Carteira de identidade

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identidade carteira de Cyana Leahy

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por Cyana Leahy

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PREFÁCIO (como ser o que se é)

Gustavo Bernardo

Identidade é uma palavrinha traiçoeira. Dizemos que temos anossa própria identidade quando queremos dizer que não somos iguaisa ninguém e que pensamos por nossa cabeça, mas se prestarmosatenção na palavra identidade perceberemos, assustados, que elaquer dizer: condição daquilo que é idêntico a algo ; por exemplo, a ummodelo.

Vem daí a noção de carteira de identidade : todas essascarteiras seguem o mesmo modelo visual, todas elas nos atribuem umnúmero e uma foto na qual não nos reconhecemos. Logo, ter umaidentidade e em consequência uma carteira de identidade, pode impli-car não termos uma identidade própria, porque nos tornamos apenasum número e uma foto (horrível).

Na verdade, ter uma identidade própria, pessoal e intransferível nomeio da multidão é muito difícil, tão difícil quanto ter uma opinião própria.Desde muito antigamente os grandes pensadores repetem que a tarefa maisdifícil, por isso mesmo a mais necessária, é ser o que se é, porque somosconstantementeforçadosaseroqueosoutrosqueremquesejamos.

Cyana Leahy, neste belo livro, escapa da carteira de identidadeque nos torna idênticos a todos os outros e constrói, doce e vagaro-samente, a sua própria identidade; feita sempre de boas lembranças,medos assustadores, cheiros de infância, emoções como filha e emo-ções com os filhos, latidos de cachorro, passarinhos estranhos, listas decoletivos esquisitos, coleções de desejos e, enfim, histórias de mudançase permanências.

Esta Carteira de Identidade foi feita para acalentar, emocionar efazer pensar crianças de cinquenta e dois anos (como eu) e adultos de oitoa dezoito anos (como talvez os tenha a menina que lê esta breveapresentação, que deve parar por aqui e ser de fato breve). Foi feita paraque todos possam se deliciar com a busca pela identidade da personagemedesi mesmos.

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Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura na UERJ e autor de alguns romances juvenis,como A alma do urso, Ed. Formato e Desenho mudo, Ed. Atual.

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Nascer mesmo, eu nasci bem longe daqui. Mas, se me

perguntam, digo que sou daqui, desta terra, porque é a minha

escolhida. É muito simples: a gente não escolhe onde quer nascer,

nasce e pronto; mas pode escolher onde vai viver. Assim, adotei

como minha terra natal esta cidade, onde moro já faz muito

tempo. Cheguei, trazida bem pequena, com dois anos de idade.

Não sei dizer em que dia cheguei, que horas eram, nem se chovia

ou fazia sol. Nesse dia nasci de novo, na cidade que viria a ser

minha terra natal.

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Minha infância não foi das mais acidentadas. A vida da

minha irmã foi muito mais, embora ela fosse bem menor do que eu.

O motivo? Eu era a filha mais velha e morria de medo de muitas

coisas. Tinha medo de fantasma, de cachorro solto na rua, do

homem do saco às costas, de andar de bicicleta, de pegar

resfriado, de tirar nota baixa na escola. Vivia decorando listas e

mais listas, contas e tabuada, datas e nomes, como a escola

mandava. Mas não era só a escola: qualquer um mandava em

mim. Naquele tempo, é claro. Mandava por fora, porque por

dentro eu mandava no meu pensamento, mesmo que não contasse

nada para ninguém.

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Não sei para que foi que serviu aquele monte de coisa do

tempo da escola, porque já esqueci quase tudo. Há muito tempo.

Acho que a cabeça da gente nos faz esse favor, vai apagando

aquilo que não serve para nada, para fazer espaço para coisas

novas e mais importantes. Na minha escola, havia uns pontos de

História do Brasil para decorar, umas histórias e coisas que

aconteceram nos primeiros tempos de nosso país.

Um desses pontos era até muito legal: tratava de um herói

chamado Caramuru, que significa “homem do fogo, filho do

trovão, afilhado do relâmpago”, na língua indígena da tribo onde

foi dar com os costados, depois que seu navio naufragou. Talvez

porque sempre gostei de fogo e de trovões, Caramuru me

encantava: eu o imaginava descendo do céu na mesma nuvem em

que o Deus do catecismo estava sentado, sério e de barba branca,

cheio de luzes e foguetes e balões coloridos ao seu redor; porque,

com esses parentes (fogo, trovão e relâmpago), ele devia ter um

brilho danado. Ainda por cima, parece que as índias eram loucas

por ele, um português inteligente e engenhoso, et cetera e tal...

Não sei que fim levou, pois nossa intimidade durou somente o

tempo das primeiras séries da escola. Caramuru sumiu sem

deixar rastros em minha vida.

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Outra coisa que nunca esqueci foi que a mulher do cupim

se chama arará... dá para acreditar? Se eu não consigo até hoje

ver um cupim direito, como posso saber se é macho ou fêmea?

Talvez o erro tenha sido meu, por ter tido poucas oportunidades

de ver passar uma alcateia, ou uma matilha, embora vários

cardumes tenham brincado entre meus pés nas águas claras do

mar. Nomes bizarros, números e problemas que nunca entendi,

verbos que decorei e que nunca usei – tudo isso aprendi por medo

de errar e não passar de ano, coisas assim. Então, lamento não

ter tido uma vida mais ativa e útil, nem poder ter dito: olhem, lá

vai uma alcateia! Ou: a que horas acaba o conclave, senhores? Ou

ainda: você já alimentou sua matilha hoje?

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Com minha irmã era diferente. Ela ia à escola ver as

amigas, se divertir; não levava tão a sério aquelas ameaças todas

de tirar notas baixas, de repetir o ano na escola, de ter que

decorar pontos e fórmulas. Embora fosse tão novinha, por dentro

era mais esperta, parecia mais velha do que eu, sua irmã

medrosa. Ela até me defendia, às vezes, e ficava sem entender por

que eu não me defendia sozinha!

Hoje, se pudesse voltar atrás, escolheria não ter tanto

medo da escola, e ter me divertido mais. Teria aprendido a andar

de bicicleta de verdade, sem medo de cair. Teria sido menos

obediente, teria ganho menos medalhas, teria sido mais alegre e

feliz. Se eu fosse criança agora, certamente iria querer estudar na

escola dos meus filhos.

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