservação, eo seu aumento por aqueles meios que concebeu maisadequados. Aquele benigníssimo Alvará nos dá a co-nhecer que só a Educação da Mocidade, como deveser, é o mais efectivo e o mais necessário. PorqueS. Majestade, que Deus guarde com alta providência,considera que lhe são necessários Capitães para a de-fensa; Conselheiros doutos e experimentados; comotambém Juízes, Justiças, e Administradores das ren-das Reais; e mais que tudo na situação em que estáhoje a Europa, Embaixadores, e Ministros públicos,que conservem a harmonia de que necessitam os seusEstados; esta Educação não seria completa se ficassesomente dedicada à Mocidade Nobre; Sua Majestadetendo ordenado as Escolas públicas, nas Cabeças dasComarcas, quer que nelas se instruam aqueles quehão-de ser Mercadores, Directores das Fábricas, Ar-quitectos de Mar e Terra, e que se introduzam as Ar-tes e Ciências.

À vista do referido permita-me V. Ilustríssima quesatisfaça aquele ardente desejo, que conservei sem-pre, ainda tão distante e por tantos anos longe de Por-tugal, de servi-lo do modo que posso, ou que pensolhe servirá de alguma utilidade. Nem a ambição desair do meu estado, nem a cobiça de fazê-lo mais có-modo, me obriga a ocupar aquele pouco tempo, queme deixam os achaques, em juntar neste papel tudoaquilo que tem conexão com o Alvará que V. Ilus-tríssima foi servido ultimamente comunicar-me. Ésomente aquele ardente zelo, é somente aquele amorda pátria, que V. Ilustríssima acendeu de novo emmim pelo seu claro e penetrante entendimento tão ju-diciosamente cultivado, pela sua clemência, pela suapiedade, e por aquele ardor de promover tudo paramaior felicidade da nossa pátria, que satisfação quetenho neste instante! que louvo estas virtudes, tão ra-ras nos nossos dias, sem a mínima adulação, e semo mínimo interesse servil. Aqueles Portugueses quevivem pela piedade de V. Ilustríssima, e todos, nãosó confirmariam o pouco que digo, mas aumentariamde tal modo o que agora calo, que temeríamos ficasseofendida aquela modéstia e aquela inimitável afabili-dade, com que V. Ilustríssima sabe render os nossoscorações.

Das Escolas e dos Estudos dosCristãos até o tempo de CarlosMagno, no ano 800

Logo que os Santos Apóstolos saíram de Jerusalém apregar os preceitos do seu Divino Mestre, e estabele-

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ceram Congregações de fiéis Cristãos, e juntamenteEscolas para ensinar a Doutrina Cristã: os Mestresque nelas residiam eram os Bispos, e os Diáconos, etambém alguns Cristãos mais bem instruídos, que en-sinavam àqueles, que queriam baptizar-se. O Abadede Fleury1 que seguiremos nestas notícias, diz quenestes três primeiros séculos da cristandade não ha-via outras Escolas públicas, entre os Cristãos, que asreferidas.

A doutrina que se ensinava nestas Escolas era aexplicação das sagradas Escrituras, os Mistérios daFé, e tudo o que conduzia para a observância da Re-ligião Cristã. Na Escola de Alexandria, Origenes eClemente de Alexandria ensinaram esta doutrina, enão lemos nas suas obras, que ensinassem ciência al-guma humana, como também nas de Santo Atanásio,São João Crisóstomo, São Cirilo, ou Santo Agosti-nho, que todos ensinaram, e formaram discípulos ex-celentes.

Ainda que Clemente de Alexandria, e quase to-dos os Santos Padres fossem doutíssimos, e intei-ramente instruídos nas ciências humanas, não as ti-nham aprendido nas Escolas Cristãs, mas nas dosGentios Gregos, e Romanos; e como destes muitosse converteram à Religião Cristã, daqui procedeu se-rem instruídos tão cabalmente em toda a sorte de Li-teratura; porque naqueles tempos a Igreja não neces-sitava para a sua conservação e aumento, que da ci-ência das Coisas Divinas, pois que vivia debaixo doDomínio das Potências mundanas; e se tinham entãopor profanos aqueles Eclesiásticos que ensinavam,ou estudavam outros conhecimentos, que os sagra-dos.

O método de ensinar nestas Escolas Sagradas eraprimeiramente corrigir e arrancar do ânimo daque-les que se queriam baptizar, os maus costumes, quetinham contraído na sua educação; quando uma vezchegavam a sair do caminho dos vícios, e que nelesse observava o ardente desejo de baptizar-se, eramadmitidos às instruções mais elevadas como são asda Fé e das Escrituras Sagradas.

Já vemos nestas Congregações dos primeiros Cris-taõs duas sortes de ensino, o primeiro dosbons cos-tumes, e o segundo dosmistérios da Religião. Doprimeiro tinham cuidado dos Inspectores ou guardasdos Costumes; e do segundo os Mestres que eram osBispos, Diáconos, e os mais instruídos nas EscriturasSagradas.

De tão limitados princípios, como veremos pelodiscurso deste papel, saiu aquele poder que têm osBispos sobre todos os Estudos e Escolas da Cristan-dade, como também aquela geral inspecção sobre os

1Discours sur l’Histoire Écclesiastique, Discours II.§XIII. Paris, 1750. in-8.o

costumes: veremos que os Imperadores Cristãos, eos Monarcas seus sucessores deixaram no seu podere arbítrio, estas duas obrigações, que têm de mandareducar os seus Súbditos pelas suas direcções, e decorrigir e regrar os costumes nos seus Domínios.

No princípio do século IV já estava a ReligiãoCristã espalhada por quase todo o mundo conhecido;já floresciam as Escolas Cristãs em Alexandria, e Je-rusalém, Antiochia, e em Roma; já nelas se ensina-vam a Gramática, as Humanidades, e a Filosofia, eprincipalmente depois que começou a reinar Cons-tantino Magno, e seu Filho Constâncio. Porque ve-mos que o Imperador Juliano Apostata proibiu poruma lei decretada no ano 3622, que nenhum Cris-tão ensinasse publicamente a Gramática ou Filoso-fia, nem outra qualquer ciência; sinal evidente que osCristãos naqueles tempos eram já Professores destasciências.

Mas como esta proibição não durou muito tempo,ficaram os Professores Cristãos senhores das Esco-las, nas quais ensinavam antes. Porque por uma leidos Imperadores Valentiniano, e Valente, decretadano ano 365 entraram de posse os Mestres das Es-colas nos seus cargos3. E para que mais facilmentese compreenda, que toda a Educação da MocidadeCristã ficou à disposição dos Bispos, tanto na instru-ção como nos costumes, relataremos aqui as leis quedecretou Constantino Magno em seu favor, e da Re-ligião Cristã, para ficarmos persuadidos do que ficadito antecedentemente.

Relata Baronio4 que Constantino Magno mandouabolir os templos da idolatria e os colégios dos seusSacerdotes, que permitiu aos Bispos dar liberdadeaos Escravos que abraçassem a Religião Cristã, au-toridade que só tinha o Pretor Romano com muitasformalidades: que ordenara aos Tesoureiros, e aosColectores dos Celeiros de todo o Império, dar aosBispos a quantidade de trigo que lhes pedissem paradistribuir por aqueles Cristãos que fizessem ou tives-sem feito voto de castidade; abrogando ao mesmotempo a lei Julia Papia e Poppea de Augusto César,pela qual os Celibatários ficavam excluídos das he-ranças dos graus transversais. Que todos os Eclesiás-ticos fossem isentos de todo o cargo civil e militar;abrogando por esta lei a do Império, no qual para en-trar nos grandes cargos da República era preciso estaralistado em algum colégio Sacerdotal do Gentilismo.

2Apud Baronium, tom. IV. pág. 107 & 108. Ed. Ro-manæ, ex Epistol. 42 Julian. Apostat.

3Apud Baronium, tom. IV pág. 172. «Si quis erudien-dis adolescentibus vita pariter & facundia idoneus erit, velnovum instituat auditorium, vel repetat intermissum, Dat IIIId Januar. Divo Jovian. & Varroniano. Coss».

4Tom. 3. Editionis Romanæ, per totum.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 3

Permitiu tanto aos Seculares como aos Eclesiásticos,apelar para os Bispos depois da final sentença nosTribunais Seculares, e que do Tribunal dos Bisposnão haveria apelação5; que os Bispos e os Clérigosse vestissem da mesma sorte de vestidos, de que usa-vam os Sacerdotes da Gentilidade: permitiu a cadaqual testar bens móveis e imóveis em favor das Igre-jas, ainda que esta lei foi abrogada pelos Imperadoresseus sucessores: que as terras pertencentes à Igrejaseriam isentas de todas as taças e tributos. Esta leié a última que se lê no Códex Teodosiano com datado ano 315; e a maior parte dos Comentadores a têmpor espúria.

Não era factível num Império tão dilatado, comoera então o Romano, que todas estas leis se executas-sem como requeria o zelo dos Eclesiásticos; mas écerto que no tempo do Imperador Teodósio o Grande,a maior parte das leis referidas, ou estavam em seuvigor, ou tinham sido reformadas em utilidade, maisda Religião Cristã e Eclesiásticos, que do Estado.

Autorizados os Bispos com a jurisdição do Pretor,e da divina instituição, de ensinar e de pregar, ins-tituiram cada qual nas suas Igrejas, não somente asEscolas para aprender a Religião Cristã, mas aindaas ciências humanas, que naqueles tempos, quase to-das se reduziam à eloquência e à ciência moral doEvangelho e ao mesmo tempo tomaram a si a incum-bência de regrar os costumes, com tanta exactidãoque do tempo de Constantino, acabou num seu Tioaquele honorífico e tremendo cargo de Censor, dig-nidade deste Império, para correcção dos costumesda Gentilidade.

Até o tempo de S. Gregório o Magno, a mais Ilus-tre Escola foi a de Roma, ainda que existia aquela deAlexandria e de Constantinopla; mas ou porque as ci-ências humanas não eram necessárias para o aumentoda Fé, ou por outras causas que relataremos, é certoque do tempo de Teodorico, primeiro Rei dos Godosem Itália, no ano de 494, reinava tanta ignorância,que todas as letras se extinguiram totalmente, se osFrades de S. Bento, de S. Basílio, e os Eclesiásticosnas suas Sés, não conservassem os originais Gregose Romanos, que temos ainda nos nossos tempos.

Não somente a invasão das Nações bárbaras nodomínio do Império Romano destruiu as ciências,mas também a errada economia do Imperador Jus-tiniano6. Este suprimiu os salários aos Mestres e

5No Decreto de Graciano. Pat. II. Causa XI. Cap. 2 &3. 36 & 37. Vid.Fleury,Histoire Eccles.liv. 59. n.28. &les Discours VII sur l’Histoire Eclesiastique.

6Apud Herm. Conringium de antiquitatibus Academi-cis, editionis Heumanni, Dissert. VII. Gotingæ, 4.oibi pág.33. Dissert. prima. O Imperador Justiniano viveu no ano565.

Professores nas Escolas e nas Academias tanto deAtenas, Alexandria e Roma, como no resto do Im-pério; porque este Imperador, como nos consta deProcópio7 e Zonaras8, dispendia profusissimamenteem edificar Igrejas e muitos outros edifícios; e nãobastando as rendas Imperiais a tantas despesas, lhefoi preciso suprimir aquelas que fazia o Império comos Mestres e Professores das ciências.

Entre os Cânones do Concílio de Cartago, cele-brado no ano 6869, se lê que dali por diante não fossepermitido a nenhum secular entrar nas Igrejas Cate-drais, e que nenhum Bispo pudesse ler livros com-postos por Autores idólatras.

Até ao sétimo século, todos os frades eram lei-gos e todos pela Regra de S. Bento10 trabalhavamsete horas por dia, e o resto do tempo gastavam nameditação dos divinos preceitos. Mas depois queacrescentaram o ofício de Nossa Senhora ao grandeofício ou reza, e um grande número de Salmos, oque tudo se cantava já pelo Canto Gregoriano queS. Gregório Magno tinha introduzido nos Conven-tos e nas Catedrais pelos anos 600, não havia maistempo, que para satisfazer a obrigação do Coro, fal-tando aquele que se empregava no trabalho corporale nos estudos das letras sagradas e profanas: comojá nestes tempos havia Conventos bem dotados comterras em Itália, Alemanha e França, sempre neles seconservaram as Escolas e persistiram na Ordem de S.Bento até ao ano 1337; e neste mesmo, o Papa Be-nedicto XII proibiu-lhes que ensinassem; ordenandosomente que os Frades estudassem a Filosofia e a Te-ologia11.

No século VIII começou a Ordem dos Cónegos deS. Chrodegang; viviam nos seus cabidos do mesmomodo que os Frades nos seus Conventos; ensinavampublicamente a Gramática, a Retórica, a Aritmética,a Música, a Geometria e a Astronomia; mas com tãopouco conhecimento da verdadeira ciência, que pas-sam estes tempos por bárbaros, e os mais depravadosnos costumes12.

Nos Capitulários de Carlos Magno13, decretadosno ano 787, se ordena que se erigissem Escolas deler para os meninos; e que em cada Mosteiro, e emcada Sé houvessem Mestres que ensinassem a Gra-mática, o Canto Gregoriano e a Aritmética; esta lei

7In arcana Historia, pág. 113.8Tom. 3.9Traité des Ecoles Episcopales & Eclésiastiques, par

Claude Joly, Paris, 1678, ibi, pág. 92, & 112 & 113.10Escrita por este Patriarca, no ano 530.11Joly, ibi, cap. XXI.12Discours sur l’Histoire Ecclés. de M. l’abbé de Fleury.

Discours m.13Apud Joly,Traité des Ecoles Episcopales.Cap. 18.

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não era mais que para obrigar os Bispos, e os Prela-dos dos Conventos, a observar pontualmente o cos-tume que tinham de ensinar não só as artes referidasneste Capitulário, mas também a Teologia e o Di-reito Canónico. Do referido vemos claramente queaté o século IX somente se ensinaram nos Mosteirose nas Sés a Gramática, a Aritmética, o Canto Gre-goriano, a Retórica, a Dialéctica, a Teologia e o Di-reito Canónico; que os Mestres eram unicamente osFrades e os Eclesiásticos e que não havia Escola al-guma onde ensinassem os Seculares. Desde o ano500, quando toda a Europa se devastava em guerrascontínuas pelas bárbaras Nações do Norte e os Sar-racenos, nenhum Príncipe tinha outra maior necessi-dade do que ter um exército potente para resistir a tãopoderosos inimigos. Nenhum Secular tinha tempode aplicar-se às letras, e eram raros naqueles temposos que sabiam ler, ou escrever: foi preciso os Ecle-siásticos aplicarem-se às letras, não só para ensinar aReligião Cristã, mas também para servirem aquelesEstados que todos por necessidade vieram a ser mili-tares. Necessitavam os Príncipes de Ministros de Es-tado, de Embaixadores, e de Médicos; necessitavamos povos de Juízes, de Advogados de Notários pú-blicos, só nos Conventos e nos Cabidos achavam aspessoas que podiam exercitar estes cargos. Não nosdevemos admirar que os Frades e os mais Eclesiásti-cos servissem estes empregos meramente seculares,considerando a ignorância daqueles tempos, causadapela irrupção de tantas Nações bárbaras e conquista-doras de toda a Europa.

Reflexões sobre as EscolasEclesiásticasLouvemos e admiremos, Ilustríssimo Senhor, a realdisposição de S. Majestade, que Deus guarde, de su-primir as Escolas que estavam no poder dos Ecle-siásticos Regulares: alegremo-nos e redupliquemosos nossos ardentes e amorosos votos pela sua con-servação, quando temos nele um tão amoroso Paicomo Senhor providente no nosso bem e do nossoaumento.

Tem visto V. Ilustríssima que as Escolas eclesiás-ticas foram somente instituídas para ensinar a dou-trina Cristã, a saber os Mistérios da Fé, expressadosnas sagradas Escrituras e nos Santos Padres. Todoo fim, e todo o cuidado daqueles primeiros Mestres,era de formarem um perfeito Cristão, e não pensa-vam ensinar aos seus discípulos aqueles conhecimen-tos necessários para viver no Estado civil, ou parao servir nos seus cargos: Estavam aqueles piedososCristãos tão fora de servir a República, que tinham

então por pecado assentar praça de soldado, ou serJuiz para julgar causas Civis ou de Crime. Governa-ram os Santos Apóstolos, e os Bispos seus sucessoresas suas Igrejas, ou as Congregações de Fiéis; comose governaram depois os Conventos dos Frades; to-dos uniformes na Santa Fé, todos unidos pela cari-dade Cristã; e se havia algum entre eles que se nãoconformava à santa doutrina que professava a Con-gregação, lhe negavam os Santos Sacramentos, e lheimpediam assistir aos Ofícios Divinos. Assim vive-ram estes Cristãos nos primeiros três séculos da Cris-tandade, umas vezes tolerados com clemência peloEstado dominante, outras vezes com crueldade pelosPríncipes tiranos; mas sempre foram obedecidos, evenerados, apesar de sua tirania; porque lhes paga-vam os tributos como devidos, e executavam as suasleis como fiéis, e obedientes Súbditos. Seria naque-les tempos pecado que os Bispos ou Prelados pensas-sem em possuir bens de raiz, a ter jurisdição temporalsobre os leigos, e a servir cargos da República. Re-pousavam no governo político que os defendia dasinvasões dos inimigos do Estado; porque tinham porpecado pertencer-lhe para o servirem; estando todosdedicados a servir somente de todo o coração, e comtodas as suas forças, a seu Divino Mestre Nosso Se-nhor Jesus Cristo.

Mas logo que o Imperador Constantino Magnoabraçou o Cristianismo; logo que mandou fechar ostemplos da idolatria, isentar os Eclesiásticos de ser-vir cargos da República, e ao mesmo tempo dar ju-risdição aos Bispos de julgar causas Civis, e de se-rem sem apelação as suas sentenças, imediatamentesairam os Cristaõs Seculares e Eclesiásticos daquelasantidade de vida, e para falarmos ao modo dos nos-sos tempos, pode-se dizer, que os Cristãos do tempode Constantino voltaram para o século: porque pe-las doações que faziam às Igrejas e aos Conventos, játinham bens móveis, e de raiz; já serviam cargos Ci-vis e militares; já eram reputados por Súbditos paraservirem a sua pátria.

Mas o que é digno de reparo nesta mudança devida, é que não mudaram nem adiantaram o ensinodas Escolas que tinham antes de Constantino; e queadiantaram com excesso aquela incumbência de ensi-nar, e de corrigir os costumes; o que veremos abaixo.Parece que os Eclesiásticos, Mestres das Escolas notempo deste Imperador, eram obrigados a ensinar asobrigações com que nascem todos os Súbditos an-tes de serem Cristãos: porque logo que por lei doImpério a Religião Cristã era a dominante, logo queos Cristãos eram obrigados a concorrer com os seusbens, ou com as suas pessoas, a servir a sua pátria;parece que era da obrigação daqueles Mestres educá-los com tais princípios, que satisfizessem à obriga-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 5

ção com que nasceram, e à obrigação que contraíram,quando se baptizaram. Já as Escolas do Gentilismopela maior parte estavam extintas: já não havia outrasmais que as dos Eclesiásticos; e se nestas a Mocidadenão fosse educada para aprender o que havia de obrarpelo resto da vida, ficava destituída de todos os fun-damentos para viver como bom Cidadão e como bomCristão.

Mas o que fizeram os mestres das Escolas nosMosteiros, e nos Cabidos das Sés? Não ensinaramoutra doutrina, nem outros conhecimentos, do queaqueles que contribuíam para fazer um bom Cristão,ou um bom Eclesiástico.

E que fizeram os Bispos autorizados já a governare a reger os costumes? Estenderam este poder nãosó dentro dos seus Cabidos e das suas Igrejas, masainda dentro de todas as cidades e aldeias, obrigandoa viver como viviam os Cristãos dentro dos Conven-tos, ou naquelas Congregações da primeira Cristan-dade das quais dissemos acima a sua constituição egoverno.

De tal modo que os Eclesiásticos quiseram gover-nar e governaram o Estado civil, pelas regras e pelasconstituições dos Conventos e das Catedrais, onde sevivia em comunidade; onde os bens temporais eramem comum, onde as vontades e as opiniões tanto nascoisas celestes, como nas mundanas, eram e deviamser conformes, pois que todos viviam debaixo da re-gra, e do mando de um Prelado.

Mas o que deu maior movimento a estas dispo-sições eclesiásticas foram as leis referidas acima deConstantino Magno. Este pio Imperador pôs em exe-cução, como também os seus sucessores,que o Es-tado Civil fosse regido e governado pelas regras econstituições dos Conventos e dos Cabidos; abro-gando e derrogando ao mesmo tempo as leis civis, eas políticas do Império Romano, como vimos acima,abolindo o cargo de Censor, do qual se apoderaramos Bispos: derrogando ao cargo de Pretor, ou Chan-celer Mor, o poder de dar alforria aos Escravos, eque as sentenças dos Bispos fossem sem apelação;abolindo a natureza das coisas que hão-de servir aoEstado em todo o tempo; dando imunidades aos Súb-ditos dele, e aos seus bens de raiz, para não servirem,nem pagarem os tributos, sem os quais não se podeconservar uma República.

Ainda que muitas causas concorreram para a des-truição do Império Romano, é evidente que estas dis-posições e leis de Constantino foram a causa princi-pal. Mas já me apercebo que vou saindo muito doobjecto deste papel que propuz a V. Ilustríssima paraver o fundamento da Educação política, que deve terum Estado Cristão Católico. E como as Universida-des são hoje os Seminários do Estado político e re-

ligioso da República Cristã, permita-me, V. Ilustrís-sima, indagar a sua origem e seus objectos, e quan-tas circunstâncias concorreram para que os Impera-dores, Reis e Repúblicas fossem governadas, comosão ainda hoje, por estas Escolas.

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Já que os sumos Pontífices e os Bispos14 se arroga-ram o poder absoluto da Educação das Escolas daCristandade, e de corrigir os costumes, é preciso queindaguemos a origem destes poderes: e então vere-mos que Sua Majestade Fidelíssima é o Senhor comlegítimo Jus de decretar leis para a Educação dosseus leais Súbditos, não só nas Escolas da puerícia;mas também em todas aquelas onde aprende a Mo-cidade. Parece-me, Ilustríssimo Senhor, ser da maiorimportância esta matéria, porque até agora não acheiAutor que tratasse dela, como necessita oJusda Ma-jestade.

A forma, a união, o vínculo do Estado civil e po-lítico, e o seu principal fundamento é aquele consen-timento dos Povos a obedecer e servir com as suaspessoas e bens ao Soberano; ou que este consenti-mento seja recíproco, ou que seja tácito ou declarado,sempre forma um Estado, ou Monárquico, ou Repu-blicano.

Mas o que constitui ser o Estado um ajuntamento,ou corpo civil e sagrado, é ojuramento de fidelidademútuo entre o Soberano e os Súbditos, tácita ou de-claradamente. No acto desta convenção invocam oscontratantes deste pacto ou contrato, aDivindadequemais veneram portestemunhae caução, que hão-deexecutar o que prometem sujeitando-se ao prémio ouao castigo, conforme o cumprirem. Daqui vem quetodos os Estados Soberanos estão formados por in-vocação daquela Divindade, que mais veneravam osPovos e o Soberano15.

14Decretalium lib. v. tit. 33. de Privilegiis Cap.su-per specula. «Sane licet Sancta Ecclesia legum seculariumnon respuatfamulatum... firmiter interdicimus & distric-tius inhibemus, ne Parisiis, vel in civitatibus, seu aliis locisvicinis, quisquam docere vel audire juscivile proesumat».Gregor. IX. Præsat. lib. I, Decretal. «Volentes igitur ut hactantum compilationeUniversi utantur in Judiciis et in Scho-lis, districtius prohibemus, ne quisproesumat aliam facereabsque autoritate SedisApostolicæ speciali».

E o Papa João XXII no ano 1316 no Prefácio às Clemen-tinas, feitas para a Universidade de Bolonha, diz «Universi-tati vestræ per Apostolica Scripta mandantes, quatenus easpromptu affectu suscipiatis, & studio alacri, eis, sic vobis,manifestatis, & cognitis, usuri de cætero inJudictis, & inScholis».

15Concílio de Trento, Sess. XXV, de Reformat. Cap. II.

6 António Ribeiro Sanches

Daqui vem chamar-se o Estado, sacrosanto e coisasagrada.

Daqui procede que nenhum estado civil pode for-marse, nem existir em seu vigor, sem uma Religião,e sem observar-se o sagrado do juramento.

Eu bem sei que nas Monarquias, que se fundaramconquistando, não entreveio nelas aquele consenti-mento mútuo, nem juramento de fidelidade, no ins-tante que se formaram pela força da espada. Maslogo que o Conquistador quiser conservar a sua con-quista, é necessário decretar leis; é necessário queele dê a conhecer aos povos Conquistados, que vi-veram mais felizes no presente governo, que no pas-sado; os povos consentem tácita ou declaradamente,dão juramento para exercitar os cargos daquele Es-tado, e deste modo o Conquistador e os Conquista-dos, cada qual por seu interesse próprio, convêm re-ciprocamente; o Soberano, de os conservar e os Súb-ditos, de obedecer, invocando a Divindade por cau-ção e testemunha da convenção que celebram.

Quando os Portugueses no campo de Ouriqueaclamaram Dom Afonso Henriques por seu Rei;quando em Coimbra aclamaram o Mestre de Avispor Rei de Portugal, tácita ou declaradamente, lhesderam todosJuramento de Fidelidade, invocando oSumo Deus como testemunho e caução que lhes obe-deceriam e serviriam com suas pessoas e bens, comtanto que estes Reis os governassem e defendessem,e que vivessem mais felizes, que no Estado prece-dente.

Deste modo tão livre e tão excelente, ficou o Es-tado de Portugal formado: os seus Soberanos não co-nhecem superior, mais do que a Divindade suprema,que invocaram no acto do juramento de fidelidade,que lhe prometiam os seus povos, prometendo tácitaou declaradamente, de governá-los de tal modo quefossem mais felizes do que antes eram.

Daqui provém o sagrado do Estado, porque foiformado com invocação do Altíssimo como testemu-nha e como caução dos juramentos recíprocos.

Daqui vem o supremo poder dos nossos Reis, quetêm em si vinculadas todas as jurisdições do primeiroGeneral, que pode dar juramento, levantá-lo, alistartropas, e licenceá-las, & c. tem a jurisdição do pri-meiro Juiz, pode condenar a penas pecuniárias, exí-lio, e de vida e morte: é o primeiro Vedor da fazendado Estado, pode cunhar moeda, fazer todas as leisque achar são necessárias para promover toda a sortede agricultura, comércio e indústria: é o primeiro paie conservador dos seus Estados; é o Senhor de decre-tar todas as leis que achar necessárias para a conser-vação e aumento dos seus domínios; fundando esta-belecimentos para formar toda a sorte de Súbditos naEducação da mocidade, nas artes liberais e mecâni-

cas, nas ciências necessárias no tempo da paz, e daguerra, & c.

Está também incluído noJusda Majestade aquelesupremo cargo de primeiro Mestre ou de primeiroSacerdote da Religião natural, desde aquele instanteque se formou o seu Estado civil e político pelo jura-mento.

Não se ofenderá, V. Ilustríssima, deste atributo,que dou aos Monarcas Cristãos Católicos: todos seconvencerão facilmente do que afirmo, quando pen-sarem que as duas leis mais irrefragáveis de qualquerEstado assim formado, são as seguintes.

«Que a conservação do Estado civil é a primeira ea principal lei».

«Que cada súbdito está obrigado a obrar com osoutros, como ele quisera que obrassem com ele».

Enquanto os homens viviam como feras, e comovivem ainda hoje muitos povos da América e daÁfrica, o mais esforçado, e o mais valente era o quecaçando e matando, tinha o maior domínio; porqueestes homens, ou viviam e vivem da caça, ou dosfrutos, conchas, peixes da borda do mar: e o mais ex-perimentado seria, e é ainda hoje, o maioral daquelesranchos. Já se sabe que a maior parte destes povos vi-vem sem nenhum conhecimento da Divindade, comona Ilha de S. Lourenço, e em muitos outros lugaresdo mundo habitado.

Mas tanto que os homens se juntaram por pactoe consentimento mútuo de se ajudarem e socorrerementre si, já nem o mais valente, nem o mais ousado,há-de ser o primeiro. Porque os homens no ponto da-quele contrato mútuo depuseram no poder e na dis-posição do Soberano ou Maioral, todas as acções vo-luntárias que obravam antes que se juntassem em So-ciedade; depuseram nas suas mãos aquele poder quetinham de matar, de furtar, e todas aquelas acções queseriam nocivas, e destruidoras da Sociedade.

Ficou então em depósito na mão do Soberanoaquele poder dos Súbditos para obrar acções exte-riores; ficou à sua disposição regrá-las por leis, pre-venir que se não cometesse insulto que alterasse oucorrompesse a união e harmonia que deve Reinar noEstado Civil; ficou no seu poder castigá-las comoachasse conveniente para a sua conservação.

Duas coisas ficaram somente no poder dos Súbdi-tos, mesmo naquele instante que deram juramento defidelidade ao seu Soberano.

A primeira: a Propriedade dos seus bens, comobrigação tácita ou declarada, que parte da sua rendaseria para sustentar o Estado.

A segunda: Aquela liberdade interior de querer,não querer, amar, aborrecer, julgar, ou não julgar, ver,ou não ver: que são as acções interiores que passamdentro de nós, e que se não mostram por acções ex-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 7

teriores, que todo o mundo possa observar visivel-mente.

Deste estado da Sociedade civil, assim formado,resultaram logo aigualdadeentre todos os Súbditos,e asubordinaçãoaos magistrados.

Porque todos os Súbditos, enquanto Súbditos, en-quanto estão ligados por aquele juramento de fideli-dade, todos são iguais; e a maior ruína de um Estado,é que entre eles haja diversidade, uns com obrigaçãode obedecer, e outros absolutos; uns sujeitos às justi-ças, e outros sem nenhum Império16.

Como o Príncipe Soberano não pode exercitar to-dos os cargos dos seus exércitos, e das suas armadas;como não pode julgar todos os processos e deman-das; como é impossível a pessoa humana cumprircom todos os cargos que requer a fazenda Real e ostributos para sustento do Estado, o que faz é dar es-tas várias incumbências àqueles Súbditos que foremmais capazes de as exercitar, e cumprir. Assim quecada um destes é condecorado com parte, ou porçãodo Poder da Majestade.

Daqui vem que toda a distinção, subordinação,preeminência que houver entre os Súbditos, provémsomente doJusda Majestade. Aquela distinção deNobreza, e da Fidalguia, provém somente do Poderdo Soberano, e não da ascendência, nem da geração:porque todos os Súbditos pelo juramento de fideli-dade são iguais, como fica demonstrado.

Ideia das Obrigações da VidaCivil e do Vínculo da mesmaSociedade

Já vimos o Estado Civil formadopelo juramento defidelidade, já vimos que o Soberano, como alma, esuperior inteligência deste corpo civil, era aquele quemoderava, que movia, e retinha as acções dele paraa sua conservação, e seu aumento; autorizado com opoder de todas as acções exteriores dos Súbditos, defintá-los naquela parte dos seuspróprios bens paraconservação do Estado, de obrigá-los a servir pesso-almente para o mesmo fim, e por último a nomearos Súbditos mais capazes para executarem as váriasobrigações da Majestade.

Punhamos agora em exercício esta Sociedade Ci-vil, este Reino, esta República, assim formada eunida; mandamo-la aparecer numa feira, ou numapraça. Uns trariam ali fazendas a vender, outrospara trocar, ou comprar: uns quereriam comprar umcampo, uma casa, fretar um navio: outros quereriam

16Platão lib. V. de República.

buscar um Amo: era necessário que cada uma destaspessoas falasse numa língua, para se entenderem; eque cada um que procurava a sua utilidade estivessepersuadido que o que adquiria neste trato lhe perten-cia em propriedade. Ali seria necessária aafabili-dade, a verdade, a fé, a pontualidade; o ouvir facil-mente, o responder com agrado a cada um era neces-sária uma certa igualdade; enfim todas aquelas qua-lidades, e virtudes civis que são necessárias para otrato, e para o comércio da vida, sem o qual não podesubsistir o vigor de uma República.

Suponhamos que todos os que apareceram nestafeira ou praça, que conservavam ainda aqueles cos-tumes silvestres, duros, e bárbaros; que em lugar decontratar, que roubassem; que em lugar de persuadircom razões, que pelejassem, se debatessem, ou feris-sem; que alegassem que por serem filhos de fulano,e fulano que não deviam pagar pelo que compravam;que por pertencerem a certo Senhor, que podiam to-mar o que lhes agradasse: já toda a Sociedade, játoda a feira se revolveria, e acabaria por desordem econfusão.

Deste tosco retrato da vida civil posta em acção, sevê claramente, que para a conservação de cada qual,lhe são necessários tais hábitos, e tais virtudes, quedependam do princípio seguinte.

«Todas as acções que não forem úteis a si, e aoEstado, e ao mesmo tempo que não forem decentes,são viciosas, destruidoras da conservação própria, epor consequência da vida civil».

Todas as leis que decretar o mais excelente Legis-lador, todo o trabalho e indústria de cada particular,se não levar autilidade por último fim, vem a ser adestruição do Súbdito, e do mesmo Estado: assimque a utilidade pública e particular vem a ser o vín-culo e alma da vida civil17; esta utilidade deve sersempre acompanhada com adecência, que é aquelavirtude que modera os excessos, ainda aqueles damesma virtude, porque de outro modo seria vício.

Enquanto as Repúblicas da Grécia e a Romana,conservaram as virtudes referidas com afrugalidade,a fé particular, epúblicanos Tratados; orespeito, e aobservânciado juramentodefidelidade; averdade, asinceridade, aconstância, e aquelasubordinaçãoad-mirável entre os Súbditos, e os Magistrados semprese conservaram potentes, e conquistaram seus inimi-gos com glória.

Ainda que tivessem Religião, e várias sortes deSacerdotes adorando muitas Divindades, estes Mi-nistros Gentios não tinham incumbência alguma deensinarem as virtudes referidas, nem o mínimo cui-dado da consciência: S. Agostinho, e Lactâncio Fir-

17Atque ipsa utilitas justi prope mater & æqui. Horat. I.Sermon. 3. v. 98.

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miano18 afirmam claramente: o seu ofício era decla-rar aos povos os dias de festa, celebrarem os seussacrifícios, presidirem nas procissões, e mais espec-táculos públicos, em jantares, em danças, e outrasacções, que todas eram exteriores; somente os Filo-sófos, e os mais velhos tinham este cuidado, comolemos nas obras de Marco Aurélio.

De tudo o referido se vê claramente que é dojusda Majestade fomentar e promover autilidade pú-blica e particular, comdecência; e que nenhuma re-quer maior atenção no ânimo do Soberano, do que aEducação da Mocidade, que deve toda empregar-seno conhecimento, e na prática das virtudes sociáveisreferidas, e em todos os conhecimentos necessáriospara servir a sua pátria. Mas antes de entrar no planodesta educação, satisfaremos o prometido acima, queé mostrar mais circunstanciadamente.

A constituição fundamental daSociedade Cristã

Eu sei que os livros, que tratam da Origem do poderEclesiástico, como são as obras do Abade de Fleury,de Gianoni, Natal Alexandre e outros mais, são proi-bidos pela Inquisição; que o Direito Canónico, quese contém no Decreto, Decretais, Sexto, e Clemen-tinas, se ensina, e se crê como de fé nas Universi-dades, e que quase todos aqueles que estão empre-gados nos cargos públicos tomaram o seu grau na-quela Faculdade; e que todos aqueles que o tomamna Universidade de Coimbra, que juram defenderãoas leis dela, que são as Eclesiásticas: bem sei que seacharam muitos Graduados em Portugal, tanto Mi-nistros Seculares, como Eclesiásticos, levados do en-sino que tiveram em Coimbra, e da leitura do DireitoCanónico, e Concílio de Trento, que duvidaram se S.Majestade tem poder para ordenar Escolas, e Univer-sidades; porque esta matéria dependia até agora dosBispos, e do Sumo Pontífice. Considere V. Ilustrís-sima, que bem executadas serão as Ordens de S. Ma-jestade ordenadas pelo Alvará referido, se esta sortede Doutores forem os executores? Bem vê V. Ilus-tríssima já as consequências, e também a indispen-sável obrigação que tenho de tratar com clareza, daorigem doPoder dos Eclesiásticos, que se arrogaram

18De civitate Dei lib. II. Cap. VI. «Alii religionis an-tistites per quos sapere non aditur, apparet, nec illam esseveram sapientiam, nec hanc veram Religionem».

Lactant. lib. V Divin. Institit. Cap.III. n.o1. «Nihilibi definitur quod proficiat ad mores excolendos, vitamqueformandam; nec habet inquisitionem aliquam veritatis, sedtantummodo ritum colendi, qui non officio mentis, sed mi-nisterio corporis constat».

fundar as Escolas, as Universidades, como também acorrecção dos costumes.

Deus seja louvado que me chegou ainda a tempoque os PP. da Companhia de Jesus, não são já Con-fessores nem Mestres; porque se conservassem aindaaquela aquisição, tão antiga, nenhuma das verdades,que se lerão neste papel poderiam ser caracterizadascom outro título, que de heresias! A Deus sejam da-das as graças, que pela infatigável providência de S.Majestade, todos estes obstáculos se dissiparam, eque como no tempo de Nerva posso dizer com Tá-cito: «Rara temporum felicitate, ubi sentire quæ ve-lis, & suæ sentias dicere licet»19.

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O Fundamento da Religião Cristã, é aquela caridade,aquele amor do próximo que obriga por preceito di-vino, não só a perdoar as ofensas, mas ainda a so-correr e fazer bem a quem ofendeu. É certíssimoque a Igreja fundada por Cristo, e os seus Apósto-los tem jurisdição sobre as consciências, sobre todasas acções mentais, do mesmo modo que a jurisdiçãocivil tem todo o poder sobre todas as acções exterio-res humanas. Esta sagrada jurisdição deu Cristo aosseus Apóstolos, dizendo-lhes20: Andai e ensinai to-das as Nações, e também as baptizareis em nome doPadre, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as aobservar tudo o que vos ordenei.Vê-se claramenteque toda a jurisdição que Cristo deu à sua Igreja, sereduz a ensinar os preceitos do seu Evangelho, e a ad-ministrar os Sacramentos, incluindo-se todos na basedeles, que é o baptismo. Mas esta jurisdição todase reduz aos bens espirituais, à graça, à santificaçãodas almas, e à vida eterna; porque Cristo declarou elemesmo que o seu Império não era deste mundo, nemsobre as acções exteriores dos homens. Recusou serárbitro entre dois Irmãos que queriam repartir a suaherança, dizendo:E quem me autorizou a mim paravos julgar21. Deu também autoridade aos Apóstolosde absolver os pecados, e de negar a absolvição aospecadores impenitentes22.

Esta é a base e o fundamento essencial da Reli-gião Cristã. Se os Eclesiásticos conservassem estasanta doutrina, se considerassem que o seu poder sereduzia todo dentro da Igreja sobre os Fiéis que es-pontaneamente queriam participar aos Mistérios di-

19Histor. lib. I, cap. I.20Mateus. 27, v. 18. Data est mihi omnis potestas, in

cælo & in terra: Euntes ergo, docete omnes gentes, bap-tizantes in N. P. & F. & S. S. docentes eos servare omniaquæcumque mandavi vobis.

21João. XVIII, v. 36. e Luc. XII. 14.22Mateus. XVIII. v. 18.

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vinos, jamais pensariam castigá-los com penas cor-porais, como se tivessem cometido crimes contra oEstado civil: desproporcionando o castigo, contra oque Cristo e os seus Apóstolos ensinaram tão clara etão evidentemente: confundiram os pecados do Cris-tão com os crimes do Súbdito: os pecados de Cristãosão culpas mentais contra a fé, contra a esperança econtra a caridade cristã, que Cristo ordenou se cas-tigassem somente com penas espirituais, isto é a pe-nitência eclesiástica ou a privação da CongregaçãoCristã e divinos Mistérios, estas acções pecamino-sas são mentais, e o seu castigo há-de ser espiritual.Pelo contrário os crimes do Súbdito do Estado civilsão acções exteriores, como matar e roubar, são ac-ções que perturbam o vínculo do Estado civil, e ocastigo proporcionado há-de ser nos bens, na honrae na vida. Mas esta santa polícia eclesiástica logo sealterou tanto, que Constantino Magno e os seus su-cessores deram jurisdição aos Bispos, e dotaram asIgrejas com bens móveis e de raiz: tanto que lhesconcederam ensinar publicamente nas escolas do Es-tado, logo tomaram a si a reforma dos costumes daRepública, e todo o ensino da Mocidade.

Mas quem dissera no princípio do século IV quedoSacramento da penitênciahavia de sair aquele po-der dos Eclesiásticos que fundaram pouco a poucoaté o século XII uma Monarquia dentro do Estadocivil? Quem pensaria então que do mesmoSantoSacramentohaviam de sair os abusos dasIndulgên-cias, as Romarias, as Cruzadas, para conquistar aTerra Santa, asOrdens Militares, osdesterros, exco-munhões, com aquelas terríveis cláusulas,Confisca-ção de bens, incapacidadede servircargo público,nota deinfâmia, prisão, relaxar ao braçoeclesiás-tico? Mas qual seria a causa porque os Príncipesconsentiram a tanta usurpação da sua autoridade ejurisdição?

Permita-me V. Ilustríssima, indagar com algumcuidado, as causas de tão notáveis alterações no Es-tado civil e na polícia Eclesiástica desde o século IVaté o XII porque me parece necessário estejam in-formados delas não só aqueles que hão-de executaras Ordens de S. Majestade em consequência do seuAlvará sobre os Estudos, mas também os que hão-deestudar o que nele se ordena.

Todos confessam pelos monumentos que temos nahistória, que o Império Romano foi subjugado e des-pedaçado pelas Nações Bárbaras do Norte, e que des-tes destroços se formaram as Repúblicas da Itália, eas Monarquias de França e Espanha. A política des-tas Nações, antes da Conquista, e depois que fun-daram os seus Estados, se reduzia a premiar o maisvalentee o maisousadocom os primeiros cargosdo exército, com propriedades de terras, e com as

primeiras honras daquelas Monarquias; estas Naçõespor natureza caçadoras, viviam do roubo e de rapina;não conheciam a agricultura, o comércio, as artes,nem as ciências como base do Estado civil: estasMonarquias se governavam como um exército sem-pre acampado, pronto para acometer, subjugar e con-quistar, porque a sua conservação e o seu aumentodependia do que conquistavam sobre as Nações ven-cidas, que eram aquelas que dependiam do ImpérioRomano: assim avalentiae oesforço, era a sua basefundamental. Todas as suas leis e costumes tendiampara conservar e aumentar aquelaforça e aquelaou-sadia, para vencer e conquistar.

Depois de feita a conquista, tinham seus conse-lhos gerais que chamavamParlamentos, que em Es-panha se chamaramCortes, nas quais tinham assentoos Generais e os Oficiais da primeira distinção. Alise repartiam as terras, as Províncias, as Comarcas, asCidades, e as Vilas, com os seus termos, pelo Mo-narca e pelos Generais. Pelas leis decretadas naque-las Cortes, ao Senhor da terra ou Cidade se dava po-der soberano nos povos, que a habitavam: tinham aJurisdiçãode vida e morte, na honra e nos bens; detal modo que ficava despido o Monarca de toda a Ju-risdição que devia ter naqueles Súbditos; que vemosainda hoje em França de algum modo e em Castela ePortugal ainda se conserva o nomeSenhor de baraçoe cutelo.

Davam estas Cortes aquelas terras em Feudo, quequer dizer que o Possuidor seria obrigado em tempode guerra vir em pessoa servir com os seus vilõesno número, a proporção das terras de que era Se-nhor: somente os descendentes Varões depois de fa-zer nova homenagem ou obediência, podiam possuirestas terras. Elas eram consideradas pertencerem aoEstado; e pagavam somente no serviço da guerra; enenhuma outra décima, peita, nem sisa pagavam aoMonarca, nem ao Estado. A nossa Lei Mental teveaqui a sua origem: só permitia possuírem as terras daCoroa, aqueles que podiam servir na guerra; depois,por graça e favor dos Reis, veio o sexo a gozar destesdons da Coroa, como os Varões. Os Bispos e os Pre-lados os possuem hoje sem irem à guerra, como iamaté o ano de 1400; e ainda não pagam coisa algumaestas terras ao Estado.

Os costumes destes Impérios Godos todos se re-duziam a fazer o corpo robusto pela caça, por esca-ramuças, alcancias, torneios e justas, festas onde aambição de ser aplaudido pelo sexo teve muita parte:não necessitava a constituição do Império simples-mente militar, naqueles tempos sem pólvora, e semfortificações regulares, de outra ciência, mais do quedo valor e daforça; e para adquirir estas qualidadesse empregava toda a Mocidade: não sabiam ler nem

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escrever, e desprezavam todas as ciências: as supers-tições, os agouros, os vãos prognósticos da Astrolo-gia, como prosápia legítima da ignorância, ocupavageralmente os ânimos do povo e da Nobreza, apesarde tantos Concílios que proibiram todos estes abusos.

É hoje máxima incontestável «que os bons oumaus costumes de uma Nação, a sua ciência e valordependem das leis da Monarquia, do trato e do em-prego dos Grandes, e da Corte que os domina». Mui-tos destes Monarcas, logo no princípio da conquistado Império Romano, abraçaram a Religião Cristã;pelo discurso do tempo todas estas Nações Bárbaras,que ou eram Gentias, ou infectadas com a heresia deArius, vieram Cristãs Católicas; como dominavam egovernavam aos Cristãos antigos, entravam a possuiros cargos da Igreja, sem repugnância dos Bispos; to-dos eram Cristãos, e um Bispo Godo ou Clérigo, eratão bom sangue, como um Italiano ou Castelhano.Mas os Bispos, os Clérigos e os povos conquistadostomaram os costumes dos Monarcas e dos Grandesdaquelas Monarquias. Os Bispos tiveram tambémterras do Estado em lotação, e também muitos Pre-lados de Conventos; tinham a jurisdição ou mero Im-pério, sobre os seus vilões, do mesmo modo que atinham os Nobres: tinham também assento em Cor-tes porque eram Senhores de terras e souberam ne-las adquirir o primeiro assento; vieram Condes e Du-ques, como se vê hoje na Alemanha, e no Conde d’Arganil Bispo de Coimbra; vieram os Bispos e osPrelados Guerreiros, porque aceitavam os Senhorioscom essa condição de servir pessoalmente na guerracom os seus vilões, o que cumpriram até o ano 1400;as suas terras não pagavam coisa alguma ao Estado,não porque pertenciam à Igreja; mas porque eramdadas com obrigação de servir na guerra o Possui-dor, do mesmo modo que os Senhores Seculares aspossuíam. Vieram os Bispos e os Prelados caçado-res, dissipadores, banqueteando, sustentando Cava-los, conservando numerosa família; e como lhes erapreciso fazer frequentes jornadas, umas vezes paraassistir nas Cortes, outras nos Concílios, que até oano 800 se celebravam cada ano, e às vezes duas, nomesmo espaço de tempo conforme o primeiro Concí-lio de Nicea no princípio do século IV, a tal excessodissiparam os bens da Igreja que tinham em feudo,ou por esta obrigação de fazer jornadas, ou pela vidadissoluta militar, que foi proibido por Concílios queos bens da Igreja fossem inalienáveis e desta origemé que veio aquele destrutivo invento para o Estado dese estabelecerem os Morgados, cujas terras aplicadasa uma capela são inalienáveis, como as dos Cabidose dos Conventos.

A ignorânciadestes Monarcas na política, consi-derando todas as Nações vizinhas por inimigas, e não

conhecendo nenhum Direito das Gentes; a ignorân-cia dos Generais, e dos seus Conselheiros não co-nhecendo princípio algum do Estado Civil, nem dasobrigações da Sociedade, não sabendo ler, nem es-crever, se espalhou pelos Eclesiásticos; ficaram estesportanto com os conhecimentos necessários para ad-ministrar os Sacramentos, ensinar os povos na dou-trina cristã, e ensinar nas escolas das Sés, e dos Con-ventos; isto é que sabiam ler, escrever; e aquela lín-gua latina corrupta, que se estendeu até o ano 1440;porque nesta se escreviam até o ano 1220 todas as re-soluções das Cortes, todos os processos, e demandas;e el Rei Dom Dinis foi o primeiro Rei de Portugalque ordenou se processasse em Português, e não nalíngua latina. Esta superioridade no saber, ainda quemuito limitada, comparada com o saber dos Reis edos seus Grandes, valeu aos Eclesiásticos serem Se-nhores de todas as disposições das Monarquias emFrança, Itália e Espanha, e mais particularmente, por-que tinham Escolas donde toda a Mocidade era edu-cada. Vejamos os rodeios que fez nestas Monarquiaso vicioso círculo da ignorância, e não nos admirare-mos então do atrevimento que tiveram os Eclesiásti-cos de dominar os Reis e de depô-los.

Como nestas Monarquias cada ano se celebravamCortes, e como nelas se deliberava o que era necessá-rio para conservá-las e aumentá-las; como ali se no-meavam os Embaixadores; se despachavam as gra-ças, se resolviam os castigos, eram necessários Con-selheiros, Secretários e outros cargos que soubessemler e escrever, e aquelas leis e costumes que se ob-servavam naqueles Impérios. Mas entre todos os quetinham assento naquelasCortes, somente os Bispos,e os Prelados, porque sabiam escrever, podiam servirestes empregos: daqui é que vemos aqueles Concí-lios de Toledo, de Sevilha e de Milaõ, serem umacompilação de leis civis e eclesiásticas; porque osBispos eram os únicos que redigiam por escrito es-tes actos; nada se fazia sem o seu parecer, e tudo sepublicava e decretava pelo seu voto e aprovação23;mas não somente nasCortestinham o primeiro lu-

23Quando os Reis de Portugal decretavam alguma lei semconhecimento dos Bispos, estes se queixavam aos Papas,e os sumos Pontífices defendiam as pretensões daqueles.Daqui aquela concórdia de el Rei D. Afonso 3.oonde pro-mete: «Quod omnibus negotiis contingentibus statum bo-num Regni, cum Consilio Prælatorum, vel aliquorum eo-rum procedam, qui convenienter vocari poterunt, secundumtempus & locum, bona fide». Com el Rei D. João o I, su-cederam as mesmas queixas, e el Rei por uma concórdiaresponde: «Que quando há alguma coisa grande, que secumpre a bom estado do Reino, e a seu serviço, sempreusa chamar os Prelados, & c.». Veja-se Gabriel Pereira deCastro deManu Regia. Lugduni 1673. fol. Pág. 320 e 395:e mais concórdias dos Nossos Reis no mesmo lugar.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 11

gar e voto os Eclesiásticos, eles eram os primeirosConselheiros nas Cortes dos Reis, os Chanceleres,os Juízes, os Médicos, os Embaixadores; os Clérigoseram Secretários, os Notários públicos, os Advoga-dos; enfim tudo o que era necessárioescrevernes-tas Monarquias até o século XII o administravam eexecutavam os Eclesiásticos. No Concílio de Toledoterceiro celebrado no ano 589, no tempo del Rei Re-caredo, se ordena que os Bispos celebrem uma vezpor ano Concílio, e que nele assistam os Intendentesdel Rei, para aprenderem da boca dos Bispos, comodeviam governar os povos, e que eles seriam os Ins-pectores24.

Como era costume daqueles mandarem os Reiscriar seus Filhos nos Conventos dos Frades, já sesabe que os Filhos dos Cortesãos teriam o mesmo en-sino e educação; e como toda a Nobreza por costume,por vanglória, e sobretudo por interesse, imita comgosto, ainda os mesmos vícios dos Monarcas, bemse pode considerar, que se reputariam felizes os No-bres que tivessem aquela educação: já vimos acimao que se ensinava nestas Escolas: no tempo de Car-los Magno e de seus Filhos estava tanto em voga oCanto Gregoriano que nele se consumia a maior partedo tempo; houve repetidos desafios entre os MúsicosItalianos e Franceses25, e não se desprezaram os Reisentrar nesta contenda porque a sua educação tinhasido a maior parte neste exercício.

Então é que vieram os Reis e as suas Cortes ig-norantíssimas, cruéis, falsas e supersticiosas: o en-sino não tinha sido mais, que fazer o corpo robustoe ousado; e as potências da alma embebidas somentepara venerarem os Eclesiásticos que tinham sido seusMestres; estes já ignorantes, como vimos, já sober-bos, pois que eram e que viviam como Senhores, jáSenhores das resoluções das Cortes e de todas aque-las que ocorriam em todo o Reino, bem podemos verclaramente a origem de todas aquelas contendas quehouve entre os Eclesiásticos, e os Reis e Imperado-res até o ano de 1350. Deploremos com o Imperador

24Fleury,Hist. Eccles.liv. 34. n.o56.25Canendi artificium ecclesiasticum hoc seculo (era o oi-

tavo) obtinuisse, eumque pro insigni Philosopho, viroqueeruditissimo reputatum fuisse, qui optime omnium cantas-set... In vita Caroli M. narrat Monachus Engolis mensis.«Ecce orta est contentio per dies festos Paschæ inter Can-tores Romanorum & Gallorum: Dicebant Galli melius secantare & pulchrius, quam Romani. Dicebant se Romanidoctissime Cantilenas Ecclesiasticas proferre... quæ con-tentio ante Dominum Regem Carolum Regem pervenit».Non afferemus reliqua, quibus narrat, quomodo Gallorumcantum ad normam Gregoriani cantus reformaverit Impe-rator. Videndus Launoius deScholis celebrioribus, cap.I.Bruckerus,Histor. Crítica Philosophiæ, tom. III, p. 571& 72, Lipsiæ, 1743,4.o.

Diocleciano26, o Estado dos Reis que têm maus Con-selheiros, mas ainda muito mais aqueles que tiveramsomente por Mestres os Eclesiásticos naquele tempoque haviam de aprender a obrigação de Rei e de Súb-dito.

Continua a mesma matéria

Já os Eclesiásticos eram os árbitros nos Gabinetesdos Reis e dos Imperadores Cristãos, já eram So-beranos nasCortes, onde por direito da Monarquiatinham assento; já tinham jurisdição civil nos povosdos seus Bispados27; já todos os Clérigos estavamempregados nos cargos civis; já tinham universal-mente a educação de toda a Mocidade, até os filhosdos Reis à sua conta; tinham a correcção dos Cos-tumes, como do seu cargo e da sua obrigação de-cretada, por vários Concílios Provinciais, quais sãoos de Braga, Toledo28, Sevilha, Saragoça, e infini-dade de outros celebrados em França Inglaterra, Ale-manha e Itália; mas estes Concílios não eram uni-versais, nem serviam de lei na Igreja; era necessá-rio aos Eclesiásticos leis universais que toda a cris-tandade venerasse, que toda a cristandade temesse, eque cada cristão fosse castigado se as quebrantasse:já a Monarquia Eclesiástica estava estabelecida, masnão tinha leis políticas para governar: apareceu nofim do século VIII Isidoro Mercator, com as suas fal-sas Decretais29 que todos os Eclesiásticos seguirampor verdadeiras naqueles tempos, a tal excesso queGraciano no seuDecretonão só se funda nelas, masainda enxeriu e adiantou aquela doutrina.

Vejamos esta nova jurisprudência desconhecidaaos santos Apostólos e seus sucessores, até o fim doséculo VIII.

26Dixisse, «nihil esse difficilius quam bene imperare».Colligunt se quatuor vel quinque, atque unum consilium addecipiendum Imperatorem capiunt; dicunt quid probandumsit. Imperator qui domi clausus est, vera non novit: cogiturhoc tantum scire, quod illi loquuntur: facit judices quos fierinon oportet, amovet, à Republica quod debebat obtinere;quid multa? ut Diocletianus ipse dicebat; «Bonus, cautus,optimus, venditur Imperator». Hæc Diocletiani verba sunt.

Flavius Vopiscus in Aureliano pág. 330.História Au-gustaedit. Causabon. Parisiis, 1603, 4.o.

27Pelo Concílio XIII, celebrado no tempo de Ervigio, noano 681, se decretou que nenhuma Rainha viúva pudessecasar; quase todos os seus cânones constam de matériastemporais.

28No Concílio XI de Toledo, ano 675, decretou-se pelaprimeira vez que os Bispos tivessem o poder de mandarprender, e de desterrar.

29Vide Epistolarum Decretalium Isidori Mercatoris fig-menta a Blondel. Genevæ 1635, 4.o.

12 António Ribeiro Sanches

Que não é permitido celebrar Concílio algum sempermissaõ do Papa30.

Que os Bispos não podiam ser julgados definitiva-mente que pelo Papa somente31.

Que não somente qualquer Bispo, mas todo o Clé-rigo, ou Cristão leigo, que se viu vexado por potên-cia alguma secular, ou eclesiástica, pode em todas asocasiões apelar para o Papa32.

O Decreto de Graciano adiantou mais estas prer-rogativas, dizendo: Que os Papas não estavam, nemdeviam estar submetidos aos Cânones da Igreja33.

Que os Clérigos não podem ser julgados pelos Juí-zes leigos em nenhum caso34.

Que o Sacramento da ordem imprime um carácterindelével no Clérigo ou Sacerdote, sendo que pelosCânones dos Apóstolos35 o Clérigo ladrão ou man-chado com crimes públicos, era deposto do Sacerdó-cio, e ficava no estado de leigo, como qualquer Súb-dito do Estado; prática da Igreja Grega até o dia dehoje.

É verdade que as referidas leis nunca foram co-nhecidas nem seguidas pelos Tribunais de França atéo dia de hoje; mas nos Domínios de Itália e das Espa-nhas esta nova jurisprudência foi abraçada e seguidanos seus Tribunais até os nossos tempos.

Já a Monarquia Eclesiástica estava defendida efortificada por estas leis, e os Bispos cada dia adi-antavam esta autoridade nos seus Bispados de milmodos; todas as causas onde podia haverpecado, to-dos os contratos ou Tratados de paz entre Príncipes,onde concorria juramento; todas as promessas ou vo-tos, onde se podia incorrer em pecado, todas depen-diam do Tribunal Eclesiástico: desta origem vieramaquelas causas mixtifori que recebem e seguem asnossas Ordenações36. E deste modo ficaram os Tri-bunais seculares, para executar o que os Eclesiásticossentenciavam37.

Até o ano 1400, lemos na História Eclesiástica eProfana tantas contendas e tantas disputas entre osPapas, e os Reis Imperadores: se um Rei tirava asterras a um bispo que tinha emFeudo, ou foro, por-que não cumpria com a obrigação de ir à guerra;se o obrigava a pagar algum equivalente, o Bispo

30Fleury,Hist. Eccles., lib. 44, n. 22, & Discours 7.31Fleury,Hist. Eccles., liv. 44. n. 22.32Ibid.33Fleury,Hist. Eccles., lib. 70. n.o28.34Fleury,Hist. Eccles., lib. 70. n.o48,35Apostolorum Canon. 24. «Episcopus, aut Presbyter,

aut Diaconus in fornicatione, aut perjurio, aut furto de-prehensus, deponitor; non tamen a Communione excludi-tor. Dicit enim scriptura: bis de eodem delicto vindictamnon exiges».

36Liv. 2. tit. IX.37Ibi. tit. VI.

apelava para o Papa; o sumo Pontífice ou nomeavaum Legado, ou mandava um alatere, para decidir acontenda; daqui as concórdias38 sempre feitas comdiminuição do Direito da Majestade. Não entrareina desolação que causava um Legadoa latere, poronde passava com Comitiva de Príncipe sustentado, àcusta dos povos, por onde passava, presenteado peloscontendores, e bem pagos exorbitantemente os seusCancelários. Se os Reis queriam defender os seuspovos das vexações das excomunhões dos Párocose daquelas dos Bispos, estes apelavam para o Papa;nova contenda, e logo traziam consigo os Legados, ecada contendente da sua parte Teólogos, que à forçade silogismos provavam que os Reis não tinham ra-zão39, e que o sumo Pontífice era o Rei dos Reis,e que lhe foram dadas duas Espadas, uma para jul-gar as causas espirituais, e outra para as temporais.Desta pretendida autoridade veio a ser o ImperadorHenrique IV, e o nosso Rei Dom Sancho segundochamado o Capelo, deposto do trono, e os seus Súb-ditos absolvidos do juramento de fidelidade. No ano680 se celebrou o Concílio de Toledo XII. Nele foideposto el Rei Vamba por 35 Bispos, quatro Abadese 15 Senhores. Era o costume que se um cabia en-fermo, e perdia conhecimento, deitavam-lhe o hábitode Frade por penitência; se vinha a si, ficava Frade;assim sucedeu a el Rei Vamba: vendo-se Frade de-clarou por sucessor a Ervigio, e foi reconhecido porRei neste Concílio40. Mas não acabaria tão depressa,Ilustríssimo Senhor, se quisesse abreviar o que se lêna História Eclesiástica desde o século oitavo até oano 1400: deixo esta matéria a quem quiser ler comcuidado,les Discours sur l’ Histoire Eclésiastique,par M. l’Abbé de Fleury. Paris, 2 vol. in 8.o.

38Pereira de Castrode Manu Regia: traz todas as concór-dias feitas entre os Nossos Reis, e os Papas; ali se poderáver de que modo absorviam os Eclesiásticos o Poder Real.Veja-se da pág. 313, até 431, da edição de Leão de França.

39O Cardeal Baronius diz no ano 1073, que no Concíliode Worms convocado pelo Imperador Henrique IV, e peloArcebispo de Colónia, e outros Prelados, vinham acom-panhados de Teólogos. «Stipatus uterque magno gregePhilosophorum, immo Sophistarum, quos ex diversis locissummo studio consciverant, ut Canones sibi non pro rei ve-ritate, sed pro Episcopi voluntate interpretarentur.»

40Fleury,Hist. Eccl., liv. 40, n. 29. Mariana,História deEspanha, lib. 7, cap. 14.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 13

Como os Eclesiásticos introdu-ziram governar os Estados Ca-tólicos pelas congregações dosprimeiros Cristãos e pelas re-gras dos conventos

Bem me persuadi, Ilustríssimo Senhor, considerandoo claro juízo de V. Ilustríssima que me não acusará,que tomo mais a peito relatar os abusos dos Eclesiás-ticos, do que tratar da Educação Política, que pro-meti no princípio deste papel: porque o meu intentosendo para demonstrar que é prejudicial aoJus daMajestade e ao bem do Reino, que os Eclesiásticossejam os Mestres da Mocidade, destinada a servira sua pátria no tempo da paz e da guerra, pareceu-me muito necessário tratar, também que assim, comoos Eclesiásticos não têm legitimamente poder algumnem jurisdição que no espiritual sobre os Fiéis den-tro da Igreja, que do mesmo modo, não têm auto-ridade alguma para ensinar a Mocidade, que pura-mente na doutrina cristã: porque V. Ilustríssima viuacima que a jurisdição, que Cristo deu aos Apósto-los foi somente espiritual; que os mandou pregar oEvangelho, isto é ensinar a doutrina cristã, e a bapti-zar, isto é administrar os sacramentos, com poder deligar e desatar conforme entendessem: e que como éabuso notório que os Eclesiásticos estendessem a ju-risdição espiritual que lhes pertence, até sufocar e ab-sorver quase toda a jurisdição política e civil, assimé abuso, e prejuízo à Monarquia, que eles ensinem aMocidade destinada a servir a sua pátria. E para queV. Ilustríssima julgue se tenho fundamento no quedigo, quero em breves palavras mostrar-lhe que todoo mal que temos experimentado desde o princípio daMonarquia provém: «Que os Eclesiásticos quiseram,como Constantino Magno, governar os Reinos e osImpérios, pelas regras e leis das primeiras Igrejas eConventos, que são puramente espirituais; não aten-dendo ao Sagrado do Estado civil, nem à sua inde-pendência: não atendendo que todo o seu poder ésobre os Cristãos, e nunca sobre os Súbditos do Es-tado».

A principal máxima que serviu aos Eclesiásticosde estender a sua jurisdição sobre os leigos, foi a se-guinte: «Que a Igreja em virtude do poder das cha-ves de São Pedro, tem direito de conhecer, e julgar detudo aquilo que é pecado, para estar inteirada se deveabsolver dele o pecador, ou negar-lhe a absolvição:e como (continua l’Abbé de Fleury,Discours VII,page 224) em qualquer contestação por interessestemporais, ordinariamente uma das duas partes de-

fende uma pretensão injusta, e às vezes ambas elas;e que esta injustiça épecado; daqui é que concluí-ram que pertencia esta causa ao Tribunal Eclesiás-tico: por esta máxima os Bispos vieram(a ser) osJuízes de todas as demandas e de todos os processosdos seus Bispados, e os Papas de todas as guerras en-tre os Soberanos; quer dizer que deste modo o Papaera o único Soberano no mundo».41.

Isto é quererem os Eclesiásticos governar as Mo-narquias pelas leis do Sacramento da Penitência; ocastigo dos pecados são as penitências eclesiásti-cas42: os castigos aqui são espirituais, que os Fiéisvão buscar dentro da Igreja para remirem os seus pe-cados: confundiram os Eclesiásticos jurisdição espi-ritual, com a jurisdição civil, e quiseram governar oReino pela autoridade daquela: como os Bispos de-pois do século VI vieram (a ser) Senhores de ter-ras com jurisdição civil nos povos dos seus Bispa-dos, como vimos acima, tinham cadeias e julgavamas causas de jurisdição eclesiástica com penas corpo-rais.

Desta mistura de jurisdição eclesiástica e secularnos mesmos Bispos ou Prelados, veio aquele poderque se arrogaram seremtutoresdos orfãos e das viú-vas, ainda mesmo das Rainhas e dos Príncipes. Noprincípio da Cristandade costumavam os Bispos porcaridade amparar os orfãos e as viúvas, não somentesocorrendo-as com os alimentos de que necessita-vam, mas defendendo-as das vexações que lhes in-tentavam os seculares.

Estenderam esta caridade cristã a reduzi-la em di-reito de pôr em depósito e à sua ordem os bens dasviúvas e dos orfãos, e (a) estarem debaixo da suatutela, que mantinham pelas leis civis. Tinham omesmo poder nos bens dos Romeiros e no dosCru-zadosà Terra Santa, e nos hospitais dos leprosos, enos bens destes que ficavam ordinariamente às Igre-jas se vinham a morrer os legítimos proprietários.

A santa e exemplar vida dos primeiros Bispos feznascer a veneração que tinham neles os primeirosCristãos: se entre eles havia contendas, porque uma

41Discours sur l’Histoire Éclesiastique. vol. 2.oParis,in-8.o.

42Eram estas nos primeiros séculos da Cristandade pri-var aos pecadores dos Sacramentos por quinze, e por vinteanos, e algumas vezes por toda a vida; umas vezes ficavamdebaixo do alpendre fora da Igreja; outras vezes dentro,mas deitados de bruços: obrigavam (a) jejuar a pão e água,(a) trazer cilícios, cinzas sobre a cabeça, deixar crescer abarba, e o cabelo, ficar encerrado, e renunciar ao comérciodo mundo: existe ainda hoje um Tribunal onde os culpa-dos são forçados (a) sofrer estas penitências: apartando-sedo costume da Igreja primitiva que somente as impunha aquem pedia espontaneamente perdão dos seus pecados, e osconfessava.

14 António Ribeiro Sanches

das partes não cumpriu opacto, oucontratoque con-cordaram; nas alterações que sobrevêm nosMatri-mónios, ou na execução dos Testamentos, escolhiamestes Prelados por árbitros, que achavam tão justos,que foram preferidas as suas sentenças, àquelas dasjustiças dos Imperadores, debaixo do qual Domínioviviam. As leis de Constantino, de Arcádio, de Teo-dósio e Justiniano, permitiram esta prática, e a forti-ficaram por leis a seu favor: mas quando os Bispos seviram Senhores de terras com jurisdição civil, vieramárbitros não por caridade, mas por direito, e decreta-ram em muitos Concílios, que no mesmo tempo eramCortes, que em todos osContratos, Matrimóniosetestamentos, onde haviajuramento, Sacramentos, oupromessa de obras pias, que todas estas transacçõeseram da sua jurisdição; tinham a seu cargo ter cui-dado dos dotes e das arras em caso de adultério, eno estado dos filhos que procediam deste matrimó-nio, para julgar se eram espúrios ou legítimos. Porcausa das obras pias expressadas nos testamentos, es-tava determinado nas Cortes de judicatura eclesiás-tica, que todos fossem feitos diante dos Párocos; e osBispos obrigavam aos testamenteiros dar-lhes contase estavam executados, e todas as mandas satisfeitas;daqui vinha que os Eclesiásticos faziam todos os in-ventários, e que levantavam os selos nos depósitos,& c.

Dilataram e estenderam a jurisdição Eclesiástica,que só tinham legitimamente dentro da Igreja, a cas-tigar com penas civis todas as acções criminosas queofendiam a Religião; aheresia, ablasfémia, asisma,a usura, o concubinato, e outros mais casos chama-dos mixtifori (sic)43». Já notámos acima que estesmesmos tinham naquelas Congregações dos Cristãosà sua conta a inspecção dos costumes: depois queos Imperadores Romanos abraçaram o Cristianismo,por várias leis, e principalmente pelas do Código44

ficaram debaixo da sua direcção osCostumes, e a ho-nestidade pública. Se os Pais ou os Senhores queriamprostituir as suas filhas ou Escravos, podiam estesimplorar a protecção do Bispo, para conservar a suainocência: os Bispos juntamente com o Magistradoconservavam a liberdade aos Enjeitados. Não se po-

43Ordenações.liv. 2, tit. IX. «Para que cessem dúvidas,que podem haver sobre quais são os Calos, e delitos Mix-tifori, em que osPrelados, e seus oficiais, podem conhe-cer contra Leigos... os ditos casos Mixtifori são seguintes.Quando se procede contra públicosadultérios, barreguei-ros, concubinários, alcoviteiros, e os que consentem as mu-lheres fazerem mal de si em suas casas, incestuosos, feiti-ceiros, benzedeiros, sacrílegos, blasfemos, perjuros, onze-neiros, simoníacos... tabulagens de jogo. ..posto que nestecaso houvesse dúvida, se era mixtifori, ou não, & c.

44Apud Fleury, Discours VII,sur l’Histoire Eclésiasti-que, pág. 320.

diam eleger Tutores ou Curadores dos menores oudos Mentecaptos sem intervenção dos mesmos Pre-lados: era também da sua obrigação visitar uma vezpor semana as prisões; informarem-se da causa daprisão, e advertirem os Magistrados de cumprir comeles a sua obrigação, e em caso de negligência daremparte ao Imperador.

Já vimos de que modo os Bispos e os Papas quise-ram governar as Monarquias pelas leis e pelas regrasdos Conventos; agora veremos com que penas os cas-tigavam; se eram com aquelas primitivas espirituais,que se reduzem à penitência, ou as corporais, nosbens, na honra e na vida, como castiga o Estado Ci-vil. Já notei acima, fundado nos Autores Eclesiásti-cos, que quando o pecador espontaneamente buscavao Sacramento da penitência, que cumpria aquela queo Confessor lhe impunha; e que deste modo reconci-liado tornava a gozar da comunicação dos Fiéis, e aparticipação dos Divinos mistérios. Nestes primeirostrês séculos da Cristandade, estava na livre vontadede cada Cristão confessar-se: os Bispos, ou Páro-cos não obrigavam, nem tinham poder algum paraobrigá-los a desobrigarem-se da Quaresma, nem emoutro qualquer tempo, somente no caso que este pe-cador causasse escândalo à Congregação dos fiéis, ouque dogmatizasse contra a Religião revelada e esta-belecida, nesse caso os Bispos lhe negavam a entradanaqueles santos lugares, para impedir o contágio quese podia comunicar aos mais: raríssimas vezes ex-comungavam, e antes consentiam com caridade quetornasse para o gentilismo, do que chegar a tal ex-cesso de excomungar um pecador que escandalizava.

Mas logo que os Bispos se viram com Jurisdi-ção que lhes concederam os Imperadores Romanos,logo que se viram Senhores de terras com Juris-dição Civil, dilataram aquela penitência espiritual,convertendo-a em castigo corporal, com perda debens, com infâmia. No Século VII os Bispos deEspanha45 vendo que muitos pecadores não vinhamsubmeter-se ao Tribunal da penitência, se queixaramnasCortesdesta omissão, e suplicaram aos Monar-cas de os forçar pelo braço secular. Prática desco-nhecida até ali na Igreja, e que ainda não é conhecidahoje em França: e com razão, porque deste modo deproceder, se seguem cada ano infinitos sacrilégios.Em Portugal e Castela é obrigação desobrigar-se todoo adulto pela Quaresma; se não se desobriga é perse-guido por monitórios, e por último excomungado; secontinua um ano neste estado, é reputado pelo Tribu-nal Eclesiástico por hereje, então toma conhecimentodeste caso a Inquisição, processando-o segundo asdisposições do seu Directório. Deste modo é que do

45Fleury,Discours troisiéme de l’Histoire Eclésiastique,tom. I, pág. 233 & 234

Cartas sobre a Educação da Mocidade 15

Sacramento da Penitência fizeram um Tribunal Ci-vil, governando o Estado pelas leis das Congregaçõesdos Fiéis, e dos Conventos.

Mostra-se mais visivelmente esta intenção dosEclesiásticos em Portugal e Castela, e em algumaspartes de Itália, pelo que vou a relatar.

Costumava a antiga Igreja impor penitências pormuitos anos por um pecado habitual, como vimosacima, e só deste modo é que se conciliava com aCongregação dos fiéis. Mas no caso que reincidisseno mesmo pecado, no caso que este pecador espon-taneamente fosse buscar o remédio à sua culpa noSacramento da Penitência, a disciplina daqueles tem-pos lhe refusava totalmente confessar-se: dali por di-ante se lhe negava a Comunicação dos Fiéis, e parti-cipar aos Mistérios Divinos. Mas este pecador forada Igreja não era vexado, nem perseguido, nem fi-cava excomungado. Correram os tempos, mitigou-sea severidade desta disciplina, e já se admitiam os quereincidiam nas mesmas culpas, ao Sacramento da Pe-nitência, como também aos mais Sacramentos.

No século XIII, pelo Concílio de Narbone46, os In-quisidores observaram com os Albigenses herejes, amesma severidade da Primitiva Igreja, não admitindoà Confissão Sacramental o pecador que reincidisseno mesmo pecado; mas aquele Tribunal, como hojeo de Portugal e Castela, não se contentava usar aque-les relapsos da mesma piedade e moderação, comousavam os antigos Prelados. Relaxavam ao braçosecular com infâmia e perda de bens, como fazemhoje as Inquisições de Castela e Portugal, privando-os mesmo na hora da morte do Sacramento da Euca-ristia, ainda que protestem morrer na Lei de Cristo.

De onde se vê claramente que os Eclesiásticos go-vernam ainda hoje o Estado Civil pelas Regras dasCongregações Cristãs, vê-se claramente que só noTribunal da Inquisição ficou esta prática de não ad-mitir a penitência, o que reincidiu no pecado, porqueeste Tribunal tem por executores, sem vistas dos Au-tos e das Sentenças, os Magistrados47.

Governam o Estado Civil, também com as Re-gras das primitivas Igrejas e Conventos admitindo aIntolerância Civil, pondo-as em todos os TribunaisEclesiásticos e Seculares, como base e fundamentoda Religião e da Monarquia. Vejamos os fundamen-tos desta Lei tão autorizada, contra a qual nenhumMagistrado, nem Rei Católico jamais se atreveu fa-zer a mínima objecção. Era justo, era santo que na-quelas primitivas Igrejas do Cristianismo, nas quaisos Cristãos viviam em comunidade, todos conformespela Lei de Cristo na mesma fé, caridade e pureza decoração, com os bens em comum, como é a prática

46Fleury,Hist. Eccles., liv. 80, n. 51.47Ordenações, liv. 2, tit. VI. lib. V. tit. I.

dos Conventos, vivessem todos nas mesmas ideias, epensamentos sobre os Mistérios de fé, conhecendo,e reverenciando a Missão de Jesus Cristo: era justoque aquele cristão que não pensava assim, que dog-matizava contra a Doutrina estabelecida, ou que nãofrequentava a Igreja, vivendo ao mesmo tempo empecado público, que se lhe negasse a entrada naquelaCongregação, e a participação aos socorros caritati-vos, e aos Mistérios Divinos.

Que assim viviam os Cristãos, Clemente de Ale-xandria, Origenes, e Tertuliano, e outros muitos Pa-dres o relatam: Plínio, mesmo Gentio48, em umacarta que escreve ao Imperador Trajano o diz tão cla-ramente, que é o maior elogio da primitiva Cristan-dade: era justo então que fossem os Cristãos intole-rantes, e que entre eles não consentissem algum ouCismático, ou Hereje. Do mesmo modo que hojeaprovaríamos que um Guardião metesse num cár-cere, a pão e água, aquele Frade que não cumpriacom a Regra, e que a contrariasse de palavra, e porescrito: estaIntolerância, Eclesiástica, Fraternal ecristã é fundada na natureza das sociedades feitaspor contrato, donde todos mútuamente se promete-ram crer, obrar, e exercitaras mesmas coisas, queneste caso eram os artigos da fé, e os dez Manda-mentos.

Mas que os Eclesiásticos queiram governar o Es-tado Civil e Político, por estaIntolerância Eclesiás-tica, e que os Reis corroborem, e fortifiquem por leise penas corporais estas Regras das primeiras Congre-gações dos Cristãos, é o mesmo que dissolver e arrui-nar o Estado Civil e quebrar o fundamento e base dasua instituição. Vimos acima que quando o súbditodá juramento de fidelidade ao seu Soberano, claraou tacitamente, quando dá todo o seu consentimentopara ser regido e governado, que só depõem no seupoder todas as suas acções exteriores, isto é aquelaforça e vigor, com que podiaferir, matar, furtar,ofender; ficam estes poderes no Soberano, para usardeles como achar que convém melhor à conservaçãodos seus Súbditos; mas nenhum Súbdito se despiudaquelasacções interioresmentais, que sãoquerer,não querer, aborrecer, crer, julgar,ou não julgar;

48Lib. x. Epist. XCVII. «Cognitionibus de Cristianis in-terfui nunquam... adfirmabant autem hanc fuisse summam,vel culpæ suæ, vel erroris, quod essent soliti stato die antelucem convenire: carmenque Christo, quasi Deo, dicere se-cum invicem: seque Sacramento non in scelus aliquod obs-tringete, sed ne furta, ne latrocinia, ne adulteria committe-rent, ne fidem fallerent, ne depositum appellati abnegarent:quibus peractis morem sibi discedendi fuisse, rursusque co-eundi ad capiendum cibum, promiscuum tamen & inno-xium, quod ipsum facere desisse post edictum meum, quosecundum mandata tua hoeterias, (são sociedades, ajunta-mentos ou confrarias), esse vetueram»..

16 António Ribeiro Sanches

nem jamais ficaram no poder do Soberano, quandorecebeu o consentimento universal de ser obedecido.Porque da natureza do Estado Civil, somente as ac-ções exteriores violentas são aquelas que o alteram, eque o podem destruir. Oamar, aborrecer, julgar, ouser mentecapto, no mesmo Estado, se reputam comose nunca tivessem existido; porque se não demons-tram com acções, que perturbem e arruinem a con-córdia da Sociedade Civil.

No contrato entre Cristão e Cristão na mesmaIgreja se estipulou serem todos concordantes namesma crença, na mesma fé, recitarem as mesmasorações, celebrarem com o mesmo coração os mes-mos Divinos Mistérios.

Pois se as convenções do Estado Civil e da Igrejasão tão diferentes, como pode ser justo e útil para am-bas, que aIntolerância Cristã, se estenda a serInto-lerância civil? Se os Eclesiásticos venerassem maisos Estados Civis do que fizeram até agora, se os con-siderassem como coisaSacrossanta, porque foi for-mado com a caução daSuprema Divindade, e invo-cada como testemunha, não haviam de assentar pormáxima aIntolerância Civil, que é a sua ruína e a suadestruição. Mas que há-de ser, Ilustríssimo Senhor,o Papa Gregório VII, no século XII, nas suas Bulas ebreves afirma, e defende as máximas seguintes con-tra os Soberanos e contra as Monarquias49. «Que aIgreja tendo toda a Jurisdição das coisas espirituais,que com mais forte razão tem de julgar as temporais.Que o mínimo Exorcista é Superior aos Imperado-res, pois que ele tem mando sobre os Demónios; eque aSoberania, ou o ofício dos Reis éobra do De-mónio, fundada na soberba humana; em lugar que oSacerdócio é obra de Deus; e que o mínimo Cristãovirtuoso, é mais verdadeiramente Rei, que um Reicriminoso, porque este Príncipe logo fica despido daSoberania, que já não é Rei legítimo, mas que vemnaquele instante Tirano, &».

A intolerância com que usou Castela com os Mou-ros depois da conquista de Granada, formaram aque-las potências da África que com os seus Corsárioscada dia persecutam a Religião, e as Monarquias Ca-tólicas. Relatar aqui os males que faz a Intolerân-cia, seria deixar de mostrar o que me propuz; masde passo direi que aquela que Portugal desde el ReiDom João o III praticou com os xx. NN. foi a origemda perda das Índias Orientais, do Estabelecimento daRepública da Holanda, das marquesas de Hamburgo,e da grandeza do comércio de Inglaterra.

Ainda tenho mais provas incontestáveis para mos-trar a V. Ilustríssima que os Eclesiásticos governa-

49Lib. VI. Epist. 2. apud Fleury,Discours sur l’ HistoireEclésiastique, tom. I. Pág. 246. E na História deste Autor,liv. 62. n. 36.

ram, e ainda governam pela ignorância dos Magis-trados, o estado Civil com as suas regras, e constitui-ções da Primitiva Igreja, e dos Conventos. Bem se vêclaramente pelo que referi do Papa Gregório VII queele se considerava Superior a todos os Reis, e que to-dos deviam pagar tributo ao Solio Romano, porquesó deste Potentado tinham as suas Dignidades.

Viviam os Cristãos, como já dissemos tantas ve-zes, em comum, somente os verdadeiros fiéis, comoera justo, participavam as esmolas daquela Congre-gação ou Convento. Se este Cristão pela sua vida,pelas suas palavras, ou acções escandalizava seus Ir-mãos, se lhe negavam os socorros temporais e es-pirituais. Daqui saiu que com justiça, somente aosSantos e aos Justos pertenciam os bens temporais, eespirituais, e que os ímpios e os pecadores estavamprivados deles.

Levanta-se na África a heresia dos Donatistas e apeditório de S. Agostinho se executam as Leis Im-periais contra os Hereges; ficam privados dos seusbens, e das suas Igrejas: queixam-se e clamam, e omesmo Santo lhes responde50, levado de um santozelo, sem pensar mais do que a Constituição da Re-ligião Cristã, e a Disciplina Eclesiástica que se tinhaobservado nos primeiros séculos, sem pensar na LeiRégia do Império, nem na Constituição da Repúblicade quem era súbdito, dá-lhes por toda a razãoquecom justiçaos privaram dos seus bens, e das suasIgrejas, porque só os Justos são os legítimos possui-dores, e que os ímpios não possuem coisa alguma ajusto título, e confirma esta decisão arguindo-os:osfundamentos quetendeis para defender bens e Igre-jas são a Lei Divina, ou a dos Imperadores; por LeiDivina estais privados de todo o bem porque sois he-reges; pelas Leis dos Imperadores também e destemodo não tendes de que vos queixar que de vós mes-mos. Aqui temos a decisão de confiscar os bens aoshereges, que seguiu Gratiano no seu Decreto, que se

50Jam verò prudenter intueamur, quod scriptum est,fide-lis hominis totus mundus divitiarum est, infidelis autem necobolus(este texto não se lê assim nos Provérbios de Salo-mão), nonne omnes, qui sibi videntur gaudere licite con-quisitis, eisque uti nesciunt, aliena possidere convincimus?Hoc enim certe alienum est quod jure possidetur: hoc autemjure, quod juste, & hoc juste quod bene: omne igitur quodmale possidetur, alienum est... donec fideles & pii quorumjure sunt omnia. Epistol. 54.vulgòtom. II, vel 153.

Et quamvis res quæque terrena non recte à quoquam pos-sideri non possit nisi vel jure divino, quod cuncta justorumsunt, vel jure humano, quod in potestate Regum est terræ...Epist. 93. (vulgo 48) & in Joannis Evang. tract. VI.g.25. De todos estes lugares se aproveitou Gratiano Distinct.VIII. Caus. XXIII. Quæst. VII. para seguir a doutrina querelatamos para confiscarem-se os bens dos hereges com jus-tiça. Veja-se nesta matéria Barbeyrac,Traité de la Moraledes Peres. Amst. 1728.4.opág. 292, & seguintes.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 17

ensinou e ensina nas Universidades, que por ele sesentenciam as causas Eclesiásticas, e mixtifori em to-dos os Tribunais de Portugal e Castela.

Admiram-se todos que S. Agostinho sendo tãodouto, não distinguisse nesta ocasião a Constituiçãodo Estado Civil, daquela do Estado Cristão, gover-nado por Bispos, e por Prelados nos primeiros trêsséculos. Diz claramente que apropriedade dos bens(que é o mesmo que apropria conservação), dependeou da autoridade Divina, ou da autoridade dos Impe-radores: o que é intolerável. Apropriedade dos bens,é anterior a todas as Sociedades; ela é deDireito Na-tural, como é defender a sua vida e a sua honra; nãodepende a legítima posse, e disposição do seu pró-prio bem, de lei alguma positiva. É verdade que osprimeiros cristãos pecadores deviam ser privados dosseus bens logo que o seu pecado era público; porquetinham contratado viver em comum, e tinham cedidotudo o que tinham à comunidade, quando entravamnela, prática hoje dos Conventos, onde se conservoueste modo de contratar. Mas no Estado Civil nin-guem fez cessão de bens ao mesmo Estado antes dedar juramento de fidelidade; logo é incoerente quese julguem as causas civis pelas leis dos Conventose das Igrejas da primitiva Cristandade; logo aquelasLeis que privam os herejes dos seus bens, perten-cendo ao Estado como súbditos, não são Leis Civis,são Leis Eclesiásticas pervertidas.

Não entrarei na especificação daquele procederviolento que tiveram os Papas com os ImperadoresCristãos depois do século XII; bem pode V. Ilus-tríssima considerar, o que resultaria das máximas deGregório VII, que referi acima; bem poderá conside-rar como seriam tratados os Monarcas por InocêncioIII, do século XIII, quando escrevia que Deus criaraduas Luzes no Universo, uma maior e outra menor,que pela primeira se entendia o poder Pontificial, epela segunda o poder Real. Que Cristo dera a S. Pe-dro duas espadas, uma para governar o espiritual, eoutra o temporal. Com semelhantes alegorias, que éarbitrário concedê-las, ou negá-las, porque não têmoutro fundamento do que a imaginação viva, e às ve-zes viciada, de quem se aplica às coisas sensíveis,estavam instruídos os Mestres que ensinavam nas Es-colas, estavam instruídos os Tribunais, e desgraçada-mente os Reis, que vexados e despidos da sua Realautoridade, brotavam em contendas funestas cada diacom os Eclesiásticos, e por último com os Papas, doque temos bastantes monumentos na nossa Histórianaquelas concórdias feitas com os Reis de Portugaldesde el Rei-D. Afonso II, até D. Felipe terceiro, quese lêem em Gabriel Pereira de Castro51 como tam-

51De Manu Regia, p. 434. edit. Lugdun.

bém que el Rei Dom Sebastião por Alvará seu deutal poder aos Eclesiásticos que absorveram o Jus daMajestade52. Não consideraram até agora os Ecle-siásticos a distinguir entre o Sagrado da Majestadee entre o baptismo de Cristão: como Monarca de-pende somente do Altíssimo Deus, porque é a ca-beça do Estado, formado com o consentimento dosPovos que o invocaram no acto do juramento de fide-lidade como testemunha e caução daquele facto; nãoteve, nem terá jamais o Papa, nem o Cristianismo,intervenção alguma neste acto de formar o Estado.A pessoa do Rei é Cristão, e como tal depende daIgreja, e por consequência do Papa que é a SupremaCabeça: todo o poder que tem neste Cristão, é se-melhante ao que tem em qualquer outro. Bem seique não admitem esta necessária distinção; mas queme digam, quando um Físico-Mor ordena ao seu Reique lhe sarjem o lado doloroso de um pleuris, e queo Rei obedece e se deixa cortar, e banhar em sangue,pergunta-se? A quem ordenou o Físico-Mor, fazeraquela operaçaõ? foi a el Rei? ao Cristão? ou ao Ho-mem? El Rei obedeceu ao seu Físico-Mor, não comoRei, mas como Homem, com uma parte de naturezahumana; e que o Médico sendo Ministro da naturezatem autoridade de governá-la do modo mais a propó-sito para conservar a vida. Todos aprovaram esta dis-tinção: e porque não querem admitir aquela que háentre o Rei, e o Cristão. Acha o Rei a sua consciênciagravada: chega aos pés do Confessor, e confessa-se:pergunta-se, quem se está ali confessando, é el Rei,ou o Cristão? Quem souber que o Confessor não éDeus, quem souber que ele é somente naquele actoum Ministro da Religião, dirá logo: ali se está con-fessando um Cristão; porque el Rei não adora, nemdeve adorar mais que a Deus em quem crê, e de quemsomente depende na terra; porque do mesmo modoque o Físico-Mor ordenou a el Rei que o sarjem paracurá-lo, assim o Confessor ordenou a el Rei que façapenitência; obedece o Rei ao Confessor como Cris-tão, do mesmo que obedeceu ao Físico-Mor, porqueé Homem.

52Ibi. Part. segunda, pág. 159... «Regio Diplomate Se-bastiani Regis emanato ano 1569, per quod Parelatis fid li-bera facultas capiendi, & puniendi Laicos, illis casibus, qui-bus a sacro Concilio depermissum & imperatum est».

Ali traz o Alvará; que certamente foi urdido pelos Padresjesuítas que então governavam o ânimo do Cardeal Hen-rique, que naquele tempo era Regente do Reino: os mes-mos jesuítas governavam então Portugal como um conventode Frades; porque proibiram todo o luxo, determinaram aquantidade de Comida nas mesas, e outras severidades Mo-nacais. Vide Conestagio,Historia de Portogallo.

Gabriel Pereira de Castro diz, depois de copiar o dito Al-vará: «An Rex per se solus sine publicis comitiis hoc po-tuisset facere» vid. etc.

18 António Ribeiro Sanches

Parece-me que tenho mostrado com bastante cla-reza o que prometi no título deste parágrafo; e é fá-cil tirar dali a consequência que já os Eclesiásticostinham fundado uma Monarquia a seu modo dentroda Monarquia Civil: já tinham decretado leis parasustê-la, e fortificá-la; já os tribunais, e as Cortesdos Reis as observavam, e já o Estado Civil estavagovernando-se no século XII, pelas falsas Decretaisde Isidoro Mercator, e pelo Decreto de Graciano: jáse ensinavam nas Escolas, mas ainda nelas não esta-vam introduzidos aqueles graus de Doutor, e de Ba-charel; ainda não estavam decorados com dignidadesaqueles que estudavam o Direito Canónico, e acha-ram no século XIII os Papas todos os meios para osdecretarem, fortificando deste modo o seu novo po-der de tal modo que ficaram as Monarquias depen-dentes da Corte de Roma, tanto no espiritual comono temporal; e é o que mostrarei no parágrafo se-guinte.

Das Universidades

Não é o meu intento tratar aqui das Universidades,que para mostrar a V. Ilustríssima, se as que existemactualmente são úteis ao Estado, e se nelas se en-sinam todas as ciências necessárias ao seu governocivil e político; se nelas a Mocidade destinada a ser-vir a sua Pátria, poderá ser educada para servi-la notempo da paz e da guerra, no tempo em que estiverocupada, e tempo do descanço. Sucintamente decla-rarei se foram instituídas e autorizadas a ensinar egraduar aos que nelas estudam pelo poder Real, oudo Papa, na intenção de mostrar evidentemente queS. Majestade é o Senhor de abolir e de instituir as Es-colas e Universidades que achar que são prejudiciaisou úteis à conservação dos seus dilatados Domínios.

Já vimos acima que pelas leis do Códex Teodo-siano podiam os Eclesiásticos ensinar publicamente;e pelos Capitulários de Carlos Magno foi ordenadoque nas Igrejas Catedrais, e nos Conventos se ensi-nassem as ciências conhecidas naqueles tempos: vi-mos também que já os Eclesiásticos tinham estabele-cido leis reconhecidas pelos Parlamentos e Cortes, eque os Tribunais tanto seculares, como Eclesiásticosjulgavam por elas: agora veremos que logo que Gra-ciano Frade Bento de Bolonha publicou a sua Colec-ção intitulada,Concordia Discordantium Canonum,no ano 1151; e que Gregório IX no ano 1230 pu-blicou os cinco livros das suas Decretais; e o PapaBonifácio VIII o sexto livro, que é a continuação, noano 1299; e que Clemente V no ano 1311 aumentouesta colecção com as suas Constituições, chamadasClementinas, que ficou mais que nunca estabelecida

a Monarquia Eclesiástica; porque o Decreto, as De-cretais e as Clementinas referidas começaram a serensinadas nas Universidades53.

Até o ano 1230 pouco mais ou menos, nenhumadas Escolas estabelecidas na Catedral de Paris, deBolonha, de Roma, e outros Conventos, nenhuma sechamouUniversidade: este nome tiveram as Esco-las públicas, logo que os sumos Pontífices institui-ram nelas aquelas dignidades ou Graus de Bacharel,Licenciado e Doutor nas quatroFaculdadesde Teo-logia, Cânones, Leis, e Medicina: indicio certo queestas Escolas com graus são da instituição Pontifícia.

M. Boulæus, na História da Universidade de Pa-ris54, afirma que pelos anos 1150 todos os Estudantesque estudavam em Bolonha o Direito, se aplicavama ouvir as lições de Irnerio, que naquele tempo ensi-nava ali o Direito Civil, com universal aplauso; e queGraciano vendo que os Estudantes não estudariamo Direito Canónico que se continha no seu Decreto,que pouco tempo depois recorrera ao Papa EugénioIII, propondo-lhe que instituisse algumas honras aca-démicas, com as quais fossem condecorados aquelesque estudassem os Cânones; e que Pedro Lombardo,chamado o mestre das Sentenças, fora o primeiro quena Universidade de Paris as introduziu. O mesmo M.Bolæus afirma que não consta pelos registos da Uni-versidade em que ano começaram estes Graus masque já no ano 1236 se acham assentos de Estudan-tes que tinham sido condecorados com eles. Que asUniversidades são Corpos Eclesiásticos; e que Fe-lipe Augusto no ano 1200, dera um Decreto a fa-vor dos Estudantes matriculados na de Paris, que sefossem presos pelas suas justiças, que seriam entre-gues à Justiça Eclesiástica. Que os mesmos Estudan-tes, não somente gozam das imunidades dos Clérigosmas que andam vestidos do mesmo vestido. Que osgraus de Bacharel, e de Doutor são dados pelo Can-celário que é o Legado do Bispo; porque os Bispossão considerados os Juízes ordinários das Universi-dades. Que aquelas insígnias, quando se doutoraramos Estudantes, dehábito talar, capelo, livro, anel, ebeijo de paz, foram instituídas, como se o Doutoradoentrasse no Estado sacerdotal, ainda que seja leigo,tomando o grau de Doutor em Leis ou em Medicina:e que estas honrasprovêm originalmentedo sumo

53Gregorius IX, in Præfatione I. Decretalium. Et Joann.XXII. ann. 1316, Præfatione ad Clementinas.

54Historia Universitatis Parisiensis, A Cæsare HagasioBulæ o Parisiis 1665, fol. tom. II, secul. IV, pág. 255,ad annum 1150. Seguiremos este Autor, e Coringiode An-tiquitatibus Accademicis, Dissertationes VII, cum Supple-mentis, recognovir Christianus Aug. Heummannus. Got-tingæ 1739, 4.oe a História Eclesiástica de M. l’Abbé deFleury.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 19

Pontífice, e jamais de Príncipe ou Monarca. Pareceque Nicolau IV foi aquele que instituiu estas insíg-nias, porque ele foi o primeiro que ordenou que osCardeais trouxessem chapéu forrado de seda verme-lha; e como os doutores mesmo de Teologia vestema roba talar desta cor forrada de arminhos, (este é ocostume da Universidade de Paris, com o capelo domesmo forro), parece que dele veio esta introdução.A tradição o mostra claramente, por que em Françae em Itália antigamente chamavam a todos os Dou-tores, Clérigos; e aos Médicos da Faculdade de Parisnão lhes era permitido casarem-se, ainda que fossemleigos até o ano 1350, pouco mais ou menos, quandoo Cardeal de Estoutiville, como Legado do Papa, osdispensou desta obrigação55; e que os Reis de Françasomente depois do ano 1573 começaram a ter auto-ridade sobre a Universidade de Paris, porque dantessomente dependia do Papa.

Quando um destes estudantes toma o grau de Dou-tor jura nas mãos do Cancelário «que será sempre fiele constante a defender os Direitos da Universidade, eaDoutrina que se ensina nela», de tal modo que todoaquele assim graduado, que falar ou escrever contraos dogmas e doutrina dela, ficará perjuro, e por con-sequência excomungado; e que senão retractar, queserá persecutado como herege.

Eu não achei prova mais autêntica para provar oque pensa a nossa Universidade de Coimbra do po-der do Papa e da sua Jurisdição, do que a aprovaçãoque ela deu sendo Reitor Nuno da Silva Telles noano 1717, à Bulla unigenitus, em claustro pleno, assi-nando aquelas decisões todos os Doutores Secularese Eclesiásticos56. Lamentemos, Ilustríssimo Senhor,

55Vide Pancirollum variat. Lectionum lib. I. cap. apudCorringium Dissertat. IV. §VIII.

56Sensus Sacræ Facultatis Theologiæ Conimbrisensiscirca Constitutionem, quæ inciptUnigenitus Dei Filius. Co-nimbricæ 1717, 4.oIbi pág. XVII.

«1. Romanum Pontificem, etiam extra Concilium, su-pra quod est, de re dogmatica, sive de rebus, adFidem &morespertinentibus e Cathedra docentem Universæ Eccle-siæ Fideles habere assistentiam infallibilem Spiritus Sancti,proindeque, nec decipi, nec decipere posse».

«2. Constitutiones Pontificiais non indigere, ad suum ro-bur ac vigorem obtinendam, fidelum populorum acceptati-onem, aut consensu, nec proinde talem acceptationem, autconsensum aliquo modo authoritativum».

«3. Sentire omnes ad valorem alicujus Bullæ Pontificiæ& Dogmaticæ, multo minus requiri acceptationem aut con-sensum alicujus particularis Ecclasiæ, sed sufficere solumlocutionem Pontificis ex Cathedra universam Ecclesiam do-centis».

«4. Omnes testati sunt senon causa acceptandi. præ dic-tam Constituitionem convenisse, quasi ipsa tali acceptati-one indigeret ad suum valorem, sed tantum ad eamveneran-dam, ac debitameam obedientiam præstandam. Quapropter

o estado de um Monarca, que não tem, nem podeter um Conselheiro, um Juiz, nem um Procurador daCoroa, que não esteja ligado por juramento defen-der tudo o que tem decretado uma Potência Estran-geira, uma Potência que fundou na sua Monarquia,outra que faz os mesmos efeitos que aquelas plantaschamadas parasitas que se sustentam do suco da ár-vore, donde estão pegadas: lamentamos que está S.Majestade, e cada uma das suas vilas, sustentando anossa Universidade, para diminuir o Poder Real, paraabsorver-lhe a jurisdição que tem nos seus Súbditos,e em Portugal um em vinte, pela doutrina da Univer-sidade, ficam subtraídos daquela indispensável obri-gação: e assim é que se consideram os Eclesiásticos.

Vejamos agorase são úteis ou perniciosas ao Es-tado Civil? Para satisfazer esta questão, é necessáriodeclarar aqui sumariamente o que se ensina na nossaUniversidade, e de que modo se ensina. Bem vejoque não serei exacto, mas contudo não deixarei desatisfazer em geral ao que pede este papel.

Dos Estudos da Universidadede Coimbra depois da sua Re-novação no ano 1553

V. Ilustríssima me escusará facilmente de omitir aquias mudanças que teve a Universidade de Coimbradesde el Rei Dom Dinis seu fundador, e em quetempo foi transferida de Lisboa, para aquela cidadee desta para Lisboa, até que tomou o assento quehoje tem no tempo del Rei Dom João o III. Este Mo-narca sustentava em Paris no Colégio de Santa Bár-bara desde o ano 1530, pouco mais ou menos, algunsEstudantes Portugueses, na intenção de formar Mis-sionários para as Índias Orientais; destes Estudantescomo foram os dois Gouveias e Diogo de Teyve, ealguns estrangeiros Franceses, e Buchanan Escocês,se compôs a Universidade de Coimbra nesta sua re-novação; e podemos dizer que ela é filha da Univer-sidade de Paris; porque em ambas se ensina a mesmadoutrina. No que toca à Disciplina Eclesiástica, V.Ilustríssima sabe o que se entendepour les Libertésde I’ Eglise Galicane.

V. Ilustríssima sabe muito melhor do que eu, deque modo se ensina a Teologia, e o Direito Canónico

censuerunt omnes Sacræ Theologicæ Facultatis Magistri &Doctores».

«5. Oportere ut omnes, non solum Sacræ TheologicæFacultatis, se aliorum etiam Doctorum, & Magistri... se ju-rejurando obstringerent ad præ dictam Bullam, & C».

E toda a Universidade jurou estas proposições acima, e aBula igualmente.

20 António Ribeiro Sanches

na Universidade de Coimbra. Mas não é deste papelmencionar estas ciências: por essa razão não falareinelas, porque tomara que se aprendessem separada-mente em três Colégios:v. g. em Braga, Lisboa, eÉvora, separados de todos os outros, ou da Univer-sidade onde se deviam ensinar as Ciências humanas,de que necessita o Estado Civil.

Estuda-se a Jurisprudência, ou as Leis Romanas,e V.Ilustríssima sabe que raríssimo é o Estudante quetoma o grau nesta Faculdade: muitas são as causas;mas não calarei todas; ainda que todas eram necessá-rias, se este papel fosse um livro.

Entra um estudante na Universidade, instruídobem ou mal na Língua Latina, matricula-se em Leisordinariamente para ouvir ou saber a aula, onde seexplicam Instituições de Justiniano. Continua quatroanos o Direito Civil, escrevendo o que o seu Lentelhe dita; chega ao quinto ano, e faz a sua conta; quelhe será mais útil fazer as suas conclusões Cânones,ou o seu Bacharel; porque sendo canonista:

1. Pode ler no Paço para seguir as varas;

2. Opôr-se aos Benefícios das Ordens Militares, edos Cabidos;

3. Ser Pregador;

4. Ser Vigário Geral, Provisor, ou Promotor de al-gum Bispado;

5. Advogar.

E que faz então? faz petição ao Reitor, pedindoque se lhe comutem os anos, que estudou em Leis,nos cursos do Direito Canónico; e sai despachadocomo pede. Isto é o comum, e igualmente muito no-tório.

Mas o que há-de ser? A Universidade é Eclesiás-tica; aumentar o número dos Canonistas é servi-la, éaumentá-la. O Estado serve-se deles porque todas assuas Leis estão restritas pelas Leis do Decreto, dasDecretais, e mesmo das Clementinas.

Mas concedamos que estudou leis por sete anos,e que nesta Faculdade fez os seus Actos aprovado,nemine discrepante. Que me digam em que poderáservir ao Estado este Bacharel, ou este Doutor emJurisprudência? Sabe Deus se compreendeu as Ins-tituições de Justiniano, com Minsingero, ou Vinnio:porque não creio que o comum destes Estudantes vi-ram jamais os Pandectas. Estudou por sete anos paraser letrado, ou Juiz, e não estudou naquele tempo asOrdenações do Reino.

Mas um Juiz, e um Letrado, que há-de servir a suapátria, necessita ter um conhecimento não ordinárioda História Romana, do Governo daquela República,da sua Religião, e dos seus costumes; como também

ter igual notícia dos séculos bárbaros, da História pá-tria, e de Castela, porque de outro modo não enten-derá jamais as Leis das Pandectas, nem as das nossasOrdenações. Mas na Universidade de Coimbra nãohá tais Cadeiras; como também não há aquela paraensinar o Direito público com a História da Europa,sendo absolutamente necessárias a um Juiz, e a umLetrado que há-de servir os empregos e os Cargos nasua pátria. Mas esta Universidade é Pontifícia comoas mais da Europa; e não convém, e seria castigadoaquele que votasse, que tais conhecimentos se ensi-nassem publicamente. Deixo por agora aqueles doisabusos notáveis, introduzidos pela barbaridade dasEscolas escolásticas, defenderconclusões, e fazer osexames, por Silogismos, aquelaslições de ponto, e asostentações, a abertura das Pandectas, ou do DireitoCanónico, subir à cadeira, e discuti-loex tempore.

Persuado-me que desta vez saiu fora dos Domí-nios de sua Majestade aquela Filosofia das Esco-las depois que se publicou o seu Alvará sobre a re-forma dos Estudos: e por essa causa não alegareitudo aquilo que tinha determinado escrever contraela; portanto não calarei três males que causa. O pri-meiro, que se um rapaz tem boa letra, que perde estabela prenda, escrevendo em cima do joelho por trêsanos, o que seu Mestre lhe dita. O segundo, que seaprendeu algum pedaço de Latim nativo de Cícero,Quinto Curcio, ou Virgílio, que o perde por aquelaLíngua destas Escolas, com nomes, e frases tão bár-baras, que nem são Latim, nem Língua alguma co-nhecida. O terceiro, que depois de estudar esta Filo-sofia, que o Estudante sai, ou com o juízo torto, ouque fica incapaz de estudar, e de aplicar-se por todaa vida. Se este Estudante tem boa capacidade, se seaplicou seriamente, e compreendeu aquela gíria filo-sófica, ficou destituído de todo o juízo natural, e nãopode falar que por silogismos; contradiz tudo, e tudoprova com a sua dialéctica ainda mesmo aquelas no-ções comuns,o total é maior que a sua parte; ficainchado e desvanecido de uma soberba insuportável,porque ninguém o pode convencer; e fica o seu cora-ção mais depravado do que o seu juízo. Mas no casoque o pobre Estudante não aprendeu, nem concebeuaquela língua de gíria, esmorece, não estuda, abor-rece a aplicação porque não tem gosto algum na lei-tura, adquiriu o hábito de não indagar coisa alguma;ocupa o tempo em aprender a Música, a jogar cartas,a espada preta, e queira Deus que não ocupe aqueletempo destinado para aprender, em vícios que o fa-rão inábil para si, e para a sua pátria. Ninguém quepassou por aquelas Escolas negará o referido: estaFilosofia é a produção dos séculos da Ignorância, doócio dos Frades depois que deixaram o trabalho demaõs que ordenava a sua regra; é a produção da Mo-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 21

narquia Gótica onde o vencer, e ignorar as leis dahumanidade, era o seu fundamento.

O fruto, que deve pretender o Legislador dos estu-dos da Mocidade, é que saiam das escolas com o co-nhecimento das primeiras noções das coisas naturais,e das coisas civis; com o juízo tão bem formado quesaibam o que éútil a si e à sua pátria, o que élícito, oque édecente: e quem saiu com estes elementos dasEscolas, os adiantará facilmente na Sociedade Civilpela leitura, e pelo trato dos homens instruídos. Masdas Escolas de Filosofia que havia em Coimbra tudose observava em contrário; e se é lícito dizer outrotanto dos Estudos da Universidade, é certo que me-recem igual reforma, como S. Majestade ordenou nosestudos das Classes.

Resumo do referido

Tenho mostrado a V. Ilustríssima, me parece, com abrevidade e clareza que me foi possível, aConstitui-ção da Monarquia Civil, e também aquelada Mo-narquia Eclesiástica, estabelecida dentro da mesma.Mostrei o Sagrado da primeira, fundada, especial-mente Portuguesa peloconsentimentogeral dos Po-vos, pelojuramento da Fidelidadeaos Reis que invo-caram a mesma Divindade, que os seus Povos, comotestemunhae como caução daquela convenção, e so-lene pacto. Mostrei que todos os Monarcas, e comespecialidade os nossos, têm em si incluído todos ospoderes, que tinham os seus súbditos antes daquelasolene transacção; e que Neles existe aJurisdiçãodoPrimeiroJuiz, doPrimeiroGeneral; doPrimeiroPai,do Primeiro Censor; autorizado a decretar todas asleis que forem úteis para a conservação e aumentodo seu Estado.

Mostrei também que pelos primeirostrês séculosda Cristandade, viviam os Cristãos em comum de-baixo do Governo dos Bispos, ligados em Congrega-ções, como aquelas Sociedades de Cristãos heregesna Holanda, e Alemanha chamadasHerrenhutters,permitidas e às vezes persecutadas pelo Estado Ci-vil. Que os Cristãos nestas primeirasCongregações,como os frades de St. Basílio, e St. Bento viviam emcomunidade de bens, de vontades, de crença, na Fé, ena caridade cristã. Que os bens destas Igrejas consis-tiam em esmolas dos Fiéis, das quais se sustentavamos Sacerdotes, os pobres, e conservavam edifícios,onde se celebravam os Divinos Mistérios.

Que o ofício dos Bispos consistia em ensinar osMistérios Divinos, a administrá-los, e a inculcá-lospelos sermões, e práticas espirituais; e também a or-denar e a formar Párocos, e Diáconos para exerci-tarem as mesmas funções. Que não tinham poderalgum coactivo nos Cristãos, conforme a doutrina

do Evangelho; que castigavam somente refusando osSacramentos aos Pecadores escandolosos, ou que re-caiam no mesmo pecado, e às vezes até à hora damorte: que impunham penitências graves por mui-tos anos, àqueles que espontaneamente procuravamaliviar a sua consciência pelo Sacramento da Peni-tência.

Mostrei que Constantino Magno foi o primeiroque governou o Estado Civil, por estas Leis e regrasdas Congregações Cristãs, e dos Conventos: dandoJurisdição aos Bispos de Pretores e de Censores; pre-miando a continência, e abrogando as Leis Civis doImpério; e que deste modo ficaram os Bispos e osPrelados, Senhores das Escolas da Mocidade, e Cen-sores dos Costumes Civis.

Que os Bispos aumentaram a sua autoridade notemporal tanto que os Monarcas Godos já Cristãoslhes deram terras, e vilas em propriedade, e com Ju-risdição de vida e morte; ainda que com obrigaçãode irem à guerra com os seus vilões. Que esta autori-dade no civil cresceu pelas Leis das ditas Monarquiasas quais todos aqueles que eram Senhores de terrascom Jurisdição, tinham assento nos Parlamentos, enasCortesque celebravam frequentemente.

Que como a ignorância era universal, que nin-guém sabia ler nem escrever, exceptuando os Ecle-siásticos; que por essa causa eles eram os Conselhei-ros dos Príncipes, os Chanceleres, os Embaixadores,os que redigiam os actos dasCortes, os que eramSecretários, Juízes, Notários, Advogados, e os Médi-cos. Que os mesmos Reis cairam na ignorância quereinava, porque os seus filhos, e da Nobreza, erameducados nos Conventos.

Que todo o ensino que houve na Europa até àperda do Império Grego no ano 1453 estava nas Sés,nos Conventos e Universidades, donde todos os Mes-tres eram Eclesiásticos, ou que viviam conforme aDisciplina Eclesiástica estabelecida por muitos Con-cílios, e principalmente os de Toledo, que duraramaté o ano 701; pelas falsas Decretais de Isidoro Mer-cator, e sobretudo pelo Decreto de Graciano, pelasDecretais, e pelas Clementinas.

Que as Monarquias Godas eram totalmente igno-rantes da sua Jurisdição: que davam vilas e cidadescom ela a seus filhos e mulheres, e outros súbditosque não conheciam outra que de primeiros Generais;e que por essa causa os Eclesiásticos, nesta ignorân-cia dosDireitos da Majestade, os absorveram, e usa-ram deles, como Senhores. Que não distinguiramnunca entre o Cristão e o Rei, e o Homem; que ti-nham por máxima, e que ainda se conserva hoje, queo Estado de Cristão apaga o Estado de Rei, de Ma-gistrado e de Homem; e que deste modo eles eramos Senhores de tudo o que dependia do Cristão, do

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Homem, do Súbdito, ou do Soberano. E para que secompreenda como foi governada a Europa Católicapor treze séculos, trarei um exemplo que o mostraráevidentemente. Parece-me que vejo um Sacristão en-sinando a doutrina cristã, rodeado de meninos: porcada erro, ou falta que algum, ou por ignorância oupor inadvertência, fez, o castigo é imediato, sem dis-tinção se é filho de Nobre, ou plebeu, ou se é livre ouescravo: todos estes ouvintes recebem aquele castigocom a maior submissão.

Mostrei que as universidades Católicas são de Ins-tituição Eclesiástica, e que nelas se ensinam somenteaqueles conhecimentos, que conservam e aumen-tam a autoridade e primazia dos Eclesiásticos; e quesendo somente da sua obrigação ensinar nas Igrejas,e nas Sés a Doutrina Cristã, a Teologia, e as Escritu-ras Sagradas, que por sua autoridade e direcção or-denaram ensinar as ciências humanas, sobre as quaisnão têm nem devem ter inspecção alguma; que osPrivilégios dos primeiros Imperadores Cristãos aosBispos, a ignorância dos Reis Godos, e Visigodos, oterem assento em Cortes, e possuírem terras com ju-risdição civil, foi a causa que os mesmos usurparamgovernar pelas leis da Igreja o Estado, como tambémensinam as ciências humanas, ainda que tão precaria-mente, que vêm a ser inúteis ao mesmo; que nas Uni-versidades não se ensinam a Física, a História Natu-ral, as Matemáticas, a Astronomia, a Filosofia Moral,o Direito das Gentes, nem as nossas Ordenações, Ci-ências das quais necessita o Estado para o seu bomgoverno, e aumento: e que só ao Soberano pertencefundar estes Estudos, e aos Mestres Seculares ensinarneles; do mesmo modo que só é da competência dosEclesiásticos ensinar a Teologia, Escritura Sagrada eCânones, e a eles mesmos estudar estas ciências.

Que Sua Majestade é o Soberano Senhor de fun-dar Universidades ou Escolas onde se ensinem asciências naturais, e as Civis, não dependendo es-tas por nenhum princípio da autoridade Eclesiástica:que tem a mesma para decorar com honras aos quetiverem estudado com aplauso, sem intervenção doSumo Pontífice, ou dos Bispos.

É o que por agora ouso apresentar a V. Ilustrís-sima; e se achar que foi do seu agrado o que acabode escrever, continuarei o que tenho meditado sobrea Educação da Mocidade Portuguesa, e a dar as maisincontestáveis provas do maior respeito que conservopara V. Ilustríssima, que Deus guarde muitos anos.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 23

Ilustríssimo Senhor:

Na introdução acima viu V. Ilustríssima, que todaa Educação que tivemos até os nossos tempos, foiconforme as máximas Eclesiásticas, tanto nas Esco-las do Latim e Filosofia, como nas Universidades.Agora mostrarei os seus efeitos: mostrarei as Leisque saíram deste ensino; e também os costumes quesaíram destas Leis: mostrarei de passo o prejuízo querecebeu o Reino, e a Religião; e que se o Reino sepodia conservar com aquela Educação enquanto ha-via conquistas, e podia conquistar, que actualmentenão as havendo já, que se deve mudar aquela antigaEducação que tínhamos; e que por existir ainda hoje,que vem a ser muito prejudicial ao Estado. Juntam-se a estes inconvenientes que o nosso Estado actu-almente é uma mistura da Constituição Gótica, e daConstituição daquelas Monarquias, das quais a baseconsiste notrabalho e naindústria: porque conser-vando as conquistas, e as Colónias que temos, somosobrigados (a) conservá-las pelaagriculturae peloco-mércio; e para fundar estes empregos, e conservá-los,como base do Estado, necessitamos derrogar as LeisGóticas que temos, que se reduzem aos excessivosPrivilégios da Nobreza e às Imunidades dos Ecle-siásticos, as quais contrariaram sempre todo o bomGoverno Civil. Enquanto existirem estes obstáculos,que são firmados pelas Leis das nossas Ordenações,é impossível introduzir-se uma Educação universalda Mocidade destinada a servir a sua pátria no tempoda ocupaçaõe dodescanso, no tempo dapaze daguerra.

Eu bem sei, Ilustríssimo Senhor, que nem tudo sepode fazer de uma vez; bem sei que os obstáculosque impedem o bem, devem ser atendidos muitas ve-zes com maior ponderação, do que o proveito e utili-dade que se vai buscar, quando forem vencidos: masse tudo se não pode fazer, é da obrigação do juízohumano prever tudo, e conhecer as causas das de-sordens presentes, para evitá-las, ou suprimi-las pelodiscurso do tempo. Espero do claro entendimento deV. Ilustríssima que não acuse o meu obediente e fer-voroso ânimo no serviço de S. Majestade, se adiantaralguma decisão que indique erigir-me em Legislador,ou que reprovo as Leis fundamentais do Reino. Omeu intento é declarar à V. Ilustríssima o que tenhopensado e penso sobre o Estado de Portugal; umasvezes lendo, outras escrevendo, e meditando depoisde muitos anos: não pretendo que se siga o que omeu reverente ânimo ousa comunicar a V. Ilustrís-sima; nem confio de mim tanto, que me persuadaseja irrefragável o que digo. No caso que me engane,será um proveito para a Pátria, que tenha Súbditos

que com melhores e mais acertadas razões, me con-tradigam; porque esses mesmos aceitarão com me-lhor método, de propor as Leis pelas quais se devegovernar o Reino e a Educação da Mocidade.

Efeitos que causaram em Por-tugal as Escolas e as Universi-dades da Europa e do mesmoReino

Viu, V. Ilustríssima, na introdução acima a total ig-norância dos povos Cristãos da Europa desde o anode 600, até o de 1400: e que só os Eclesiásticos porsaberem ler, e escrever a Língua Latina, e algumas ci-ências, tinham no seu poder a Legislação dos ReinosCristãos, e toda a Educação da Mocidade, e aindaaquela dos mesmos Reis, educados nos Conventose sempre ensinados por Eclesiásticos. Viu, V. Ilus-tríssima, também que toda a Cristandade foi gover-nada pelos Papas, e pelos Bipos, e que sem a me-nor repugnância obedeciam, não só a abraçar a dou-trina, mas ainda o castigo. Deste modo é que fizeramLeis de Disciplina que existem no Decreto, e Decre-tais; erigiam-se Universidades com os seus EstatutosEclesiásticos, donde aprendiam aqueles Súbditos quehaviam de servir um dia a sua pátria, nos Cargos deConselheiros de Estado, de Secretários de Estado, deMagistrados, Juízes, Advogados, Embaixadores, En-viados, etc. E que estes não tendo aprendido outraciência nem conhecimento científico, (como tambémos Reis dos seus Mestres) que nas Universidades di-tas, era força que tudo o que fizessem pública e parti-cularmente, fosse conforme as Leis decretadas pelasDecretais, e ensinadas nas Universidades.

Desta Origem vieram as nossas Leis e as nossasOrdenações. João das Regras, ensinado na Universi-dade de Bolónia por Bartholo, ordenou num volumeas Leis de Portugal, que andavam dispersas, e lhesjuntou as Leis do Código, com as Interpretações deBartholo e Acursio, que valeriam por leis, e assim aspublicou no ano de 1425. No tempo del Rei DomAfonso o Quinto, o Infante Dom Pedro sendo Re-gente, foram reformadas: el Rei Dom Manuel, noano de 1514, as mandou publicar com este título,Or-denações do Reino de Portugal: foram reimpressascom aumentos por mandado dos Reis Dom João oIII, Dom Sebastião, Dom Felipe o Primeiro, e Ter-ceiro, Dom João o Quarto, Dom Pedro, e Dom Joãoo Quinto. E em tantas e tão variadas impressões sem-pre esta obra constou de cinco livros, e cada um dediversos títulos, que se foram aumentando ou dimi-

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nuindo conforme os directores da impressão, comodiz Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusi-tana, no artículoJoãodas Regras.

A primeira Educação regular de que temos notí-cia da História, começou no tempo del Rei Dom Di-nis; ele mesmo foi educado por Mestres Franceses, eparticularmente por Dom Américo, que foi Bispo deCoimbra, que seu pai Afonso Terceiro tinha visto emFrança, quando estava casado com a Condessa Ma-tilde. Este Príncipe assim educado, tanto que pos-suiu o trono, erigiu uma Universidade, onde se ensi-nava o Direito, e a Medicina; porque a Teologia seensinava nos Conventos de S. Domingos e S. Fran-cisco. Continuou esta Universidade umas vezes emLisboa, outras em Coimbra, até os nossos tempos; esem embargo que nela aprendia a Mocidade Portu-guesa, sempre aquela que mais se queria distinguirsaía a aprender em Bolonha, Florença, e Paris, comoera costume no tempo del Rei Dom João o Segundo,el Rei Dom Manuel, e Dom João o Terceiro, particu-larmente em Paris. O Chanceler Mor João Teixeira,e seu filho Luiz Teixeira, Jurisconsultos doutíssimos,tinham aprendido em Florença, e este último comÂngelo Policiano.

As ciências que se ensinam e ensinavam nestasUniversidades desde o seu estabelecimento tanto emPortugal, como no resto da Europa Católica, sem-pre foram as mesmas; e as decisões do Decreto, dasDecretais e das Clementinas foram tão observadas eensinadas como as decisões do Concílio de Trento:a Mocidade não podia aprender outra doutrina; equando vinham a ser Magistrados Desembargadoresdo Paço, e em outros Tribunais, não podiam proporlei alguma nova, ou ab-rogar alguma velha, que nãofosse conforme à doutrina recebida que aprenderamnas Universidades Católicas; e como os Reis não ti-nham outra sorte de Mestres, nem de Conselheiros,firmavam tudo o que se lhes propunha, julgando-oútil para a conservação do Estado.

Deste modo é que se compuseram asOrdenações;e vemos nelas aquelas leis em favor dos Eclesiásti-cos, como se não fossem reputados Súbditos do Es-tado. «Que sejam isentos, e excusos de pagarem dé-cima, portagem, siza, do que comprarem e venderem,eles e todos os seus domésticos. Ord. liv. 2. tit. XI.Julgam todas as causas Mixtifori, não sendo preven-tos pelas justiças seculares (o que sucede raríssimasvezes). Ord. liv. 2. tit. IX. Que as Justiças do Reinoexecutem tudo o que a inquisição lhes ordenar. Ibi.tit. VI.» e outras mais imunidades, e Jurisdição emmatérias quandohouver pecado, como poderão vermais particularmente os que amarem esta indagação,nas mesmas Ordenações.

Como os Desembargadores que propuseram as di-

tas ordenações não tinham aprendido a diferença en-tre uma Monarquia fundada e conservadacom a es-pada, e entre aquela fundada pelotrabalho e indús-tria, seguiram cegamente na sua composição, mesmoaté os nossos tempos, as máximas da nossa antigaMonarquia, que essencialmente é a Gótica; conserva-ram nelas aqueles exorbitantes privilégios aos Fidal-gos, e aos Desembargadores. «Que os seus domés-ticos, lavradores, criados, não paguem peitas, fintas,pedidos, nem talhas.» Ord. liv. 2, tit. 58 & 59. Assuas pessoas não podem ser presas por dívidas nemvenderem-se os Morgados, nem serem presos por cri-mes leves. Ibi. liv. 5. tit. 120. liv. 3. tit. 54. §. 15.liv. 5. tit. 134, & tit. 25. e outros muitos que se lêemem muitos lugares das mesmas Ordenações.

Desta Origem aquelas Leis, destrutivas da agricul-tura, e do Comércio sobre osReguengos; almotaçaras carnes, o peixe, os frutos, e o pão; proibirem quese possa negociar com os frutos e sementes, como sefaz comércio com os panos de Linho e de Lã; é ver-dade que os Reis igualmente instruídos fizeram, deseu moto próprio. Leis destruidoras do Estado e daAgricultura.

El Rei Dom João o segundo por um mal entendidozelo ordenou que se executassem as Bulas dos SumosPontífices, sem serem revistas pelos seus Ministros;o que estava em uso dantes, e estabelecido por mui-tas Concórdias ou Concordatas entre os nossos Reis eos Papas. El Rei Dom ManueI estando em Saragoçadecretou uma Lei, de seu moto próprio, sem inter-venção das Cortes, pela qual eximiu todos os Ecle-siásticos (de) pagarem peitas, sisas, e outros tributos,que pagavam dantes, como osLeigos, como diz oseu Cronista Damião de Góis. E o mesmo Rei decre-tou outra, com suma perda da nossa agricultura, queos frutos e sementes que desembarcassem nos portosdo Reino, sendo estrangeiros, não pagassem tributo,portagem, nem outro qualquer direito. A ignorân-cia do jus da Majestade, da obrigação que têm todasas terras, rios, portos, mares, e enseadas de pagar aoEstado a proporção do seu rendimento; a ignorânciada obrigação que todos os súbditos têm de pagar, oucom os seus bens, ou com o serviço pessoal, taças aoEstado, foi a causa daquelas Leis das Ordenações, eLeis decretadas por estes Reis.

Continua a mesma matéria. Efeitosque causaram nos costumes as Leisreferidas

Estes privilégios e imunidades foram a causa dosCostumes depravados, e por consequência da máEducação, foram os que perderam a igualdade entre

Cartas sobre a Educação da Mocidade 25

os Súbditos, considerados unicamente como Súbdi-tos de um Estado Civil; e destruida esta igualdade, jánão pode haver justiça, propriedade de bens, respeitoaos Magistrados, nem subordinação. E eu, Ilustrís-simo Senhor, não escrevo este papel que para intro-duzir esta Educação: não emprego tanto tempo parapropor meios que facilite a Mocidade Portuguesa serdouta; o meu intento é propor, e persuadir mesmoque seja boa, e útil à sua pátria, considerando as ci-ências que há-de aprender como meios, mas não porúltimo fim.

Eu bem sei que para conservar a Constituição daMonarquia Gótica, que eram necessários tantos pri-vilégios como tem hoje a Fidalguia, porque até otempo del Rei Dom João o terceiro, conservando-seo Reino pela conquista, e conquistando, era indispen-sável então premiar tão prodigiosamente aqueles quese empregavam naquelas guerras. Mas como tratoagora dos efeitos que causaram estesprivilégiosnosCostumes e na Educação, pouco importa que sejamfundados em justiça, ou na sem razão.

O Fidalgo estando acostumado a ver criados e vi-lões nas suas terras que pertencem à Coroa, e nosseus Morgados, os trata em escravos; isto é que o cri-ado, nem o vilão diante do Fidalgo não é proprietá-rio do seu corpo, porque o senhor o maltrata quandoquer; nem dos seus bens, nem da sua honra; todo obem deste Súbdito é precário. Daqui procede que noânimo do Fidalgo não há justiça, porque não atende aigualdade que deve existir entre ele e o seu criado, ouvilão; destruindo este vínculo da Sociedade, já nãohá excesso que não possa ser cometido por quem as-sim foi criado. Como pela Lei do Reino não pode serpreso por dividas, como os seus bens não podem servendidos para pagá-las, daqui vem que este Senhoré dissipador, nem sabe o que tem, nem o que deve;perde toda a ideia da justiça, da ordem, da econo-mia; pede prestado com mando, maltrata, e arruinaa quem lhe refusa; os seus domésticos imitam esteproceder, e cometem à proporção as mesmas faltas:o povo nas cidades, nas vilas, e nas aldeias imitamem todo o mundo, o trato e os costumes dos Senho-res das terras; e bastam dois deles numa Comarcaestabelecidos, para fazerem perder nela toda a ideiada equidade e da justiça.

Estes são os efeitos destes Privilégios da Fidalguianos Costumes dos Criados, e dos Vilões; mas o pioré que fica frustrado o Cargo dos Magistrados, e oJusda Majestade. A Fidalguia por estes Privilégios des-preza as Justiças do Reino, e pelo menos dentro de sias considera para castigar somente os seus inferioresque são o povo; resiste, e insulta a todo o Magis-trado que quer executar a incumbência do seu cargo:

considerem-se estas consequências, e que as Leis dasnossas Ordenações são a causa delas.

Mas as imunidades dos Eclesiásticos, expressa-das nas nossas Ordenações, destroem toda a subor-dinação, toda a igualdade, e toda a justiça do Es-tado Civil: que a pessoa do Ministro da Religião sejarespeitada, considerada, que fique isenta de todo ocargo público, e de servir pessoalmente ao Estado,é da obrigação do Estado Civil Cristão; mas que osseus criados, e família, as suas terras, o que com-pram e vendem, estejam privilegiados, não pagandoas alfândegas, etc., como pagam os Leigos, isso éarruinar o Estado Civil, e por último destruir a San-tidade da Religião. Não necessito outra vez pôr di-ante dos olhos de V. Ilustríssima, que os bens da Co-roa, que deram os nossos Reis às Ordens Militares,aos Bispos, e aos Prelados, como aqueles que deramaos Senhores, eram com expressa obrigação de iremà guerra, e fazê-la aos Mouros que eram inimigosde dia e noite pois que estavam ainda estabelecidosem Portugal: foram por último expulsos; acabou-sea obrigação que tinham os Eclesiásticos, ficaram-lheas terras sem nenhuma e por consequência ficou oEstado defraudado daquele Serviço Militar, ou dosrendimentos daqueles bens.

Os Eclesiásticos por estas imunidades, e pelasLeis do Direito Canónico, e pelos Privilégios dosnossos Reis se consideram uma certa Monarquia,cuja cabeça é o Papa; independente del Rei paraobedecer-lhe, e para servi-lo, nem com os seus bens,nem com os seus domésticos: consideram-se superi-ores às Justiças do Reino, e a todos os que os servem;que os bens que têm, e os tributos que não pagam,que lhes são devidos, como um tributo à Igreja, enão por favor e graça dos Reis. Basta aparecer umFrade na Alfândega, para tirar a mercancia que quer;porque o respeito que está de posse do ânimo dosGuardas e do Provedor, e o medo da excomunhãoem que incorreriam se lhe resistissem, deixavam fa-zer o Frade e o Clérigo ousado; e com razão, porquesabe que ninguém se atreverá a tocar-lhe: nas Pro-víncias conservavam o mesmo despotismo com osJuízes, com os Meirinhos, e com todos os Súbditos,quando querem exercitar os seus cargos.

Os efeitos que causam estas prerrogativas nos âni-mos dos Súbditos são perderem o hábito de exercita-rem a sua obrigação nos seus cargos, contra o jura-mento que deram quando entraram neles: depois per-dem aquela inviolável veneração que devem ter paraas Ordens do seu Soberano, vício maior que pode ha-ver numa Monarquia, perde-se toda a ideia da igual-dade, da justiça, e do bem comum, que deve existirno ânimo do mais ínfimo Súbdito. Deste modo cadaPortuguês quer ser Senhor no seu estado; repreende

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ao rapaz que vai cantando pela rua, porque lhe nãoagrada: e julga que tem autoridade para fazê-lo emu-decer. Está em companhia, observa alguma acçãoque lhe não agrada, com a mesma fantástica auto-ridade o repreende e o maltrata, porque se imaginaSenhor, e porque o Fidalgo faz o mesmo, e o Ecle-siástico, ainda muito mais nas acções que não são dasua competência. Por estes privilégios e imunidadesfica uma Nação tão dividida entre ela mesma, quevem a ser insociável; por isso sempre armada, sem-pre em defesa, como se os seus compatriotas fossemseus inimigos declarados.

Mas o maior mal que causam estas Leis vem aser, que cada dia estão saindo do estado de vilão ede cidadão muitos e muitos Súbditos, para entraremnaquele da Nobreza, e dos Eclesiásticos. Todos oshomens levam por objecto nas acções que fazem, ouno trabalho que empreendem, o proveito, a distinção,e a honra; e se lhes faltam estas esperanças, esmo-recem, e perdem todos os estímulos para obrar. EmPortugal todo o que não nasceu Nobre, ou não é Ecle-siástico, deseja vir a ser membro destes dois Corposrespeitáveis, donde a conveniência, a honra, a distin-ção e o proveito têm ali o seu assento: o Lavrador, oObreiro, o Oficial trabalham dia e noite para fazeremum Clérigo, um Abade, e um Cavalheiro do Hábitode Cristo; uma viúva e três ou quatro filhas estão fi-ando dia e noite para meterem um filho Frade, pelahonra que dará à família, e porque vindo a ser Pre-gador ou Provincial a estabelecerá toda com honra ecabedais. Todo o Comum do Reino está continua-mente trabalhando, e forcejando para sair do estadoem que nasceu; todo se considera violentado, porquelhe falta aquele Senhorio que vê no Nobre, e no Ecle-siástico: para isto servem as Leis que temos, e paraisto somente é que gasta o Reino tanto, na Educaçãodas Escolas e das Universidades.

Pesa-me, Ilustríssimo Senhor, ser obrigado a dizeraqui sem rebuço, que naqueles Estados que têm porbase a sua conservação notrabalho, e naindústria,não há neles nenhuma sorte de Súbdito mais pernici-oso à sua harmonia, do que é um Nobre, ou um Fi-dalgo com os Privilégios que lhe permitem as nossasOrdenações. A Nobreza é essencial naquelas Monar-quias Góticas como a nossa, enquanto dependia a suaconservação de conquistar e de subjugar os seus ini-migos; mas logo que se acabou a conquista, logo quenão houve que conquistar, é necessário que o Legis-lador mude as leis: o Estado que tem terras e largosdomínios, e que deles há-de tirar a sua Conservação,necessita decretar Leis para promover o trabalho e aindústria, e derrogar ou ab-rogar aquelas que se esta-beleceram no tempo que adquiriam com a espada.

Deste modo podiam ficar os Eclesiásticos possui-

dores das vilas, e terras que têm; podia Alcobaçaficar com as suas trinta e duas vilas, e a ordem deMalta com quatorze ou quinze: mas que pagassemaqueles bens de raiz do mesmo modo que os dos vi-lões; que os mesmos lagares, moinhos, e azenhas nãotivessem privilégios; que a jurisdição que têm tor-nasse à Coroa de donde saiu, e que o equilíbrio entreos bens do Súbdito se restabelecesse, para fundar-seaquela tão natural Lei da propriedade dos bens, baseda Monarquia fundada notrabalho e na indústria;entre as quais entrou a nossa, depois que não temosque conquistar, o que veremos pelo discurso destepapel.

No ano de 1500 pouco mais ou menos, HenriqueSétimo de Inglaterra queria diminuir os privilégiosda Nobreza (que gozava dos mesmos como a nossa),e ao mesmo tempo queria introduzir a agricultura eo comércio, desconhecido antes naquele Reino; semviolentar nenhum Nobre, sem tirar-lhe nenhum pri-vilégio executou o que diz, e foi a base da grandezadaquela Monarquia. Decretou uma lei: Que cada Ba-rão, ou Senhor de terras vinculadas, ou pertencentesà Coroa, ou a Morgados, ficava autorizado de as ven-der, alienar, ou arrendar, dispondo-se de toda a possee usufruto delas. O que sucedeu foi que como na-queles tempos começava o luxo, os Senhores pouco apouco foram vendendo, e alienando as suas terras, asquais compravam aqueles que tinham dinheiro; destemodo vieram os bens livres e se introduziu a igual-dade e a justiça naquele Reino, e foi conhecida a pro-priedade dos bens de cada Súbdito.

Continua a mesma matéria sobre aEscravidão e Intolerância Civil

Temos visto que da Educação das Escolas e Universi-dades procederam as nossas Ordenações; temos vistoque das Leis que temos, procedem os nossos costu-mes: agora veremos que dos privilégios da Fidalguiaconcedida pela constituição da Monarquia Gótica, seseguiu aescravidão.

É fácil conceber esta consequência: porque to-das as Nações conquistadoras como as do Oriente,os Gregos, Romanos, e Godos, conheceram, e usa-ram dos povos vencidos por escravos. Esta prática seconservou em Portugal pela conquista do Reino con-tra os Maometanos; e se continuou pela conquista deGuiné e de Angola. Hoje é permitida em todo o Do-mínio Português; e não creio que até agora ninguémcuidou ponderar os males que causa ao Estado, à Re-ligião, e à Educação da Mocidade.

A escravidão sem termo, como é a que se praticaem Portugal, é perniciosa ao Estado. Porque não re-cupera pelos Escravos, os Súbditos que perde na con-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 27

quista, na navegação e nos estabelecimentos que temna África. Já disse que os Romanos permitiam aosescravos casarem-se, mesmo ainda com as mulheresRomanas, e que os seus netos vinham a ser cidadãos,e deste modo cada ano recuperava a República pelaescravidão, o que perdia pela conquista. Portugal nãotem senão a perda dos Súbditos por estas vitórias eaquisições.

Eu não posso conceber como os Eclesiásticos nãotêm remorsos de consciência em permitirem que fi-que escravo o menino que nasceu de Pai ou Mãe es-crava, no meio de Reino e da Religião Católica. Queo adulto que foi cativo, ou comprado na África, ouna Ilha de S. Lourenço, fique escravo depois que foibaptizado, passe por razões políticas, e não por aque-las do Evangelho; mas que o mesmo se use com o seufilho nascido nos Domínios Portugueses, e baptizadonos braços da Mãe Cristã, isto é para mim incompre-ensível! Aqui só são incoerentes as máximas Ecle-siásticas: elas governaram a República Cristã e Civil,estendendo o seu poder fora da Igreja, e governandoa Sociedade Civil em todo o Domínio da Monarquiacomo vimos: mas pela Religião Cristã todos os Fiéissão iguais enquanto observam os Mandamentos daIgreja; porque consentem os Eclesiásticos esta desi-gualdade de Escravo e Homem livre entre os mes-mos Cristãos; porque não estendem fora da Igrejaesta igualdade, e fazem entrar os Escravos Cristãosna classe do Súbdito livre, e cidadão? Esta contradi-ção é notória; e indigna de conservar-se na Cristan-dade, pela honra, pela Santidade, e pela veneraçãoque devemos ter para a Religião Cristã.

Se eu pretendesse somente que a Mocidade Por-tuguesa fosse perfeitamente instruída, como já disseacima, não havia de reprovar aEscravidãointrodu-zida em Portugal: o meu intento é que seja dotadade humanidade, daquele amor de conservar os seussemelhantes, e de promover a paz e a união da suafamília, como aquela de toda a sua pátria. Mas nãoé possível que se introduzam estas virtudes enquantoum Senhor tiver um Negro a quem dá uma bofetadapelo menor descuido; enquanto cada menino, ou me-nina, rica, tiver o seu negrinho, ou negrinha. AquelaCompanhia tão intima pela criação altera o ânimo da-queles Senhoraços, que ficam soberbos, in-humanos,sem ideia alguma de justiça, nem da dignidade quetem a natureza humana. Eu vivi muitos anos em ter-ras onde a escravidão dos Súbditos é geral, e vi eobservei que nelas não se concebe ideiada huma-nidade, e coração mavioso, capaz de obrar acçõesde justiça, de ordem, com aquele amor para a es-pécie humana. Por esta razão não creio que se po-derá estabelecer jamais educação boa nem perfeitanaquele Estado, onde a Escravidão estiver introdu-

zida, ou a tempo, ou sem termo. Esta matéria é tãoclara que com razões ninguém se poderá convencer,se ele mesmo não reflectir interiormente, lembrando-se do que viu, e ouviu nesta matéria, e cada Portu-guês terá muitas provas do que digo acima.

Como dosPrivilégiosdos Fidalgos e da Nobrezaprocedeu aEscravidão, assim dasImunidades Ecle-siásticas, procedeu aIntolerância Civil.

Mas aqui, Ilustríssimo Senhor, necessito eu mais oseu favor e a sua benignidade, para permitir-me quediga alguma coisa de uma matéria, da qual ninguémousou mesmo falar onde o poder Eclesiástico teve omenor ascendente nas monarquias. Nem persuado,nem aconselho nos nossos dias, a Liberdade da cons-ciência nos Domínios de sua Majestade: nem escre-verei contra as decisões da Igreja universal, às quaissempre me submeto, sendo uma das principais, quefora da Igreja não há salvação; nem contra os Polí-ticos que assentaram, há 200 anos, que onde existi-rem muitas Religiões comliberdade de consciênciano mesmo Estado, que haverá sublevações, guerrascivis, traições, e ruína total do Estado, que é o maiormal que pode suceder ao género humano em Socie-dade.

Eu não farei agora sobre as referidas decisões,mais do que algumas observações fundadas no co-nhecimento das coisas ordinárias, e na experiênciaque tenho dos Estados onde a liberdade de consciên-cia é permitida e premiada: nem me valerei de auto-ridades, nem ainda daquelas sagradas, nem dos San-tos Padres, a favor da Tolerância, mesmo Cristã; epelo último mostrarei a V. Ilustríssima, o prejuízo eo dano que causa à boa educação a Intolerância, e queparece impossível introduzir-se otrabalhoe aindús-tria, como base de uma Monarquia, onde existir estaLei.

Que nas Congregações dos primeiros Cristãos,que nos Conventos não fosse nem seja permitidoCristão ou Frade, que não seja da mesma Religião,é justo e é necessário, porque a sua Constituição econsentimento comum assim o requeria: mas queestas Congregações, ou Conventos queiram obrigarcom prisões e excomunhões aos Súbditos do Estadoque sejam Cristãos, é contra a Lei Cristã, que ordenanão violentar as consciências de quem não é aindaCristão: a questão agora é se estas Congregações,ou Igrejas Cristãs têm poder coactivo para obrigarum Cristão já baptizado, a continuar na prática damesma Religião no caso que não queira observá-la,ou mesmo declamar e escrever contra ela?

Nenhum Bispo, nem Prelado tem poder coactivo,nem mesmo por autoridade divina: todo o seu po-der é espiritual. Os Imperadores Romanos do quartoe quinto século concederam algum poder aos Ecle-

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siásticos sobre os Seculares Cristãos; e este poder seaumentou quando os Bispos vieram em França, e emEspanha Senhores de terras com jurisdição, como vi-mos acima. Mas este poder de que usaram e usamainda os Bispos, e o seu Apendix que é a Inquisi-ção, é uma usurpação da Jurisdição da Majestade; eé contrário à instituição da Religião Cristã. O PoderEclesiástico é e deve ser sobre aquele Cristão que vaiespontaneamente oferecer-se à Igreja para satisfazera sua consciência: mas não tem direito nenhum so-bre aquele cristão, ou Gentio que não quer entrar naIgreja. Logo os Eclesiásticos não podem assentar pormáxima universal que a Tolerância, ou Liberdade deconsciência é contrária à Conservação da Religião.É contrária na verdade naquelas Congregações Cris-tãs, e Conventos; é contrária entre os mesmos sócios,e que vivem de comum consentimento em comuni-dade de bens, mas de nenhum modo é contrária àconservação do Estado Civil.

Ponhamos diante dos olhos o que se pratica naHolanda, e sobretudo na Rússia: nestes dois Esta-dos têm livres exercícios todas as Religiões, que nãosão contrárias às Leis fundamentais deles. Na Ho-landa, como na Rússia há Igrejas Católicas Roma-nas; os Católicos que vivem ali vão espontaneamenteà Igreja, e se conformam à doutrina e à disciplinaCristã Católica: um destes, por exemplo, se não quisconfessar-se, se quis mudar de Religião, ser Calvi-nista, ou da Religião Grega, que é a dominante daRússia, o Pároco, ou Missionário não tem que fa-zer com este Apóstata; nega-lhe os sacramentos, eobriga-o a sair da Igreja, se quer entrar nela: masnão tem outro poder. Mas se este Apóstata cometeualgum crime, ou fez açcão contrária à Lei civil daterra, é castigado por ela. Deste modo se vê o que é aintolerância Cristãe o que é atolerância civil: estapode existir sem prejuízo algum da Religião Cristã;mas aquela não, por que o Apóstata poderá persua-dir a seus antigos Irmãos em comunidade de largar aReligião, como ele fez.

A experiência de quase trezentos anos a esta partemostrou estes dois princípios, incríveis, e mesmo ab-surdos no tempo de Carlos quinto e de Felipe se-gundo; são estes:

1. Que nos Reinos donde há liberdade de consci-ência, cada dia saiem das Religiões toleradasque deixam e abjuram, para abraçarem a Reli-gião dominante.

2. Que em todos os Reinos onde existe a intole-rância civil, que cada dia perdem Súbditos, queabjuram a Religião dominante, para abraçaremoutra, ou tolerada no mesmo Reino, ou domi-nante nos outros Reinos.

No Império dos Turcos cada dia os Cristãos Gre-gos, Arménios, e de outras Religiões abraçam a Re-ligião Maometana: em Inglaterra os Cristãos chama-dos Quakers ou Tremedores e Anabaptistas, e outrosabraçam a Religião Anglicana. Na Rússia do mesmomodo têm-se feito muitos Protestantes, Católicos, eMaometanos abraçando a Religião dominante que éa Grega. Pelo contrário na Itália, França, Castela ePortugal, onde existe a tolerância civil, tão severa-mente observada, cada dia saiem Italianos a ser Pro-testantes, Socinianos, e às vezes Turcos. De Françase conta que cada ano saiem entre quatro a cinco milpara abraçarem o Calvinismo. De Castela e Portugalnão quero dizer quantos saiem a abraçar o Judaísmo,o Maometismo, e o Protestantismo: mas é certo quena Suíça, Inglaterra e Holanda há muitos destas Na-ções que não são Católicos Romanos.

A intolerância dos nossos Bispos e Missionáriosnas Índias Orientais foi a original causa porque osíndios baptizados se fizeram Calvinistas, e que fica-ram na Dominação dos Holandeses, dos Ingleses eDinamarqueses: a intolerância dos Reis Católicos,do Cardeal Cireiros, e do Frade Torquemada fez umprodigioso número de Judeus e de Mouros, que vi-eram a ser os Corsários de Tunes, Argel e Sale, quetêm feito arrenegar tanto Cristão, e destruido tantariqueza nos resgates e nos navios, que vêm da Amé-rica, e que negoceiam.

Na Holanda, Rússia, e Prússia, jamais houve amínima discórdia, levantamento, traição por causada Religião, enquanto por Leis esteve estabelecidaa liberdadede consciência universal a todas as Reli-giões. De onde se vê que a diferença das Religiõesnão é contrária à paz, nem à concórdia, nem à ca-ridade que deve reinar no Estado Civil bem unido ebem governado.

Não é deste lugar, Ilustríssimo Senhor, consideraraqui a Intolerância Civil nos Reinos que conquista-mos na África e na Ásia, porque vou aplicar o refe-rido à Educação da Mocidade: mas de passo direi queera impossível conservar o que conquistaram os Por-tugueses, sendo intolerantes das Religiões daquelasNações conquistadas: Nações, tanto a Maometanaou Indiana, que não conhecem tal máxima, qual é aIntolerância: toda a Ásia e toda a África são toleran-tes; e nós queriamos fundar nestes povos subjugadoso Império Português.

Como aEscravidãocausa distinção e preeminên-cia entre os Súbditos, assim aIntolerância Civilpõeum muro de separação entre o Cristão da Religiãodominante, e o persecutado, ou o intolerado: com ra-zão o Cristão Católico em Portugal, ou Castela, seconsidera melhor que o Calvinista, ou o Judeu de si-nal, fala-lhe com agrado pelo interesse, e na alma o

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despreza, e o tem como coisa danada, indigno da hu-manidade e Caridade Cristã, porque não crê comoele. Assim se vai criando naquele ânimo uma aver-são para a humanidade; um ódio para os Homens quenão estão sujeitos às mesmas ideias que eles crêem,e adoram; daqui vieram os Castelhanos na conquistada América, e nós também em alguns lugares deÁfrica. Se a escravidão faz perder aquela igualdadecivil que faz o vínculo e a força do Estado, a intole-rância faz perder aquela humanidade, que é o desejode a conservar para imitar O Supremo Criador, quetudo criou, e tudo está continuamente conservando.

Estes são os males que causam aEscravidãoe aIntolerância civil à Educação da Mocidade; quemmais tiver a peito a sua perfeição e adiantamento,pensará de que modo se devem exterminar estes obs-táculos.

Que a nossa Monarquia se po-dia conservar com a EducaçãoEclesiástica que tínhamos en-quanto conquistava, mas quenão é suficiente depois de aca-badas as Conquistas

Se as leis se devem mudar, tanto que mudam as cir-cunstâncias nas quais se conservava o Estado Polí-tico civil; assim é necessário mudar a Educação daMocidade no mesmo Governo. Como todo o in-tento do Legislador deve ser, conservá-lo e aumentá-lo, jamais hesitara decomeçar a reformar o que sepode emendar, sem que da emenda ou reforma re-sulte maior dano que benefício.

As urgentes necessidades da Monarquia Góticase reduziam a ter bons Soldados e Generais sempreprontos a guerrear, como um exército acampado: asLeis políticas e civis se continham no limitado cír-culo das Assembleias gerais da Nação ou Cortes; apropriedade dos bens, os contratos e as sucessões,sendo os povos Escravos, eram raras vezes postasem litígio, exceptuando no Tribunal das Cortes, nasquais os Juízes, os Conselheiros, os Secretários, osLetrados eram os Eclesiásticos.

Deste modo não necessitava o Estado maiores co-nhecimentos, nem estabelecimentos para conservar-se; e seria então inútil (até o ano de 1450 pouco maisou menos) haver um Tribunal para a Navegação e oComércio. E como a Monarquia Gótica não conheciao Direito das Gentes, considerando as mais Potênciascomo inimigas, daqui vem que não necessitavam ter

Escolas, para aprender a História antiga e moderna,as Línguas que se falam hoje, aquelas ciências queensinam a governar os Estados e a conservá-los poralianças e a dirigirem-se para perpetuar uma paz comreputação da Monarquia.

Mas estas circunstâncias em que se conservou aMonarquia acabaram, e se levantaram em toda a Eu-ropa outras muito diferentes, e também no Reino, oque mudou totalmente o Estado Político e Civil domundo Cristão conhecido.

D. Afonso o V, e Dom João o segundo, foramos primeiros Reis Portugueses que da conquista dasIlhas de Guiné e de Angola obtiveram riquezas, eos Súbditos começaram a ter cabedais: trinta anosdepois descobre Cristovão Colombo a América, e onosso Pedro Álvares Cabral poucos anos depois oBrasil: e no ano de 1497 descobriu Vasco da Gama aÍndia Oriental. As riquezas que vieram destes Con-tinentes descobertos, em ouro, prata, pedras precio-sas, especiarias, sedas, roupas, e outras comodidadesda vida para o luxo e para as artes, mudaram a faceda Europa totalmente. E foi preciso a Portugal, e aEspanha acrescentar à constituição Gótica, com quese governava, aquele dotrabalhoe daindústria, quenão subsiste sem artes e ciências.

Como em Portugal nem em Castela havia todos osmateriais para fazer navios, em tão grande número,para navegar para os novos mundos, compravam-nosem Génova e no Norte: como não tinham fábricas,nem para todo o vestido, nem para o luxo, compra-vam estas mercancias na Flandres, em França, Ingla-terra e Alemanha, e também em Veneza e Florença,Reinos que estavam já com mais artes e fábricas doque nós tinhamos e os Castelhanos.

A Lisboa e Sevilha vieram as feiras de todo omundo; ali se trocavam as mercancias da Europa,pelas riquezas do Oriente e da América, como emPortugal não havia fábricas suficientes, passavam demão em mão aqueles tesouros até irem parar na mãode quem trabalhou, o que passava a Índia, o que su-cedia igualmente com Castela. Deste modo toda aEuropa mudou de face: dantes se conservava rou-bando e conquistando, depois das Descobertas dosnovos mundos começou a conservar-se pelo trabalhoe indústria, base da Navegação e do Comércio.

Outra novidade não menos notável alterou o Go-verno Gótico da Europa, e foram asciênciase oconhecimento da História Antiga. Mahomet II sub-juga o Império Grego, e toma Constantinopla no ano1453, desamparam muitos Gregos, homens doutos, asua pátria, acham refúgio em Itália, e protecção noPapa Nicolau V, na casa deMedicis, e na deEste:comunicam aos Italianos a Língua Grega, e as ciên-cias que nela se continha; e como de toda a Europa

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iam estudar a Bolonha, Pádua e Florença, em poucosanos se espalhou por toda ela, pelo menos aquele co-nhecimento das Histórias da antiguidade, a Eloquên-cia e a Filosofia Moral de Platão e de Aristóteles, eforam bastantes estes conhecimentos, para que todaa Europa mudasse o modo de pensar, em que tinhavivido quase por 15 séculos. Desde aquele tempocomeçaram os Europeus a conhecerDireitos da Ma-jestade: a Jurisdição Eclesiástica; a Subordinaçãoaos Magistrados: e desta origem disputada e agitadacom mil controvérsias, sempre com maior animosi-dade, que caridade cristã, resultou o Luteranismo e oCalvinismo, e outras iguais transacções, mostrando-se que nenhum bem sucede tão puro aos homens dasociedade, que não vinha abrindo a porta a algumadesventura. Neste mesmo tempo se descobriu a arteda Impressão, ou em Frankfurt, Estrasburgo ou Har-lem, e se comunicou por este meio a ciência tão rapi-damente, que vinte anos depois já muitos Europeuseram célebres nas Ciências Divinas e humanas.

Já se tinha descoberto a pólvora, e com a ajudada Geometria edificaram-se fortalezas conforme asregras daquela ciência; e mudou esta preparação quí-mica o modo de fazer a guerra em todo o mundo.

Todos estes conhecimentos descobertos no espaçode pouco mais de um século deram fundamento aformar-se a Europa como uma grande República;a comunicarem-se as suas Potências, como ami-gas, e a conhecerem as obrigações da humanidade,como é da obrigação de cada homem com outro,conservarem-se mutuamente enquanto ambos têmdaquela amizade a sua conservação. Desde aqueletempo começou a minar-se e a desfazer-se a consti-tuição da Monarquia Política e Civil, que tantas vezesdissemos, consiste na igualdade dos Súbditos (nãodas condições) na propriedade dos bens, no trabalhoe na indústria.

Necessitava tanto Portugal começar a mudar asLeis do Reino no tempo del Rei Dom Manuel e deDom João o Terceiro, que ainda na suposição queInglaterra e Flandres, e de algum modo França asnão mudasse (como mudaram), era-lhe preciso tomaresta necessária precaução. Porque tendo-se acabadoas guerras com os povos Conquistados, estava na in-dispensável obrigação de conservar estas conquistas;e para conservá-las, nenhum outro meio lhe ficava doque pelas disposições seguintes.

Nas conquistas onde os povos eram benignos emansos, onde não havia temor que se levantassem,estabelecer ali a agricultura e as artes que necessari-amente dependem dela: naquela onde os povos eramferozes, e que levavam mal o jugo, o comércio com aagricultura devia ser promovido entre eles: nenhumacoisa faz os homens mais humanos e mais dóceis, do

que o interesse: o comércio traz consigo a justiça, aordem e a liberdade: e estes eram os meios, e o sãoainda, de conservar as conquistas que temos.Agri-cultura e Comérciosão as mais indissolúveis forçaspara sustentar e conservar o conquistado: mas estavida de Lavradores, de Oficiais, de Mercadores, deMarinheiros e Soldados, não se conserva com pri-vilégios dos Fidalgos, com imunidades e jurisdiçãocivil dos Eclesiásticos, com escravidão e com a into-lerância civil.

Não se conserva com a educação de saber ler eescrever, as quatro regras da Aritmética, latim, e alíngua pátria, e por toda a ciência o catecismo dadoutrina Cristã; não se conserva como ócio, disso-lução, montar a cavalo, jogar a espada preta, e ir àcaça: é necessária já outra educação, porque já o Es-tado tem maior necessidade de Súbditos instruídosem outros conhecimentos: já não necessita em todoseles aquele ânimo altivo, guerreiro, aspirando semprea ser nobre e distinguido, até chegar a ser Cavalheiroou Eclesiástico.

Objecto que devia ter a Edu-cação da Mocidade Portuguesano tempo del Rei Dom João oTerceiro, e parece que aindahojeTodos sabem que o objecto da Educação da Moci-dade deve ser proporcionado às leis e aos costumesdo Estado a quem ela pertence: é supérfluo relataraqui a Educação dos Persas, dos Lacedemónios e dosRomanos. As Leis destas Monarquias, eram mili-tares, o seu objecto era vencer e conquistar, comoera o das Monarquias Góticas; e a sua educação eramilitar. Para determinarmos o objecto da MocidadePortuguesa naquele tempo desde o ano de 1500 até1580, quando Portugal caiu debaixo do jugo Caste-lhano, vejamos em que estado se achava então, e osReinos seus vizinhos da Europa.

El Rei Dom Manuel e el Rei Dom João o Terceironunca tiveram guerra na Europa; e este Rei foi o quedeixou aquela conquista da África, conservando so-mente três ou quatro portos ou praças naquele Conti-nente: resolução parece acertada, já que tinha deter-minado destruir todos aqueles que não eram Católi-cos Romanos, ou convertê-los: as riquezas da Áfricae de toda a Índia Oriental (porque do Brasil, exceptu-ando papagaios, alguma madeira, e açucar, não che-gava a Portugal outro rendimento) cobriam as praiasde Lisboa: estas imensas riquezas a maior parte de-

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las procedidas da conquista de mar e terra, outra dostributos dos Régulos conquistados se distribuía peloSoberano, pelos Fidalgos e valentes Soldados, e pe-los Eclesiásticos: tanta riqueza nos primeiros trouxe-ram o maior luxo que jamais tinha visto Portugal: elRei Dom Manuel com péssimo conselho foi o pri-meiro que deixou o vestido Português nas Soleni-dades, vestindo-se umas vezes à Flamenga, e outrasà Francesa: prodigiosa quantidade de Conventos seedificaram de novo por estes anos, de Capelas e deOratórios, mas é de reparar que não se aumentaramas paróquias: cresceram as imunidades dos Bispos edos Prelados; a sua jurisdição pelo novo Tribunal daInquisição e poderem por sua ordem por seus Mei-rinhos e Familiares prender os leigos: porque estaMonarquia já formada tinha para fazer os gastos nassuas pretensões.

Mas no Reino não se fabricava nenhuma matériade luxo, nem ainda tudo o necessário para viver, poisque no ano de 1519, libertou el Rei Dom Manuel ostrigos e mais sementes estrangeiras de pagarem direi-tos da alfândega: indício certo que faltava gente quecultivasse. Era preciso que todas aquelas riquezasfossem parar a Inglaterra, Itália, França, e na Flan-dres; muita parte também em Roma. Como o povoPortuguês não entrava na Legislação da MonarquiaGótica, nenhuma parte daquelas riquezas se distri-buía por ele; e exceptuando alguns Palácios em Lis-boa e quintas, e coutadas dos Arredores, Igrejas eConventos, nada ficava mais em Portugal destas ri-quezas: assim vemos ainda o Reino sem caminhos,sem pontes, com os portos e fozes dos rios entupidas,sinal certo que não se espalharam aquelas riquezaspelos oficiais, nem pelos Mercadores do Reino.

Se el Rei Dom João o Terceiro fosse tão tolerantecom os seus Súbditos, como Carlos Quinto com Cas-tela e Flandres, poderia repartir-se muita parte destasriquezas das Índias por todo o Reino: havia naqueletempo em Lisboa milhares de descendência dos Ju-deus baptizados, que comerciavam com as NaçõesEstrangeiras: a Inquisição desde o ano de 1544 ou1545, fez tal estrago nestes Mercadores, que a maiorparte se foi estabelecer em Anveres, Londres e Ham-burgo, e não só levaram Cabedais imensos, mas ensi-naram àquelas Nações mercadoras já, o comércio daNavegação Portuguesa; e desta origem veio aquelapotente Companhia das Índias da Holanda e a de In-glaterra fundadas pelos anos de 1600 pouco mais oumenos.

Quando considero as imensas riquezas que chega-ram aos portos do Reino, quase por oitenta anos, eque todas iam parar nas mãos de quem trabalhavao que dispendiam os Portugueses, parece-me queera impossível conservar-se Portugal por um século

mais, ainda que não viesse a cair (como veio) de-baixo do domínio Castelhano; porque estas rique-zas fizeram os Ingleses, os Holandeses, os Ham-burgueses, e muita parte da Itália, ricos e potentes,aumentando-se na agricultura, nas artes e nas ciên-cias, e do estado em que estavam antes de moderadoe mesmo abatido, viveram depois da descoberta dosdois mundos, poderosos e altivos a poder molestar osseus Descobridores.

Uma epidemia afligiu e transtornou o juízo quasede toda a Europa desde o ano de 1520, quando Luteroem Saxónia começou a pregar contra as indulgên-cias, na Suíça, Zuinglio e Calvino em França, contraa Eucaristia, primazia do Papa, e celibato dos Cléri-gos, que pôs em confusão estes Estados, e tambémFlandres e Inglaterra. Como todos estes Potentadoseram Católicos, e pelas suas Leis, a heresia era con-denada com penas de bens, cargos, honras, e mesmoda vida, desta origem se aumentou o trabalho e aindústria prodigiosamente: porque as famílias per-secutadas ficando pobres, só no trabalho tinham oseu sustento. Muitos mais ousados se fizeram pi-ratas, assaltaram as nossas frotas e as Castelhanas,e buscaram remédios à sua persecução: deste modopassaram de França muitos milhares para Inglaterrano tempo da Rainha Isabel, e também da Flandres,quando Felipe Segundo, bem diferente do procederde seu pai, e seu Tio o Imperador Fernando, perse-cutou e destruiu tantos Flamengos. Nestes tempos éque se estabeleceram tão imensas e ricas manufactu-ras em todo o género de mercancia por todos aque-les que abraçaram o Protestantismo que até infectoumuitos lugares de Itália, donde saíram muitas artespara se cultivarem no Norte.

Este incidente do Protestantismo, junto com a se-veridade das Inquisições de Castela e de Portugal emtodos os seus Domínios, fizeram estas Nações maispobres, e mais faltas de Súbditos úteis. Parece queo Conselho de Estadode Dom João o Terceiro e deel Rei Dom Sebastião tomavam de propósito as re-soluções mais contrárias à conservação de Portugale da Índia. Nesta parte do mundo queriam estabe-lecer a Religião, pela força e pelaintolerância; oEstado Militar e Civil pela tirania e pelas Leis Ci-vis: estabeleceram Bispados, Cabidos, Conventos eSeminários, Tribunais Civis; a mesma constituiçãoda Monarquia Gótica, com privilégios aos Fidalgos,e com imunidades aos Eclesiásticos, conservando aEscravidão e a intolerância: o que tudo era ignorân-cia ou insano zelo dos Conselheiros, porque o ob-jecto de conservar e de aumentar aquelas conquistase Colónias, devia ser a navegação, o comércio, a agri-cultura, a igualdade dos Súbditos; uma Justiça Civil,para julgar as coisas do comércio, onde os Merca-

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dores fossem os Juízes, sem Letrados, nem Procu-radores; uma justiça para o crime, semelhante à doAuditor de um exército em Campanha; para mantere espalhar a Religião, somente Missionários Portu-gueses (e não Estrangeiros como foi e é de costume)sem Jurisdição, poder nem autoridade, nem nas Igre-jas, nem nos Cristãos Portugueses nem Índios; e cadaum destes Missionários devia ter a sua paróquia; e sehouvesse mais Missionários que Igrejas, ficaria de-terminado o número exorbitante nas mesmas paró-quias sem poder de adquirir bens de raiz; não eramnecessários Bispos, nem aprender Latim, nem ter im-pressões; muito menos Tribunal da Inquisição paracastigar feiticeiros e embusteiros Índios, práticas deCastela na América, e que nós imitámos à risca nosnossos Domínios.

No tempo referido de el Rei Dom João o Terceirochegou a constituição do Reino a tal estado, que nocaso mesmo que não estivessem descobertas tantasIlhas e tantos portos das três partes do mundo, erade boa política mudar o sistema das Leis: a consti-tuição da nossa Monarquia sendo só para guerrear econquistar, era força que acabasse logo que uma pazdurasse por 80 ou cem anos: porque nenhuma Lei,nem Educação da mocidade, havia para se empregara Nobreza neste tempo do descanso. Esta foi a causa,porque nestes tempos chegaram os vícios ao cume detoda a perversidade; a Nobreza rica, era soberba, oci-osa, e por consequência sepultada nos vícios de todaa dissolução, do jogo, de comidas e trajes: e gastandosempre mais que as suas riquezas, cometiam mil ex-torsões, arruinando deste modo aquela regularidadeque deve haver nos portos do comércio. Nesta situ-ação pertencia ao Legislador estabelecer por degrausalgumas Leis que serviam de fundamento a uma Mo-narquia mista de Militar e de Civil; isto é que conser-varia um exército, e uma frota, onde não haveria dis-tinção alguma do nascimento, mais que aquela quedaria o grau Militar; e ao mesmo tempo, imitandoHenrique Sétimo de Inglaterra, que por uma Lei or-denou era livre a cada Senhor Barão ou Morgado,vender ou alienar as suas terras, e suprimir-lhe os pri-vilégios de não serem vendidas por dividas: abolindoe suprimindo todos os Monopólios dos lagares, moi-nhos, etc., como do comércio; e proibindo que nin-guém pagasse o que devia em frutos, exceptuandoos dízimos. Deste modo se extinguiram igualmenteaqueles privilégios da Nobreza, como ela se vai ex-tinguindo pelo ócio e pelos vícios; pois que no tempodel Rei Dom Manuel havia duzentas casas de Fidal-gos, e hoje não chegam a sessenta.

Resultaria daqui que os Cidadãos, que tinham ad-quirido cabedais ganhados com as mercadorias dasconquistas, entrariam sem privilégios naqueles bens;

já estes pagariam taças e os seus Criados, como osbens dos Vilões; e começaria pelo comércio, e agri-cultura estabelecer-se a igualdade, o trabalho e a in-dústria no Reino, como se estabeleceu desde Hen-rique VII em Inglaterra. Todas as Ordenações de-viam ser reformadas; suprimir alguns Tribunais queentão existiam, e em seu lugar erigir outros para es-tabelecer e conservar, ou pôr em execução, as novasLeis que deviam decretar-se para estabelecer a agri-cultura, o comércio e a Educação da Mocidade pro-porcionada àquelas Leis.

Determinadas e decretadas assim as Leis do Reinopara sustentar um exército e uma frota para defensados Domínios próprios e adquiridos, e ao mesmotempo, para estabelecer o trabalho e a indústria, seriajá necessário mudar a Educação da Mocidade Portu-guesa, apercebendo-se facilmente o Legislador, quenão tinha Súbditos para executar esta segunda parteda Constituição da Monarquia.

Sempre a Educação das Escolas seguiu a Legisla-ção do Potentado donde estão estabelecidas: e o Po-der, Jurisdição Real estava então reduzida aos doisTribunais docrime e doCivil, e todo o seu objectoe exercício, era castigar os delitos, e meter cada umna posse dos seus bens. Mas faltava naquela situa-ção um Tribunal de economia universal no Reino enos seus Domínios: faltava um Tribunal do Comér-cio, com jurisdição especial para que as suas causasse processassem de modo muito diferente e mais su-mário, do que é a prática do Direito Civil: faltava umTribunal também que tivesse a seu cuidado aEduca-çãoda Mocidade, e a correcção dos costumes; coisana verdade desconhecida na Legislação dos ReinosCatólicos, porque os Eclesiásticos tinham tomado àsua conta estas incumbências; mas apesar do seu zelonão vemos que naqueles tempos se preveniam nemos crimes, nem os maus costumes, nem os erros daFé; porque aquele século foi o mais estragado e lu-xurioso, que conheceu Portugal; e como a Inquisiçãocastigou mais de cinco mil apóstatas Portugueses, eraforça que fossem muito mal instruídos na ReligiãoCristã.

Já vimos acima, Senhor Ilustríssimo, a que se re-duz a ciência com que saimos das Escolas, e que todase reduzia a sentenciar um matador ou ladrão, ou me-ter de posse a cada um no seu bem: agora veremosque já do tempo del Rei Dom João o Terceiro neces-sitava o Reino de outra sorte de Educação, e neces-sitará sempre logo que tiver Ilhas, Colónias e Domí-nios de Ultramar; logo que for obrigado a ter aliançascom Espanha, com França, Holanda ou Inglaterra.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 33

Da Natureza da Educação daMocidade e do Objecto quedeve ter no Estado onde é nas-cida

Não tratarei aqui daquela Educação particular, quecada Pai deve dar a seus filhos, nem daquela que ordi-nariamente tem a Mocidade nas Escolas. Seria supér-fluo este trabalho à vista do perfeito livro que compôsaquele Várro PortuguêsMartinho de Mendonça dePina e de Proença, intitulado «Apontamentos para aEducação de um Menino Nobre» e de vários Auto-res que trataram da Educação nas Escolas, que relataMorhofio no seuPolyhistor Litterarius. O meu in-tento é propor tal ensino a toda a Mocidade dos di-latados Domínios de Sua Majestade, que no tempodo descanso lhe seja útil, e à sua pàtria57: propondoa virtude, a paz e a boa fé, por alvo desta educação,e a doutrina e as ciências, como meio para adquirirestas virtudes sociáveis e cristãs. Nunca me sairá dopensamento formar um Súbdito obediente e diligentea cumprir as suas obrigações, e um Cristão resignadoa imitar sempre, do modo que alcançamos aquelasimensas acções de bondade e de misericórdia.

A Educação da Mocidade não é mais que aquelehábito adquirido pela cultura e direcção dos Mestres,para obrar com facilidade e alegria acções úteis a si eao Estado onde nasceu. Mas para se cultivar o ânimoda Mocidade, para adquirir a facilidade de obrar beme com decência, não basta o bom exemplo dos Pais,nem o ensino dos Mestres; é necessário que no estadoexistam tais Leis que premeiem a quem for mais bemcriado, e que castiguem a quem não quer ser útil, nema si, nem à sua pátria.

Logo me perguntaram se toda a mocidade doReino deve ser educada por Mestres, se o Estado há-de contar entre esta Mocidade o filho do Pastor, doJornaleiro, do Carreteiro, do Criado, do Escravo edo Pescador? Se convém que nas Aldeias e luga-res de vinte ou trinta fogos, haja escolas de ler e deescrever? Se convém ao Estado que os Curas, os Sa-cristãos, e alguns Devotos, cujo instituto é ensinar aMocidade a ler e a escrever, tenham escolas públicasou particulares de graça ou por dinheiro, para ensinara Mocidade, que pelo seu nascimento, e suas poucasposses, é obrigada a ganhar a vida pelo trabalho cor-poral? Com tanta miudeza me detenho nesta classede Súbditos, porque observo nos Autores tão poucaponderação do seu estado; e é por tanto donde de-pende o mais forte baluarte da República, e o seumaior celeiro e armazém.

57Aristóteles. Polit. Lib. VIII. per totum.

Os que querem e persuadem que a classe dos Súb-ditos referidos aprendam todos a ler e a escrever, earitmética vulgar, dizem para provar a sua resoluçãoque tanto mais se cultiva o entendimento, tanto maisse abranda o coração; que a piedade e a clemênciasão tanto maiores virtudes, quanto são maiores os co-nhecimentos das obrigações com que nascemos, deadorar o Supremo Criador, de obedecer a nossos Paise Superiores, e de amar os nossos iguais58.

É verdade mas estes Autores levados do seu bomcoração assentam estas máximas como se todos oshomens houvessem de habitar no paraíso terrestre,ou não lhe ser necessário ganhar toda a sua vida, oseu limitado sustento, com o trabalho de suas mãos, ecom o suor do seu rosto. Que filho de Pastor quereráter aquele ofício de seu pai, se à idade de doze anossoubesse ler e escrever? Que filhos de Jornaleiro, dePescador, de Tambor, e outros ofícios vis e muito pe-nosos, sem os quais não pode subsistir a República,quererão ficar no ofício de seus pais, se souberemganhar a vida em outro mais honrado e menos traba-lhoso? O rapaz de doze ou quinze anos, que chegoua saber escrever uma carta, não quererá ganhar a suavida a trazer uma ovelha cansada às costas, a roçarpela manhã até à noite, nem a cavar.

Há poucos anos que nos Estados del Rei de Sar-denha se promulgou uma lei, que todos os filhos doslavradores fossem obrigados a ficarem no ofício deseus pais; dando por razão, que todos desamparavamos campos, e que se refugiavam para as cidades ondeaprendiam outros ofícios: Lei que parece mal con-cebida, e que jamais terá execução. Se os filhos doslavradores desamparam a casa de seus pais, é por-que têm esperança de ganharem a sua vida com a suaindústria e inteligência; e já lhe não são necessáriasas simples mãos para sustentar-se; sabem ler e escre-ver; tiveram nas aldeias onde nasceram escolas piasde graça ou por muito vil preço, e do mesmo modoas mulheres, que ensinam os seus filhos a escrever,quando não têm dinheiro para pagar Mestres; e estaé a origem porque os filhos dos Lavradores fogemda casa de seus pais; o remédio seria abolir todas asescolas em semelhantes lugares.

Queixam-se em França que depois de cento etrinta anos se despovoam os campos, e que todos bus-cam as cidades ou se expatriam a buscar fortuna emoutros climas: a causa é a infinidade de Escolas deler e escrever na mínima aldeia de dez ou doze casas;há certas ordens Religiosas sem clausura espalhadaspor cada paróquia que têm esta incumbência; todo orapaz, e rapariga, sabe ler, escrever e seu catecismoe o Testamento novo na Língua Materna: vendo-se

58Clemens & clementia, acolere mentem& à culturamentisproveniunt.

34 António Ribeiro Sanches

com esta educação à idade de doze ou quinze anosnão querem ficar num ofício laborioso, penível e àsvezes infame. Por isso, dizia o Cardeal de Richelieujá do seu tempo, que todo o proveito que retirava oEstado de tanta Escola de ler e de escrever, consistiano rendimento doCorreio.

Nenhum Reino necessita de maior rigor na supres-são total do ensino de ler e escrever, nem ainda per-mitido aos Eclesiásticos de graça, do que o nosso:o clima cria aqueles espíritos altivos, mais para do-minar, que para servir; até nos animais domésticosse observa esta indocilidade. A mãe do Jornaleironão cessará cada dia que vê ir seu filho à escola delembrar-lhe que tem um Tio, Frade ou cura em tal lu-gar: o rapaz já quer ser Frade; e como só no Eclesiás-tico se acha honra sem fazer o Pai despesa, bastam asinquirições para chegar àquele Estado, e ficar a casado Pai sem sucessor.

Todo o rapaz ou rapariga que aprendeu a ler e aescrever, se há-de ganhar o seu sustento com o seutrabalho, perde muito da sua força enquanto aprende;e adquire um hábito de preguiça e de liberdade deso-nesta. Como são os Mestres de ler e escrever, ho-mens rudes, ignorantes, sem criação, nem conheci-mento algum da natureza humana, têm aqueles me-ninos três horas pela manhã e três de tarde, senta-dos, sem bolir, sempre tremendo e temendo; perdema força dos membros, aquela desenvoltura natural,porque a agitação, o movimento e a inconstância éprópria da idade da meninice: e não convém umaeducação tão mole a quem há-de servir a Repúblicade pés e de mãos, por toda a vida.

Assim o Ministro ou o Tribunal que havia de terinspecção da Educação da Mocidade, parece que ha-via de ordenar «Que em nenhuma Aldeia, Lugar, ouVila onde não houvessem duzentos fogos, não fossepermitido a Secular, nem Eclesiástico, ensinar por di-nheiro ou de graça a ler ou escrever.»

Mas já vejo que clamariam os Bispos e os Párocos,e também muitos devotos, que, pela lei proposta, eratratar a mocidade plebeia em bestas silvestres, desti-tuída do ensino da Religião Cristã, não podendo ler,nem entender o Catecismo; e que ficavam sem prin-cípio algum de humanidade, nem de virtude ou obe-diência.

Se estes que assim arguirem, soubessem a obri-gação dos Párocos e Sacristãos, se soubessem que otrabalho corporal, ter o ânimo ocupado, é a maior vir-tude: se soubessem que adquirindo aquele hábito detrabalhar desde a primeira meninice que lhe serviriada melhor instrução por toda a vida, se retractariam,e não clamariam.

Nos Domingos e dias de Festa devia o Pároco eo Sacristão ensinar a doutrina Cristã a estes meni-

nos; e com a sua diligência ficaria o menino instruídona obrigação de Cristão; e não seria necessária a es-cola, para aprender o catecismo; porque esta obriga-ção pertence à Igreja, e não ao Mestre de ler, nem deescrever; ainda que abaixo se lhe imporá esta obriga-ção.

Se uma vez o Estado abraçar, fazer executar a Leiacima, conceberá no mesmo instante que o trabalhoe a indústria se deve considerar como base do Es-tado Civil: é-lhe necessária a providência de procu-rar pela agricultura e pelas artes onde o povo adquirao seu sustento; é-lhe necessário estabelecer pelo me-nos um comércio interior, e comunicação de vila avila, de comércio a comarca, para promover a cir-culação, que sem ela não continuará o trabalho dopovo, nem a indústria; numa palavra, era necessáriopara estabelecer a proibição das Escolas de ler nasAldeias, gastar o Estado uma certa parte do seu ren-dimento na erecção, e fundamentos do trabalho e daindústria.

Não necessitaria esta classe do povo de outra edu-cação do que os Pais e Mães estivessem empregadasno trabalho, e seus filhos, não tendo outro recursopara ganharem a vida, seguiriam aquele caminho queexercitavam os progenitores e os tutores. Quem tra-balha faz um acto virtuoso, evita o ócio; vício maiorcontra o Estado: e St. Bento achou o trabalho demãos de tanta virtude que o pôs por regra e sete ho-ras cada dia. Isto é o que basta para a boa educaçãoda mocidade plebeia.

Além disso o povo não faz boas nem más acções,que por costume e por imitação; e raríssimas vezesse move por sistema nem por reflexão; será cortês ougrosseiro, sisudo ou ralhador, pacífico ou insultador,conforme for tratado, pelo seu Cura, pelo seu Juiz,pelo Escudeiro ou Lavrador honrado. O povo imitaas acções dos seus maiores; a gente das Vilas imita otrato das Cidades e roda; as Cidades o trato da Capi-tal, e a Capital da Corte: deste modo que a mocidadeplebeia tenha ou não tenha mestre, os costumes quetiver serão sempre a imitação dos que virem nos seusmaiores, e não do ensino que tiveram nas escolas.Todo o ponto, é que as Leis do Estado estejam de talmodo decretadas, que não falte à mais ínfima classedos Súbditos o trabalho, e que se dispenda nisto, oque se dispende nos Hospitais gerais, e nas Confra-rias.

Mas não se imaginem os Bispos, nem os Devotos,que pela Lei acima ficam excluídos de aprender a lere a escrever os filhos dos Lavradores e oficiais quetiverem cabedal, para sustentá-los nas pensões ou se-minários que proporemos abaixo erigidos nas vilasou lugares que excederem duzentos vizinhos: com

Cartas sobre a Educação da Mocidade 35

esta providência, seria louvada a Lei, que não hou-vesse escolas nas Aldeias.

Qualidades dos Mestres paraensinar a ler e a escrever,O Mestre que ensina a ler e a escrever, é um cargopúblico, não de tão pouca consequência para a Re-pública como vulgarmente se considera: ordinaria-mente são empregados neste ministério homens ig-norantes, muitas vezes com vícios notórios, que es-candalizam. Para exercitar este ofício basta uma in-formação devita & moribus, e com ela alcança doBispo a permissão de ensinar; algumas vezes ouvique se requerem as inquirições de sangue, para omesmo emprego.

Nem as Câmaras das Vilas, nem das Cidades, nemas Justiças Reais, têm mando ou inspecção nestas Es-colas; e com razão, porque não têm nenhum saláriopúblico; o proveito destes Mestres é tão ténue queapenas os tira fora do estado da miséria.

Um Mestre de escola não deve ter defeito visí-vel no seu corpo, nem vesgo, torto, corcovado, nemcoxo; porque se viu por experiência uma escola demeninos seremvesgosporque o seu Mestre tinhaaquele defeito. Imitamos o que vemos, e sem nosapercebermos do que fazemos, adquirimos o hábito,antes de pensar que é vicioso: somos dotados destaadmirável propriedade, que influi tanto em todas asacções da vida humana; e por isso não convém quetenha aquela tenra idade tão apta a imitar e tão sus-ceptível das impressões extraordinárias, ter por ob-jecto continuado um Mestre no corpo defeituoso, emuito menos no ânimo; e por essa razão devia ser decostumes aprovados e conhecidos com louvor. Masnem estas qualidades, nem a sua capacidade no quedevia ensinar, seriam bastantes para exercitar esteemprego.

Nenhum Mestre poderia ter escola (do modo quepropomos) sem ser casado, condição sem a qual nãoobstante todas as mais qualidades, não poderia exer-citar esta função; e no caso que ficasse viúvo, seriaobrigado a casar-se dentro de pouco tempo ou obri-gado a deixar a Escola.

Este mestre é o primeiro que vê a Mocidade des-tinada pela maior parte a servir a sua pátria; desdeaquela mais tenra idade dever ter por objecto um ci-dadão: além disso os homens casados, se têm filhos,são mais carinhosos e maviosos, com os meninos, doque os solteiros. Deixo à consideração de quem co-nhece o que é um homem que saiu do recto caminhoda virtude, se convém neste perigo, que um homemsolteiro seja Mestre de meninos e rapazes? e se será

acertado que o público ponha nas mãos do Celibatoa inocência da primeira idade?

Mas o bem público e o sagrado do Estado me favo-rece nesta ocasião mais que nunca. Todos os Súbdi-tos empregados no serviço Civil, como Mestres, Juí-zes, Notários, Secretários, e todos aqueles que tives-sem salário do Estado, deviam ser casados; condiçãosem a qual não poderiam exercitar Cargo algum Ci-vil, como Médico ou Letrado, com salário do Reino:somente os Sexagenários, tendo filhos, seriam dis-pensados desta condição sem excepção.

Este Mestre para ser admitido a ter escola pública,tendo as qualidades e requisitos referidos, devia fa-zer petição a Director dos Estudos e das Escolas daProvíncia, para ser examinado: e no exame havia deconstar:

1. Que sabia a Língua Latina, e a Materna, compropriedade;

2. Que sabia bem escrever;

3. Como também a Aritmética, pelo menos asquatro Regras e seria conveniente com a de três,e as fracções, ou dos quebrados;

4. Que sabia de que modo se tem pelo menos olivro de conta e razão, pelo dodevee há-dehaver, com índex ou alfabeto, ou de caixa dosMercadores.

Constando pelo exame proposto, que satisfizesseao que se pretendia dele, o Director lhe passaria pro-visão para exercitar o emprego de Mestre de Escola,com obrigação de alcançar outra do Bispo, por cujaordem seria examinado no Catecismo da ReligiãoCristã: e munido com estas duas provisões se apre-sentaria, no lugar onde havia de ensinar, ao Delegadodo Director dos Estudos e Escolas, para exercitar oseu cargo.

Seria necessário que estivessem compostas e im-pressas asDirecções, às quais cada Mestre de Escolase devia conformar no seu emprego: e na visita quedevia fazer uma ou duas vezes por ano nestas Escolaspelos Delegados dos lugares, onde estavam estabele-cidas, se tomaria conta se o Mestre satisfazia as ditasinstruções.

Este Mestre além de paga de cada discípulo deviater salário do público, tão suficiente que bastasse parasustentar-se com decência. atendendo a carestia e aotrato da Vila, onde ensinara. Estes salários tão poucoa cargo do Estado, fariam solicitar estes empregoshomens mais capazes do que hoje se empregam ne-les: seriam também mais respeitados, o que convéma quem há-de ensinar publicamente.

36 António Ribeiro Sanches

Do que haviam de aprender osMeninos além de ler, escrever econtar, etc.

Bem sei, Ilustríssimo Senhor, que me acusarão degastar assim o tempo nestas particularidades que per-tencem à meninice, de um modo tão rasteiro, e forade todo o discurso que ninguém que pretende a al-gum grau de literatura gastará o seu tempo em lero que escrevo; mas não o julgou assim Plutarco59

Quintiliano60 nem aqueles restauradores das letrashumanas Erasmo61, nem Luis Vives em muitas dassuas obras ainda que decorado com o honroso cargode Mestre de Felipe Segundo: estes referidos Auto-res puseram todo o seu cuidado na educação da pri-meira infância, porque daqueles princípios dependea desgraça ou a felicidade de toda a vida.

Que autoridade não acharia eu para provar o quedigo? Mas que provas são necessárias, quando a pró-pria experiência nos convence; e a alheia nos admo-esta que ponhamos todo o nosso cuidado nestes prin-cípios do Estado e da Religião.

Queixa-se David Hume e l’ Abbé de St. Pierre,que nas Escolas se enchem os juízos daMocidadedemuita instrução, e que nenhum caso fazem os Mes-tres de formar os costumes, nem de fazer o meninobom: todo o seu desvelo é que saibam muito, querecitem de memória muitas laudas de prosa, e outrastantas de versos. Seria tão necessário que os meninosque saiem da escola, ficassem também instruídos naobrigação que têm de serem homens de bem, comona de Cristão. Cada menino naquele tempo aprende oseu catecismo: seria necessário que no mesmo tempoaprendesse outro, para saber as obrigações com quenasceu. Se houvesse um livrinho impresso em Por-tuguês, por onde os meninos aprendessem a ler (enão por aqueles feitos de letra tabalioa), onde se in-cluíssem os princípios da Vida Civil, de um modo tãoclaro que fosse a doutrina compreendida por aque-

59De Liberis educandis.60 Instit. Orator. lib. I. capo I. e começa assim «Igitur

nato Filio Pater...» Desde o berço começou a Educação doOrador, do Orador que há-de ser um dos principais Súbditosdo Estado.

61De civitate morum puerilium. Parisiis 1537. 8.oe nassuas obras em 10 volumesin fol. Edit. Lugd. Batavorum.Marco Antonio Murettoescreveu para um sobrinho que ti-nha, a sua Institutio Puerilis, que começa assim:

Dum tener es, Murette, avidis hœc auribushauri,

Nec memori modo conde animo, sed exprimefactis:

Mentiri noli, & c.

las idades e ao mesmo tempo, que o Mestre a fizessepraticar na classe com castigos e com prémios, costu-mando aquela idade, mais a obrar conforme a razão,do que a discorrer; me parece que se não saíssem dalicom outro ensino, que teriam aproveitado mais, doque aprendessem tudo aquilo que os Pais desejam.

Se neste livrinho e catecismo daVida Civilestives-sem declaradas as propriedades do homem no estadonatural, que consiste em buscar o que lhe é necessáriopara conservar-se, satisfazendo a fome e a sede, e quenaturalmente temos, aquela propriedade deimitar oque vemoscom amor e com admiração, que temosnaturalmente; a piedade e a compaixão de ver sofrere maltratar os nossos semelhantes62, e que destes doisprincípios provêm todas as acções que obramos en-quanto não forem sufocados pelos maus exemplos,de soberba, de tirania, de crueldade, que dão os Pais,as Mães, e os que criam aquela aurora da humani-dade63. Quanto cuidado deviam ter os Pais e os Ma-gistrados, que as mães e as amas soubessem criar ascrianças até saírem do seu colo? Em outro lugar setocará o mal que redunda a uma Nação de não cria-rem as Mães os seus Filhos.

Se o Mestre destas Escolas explicasse com exem-plos este Compêndio que proponho da vida civil; se ofizesse observar por acções, e habituar aquela infân-cia a obrá-las, e a fazê-las, e ao mesmo tempo lhesinculcasse, e lhes fizesse aplicar este princípio emtodas as suas acções: «Que o homem nascido entreos homens devia obrar e fazer tudo conforme as Leisestabelecidas entre eles; que a ninguém era lícito vi-ver conforme a sua vontade, conforme o seu prazer efantasia».

62A natureza nos deu esta propriedade do coração ma-vioso e piedoso que se aflige do mal que vê sofrer ao seusemelhante, porque é parte dele:Juvenal, Satyre xv, v, 131,

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Molissima cordaHumano generi dare se naturu fateturQuæ lacrymas dedit hæc nostri pars oprima

sensus:PIorare ergo jubet caussam dicentis amici,Squallorem que rei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Naturæ imperio gemiamus, cum funus adultæVirginis occurrit, vel terra clauditur infans.

Esta piedade e ternura do coração se mostra pelas lágri-mas, que são tão próprias ao homem: só ele chora, e é tudoo que pode fazer quando nasce: Já que não posso pintar esteestado como Plínio, valer-me-ei das suas palavras: «Homi-nem tantum nudum, & in nuda humo natali die abjicit advagitus statim & ploratum... Itaque feliciter natus jacet ma-nibus, pedibusque devinctis, flens animal ceteris imperatu-rum». (præf. lib. 7,Hist. Mundi). Mas este princípio pelamá educação ordinariamente fica sepultado em nós.

63Sei que se está compondo este compêndio para satis-fazer este intento, e estou persuadido que se executará comsuma utilidade conforme o desejo de cada bom patriota.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 37

No mesmo Compêndio queria eu que estivessemescritas as obrigações com que nascemos: como de-vemos venerar a Deus: como somos obrigados a hon-rar nossos Pais, e a quem tem o seu lugar: que temosa mesma obrigação de respeitar os mais velhos: quedevemos ser amigos fiéis: guardar-lhe segredo, pa-lavra, cuidar do seu bem, como do nosso próprio: ecomo nós amamos naturalmente a nossa pátria, assimdevemos ser-lhe fiéis; cuidar em tudo do seu bem,que é o nosso: e como el Rei é a cabeça dela, quea este, como a nosso primeiro Pai na terra, devemosrespeitar e honrar.

Aquela tenra idade poderia compreender quandoos castigam (não barbaramente com açoutes e palma-toadas), que na adversidade ninguém se deve abater:que sempre há-de ficar a esperança ou de emendar-se, ou de melhor fazer: quando for premiado, fazer-lhe notar o princípio do Catecismo, que ninguém naprosperidade e na grande alegria se deve desvanecernem ensoberbecer: porque somos nascidos para viveruma vida cerceada sempre pela alegria e pela tristeza;que nenhum bem é sem mistura de mal, nem nenhummal sem mistura de bem.

A meninice é capaz desta instrução, se o mestrelhe falar na língua e na frase que é própria àquelaidade. É admirável o juízo humano: na idade de trêsanos aprendeu um menino a sua língua; falar sem sa-ber o que faz, com o nominativo, com o verbo no sin-gular, ou plural, no tempo, no modo, etc. O que é tãodifícil aos adultos que aprendem as línguas doutasou estrangeiras. Pode o menino aprender no dia, detrês ou quatro Mestres, sem confundir o que aprende.Mas abaixo mais distintamente trataremos desta ma-téria.

Pareceu-me advertir aqui que necessitava o Direc-tor, ou o Conselho da Educação, mandar compor umpequeno livro em 8.ode 150 a 200 páginas, com otítulo Arte de ler livros de conta e razão. Este se-ria o modelo para que cada qual soubesse governara sua casa, onde haveria exemplos de algumas cartasde rois, de quitanças, de letras de câmbio e de pro-curações: fazendo copiar a cada Discípulo um livrosemelhante, ditado pelo seu Mestre.

Bem sei a dificuldade de achar Mestres nas Pro-víncias que possam pôr em prática o que conterá olivro proposto: é a dificuldade que encontram sem-pre os nossos estabelecimentos. Mas é necessárioum princípio; e os homens pelo uso, com o prémio,e a esperança, e pelo medo de perda, e pela desonra,aumentam os seus conhecimentos, e instigam as po-tências da alma a penetrar e vencer as dificuldades doseu ofício.

Das Escolas da Língua Latinae da Grega, Humanidades, e daLíngua Materna

Não é o meu intento, Ilustríssimo Senhor, indicaraqui a mínima instrução para aprender as Línguas,Latina, Grega, e Hebraica, nem as Humanidades,porque já S. Majestade que Deus guarde, foi servidoordenar aos Professores seguirem aquelas, que de-cretou neste ano, e que foram impressas em casa deMiguel Rodrigues. O meu intento é somente mostrarqual deve ser o fim destas Escolas; como devem serdirigidas para serem de utilidade ao Estado; que qua-lidades deviam ter os Mestres que haviam de ensinarnestas, e aquelas que haviam de ter os discípulos; eas duas diferentes classes deles; e como dos mesmosMoços ali educados, haviam de sair Mestres para en-sinar nas Escolas onde faltassem. Porque como V.Ilustríssima sabe que deve o Estado retirar um pro-veito proporcionado à despesa que fizer com este en-sino; e essa é a razão que me move a satisfazer esteobjecto.

A Língua Latina é necessária a todos os Ministrosda Religião Católica Romana, a todos os Conselhei-ros de Estado, Ministros públicos, Magistrados, Juí-zes, Letrados e Médicos: e outros empregos, e cargosque hoje não temos ainda em Portugal.

Representarei aqui todos os males que fazem ogrande número das Escolas do Latim, e particular-mente gratuitas: mostrarei claramente que vêm a ser-vir de escolas do ócio, da dissolução, e de toda adesordem civil, tão comum como se observou atéagora.

EntramcemMeninos a aprender Latim, e o es-tudaram até à idade de quatorze até dezasseis anos.Ponderemos quantos foram que aprenderam estaLíngua, capazes de se matricularem na Universidade,ou de entender um autor Latino? Acharemos queapenas sairá a terça parte. Mas quero quecinquentaaproveitassem o seu tempo: vejamos a destinaçãodestes cinquenta até estarem estabelecidos. Veremosquetrinta deles virão a ser Eclesiásticos,dezvirão aser Juízes ou Letrados, e outrosdezvirão a ser Mé-dicos.

Oscinquentaque, ou por lhes faltar quem os sus-tentasse, não acabaram os seus Estudos ou por seremtão rudes, e de maus costumes, que não se aplica-ram, saíram ignorantes, e incapazes de prosseguir osEstudos; sigamos a sua destinação. O rapaz que nãopode aprender Latim fica impossibilitado para apren-der um ofício: naquele tempo que devia aprendê-lose acostumou ao ócio nas Escolas, adquiriu a soberbae a vaidade; despreza um ofício mecânico, e quer

38 António Ribeiro Sanches

ganhar a sua vida à cavalheira. Desta origem vemaquela multidão de indivíduos sem ofício, nem bene-fício. Desta classe de Estudantes reprovados saiemos jogadores, os alborcadores, os tratantes, os quetêm título de pagem, Mestre sala, os escreventes, ostendeiros, tanto Frade Leigo, e sobretudo, tantos etantos, que passam o Ultramar a buscar fortuna. Sãoestes Súbditos pela maior parte perdidos para o Es-tado. Este é um dos menores males que causavam de-masiadas Escolas do Latim , e principalmente aque-las gratuitas.

Mas o maior a meu ver, é que são a causa detanto Eclesiástico sem vocação: o Pai e a Mãe que-rem pela maior parte, entre a gente ordinária, um fi-lho Eclesiástico para honrar a família; o mesmo filhoentra naquele intento, e para ter a sua subsistênciacom honra e sem trabalho, sempre se acharam de-votos que dão o que basta, ainda por títulos falsos,para fazer o património: para entrar nas Comunida-des Religiosas Mendicantes, ainda há maiores facili-dades. É coisa notável que para que um oficial possater loja aberta que necessite aprender por seis ou seteanos, sustentando-o seus Pais, ou pagando o ensino,e que um rapaz que aprendeu o Latim nas Escolasgratuitas, sem gasto algum, que ser vestido e susten-tado por seus Pais, que possa adquirir um estabeleci-mento, e que a sua pátria o perca; e que seja educadoeste Súbdito até à idade de 21 anos para entrar de-baixo de outra Monarquia, que é a Eclesiástica!

Filipe Quarto no ano de 162364, atendendo aosmales que causavam tantas Escolas de Latim, decre-tou, uma Lei, que copiarei aqui. «Porque de haveren tantas partes destos Reynos Estudios de Gramma-tica, se consideran algunos inconvenientes, pues nien tantos lugares puede aver comodidad para ense-narla, ni los que la apprenden, quedan con el funda-mento necessario para otras facultades: Mandamosque en nuestros Reynos no pueda aver, ni aya Estu-dios de Grammatica, sino es en las ciudades, y villasdonde ayCorrigidores, en que entren tambien Teni-entes Governadores, y Alcaides Mayores de lugaresde las Ordenes, y solo uno en cada Ciudad, ó Villa: yque en todas las fundaciones de particulares ó Cole-gios, que ay encargo de leer Grammatica, cuya rentano llega a trecientos ducados65no se puede leer». «Yprohibimos el poder fundar ningun particular estudio

64Recopilacion de las Leys destos Reynos, por FilipeQuinto. Madrid 1723 fol. I, tit. 7, Ley XXXIV.

65Um ducadoCastelhanode onze reales eram naquelestempos de valor de 650 réis, que multiplicados por 300 du-cados, faziam 195.000 réis: e como o valor da prata au-mentou do ano 1623 a quase a metade, vem a ser estes 300ducados nos nossos tempos quase 400.000 réis. É defeitode se darem os salários pelo valor numerário; seria mais es-tável que fossem determinados por marcos de prata: essa

de Grammatica, con mas ni menos renta de trecien-tos ducados, sino fuere como dicho es en la ciudad yvilla, donde huviere Corrigimiento, o Tenencia: y sese fundáre no se poderá leer; sino es que en el no ayaotro; porque en tal cazo permitimos, que se puedafundar, y instituir, siendo la renta en cantidad de losdichos trecientos ducados, y no menos. Y asi mismomandamos que no pueda aver estudios de Gramma-tica en los Hospitales donde se crian niños expues-tos e desamparados, y que los Administradores y Su-perintendentes tengan cuidado de applicarlos a otrosactos y particularmente al exercicio de la Marineria,en que seran mui utiles, por la falta que ay en estosReynos de Pilotos: pero queremos que se conservemlos Seminarios que conforme al Santo Concilio deTrento ha de haver».

Mas esta Lei produziu efeitos contrários, ao quepretendia proibir. Observaram os Seculares esta Lei,e faltavam as Escolas nas vilas e nas cidades: nestecaso vendo as Comunidades Religiosas, que tantosmeninos não aprendiam Latim por falta de Escolas,ou por caridade ou por interesse começaram a ensinarLatim; e sucedeu que hoje em todo aquele Reino hámais destas Escolas, que no tempo de Felipe Quarto.Deste modo, pois que pelo Decreto de sua Majestadese determina o número das Escolas, e os lugares ondehão-de ser fundadas, havia de haver defensa expressaque nenhuma Comunidade Religiosa, nenhum Ecle-siástico, ou Secular pudesse ensinar publicamente,ou ter Escola da Língua Latina, sem permissão doDirector dos Estudos.

Nesta Lei se concedem aos Bispos os seus Se-minários estabelecidos pelo Concílio de Trento, queaceitaram Portugal e Castela. Neste caso podia cadaBispo fundar à sua vontade muitos Seminários no seuBispado com muito pouca despesa: conservariam umMestre de Latim e três ou quatro Seminaristas emcada Seminário, e daria liberdade a cada Pai de man-dar aprender o Latim naquelas Escolas a seus filhos,e deste modo ficariam frustradas as utilíssimas dis-posições de S. Majestade, e a sua clementíssima Lei.

Mas se fosse do Real agrado de S. Majestade de-cretar um Suplemento à dita Lei; que os Bispos con-servassem os seus Seminários, e que neles mandas-sem aprender o que ordena o Concílio de Trento;mas que não servissem as Escolas dos Seminários,mais que para os Seminaristas educados e sustenta-

é a causa porque as cadeiras das Universidades valem hojetão pouco. No tempo del Rei Dom João o Terceiro estava omarco a 2.600 réis, e hoje 60.000 réis: assim a cadeira quetinha de renda então 200.000 réis, valeria hoje pouco maisou menos 450.000 réis: e por essa razão seria mais justoquando se fundam tais cadeiras de determinar-lhe o salárioem marcos de prata, por ser o peso inalterável.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 39

dos à custa do mesmo Seminário; proibindo admiti-rem nele a Mocidade que é sustentada e educada emcasa de seus Pais: pondo obrigação às Justiças doReino, e aos Delegados do Inspector dos Estudos, demanter a observância desta Lei.

Alegariam os Bispos e os Provinciais das OrdensMonásticas e Mendicantes, que determinando S. Ma-jestade o número das Escolas Latinas, e proibindo oexercício de todas as mais que havia dantes; que nãohaveriam Sacerdotes bastantes, para servir as Paró-quias, nem Frades para povoar os Conventos. Estastão aparentes dificuldades se podiam vencer e ficarno seu vigor a Lei de S. Majestade. Não tinham osBispos mais do que calcular quantos Párocos lhes se-riam necessários nos seis Bispados, e a proporção,logo saberiam quantos Clérigos símplices lhes eramnecessários no mesmo Bispado: e se não bastasse umSeminário, para formar estes Ministros da Religião,que fundassem dois, ou mais se necessários fossem.Se as rendas do Bispado fossem suficientes, para sus-tentar os Seminaristas propostos o Bispo faria essadespesa; quando não, se podiam transmutar muitasIgrejas colegiadas em simples Paróquias, e aplicaraquelas rendas para o sustento dos Seminários: domesmo nas Abadias e Priorados do rendimento alémde mil cruzados; Vigários serviriam estas Abadias, eos rendimentos primitivos seriam aplicados aos ditosSeminários. Assim haveria Párocos mais bem educa-dos e instruídos; nem tanto Clérigo Simples, que nãoconheceu a primitiva Igreja; por que todo o que vinhaa ser Sacerdote era para ser Cura de almas: e esta éuma inovação de haver Clérigos tonsurados com be-nefícios, e Sacerdotes símplices, que os Bispos intro-duziram, tanto que os Papas lhes tiraram a Jurisdiçãoespiritual nos seus Bispados.

Muito mais facilmente se podia responder aosProvinciais das Ordens: é notório que depois o Novi-ciado, que têm os Frades que aprendem a Filosofia ea Teologia dos Colégios ou Conventos: e porque nãoaprenderam a Língua Latina depois de terem profes-sado? Este é o modo mais eficaz de entrar nas Or-dens Regulares no seu primitivo instituto: todos osFrades eram Leigos, e a sua concepção era orar, e tra-balhar trabalho de mãos, e só um ou dois Sacerdotestinham em cada comunidade para admnistrar-lhe ossacramentos; e deste modo é que hoje em dia se go-vernam os Conventos de S. Basílio na Igreja Grega.Mas depois que os Frades usurparam o ofício dos Pá-rocos; depois que os Papas os isentaram da visita eda dominação dos Bispos, e que dependem somenteda Sé Apostólica exceptuando para confessar e pre-gar, não puseram termo às suas pretensões. Podiamaprender Latim depois de professos como aprendema Filosofia e a Teologia, e ainda lhes ficaria muito

mais tempo, para aprender esta língua, para traba-lhar e confessar, como já fica dito se faz em Nápoles,se lhe fosse proibido absolutamente pregar qualquersorte de Sermão, fora dos seus Conventos: ficandosomente aos Párocos esta incumbência, ou lendo depúlpito para baixo sermões impressos, ou aquelesque eles compusessem: é certo que muito poucosFrades então estudariam nem Filosofia, nem Teolo-gia: porque faltando-lhes o proveito, lhes faltaria avontade de estudarem.

É coisa notável que pretendam os Bispos e os Fra-des que estejam sustentando e educando os Súbditosa seus filhos até à idade de dezoito anos, para ir fazerpresente deles à Monarquia Eclesiástica, da qual so-mente o Estado tem necessidade na pessoa dos Bis-pos, e dos Párocos!

Dos Mestres e dos Discípulosdas Escolas do Latim, etc.Este cargo de ensinar a Retórica e as Humanidades,era no tempo dos Gregos e dos Romanos, um dosprincipais daquelas Repúblicas, como vemos pelasLeis Romanas a seu favor. Pela destruição do Impé-rio Romano do Ocidente, e pela fundação das Uni-versidades no Século XIII, ficaram os Gramáticos ouHumanistas excluídos das honras e dos prémios comque foram decoradas as quatro Faculdades; e aindaque nos séculos XV e XVI Lourenço Vala, AngeloPoliciano, Joviano Pontano em Itália, e muitos ou-tros por toda a Europa, como Erasmo, Luis Vives,Turnebo, e os nossos Gouveias ilustraram as letrashumanas, sempre os Mestres das Línguas Latina eGrega ficaram excluídos daquelas honras, e emolu-mentos das Universidades, e principalmente depoisque se erigiram as Escolas gratuitas das Ordens Re-gulares.

Sua Majestade Fidelíssima pelo seu Alvará a favordestas Escolas restabeleceu este importante cargo daRepública ao seu antigo esplendor, instalando-o nashonras, com que as Leis Romanas o decoravam. Es-tou persuadido que o Director dos Estudos do Reino,para satisfazer a piedade com que Sua Majestade fa-vorece os seus povos, empregará Mestres tão capa-zes, que sejam supérfluas todas as considerações to-cante o exercício de seus cargos: o meu desejo foraque tomassem mais a peito formar o ânimo dos seusdiscípulos do que amontoar na sua memória todosaqueles conhecimentos que se ensinam nestas Esco-las. Desejaram todos os bons Portugueses que te-nham por alvo as suas fadigas e o seu desvelo, for-marem discípulos que sejam capazes de obrar tais ac-ções, que mereçam ficar conservadas na história, ou

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terem de escrevê-las com tal energia, que fique a suamemória vencedora do esquecimento: que pensas-sem que o perfeito conhecimento da Língua Latina eda Grega, da História Sagrada e profana, e das An-tiguidades destas Nações, etc. não são o fim do seuemprego, que são somente os meios para vir no co-nhecimento do que é útil e decente, que são somentemeios, para pensar e obrar com justiça, equidade eamor das suas famílias, do seu Rei e da sua Pátria;que pensem frequentemente que o Estado deve serrecompensado com serviços reais e importantes, pe-las grandes despesas, e cuidado que toma na sua pró-pria conservação, e no seu ensino: que evitem nãocaírem na vanglória, vaidade, e suficiência, com quesaíam infectados aqueles que estudavam nas Escolasfelizmente extinguidas.

No referido Alvará não se determina a condiçãodos referidos Mestres se serão Seculares ou Ecle-siásticos. Nessa consideração propusera que haviamde ser casados, pelas mesmas razões que indiqueiacima, quando falei dos Mestres das Escolas do La-tim, etc., devem ser erigidas em forma de Colégio,como proporemos abaixo, cresce a necessidade deque estes Mestres sejam casados, e que jamais sejaadmitido algum no estado do celibato.

Necessidade que tem o Reinode Escolas em modo de Semi-nários

Tratarei primeiramente daquelas Escolas que haviamde ser estabelecidas em forma de Seminários, ouPensõescomo dizem em França: e para mostrar anecessidade que temos delas, e a sua utilidade geral,serei algum tanto mais difuso do que permite este pa-pel.

Dissemos acima que seria necessário, vendo agrande necessidade que o Reino tem de habitantes,que S. Majestade ordenasse «Que não houvesse Es-colas públicas nem particulares, por dinheiro ou degraça, nas Aldeias e nos Lugares que contassem so-mente de duzentos fogos».

Nesta Suposição que se decretasse esta Lei, supo-nhamos que vivia numa Aldeia de cinquenta vizinhosum Escudeiro, ou um lavrador rico, e que quisessemeducar seus filhos a aprender a ler e a escrever: nessecaso estes Pais se veriam embaraçados e aflitos: nãoseriam talvez tão ricos para ter ao seu serviço em casaum Mestre: na vila onde estivesse estabelecida a Es-cola pública não teriam parentes para viver seus fi-lhos em sua casa; clamariam contra a dita Lei estes

bons e fiéis Súbditos, ou a defraudariam fundandouma Escola na dita Aldeia.

Em França, Inglaterra e Holanda, e em toda a Ale-manha, ou Católica ou Protestante, é costume haverMestres de ler e escrever, etc., tendo à sua custa umagrande casa, ordinariamente nos arrabaldes das Vilasou Cidades, onde sustentam muitos discípulos, comtudo o necessário para viver e aprender, por um tantopor ano, que ordinariamente dão preços muito razoá-veis.

Bem sei as dificuldades de introduzir hoje nas Pro-víncias estes seminários (que daqui por diante cha-maremos Pensões, para não confundi-los com os dosBispos). Os Pais e as Mães Portuguesas amam tantoseus filhos, que não os quererão mandar a aprenderfora de casa. Além disso os nossos Mestres Portu-gueses não quereriam, ou não saberiam governar es-tes meninos em comunidade, ou sustentá-los, comose fossem seus filhos. Mas estas dificuldades se po-dem vencer tomando as seguintes precauções: Que oMestre tivesse salário público: que se lhe pagasse acasa ou casas, onde estaria a pensão: que o Delegadodo Director dos Estudos tivesse esta incumbência deformar estas pensões primeiramente na Corte e nasCidades capitais; e tanto que uma ou duas estivesseestabelecida, se deveriam imprimir instruções, parase estabelecer nas mais Vilas e Cidades.

Deixo à consideração de quem deseja ver aumen-tado o número dos Súbditos, por seu nascimento eestado serem as mãos e os pés da República, se en-trará na utilidade pública o estabelecimento destaspensões: todo o custo seria no estabelecimento dasprimeiras quatro ou cinco e em pouco tempo mui-tos Mestres, sem serem obrigados, as fundariam compermissão e aprovação sempre do Delegado Directordos Estudos e Educação.

Continua a mesma matéria, e dasPensões das Escolas do Latim noReino por causa da Educação da Mo-cidade das Colónias e das Conquistasde Ultramar

As nossas Colónias estão fundadas pelas máximas daMonarquia Gótica e Eclesiástica, e por nenhuma daMonarquia Civil: cada Colónia ou Conquista é umparto de Portugal: porque na Índia, por exemplo,se instituiu uma Relação, como a de Lisboa e coma mesma Jurisdição e modo de processar: os mes-mos Corregedores e Juízes dos Orfãos: um Arce-bispo, com seu Cabido composto de muito Cónegopara cantar, num porto ganhado com tanto sangue,

Cartas sobre a Educação da Mocidade 41

para comerciar; um Tribunal do Santo Ofício, enfimum pequenino Portugal.

Fundaram Conventos, Escolas de Latim, Teologia,Filosofia: lá pode a Mocidade tomar as Ordens Sa-gradas; lá mesmo têm os Vice-Reis e Governadoresautoridade e Jurisdição para dar cargos, honras e pre-eminências, e me parece que podem dar o grau deNobreza: e deste modo parece que Portugal, desdeel Rei Dom Manuel, não fez mais que parir outrosReinos, e desfazer-se para criá-los e conservá-los.

Quem sabe de que modo os Romanos fundavamas suas Colónias, e de que modo as conservavam,achará quase tudo o contrário ao que fizemos nasnossas; quem sabe o que fizeram os Castelhanos, osFranceses, os Ingleses e as mais Nações dos nossostempos que têm Domínios na América, na África ena Ásia, o dano ou o proveito que tiveram pelo go-verno que deram a estes Domínios de Ultramar, po-derá julgar se as máximas seguintes são necessáriasàs nossas Colónias ou Conquistas, ou se lhe são per-niciosas.

1. Que o único objecto das Colónias e das Con-quistas, (falando como Cidadão) deve ser aagricultura universal, e o comércio; mas comtal precaução que a agricultura e comércio doReino não fique prejudicado.

2. Somente os Lavradores, os Pescadores, os Ofi-ciais Mecânicos, os Professores das artes li-berais, os Mercadores deviam ser os legítimoshabitantes das Colónias, os Senhores das ter-ras, engenhos, moinhos, fábricas, casas e outrosbens de raiz. Deste modo não haveria Morga-dos, Bens eclesiásticos, Nobreza herdada nemestabelecida com terras: porque uma Colóniadeve considerar-se no Estado político, comouma Aldeia a respeito da Capital. NenhumGovernador, Magistrado, nem Eclesiástico comCargo, ou Jurisdição, poderia ser Senhor de ter-ras.

3. Que seria proibido ensinar a Língua Latina,Grega e Filosofia a nenhum Secular, mesmoainda dentro dos Cabidos ou Conventos; quesomente seriam permitidas as Escolas de ler ede escrever, da arte de ensinar os livros de contae razão, e tudo o que mais se ensinasse nasEscolas de ler e de escrever estabelecidas noReino.

Não é deste lugar alongar-me mais no que per-tence às Colónias; basta-me o referido, para mostrara necessidade que tem Portugal de fundarem-se nelePensões ou Escolas colegiadas, onde possam vir aaprender Latim e Humanidades aqueles nascidos nasIlhas, e nos Continentes dos Domínios de Ultramar.

Proibem-se as Escolas de Latim, etc., nas Coló-nias, para evitar o sumo prejuízo que causa ao Reino,que nelas os Súbditos nativos possam adquirir hon-ras, e tal estado que saiam da classe dos Lavradores,Mercadores, ou Oficiais. Porque todas as honras, car-gos e empregos deviam sair somente da autoridade eda Jurisdição do Soberano, para ficar dependente adita Colónia da Capital: mas nenhum método maisefectivo para este fim, do que criar-se a Mocidadedos Domínios de Ultramar no Reino: e considerandoo Estado a suma utilidade deste intento, havia de es-tabelecer todos os meios em Lisboa, no Porto e emoutros lugares e roda, onde pudessem vir aprendertudo o necessário, para entrar no Estado Eclesiástico,e matricularem-se nas Universidades Reais.

Se nos referidos lugares se estabelecessemPen-sões, para aprender Latim, etc., não tinham razão dese queixarem os habitantes dos Domínios de Ultra-mar, que ficavam excluídos seus filhos da Educaçãoingénua, porque lhes ficava a porta aberta para subi-rem aos cargos honrosos de todo o Reino.

O Estado ganharia a circulação do dinheiro dasColónias para a Capital, e também a circulação dosSúbditos; porque muitos nascidos no Ultramar edu-cados assim no Reino se estabeleceriam nele, manda-riam vir as suas riquezas; e nestas mudanças ganha-ria sempre a agricultura e o comércio; se voltassempara a sua Colónia natal, sempre conservaria maioramor para o lugar onde foi criado; por esta circula-ção se aumentaria o amor dos povos para a sua pátria,e principalmente se outras instituições, que não sãodeste lugar, se introduzissem no Governo dos ditosDomínios, incluindo neles todas as Ilhas.

Temos visto o bem que resultaria ao Reino,determinando-se um certo número de Escolas, paraaprender a ler e a escrever, como também para apren-der a Língua Latina: temos visto que neste caso sãonecessárias estas Escolas comPensões, para seremsustentados e educados aqueles discípulos que qui-serem aprender à sua custa. De que modo deviam sergovernadas estasPensões, quem havia de ter incum-bência dentro delas, da economia, ensino, não é destelugar.

Das três Classes de Discípulosdas Escolas Latinas, etc.Todos aqueles que querem em Portugal aprender aLíngua Latina, a Filosofia, estudar os Cânones, a Ju-risprudência e a Medicina, o podem fazer sem o me-nor obstáculo: todos estes Estudantes são tidos e ha-vidos por Súbditos do Estado; e a Igreja não lhes re-fusa os Santos Sacramentos. Mas esta liberdade é

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causa da destruição e desolação de muitas famíliashonradas; é causa da mais ininteligível contradiçãoentre a Igreja e entre o Estado: punhamos dois Estu-dantes, por exemplo, seculares, um matriculado emLeis, e outro em Medicina, e sigamo-los nos seus es-tudos; também e depois que tomarem os seus grausna universidade.

O estudante Legista já formado chega à sua terra,que suporemos será uma vila com Juiz de fora, oucabeça de comarca, e pretende ser letrado da Câ-mara: ordinariamente tem por despacho, que tire pri-meiro assuas Inquirições de limpeza de Sangue, eque será deferido: se este Bacharel em Leis, ou Li-cenciado não se determinou a advogar, e quis ler noDesembargo do Paço, para seguir as varas, é obri-gado em primeiro lugar a tirar as suasInquirições, eapresentá-las juntamente com o seu requerimento.

Mas se o mesmo Bacharel em Leis não quis seguiro exercício da ciência que aprendeu, nem na Advo-cacia, nem na Magistratura, e quis somente ser Ca-valheiro do hábito de alguma Ordem Militar, ou pe-los serviços de seus antepassados, ou pelo seu nasci-mento nobre, é obrigado pela mesa da consciência aapresentar as suasInquirições, juntamente com o seurequerimento.

Sigamos agora o Estudante Médico: este no pri-meiro ou no segundo ano dos seus Estudos, se queropôr-se àqueles partidos que dá a Universidade aosEstudantes beneméritos, é necessário que tire as suasinquirições, e que as apresente com o seu requeri-mento à Universidade. Suponhamos este Estudantejá formado em Medicina, que chega à sua terra, ondehá partido da Câmara, de que goza um XN Médico:neste caso o novo Médico se tirar as suas inquiriçõesde limpeza de sangue, alcançará o partido que pre-tende; e o Médico se não pode tirar Inquirições lim-pas fica rejeitado dele, ainda que servisse a dita Câ-mara por quarenta anos. Já se vê que este Médico re-jeitado não pode ter cargo honroso; como ser Médicode um Hospital famoso; ser familiar do Santo Ofício,nem ser de nenhuma ordem Militar, nem mesmo serTerceiro do Hábito de São Francisco.

Todo o referido é a constante prática em Portu-gal; este Legista e este Médico formados, até o tempoque quiseram ter algum cargo honroso ou proveitoso,eram conhecidos pelo Estado, como bons e comofiéis Súbditos; tiveram nele toda a protecção; e estãocondecorados com as honras dos graus da Universi-dade: por todo o tempo dos seus Estudos e depois deformados, a Igreja os conheceu, e teve por verdadei-ros Cristãos, a quem nunca refusou os Sacramentos.

Porque causa logo se refusaram os cargos e honrasdo Estado a estes doisLicenciadosem Jurisprudên-cia e Medicina? Que crime cometeram? Se o co-

meteram? porque não foram castigados pela Igreja epelo Estado? Neste modo de proceder andam incoe-rentes tanto o Tribunal secular, como o Eclesiástico.Se estes Estudantes são indignos de honras, porqueos decorou a Universidade com os seus graus? por-que consente o Estado, que os Letrados, sem teremInquirições de Sangue, advoguem publicamente, de-fendendo e acusando a honra, os bens, e a vida dosSúbditos? Porque consente que semelhantes Médi-cos tenham as vidas e a honra dos seus Súbditos noseu poder. Porque razão a Igreja dá fé às suas ates-tações que os seus enfermos podem comer carne naQuaresma? e ao mesmo tempo o Estado e a Igrejatêm estes Cidadãos e Cristãos por indignos de exerci-tar cargos honrosos, e entrar no Estado Eclesiástico.

Para evitar tantos absurdos seria indispensável de-terminar o Conselho da Educação da Mocidade, «quetodo aquele que quisesse aprender Latim, que fosseobrigado a trazer uma certidão devita & moribus,com outras semelhantes de seus Pais, firmada peloVereador mais velho, ou juiz de Fora, também peloseu Pároco, sem as quais não seria permitido a nin-guém matricular-se nestas Escolas Reais».

Acabados os Estados destes Estudantes, a cada umse daria uma atestação autêntica do que estudou e quelouvores mereceu nos estudos que fez, da qual ficariao original no Cartório: sem esta atestação nenhumestudante poderia ser matriculado na Universidadenem em nenhum dos Estudos que chamam maiores; ecom a mesma atestação poderiam pretender a todosos cargos, honras, e dignidades a que os conduzemos seus estudos, tanto Seculares, como Eclesiásticos,sem outro acto algum com título de Inquirições deSangue, Limpeza de Sangue, ou outra qualquer in-venção disturbadora e destruidora do Estado.

E não creio que haverá homem sensato que temapor esta providência que se introduza a superstiçãojudaica (porque não há outro Judaísmo em Portugal)ou o maometismo: porque é evidentíssimo que ne-nhum Juiz ou Magistrado, nenhum Pároco, nem vi-gário darão jamais a um menino atestação devita &moribus, e de seus Pais, se estes forem tidos e ha-vidos porCristãos novos, ou algum deles tivesse es-tado na Inquisição; e deste modo ficariam excluídosde aprender nestas Escolas todos os filhos dos Cris-tãos novos; e estes se acabariam deste modo, e muitaparte do Reino recobraria a honra de ser Cristão Ve-lho, que tinham perdido pelas Inquirições, e inventodiabólico forjado em Castela por João Martins Sili-cius, Arcebispo de Toledo66.

66Mestre de Felipe segundo ordenou «Ne quis e Stirpegentis Hebrææ opimis Ecclesiæ Toletanæ Sacerdotiis po-tiretur: quamobrem & invidiam sed constanti animo susti-nuit, Judæorumque apologiam Lutetiæ editam, calumniam

Cartas sobre a Educação da Mocidade 43

Continua a mesma matéria

Para que estas Escolas sejam permanentes, e que asdespesas que com elas fizer o Estado sejam recom-pensadas com utilidade pública e glória da Monar-quia, deve-se considerar logo na sua fundação, se ha-bitariam os Mestres com suas famílias porque neces-sariamente haviam de ser casados) e um certo nú-mero de estudantes, no número dequinze até vinte,sustentados e mantidos à Custa Real, como filhosadoptivos do Estado? E bem se poderá considerarque para adquirir uma adopção tão ilustre, que de-viam ser bem examinados na capacidade, e no ta-lento; e que se não aproveitassem, o que se veria porcada exame anual que seria rejeitado, conforme asInstruções, e o Alvará de Sua Majestade.

A destinação destes Estudantes internos seria paraserem Mestres nas Escolas onde faltassem: seria parapassarem a estudar a Jurisprudência, a Física, as Ma-temáticas, e a Medicina: e ultimamente para viaja-rem pela Europa, informando-se e aprendendo con-forme as instruções impressas, às quais cada um de-les devia conformar-se.

A necessidade que tem o Estado destes Estudan-tes internos, educados do modo proposto, e destina-dos para perpetuar as ciências humanas na sua pátria,é evidentíssima a todo aquele que conhece a dificul-dade de adquirir estas ciências à sua custa.

Não bastará o ensino de Portugal, ainda que te-nham os mais perfeitos Mestres, para ensinar e go-vernar estas Escolas. Seria necessário que viajassempor quatro ou cinco anos, pelos Potentados, onde seensinam as ciências humanas. É certo que só na Ho-landa, Alemanha, Inglaterra e França existem hojeas humanidades, o perfeito conhecimento das Lín-guas doutas, a Ciência da Física geral, as Matemá-ticas, a Jurisprudência universal, a Filosofia e a Me-dicina, e que só nas suas Escolas e Universidades setem achado o melhor método de aprender e de ensi-nar estas ciências.

Tanto que houvesse o número de quatro ou cincoDiscípulos internos dos mais capazes destas EscolasReais, o Director dos Estudos lhes daria a cada um asua instrução impressa para continuar os seus Estu-dos nas Universidades da Europa, principalmente nas

elusit». Bibliotheca Hispanica Andreæ Schotti, tom. III,pág. 571.

Em outro lugar mostrei que o costume de tirar Inquiri-ções de Sangue não é lei das Ordenações, nem da Igrejauniversal; e que este abuso é contrário ao Concílio de Ba-zileia: que foi invento Castelhano, que abraçamos quandoo Reino foi usurpado por Felipe Segundo; que serviu paramultiplicar a superstição Judaica, a desonra das famílias no-bres, para destruir a harmonia e a paz entre os Súbditos domesmo Estado, e que deve reinar nos Corações Cristãos.

seguintes: Edimburgo na Escócia, Utrecht e Leydena Holanda, Gotinga e Leipsig na Alemanha, e Es-trasburgo e Paris em França: nas quais deviam no-tar de que modo se governam, de que modo ensi-nam os Professores, de que modo aprendem os Dis-cípulos, por quantos anos estudam, e como fazemos seus actos. Cada um destes Estudantes havia decorresponder-se com um Mestre das Escolas Reaisa quem mandaria o jornal das suas observações, e aconta dos seus Estudos; deste modo pela prática, epelo estudo, viriam a ser homens consumados paraensinar e para governar as Escolas: tanto que estesprimeiros quatro ou cinco anos, voltariam para Portu-gal, e outros seriam mandados em seu lugar, para quesempre e sem intermissão houvesse fora no mesmoemprego quatro ou cinco destes discípulos. Já ficaevidente que deste modo não poderiam jamais fica-rem ditas Escolas sem Mestres dignos de tão exce-lente instrução.

O resto destes discípulos internos, acabados osseus Estudos, deveriam passar a viver nos Colégiosonde se ensinarão as Ciências, ou Estudos Maiores,que indicaremos abaixo; nestes mesmos seriam edu-cados e sustentados à Custa Real, não só para virem aser Mestres dos mesmos Estudos, mas também paraservirem o público.

A segundasorte de Discípulos de que se deviacompor esta Escola Real, seriaPensionários, ou Por-cionistas.

Mostramos acima a necessidade que tem o Reinodesta instituição dasPensõestanto nas Escolas deescrever e ler, mas também nas do Latim: necessi-dade indispensável, se se proibirem as Escolas nasAldeias, e nos pequenos lugares ou vilas, e tambémaquelas da Gramática e do Latim em todos os Do-mínios de Ultramar. Esta Educação dos Colégios éutilíssima à Mocidade, e por consequência à sua pá-tria: ali perdem aquele mimo e regalo que têm ordi-nariamente na casa de seus Pais; adquirem pelo tratoe comunicação dos condiscípulos maiores conheci-mentos da vida civil; estando sempre guardados eobservados pelos seus Mestres e Inspectores, não seestragam com vícios ; adquirem um ânimo de patri-otismo, e se consideram pertencerem ao Estado: oânimo é mais elevado, o trato civil mais livre e fácilpelo costume de estarem sempre em grande Socie-dade. Por estas vantagens de que carece hoje a Mo-cidade Portuguesa, devia o Director dos Estudos pôrtodo o desvelo de introduzir no Reino estas pensõescada qual à sua custa, que todos louvariam, princi-palmente, se o Estado aumentasse mais Cargos Civisdo que hoje tem para serem servidos por estes Pensi-onários, e como esta matéria requer maior evidência,dela falaremos em outro lugar aqui abaixo.

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Digressão sobre as Pensões esobre a Língua Latina tanto noReino como nas Colónias

Para que todos conheçam a impossibilidade deestabelecerem-sePensõesde Escolas de ler e escre-ver, e aquelas propostas das Escolas do Latim, ouça-mos falar na sua Aldeia um Lavrador honrado, sobreesta lei que proibiu as Escolas nas povoações limi-tadas. Queixar-se-ia este ao seu Cura do modo se-guinte: «Ora que farei eu com esses dois rapazes quetenho? querem por força fazer-nos tontos, e que nãosaibamos fazer mais que uma cruz no fim do Testa-mento. Deitaram fora da nossa Aldeia o Mestre queensinava os Meninos, e nos fazem saber por um edi-tal, que na Vila daqui três léguas poderemos lá man-dar aprender os rapazes a ler e a escrever, e outrasmuitas coisas da moda; e viverão em pensão em casado Mestre, a condição que lhe paguem por cada Me-nino trinta mil réis por ano, e a metade adiantado.Mas quem me dará tanto dinheiro, para fazer estesgastos? Recolhiquinhentossacos de trigo e cen-teio, e Deus sabe onde eles vão; paguei ao Ferreiropelo concerto das relhas, pedoas e roçadourasqua-renta sacos; ao Barbeiro pagueidez; ao sapateiro pa-gueivinte; ao Maioral e aos Moços pagueicinquenta;como me morreramdoisbois e aminha égua, foi ne-cessáriogastarcem sacos de trigo que dei por estesanimais; é necessário guardar para semear, e susten-tar a casa com aqueles que me ficam, e não tenhonem para vender, nem dar a esse Senhor Mestre deler que vive na Vila, porque diz que não aceita maisque dinheiro, e não está pelo acordo do Mestre quetínhamos aqui a quem dávamos por ensinar cada ra-paz um saco de centeio.»

Quis assim dar a entender que os alimentos emPortugal servem de dinheiro, e que não são mercan-cia: quis mostrar que não poderá subsistir jamaiso Estado Civil enquanto nele não estiver em vigoraquela Lei, que se faça comércio com os alimentos,como se faz com os panos, com as baetas, e outrasmercancias; porque as Leis das nossas Ordenações,e o errado das nossas Alfândegas, são a causa destasdesordens.

No livro quinto das Ordenações, tit. 76 e 77 lêem-se Leis contrárias ao aumento da Agricultura e à cir-culação que deve continuar no Estado Civil: ali se de-fende que pessoa alguma compre trigo, farinha, cen-teio, cevada, nem milho para tornar a vender... Queninguém atravesse o pão que de fora do Reino vier, eque só quem o trouxer o possa vender; que todos osque trouxerem pão de Castela o possam vender livre-mente onde quiserem; o mesmo se determina ali com

o vinho e azeite para revender. Pela prática constante,e contrária totalmente a estas Leis, que têm hoje In-glaterra e França se vê que não poderá jamais Por-tugal ter agricultura enquanto se observarem; comotambém enquanto os Almotacéis67 almotaçarem osfrutos, as sementes, o peixe do Reino, e as carnes:só um bem tem estas almotaçarias, que é almotaça-rem o bacalhau, e o peixe salgado dos estrangeiros:deste modo fazem que nos não levem mais de doismilhões por ano, como se as costas dos nossos maresnão tivessem peixe.

De tudo o referido se vê que os Lavradores nãotêm, nem podem ter dinheiro, nem os Ferreiros, Bar-beiros, Médicos das Províncias, Letrados, Ofícios, eoutros Cargos: porque todos são pagos com os fru-tos, que servem de dinheiro; havendo de servir emboa política de mercancia, com tanta liberdade decomprá-los e de vendê-los, como se faz com tudo oque é fabricado no Reino. Enquanto as rendas dasterras se pagarem em frutos, e não em dinheiro, oque havia de ser posto por Lei; enquanto se permitirque entrem trigos de fora do Reino por mar e terrasem pagar Direito algum, ou sem fazer Celeiros des-tes grãos estrangeiros para se venderem somente nafalta do trigo nacional; proibindo a todo o Estran-geiro de vender o seu trigo mais que ao Director doCeleiro daquele porto, sempre haverá miséria no la-vrador, e não terá dinheiro, nem para educar os seusfilhos nem para aumentar a sua lavoura.

Esta introdução de pagarem os Lavradores, osRendeiros e os Senhores de terras as suas dívidascom os frutos, é antiquíssima no Reino; mas issomesmo prova que o povo era então escravo do Senhorda terra: prova que não havia agricultura, que parasatisfazer a necessidade; prova também que não ha-via comércio; daqui vieram aqueles perniciosos cos-tumes da maior parte das terras dadas a foro, que sepagam em sementes, em galinhas, em ovos, em por-cos, em presuntos e em gado miúdo e em vacum.Ainda muitos Comendadores arrendam as suas co-mendas, com as cláusulas expressas de serem pagosem parte com alimentos e com provisões. MuitosConventos, Hospitais pagam com frutos e com por-ções alimentícias; o que tudo devia ser reduzido adinheiro e obrigar por este modo ao Lavrador ven-der nas praças públicas os frutos da sua agricultura.Não é necessária almotaçaria, porque havendo mui-tos que vendem no mesmo lugar, o concurso de tan-tos vendedores regra o preço do que vendem: destemodo se promove a circulação; o Lavrador sempretem que vender; tem com que sustente a sua família

67Ibid. Liv. I. tit. 68. §10, 11 & 12.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 45

e educá-la, com que compre animais, para aumentara sua lavoura; ou das terras incultas, fazê-las férteis.

É natural a todo o Pai de famílias pensar estabe-lecer os seus filhos naquele estado que lhe sirva parapassar a vida com honra, com proveito e com des-canso. Um Pai em Portugal, que tem três filhos, ho-mem ordinário, mas cidadão, oficial por exemplo, ouque tem cem mil réis de renda da sua vinha, olivale jardim, vê-se na maior perplexidade, se se acharnas circunstâncias seguintes: primeiramente se viveem alguma vila de Província; 2.oSe não podem ti-rar seus filhos as suas Inquirições limpas; 3.oSe sãotão estúpidos ou extravagantes, que jamais aprende-rão Latim. Estes rapazes seriam somente capazes deaprender um ofício mecânico; mas o Pai vendo quenão será bastante para adquirir o seu sustento; vendoo estado abatido e desprezado dos oficiais, a misériaem que vivem, jamais se determina senão na últimanecessidade, a fazer aprender seus filhos algum ofí-cio: porque não havendo comércio interno algum emPortugal, nem com os frutos, nem com as fábricas,os ofícios mecânicos e todas as artes, ficam no maiorabatimento e miséria.

Mas se estes rapazes pudessem tirar as suas In-quirições, que faria todo o pai naquelas circunstân-cias? É natural que dissesse, que aprendam Latim;se não forem Clérigos, serão Frades; se aprenderemmal, tenho amigos que se empenham para entraremna Ordem dos Capuchos; e se não aprenderem coisaalguma, serão Frades Leigos, ou Donatos; terão quecomer, e ficará a minha casa honrada com estes Re-ligiosos.

Deste modo todos vão aprender Latim, porque oLatim é o passaporte para entrarem no Paraíso ter-restre, onde se come sem trabalhar, onde há tantosestabelecimentos em cada Vila e Aldeias, como sãoos Conventos e Capelas, faltando às vezes as Paró-quias. Logo a causa porque na maior parte no Reinohá poucos estabelecimentos para ganhar a vida; fal-tam muitos Cargos públicos, que puderíamos ter, setivessemos comércio interior, e a agricultura comocomércio, e como base do comércio; provém que oSoldado, o General, o Juiz de Fora, e o Desembar-gador não somente é pago em sua vida, mas aindadepois de morto, o Estado recompensa mais grandi-osamente; os filhos destes Soldados e Magistrados, eoutros que serviram a pátria, requerem tenças, hon-ras, comendas, ofícios de escrivão da Câmara, dosOrfãos, das Alfândegas a perpetuidade (às vezes) pe-los serviços de seus Pais, como se jamais fossem pa-gos, ou recompensados enquanto serviram; o que écerto, que o Estado defere às pretensões e súplicas,destesfilhos e herdeiros.

Daqui vem o ócio, e o querer viver à Cavalheira;

porque muitos destes premiados ficam Cavalheirosdas Ordens Militares. Daqui vem tanta gente inú-til, que se não foram aquelas recompensas, servi-riam como seus Pais ou aprenderiam um emprego,ou ofício. Deste modo o Reino em lugar de ter nasua mão aquela clemência de fazer trabalhar e agen-ciar os Súbditos, só tem para promover o torpe ócio,a vaidade e a dissolução. Isto é o que confirma oprincípio acima: «Que das boas ou más Leis de umReino dependem os bons ou maus costumes dele; eque todos os Sermões, Missões, Novenas, Vias Sa-cras, Romarias, Irmandades e Confrarias são inúteispara fazer bons Cristãos e bons Cidadãos, enquantoexistirem as mesmas Leis políticas e Civis no mesmoReino».

Como em Portugal há tantos estabelecimentos noEstado Eclesiástico, onde residem a honra, e a sub-sistência e que o Latim é a porta para entrar nelas,é natural que todos queiram aprender esta Língua.Como os prémios se dão a quem não serviu o Es-tado, e só aos Herdeiros que não fizeram serviço al-gum, daqui vem o ódio, e o desprezo para o trabalho,e para a indústria. Se o Estado não puser por alvo ahonra e a conveniência em outro lugar que no Ecle-siástico e na Nobreza, todos os plebeus quererão serEclesiásticos ou Nobres. Dispenda o Estado a ins-tituir Cargos para promover a agricultura como co-mércio e a indústria; ocupe os Soldados com dobroe tripla paga a fazer caminhos de carros; mande de-sentupir as fozes dos rios que entram do mar, para sedesalagarem os campos convertidos em alagoas, ato-leiros e paules; logo serão necessários Arquitectos,Engenheiros, Maquinistas, Contadores, Inspectores,Escrivães e Secretários, e outro grande número degente empregada nestas obras para haver Comérciointerior e agricultura; sem elas não é possível quehaja indústria, nem trabalho no Reino.

Da terceira Classe de Estudan-tes que aprenderia nas EscolasReais a Língua Latina, Grega,etc.

Pois que em Portugal está introduzida que os Meni-nos e rapazes saiam todos os dias da casa de seus Paispara ir aprender nas Escolas públicas, ler e escrever,e o Latim, seria muito censurada a resolução de proi-bir esta sorte de Discípulos e Estudantes. Admiro-me portanto no Santo zelo e fervor, que tantos bonse pios Eclesiásticos mostraram para promover a San-tidade dos bons Costumes, que não reparassem até

46 António Ribeiro Sanches

agora na origem de tanto vício e dissolução da Moci-dade Portuguesa, para dar-lhe o remédio mais eficaz!É impossível que não estejam persuadidos que nasEscolas públicas aprendem muita ruindade e mal-dade: a sua própria experiência os convenceria. Des-graçadamente quem poderá remediar este dano nãofoi educado nas Escolas públicas: porque a primeiraNobreza e a Fidalguia todos dão Mestres particula-res a seus filhos, que aprendem em casa dos Pais; enão podem jamais vir no conhecimento da destruiçãodos bons costumes, que se adquire enquanto os Me-ninos e os Rapazes frequentam as Escolas do modoreferido.

Saindo cada dia de casa duas vezes têm ocasiãoestes Estudantes de se comunicarem, e de aprende-rem todos os maus costumes do povo, e queira Deusque não aprendam também os vícios; o certo é quenaquela liberdade em que vão à Escola, e voltam parasuas casas, adquirem desobediência, preguiça, rudeze obstinação que observam neles os Mestres, talvezfaltando às classes por sua culpa, talvez desculpando-se com mil mentiras por semelhantes faltas.

Se fosse possível que todos os Estudantes das Es-colas Reais vivessem em clausura, seria o melhormétodo de receber aquela tenra idade a melhor edu-cação possível: as vantagens que tem esta educaçãoem comum direi adiante, quando tratar da Escola Mi-litar.

Dos Estudos Maiores ou Colé-gios ReaisDilatei-me mais tempo nas observações sobre as Es-colas Reais, por me parecer necessário dar a conhe-cer os inconvenientes que impediriam a sua utilidade,e algum método para evitá-los. É certo que o fim or-dinário destas Escolas do Latim, tem ordinariamentepor objecto estudar as Ciências e exercitá-las parautilizar o Estado: vejamos primeiramente que neces-sidade tem delas, e as que devem aprender aquelessúbditos destinados a servir a sua Pátria.

Parece-me que todas as Ciências de que necessitaum Reino cristão nos nossos tempos se podiam ensi-nar em três Escolas.

Naprimeira. Toda a História da Natureza Univer-sal, da Natureza humana; as produções que resultamda combinação de vários Corpos; as suas proprieda-des e virtudes; e a aplicação delas para uso e utilidadeda vida humana, e vida civil.

Nesta Escola se ensinaria a História natural, a Bo-tânica, a Anatomia, a Química, a Metalurgia, e a Me-dicina com todas as suas partes. Mas como sou obri-gado a escrever do método de ensinar e aprender a

Medicina, então é que tratarei mais particularmentedesta Escola.

Na segundaEscola. Todos os conhecimentos quenecessita o Estado Político e Civil para governar-see conservar-se, e viverem os súbditos naquela felici-dade a que pode conduzir a inteligência humana.

Nesta se ensinaria a História Universal, Profana eSagrada; a Filosofia Moral, o Direito das Gentes, oDireito Civil, as Leis Pátrias: a economia civil, quese reduz ao Governo interior de cada Estado.

NaterceiraEscola. Todas as coisas que pertencemà Sagrada Religião e ao seu exercício.

Mas como só os Eclesiásticos devem ensinar, eaprender estas Divinas Ciências, não me pertence amim indicar o que nelas se devia aprender.

Na Universidade de Coimbra se ensina a Teolo-gia, o Direito Canónico, a Jurisprudência e a Medi-cina, que compõem asquatro Faculdades; e na ver-dade que este ensino ainda que comvinte e quatroLentes, e muitos Conductários, não é suficiente parase educarem os Súbditos, de que tem necessidade oReino; porque nestas quatro Faculdades não entra aCiência Natural, que indicamos acima na primeiraEscola. Porque a Faculdade de Medicina que existeem Coimbra é insuficiente para aprender o que ne-cessita o Naturalista, o Físico, o Químico, o Médicoe o Anatomista.

A Jurisprudência, e o Direito Canónico que se en-sinam actualmente na nossa Universidade, não sãobastantes para formar Conselheiros de Estado, Secre-tários de Estado, Embaixadores, Generais, Almiran-tes, etc. Necessita o Estado desta sorte de Cargos,servidos por Súbditos que aprendessem o que indi-quei acima na segunda Escola Maior.

Com esta clareza o Director dos Estudos poderiarepresentar a S. Majestade, que como as ciências quese ensinavam na Universidade de Coimbra eram in-suficientes para a Educação da Mocidade, destinadaa servir o Estado, que necessariamente devia ser re-formada; e que deixava à disposição de S. Majestadea execução da proposta seguinte.

Que a Faculdade de Teologia, e o Direito Canó-nico, sendo Ciências Eclesiásticas, e que somente osEclesiásticos as seguiam e as ensinavam, deviam serseparadas das ciências humanas, especificadas aquiacima na primeira e na segunda Escola Maior; quesó aos Bispos pertencia governar estas Ciências Sa-gradas, e que a eles ficaria toda a incumbência deconservar estes Estudos.

Que S. Majestade lhes determinaria uma Cidadedo Reino, por exemplo, Évora, Lisboa, Coimbra, ouBraga, para estabelecerem ali a Universidade Ecle-siástica, restrita somente a ensinar as duas Faculda-des de Teologia, e do Direito Canónico. Onde ne-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 47

nhuma conclusão, livro, nem escrito, ou decisão da-quelas duas Faculdades, sairiam a público, sem apro-vação de dois Fiscais Seculares autorizados por S.Majestade a reverem, e a aprovarem tudo o que seimprimiria, ou se decretaria naquela Universidade,para que nela se não ensinasse máxima alguma con-tra as Leis do Estado; e que estes dois Fiscais seriamos primeiros perante os quais fossem apresentados osEscritos que se haviam de imprimir, e que somentecom a sua aprovação poderiam passar a ser revistospelos Censores, Qualificadores, ou Vigários Geraisdos Bispos e da Inquisição. O Conservador, ou Fiscalque S. Majestade tem em Coimbra para a inspecçãoque se não imprimam conclusões, ou outros quais-quer actos contra as Leis do Reino, vem inútil e denenhum exercício. Por um abuso ininteligível tudoaquilo que se imprime em Coimbra o primeiro Tri-bunal, onde se pede a licença para imprimir-se, é nodo Santo Ofício, tanto que as conclusões, por exem-plo, ou outro qualquer acto, ou livro sai com as licen-ças deste Tribunal; vai então diante do Conservadoracima ou Fiscal; este vendo as Licenças da Inqui-sição firma e consente que se imprima tudo. Estemesmo abuso se pratica em Lisboa: quem tivesseque imprimir algum escrito devia em primeiro lugarsuplicar ao Desembargo do Paço, como ao primeiroTribunal do Reino, que julgaria se contém algumaproposição contra a autoridade Real; depois devia oAutor do livro suplicar ao Ordinário, o qual julgariase havia neles coisa contra a Religião e bons Cos-tumes, que é a quem toca de direito esta matéria; eem último lugar (pois que assim o quiseram os Bis-pos) iria à Inquisição, a quem toca somente inquirirda heresia. Este é o método natural e jurídico; emlugar que hoje pela confusão das jurisdições tudo épelo contrário.

Que havendo tantos Cabidos e Colegiadas, e tan-tas Abadias das Ordens Monásticas dotadas com tan-tas rendas que podiam parte destas servir a manterestas duas Faculdades, com tanta mais razão, porquesó os Sacerdotes Seculares e os Frades ensinariam eestudariam nesta Universidade.

Que S. Majestade à imitação de Frederico Se-gundo Imperador e Rei de Nápoles, e Francisco Pri-meiro, Rei de França, poderia, sem intervenção al-guma da Corte de Roma, fundar as duas Escolas Mai-ores, ou Colégios Reais: a primeira para se ensinartudo o que pertence à natureza universal e humanae a segunda para se ensinar tudo o que pertence aoGoverno da Monarquia.

Na consideração que as nossas Ordenações de-viam ser reformadas, é que insisto que a Teologiae o Direito Canónico fique unicamente no poder dosEclesiásticos, e que somente estes deviam aprender

estas duas Faculdades; mas no caso que não se refor-mem, não necessitam ainda os Seculares tomar graualgum na Faculdade de Cânones, porque os Secula-res que estudarem na Universidade Real proposta, asLeis Civis e as Leis Pátrias, por si mesmo se poderãoinstruir do Direito Canónico, como dos Concílios, eda História Eclesiástica; e como nas Universidadesactuais nenhum Secular nem Eclesiástico toma grauna História Eclesiástica, ou na dos Concílios, assim écoisa supérflua que os Seculares conheçam tal Facul-dade chamada Cânones, no caso que os Eclesiásticosquisessem conservar aqueles usos actuais tomandograus de Doutor em Cânones com capelo verde, se-riam os árbitros, contanto que fosse à custa das suasrendas.

Aquelas pessoas a quem S. Majestade cometeriareformar as nossas Ordenações, necessariamente de-viam ter estado alguns anos em França, e principal-mente em Turim; para verem e aprenderem as Leisdestes Reinos, e que poder e autoridade tem o Di-reito Canónico neles; porque não é possível que osnossos Jurisconsultos, ainda que doutíssimos, sendoeducados na Universidade de Coimbra, possam jul-gar nesta matéria.

Que estes dois Colégios ou Escolas ficarão esta-belecidas no lugar que parecesse o mais convenienteà sua destinação; que não deviam ficar na mesma ci-dade, onde ficasse a Universidade de Teologia e Di-reito Canónico, por evitar muitas contendas que selevantariam indispensalvemente pelo concurso dosEstudos Eclesiásticos e Seculares, regrados tão di-ferentemente.

As rendas e os emolumentos da Universidade deCoimbra são tão consideráveis, que ficam cada anoem depósito muitos mil cruzados. Se forem adminis-tradas com inteligência e integridade, se a agriculturase aumentar, e se se der a providência que se sustenteo Reino unicamente das suas produções, serão muitomais consideráveis, e serão bastantes não somente asduas Escolas Maiores, mas de conservá-las com omaior lustre, e igual utilidade do Reino.

Bem se poderão prever os obstáculos que oporãoos Eclesiásticos com a Corte de Roma, que estes bensda Universidade actual, sendo pela maior parte Ecle-siásticos, não poderão ser aplicados a fundar e man-ter Colégios Seculares, onde os Lentes serão forço-samente casados. Mas como já os Papas permitiramque a Faculdade de Medicina fosse sustentada comos mesmos bens, não obstante ser toda secular, bempoderão as mais ciências gozar da mesma aprovaçãoe consentimento: além que sendo os bens Eclesiás-ticos destinados para sustentar e manter a Igreja, eos pobres, e para educar a Mocidade, com tanta jus-tiça, como para resgatar os Escravos; e por final razão

48 António Ribeiro Sanches

que a conservação do Estado é a principal Lei; e ne-nhuma coisa poderá conservar mais eficazmente doque a boa Educação da Mocidade.

Nestas duas Escolas Maiores ou Colégios, que da-qui por diante chamaremos o daFísica e da Legis-lação, deviam viver os Lentes com suas famílias,porque todos deviam ser casados, juntamente comquinze até vinteDiscípulos internos, ou maior nú-mero, conforme se achassem os rendimentos, todossustentados e entretidos à custa Real; e acabados osseus Estudos, alguns daqueles mais capazes deviamviajar, e ir aprender nas mais célebres Universidadesda Europa, com instruções e ocupação semelhantesàqueles que insinuei acima quando falei das EscolasLatinas; de tal modo que de cada Escola Maior esti-vesse sempre viajando e aprendendoquatrode seusDiscípulos.

Quando tratar do método de ensinar e de apren-der a Medicina, então entrarei na obrigação e noexercício dos Lentes e dos Estudantes tanto inter-nos como externos, como dos seus graus, ou LicençaReal, para exercitarem as Ciências que aprenderam;e nessa consideração é que agora suprimirei o queparecia aqui necessário.

Sobre o ensino que deve pre-ceder as Escolas Maiores, querdizer, da Física e da Legislação

Parece necessário que fiquem informados todosaqueles, que tiverem a Educação da Mocidade a seucargo, daqueles estudos intermédios que precedemas ciências das escolas maiores. Até agora se ensi-nam em certos Colégios, e vinham a ser aquela Fi-losofia Bárbara das Escolas, com o nome de Lógica,Física, Metafísica, nas quais perdiam o tempo de trêsou quatro anos. Agora mostraremos quais devem serestes estudos.

De cinco modos ilustramos o nosso entendimento,o primeiro é pelaObservação, que é aquela percep-ção ou conhecimento das coisas que ocorrem na vidaordinária, ou estas coisas sejam intelectuais, ou se-jam das pessoas, ou das coisas materiais, ou de nósmesmos.

O segundo é pela Lição; pela qual ilustramoso nosso entendimento com que os nossos Maioresaprenderam e experimentaram, como se nos vales-semos das riquezas que ajuntaram nossos antepassa-dos.

O terceiro, peloEnsinodos Mestres de viva voz,e não por postilas, nem temas, explicando o quedeve inculcar no ânimo dos discípulos, perguntando,

orando, às vezes, e arguindo não por silogismos, masem forma de diálogo.

O quarto pelaConversação, na qual aprendemoso que outros sabem; promovemos as forças do nossoentendimento, imitando sem nos apercebermos ojudicioso, que ouvimos e que admiramos; e comagrado e amor da Sociedade transformamos o nossoentendimento, naquele com quem tratamos.

O quinto pelaMeditação, lendo, escrevendo oumeditando: Neste último se encerram todos os qua-tro modos acima: e este último é a chave de todos osreferidos: sem reflexão, sem uma atenção madura doque sabemos, nenhuma acção seria regular, nenhumaoperação da alma seria sem defeito.

Deviamos cultivar a memória naquela idade,quando é mais vigorosa, pela observação, leitura,ensino e conversação. A história seria o primeiroensino: e como resulta um particular gosto saberquando sucedeu tal coisa, e em quelugar, daqui vema necessidade de estudar aGeografiae aCronologia.

Mas esta história não se há-de incluir a quantosReis teve uma Monarquia; quantas vezes foi conquis-tada, e quantos Reinos conquistou. Na história se in-cluem o conhecimento das coisas naturais que con-tém naquela obra de Plínio Segundo: entramos numGabinete de Coisas Naturais: ali notamos o globoterrestre e o celeste: ali notamos os sistemas planetá-rios onde se vê o sítio onde existe o sol, os planetase a terra, o lugar das estrelas fixas e o zodíaco; alivemos de que modo se movem e em que lugar os ve-mos; deste modo com a explicação de um inteligenteMestre terá o Menino uma ideia clara, o que é aGe-ografiae aAstronomia.

Neste Gabinete vemos as Aves, os Peixes, os Ani-mais, os Insectos, as Árvores, e as Plantas da África,da Ásia e da América; e pela mesma separação va-mos notando os Minerais, as Pedras, os mármores,as Pedras preciosas, os Sais, os Bitumes, os Bálsa-mos, e as diferentes terras e barros; esta é aHistóriaNatural, e como é tão natural saber para que servemestas produções daNatureza, o Mestre lhes dirá aspropriedades e seu uso na Medicina e nas artes me-cânicas e liberais.

Lá num lugar separado e espaçoso, vê uma Pompapneumática, um Telescópio, um Microscópio, umprisma, um modelo de um moinho de vento, um Re-lógio: mostra o Mestre o uso destes instrumentos, ede outros mais ou menos complicados; ali adquiriráo Discípulo as primeiras ideias das propriedades dosElementos, daÓptica, dasMecânicase daEstática:a curiosidade que é tão natural à puerícia dotada deboa índole, o incitará a perguntar a causa daquelesefeitos, que vê obrar por aqueles instrumentos, e fi-cará informado a não ter por milagres o que são efei-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 49

tos da natureza; ficará informado daqueles primeirosconhecimentos, que lhe servirão por toda a vida emqualquer estado que a fortuna o puser na SociedadeCivil.

Mas não basta para a vida civil ter a memóriaenriquecida destes conhecimentos da História Sa-grada, Profana, Fabulosa e Natural; necessitamospara ser exactospesarmos, medirmos e contarmostudo aquilo que temos adquirido pelaobservação,leitura e ensino, &. A Aritmética, Álgebra, Geome-tria, Trigonometria plana, são necessárias para me-dirmos asalturas, oscomprimentos, asdistânciaseasprofundidades. Além desta utilidade, têm estas Ci-ências outro bem necessário à Mocidade: elas costu-mam ser atentivos e exactos no que fazem, a não crerde leve, a ficar convencido pela sua razão; instigama seguir e indagar o que é evidente, ou pelo menoscerto, e a descansar, quando se achou a verdade.

Falta ainda a este ensino aquela arte dedizere re-presentar por palavras, e pela escritura, o que quere-mos que outros saibam, e fiquem persuadidos, tantopela parte de excitar as paixões da alma, como pelaperspicuidade, elegância e urbanidade do discurso.

Esta arte de saber dizer ensina aRetórica emProsa; e em verso aPoesia. Duvidaram alguns Mes-tres da Educação se a Poesia devia entrar no seu en-sino: as razões seguintes são em seu favor. Todosos homens se determinam a afrontar os maiores peri-gos e os maiores trabalhos, pela esperança, que têmde descansarem e viverem felizes: além disso semrepouso, não pode haver trabalho, nem fadiga pormuito tempo; evitarão os homens muitas desgraçasse no tempo do descanso, do repouso e da tranqui-lidade, pudessem viver consigo. Quem foi bem ins-truído na Mocidade, na história e na leitura dos bonsPoetas, tem esta vantagem sobre os homens ordiná-rios, que podem estar sós, e divertirem-se sem com-panhia; porque aumentam a sua felicidade com o quepensam, ou com a leitura em que foram educados;diverte-se a fantasia; o juízo aproveita, e fortifica-sea virtude: e deste modo evitam mil desgostos, mil de-sordens, que sucedem no curso da vida por não poderestar só um instante, como vemos fazem aqueles quenão tiveram uma educação ingénua, e que vivem pelavontade, e pelo parecer dos outros: o que Horácio68

68

...........Adde quod idemNon horam tecum esse potes, non otia rectePonere, teque ipsum vitas fugitivus, & erro;Jam vino quoerens, jam somno faltere curam.Frustra; num comes atra premit sequiturque

fugacem.

II. Sertn. 7. vers III.

pinta com tanta vivacidade e elegância. E por estarazão mostrei eu a necessidade que tinham as Esco-las Portuguesas de adoptar o Poema de Camões, paraeducar a Mocidade, como se poderá ver no Prefácioda última edição feita em Paris. Entram nestes es-tudos intermédios a Lógica e a Metafísica; porqueo seu objecto é de discorrer com método e ordem;ter uma ideia clara tanto das palavras e das coisas,distinguindo e separando o que nelas há de comum,com as outras, e de particular; estas duas partes daFilosofia se reduzem a ter método e ordem em tudoo que se diz e escreve. Não se entende aqui por Ló-gica e Metafísica, aquela das Escolas; já se tem porabsurdo gastar três anos em aprendê-las. A Lógicae a Metafísica hoje explicadas por um bom Mestreé estudo de quatro meses, se se explicarem os Com-pêndios que destas ciências se tem escrito em muitaspartes da Europa.

A Física experimental entra na mesma classe; ecomo já temos na nossa Língua a obra intitulada,Re-creação Filosófica, não necessito de nomear o seuobjecto.

Estes são os conhecimentos preliminares, para en-trar nas Escolas maiores; e já estou ouvindo que tan-tas ciências confundirão o ânimo dos meninos e rapa-zes, que ou ficarão estúpidos, ou que tudo que apren-derão será tão superficialmente, que toda esta instru-ção lhe venha a ser inútil. Mas Quintiliano já respon-deu a esta dificuldade, e o nosso Martinho de Men-donça, nos seusApontamentos para a Educação deum Menino Nobre, livro tantas vezes citado: a difi-culdade não está na capacidade dos meninos; todaela residirá nos Mestres; e se dissipará, se soube-rem ensinar com método e com ordem; explicandode viva voz um compêndio de cada ciência que ensi-narem; pondo diante dos olhos, umas vezes em ma-pas, outras em tábuas cronológicas, outras em mo-delos e instrumentos, e com a inspecção das mesmascoisas que ensinarem; deste modo pergunta(n)do, ca-pacitando o auditório, e ficando ele mesmo inteiradoque compreendem, adiantará o seu ensino.

Este modo de ensinar explicando de viva voz, eperguntando pelo compêndio ou compêndios da ci-ência que aprendem os ouvintes, é o mais eficaz, paracompreenderem uma matéria inteira. Se estivésse-mos dentro da sala de um palácio, não veríamos maisque os objectos, onde se terminava a vista: mas nãoteríamos nenhuma ideia da sua grandeza, da sua pro-porção, da sua elevação; mas se estivéssemos fora,postos a uma certa distância, e em tal sítio que des-cobríssemos o frontispício, a sua elevação, contem-plando as proporções entre o corpo do palácio e dasmais partes, então é que podíamos formar juízo dasua grandeza, utilidade e majestade; não saberíamos

50 António Ribeiro Sanches

aquelas miudezas da distribuição dos aposentos, daclaridade das galerias, mas o juízo que formaríamosde todo ele seria superior ao conhecimento acanhadoque teríamos, ficando dentro.

Assim para compreender à primeira vista uma ci-ência, é necessário ver somente as suas principaispartes: explique o Mestre o que faltar naquela ins-pecção que o discípulo observa; e deste modo se evi-tará aquela confusão que se teme. Falo com expe-riência: um Menino pode por dia tomar quatro li-ções de matérias diferentes com suma utilidade dasua educação.

Em que lugar se haviam de en-sinar as ciências referidasOs Gramáticos Gregos e Romanos ensinavam namesma Escola as ciências acima: é verdade quenão tinham tanta dificuldade, como nós temos, paraaprender as Línguas em que estão as ciências es-critas; porque posto que os Romanos aprendessema Grega, mais a aprendiam pelo exercício, havendotantos Gregos misturados com os Romanos, que porregras e Dicionários. Para evitar muita desordem,gastos, bulhas literárias, e para proveito da Educaçãoda Mocidade, seria muito acertado que nas mesmasEscolas Reais, onde se aprendem a Língua Latina,Grega e a Retórica, se aprendessem as ciências re-feridas, que são como já disse aHistória Profana eSagrada, a Fabulosa, com aNatural, a Geografia,Cronologia, Astronomia, a Aritmética, Álgebra, Tri-gonometria, Lógica, Metafísica, e aFísica Experi-mental.

Estas ciências intermédias ou preparatórias, parase matricularem os estudantes nas Escolas Maiores,ou Universidade Real, podiam ensinar-se nas trêsEscolas Reais do Latim e do Grego, estabelecidaspelo Alvará de sua Majestade, em Coimbra, Lisboa eÉvora, para ficarem no lugar daquelas onde se apren-dia a Filosofia Escolástica.

Nas mais Escolas do Reino estabelecidas nas Ca-beças das Comarcas, bastaria o ensino além das Lín-guas Latina e Grega, os Princípios da Filosofia Mo-ral, a Retórica, a História e a Geografia.

Convém ao Estado que todo o Estudante queaprender Latim e Grego, fique instruído das obriga-ções de Cristão e de Cidadão, que fique instruídona História e na Geografia, que entenda a Poesia, eque saiba escrever ou na Língua Latina, ou na sua,com elegância e propriedade: porque o Estado nãosomente tem necessidade de Letrados, Jurisconsul-tos e Médicos, mas também deSecretários, deNotá-rios públicos, de Intendentes, deConselheirose As-

sessores, nos Tribunais ou Colégios que devem go-vernar a economia política e civil do Reino. Tantomais instruídos saírem estes Estudantes das Escolasreferidas, tanto melhor exercitarão os cargos em queserão empregados, e ocuparão o tempo do descansocom maior utilidade e satisfação. Todo o ponto estáque haja Mestres tão capazes, que saibam plantarno ânimo dos Discípulos destas Escolas as semen-tes destas ciências. Eles mesmos farão crescer estesprincípios pela sua aplicação, levados do gosto quecausam, quando se compreenderam clara ou distinta-mente.

Se eu não fosse obrigado, Ilustríssimo Senhor, atratar do Método de ensinar e aprender a Medicinaem obra separada, havia de tratar aqui das EscolasMaiores ou da Universidade, onde se deve ensinar aJurisprudência universal, e a Medicina, a sua forma,o lugar onde se estabeleceria, o que nela se devia en-sinar com especialidade, e com que graus Académi-cos seriam decorados os que tinham estudado comaplauso, etc. Mas como tratarei da Medicina especi-almente, então é que tratarei da forma dos Estudos daJurisprudência; e ocuparei agora aquele espaço commatéria, poderá ser, igualmente útil para o serviço dapátria que é tratar da Educação da Mocidade Nobre.

Da Educação da Fidalguia edos Fidalgos que têm Assenta-mento e Foro na Casa RealVimos acima que desde o ano de 1500 até o ano de1570, existiu o maior luxo que jamais viu Portugal.El Rei Dom Manuel o introduziu na Corte, e foi o pri-meiro que se vestiu umas vezes à Francesa e outras àFlamenga; como não teve guerra na Europa nem seuFilho, nem seu Bisneto el Rei Dom Sebastião, com asriquezas do Oriente caiu a Fidalguia no maior luxo, epor consequência naquele total esquecimento da boaeducação, que tinha ou no Paço dos Reis antigos, ouem casa de seus Pais. No tempo del Rei Dom Pedroo Justiceiro, tanto que se sabia no Paço tinha nascidoalgum filho a algum Fidalgo, mandava logo el Rei asua casa a provisão da moradia ou foro, que deixavaem poder da Mãe ou da Ama que criava o Menino;e nestes tempos se chamavam os Reis Pais de seusVassalos69. Depois crescendo o número, se ordenouque somente se usasse desta graça, com o primogé-nito; e desta resolução, veio a descair aquele amor dapátria, porque faltou a boa educação, que tinham noPaço todos os filhos dos Fidalgos com moradia.

69Manuel de Sousa Faria,Europa Portuguesa, Tom. III,Part. IV, cap. I, Pág. 215

Cartas sobre a Educação da Mocidade 51

No tempo del Rei Dom João o Segundo, lhe re-presentaram em Cortes, que ordenasse se criassemos Fidalgos no Paço, como era costume antigamente:sinal certo que se educava ali a primeira Mocidadedo Reino. Já dissemos acima que a educação da No-breza toda se reduzia a fazer o corpo robusto e for-tíssimo, o ânimo ousado e destemido; além daqueleagrado que reinava no galanteio e serviço das Senho-ras, não deixavam de instruir o ânimo com aquelespoucos conhecimentos científicos que se conheciam:somente na família do Infante Dom Henrique foi estaeducação mais considerável, porque sairam muitosdo Paço daquele famoso Príncipe, excelentementeinstruídos nas Matemáticas e boas letras, como foio Grande Albuquerque e Dom João de Castro.

«El Rei Dom Manuel, como refere Álvaro Ferreirade Vera70, aperfeiçoou os estados dos Ricos Homense Infanções, e deu a cada um em sua Casa Real o lu-gar que por sua qualidade merecia, fazendo três sor-tes de gente. No primeiro lugar pôs os Ricos Ho-mens; no segundo os Infanções; no terceiro os Ple-beus, com esta distinção na moradia: aos Filhos dosRicos Homens tomou porMoços Fidalgos com milréis de Foro71 cada mês, e alqueire e meio de cevadapor dia»; «e daqui os acrescentava aFidalgos Cava-leiros, subindo-lhe a moradia atéquatro mil réis, oque era depois de serem armados Cavaleiros, por al-gum feito honroso que faziam na guerra. Aos Filhosdos Infançõestomou porMoços da Câmara, comquatrocentos e seis réis, e três quartas de cevada pordia: e da mesma maneira lhes acrescentava a mora-dia, que a maior subia atémil e quinhentos réiscomo título deCavaleiro Fidalgo, a que hoje muitos não

70Origem da Nobreza política.Lisboa 1631, 4.o, cap. 2,pág. 3.

71O marco de prata valia, no tempo del Rei Dom Manuel,2340 réis e como os Fidalgos Cavaleiros tinham da sua mo-radia 4.000 réis por mês, e por ano 48.000 réis, e que omarco de prata amoedado vale hoje 6.000 réis, os 48.000réis daquele tempo valem hoje 91.920 réis, e como tambémrecebiam alqueire e meio de cevada por dia, contando so-mente a 120 réis por alqueire, valiam no tempo presente63.240 réis, que juntos com os 91.920 réis acima, fazia todaa soma 155.160 réis. E como também os Cavaleiros Fidal-gos tinham moradia que chegava a 1.500 réis por mês, e porano 18.000 réis, com três quartas de cevada, regulada porano também a 120 réis por alqueire, valiam pelo preço dehoje 32.400; e como os 18.000 naquele tempo, estando omarco de prata a 2.340 réis, e hoje a 6.000 réis, valem hojea soma de 61.920 réis, que juntos aos 32.400 de cevada,faziam 94.320 réis.

Juntando agora estas duas moradias de fidalgo Cavaleiroe de Cavaleiro Fidalgo numa soma e repartindo-as, achar-se-á que cada uma destas moradias vale hoje a soma de124.740 réis, soma suficiente para sustentar e educar numaEscola Militar um Moço Fidalgo.

querem subir por ficar antes no foro de moços do ser-viço, pelas mais entradas que têm na casa e serviçodo seu Rei».

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .«Os Plebeus também admitiu no seu serviço,

tomando-os por moços da Estribeira; e daqui osacrescentava a Escudeiros e Cavaleiros rasos (que éCavaleiros sem Nobreza), e os que queria que gozas-sem de alguns Privilégios se chamavam Cavaleirosconfirmados: no que havia muita ordem».

Quem quiser saber o que é a Nobreza Natural ePolítica, como se adquire e como se perde, e outrasmais propriedades, que tem a origem dos títulos emPortugal, poderá ler este excelente Autor, esquecidonos nossos tempos, e que merecia ser conhecido detodos os Nobres Portugueses, para saberem as suasobrigações. Veja-se tambémNotícias de PortugaldeManuel Severim de Faria, Discurso III, e oPrólogoàs Memórias Históricas e Genealógicas dos Grandesde Portugalpor António Caetano de Sousa. Lisboa1742.

Do referido se colige que os Reis de Portugal sem-pre tiveram especial cuidado da Educação da Fidal-guia, e que daí veio chamarem-secriados de casaReal, estendendo-se este nome por corrupção aos queservem. Enquanto houve guerras continuadas, en-quanto tinham necessidade da Fidalguia, para guer-rear e conquistar, sempre houve a Educação no Paço:acabou-se aquela urgente necessidade, e achou el ReiDom Manuel a propósito de desobrigar-se da Educa-ção, e de pagar-lhe uma certa quantia, como vimosacima, para serem educados em casa de seus Pais.Enquanto se continuaram as Conquistas da Índia, ea florescente navegação, empregavam-se neste ser-viço os Fidalgos, e não se apercebia o Estado da faltada Educação no Paço; mas no tempo del Rei DomJoão o Terceiro acabou a Conquista da África, e daÍndia; já não havia mais guerra, que para conservaro conquistado: e como as riquezas eram imensas,introduziu-se o luxo na Fidalguia, e já se apercebiao Estado da falta da sua Educação porque foi o maiorque se conheceu na Europa.

A constituição Gótica do Reino, determinava à Fi-dalguia serem guerreiros forçosamente no tempo daguerra; e acabada ela ficarem nas suas terras, e cui-darem da agricultura; não tinham outro intento notempo da paz que conservar-se vivendo do produtodas suas terras; não cultivavam para vender nem co-merciar com os frutos; e deste costume vieram asnossas Leis das Ordenações, que defendem fazer co-mércio com os grãos, vinho e azeite.

Mas tanto que os Reis tiveram mais que dar que asterras da Coroa; tanto que tiveram Comendas, Gover-nos e Cargos lucrativos, tanto nas Conquistas, como

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no Reino, logo os Fidalgos começaram a cercar osReis, e ficarem na Corte; porque pela adulação, peloagrado, e pelas artes dos Cortesãos sabiam ganhar asvontades dos Reis, não tendo aquelas ocasiões forço-sas de obrarem acções ilustres para serem premiadospor elas. Isto vemos sucedeu no tempo del Rei D.Duarte, quando ordenou que todo o Fidalgo que nãotivesse Cargo na Corte, que fosse viver nas suas ter-ras.

Logo que todos os Fidalgos fixaram a sua assis-tência na Corte no tempo da paz, logo que seus fi-lhos eram educados em suas casas, já ricas e pode-rosas pelas dádivas dos Reis em Comendas, Pensões,Governos e Cargos, necessariamente se havia de se-guir uma educação estragada, a Meninice entregadana mão das amas e de mulheres comuns, a puerí-cia entre as mãos dos Criados e dos Escravos; até otempo del Rei D. Sebastião poucos sabiam mais queler e escrever; porque já a Escola do Infante DomHenrique estava acabada; e toda a educação se redu-zia a saber os Mistérios da Fé, porque os seus Mes-tres sendo Eclesiásticos e ignorantes da obrigação deSúbdito, de Filho e de Marido, chegavam à idade daadolescência com o ânimo depravado, sem humani-dade, porque não conheciam igual; sem subordina-ção, porque eram educados por escravas e escravos;ficava aquele ânimo possuído de soberba, vanglória,sem conhecimentos da vida civil, nem com a mínimaideia do bem comum: assim degenerou aquela edu-cação do Paço na qual pelo menos aprendiam a obe-decer, na mais insolente tirania de todos aqueles comquem tratavam.

A questão agora é somente, se será do Real agradode S. Majestade continuar nesta piedosa e utilíssimaintenção, e no caso que assim determinasse, ficavaa saber que sorte de educação convinha à Fidalguiaexistente? Em que lugar devia ser educada? E quaisdeviam ser os Mestres? Discutirei estes três pontoscom a clareza que me for possível.

Que sorte de Educação con-vém à Fidalguia Portuguesaque seja útil a si e à sua Pátria?

Quem melhor conhecer a Constituição do Estado dePortugal actual, resolveria melhor esta importantequestão. Tanto quanto eu pude alcançar, por informa-ção e por leitura, acho que é Reino pelo seu sítio, en-tre três Mares, nos quais navega o comércio de todoo mundo, totalmente marítimo; bordado, pela suamaior parte do Mar Oceano com oito portos navegá-veis, ainda que alguns danificados, e que com custo

e trabalho podiam ser restaurados; que tem Ilhas eContinentes vastíssimos e riquíssimos nas três partesdo mundo conhecidas. Que por Tratados a Aliançasde Comércio e boa amizade está ligado com muitasPotências; umas que o podem ofender por mar, e umasó por terra.

Estes limitados conhecimentos determinaramlogo a quem pensar na conservação da nossa Monar-quia, que necessita de Oficiais de Mar e Terra; isto é,de um exército, e de uma frota. É certo que só entrea Nobreza se acham as pessoas mais aptas para exer-citar estes Cargos; e não necessito aqui de amontoarlugares comuns para provar o que todos sabem porexperiência. Mas ao mesmo tempo todos assentaramque a Educação que se deve dar à Nobreza e à Fidal-guia Portuguesa, deve proporcionar-se à necessidadee ao estado actual da sua pátria.

Antes que se usasse da pólvora, e que se fortifi-cassem as Praças pelas Leis da Geometria e Trigo-nometria, não necessitava o General do exercício dasMatemáticas, e de algumas partes da Física: a força,o ânimo ousado e a valentia já não são bastantes paravencer, como quando fazíamos a guerra expulsandoos Mouros da pátria. A Arte da guerra hoje é ciên-cia fundada em princípios que se aprendem e devemaprender, antes que se veja o inimigo: necessita deestudo, de aplicação, de atenção e reflexão; que oGuerreiro tome a pena e saiba também calcular e es-crever, como é obrigado combater com a espada ecom o espontão: o verdadeiro Guerreiro é hoje ummisto de homem de letras e de soldado. Deste modoadquiriu nos nossos tempos imortal fama o Marechalde Saxe, e por este caminho vai com igual glória elRei da Prússia.

Mas um Almirante, ou um Capitão de Mar eGuerra não somente deve ter toda a instrução de quenecessita um General, mas ainda aquela de mandarno mar: não somente necessita de instrução das Ma-temáticas, Astronomia e Ciência Náutica, mas demuitos e muitos conhecimentos políticos para cum-prir os seus importantes Cargos. Deste modo neces-sitam os que hão-de governar um Regimento, ou umExército, um Navio de Guerra, ou uma armada, tertal educação, que sejam capazes de obrarem acçõesilustres, e de as escrever, como fez Xenofonte, César,e o Marechal de Saxe nos nossos tempos, e outrosmuitos dignos destes importantes Cargos.

No tempo de Filipe Quarto apresentaram aoConde Duque de Olivares um retrato do Estado Po-lítico de Castela, e das Causas da sua decadência72:e uma das principais que alega, se reduz à seguinte

72Indisposizione generalle della Monarchia di Spagna,sue cause e remedi. Esta representação se lê no fim daHis-tória della Desunione del Regno di Portogallo dalla Carona

Cartas sobre a Educação da Mocidade 53

discussão; que a Causa da decadência daquela Mo-narquia foi que o valor e a força não fora condu-zida nem ajudada pela ciência, nem pela arte; queconfiando-se na riqueza da Monarquia, que despre-zaram os Tratados de Alianças: e que nas Embai-xadas empregavam os Senhores mais autorizados ericos, sem atenção alguma da sua capacidade; quetomavam por Secretários aqueles homens que esta-vam antes ao seu serviço, ou debaixo da sua protec-ção, sem dependência alguma da Corte, e ignorantesdos negócios políticos; que deste modo, tudo o quese tratou com as Potências Estrangeiras, foi com pre-juízo do Reino, como se experimenta nos Tratados depaz, e de comércio, e nos regramentos dos Correios,e outras estipulações públicas: que semelhantes Se-cretários deviam ser educados conforme pedia o seuemprego; porque estes são aqueles que põem em or-dem os despachos, e tudo aquilo que o Embaixadorou o Enviado considera ou nota ser necessário sair daSecretaria; e que do bem ordenado, ou bem escrito, éque depende muito frequentemente o feliz sucesso.

O Duque de Lorena, Generalíssimo dos Exérci-tos do Imperador Leopoldo73, representou a este Mo-narca que não podia subsistir aquele Império por faltada Educação da Nobreza, sendo incapaz de servir osCargos públicos, ou na guerra ou em tempo de paz; eque para ocorrer à total ruína do Estado, que propu-nha uma Escola que se devia erigir a propósito parasatisfazer esta necessidade.

O Historiador Conestagio74 relatando a desordeme a pobreza em que estava o Reino antes da infelizexpedição del Rei Dom Sebastião para África, dizque nunca Portugal fora tão feliz, que tivesse um ho-mem dotado de tanta capacidade e inteligência quesoubesse governar as rendas Reais: porque o Cargode Veador da fazenda se dava sempre por favor, epara gratificar os Cortesãos, sem atenderem a ne-nhum merecimento; e por essa causa, não havendonem cuidado, nem conhecimento daquele emprego,que todos os rendimentos se gastavam nos saláriosdos Ministros, nos dos Magistrados e dos Governa-dores; que o Estado estava tão pobre que os Eclesiás-ticos pagaram então cento e cinquenta mil ducados;e os Cristãos novos duzentos e vinte cinco mil, com

di Castiglia, dal Dottore Gio. Bapt. Birago. Amsterdam,1647, 8.o.

73Testament Politique, da Edição de Leipsig, e não da-quela de Paris 175... (sic).

74Hieron. Conestagii (alguns dizem que João da SilvaConde de Portalegre fora o A. verdadeiro desta História)de Portugalliæ & Castellæ Conjunctione, Tom. II,Hispan.Illustrat. Tradução da Língua Italiana na Latina, page 1066& 1070.

promessa que se fossem presos pela Inquisição quenão seriam os seus bens confiscados.

Do referido se vê a necessidade que tem o Reinoda Educação da Fidalguia, não só nas letras humanas,mas também na Política e nas Matemáticas, para ser-vir a sua pátria, nos cargos da guerra, e nos da paz;e que por faltar semelhante Educação, chegaram tan-tas Monarquias da Europa àquela decadência desdeo ano de 1500, que parece impossível relevar-se, senão se reformar esta omissão tão considerável.

Continua a mesma matéria. Em quelugar devia ser educada a Fidalguia eNobreza de Portugal

Todos reprovaram o ensino da Mocidade, que viveem casa de seus Pais, e que vão duas vezes por dia aaprender nas Escolas públicas. Já vimos acima queeste modo de aprender é o mais prejudicial; e comoé notório a cada um, que aprendeu assim, este dano,não necessito outra vez repetir o que mostrei acima.

Milhares de tratados se têm impresso da Educa-ção doméstica, e o mais excelente, a meu ver, é ode Martinho de Mendonça e Pina, que citei acima:esta educação pode fazer um rapaz um pio Cristão;poderá ser instruído naqueles conhecimentos que de-pendem da simples memória, mas sempre lhe faltaráa emulação, que eleva o juízo, para se adiantar aosseus iguais; sempre lhe faltará a imitação, pelo qualse formam as ideias mais completas das acções edas obras dos Mestres e Governadores públicos, quesempre influem no ânimo muito mais, do que tudo oque disser ou obrar o Mestre doméstico; deste modoficará sempre o natural destes meninos acanhado eencolhido, faltando-lhe o trato e o conhecimento davida civil; quando acabam aqueles estudos domésti-cos, ou ficam ignorantes, ou nos costumes da vidacivil meninos, ou com o ânimo depravado; felicidadegrande será que não fiquem estragados os costumes,pela companhia dos Criados e dos Escravos: se osPais foram tão cautelosos que evitaram este ordinárioprecipício, caiem em outro, tão contrário ao bem co-mum, como a pedra dos bons costumes, a sua cons-ciência e a sua conservação; ficam estúpidos, cheiosde vaidade, não conhecem por superior mais que seusPais, porque não têm a mínima ideia da subordinaçãoque deve ter como Súbdito e como Cristão.

Desta origem provém que a Nobreza e Fidalguiaé hoje empregada nos cargos e nos governos, quandochega àquela idade, onde começam a descair as for-ças, e a constituição com achaques. Na idade dequinze ou vinte anos, como a sua educação foi do-méstica, tem da vida civil tanto conhecimento como

54 António Ribeiro Sanches

um menino: entra, como dizem, no mundo; e à suacusta, e por muitos anos adquiriu alguma experiên-cia, e essa lhe serve de toda a instrução para servira sua pátria: mas não é conhecida a sua capacidade,que da idade de quarenta anos; então é que o Sobe-rano o emprega nos cargos públicos, e às vezes deidade mais crescida; mas nesta idade ou as forças co-meçam a enfraquecer ou a constituição; daqui é queos Estados hoje onde a Criação é doméstica se ser-vem sempre de pessoas a quem falta aquele vigor,altivas, ambição, e ânimo da adolescência e da idadeviril.

Admiramo-nos hoje quando lemos que Pompeu eCipião Africano comandavam exércitos de idade devinte e um anos; e que os Romanos dessem os Car-gos de Questor, de Pretor, de Procônsul à Mocidadeda Nobreza Romana; mas o que mais devíamos ad-mirar é que naquela primeira idade obravam acçõestão ilustres, que se observam na história: na verdadeque de vinte e cinco anos, até trinta ou quarenta, estáo corpo mais apto para obrar as mais elevadas ac-ções; e por isso me parece, quando comparo a Repú-blica Romana com os Reinos dos nossos tempos, quenestes, aqueles que os servem, todos são velhos e de-crépitos, e que naquela República todos eram Varõesnas armas e velhos no Concelho.

Mas se quisermos saber a causa desta imensa de-sigualdade, inquiramos a Educação da Nobreza Ro-mana, e logo parará a nossa admiração. O seu ensino,no tempo da puerícia, se reduzia à Filosofia Moral etrato da vida, que lhes ensinavam os Filósofos; masesta instrução era prática; entravam no Senado comseus Pais ou Tutores, como ouvintes; ali ouviam pra-ticar o que aprendiam em casa; de tal modo que umMenino da idade de dezassete anos estava instruídona eloquência, na arte de saber escrever, porque sabiafalar, nas Leis Pátrias, no Sacerdócio, nas Leis Civise Políticas, que pela prática aprendiam; e vendo di-ante de si aqueles Senadores, um que tinha triunfado,outro que tinha ganhado um Reino, outro que tinhadecretado leis como Cônsul, enchia-se o coração da-queles ilustres objectos, para imitar aquelas acçõesordenando, mandando e obrando. Assim vemos queCésar de dezassete anos orava com tanto aplauso, queentrou no cargo do Sacerdócio. Lemos a Educaçãode Marco Aurélio Imperador, que ele mesmo relatalogo no princípio das suas obras, que são os pensa-mentos da sua vida.

Nos nossos tempos el Rei da Dinamarca ordenouque em cada Tribunal assistisse um certo número deMoços Nobres, somente para serem ouvintes, e paraaprenderem ali pela prática as Leis Pátrias, e o que éa vida Civil; os Magistrados têm poder de lhes fa-zerem perguntas de tempo em tempo para obrigar

esta Mocidade a atenderem ao que ouvem. O maiorproveito que retiraria o Estado desta Educação, seriaque pensasse e que reflectisse maduramente, e quenão passasse a vida naquela variedade, e encadea-mento de divertimentos, caças, jogos, danças, bailese outros semelhantes. Nenhuma coisa poderia fixara volatilidade daquela idade, do que destiná-la, logoque estivesse instruída, a assistir nos Tribunais comoouvintes, e de responderem por escrito ou de pala-vra, quando fossem perguntados pelos Magistrados:além de que lhes não ficaria tanto tempo para empre-gar naquela vida aérea, se acostumariam a pensar ea reflectir, que é a maior dificuldade que se encontranaquela idade, e o maior bem que se pode alcançarna sua educação.

Sem que eu o diga, todos verão que se se tomaremtais meios com esta mocidade, que poderá ser em-pregada nos cargos e postos do Estado, de idade devinte, e de vinte e cinco anos, e que evitaria o Reinoser servido, ou por velhos, ou por achacados nos car-gos que necessitam vigiar, andar a Cavalo, navegar,inquirir, ver, observar, e despachar.

Parece-me que vistos os notáveis inconvenientesda Educação doméstica, e das Escolas ordinárias, quenão fica outro modo para educar a Nobreza e a Fi-dalguia, do que aprender em Sociedade, ou em Co-légios; e como não é coisa nova hoje na Europa estasorte de ensino, com o título deCorpo de Cadetes, ouEscola Militar, ou Colégio dos Nobres, atrevo-me apropor à minha Pátria esta sorte de Colégios, não so-mente pela suma utilidade que tirará desta Educaçãoa Nobreza, mas sobretudo, o Estado e todo o povo.

O que são as Escolas Militares

É uma Escola Militar um Corpo de Guarda, onde ossoldados são os meninos e moços Nobres ou Fidal-gos: estes são os que fazem as sentinelas e as rondasdentro da Escola: ali se exercitam na Arte Militar;e toda ela é governada por esta disciplina; e aqueletempo que os Soldados nos Corpos de Guarda conso-mem a jogar, a fumar tabaco, e a zombar, ocupam osmoços Nobres destas Escolas nos estudos ingénuos,que são aqueles que servem para servir e mandar nasua Pátria.

No ano 1731, o Feld-Marechal ou Capitão Gene-ral Conde de Munich no serviço do Império da Rús-sia, sendo obrigado a buscar Oficiais Majores portoda a Europa pela falta que deles havia na Rússia,propôs à Imperatriz Anna Juanowna um Colégio Mi-litar ou Escola para se educarem nelaquatrocentosmeninos ou moços Nobres, destinados a servir nosexércitos e nos Cargos civis. Esta Escola abriu na-

Cartas sobre a Educação da Mocidade 55

quele tempo, e continua ainda hoje, e com tanta uti-lidade daquele Império que desde o ano 1740, rarís-simo é o Oficial Estrangeiro que se acha alistado noserviço daquele Império.

Foi fácil a este Grande General achar estudantespara entrarem naquela Escola; porque por uma lei dePedro Primeiro, Imperador daquele Império no ano1707, todos os filhos dos Nobres chegados à idadede treze anos são obrigados a virem assentar praçana Vedoria de Guerra, ou na Vedoria da Marinha, Leique se observa ainda inviolávelmente: e tanto queuma vez está este menino matriculado naquelas ve-dorias não pode entrar em Convento algum de Fra-des, sem licença especial do Soberano; (porque naRússia nenhum Nobre entra no Estado de clérigo, porserem estes tirados somente das famílias do povo).Por Director desta Escola ficou o mesmo Conde deMunich, que procurou todos os Oficiais Militares dastropas de Prússia, e os Mestres para as Ciências, eLínguas, de toda a Alemanha, e dos Cantões Suis-sos.

No ano 1742 pouco mais ou menos, S. MajestadeImperial a Rainha da Hungria, ou por lembrar-se doprojecto do Duque de Lorena acima referido, ou pelasua alta inteligência, instituiu em Viena de Áustriao Colégio Teresiano para o mesmo fim, mas muitopoucos aprovaram a Escola dos Jesuítas por Mestres,e que se admitissem nele Pensionários; e por estacausa, ou pela pouca disposição, não se tem vistoaté agora daquele magnífico instituto aquela utili-dade que se esperava.

No ano 1751 estabeleceu-se em Paris a EscolaReal Militar: a sua instituição é para educar-se nelaquinhentos Gentis homens à custa Real; os Militaressão os Mestres para ensinar a arte da guerra, e os se-culares Homens de Letras as artes e as ciências: mascomo naEnciclopédiaimpressa em Paris, se achauma exacta descrição desta famosa Escola no artí-culo École Militaire, tome cinquiéme, não necessitoentrar aqui em maior explicação; e só farei algumasobservações sobre o que se podia imitar de louvávelem Portugal desta instituição.

Na Dinamarca, Suécia e Prússia, se instituiram econservam Escolas Militares Semelhantes, instituí-das depois de poucos anos; e não falo da Escola Realde Madrid, porque parece que a sua destinação não épara que os seus Estudantes sirvam o Estado.

Parece que Portugal está hoje quase obrigado, nãosó a fundar uma Escola Militar, mas de preferi-laa todos os estabelecimentos literários, que sustentacom tão excessivos gastos. O que se ensina e tem en-sinado até agora neles, é para chegar a ser Sacerdotee Jurisconsulto; e como já vimos acima, não tem aNobreza ensino algum para servir a sua pátria, em

tempos de paz nem de guerra. Proporei aqui o queachar mais necessário, para estabelecer esta Escola;e no caso que seja aceite o meu trabalho e o desejoda execução, suprirei as omissões, que de propósitocometo por não ser prolixo com a maior exactidão,se me for ordenado.

Propõe-se uma Escola RealPortuguesa para ser nela edu-cada a Nobreza e a Fidalguia

Economia Interior

Quando se compreender o intento com que se pro-põe esta Escola, poderá ser que se louve a sorte daeconomia interior que há-de servir para consegui-lo.É educar súbditos amantes da Pátria, obedientes àsLeis, e ao seu Rei; inteligentes para mandar, e virtu-osos para serem úteis a si, e a todos com quem devemtratar.

Será fácil conceber a quem estiver integrado desteintento, que esta Escola Real deve ficar arrastadatanto da Corte, que nem Estudantes nem os Mestresestejam distraídos pelas visitas dos parentes e ami-gos, e muito menos pelos divertimentos de uma ca-pital. Seria fácil achar-se edifício já feito, ou dois outrês edifícios, juntos, reparados, e concertados parase estabelecer esta escola; deixando para melhor oca-sião fazer um a propósito, ou ocupar algum que apre-sentar o acaso.

1. Que não habitaria dentro deste edifício Gover-nador, Mestre, ou outro qualquer empregado noserviço desta Escola, semser casado.

2. Que não seria permitido a nenhum estudanteser criado em particular.

3. Que para o serviço dos mesmos Estudantes,quer dizer, varrer os seus quartos, limpá-los,fazer-lhe a cama, e outros serviços domésticos,haveria uma mulher de idade de cinquenta anospara diante, destinada a servir a cada cinco, detal modo que nenhum destes Educandos se con-siderasse que tinha criado ou criada em particu-lar75.

75Bem se pode considerar a necessidade da observância

destas disposições. Evitar os crimes que são contra a Re-

ligião, e que pelas nossas ordenações são castigados, é da

obrigação do Legislador: mas neste caso, sendo el Rei o Pai

desta Educação da Nobreza, deve haver então mais efectiva

providência; todos entendem esta matéria e os males que

56 António Ribeiro Sanches

4. Todos os quartos, salas, câmaras, tanto do Go-vernadar, Oficiais, Mestres, como dos educan-dos, seriam adornados da mesma sorte de al-faias sem distinção de pessoa76, e todas elas de-viam ser feitas no Reino.

5. Tudo o que servisse de alimento e de bebidanesta Escola Real devia ser produção do Reino,e dos domínios de S. Majestade, como tambémtudo aquilo que vestissem, calçassem; aindamesmo as espingardas, espadas, bandoleiras, etudo o que servisse no manejo, e na cozinha77.

6. Como estes educandos haviam de estar alista-dos em companhias cada uma devinte, ou vintee quatro, governadas pela disciplina militar, jáse vê que devem vestir-se com uniformes; e domesmo modo os Oficiais, e Inspectores, cadaqual com distinção do seu grau78.

7. Todos estes educandos deviam comer em co-munidade, e não ser-lhe permitido nenhumasorte de alimento no seu quarto79.

8. De sol nascido até sol posto, sempre haveráuma companhia de educandos de Guarda: se-

resultam da dissolução da Mocidade; permite a Disciplina

Eclesiástica aos Párocos terem amas de cinquenta anos em

suas casas; e podia a Escola Militar imitar esta instituição:

no livro I, tit. 94 das Orden.São obrigados os que têm ofí-

cio de julgar e de escrever serem casados: e quanto mais

serão obrigados os que hão-de governar e ensinar a Moci-

dade?76No intento que aprendam os Educandos a viver com

o necessário, e não haver distinção nesta matéria naquela

Escola, e também para que aprendam a amar a sua pátria, e

não ficarem desde meninice imbebidos que tudo o que não

é estrangeiro é mau e mal feito.77Era uma Lei dos antigos Reis da Pérsia e do Egipto.

Só deste modo mostra um patriota que ama a sua pátria, e

que faz estimação dela: quem assim não for educado nem

saberá o que é o bem comum, nem as obrigações com que

nasceu. Estes dois artículos se observam à risca na Escola

Militar de Paris.78No colégio Teresiano de Viena cada educando se veste

como quer: a distinção entre os mesmos Sócios, todos filhos

adoptivos do Estudo faz perder o objecto da instituição.79É para exercitar a lei deste Instituto, «Que ninguém há-

de viver por sua vontade, mas conforme à Lei».

rão os que estarão de sentinela dentro do edifí-cio nos lugares que o Comandante achar a pro-pósito. E como para a guarda de todo o edifíciodeve haver uma companhia de Soldados tiradado regimento da guarnição mais chegada, estesserão os que estarão de sentinela às portas deentrada e saída dia e noite.

9. A nenhum destes educandos seria permitidoentrar no quarto ou câmara dos seus colegas;nem dos Oficiais de guerra, Mestres, ou Ofici-ais de economia sob pena de rigorosa prisão.

10. Ao tenente del Rei, ou Comandante desta Es-cola Real, Intendente Director dos Estudos,Oficiais de Guerra, e Mestres, e outros Oficiaiseconómicos lhes seria dada a cada um sua par-ticular instrução para exercitarem o seu cargo.

11. Não seria permitido aos Mestres, nem aos Ofi-ciais de Guerra castigar com castigo corporal:só poderiam mandar prender; e dar por escritoa falta, ou culpa do educando ao Conselho eco-nómico da Escola, que se teria uma, ou duas ve-zes por semana, no qual se determinaria o cas-tigo. O Maior que sente a Nobreza é adesonra:o ser condenado a não frequentar as classes: oestar de pé em parada sem espada, e sem espin-garda à vista dos Mestres e de seus iguais, ser-viria da mais eficaz correcção80. Veja-se a ditaEnciclopédia tom. v, no lugar citado acima.

Em que idade deviam entrar os

Educandos na Escola Real Mi-

litar?

Se os educandos entrassem nesta Escola na única in-tenção de sairem instruídos nas línguas e nas ciên-cias, nenhum deveria entrar antes da idade dedoze,ou quatorzeanos. Mas o intento principal é que oseu ânimo saia destas escolas também informado navirtude, no amor da Pátria, e na obediência às Leis;

80O castigo que dão os quatro Colégios Maiores de Sala-

manca aos Noviços, (que todos são Nobres), é ordenar-lhes

que fiquem de pé arrimados aos lados das portas dos Claus-

tros, e às vezes por um dia inteiro, à vista de todos os que

entram e saem; e por experiência se sabe que tem produzido

este castigo admiráveis mudanças nos costumes.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 57

que pela imitação da boa companhia, e pela práticadas boas acções, fiquem instruídos nestas tão impor-tantes obrigações; pelo que bem poderão entrar oseducandos desde a idade deoito ou noveanos, e sefosse possível ainda mais cedo pelas razões seguin-tes.

Tanto que as riquezas da África e do Oriente entra-ram em Portugal, logo começou a mostrar-se o luxonos vestidos, comidas, e mais comodidades estran-geiras; começou a esfriar-se o amor das famílias epor último da Pátria. El Rei Dom João o Terceiro,foi o último Rei que foi criado com ama Nobre; e jáseus Filhos, nem seu Neto el Rei D. Sebastião, tive-ram amas mais que da classe plebeia; indício certoque as Senhoras não criavam já seus filhos, comonos tempos anteriores. Introduziu-se este destruitivocostume da raça humana, do amor filial e dos bonscostumes; e apesar de tanto sermão, missões, e prá-ticas espirituais, nenhuma Senhora quer sacrificar asua formosura à criação de seus filhos, que hão-deser a causa da felicidade, ou dos infortúnios do restoda sua vida. Seria loucura persuadir o que ninguémquer abraçar81.

Consequências por não cria-

rem as Mães seus filhos

Têm para si estas Mães, que não criam, que conser-varão por mais tempo a formosura, e que dilatarão avida com mais vigor e forças, e que perderiam a suaboa constituição, criando por dezoito meses ou doisanos. Mas é engano manifesto; e o contrário se sabepela experiência, e pela boa Física.

A mulher que pariu, e que não cria o seu parto,em pouco tempo vem a conceber de novo: a pre-nhez de nove meses é uma enfermidade, que enfra-quece mais o corpo do que criar aos peitos por ano emeio: e como concebem antes que as partes da ge-ração adquirissem pelo repouso a sua natural con-sistência, sucede que estas Senhoras abortam maisfrequentemente: enfermidade tão considerável, quemuitas ou perdem a vida, ou ficam achacadas, per-dendo em poucos anos o ídolo da sua beleza, ficandofrustradas do seu intento, e expostas a viverem por

81 . . .Desperat tractata nitescere posse, relinquit et quæ.

Horat.de Art. Poet.v. 150.

toda a vida mil desgostos e pesares. A mulher quecria o seu parto fortifica o seu corpo; porque a natu-reza inclinando-se a lançar para os peitos muita partedos alimentos, nesse mesmo tempo as partes da ge-ração se limpam dos humores que estiveram detidospor nove mezes, e limpando-se cada dia adquirem oseu vigor natural; e deste modo a mulher que cria oseu parto, e que o sustenta só com o seu leite por umano, não concebe, que dificilmente; se concebem deantes, é por que não dão leite na quantidade neces-sária, temendo estas Mães e Amas enfraquecer-se, oque é engano manifesto.

Este o mal que causa às Mães não criarem seusfilhos, vejamos agora os danos a que estão expostosos partos viventes e ainda os mais vivazes. A mu-lher que concebeu dentro do ano em que pariu, nãodeu tempo para que as partes da geração adquiris-sem aquele vigor natural, que lhe é natural: a proleconcebida não terá tanto espaço para se estender; fi-cará mais fraco, porque o lugar onde vai crescendoestá relaxado, e fatigado pela prenhez, e parto ante-cendente: daqui é que sairá a luz com menos vigor ecom menos esforço para crescer. E será esta a causaque nos nossos séculos a espécie humana é mais pe-quena e mais fraca, que nos séculos anteriores? pelomenos parece ser uma causa desta pequenez.

Até agora os danos que sofrem as Mães e os seuspartos no corpo; mas os mais consideráveis e lamen-táveis são aqueles que se imprimem no ânimo dascrianças criadas por amas. Se fossemos nascidospara viver nos desertos da África, ou nos bosquesda América, pouco importava que as amas imprimis-sem no nosso ânimo aquelas ideias de terror, feiti-ços, de feiticeiras, de duendes, de crueldade, e devingança; mas somos nascidos em sociedade civil,e cristã; aquelas ideias que nos dão as amas são des-trutivas de tudo o que devemos crer, e obrar: ficamaquelas crianças expostas ao ensino de mulheres ig-norantes, supersticiosas; são os primeiros Mestres dalíngua, dos desejos, dos apetites, e das paixões de-pravadas. Chegou o menino a falar, já está cercadode duas ou três mulheres, mais ignorantes, mais su-persticiosas, do que a ama; por que estas são maisvelhas, e sabem mais destruir aquela primeira inteli-gência do menino; chega a idade de caminhar, já temseu mocinho, ordinariamente escravo, e como forampelas Mães criados por tais amas, e velhas, são osterceiros Mestres até à idade de seis ou sete anos: ese o mau exemplo do Pai e da Mãe põem o selo a estaeducação fica o menino embebido nestes detestáveisprincípios, que muito dificilmente os melhores Mes-tres podem arrancar aqueles vícios pelo discurso daidade pueril.

Será impossível introduzir-se a boa educação na

58 António Ribeiro Sanches

Fidalguia Portuguesa enquanto não houver um Co-légio, ou Recolhimento, quero dizer uma Escolacom clausura para se educarem ali as meninas Fi-dalgas desde a mais tenra idade; porque por últimoas Mães, e o sexo femenino são os primeiros Mestresdo nosso; todas as primeiras ideias que temos, pro-vêm da criação que temos das mães, amas, e aias; ese estas forem bem educadas nos conhecimentos daverdadeira Religião, da vida civil, e das nossas obri-gações, reduzindo todo o ensino destas meninas Fi-dalgas à Geografia, à História Sagrada e profana, e aotrabalho de mãos senhoril, que se emprega no risco,bordar, pintar, e estofar, não perderiam tanto tempoem ler novelas amorosas, versos, que nem todos sãosagrados: e em outros passatempos, onde o ânimonão só se dissipa, mas às vezes se corrompe; mas opior desta vida assim empregada é que se comunicaaos filhos, aos irmãos, e aos maridos. Daqui vem,que sendo na mesma Nação, da mesma família, e damesma casa, estão introduzidas duas sortes de língua,ou modos de falar, a conversação que se deve ter comas senhoras, não há-de ser sobre matéria grave, séria;estas conversações judiciosas ficam reservadas paraalgum velho, ou para algum notado de extravagante:e assim sucede que ficam as Senhoras por toda a vida(ordinariamente) meninas no modo de pensar; e comtão miseráveis princípios vêm elas, as suas amas, assuas aias, e donas, a serem os Mestres daqueles des-tinados a servir os Reis.

Não me acuse V. Ilustríssima, que saí fora do in-tento que lhe prometi. Achei que tratar da educa-ção que deviam ter meninas Nobres e Fidalgas mere-cia a maior atenção porque por último vêm a ser osprimeiros Mestres de seus filhos, irmãos e maridos.V. Ilustríssima sabe muito melhor do que eu, aque-les monumentos que temos na História Romana, etambém na nossa, de tantas Mães que por criarem eensinarem seus filhos foram as que salvaram a Pá-tria, e a ilustração: houve em Roma muitas Corné-lias, como em Portugal muitas Felipas de Vilhena.Mas naquele tempo ainda o luxo ou a dissolução nãose tinha apoderado do ânimo Português, porque asriquezas não eram tão apetecidas. A conexão quetem a educação da Mocidade Nobre que prometi a V.Ilustríssima, me obriga a ponderar, se não seria maisútil para a conservação e aumento da Religião Cató-lica, transformar-se tantos Conventos de Freiras e dasOrdens, principalmente Militares sem exercício al-gum da sua destinação, nestes estabelecimentos queproponho, tanto para a Mocidade Nobre Masculina,como Feminina? Com o exemplo das educandas, ouFilles de Saint Cyr, fundação perto de Versailles, ecom o da Escola Real Militar, se poderiam fundar noReino outros ainda mais vantajosos, para a mesma

Nobreza, e para conservação e aumento da Religiãoe do Reino. Mas espero ainda ver nos meus dias esta-belecimentos semelhantes em tudo, ou em parte, quesatisfaçam todo o meu desejo.

Dos Mestres da Escola Real

Militar para a Arte da Guerra

e das Ciências

Ainda que naEnciclopédiacitada, no artículoEscolaMilitar se contém o que devem aprender os Educan-dos da Escola Militar, julguei a propósito aplicar oque contém de útil à Escola proposta em Portugal;sendo essa a razão, que me move a notar o que sedeve seguir ou evitar, deixando para os que a diri-girem entrar nas particularidades do ensino, que sócom a experiência e com o tempo se pode fixar umaLei constante e universal; bem entendido que subsis-tam as mesmas circunstâncias.

O primeiro e quotidiano ensino desta Escola deveser aReligião, para cumprirmos a obrigação de Cris-tão: esta Escola devia considerar-se como uma Pa-róquia debaixo da Jurisdição imediata do Ordinárioque apresentaria o Pároco e um ou dois Vigários, nãosó para administrar os Sacramentos, mas para ins-truir nos Domingos e dias de Festa na Religião: massem Novenas, Irmandades, Confrarias, e outras Ins-tituições, que não são essenciais à Religião Católica:este mesmo Pároco e Vigários, já se sabe que incul-carão não só o que são obrigados a ensinar, mas a se-rem os melhores Súbditos, porque são os mais bempremiados do Estado.

A segunda sorte de Mestres, seriam os Militares etodos aqueles que ensinarão os exercícios corporais,para fortificar o corpo, fazê-lo ágil e endurecido aotrabalho e à fadiga que requer a guerra. É necessárioconsiderar-se em Portugal se acharão Oficiais Milita-res, que ensinem o manejo dasarmas, asEvoluçõese aTáctica: é necessário ponderar qual sorte de Ofi-ciais devem ser preferidos para ensinar nesta Escola,se os Estrangeiros, se os Nacionais? Parece que ofim e o principal objecto desta Escola deve ser, «Quea Nobreza e a Fidalguia fiquem tão bem instruídas, etão bem morigeradas que obedeçam às Leis Pátrias, àsubordinação dos Maiores, e que percam aquela ideiaque devem ser premiadas por descenderem de tal outal causa: e que fiquem no hábito de pensarem, quesó pelo seu merecimento chegarão aos postos e àshonras a que aspira a sua educação».

Cartas sobre a Educação da Mocidade 59

Se este for o intento de sua Majestade, ficará fácildecidir que devem ser preferidos os Oficiais Milita-res Estrangeiros aos Nacionais: o Oficial Português,que ensinar ou instruir na sua obrigação um MeninoFidalgo, sempre lhe mostrará uma distinção ou sub-missão, e não se atreverá a executar com ele, o quepede a disciplina Militar: esta é e deve ser cega paramandar a Nobreza, ainda da maior esfera: e destemodo parece que só os Oficiais Militares Estrangei-ros podiam cabalmente satisfazer esta tão essencialparte do ensino que se pretende.

Seis até oito Oficiais Maiores, como, por exemplo,um Maior, um Vice-Maior, três ou quatro Capitães,e outros tantos Tenentes Estrangeiros seriam bastan-tes; porque o Comandante, ou Tenente del Rei, a cujocargo estaria a dita Escola, sendo Oficial Geral deviaser Nacional, e dos mesmos educandos podiam sairos Sargentos de número, de supra, os Cabos de es-quadra, etc. e por muitas considerações que não per-tencem aqui, deviam ser estes Estrangeiros da NaçãoSuiça, não sendo obstáculo para este efeito a Reli-gião Protestante que seguem aqueles Republicanospela maior parte.

O dia da quinta feira seria o destinado inteira-mente para exercício militar, omanejo da Espin-garda, as Evoluções Militares e a Táctica.

Acima fica proposto que cada companhia cons-taria devinte ou vinte e quatroEducandos, o quese deve entender no princípio deste estabelecimento;mas podia estender-se este número até cem em cadacompanhia, e poderiam-se completar os Oficiais decada uma delas, como Alferes e Tenentes com Ofici-ais Educandos.

Seria útil que o resto dos Mestres, para ensinartodos os exercícios do corpo, como sãoa dança, aesgrima, montar a cavalo e nadar, fossem Portugue-ses, com aquelas qualidades necessárias para ensinar;estes exercícios seriam quotidianos e distribuídos notempo que indicaremos abaixo, quando tratarmos dainstrução nas Línguas e Ciências.

Os Mestres para ensinar aLíngua Castelhana,Francesa e Inglesa, necessariamente deviam ser Es-trangeiros; e na Escola Militar de Paris os serventessão Alemães e Italianos, para que, pelo uso, apren-dam aqueles Educandos estas Línguas, além do en-sino, que têm dos Mestres: método que se devia imi-tar.

Igualmente seria necessário haver mais MestresEstrangeiros, para ensinar as ciências, ou na LínguaFrancesa, ou na Latina, e mesmo de Religião Protes-tante, o que não sei, se será bem aceite esta proposta.Mas considerando que só entre os Alemães e os Sui-ços são bem conhecidas a Filosofia Moral, Origemdo Direito das Gentes e do Civil, a História Antiga e

a Política dos nossos tempos, ninguém duvidará es-colher os Homens doutos destas Nações, para esteensino.

Não é novo ensinarem os Protestantes nas Esco-las públicas Católicas: a Universidade de Pádua teveLentes de Matemáticas Protestantes, como foi M.Herman Suisse, Autor daForonomia. Em muitos Es-tados Católicos da Alemanha é a prática ordinária,porque cada Mestre ou Lente se contém a ensinarunicamente a Ciência que professa, e como os Edu-candos serão instruídos cada dia pelos Eclesiásticosda mesma Escola, e pelos Mestres Portugueses aomesmo tempo, não se poderá temer com razão, que oensino dos Estrangeiros possa prejudicar a Educaçãono que toca à Religião, nem à santidade dos costu-mes.

As leis da economia interior desta Escola, e a suaexacta observância, as instruções que cada Mestrehavia de receber, quando entrasse no seu cargo, comjuramento de as observar, conforme à sua Religião,seria o método efectivo da boa ordem e da utilidadedesta Escola. Porque como toda ela devia dependerimediatamente de S. Majestade, e ficar na dependên-cia do Secretário do Estado, por o Governo interiordo Reino, seria muito fácil obviar a qualquer desor-dem, e executar tudo o que estivesse decretado.

Das Línguas e Ciências que se

deviam ensinar nesta Escola e

em que tempo?

Nos cinco dias, vem a saber, quarta-feira, sexta-feira,e sábado poderiam estes Educandos ocupar-se emvinte lições.

Cinco lições de Gramática da sua própria língua;escrevê-la e compôr nela com propriedade e elegân-cia; a língua Latina, Castelhana, Francesa e Inglesa.

Três lições de Aritmética, Geometria, Álgebra,Trigonometria, Secções cónicas, etc..

Três lições de Geografia, História profana, sa-grada, e militar.

Duasou trêsdo Risco, Fortificação, Arquitecturamilitar, naval, civil, com os instrumentos e modelosnecessários para aprender estas Ciências.

Duasde Hidrografia, Náutica, com os instrumen-tos.

Cinco dos exercícios corporais: dança, esgrimir,manejo da espingarda, montar a cavalo, e nadar.

60 António Ribeiro Sanches

Já se vê que ao passo que os educandos souberema sua língua, a Latina, e a Francesa, a Geografia, aCronologia, e os Elementos da História, que devempassar a outras classes onde se ensinarão as ciênciasque dependem destes conhecimentos. Além das re-feridas necessariamente se deviam ensinar:

* A Filosofia Moral por teoria e prática:

* O Direito das Gentes, os Princípios do DireitoCivil, Político e Pátrio, que deviam ser as nos-sas Ordenações reformadas, à imitação daque-las de Turim publicadas e decretadas por VictorAmadeo no ano de 1721 e 1724: segunda-feira,terça-feira, poderiam estes Educandos

* A Economia Política do Estado, isto é o co-nhecimento da Agricultura universal: a Nave-gação, e o Comércio nos Mares conhecidos.

Pode-se duvidar com razão se todos os educandosdevem aprender sem distinção a Língua Latina, e asCiências mais elevadas. É certo que devia haver ex-cepção nesta matéria; e conformar o ensino ao génio,inclinação e engenho dos educandos; sem embargodesta precaução todos seriam obrigados a aprendersem distinção o seguinte:

* Saber escrever a sua língua com propriedade, ecom a mesma falar a Castelhana (de que injus-tamente fazemos pouco caso), a Francesa, e aInglesa.

* A Geografia, sem a qual não saberemos nemainda a nossa História que deviam todos sa-ber, com a de Castela, de França, Inglaterra eo principal da Eclesiástica: pelo menos aquelesDiscursos de l’ Histoire EclésiastiquedeM. l’Abbé de Fleury.

* A Arte de Guerra e da Náutica; esta tambémpor prática, embarcando-se em cada viagem deNavios de Guerra para as nossas Colónias al-guns destes educandos.

* Todos os Estatutos Militares, e Náuticos; masnão superficialmente, como é mau costume,mas com exactidão e inteligência.

* Todos os exercícios do corpo referidos; e sa-ber a arte de conhecer os cavalos, os seus ape-trechos, o seu sustento, e tudo o que toca aoInspector General da Cavalaria; necessária pre-caução para ser oficial perfeito nesta parte doexército: do mesmo modo se devia aprendertudo o que pertence a um navio de guerra: ena Artilharia, e Arquitectura Militar.

O que se contém naquele livrinho, que dissemosacima se está compondotocante às Obrigações, quesão os princípios da Filosofia moral prática.

No caso que o juízo de algum educando fosse tãoestúpido que não seja capaz de aprender o referido,pelas instruções Reais para as Escolas, devia ser re-jeitado desta Escola Real; e como lhe ficassem aindabraços para manejar uma espingarda, ou para defen-der o seu posto num navio de guerra, esta seria a suadestinação; servindo de utilíssimo monumento estapiedosa resolução para o Estado e para esta EscolaReal Militar; que assim sabia tratar os educandos me-nos hábeis.

Ponderação sobre a Língua

LatinaEntender e saber a Língua Latina com alguma perfei-ção não se estima ordinariamente por qualidade ne-cessária: mas é notado de má criação e é reputadopor ignorante, quem a não entende; tantos Autoresque escreveram era inútil a um Militar, a um Capi-tão de Mar, e outros Cargos públicos, não tem outrofundamento mais, do que mostrarem que têm na suaprópria Língua todas as Ciências e artes escritas, eque sabendo-a com perfeição aproveitam o tempo emaprendê-las, que perdiam certamente enquanto estu-davam o Latim; mas é engano manifesto. Quem as-sim escreve, e assim declama, sabe Língua Latina, enão se apercebe que se a não soubesse, teria milharesde ocasiões de desejar sabê-la. Notou M. de Vol-taire que Luís Quatorze, e M. Colbert seu Secretáriode Estado não sabiam Latim, e que eles promoveramas Ciências mais que os Reis, e Ministros que foramdoutos; e que M. Colbert, sendo já Ministro apren-dia esta Língua. Carlos Quinto, Henrique Terceirode França lamentaram-se muitas vezes a ignorarem:todos aqueles de quem se pode esperar tiveram boacriação, são reputados saberem latim: porque todosos Mistérios da nossa Religião, todos os actos Reli-giosos dela são nesta Língua, e será coisa lamentávelque um Gentil homem na Igreja intenda tanto comoo Vilão, ou uma criada. No trato do mundo ocorremmil ocasiões de saber Latim, uma sentença que se diznesta Língua em conversação; o título de um livro la-tinizado, ou em latim; estando nos Cargos ou civisou políticos, ou nos da guerra há milhares de oca-siões onde o Latim é necessário; de outro modo ficao Ministro, ou o General envergonhado, e confuso.Para resolver se um nosso Nobre, nesta Escola que sepropõe, devia aprender o Latim ou não, não devia ser

Cartas sobre a Educação da Mocidade 61

aquele que o sabe. Pelo contrário devia ser um Gen-til homem, ou Fidalgo com conhecimentos da vidacivil e política, que o não soubesse: estou certo queo seu voto nesta matéria seria pela afirmativa, por-que terá experimentado quanta confusão, vergonha,e mortificação lhe causou às vezes não entender oEvangelho, os textos dos Pregadores; os Hinos, asSentenças, e palavras Latinas encadeadas na leiturada Língua vulgar, e sobretudo na conversação.

Além do referido, que é a nossa Língua, achare-mos que a Castelhana, a Italiana, a Francesa, e muitaparte da Inglesa, não é mais que a Língua Latina,ou corrupta, ou com terminações diferentes: como épossível que um Português tenha uma ideia distinta,clara e completa destas palavras:Conceder, sujeitar,reservar, resolver, publicar, exceder, promover,etc.,sem saber a Língua Latina? Ainda que aprenda aGramática da nossa Língua, ainda que venham Blu-teaus novos de Irlanda a fazer-nos Dicionários82, ja-mais a saberemos bem, sem ter primeiro aprendidoo Latim, e não creio que jamais Português sem ela aescreverá rectamente, apesar das ortografias à Itali-ana que começam a vogar nas penas dos Noveleirose de quem se preza saber antes a Língua Estrangeirado que a sua própria.

Por estas razões, parece que é indispensável queesta Língua entre na educação da Mocidade Nobre:todo o ponto está que quando a aprenderem lhes nãoensinem Gramática em lugar da Língua Latina; aGramática ou se deve ensinar explicando a Línguamaterna, ou depois de saber mediocremente a La-tina; e o primeiro dia que começariam a aprenderesta, nesse mesmo começariam a traduzir ou algumEvangelho, ou os Provérbios de Salomão, por ser oLatim mais comum, como são ordinariamente todasas versões, ou interpretações.

Empregos e Honras com que

haviam de sair os Beneméritos

desta EscolaChegados os educandos àquele tempo que podem teralgum emprego fora da Escola Militar, deviam serempregados conforme o génio, a capacidade, as for-ças, e os seus Estudos: o Director dos Estudos daria

82O Dictionario de Bluteau, em tantos volumes em fo-

lio, merecia correção de muitos lugares, por algum douto

Português, para ser verdadeiramente útil.

conta ao Conselho desta Escola, onde presidiria umSecretário do Estado, não só do proveito que cadaeducando adquirira nos seus Estudos, mas que tal etal poderia ser útil nos Negócios Estrangeiros; ou-tro nos Tribunais económicos do interior do Reino;outro no serviço da frota, e outro no exército. An-tes de serem decorados com Cargos públicos, seriaconveniente, que se exercitassem aqueles destinadosa navegar nos Navios de Guerra expedidos a com-bater os Corsários, ou a conduzir as frotas: outrosassistirem em certos Tribunais, e Conselhos, comoouvintes, outros fazendo campanhas, ou ficando poralguns meses nas Praças fronteiras do Reino; e tam-bém algum número deles no serviço da Corte; massempre com obrigação de voltar a viver na EscolaMilitar, onde deviam conservar o seu posto até sai-rem empregados nos Cargos públicos, e com tençasprocedidas de alguma Ordem Militar, ou já estabele-cida ou que devia estabelecer-se para este fim.

Os Educandos que saiem da Escola Militar daRússia depois de rigoroso exame no que aprenderam,são empregados primeiramente no exército no postode Tenentes, de Capitães, de primeiro e de segundoMaior: outros são destinados a servirem no Colégiodos Negócios estrangeiros, outros nos Colégios deJustiça e Rendas Reais. Como naquele Império o Al-mirantado tem uma Escola de Náutica, com Pensio-nários ou Guardas Marinhas, todos igualmente No-bres, nenhum Educando da Escola Militar é empre-gado no Almirantado.

Os Educandos da Escola Militar de Paris, saiempara ser empregados no exército, e têm por prémio doseu aproveitamento nos Estudos, os postos de Tenen-tes, Capitães e segundos Maiores: além disso saiemdecorados com uma Ordem Militar, e uma pensãopor toda a vida de 30.000 réis, até 48.0000 réis, pagaàs vezes pela mesma Escola, e outras à custa da Or-dem Militar que professam. Assim somos feitos: Senão conservamos a esperança fundada na honra, noproveito e na distinção gloriosa, é impossível forçara nossa natureza a trabalhar, nem a cultivar o enten-dimento, sorte de trabalho mais penível, e que requermais constância, do que o corporal.

62 António Ribeiro Sanches

Utilidades que resultariam

tanto ao Reino como ao Sobe-

rano do exacto exercício desta

Escola Militar que se propõe.

Tenho mostrado por todo este papel, Ilustríssimo Se-nhor, que o trato e os costumes de uma Nação pro-vêm originalmente daqueles que têm os Senhores dasterras, e os que exercitam os Cargos do Estado. Queme concedam que os Generais, os Almirantes, osMagistrados, e todos os Cargos da Corte sejam ad-ministrados por homens educados em uma escola,como a que acabo de propor, estou certo que seráum Reino bem governado, contanto que o Soberanopremeie e castigue à risca, conforme as leis decreta-das. Isto é facil de conceber: mas se pelo contrárioos mesmos Generais e Cargos da Corte forem ad-ministrados por homens educados em casa de seusPais (como é hoje costume), onde os Mestres tememadvertir e castigar os seus discípulos; onde a Amaou a Aia, o Criado e o Pajem são os Companheirosdos Meninos, os seus Manos, toda a sua companhia,os seus confidentes em todos os seus desejos e ape-tites, então poderemos julgar que este menino con-servará enquanto tiver aqueles péssimos hábitos, queadquiriu com os seus inferiores: não saberá repartiro tempo para exercitar o seu emprego, para descan-sar, nem para dormir: buscará enquanto tiver todos osmeios para divertir-se, e jamais considerará ocupar-se, e muito menos cumprir com a sua obrigação.

Os louváveis efeitos da boa educação nesta Aca-demia será o primeiro desaber regrar cada qual oseu tempoem todo o dia: acostumados a levantar-se cedo, fica-lhes tempo para aplicar-se e para se di-vertir honestamente. Todas aquelas maravilhas queobrou Pedro Primeiro, Imperador da Rússia, achoque não tiveram outra origem que saber regrar o seutempo. Este raro e grande Príncipe, era o primeirohomem que se levantava no seu Império, e o primeiroque se deitava a dormir. Levantava-se de verão e deinverno às três horas da manhã, ou estivesse na Corte,ou em campanha, ou viajando; tanto que se levan-tava estava presente o Secretário do Gabinete, comas petições e papéis, que necessitavam de despacho;punha-se a despachá-las até às quatro ou cinco ho-ras da manhã: saía dali e partia sem cerimónia nacarruagem de verão ou de inverno, acompanhado so-mente de dois Dragões a cavalo: entrava no Almiran-tado, onde já estavam lá os Almirantes e os cargos do

Conselho daquele Tribunal; e aquele que faltava eraapontado o salário daquele dia, pela primeira vez. Alipresidia despachando com uma tão ordenada activi-dade que admirava, mesmo aqueles os mais práticosnaquele cargo. Ali ficava das seis até às sete da ma-nhã. Saía daquele Tribunal e chegava ao Senado, queé o Tribunal supremo que corresponde, me parece,ao nosso Desembargo do Paço: com a mesma orde-nada exactidão despachava, e às nove horas da manhãestava já na sua Corte: onde achava o Gran Chance-ler ou primeiro Secretário de Estado, com dois mais,que lhe apresentavam os Negócios Estrangeiros, queouvia e despachava: depois deste tempo dava audi-ência aos Ministros Estrangeiros, e a todos os maisque lha pediam. Às onze horas sem falta jantava ouna Corte ou em casa de algum Grande ou de algumMinistro Estrangeiro: recolhia-se a meio dia; e atéàs três da tarde, tudo estava na Corte no mais reca-tado silêncio, porque sempre dormiu a sesta. Saía àstrês horas a examinar o que se passava no Colégiode Guerra; outras vezes ia ao Colégio do Comércio edas Minas; outras, ver as Fábricas que tinha erigido;outras, ver as obras públicas que tinha ordenado; ce-ava entre as seis e as sete, e às sete horas da noitese deitava: apagavam-se as luzes na Corte: e destemodo conheci eu muitos Senhores Russos, e o Feld-Marechal Conde de Munich, que viviam do mesmomodo, educados no serviço daquele grande Monarca.

Este foi todo o segredo daquele Imperador, paraobrar em trinta e seis anos que reinou; que parece,pelas incríveis coisas que fez, que viveu duzentos.Em saber distribuir e aproveitar-se do tempo, consis-tiu todo este artifício, que só com a educação mascu-lina se aprende.

Se consultarmos os monumentos da História,acharemos que a glória e aumento dos Reinos nãolhes veio dos numerosos exércitos, nem das rique-zas; acharemos que foram ilustres pela Educação dosseus Monarcas e dos seus Súbditos. Relata Diodorode Sicília83, que o Pai de Sesostris, Rei do Egipto,vendo que lhe nascera um filho ordenou que todosos Meninos que nasceram no mesmo dia, fossem cri-ados e educados com tanto cuidado e doutrina, queviessem capazes de serem Companheiros e Mestrespor hábito e companhia do Príncipe; e que este vieratão excelente e tão admirável, pelas virtudes daque-les Companheiros, que não só na Mocidade conquis-tára as Arábias, mas em idade avançada, sendo já Reiconquistára desde a Índia até o Mar Negro. Exce-lente modo de educar os Príncipes, pela companhiados iguais na idade, nas inclinações, e divertimentos,

83Lib. I. Historiarum, p. 49. Ed. Francof.

Cartas sobre a Educação da Mocidade 63

e seriam bem aventurados os nossos tempos, se estasorte de ensino ressuscitasse neles.

À Educação que teve el Rei Dom Dinis devemostanta glória como alcançou o Reino em ser povo-ado, rico, potente e respeitado; el Rei D. Duarte tãocheio de virtudes, como vexado por desgraças, sendoeducado por sua Mãe a Rainha Dona Felipa, mos-trou quanto as Mães podem contribuir para a felici-dade dos filhos. O poder a que chegou França notempo de Luís Quatorze, e glória que conserva ainda,teve origem na boa educação de Henrique o Quartoe do seu Ministro o Duque de Sully; ambos nascidosde Pais Protestantes, ambos educados austeramente,com Mestres excelentes nas ciências e nos costumes,formaram o ânimo deste Rei e deste seu privado, quetoda a sua vida foi um modelo da ordem nos negóciose na aplicação. O Duque de Sully sendo de uma fa-mília tão Nobre não era a pessoa para administrar asRendas Reais, porque estes cargos andaram sempreexercitados pelos Rendeiros da Fazenda Real: mas anecessidade em que se achava Henrique Quarto pe-dia um amigo para remediá-la, e não achou outroque o duque de Sully, o qual não reparando baixar-separa levantar o seu Rei, com o Reino, desempenhouo Estado, juntou tesouros, destruiu os inimigos, res-suscitou a agricultura do Reino que estava perdida,introduziu o comércio, e instituiu a cultura das se-das, e fábricas destas e das lãs. Que se leiam as Me-mórias84 deste grande Ministro, e então ficarão todospersuadidos que o segredo de adquirir imortal famanos postos e nos cargos com utilidade pública, con-siste na distribuição do tempo, na ordem da vida eregra de viver; o que somente se aprende na primeiraidade, como hábito que fica por toda a vida.

Dizia Sócrates, que era coisa notável que havendoMestres, e Escolas para aprender tudo o que era ne-cessário para ser rico, considerado, e autorizado, quesó não conhecia uma onde os homens e os meninosfossem aprender a ser bons. Eu sem tantos conheci-mentos, e com menor virtude acho que em Portugalterá a Nobreza e a Fidalguia Mestres a milhares quelhes ensinem as línguas, dançar, esgrimir, montar acavalo, e sobretudo as Genealogias, mas não possoconsiderar que haja um, que lhes ensine que éobri-gado a obedeceraos Magistrados, e a todos aquelesempregados no serviço do Estado, como sejam seusMaiores; não posso considerar que possa a Fidalguiaperder aquela soberba com que nasce, e aquela inde-pendência, do que numa Escola Militar, governadapeladisciplina Militar, que não conhece outra Gene-alogia, nem Sangue Real, do que o cargo e o mere-

84Mémoires du Duc de Sully.M. de Rosny. 4 Vol.

4.oParis.

cimento. Se esta mocidade desde a idade de nove oudez anos estiver acostumada a ser mandada, e postaem prisão por um Tenente, ou Capitão nobre, ou nãoNobre; se for castigada por ter insultado o seu Mes-tre, ou uma criada ou servente da dita Escola, perderáaquele hábito que contraiu em casa em companhiadas Aias, e dos criados graves, e queira Deus, quenão fosse contraído com domésticos de esfera maisinferior?

Esta disciplina Militar, esta ordem, e saber repartiro seu tempo, se espalharia por todas as tropas, e portoda a armada, porque já dissemos que todos os su-balternos imitam os vícios, ou as virtudes, o trato, eo modo de viver dos superiores. Que Escolas temosno Reino onde a Fidalguia na primeira idade possaaprender amoderar as suas paixões? a ser cons-tante nas adversidades, e nos perigos? Feliz seriaa Corte que constasse dos que foram assim educa-dos! As Leis teriam vigor, porque os Súbditos asexecutariam; e estando autorizados, as observariam;conhecendo interiormente terem superior, e que sãonascidos Súbditos. Em que Escola se aprende hojeno Reino a amar a sua Pátria? não consiste este amorperder a vida por ela, atacando um Corsário, ou su-bindo por uma brecha; a glória que redunda destasacções, recompensa bem o perigo: este amor consisteem ser-lhe útil, e em aumentar por todos os meios asua conservação, e a sua grandeza: ama a sua Pátriao Senhor de terras, que as faz férteis, que multiplicapor casamentos as aldeias, contribuindo com o seu, ecom as suas terras a sustentar estes Súbditos, e os quehão-de vir desta união; ama a sua Pátria aquele quepodendo comprar um vestido de pano de Inglaterrao manda fazer de Covilhã; estes são os Patriotas, eaqueles que conhecem no que consiste a sua conser-vação, e a sua ruína. Somente na Escola propostase poderão adquirir estes conhecimentos, e adquirirestes hábitos virtuosos.

Admiramo-nos da temeridade del Rei Dom Sebas-tião, não só por expor-se quotidianamente aos pe-rigos mais iminentes, mas de passar a África comoum aventureiro; acusamos, ainda que com razão seusMestres os Jesuítas, e sobre todos Pedro Gonçalvesda Câmara, e não acusamos os costumes estragados,e a ignorância da Fidalguia daqueles tempos. E ne-nhum incentivo maior terão jamais os Nossos Reispara cuidarem da severa educação da sua Fidalguiado que a catástrofe do referido Rei; porque é certoque se fosse, como pedia o seu nascimento, que nãocairia o Reino naquele tão lamentável abatimento.

Os Reis que tiverem particular cuidado da educa-ção dos Nobres e dos Fidalgos, é o mesmo que for-tificar praças, fazer frotas, e multiplicar a felicidadedos seus domínios, fim de toda a Legislação de qual-

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quer Estado. RelataM. Ricaut85 que a grandeza ea conservação do Império de Turquia depende total-mente da educação que o Gran Senhor dá noSerailloà mocidade, que ele adopta e cria à sua custa.

O referido Autor no lugar citado diz assim86 «OGrão Senhor não considera nos seus Ministros, nemo nascimento, nem as riquezas: ele tem por máximaempregar aqueles que foram educados à sua custa:e como eles não têm outro arrimo, nem outra espe-rança, daqui é que são obrigados à gratidão e a servi-rem com a maior fidelidade» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

«Os meninos destinados a servir os maiores Car-gos daquele Império, que os Turcos chamamIcho-glans, forçosamente hão-de ser filhos de Cristãos to-mados na guerra, e de terras distantes da capital . . . .

Antes que estes meninos entrem no lugar desti-nado para se criarem os apresentam ao Grão Senhor;e os envia ou ao serrail dePêra, ou ao deAdriano-poli, ou ao de Constantinopla».

Ali são doutrinados naqueles três Colégios, oupensões com toda a severidade pelos Eunuchos; aliaprendem todos os exercícios militares, escrever, ea sua Religião, e as Línguas Persiana, e Arábica: enestes filhos adoptivos se provém todos os Cargos doImpério; estes são aqueles que vêm a ser Bachas, Vi-zires, etc.

É fácil prever que sendo educados assim todosaqueles que hão-de servir um Estado, que serão osmais gratos, e os mais fiéis ao seu Soberano, quesempre considerarão como piíssimo Pai. Se fossemeducados ingenuamente com os conhecimentos daEuropa, e com as máximas da Religião Cristã, tãoexcelentes para conservar a paz, a humanidade, e cor-dialidade entre os iguais e superiores sentiria aqueleEstado muito maior utilidade daquela excelente edu-cação porque não é possível considerar outro melhormétodo para conservar uma monarquia, e para pro-mover a felicidade de um Rei.

Tenho acabado o que prometi a V. Ilustríssima, esem embargo que esteja persuadido que não satisfiza tudo que pertence à matéria que tratei, não duvidoserá de alguma utilidade, e será a maior, a meu ver,haver mostrado a necessidade que tem o Reino deuma educação universal da Mocidade, governada porum novo Tribunal, dependente de um Secretário deEstado. Os defeitos, ou omissões que V. Ilustríssimanotar neste papel, ou causados pela ausência de tan-tos anos da Pátria, ou pela ignorância das circuns-tâncias, facilmente se remediarão, se V. Ilustríssimafor servido notá-los, porque então me será mais fácil

85Histoire de l’Etat présent de l’Empire Ottoman.Lib. I.

Cap. v. Paris, 1670,8.o.86Pág. 83.

acertar com a ideia da perfeita educação da MocidadePortuguesa. Fico para obedecer a V. Ilustríssima como maior respeito.

Deus guarde a V. Ilustríssima muitos anos

Paris, 19 Novembro 1759.

António Nunes Ribeiro Sanches