Cartemas de Aloisio Magalhães

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JOÃO CARLOS DE MORAIS ALT CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES: UM PONTO DE ENCONTRO ENTRE A ARTE E O DESIGN Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Arte do Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, para obtenção do grau de Mestre em Ciência da Arte. Área de concentração: Estudos Poéticos. Niterói 2005 Orientador: Prof. Dr. JOSÉ MAURÍCIO SALDANHA ALVAREZ Co-orientador: Prof. Dr. ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA

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Um ponto de encontro entre a arte e o design

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JOÃO CARLOS DE MORAIS ALT

CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES:UM PONTO DE ENCONTRO ENTRE A ARTE E O DESIGN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte do Institutode Arte e Comunicação Social, UniversidadeFederal Fluminense, para obtenção do graude Mestre em Ciência da Arte. Área deconcentração: Estudos Poéticos.

Niterói2005

Orientador: Prof. Dr. JOSÉ MAURÍCIO SALDANHA ALVAREZ

Co-orientador: Prof. Dr. ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA

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Ao Luís Sérgio de Oliveira, vai meu primeiro agradecimento; seu incentivo,nos primórdios deste projeto, foi imprescindível para que eu transformasseem ação o que antes era um vago propósito.

Agradeço ao José Maurício Saldanha Alvarez, meu orientador, pelopaciente estímulo e por todos os conhecimentos transmitidos, bem como aosprofessores Wallace de Deus Barbosa e Luiz Antonio Luzio Coelho, pelasvaliosas críticas e sugestões apresentadas no exame de qualificação.

Agradeço muito especialmente ao Tunico Amancio, amigo e co-orientador,por colocar sua competência, entusiasmo e bom-humor a serviço destetrabalho.

Aos amigos Zé Luiz Sanz e Cristina Cavallo, minha gratidão pelo apoiogeneroso e a infalível disponibilidade.

Finalmente, sou grato à Denise -minha mulher- e aos meus filhos Ana,Nina e Rafael, por compreenderem e apoiarem um projeto pessoal cujarealização exigiu tanto tempo e devotamento. A eles dedico esta dissertação.

AGRADECIMENTOS

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LISTA DE FIGURAS 5

RESUMO 9

ABSTRACT 10

1. INTRODUÇÃO 11

2. ARTE E DESIGN: A FRÁGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINÇÃO 18

3. ALOÍSIO MAGALHÃES 34

3.1. ALOÍSIO, POLÍTICO 39

3.2. ALOÍSIO, PINTOR 47

3.2.1. O desencanto com a pintura 58

3.3. ALOÍSIO, DESIGNER 60

4. O CARTEMA 73

4.1. A GÊNESE 73

4.1.1. Expressão e risco: os “anos de chumbo” 77

4.2. ANALOGIAS VISUAIS E INFLUÊNCIAS 82

4.2.1. Livres associações à margem da arte 94

4.3. PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS E CONFIGURAÇÃO 99

4.4. CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES - REPRODUÇÕES 111

5. CONCLUSÃO 113

REFERÊNCIAS 121

ANEXO 125

SUMÁRIO

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 .............................................................................................................................. p. 12[1.3] Rodovia Castelo Branco, São Paulo, cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982); [1.1] e [1.2]Imagens produzidas pelo autor, a partir de fotografia do cartema.

Figura 2 ............................................................................................................................... p. 14Calendário UFF 2000, impresso, 14 páginas, formato 42 x 34 cm, relização da Universidade Federal Fluminense. Fotografiaproduzida pelo autor.

Figura 3 ............................................................................................................................... p. 19[3.1] As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos, de Jacques-Louis David (ARGAN, 1992, p. 21); [3.2] ¡Note escaparás!, de Francisco Goya (idem, p. 43); O ancião dos dias, de William Blake (GOMBRICH, 1977, p. 387).

Figura 4 ............................................................................................................................... p. 22[4.1] Página do Evangelho de Lindsfarne, autor não identificado (GOMBRICH, 1977, p. 116); [4.2] Detalhe de página de livroholandês do século XIV (RIBEIRO, 1987, p. 44).

Figura 5 ................................................................................................................................ p. 23[5.1] Página do livro Poems by the Way, de William Morris (HOLLIS, 2001, p. 20); [5.2] Colófão da Kelmscott Press, de WilliamMorris (<http://www.lib.umich.edu/spec-coll/morris/> ; acesso em 06.08.2003).

Figura 6 ................................................................................................................................ p. 24[6.1] Jane Avril, de Henri Toulouse-Lautrec (MULLER, 1966, vol. 68, p. 18); [6.2] France-Champagne, de Pierre Bonnard(SELZ, 1971, prancha 4).

Figura 7 ................................................................................................................................ p. 24Loïe Fuller, de Jules Chéret (SELZ, 1971, prancha 5).

Figura 8 ................................................................................................................................ p. 26[8.1] Medéia, de Alphonse Mucha (ARGAN, 1992, p. 205); [8.2] I Exposição da Secessão Vienense, de Gustav Klimt (idem, p.173); [8.3] Tropon, de Henri Van de Velde (id., p. 184).

Figura 9 ................................................................................................................................ p. 27[9.1] Papier Collé, de Pablo Picasso (MULLER, 1966, vol. 70, p. 9); [9.2] Les formes musicales, de Georges Braque (<http://k_kenar.webpark.pl/galeria.htm>; acesso em 07.08.2003); [9.3] Syphon, verre et journal, de Juan Gris (<http://www.postershop.com/Gris-Juan/>; acesso em 07.08.2003).

Figura 10 .............................................................................................................................. p. 27[10.1] Small Dada, de Kurt Schwitters e Theo van Doesburg (<http://personal.cityu.edu.hk/~entim/Professional/Courses/EN3524/Modernism/Small_dada_1922.jpg>; acesso em 12.08.2004); [10.2] Das Kotsbild, de Kurt Schwitters (<http://faculty.washington.edu/dillon/rhethtml/dadamaps/dadam287.jpg>; acesso em 12.08.2004); [10.3] Eclipse parcial com Monalisa, deKasimir Malevitch (<http://www.museoscienza.it/leonardo/light/images/malev.jpg>; acesso em 21.10.2004).

Figura 11 .............................................................................................................................. p. 48Aloísio em seu atelier da Rua da Aurora, no Recife (LEITE, 2003, p. 39).

Figura 12 .............................................................................................................................. p. 52Sem Título, de Aloísio Magalhães (idem, 2003, p. 56).

Figura 13 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).

Figura 14 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).

Figura 15 .............................................................................................................................. p. 53Sem Título, de Aloísio Magalhães (id., p. 53).

Figura 16 .............................................................................................................................. p. 55Monotipia, de Aloísio Magalhães (id., p. 46); tipográfica sobre papel, de Aloísio Magalhães (id., p. 57); aquarela, de AloísioMagalhães (id., p. 47); cartema, de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 105).

Figura 17 .............................................................................................................................. p. 57Símbolo d’O Gráfico Amador, de Aloísio Magalhães (ESCOREL, 2000, p. 106).

Figura 18 .............................................................................................................................. p. 62Adaptações do símbolo do IV centenário da cidade do Rio de Janeiro -de Aloísio Magalhães- em pipa, vestuário e fantasia decarnaval (REDIG, 1989, p. 107) e em piso de calçada e carrinho de ambulante (LEITE, 2003, p. 173).

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Figura 19 ............................................................................................................................. p. 63Símbolo original do IV centenário, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 170); esquemas construtivo e associativo do símbolopreparados pelo autor.

Figura 20 ............................................................................................................................. p. 63Diferentes versões do símbolo da Light, de Aloísio Magalhães (ESCOREL, 2000, p. 116).

Figura 21 ............................................................................................................................. p. 63Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para a Itaipu Binacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Boavista (LEITE, 2003,p. 216) e a Metalúrgica Icomi (idem, p. 164).

Figura 22 ............................................................................................................................. p. 63Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para o Banco Nacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Aliança (LEITE, 2003, p.186); para a Companhia Souza Cruz (REDIG, 1989, p. 105).

Figura 23 ............................................................................................................................. p. 64Símbolos criados por Aloísio Magalhães: para o Banco de Crédito Mercantil (LEITE, 2003, p. 165); para o Unibanco e para oBanespa (REDIG, 1989, p. 105).

Figura 24 ............................................................................................................................. p. 64Capas dos exemplares nº 4 -de Hermelindo Fiaminghi- e nº 1 -de Décio Pignatari- da revista Noigandres (<http://www.obraprima.net/materias/html693/html693.html>; acesso em 17.04.2004).

Figura 25 ............................................................................................................................. p. 65Poesia “Eis os amantes”, de Augusto de Campos, do ano de 1953 (<http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemas.htm>;acesso em 17.04.2004).

Figura 26 ............................................................................................................................. p. 65Poesia concreta “Beba coca cola”, de Décio Pignatari, do ano de 1957 (<http://www.tanto.com.br/luizedmundo-concret.htm>;acesso em 17.04.2004).

Figura 27 ............................................................................................................................. p. 66Pinturas [27.1] Movimento Contra Movimento (LEITE, 1982, p. 922) e [27.2] Função Diagonal (ZANINI, 1983, p. 662), deGeraldo de Barros; [27.3] símbolo para a Cofap (BORGES, 1992, p. 86), de Alexandre Wollner.

Figura 28 ............................................................................................................................. p. 66[28.1] Logotipo para Cotonifício Capibaribe (LIMA, 1997, p. 39) e [28.2] aplicação de logotipo em veículo (LEITE, 2003, p.198), criações da PVDI, escritório de Aloísio Magalhães; [28.3] peças publicitárias diversas (LEON, 1992, p. 80), [28.4] sacolade compras para Casa Almeida (idem, p. 81) e composição/logotipo para Balas Belavista (id., p. 80), de Ruben Martins.

Figura 29 ............................................................................................................................. p. 67Símbolos: [29.1] criação de Alexandre Wollner (BORGES, 1992, p. 86); [29.2] criação de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 77);e [29.3] criação de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 169).

Figura 30 ............................................................................................................................. p. 67Símbolo do Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81); símbolo do Clube Hípico da Bahia, de Aloísio Magalhães(LEITE, 2003, p. 217).

Figura 31 ............................................................................................................................. p. 68Associação conceitual do símbolo para o Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81) e estudo tridimensional dosímbolo do Clube Hípico da Bahia, de Aloísio Magalhães (LEITE, p. 217).

Figura 32 ............................................................................................................................. p. 69Símbolos -de Aloísio Magalhães- para: [32.1] Banco Mercantil de Pernambuco (REDIG, 1989, p. 105); [32.2] LaboratórioMaurício Vilella (LEITE, 2003, p. 154); e [32.3] Banco Comercial Brasul (idem, p. 186).

Figura 33 ............................................................................................................................. p. 69Símbolos -de Aloísio Magalhães- para: [33a] o Sesquicentenário da Independência do Brasil (LEITE, 2003, p. 206) e para [33b]o Banco Central do Brasil (idem, p. 155).

Figura 34 ............................................................................................................................. p. 69Design -de Aloísio Magalhães- para Produtos Guri, com aplicação em itens diversos (LEITE, 2003, p. 188).

Figura 35 ............................................................................................................................. p. 70Projeto de identidade visual para a Petrobrás, de Aloísio Magalhães: aplicação em letreiros [35.1] suspenso (REDIG, 1989, p.108) e [35.2] de solo (LEITE, 2003, p. 205), em [35.3] veículos (REDIG, 1989, p. 108) e em [35.4] bombas de combustíveis(LEITE, 2003, p. 204).

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Figura 36 ............................................................................................................................. p. 70Anverso e verso de cédula de NCr$ 1,00 -um cruzeiro novo- (<http://www.bcb.gov.br/htms/museu-espacos/cedulas/>; acesso em20.05.2004), design de Aloísio Magalhães, impressa no Brasil e lançada no ano de 1967.

Figura 37 ............................................................................................................................. p. 71Anverso e verso de cédula de Cr$ 500,00 -quinhentos cruzeiros- (LEITE, 2003, p. 211), lançada em 1972; design de Aloísio Magalhães.

Figura 38 ............................................................................................................................. p. 71Anverso e verso das cédulas de Cr$ 1.000,00 -mil cruzeiros- (<http://www.bcb.gov.br/htms/museu-espacos/cedulas/>; acessoem 20.05.2004) emitidas em 1977; design de Aloísio Magalhães.

Figura 39 ............................................................................................................................. p. 74Impressora offset da Casa da Moeda do Brasil (<http://www.casadamoeda.com.br/produtos/prodcedu.htm>; acesso em 21.05.2004).

Figura 40 ............................................................................................................................. p. 80Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles (Enciclopédia de artes visuais, em <http://www.itaucultural.org.br>;acesso em 09.10.2004).

Figura 41 ............................................................................................................................. p. 83[41.1] Moça Afogada, de Roy Liechtenstein (ARGAN, 1992, p. 582); [41.2] O Bandido da Luz Vermelha, de Cláudio Tozzi(ZANINI, 1983, p. 751).

Figura 42 ............................................................................................................................. p. 84[42.1] Berço Esplêndido, de Carlos Vergara (ZANINI, 1983, p. 744); [42.2] Cama, de Robert Rauschenberg (ARGAN, 1992, p. 576);[42.3] Três Bandeiras, de Jasper Johns (<http://artwork.barewalls.com/product/framer.exe?ARTWORKID=13136&ITEMID=13136>;acesso em 11.10.2004).

Figura 43 ............................................................................................................................. p. 86Fruteira e copo, de Georges Braque (<http://www.artchive.com/artchive/B/braque/papcol1.jpg.html>; acesso em 30.05.2004).

Figura 44 ............................................................................................................................. p. 87[44.1] Rodovia Castelo Branco, São Paulo, cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982); [44.2a a 44.2d]Simulações preparadas pelo autor para esta dissertação.

Figura 45 ............................................................................................................................. p. 88[45.1] Símbolo do Unibanco, de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 105); [45.2a] Moebius strip e [45.2b] Knots, de M. C.Escher (ERNST, 1986, p. 99 e 101).

Figura 46 ............................................................................................................................. p. 89[46.1] Litogravura, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 78); [46.2] Belvedere (e detalhe), de M. C. Escher (ESCHER, 1994,prancha 74).

Figura 47 ............................................................................................................................. p. 89[47.1] Imagem produzida pelo autor, a partir de fotografia do cartema; [47.2] Plane-filling motif with crabs, de M. C. Escher(<http://www.mcescher.com/Gallery/symmetry-bmp/E40.jpg>; acesso em 12.11.2004).

Figura 48 ............................................................................................................................. p. 90[48.1] Um outro mundo II, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, prancha 60); [48.2] Em cima e embaixo, de M. C. Escher (ESCHER,1994, prancha 61).

Figura 49 ............................................................................................................................. p. 91Oito cabeças, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, p. 4).

Figura 50 ............................................................................................................................. p. 91[50.1] Detalhe de nota de NCr$ 1,00, preparado pelo autor a partir da imagem mostrada na figura 36; [50.2] Símbolo do Banespa,de Aloísio Magalhães (REDIG, 1989, p. 05).

Figura 51 ............................................................................................................................. p. 95[51.1] Carta de baralho digitalizada pelo autor; [51.2] (V. figura 1.2); [51.3] (V. figura 38).

Figura 52 ............................................................................................................................. p. 96Imagens caleidoscópicas: [52.1] (<http://www.geocities.com/zuliram_es/images/palmerasdecasa_caleidoscopio.jpg>; acesso em01.12.2004); [52.2] (<http://www.brewstersociety.com/images.html>; acesso em 01.12.2004); [52.3] (<http://www.kaleidoscopecollector.com/ade.html>; acesso em 01.12.2004).

Figura 53 ............................................................................................................................. p. 97Três representações do oroboro: [53.1] (<http://www.terra.com.br/planetanaweb/341/fotos/reconectando_b.jpg>; acesso em01.12.2004); [53.2] (<http://members.tripod.com/smittyjr_11/ouroboros.html>; acesso em 01.12.2004); [53.3] (<http://abacus.best.vwh.net/oro/oro2.gif>; acesso em 01.12.2004).

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Figura 54 ........................................................................................................................... p. 100Conjunto de ilustrações preparadas pelo autor para esta dissertação.

Figura 55 ............................................................................................................................ p. 101Praia de Copacabana - Rio, cartema de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, prancha 5).

Figura 56 ........................................................................................................................... p. 102Conjunto de ilustrações preparadas pelo autor para esta dissertação.

Figuras 57 e 58 ................................................................................................................... p. 103Idem.

Figura 59 ........................................................................................................................... p. 104Idem.

Figura 60 ........................................................................................................................... p. 105Idem.

Figuras 61, 62 e 63 .............................................................................................................. p. 106Idem.

Figura 64 ........................................................................................................................... p. 108Cartema da Série Barroca, de Aloísio Magalhães (LEITE, 2003, p. 73).

Figura 65 ........................................................................................................................... p. 108Cartema da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, prancha 24).

Figura 66 ........................................................................................................................... p. 109Ilustração preparada pelo autor para esta dissertação.

Figura 67 ........................................................................................................................... p. 111Cartema São Paulo, Largo do Paissandu, de Aloísio Magalhães, c. 1973, acervo Banco Itaú S.A. (<http://www.itaucultural.org.br/bcodeimagens/imagens_publico/005408001013.jpg>; acesso em 22.10.2004)

Figura 68 ........................................................................................................................... p. 112Cartema da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães, 1974 (LEITE, 2003, p. 69).

Figura 69 ........................................................................................................................... p. 112Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães, 1972 (LEITE, 2003, p. 71).

Figura 70 ........................................................................................................................... p. 113Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães, 1973 (REDIG, 1989, p. 105).

Figura 71 ........................................................................................................................... p. 113 Cartema da Série Brasileira, de Aloísio Magalhães (FUNARTE, 1982, capa).

Figura 72 ........................................................................................................................... p. 114Índio Uaika, Amazonas, de Aloísio Magalhães, cartema da Série Brasileira (FUNARTE, 1982, prancha 2).

Figura 73 ........................................................................................................................... p. 114Grutas do Mar Morto, Israel, de Aloísio Magalhães, cartema da Série Internacional, 1974 (FUNARTE, 1982, prancha 10).

Figuras 74 e 75 .................................................................................................................... p. 115Cartemas da Série em Preto e Branco, de Aloísio Magalhães, 1974 (FUNARTE, 1982, pranchas 13 e 21).

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RESUMO

No ano de 1972, o artista plástico e designer brasileiro Aloísio Magalhães (1927-1982)apresentava ao público, em exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,os cartemas -o produto então mais recente de suas investigações no campo das artes visuais.Consagrada pelos espectadores nesta e em outras mostras que se seguiram a ela no Brasil e noexterior, a criação cartemática não foi recebida com semelhante entusiasmo por uma ala da críticae da classe artística da época. Se isto já expõe, à primeira vista, um conflito de expectativas entrearte e público, revela também, num exame mais aprofundado da questão, que fatores exterioresao fato artístico em si contribuíram para dificultar a inserção dos cartemas -e mesmo do nome deseu criador- nos registros da história oficial da arte no Brasil. Esta dissertação, ao mesmo tempoque analisa a intrincada rede de acontecimentos, influências e motivações adjacentes à trajetóriae à produção artística de Aloísio Magalhães, constitui um esforço no sentido de recuperar, divulgare preservar, na memória da arte nacional, essa criação artística que, resistindo à açãodesvanecedora de mais de três décadas, segue vigorosa, surpreendendo olhares e animandosensibilidades.

Aloísio Magalhães. Brasil: artes visuais. Cartões-postais. Cartema. Colagem. Design.

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ABSTRACT

In 1972, Brazilian artist and designer Aloísio Magalhães (1927-1982) exhibited, in Riode Janeiro Museum of Modern Arts, the cartemas, then his newest production in visual arts.Praised by audiences at this and following exhibitions in Brazil and abroad, his creation wasn’treceived with the same enthusiasm by many artists and art critics at the time. If this alone shows anexpectation conflict between art and public, further analysis will also show that elements otherthan artistic have made their contribution to make cartema introduction – as well as its authorname – in official Brazilian art history harder. The present thesis, along with analysing the intricatenet of events, influences and motivations amid the trajectory and artistic production of AloísioMagalhães, aims to reclaim, spread and keep alive, in national art registers, this work that,withstanding any fading effect three decades could have inflicted, goes on powerfully, amazing theeye and cheering the sensibility.

Aloísio Magalhães. Brazil: visual arts. Cartema. Collage. Design. Postcards.

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1. INTRODUÇÃO

Em fins da década de 1980, ao adquirir um exemplar do catálogo da exposição de

cartemas de Aloísio Magalhães realizada em 1982 pela FUNARTE -uma homenagem póstuma

ao artista que falecera naquele mesmo ano-, pude experimentar sensações ambivalentes a

oscilarem entre um profundo encantamento e a mais trivial das invejas. Os cartemas, que

até então desconhecia, eram a materialização de uma idéia artística que poderia ou deveria,

como pretensiosamente me sugeriam tais sentimentos, ter ocorrido a mim. A comparação -

previsível pela recorrência em relatos semelhantes-, com alguns versos da composição Certas

Canções1 , de Tunai e Milton Nascimento, torna-se então inevitável. Certamente, minha

formação em arquitetura, a incursão pelo território da ilustração e o cartum e a opção final

pelo design gráfico, são aspectos que facilitaram o processo de identificação pessoal com a

obra. E se declaro aqui minhas impressões, faço-o com o estrito objetivo de registrar o que

teria sido, à época, seu desdobramento natural: o desejo -e provável gérmen desta

dissertação- de aprofundar conhecimentos sobre a origem do cartema, ou mesmo de tentar

compreender a natureza do poder arrebatador daquela simples e inventiva exploração

estética.

Para minha surpresa, constatei que os cartemas não eram um tema a respeito do

qual se pudesse obter referências com facilidade. Também não era (e continua sendo)

pequeno o número de pessoas que, mesmo familiarizadas com a produção recente da arte

brasileira, ignoravam por completo a existência desse trabalho artístico. Levando em conta

essa realidade, e em respeito a eventuais dúvidas, considero a conveniência de abrir aqui

um parêntese para falar brevemente sobre o que vem a ser o cartema.

Começando pela etimologia, já que curiosamente os dicionários da língua portuguesa

não negaram registro ao termo como o fizeram alguns dicionários nacionais de arte, a palavra

cartema -um neologismo proposto pelo filólogo Antônio Houaiss para denominar a obra

ainda em seu nascedouro-, resulta da associação do radical cart- (de cartão-postal) com o

sufixo -ema (na acepção de “unidade mínima estrutural”), conforme destaca a edição do

ano de 2001 do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.

Como proposição estética, o cartema é um tipo particular de composição visual

modular, definida pela colagem sistematizada, sobre prancha rígida de papelão, de um

1 “Certas canções que ouço / Cabem tão dentro de mim / Que perguntar carece: / ‘Como não fui eu que fiz?!’ / ...”. CertasCanções, de Tunai e Milton Nascimento, gravada originalmente no disco Anima (38min32seg), Ariola, Estéreo, Estúdio, 33 rpm,12 pol, 3ª faixa, lado B, 3min39seg, 1982.

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conjunto de cartões-postais visualmente idênticos e justapostos de modo a explorar

concordâncias formais singulares e efeitos ópticos ambíguos (fig. 1).

Criação artística do pernambucano Aloísio Magalhães (1926 - 1982) na década de

1970, o cartema revelou-se uma solução que, já na origem, abalava convicções persistentes

acerca da dicotomia técnica/estética (aqui manifesta no confronto design/arte) e da crença,

herdada das vanguardas modernistas, de impossibilidade de diálogo entre obra de arte e

público.

Movido mesmo pelo inconformismo com as tendências soliloquistas da produção

artística brasileira de então, a conflitarem com o interesse que sempre nutriu pelas

manifestações da cultura popular e com o seu desejo de interação com o coletivo, Aloísio

Figura 1 - Da associação planejada do módulo -o cartão-postal (1)- chega-se ao super-módulo(2), a partir do qual constrói-se o cartema (3)

1 2

3

Page 13: Cartemas de Aloisio Magalhães

13

abandonou a pintura -que exercera desde a primeira metade dos anos 1950- para dedicar-

se, no início da década de 1960, à comunicação visual. O exercício do design, profissão

que ele ajudara a implantar em nosso país e que desempenharia com brilhantismo pelos

aproximados quinze anos seguintes, foi o caminho que, em última análise, o levou à invenção

dos cartemas em 1972. Por fim, assumindo de vez a “causa” da identidade nacional, Aloísio

voltou-se para o campo da política governamental brasileira para o patrimônio e a cultura,

onde atuou -aí também com reconhecida competência- até o fim da vida, em 1982.

Se a passagem pelo campo do design -essa área do saber que tem na comunicação

um de seus pressupostos fundamentais- foi a grande oportunidade de Aloísio para atingir

sua meta de interação com o grande público, a invenção dos cartemas foi, agora no território

da criação sem fins de consumo, o coroamento dessa conquista. Se por este motivo, ou se

pelos surpreendentes efeitos visuais da obra, o fato é que os cartemas atraíram sempre

quantidades expressivas de espectadores às diversas ocasiões em que foram exibidos em

museus e galerias do Brasil e do exterior.

Contudo, o período transcorrido desde a última mostra expressiva dos cartemas -

uma homenagem póstuma que em 1983 percorreu dez grandes capitais no país- até os dias

atuais, parece ter feito volatilizar-se quase por completo aquele entusiasmo com que foi

recebida e celebrada essa criação do artista, suscitando algumas reflexões a respeito do

grau de importância conferido à obra de Aloísio Magalhães no âmbito da história da arte

brasileira.

Feitos os esclarecimentos, fecho o parêntese para retomar a narrativa do ponto em

que foi interrompida, quando então os cartemas despertaram meu interesse e admiração.

Interesse e admiração que, lá por meados dos anos 1990, por obra do tempo e da rotina,

começavam a se acomodar em algum compartimento pouco solicitado da memória, enquanto

o catálogo dos cartemas espremia-se entre outras publicações numa prateleira pouco visitada

da biblioteca.

Foi preciso que alguns anos se passassem até que, em 1998, uma intenção acadêmica

objetiva me levasse a resgatar os cartemas da memória e da estante de livros. Decidi incorporá-los

aos exercícios aplicados regularmente na disciplina Técnicas de Visualização, que então lecionava

no curso de Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal Fluminense. Estava ali meu primeiro

campo coletivo de observação. As reações invariavelmente admiradas dos alunos diante dos cartemas

ali produzidos, converteram-se logo em estímulo para ações de maior amplitude. Assim, no advento

do ano 2000, contagiados por aquela euforia generalizada que atropelava posições mais ortodoxas

Page 14: Cartemas de Aloisio Magalhães

14

e antecipava em um ano o início do novo século, oferecíamos à administração da universidade,

como peça comemorativa e de divulgação institucional, o projeto gráfico (desta vez um trabalho da

disciplina Planejamento Visual e Produção Gráfica) de um calendário de parede ilustrado com imagens

“cartemizadas” do ambiente e cotidiano universitários. Passados quase trinta anos do aparecimento

do cartema, o mundo da tecnologia nos emprestava suas facilidades para a construção de cartemas

digitais, com programas gráficos e periféricos a substituir esquadros, réguas e colas Phênix,

indispensáveis aos cartemas artesanais. Vantagens e prejuízos à parte, o fato é que a invenção

estética de Aloísio Magalhães, estendida, como era seu propósito, a qualquer indivíduo disposto a

reproduzi-la - e aqui posso me incluir -, continuava a surpreender olhares e a confirmar o que seu

idealizador já constatara à época: ninguém fica indiferente ao cartema. Sentíamo-nos, assim, os

alunos e eu, bastante à vontade para veicular as propostas cartemáticas produzidas em sala de aula,

na medida em que a isso nos autorizava aquele desejo de compartilhamento manifestado por seu

idealizador. Naturalmente, dedicamos um espaço do calendário a informações relativas a Aloísio

Magalhães e seus cartemas, ao mesmo tempo uma homenagem a esse brasileiro de tantos fazeres2

e uma tentativa de resgate daquela (literalmente) admirável técnica de expressão artística.

Contudo, à medida que o projeto evoluía, íamos nos dando conta -com algum

estranhamento, vale dizer- da dificuldade na obtenção de informações textuais sobre os cartemas;

situação que o prazo curto e as precárias condições operacionais de que dispúnhamos se

encarregavam de não facilitar. Trabalhamos, então, dentro dos limites impostos por essa realidade.

O Reitor, que aceitara nosso convite para comparecer à classe e ser apresentado

pelos alunos à proposta, acolheu o projeto

com entusiasmo, nos autorizando a produzi-lo.

O calendário (fig. 2) foi produzido e, ao

final, o gabinete do Reitor que se encarregara da

distribuição, controlada e dirigida a setores

internos e externos à Universidade, viu esgotar-

se com surpreendente velocidade a tiragem de

três mil exemplares. As muitas manifestações

de apoio à iniciativa, levadas ao nosso

conhecimento pelos funcionários envolvidos

no processo, foram o meio através do qualFigura 2 - O calendário da UFF, comemorativo do ano 2000, com

imagens cartemizadas do ambiente universitário.

2 Aloísio Magalhães foi titereiro, cenógrafo, gravador, pintor, gráfico, designer e, por fim, homem público engajado na políticacultural governamental.

Page 15: Cartemas de Aloisio Magalhães

15

pude aferir e confirmar, mais uma vez e agora num universo de análise bastante ampliado e

heterogêneo, o poder de sedução visual do cartema.

Todavia, ao passo que crescia meu interesse pelo assunto, igualmente ganhavam

intensidade as dúvidas e estranhamentos decorrentes do aparente descaso com que a

literatura especializada trata os cartemas (ao contrário do que ocorre, por exemplo e sem

comparações apressadas, com seus quase contemporâneos, os objetos relacionais de Lygia

Clark ou os penetráveis e os parangolés de Hélio Oiticica) e, mesmo, a passagem de

Aloísio Magalhães pelas pertenças da arte. Mas, se de um lado a perspectiva insinuada pelo

quadro descrito conduzia ao desalento, por outro o ineditismo3 do tema tornava-o

particularmente instigante. Decidi-me pela segunda via, cujo trilhamento, orientado pelos

fundamentos da ciência e da arte e entremeado dos prazeres e angústias próprios à

empreitada, desembocou nesta dissertação.

Em linhas gerais, essas foram as circunstâncias que conformaram o arcabouço desta

pesquisa, cujo subtítulo parece denotar uma demarcação estanque dos domínios da arte e

do design. Aqui, no entanto, valho-me da comparação não como reforço de uma suposta

dicotomia, mas tão-somente como artifício metodológico, pensado para ajudar a limpar o

terreno de concepções equivocadas acerca das particularidades que distinguem estes dois

universos da produção humana. E nessa distinção apóia-se, de certo modo, a questão central

deste trabalho, qual seja: os cartemas de Aloísio Magalhães, ao conjugar fundamentos

conceituais da arte a pressupostos comunicacionais do design, não se revelam igualmente

obra de arte e design, um ponto de encontro entre estas duas atividades?

Se observado sob o prisma da multidisciplinaridade, o problema que aí se coloca

aponta para desdobramentos nos campos específicos da Arte, da Comunicação, da Política,

da História, da Sociologia, da Cultura e da Ideologia, mas se apóia, fundamentalmente, na

combinação dos vários aspectos que, numa certa conjuntura espaço-temporal, forjaram o

ambiente social no qual atuou Aloísio Magalhães.

Dessa forma, considerada a complexa teia dos acontecimentos ocorridos no Brasil

nas décadas de 1960 e 1970, questões subsidiárias -gerais e específicas- se desprendem

daquela, central, suscitando reflexão.

3 Quando já havia trilhado metade do caminho, recolhido informações relevantes para o trabalho e constatado que a contribuiçãode Aloísio para a cultura brasileira tal como ela se configura atualmente ia bem mais além do que pude supor de início, fuisurpreendido pelo mercado editorial com a publicação do livro “A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães” (LEITE,João de Souza (org.). A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva / Senac Rio, 2003.). Afrustração com a perda do ineditismo, que ameaçou trocar de posição o instigante e o desalento, não impediu que a obra viesse ase tornar, ao fim e ao cabo, um valioso instrumento de consulta.

Page 16: Cartemas de Aloisio Magalhães

16

Em resumo, estes são alguns dos aspectos que concorreram para a formatação deste

trabalho nos moldes que passo a descrever.

O próximo capítulo [cap. 2 – Arte e design: a frágil (mas persistente) distinção] abre

a discussão sobre a delimitação das fronteiras entre a arte e o design, como decorrência da

antiga questão estética-técnica cuja origem, por sua vez, antecede mesmo ao surgimento do

desenho industrial como atividade socialmente reconhecida. Aqui, através da recuperação

de passagens da história dessas duas áreas da produção humana, procuro demonstrar que

esse convívio, nem sempre tranqüilo, foi sempre profícuo. Para tanto e como reforço de

argumentação, recorri às análises críticas da questão a que procederam Giulio Carlo Argan

(sob a ótica da finalidade) e Pierre Francastel (a origem na filosofia); além deles, amparei-

me também no referencial histórico-sociológico de Arnold Hauser. De Ernest H. Gombrich

vieram os imprescindíveis fundamentos histórico-analíticos da arte mundial.

A seguir [cap. 3 - Aloísio Magalhães], procurei desenvolver uma biografia comentada

de Aloísio Magalhães, restrita ao período em que ele se dedicou à pintura, às artes gráficas,

ao design e à política, no intuito de localizar um fio condutor, um traço comum em suas

realizações, capaz de fazer entender os caminhos que o levaram à invenção do cartema.

Procedendo, então, à revisão de literatura sobre a relevância da obra e a trajetória desse

artista pernambucano no âmbito da produção de arte brasileira, constatei um sintomático

desequilíbrio de registros; se por um lado é grande o número de referências documentais

que tratam de sua passagem pelos organismos oficiais de gestão da cultura, ou acerca do

período em que se envolvera na criação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI),

no Rio de Janeiro, ou ainda, que assinalam seu papel pioneiro na implementação e no

desenvolvimento do design no Brasil relacionando premiações e trabalhos realizados na

área da comunicação visual, por outro é escassa a literatura específica sobre os cartemas.

Desse modo, foi necessário recorrer a consultas diretas, via telefone ou correio

eletrônico, a pessoas de algum modo ligadas ao artista, bem como a pesquisas documentais

no setor de Documentação e Pesquisa do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no

acervo de correspondências pessoais de Aloísio Magalhães, doado por sua viúva à Fundação

Joaquim Nabuco, de Recife. Dentre os inúmeros títulos da bibliografia, três publicações,

relativamente recentes, foram particularmente valiosas na elaboração deste capítulo: A

herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães (2003), organizado por João de Souza

Leite; O Gráfico Amador (1997), de Guilherme Cunha Lima; e A retórica da perda (2000),

de José Reginaldo dos Santos Gonçalves.

Page 17: Cartemas de Aloisio Magalhães

17

O capítulo seguinte [cap. 4 - O cartema] é dedicado à análise dos cartemas: sua

origem, o contexto social e político brasileiro nos anos 1970, seu discurso, suas

particularidades estético-compositivas e analogias visuais possíveis. Nele, sempre a partir

de uma perspectiva histórica, busco comparar as reações dos artistas brasileiros diante da

ação da censura imposta pelo governo militar; analiso atributos supostamente capazes de

conferir valor a uma produção em arte; e, num exercício de quase fenomenologia, devaneio

pelo território das coincidências à cata de associações (im?)prováveis.

Aqui, vali-me novamente de G. C. Argan e de sua profunda análise das teorias,

tendências e procedimentos da arte moderna mundial, e de E. H. Gombrich, um reforço de

base para estudos comparativos entre a configuração cartemática e produções artísticas de

diferentes culturas e períodos.

Quanto à conclusão, o que posso afirmar com clareza é que este não será -e nem

seria possível ser- um trabalho definitivo, no sentido de esgotamento do tema pesquisado

ou de comprovação de todas as questões havidas -ingenuamente- como comprováveis ao

início da jornada. Será, disto estou certo, uma contribuição para o estudo e difusão dessa

surpreendente e generosa invenção de Aloísio Magalhães. Será, ainda, uma oportunidade

de colaborar para o entendimento das intrincadas relações que cercam um processo de

criação e que, muitas vezes, enformam o resultado do trabalho criativo. Será, também, uma

ajuda à reflexão sobre o que seriam as fronteiras entre arte e design, ou mais precisamente

entre as artes ditas visuais e o design gráfico, para que se possa entender, por fim, que os

cartemas de Aloísio Magalhães inscrevem-se exatamente aí, nesse espaço de interpenetração

de campos, configurando-se um ponto de encontro entre a arte e o design. E será, espero,

uma idéia-semente à espera de uma vontade criadora qualquer, capaz de acolhê-la, plantá-

la e, quem sabe, fazê-la germinar e frutificar em belos cartemas.

Page 18: Cartemas de Aloisio Magalhães

18

2. ARTE E DESIGN: A FRÁGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINÇÃO

O recurso a expressões que antagonizam técnica e estética não é incomum. Na

verdade, a cada vez que nos utilizamos do vocábulo artes, dadas as possibilidades de

interpretação que o plural lhe acrescenta, poderemos estar, inadvertidamente, contribuindo

para consolidar essa idéia de oposição geralmente assente no pressuposto de que técnica

significa habilidade e que estética é um atributo indissociável e exclusivo da arte. Nesse

sentido limitado -se se restringe a discussão à arte e ao design-, à arte não caberia senão

uma destinação (um fim) espiritual, enquanto que o design, entendido como forma de arte

aplicada, engendrado e conduzido por interesses fundamentalmente comerciais, estaria

associado, desde sempre, a uma função utilitária, material.

Neste capítulo, pretendo refletir não a respeito da origem, mas sobre alguns dos

momentos ou eventos no curso da história moderna em que a produção em Arte -numa

ampla significação- deu sinais claros do desgaste dessa discussão, e buscar, através da

ótica da finalidade do trabalho criativo e da confrontação de ocorrências na literatura recente,

demonstrar que o tema ainda faz por merecer a atenção de diferentes autores, como é

possível verificar no que avalia E. H. Gombrich (1977, p. 474):

Após os balbucios e hesitações do século XIX, os modernos arquitetosencontraram seu rumo [...]. Quanto à pintura e escultura, a crise aindanão saiu do ponto de perigo. Apesar de algumas experiênciaspromissoras, ainda subsiste uma lamentável brecha entre o que équalificado de arte “aplicada” ou “comercial”, que nos rodeia na vidacotidiana, e a arte “pura” de exposições e galerias, que muitos têmdificuldade em entender.

Mas esta opção do artista pela arte “pura”, ou l’art pour l’art , é antes uma atitude

reativa que o resultado de ações legítimas na perseguição de novas formas de expressão, e

remonta aos efeitos das profundas mudanças nas estruturas sociais da Europa, ocorridas

por obra da filosofia das Luzes no decurso do século dezoito.

De fato, desde que os ideais iluministas forçaram a reorganização dessas sociedades

e, ato contínuo, deslocaram os artistas de sua inserção social tradicional -deixando-lhes por

conseqüência a oportunidade de romper com os cânones então vigentes da realização

artística-, a Arte remodelou seu perfil, expurgando de sua (re)nascente conformação toda e

qualquer atividade a ela historicamente associada, passível de ser considerada um ofício, o

exercício puro e simples de uma habilidade técnica.

Page 19: Cartemas de Aloisio Magalhães

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Essa “alforria” da imaginação criadora -contemporânea da Revolução Francesa-

não fora, é certo, assimilada da mesma forma pelo meio artístico que se dividia, na passagem

do século XVIII, entre aqueles que talvez tocados pela pedagogia das Luzes defendiam

uma finalidade social para a arte, e os que, protegidos pelo patrocínio oficial, contestavam

veementemente essa possibilidade abrigando-se nas hostes das academias; cisão que, por

desdobramento, se confirmaria também no plano representacional, entre os que em sua

obra privilegiariam temas clássicos ou heróicos -como o fizera Jacques Louis David-, e

aqueles que explorariam a representação poética dos devaneios e visões pessoais, como no

caso de Francisco Goya e William Blake (fig.3). Porém, ainda que tivesse havido essa

“ruptura da tradição” (nos dizeres de Gombrich) a significar conflitos no âmbito das artes,

isto não implicou em mudanças imediatas e expressivas no domínio das culturas regionais,

preservadas em suas bases historicistas e utilizadas pelas classes dominantes como poderoso

instrumento ideológico1 .

Um efeito direto desse processo de convulsão interna por que passou a arte, foi

que os artesãos -colaboradores tradicionais das artes- viram-se desligados, já no século

XVIII, da comunidade dos artistas e, conseqüentemente, privados de sua participação

criadora nas realizações da alta cultura. Por força dos interesses corporativos da classe

artística -que encontraria na questão da técnica e da estética um de seus argumentos-, seria

então reservada ao artesanato a condição de atividade estritamente técnica, segundo aquela

concepção de técnica como simples prática ou habilidade de execução de um trabalho ou

tarefa. Inevitavelmente, o mercado de trabalho dos artesãos retrair-se-ia por impacto dessa

investida expurgatória.

1 2 3

Figura 3 - Diferentes caminhos na representação: o academicismo de J.-L. David (1), contemporâneo de Francisco Goya (2) e William Blake (3).

1 Cf. MAYER, Arno. Culturas oficiais e vanguardas. In: A força da tradição: a persistência do antigo regime. SãoPaulo: Cia. das Letras, 1987.

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20

Embora a produção de objetos de uso e de arte popular, estimulada desde o século XVI

pela revolução comercial, significasse ainda -e agora em seu apogeu- oportunidade de trabalho

para os artesãos, “à medida que crescia o mercado exportador, a especialização regional em

certos ofícios artesanais tornou-se ainda mais acentuada do que antes” (BURKE, 1999, p. 269),

propiciando o surgimento de centros de artesanato especializados capazes de suprir demandas

não apenas locais, como também nacionais ou internacionais; estes centros, ofertando produtos a

preços mais acessíveis do que poderia fazê-lo a produção artesanal usualmente voltada ao

atendimento de exigências pessoais, logo recorreriam a processos mecânicos de produção e à

estandardização dos objetos. A esse respeito, relata Burke (1999, p. 269)que, entre outras,

[...] A indústria de azulejos de Leeuwarden, Haarlem, Amsterdam,Dordrecht e outros centros dos Países Baixos atingiu seu auge entre1600 e 1800; os azulejos, pintados com barcos, moinhos de vento,tulipas, soldados e muitos outros motivos, eram populares não só anível nacional, mas também na Inglaterra e Alemanha. [...] Ao longodo século XVIII, os desenhos dos azulejos holandeses foram sesimplificando até umas poucas pinceladas rápidas, e passou-se a usarmétodos semimecânicos, como o emprego de matrizes. Era questãode apenas uma ou duas gerações antes que o objeto artesanal, feito amão, começasse a ceder ao objeto padronizado, feito a máquina eproduzido em massa.

Dessa forma, a revolução comercial, que impulsionara a produção artesanal de

objetos, contribuía igualmente para o seu fim, na medida em que, em associação com outra

revolução, a industrial, transformava o objeto único em produto em série e o artesão

independente, se tanto, em operário assalariado. Porém, se esse amargo desfecho não

confirmava para os artesãos os pressupostos iluministas da felicidade e prosperidade humanas

como decorrência do progresso e da razão, também teriam custado caro aos artistas aquelas

conquistas resultantes da insurreição contra os valores políticos, sociais e culturais

historicistas; pois até ali,

[...] sua posição na vida estava mais ou menos assegurada. Foijustamente esse sentimento de segurança que os artistas perderam noséculo XIX. A ruptura na tradição abrira-lhes um campo ilimitado deopções. [...] Mas, quanto mais ampla se tornava a gama de opções,menos provável era que o gosto do artista coincidisse com o do público.[...] Assim, desenvolveu-se uma profunda brecha no século XIX entreaqueles artistas cujo temperamento ou convicções lhes permitiamobedecer às convenções e satisfazer a demanda do público e aquelesque se orgulhavam de seu isolamento autodeterminado. (GOMBRICH,1977, p. 397).

Page 21: Cartemas de Aloisio Magalhães

21

Todavia, o que o estado da arte na modernidade sugere é que, naquelas circunstâncias

espaço-temporais, prevaleceu o pensamento desse segundo grupo e cavou-se mais fundo o

fosso - simultânea e conseqüentemente- entre a arte e o público e entre a arte e a indústria.

É certo que a incorporação de atributos estéticos aos produtos industrializados -ou

seja, a integração do artista no sistema de produção- não constituía, a priori, uma

preocupação da primeira revolução industrial; assim é que:

Na segunda metade do século XIX, os produtos de massa de uso diário,que haviam escapado ao molde estilístico do artesanato tradicional,são percebidos pela primeira vez como um problema estético. JohnRuskin e William Morris querem superar, por meio de uma reforma dasartes aplicadas, o abismo que separou utilidade e beleza no cotidianoindustrial (industrielle Lebenswelt). (HABERMAS, 1992, p. 134)2

No entanto, a luta empreendida por Ruskin e Morris extrapolava, como se sabe, o

âmbito puramente estético da produção industrial; para além desse aspecto, sua crítica

apontava para os efeitos perniciosos da prática capitalista à construção de uma sociedade

moralmente saudável, condição que consideravam indispensável à produção de uma arte

elevada. Na esteira do pensamento crítico de Thomas Carlyle, Ruskin foi:

[...] o primeiro a interpretar o declínio da arte e do gosto como indíciode uma crise geral da cultura e a exprimir o princípio fundamental, eainda hoje não devidamente apreciado, de que, se se quer despertarnos homens o seu sentido de beleza e a sua compreensão da arte, há,antes de mais nada, que modificar as condições em que eles vivem.[...]William Morris, o terceiro na série dos críticos sociais representativosda era vitoriana, pensa muito mais coerentemente e vai muito maislonge do que Ruskin no campo da prática. Deste modo, é efetivamenteo maior, isto é, o mais audacioso, o mais intransigente dos vitorianos,apesar de, mesmo ele, não ser completamente l ivre das suascontradições e concessões. [...] Apesar da sua sã concepção darealidade social e da função da arte na vida da sociedade, ele é umromântico enamorado da Idade Média e do ideal medieval da beleza.Prega a necessidade de uma arte criada pelo povo e dirigida a ele, mascontinua a ser um diletante hedonista, que produz coisas que só estãoao alcance dos ricos e só os cultos podem gozar. Faz notar que a arteprovém do trabalho, da habilidade prática do artífice, mas é incapaz dereconhecer o significado do moderno meio de produção mais importantee mais prático – a máquina. (HAUSER, 1972, p. 994-996).

2 A expressão “artes aplicadas” de que faz uso Habermas numa referência às críticas de Ruskin e Morris, acaba porencerrar uma irônica inadequação, visto que Ruskin, na condição de porta-voz do grupo pré-rafaelista, insistia que: “Aarte é una, e qualquer separação entre belas-artes e artes aplicadas é destrutiva e artificial”. (Cf. DONDIS, Donis A.Sintaxe da linguagem visual. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 10.)

Page 22: Cartemas de Aloisio Magalhães

22

Em Morris, no entanto -ressalva Hauser-, essa restrição

à produção mecânica teria sido menos rigorosa que em Ruskin,

e isto lhe permitira reconhecer que, em certas circunstâncias, as

invenções técnicas podiam vir a ser um bem para a humanidade.

De qualquer modo, é desse estado de confl i tos

deflagrado pela industrialização européia que “surge o projeto

industrial, ou seja, o meio através do qual um novo especialista,

o designer, passa a controlar o processo que vai da concepção

do produto a seu uso” (ESCOREL, 2000, p. 35). Mas se é no

contexto dessa revolução que se situa a origem da ramificação

do design hoje denominada desenho industrial, sua outra

vertente, o design gráfico, também decorre, dentro de certos

limites, de um tipo particular de “revolução” desencadeada no

século XV com a invenção ou aperfeiçoamento3 da impressão

tipográfica por Gutenberg -a da expansão do alfabetismo e da

democratização do conhecimento.

Embora a invenção do tipo móvel tenha substituído a tarefa manual da cópia de

livros -não sem antes enfrentar “séria oposição dos copistas, calígrafos e miniaturistas”4 -,

não seria difícil constatar que algum tratamento visual próprio do design gráfico (por mais

que esta expressão esteja vinculada à produção em série) já existia antes mesmo de

Gutenberg; as iluminuras, as molduras, os padrões e geometrismos -como os do Evangelho

de Lindisfarne, de cerca de 700 d.C. (fig. 4.1)-, as letras capitulares (fig. 4.2), são exemplos

de recursos estéticos dos quais se valeram copistas e gravadores e que antecederam, ou

mesmo inspiraram, algumas das soluções visuais utilizadas na famosa Bíblia de 42 linhas -

uma versão da Bíblia Sagrada impressa por Gutenberg na primeira metade daquele século.

Ao menos em parte, isto pode explicar o empenho de William Morris em resgatar

e reintroduzir nos produtos editoriais de sua época, por meio da então recente técnica da

fotografia, o desenho da tipografia clássica e o uso de alguns atrativos gráfico-visuais

(fig. 5) característicos da Idade Média.

Figura 4 - Página do Evangelho deLindisfarne (1) e letra capitular em livroholandês do início do séc. XIV (2).

1

2

3 Alguns autores atribuem a Gutenberg (c. 1400 - 1468) não a invenção, mas o aprimoramento da técnica de impressão apartir dos tipos móveis -blocos originalmente feitos de madeira contendo em relevo letras isoladas do alfabeto. Seuinventor, segundo defendem, teria sido o holandês Lourenço Coster (1370 - 1440) que se utilizara desse recurso na ediçãodo “Horarium”, o primeiro livro impresso do Ocidente.

4 Cf. RIBEIRO, Milton. Planejamento visual gráfico. 2. ed. Brasília: Linha, 1987. p.43.

Page 23: Cartemas de Aloisio Magalhães

23

Nesta linha,

em 1891 foi impresso o primeiro livro na Kelmscott Press, de Morris.Entre essa época e o ano de 1896, no qual o designer faleceu, foramproduzidos mais de cinqüenta títulos dos mais variados formatos. [...]Esses livros, e aqueles produzidos por outras editoras privadas da Grã-Bretanha, estavam entre os trabalhos gráficos britânicos mais admiradosno resto da Europa. (HOLLIS, 2001, p. 20)

Não obstante o ref inamento estét ico que essas

intervenções promoveram, o processo tipográfico continuava a

exigir -como bem o desejara Morris, aliás- o envolvimento e a

participação de diferentes artífices na produção de impressos,

fossem eles tipógrafos, ilustradores ou gravadores. No entanto,

se este foi o caminho percorrido até aquele momento pelas artes

gráficas na Grã-Bretanha, é necessário que se recue um pouco

no tempo para compreender as razões do diferente rumo tomado

por essa atividade na França.

Em 1798, na Áustria, a litografia5 foi inventada por Alois

Senefelder. Essa técnica revolucionária não apenas representou

um salto de qualidade para os produtos realizados através dos

mecanismos tradicionais de impressão, como também contribuiu

para dar forma mais aproximada ao perfil do profissional das

artes gráficas hoje conhecido como designer gráfico.

Realmente, o processo litográfico significou para o artista gráfico da segunda metade do

século XIX -sintomaticamente designado “artista comercial”- uma grande liberdade de expressão

e criação gráficas. A possibilidade de desenhar diretamente sobre a pedra litográfica permitiu ao

artista criar e executar, ele próprio, todos os componentes gráficos de suas obras, além de propiciar

um maior controle e domínio do processo e do resultado final de seu trabalho -um ganho

considerável, se comparado com limitações típicas do sistema tipográfico, tais como o rígido

alinhamento de textos e a necessidade do uso de matrizes xilográficas ou de metal para a reprodução

de ilustrações.

Figura 5 - Página de livro de Morris(1897) e colofão da Kelmscott Press.

5 Litografia (de líthos = pedra): processo de impressão que utiliza como matriz blocos planos de pedra calcárea, sobre aqual se aplica, por meio de lápis apropriado ou outro instrumento de desenho de base oleosa, a imagem que se querreproduzir, e cuja técnica fundamenta-se no princípio da imiscibilidade entre água e óleo. Utilizada nos dias atuais apenascomo técnica voltada à produção de gravuras artísticas, o processo litográfico evoluiu para a fotolitografia -que incorporouprincípios fotográficos na transferência de imagens para a pedra- e propiciou, ainda, o surgimento do processo offset deimpressão.

Page 24: Cartemas de Aloisio Magalhães

24

Os pioneiros affiches6 franceses de cunho publicitário, surgidos por volta de 18707 ,

foram seguramente o meio que mais se beneficiou dessa tecnologia e que também, em

contrapartida, mais contribuiu para o seu aperfeiçoamento; afinal, a exploração capitalista

das formas de diversão de massa -uma alternativa de

lucro que se beneficiou da “passagem gradual das

formas mais espontâneas e part ic ipat ivas de

entretenimento para espetáculos mais formalmente

organizados e comercializados para espectadores”

(BURKE, 1999, p. 271)- exigia novos meios de

divulgação condizentes com a efervescência da vida

cultural daquela Paris recém-reformada pelo barão

Haussmann, por determinação de Napoleão III.

Naquele contexto, os car tazes - forma

emergente de arte que se incorporou definitivamente à

fe ição das c idades e que tão bem ref le t iu

comportamentos e hábitos das sociedades fin de siècle

européias- consistiram em importante meio de

comunicação (e de expressão) do qual se valeram

artistas do porte de Henri Toulouse-Lautrec e Pierre

Bonnard (fig. 6), Alphonse Mucha e vários outros de

seus contemporâneos. Todavia, em que pese a sua

valiosa contribuição, não foram os artistas (numa

acepção bem moderna da palavra) os responsáveis

primeiros pela renovação da linguagem e da técnica de execução que fizeram do cartaz essa

forma simultânea de arte e comunicação; nisto, foram precedidos por um litógrafo

pesquisador e talentoso desenhista, o artista gráfico francês Jules Chéret (1836-1933), cujas

composições visuais (fig. 7), ainda que fortemente marcadas pelo cruzamento das influências

da pintura mural de Giovanni Tiepolo (1696-1770) com as das xilogravuras japonesas

exibidas nas feiras mundiais de Paris em 1867 e 1878 8 revelaram, desde cedo, uma liberdade

de representação gráfica incomum em sua época.

Figura 6 - Cartazes de Toulouse-Lautrec (1) e Bonnard (2)

Figura 7 - Cartaz em litografia do precursor Jules Chéret.

1

2

6 Affiches: designação francesa para os cartazes de publicidade afixados em painéis de rua.

7 Cf. BARNICOAT, John. Los carteles: su historia y su lenguaje. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1972. p. 7.

8 Cf. HOLLIS, Richard. Design gráfico: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 6.

Page 25: Cartemas de Aloisio Magalhães

25

Ao lançar mão de formas simples definidas por contornos ligeiros e cores chapadas

em sua obra, Chéret pode ter dado importante contribuição às discussões dos pintores

modernos acerca da planaridade da superfície -essa condição “única e exclusiva da arte

pictórica” da qual nos fala Greenberg9 -, como exemplifica Barnicoat (1972, p. 20-24):

El llamativo uso del negro en sus primeras obras y el entrelazamientode las formas l isas entrañaba una ruptura con la interpretacióntradicional de los cuerpos sólidos y el hábito de crear una ilusión derelieve, ruptura que artistas más jóvenes como Toulouse-Lautrec yBonnard llevarían aún más lejos. Henri van de Velde, uno de losgrandes portavoces del Art Nouveau, mencionaba a Chéret como unode los precursores más importantes de este movimiento de las artesdecorativas.[...]El elemento caricaturesco, irónico y satírico, las formas sencillas ylisas, la línea decorativa, eran artificios que Lautrec podía emplearen un cartel, pero que no hubiera podido expresar tan sencilla ydirectamente dentro de las convenciones de la pintura de su tiempo.Sus carteles tienen un carácter de bosquejo que es mucho menospatente en los cuadros y dibujos que realizó sobre los mismos temas;volveremos a encontrar esta formulación simplificada en la obra demuchos pintores de la primera mitad del siglo XX.

Depreende-se desse “encontro” de Chéret e Lautrec, a partir das afinidades

temáticas e representacionais expressas em seus affiches que, ao entretecer fundamentos

da cultura oficial com o idioma da cultura popular de sua época, esses artistas não apenas

reaproximaram arte e público como lograram demonstrar na prática, já àquela altura, a

inocuidade dos esforços de indivíduos ou grupos interessados em reservar territórios

distintos para a grande arte e para o que classificavam de artes menores.

O desdobramento natural dessa sintonia de linguagens foi que, perfeitamente

assimilados como forma de expressão artística em fins do século XIX, os cartazes

asseguraram um grau de reconhecimento social até então inédito para o artista-designer

francês, situação esta que não tardaria a se estender, também, a outras partes do Ocidente.

Ocorria que:

[...] os artistas que moravam fora da França, e que consideravam Parisa capital artística do mundo, olhavam para os pôsteres parisiensescheios de admiração. Todavia, Amsterdam, Bruxelas, Berlim, Munique,

9 Cf. GREENBERG, Clement. Pintura Modernista. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (org.): Clement Greenberge o debate crítico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997.

Page 26: Cartemas de Aloisio Magalhães

26

Budapeste, Viena, Praga, Barcelona, Madri, Milão e Nova York tambéminvestiam em suas próprias escolas de artistas de pôsteres, gerandotalentos individuais brilhantes. (HOLLIS, 2001, p. 7)

A rápida inserção do cartaz na esfera da cultura ocidental influiu no surgimento e

afirmação de um padrão de publicação editorial nas duas últimas décadas do século XIX:

as revistas ilustradas10 especializadas em temas do cotidiano e arte.

Valendo-se da expansão do mercado literário -reflexo dos benefícios legados pelos

planos de educação que alguns estados europeus implantaram por volta de 1870 com o

objetivo de afirmar o sentimento e a idéia de nação-, essas e outras publicações do gênero

colaboraram decisivamente para a divulgação mundial da produção européia de pôsteres;

nos Estados Unidos, por exemplo, “após a publicação de um livro sobre o assunto, Les affiches

illustrées, em 1886, os pôsteres adquiriram respeitabilidade cultural, tornando-se moda colecioná-

los” (HOLLIS, 2001, p. 9).

Essas revistas consistiam num vantajoso veículo de divulgação do trabalho dos

artistas-designers, na medida em que representavam, ao mesmo tempo, um meio de difusão

e o objeto de aplicação das suas teorias,

técnicas e habilidades.

Quando enfim desponta o século

XX, os resultados da confluência dos

esforços de Morris com as pesquisas

gráficas de Chéret já teriam promovido

o reencontro dos pintores com os

artistas gráficos, e o movimento Art

Nouveau, desde sua origem, afiança

essa afirmação. Alphonse Mucha (fig.

8.1), Gustav Klimt (fig. 8.2), Henry van

de Velde (fig. 8.3), Charles Rennie

Mackintosh, Eugène Grasset, Aubrey

Beardsley, Maurice Denis e os já citados

Toulouse-Lautrec e Bonnard, são alguns

dos artistas que transitaram no campoFigura 8 - Cartazes de autoria de A. Mucha (1), G. Klimt (2) e H. Van de Velde (3).

1 2

3

10 Destacam-se, entre as publicações da década de 1890, os periódicos ingleses The Studio e The Poster (1898), as revistasalemãs Die Jugend (1896), Simplicissimus (1896) e Pan (1895), a vienense Ver Sacrum (veículo do movimento Secessão,liderado por Gustav Klimt) e as norte-americanas The Chap-Book, Lippincott’s e Harper’s Magazine.

Page 27: Cartemas de Aloisio Magalhães

27

das artes gráficas durante o período em que o chamado estilo moderno dominou o cenário

artístico ocidental.

Daí em diante, não foram poucas as ocasiões em que a pintura exerceu influências

sobre as artes gráficas ou foi por elas influenciada. Georges Braque, Juan Gris e Pablo

Picasso estamparam letras ou palavras e colaram fragmentos de jornais e outros impressos

em suas telas cubistas (fig. 9), recursos que propiciariam experiências estéticas singulares

como aquelas a que procederam Roman Opalka e Emilio Isgrò. Filippo T. Marinetti ampliou

o sentido das palavras de seus poemas ao imprimi-las com direções, pesos, dimensões e

tipos diferenciados que subverteram a estrutura convencional das composições tipográficas

(ainda que antes dele e dos demais futuristas e de maneira menos radical Mallarmé já o

tivesse feito em 1897, com seu poema Un coup de dés) e abriu nova alternativa estética

para os artistas gráficos, italianos e não, nas duas primeiras décadas do século passado.

Caminho semelhante trilharam os dadaístas (figuras 10.1 e 10.2), e Kurt Schwitters fornece

bons exemplos do efeito dessa incorporação de produtos gráficos (como bilhetes de ônibus,

fotografias e recortes de jornais) às suas “pinturas”. Daí para a frente, design e pintura

seguiriam trocando influências, como se pode observar com o movimento de stjil de Théo

van Doesburg e Piet Mondrian, com o suprematismo de Kasimir Malevitch (fig. 10.3) e o

Figura 9 - Nos quadros de Picasso (1), Braque (2) e Gris (3), a inserção de elementos semânticos, com a constante do tema �jornal�.

Figura 10 - O cartaz dadaísta de Schwitters e van Doesburg (1) aproxima-se, na linguagem, das telas de Schwitters (2) e Malevitch (3).

1

2

3

1 2 3

Page 28: Cartemas de Aloisio Magalhães

28

construtivismo russo, até que os pressupostos filosóficos, a interdisciplinaridade e a

produção da Bauhaus (que seriam retomados mais tarde, em meados da década de 1950 e

em outras bases, pela Escola da Forma de Ulm) viessem confirmar a tese da indissociabilidade

entre a técnica e a estética.

Todavia, por mais consistência que comporte, o legado dos mestres da escola de

Weimar (e de Ulm) parece não ter sido convincente o bastante para pôr fim a essa herança

discriminatória que, ao final, é o alimento de que se nutre a tendência classificatória das

diferentes formas de expressão artística. Ora como tema de discussão levantado por críticos,

designers e historiadores da arte contemporâneos, ora como fato aparentemente assimilado

por certos autores, o problema da referida diferenciação tem persistido e, ainda que possam

causar surpresa pelo contexto no qual soem ocorrer, não são raras as construções verbais

suscitando prevalência de um sobre outro tipo de manifestação artística. A título de ilustração

transcrevo, a seguir, algumas dessas ocorrências.

A publicação Arte no Brasil, por exemplo, que trata da produção de arte no país

desde o descobrimento até a data de sua edição -o ano de 1982-, registra no capítulo

intitulado (Século XVIII) Artes Menores:

O problema da existência de uma arte brasileira, com característicasnacionais, talvez não deva ser colocado em função das manifestaçõesartísticas puras, como a escultura ou a pintura, e sim em relação àschamadas artes aplicadas, decorativas ou menores, que incluemmobiliário, ourivesaria, cerâmica, imaginária, têxteis etc. Nessasmanifestações artísticas, tidas como inferiores, a alma nacional soubeexpressar-se melhor do que nas artes “superiores”; se se quiser localizara marca da mão do povo brasileiro, é nessas produções modestasque se irá descobri-la, pois nelas o artesão ou o artífice soube externar-se com uma l iberdade e uma invenção que nem sempre lhepossibi l i taram as manifestações art íst icas mais sof ist icadas.(LEITE, 1982, p. 337, grifos meus)

O exemplo acima não representa, no entanto, um caso isolado. Ao contrário, com

relativa freqüência deparamo-nos com formulações semelhantes àquela, como as que

reproduzo a seguir. A primeira, do autor inglês John Barnicoat, num registro em sua obra já

citada:

El Art Nouveau fue el estilo moderno más característico del cambio desiglo. El diseño de carteles formó parte de este movimiento artísticoque afectó tanto a las ar tes mayores como a las menores.(BARNICOAT, 1977, p. 29, grifos meus)

Page 29: Cartemas de Aloisio Magalhães

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Outra, talvez mais surpreendente, é a que nos oferece em seu livro Layout: o design

da página impressa, o designer gráfico Allen Hurlburt:

[...] Neste século [o século XX], mais do que em qualquer outro, asmúltiplas disciplinas do design são entrelaçadas para formar o tecidodo estilo contemporâneo. O movimento cubista estava relacionadoapenas com a pintura e a escultura, mas, em composição com oDadaísmo e o Futurismo, os esti los e influências começaram adisseminar-se das artes mais nobres para outras áreas do design.(HURLBURT, 1986, p. 14-15, grifos meus)

É bem pouco provável que tais citações -por mais carregadas que sejam de atributos

de valor- pretendam intencionalmente reforçar essa idéia de hierarquização entre as

alternativas de realização artística; a desatenção, todavia, acaba por fazê-lo. Só que aceitar

aí qualquer condição de supremacia é, em última análise, acatar a tese de que as formas

“superiores” de arte rejeitam toda e qualquer finalidade prática; ou que seriam, segundo

Kant, uma "finalidade sem fim". Quanto a isto, tendo a concordar com Pierre Francastel

(1973, p. 57), quando observa:

Hoje, tanto quanto em qualquer outra época, a arte verdadeira jamaisrevestiu um caráter de gratuidade. Os valores estéticos não são osvalores desligados de toda contingência, os valores inúteis. Seiperfeitamente que a opinião de Kant foi tomada por vários, dentre osmelhores pensadores. Se hoje, nos círculos de filósofos, existe umatendência desastrosa de identificar a arte com o supérfluo, isto sedeve em grande parte a Bergson que divulgou essa ilusão. Para ele afinalidade da arte é criar mundos imaginários; ela preenche a vocaçãofabuladora da humanidade.[...] Acresce que a arte sofre, em nossosdias, uma tentação pelo gratuito e há de se reconhecer que em grandeparte a culpa cabe aos artistas e aos filósofos se os técnicos têm umaidéia tão falsa sobre as relações da arte com a técnica.A origem dessas teorias é dupla. Filosófica por um lado. Mostrei suaorigem em Kant e não se poderia estar de acordo com sua fórmulapois se arte era verdadeiramente uma finalidade sem fim, ou se o artistanão se propunha um outro objetivo exterior a ela, seria necessário negarà arte toda significação. Ao contrário o que ocorre de fato é que aarte, servindo em todas as épocas como meio de expressão e depropaganda, é um dos veículos da ideologia de seu tempo; é tambémum fato que o arquiteto que constrói um palácio, uma ponte ou umaigreja não trabalha no absoluto, fora de toda contingência, mas, pelocontrário, para satisfazer ao mesmo tempo às necessidades práticas eàs exigências de gosto de seus contemporâneos.

Recuando no tempo até o ano de 1923, encontraremos também no pensamento de

Leon Trotski a seguinte abordagem sobre a relação entre arte e técnica, sob a ótica da finalidade:

Page 30: Cartemas de Aloisio Magalhães

30

Tomemos o canivete como um exemplo. A combinação de arte e técnicapode desenvolver-se dentro de duas linhas fundamentais: ou a arte embelezao canivete e retrata em sua lâmina um elefante de suprema beleza, ou aTorre Eiffel; ou a arte ajuda a técnica a encontrar uma forma "ideal" parao canivete, ou seja, uma forma que corresponda mais adequadamente aomaterial de um canivete e ao seu uso. Pensar que essa tarefa pode serresolvida por meios puramente técnicos é incorreto, porque finalidade ematerial permitem numerosas... variações. Para fazer um canivete "ideal"precisamos, além do conhecimento das propriedades do material e dosmétodos de sua utilização, também de imaginação e gosto. Segundo toda atendência da cultura industrial, podemos pensar que a imaginação artísticana criação de objetos materiais será dirigida para a elaboração da formaideal de uma coisa como coisa, e não para o seu embelezamento como umafinalidade estética em si. (SELZ, 1999. p. 471-472)

As palavras de Francastel e de Trotski irão encontrar consonância na esclarecedora

parábola d'O busto e o elmo, em que o autor, Giulio Carlo Argan, estabelece comparações

de objetivos entre os trabalhos do artista -um escultor- e do artesão de um mesmo período

histórico, empenhados em produzir, o primeiro, um busto de bronze, e o segundo, o elmo de

um guerreiro. Salientando que ambos têm por referencial comum de criação a cabeça do

homem, Argan (1992, p. 115-116) considera:

O artista que modelou o busto pensou que a cabeça do homem é belaporque é a parte mais nobre do corpo humano, aquela que em mais altograu reflete e revela a perfeição ideal de Deus. O artesão que lavrou ocapacete pensou que a cabeça é a parte mais importante, vital e delicadado corpo humano, aquela que merece em mais alto grau ser protegida, econdicionou a forma do objeto a esse seu conceito de valor: aumentou aespessura do metal onde piores podem ser os efeitos dos golpes, estudou ainclinação ou a curvatura da superfície de modo a fazer derrapar osfendentes, buscou obter o máximo de segurança com o mínimo de peso.Para o artista que modelou o busto, o valor de uma cabeça é estreitamenteligado à semelhança, para o artesão que forjou o capacete ele é praticamenteindependente desta.

Porém, enfatiza o autor, a semelhança interessa ao artista enquanto parâmetro de

transposição para o universal -o espaço, no qual se instalará como imagem-, aquilo que

antes é individual: os traços exteriores de um rosto determinado. Assim, o busto é fruto da

contemplação e destina-se, em última análise, à contemplação. Quanto ao artesão, interessa-

lhe resolver o elmo como agente mediador entre a cabeça e o espaço em que atua o guerreiro;

sua obra está, pois, em relação direta com a idéia de ação. E mais:

O escultor concebeu a sua forma como uma "coisa" que apenasocasionalmente é tal, mas na realidade tende a separar-se da contingência

Page 31: Cartemas de Aloisio Magalhães

31

e temporalidade da coisa para atingir a universalidade ou a imóvelespacialidade da imagem. O artesão quis, ao contrário, criar uma formaque fosse antes de tudo e de pleno direito uma coisa, um objeto, e quecomo tal se referisse a uma contingência específica, a uma dada condiçãotemporal: a do homem que vai à guerra. A forma do busto é naturalistaporque nasce da consideração da figura humana como um aspecto, o maisalto aspecto, da Criação. A forma do capacete, embora aparentementeabstrata, é de fato realista porque considera o homem na sua realidade, notempo e no lugar de uma circunstância bem precisa. Para o autor do busto,tudo é já criado, já está no espaço, e ao artista não se permite senão imitarou repetir, mesmo que individualizando o momento eterno da beleza sob assemelhanças mutáveis do contingente. Para o autor do elmo, a série dosobjetos é i l imitada como a das ações humanas; al iás, há umacorrespondência tão estreita entre as ações e os objetos que são as primeirasque determinam ou criam os segundos.A própria objeção comum sobre a pura esteticidade do busto e a purapraticidade do elmo se revela inconsistente: todos estamos de acordo emreconhecer que a forma do elmo é bela, e o é porque responde de modopreciso e exaustivo a uma função. [...] Portanto, a idéia de função nosserve de unidade de medida da qualidade estética da forma do elmo, domesmo modo como a idéia da observação ou da contemplação nos servede unidade de medida da qualidade estética do busto: só que a idéia defunção implica a de ação, enquanto a idéia de contemplação implica a deimobilidade.

Num desdobramento desse raciocínio Argan pontua que, para cumprir com êxito a

função a que se destina, é preciso que ao objeto esteja associada a noção de projeto -a

base do trabalho do designer (e também do arquiteto)-, em lugar daquela de esboço com a

qual trabalha, geralmente, a maioria dos artistas. Projetar, por sua vez, requer conhecimentos

dos meios de operação e das etapas da produção de determinado objeto em escala industrial;

igualmente, implica na consciência da possibilidade de atendimento às exigências de uma

certa coletividade e não mais de demandas individuais. E conclui:

É portanto o "projeto" ou o "desenho industrial" que determina a priori,e sempre em relação à função, a qualidade do produto, que é semprequalidade estética; e não pode, na atual condição da cultura, haver umbom projeto que não nasça de um processo de intuição ou de invenção,isto é, de um processo tradicionalmente considerado de caráter estéticoe próprio dos artistas.

Naturalmente, não se concebe hoje uma escala de produção de objetos destinados

ao atendimento às necessidades materiais das sociedades que ocorra fora da indústria, e

o designer é o profissional que pode conferir distinção de qualidade -funcional e estética-

a esses produtos. A relação entre o design (gráfico ou de produto) e a indústria é, pois,

inextricável; mas essa condição atual de interdependência não implica, necessariamente,

Page 32: Cartemas de Aloisio Magalhães

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em que todo produto industrial seja esteticamente bem resolvido ou mesmo socialmente

necessário; só que neste caso, a resposta da coletividade se dá de maneira clara e precisa,

através de seu direito de escolha. Afinal, há boas e más soluções em design como há, na

arte em geral, obras de maior ou menor significação, e a medida do êxito ou fracasso para

essas atividades pode ser dada pelo grau em que cada uma delas opera e modifica a

realidade.

Sabemos que a noção de finalidade que conduz o processo de criação em design

não recomenda ao designer atitudes hedonistas, algo equivalente a um design pelo design;

a arte, por seu lado, ainda as admite, e os mecanismos sutis -mesmo denunciados e

combatidos pelos artistas mais conscientes- de parte do mecenato contemporâneo, não

raro as alimentam e exploram. Um livro recente, intitulado Livre-troca: diálogos entre

ciência e arte -trabalho conjunto do sociólogo francês Pierre Bourdieu com o artista alemão

Hans Haacke-, é um importante sinal de alerta que desvela, também, alguns dos princípios

norteadores das estratégias de patrocínio da arte contemporânea. É o próprio Haacke (1995,

p. 28-29) quem esclarece:

Creio que é importante distinguir a idéia tradicional do mecenato dasmanobras de relações públicas que se apoderam desse termo. Invocandoo nome de Mecenas, as empresas de hoje se dão uma aura de altruísmo.O termo americano de sponsoring explica melhor que existe, narealidade, uma troca de bens, de bens f inanceiros da parte dopatrocinador e de bens simbólicos da parte do patrocinado. A maioriados homens de negócio é mais direta quando fala a seus pares. Alain-Dominique Perrin, presidente da Cartier, por exemplo, diz claramenteque ele gasta o dinheiro da Cartier visando metas que nada têm a vercom o amor à arte.[...] Segundo suas próprias palavras: "O mecenato não é apenas umformidável instrumento de comunicação; muito mais do que isto, ele éum instrumento de sedução da opinião". Os contribuintes pagam aquiloque as empresas recuperam através de isenções fiscais pelas suas"doações", e somos nós quem verdadeiramente subvencionamos apropaganda. Estes custos da sedução não servem apenas para omarketing dos produtos, como os relógios e as jóias no caso da Cartier.É mais importante para os patrocinadores criar um clima políticofavorável a seus interesses no que diz respeito, por exemplo, aosimpostos, à regulamentação do trabalho ou da saúde, às coaçõesecológicas ou à exportação de seus produtos.11

11 Destaquei aqui o caso da Cartier -empresa multinacional de origem francesa que atua no mercado de jóias- por doismotivos que me parecem relevantes. O primeiro, expresso no texto, por revelar as verdadeiras intenções do mecenatoda troca e da cooptação; o segundo porque, atento às manobras da empresa, Hans Haacke produziu, em 1986, umainstalação denominada O must de Rembrandt em que desmistifica a “aura de altruísmo” da empresa que explora epreserva, através do trust Rembrandt, condições subumanas de trabalho nas minas de metais preciosos na África doSul. (id., 1995, p. 40-43)

Page 33: Cartemas de Aloisio Magalhães

33

Produzir arte sob tais circunstâncias difere pouco daquela atitude submissa e acrítica

dos artistas que trabalharam, até por volta do século XIX, a serviço da alta cultura e das

ideologias da aristocracia, da igreja e do estado; e isso, por mais que se possa pretender, não

confere a qualquer dos segmentos da arte as supostas qualidades superiores; e não seria de

se estranhar que fossem os beneficiários desse tipo de mecenato -que tanto os afasta de seu

importante papel de transformadores sociais-, os mesmos a defender com veemência uma

condição especialmente pura para a Arte. Em situações como esta, o pacto firmado entre o

capital e a arte é seguramente mais nocivo à sociedade (e à própria arte, naturalmente) do que

poderia sê-lo a "polêmica" (porém clara) relação da indústria com a arte, estabelecida através

do design -essa "forma de expressão que se projeta para o futuro, sempre em busca de

articulações e significados novos e cujo pressuposto nuclear é atender às demandas de bem-

estar físico, intelectual e emocional do ser humano" (ESCOREL, 2000, p. 69).

Na controversa obra literária Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, Affonso

Romano de Sant'Anna (2003, p. 185), ao discorrer sobre a função da arte, assinala que:

[...] quando um congolês fazia uma colher de madeira que admiramoshoje, ele a fazia, primeiramente, movido pela necessidade, mas tambémpor um desejo de funcionalidade e harmonia com seu universo. É amesma coisa com a arte plumária de nossos índios ou desenhos eesculturas astecas. [...] O processo de sedução estética e artísticaque pode acontecer pelo avesso, até pelo exercício do horror e dogrotesco, tem uma função na relação entre as criaturas. Não existecultura sem símbolo e sem o mínimo de estética. E uma das maneirasde medir o grau de desenvolvimento dos indivíduos e coletividades,deve (ou deveria) ser a capacidade de se expressarem simbolicamente,pelos rituais, pelos jogos, pela política e pela arte.

Desconectada do público e de uma função, a arte não serve sequer a si mesma.

Compreendendo muito bem isso, não são poucos os artistas que têm buscado reafirmar seu

papel na sociedade através de ações capazes de reatar os laços da arte com a coletividade.

Aloísio Magalhães, como será mostrado a seguir, foi um deles. Para lograr êxito nesta tarefa

precisou experienciar o "isolamento do artista", rever criticamente seus próprios objetivos,

mudar a direção de sua produção, transitar por áreas de criação e realização específicas. A

soma de todas essas ações desembocou nos cartemas, trabalho artístico que confirmou a

tese de que, juntos, arte e design têm mais em comum do que se pode ser levado a deduzir

pela habitual (e já desgastada) pretensão de conferir graus diferenciados de valor às variadas

formas de expressão artística.

Page 34: Cartemas de Aloisio Magalhães

34

3. ALOÍSIO MAGALHÃES

A trajetória de vida do brasileiro Aloísio Barbosa Magalhães foi marcada por intensa

atuação nos campos da pintura, das artes gráficas, do design e da política cultural.

Nascido na cidade do Recife, em 1927, Aloísio descende de família rica e influente

no cenário político pernambucano e nacional. Seu pai, o médico e professor Aggeu Sérgio

de Godoy Magalhães, foi diretor da Faculdade de Medicina do Recife em meados da década

de 1930 e mais tarde secretário de Saúde e Educação de Pernambuco; seu tio, Agamenon

Magalhães, foi deputado estadual (1918), deputado constituinte eleito em 1932, ministro

do Trabalho do governo Getúlio Vargas, interventor do Estado de Pernambuco -sob o Estado

Novo- de 1937 a 1945, ministro da Justiça de Vargas, novamente deputado constituinte em

1946 e governador de Pernambuco, agora eleito, em 1950. Sérgio Magalhães, outro irmão

de seu pai, também foi deputado federal com base eleitoral no Rio de Janeiro, em princípio

da década de 1960.

Aos dezoito anos de idade, Aloísio ingressava no curso de Direito da Universidade

Federal de Pernambuco, profissão que nunca viria a exercer e, sobre as razões que o levaram

a escolhê-la, pronunciaria mais tarde: “quem é que não fazia direito na época? Era o primeiro

sinal de bom senso, quer dizer, bom senso de desejo de uma projeção política, intelectual”

(LEITE, 2003, p. 27).

Sua vida acadêmica foi conciliada desde o início em 1946, e até o final do curso em

1950, com as funções de cenógrafo e figurinista do Teatro do Estudante de Pernambuco -

TEP, cuja “proposta de trabalho estava sintonizada com os movimentos estudantis do Recife

que no período do Estado Novo tinham se engajado nas lutas antifascistas e em 1946

participavam intensamente do processo de redemocratização política do país”, segundo

registra em texto1 o amigo -e ex-integrante do TEP- José Laurenio de Melo. Ali também,

Aloísio respondeu temporariamente pelo Setor de Teatro de Bonecos e participou da criação

das Edições TEP, destinadas a divulgar a “produção de uma literatura dramática embebida

na realidade brasileira”.

Em janeiro do ano em que se graduaria em Direito, Aloísio ocupa seu primeiro cargo

público, como redator da Diretoria de Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife.

Uma bolsa de estudos obtida do governo francês por indicação de seu amigo, o

diplomata Wladimir Murtinho, leva-o a Paris entre 1951 e 1953, onde cursa museologia na

1 MELO, José Laurenio de. Aloísio e o TEP. In: LEITE, João de Souza. A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães. Riode Janeiro: Artviva, 2003.

Page 35: Cartemas de Aloisio Magalhães

35

Escola do Museu do Louvre, além de freqüentar aulas de gravura no Atelier 17 com o

gravador inglês Stanley William Hayter.

Em seu retorno ao Brasil, Aloísio apresenta ao público, ainda em 1953, sua produção

como pintor através de mostras das aquarelas, guaches e óleos realizados em Paris. Expõe

em sua cidade natal e participa com duas obras da 2ª Bienal Internacional de São Paulo.

No ano seguinte integrava o grupo de intelectuais responsável pela criação, no

Recife, d’O Gráfico Amador, uma espécie de oficina-atelier dedicada a pesquisas e

realizações no campo das artes gráficas e a edições visualmente elaboradas de textos

literários. Dessa época até o final da década, Aloísio participa de várias exposições de

pinturas -individuais e coletivas- no Brasil (Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo)

e no exterior (Washington, Nova Iorque, Cincinnati, Filadélfia e São Francisco); viaja

para os Estados Unidos com bolsa de estudos concedida pelo Departamento de Estado

americano onde se aprimora na técnica de impressão offset na oficina The Falcon Press

(na Filadélfia), de propriedade do artista gráfico Eugene Feldman, com quem publicaria o

livro Doorway to Portuguese. Já no Brasil, publica os livros Aniki Bóbó -que une desenhos

seus a textos de João Cabral de Melo Neto-, Improvisação Gráfica, uma experiência

gráfica sobre textos de vários autores -ambos pelo Gráfico Amador-, e um segundo livro

em parceria com Eugene Feldman, Doorway to Brasília; leciona por duas vezes no

Philadelphia Museum College of Art, a convite do diretor, e integra a comitiva brasileira

na XXX Bienal de Veneza.

Quando ao final de 1961 O Gráfico Amador encerrava suas atividades, Aloísio já

se havia estabelecido como designer na cidade do Rio de Janeiro. Em 1960 montara com o

arquiteto Artur Lício Pontual, numa casa do bairro de Botafogo, um escritório de design -

seu primeiro passo em direção a uma atividade que desempenharia com reconhecido

brilhantismo e que tomaria como prioridade nos quinze anos seguintes. Esta iniciativa, de

bem-sucedido pioneirismo, logo se converteu em alavanca para a implantação e

desenvolvimento da profissão de designer no país. Em 1962, convidado pelo então governador

do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, Aloísio integrava o grupo responsável pela criação

da ESDI – Escola Superior de Desenho Industrial, a primeira instituição latino-americana de

ensino superior em design, de cujo corpo docente participaria por cerca de oito anos.

Sua intensa dedicação a esta atividade só seria relegada a um segundo plano por

volta de 1975, quando, com o interesse direcionado para questões referentes à preservação

da cultura brasileira, iniciava uma nova jornada com a criação do CNRC – Centro Nacional

de Referência Cultural. Daí por diante, Aloísio enveredaria pelos caminhos da política oficial

Page 36: Cartemas de Aloisio Magalhães

36

para a cultura -sobretudo em sua vertente patrimonial- trazendo consigo críticas e propostas

de reformulação à política tradicional do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

- SPHAN - que, a seu ver, negligenciava aspectos significativos da cultura brasileira.

Em sua passagem pelo serviço público federal, ao final do governo militar nas gestões

de Geisel e de Figueiredo, exerceu os cargos de diretor do IPHAN - Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (1979), presidente da Fundação Nacional Pró-Memória

(1980) e secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura (1981).

No dia 13 de junho do ano de 1982 Aloísio Magalhães viria a falecer em Pádua, na

Itália, quando, na condição de representante do ministro da Educação e Cultura do Brasil -

Rubem Ludwig-, participava de um encontro de ministros da Cultura de países de língua

latina realizado na cidade de Veneza.

Assim relatada, a biografia de Aloísio pode induzir à suposição de que ruptura seja

o termo que melhor traduza sua trajetória profissional, mas este é um erro a que se pode ser

levado por uma análise pouco profunda de sua diversificada atuação. Na verdade, cada

guinada significou, sempre, uma atitude lastreada na experiência anterior, uma escolha

amadurecida e consciente, um processo de soma contínua em busca de um campo de ação

de maior alcance social. É como descreve o ex-assistente e parceiro de equipe de Aloísio,

o pesquisador João de Souza Leite:

Sempre próximo ao exercício do poder, fosse nas lides políticas ou frutodo exercício intelectual, Aloisio se formou com naturalidade. Semrupturas. Certamente isso se refletiu nas vezes em que se referia àsegurança das coisas contínuas, tema constantemente reiterado em seudiscurso de político. Para Aloisio, a preservação da continuidade, daevolução das coisas por uma contínua experimentação, computando oerro como possibilidade de correção dos rumos, era fundamental.(LEITE, 2003, p. 27)

Sob um outro prisma, mas na mesma direção, o designer e professor Joaquim Redig

de Campos (LEITE, 2003, p. 141) aponta, no curso da vida profissional de Aloísio Magalhães

(ao lado de quem se iniciou na profissão em 1966), dois momentos, que classifica como:

[...] dois grandes estágios –que poderiam ser chamados, o primeiro, deplástico, e o segundo, de político- havendo em cada estágio dois temposdefinidos: as experiências iniciais em pintura e gráfica (no Recife até1960) e o escritório de design (no Rio, de 1960 a 1975-1980)correspondem ao primeiro estágio; o Centro Nacional de ReferênciaCultural (em Brasília, de 1975 a 1977-1980) e a política cultural noMEC, ao segundo.

Page 37: Cartemas de Aloisio Magalhães

37

E, prosseguindo, esclarece:

Ao mesmo tempo os dois estágios -plástico e político- estão interligadosem um mesmo ciclo, já que o CNRC foi uma conseqüência do escritóriode design, na medida em que representou uma exacerbação e um novoestágio na busca da natureza do produto brasileiro. Seu trabalho plásticosempre teve um lado político, no sentido da conscientização e da açãopública, e seu trabalho político sempre teve um lado plástico, naidealização, na formalização, e na própria matéria do trabalho. Naverdade, era tudo uma só coisa, em sua visão abrangente dos fenômenosapenas as ênfases variavam, em cada momento e em cada contexto.

O que se pode observar então, em cada um desses momentos e em cada um desses

contextos da vida relativamente breve de Aloísio Magalhães, é que nenhum deles foi

explorado de forma superficial. É bem verdade que os registros que ajudam a tecer a história

desse brasileiro levam à ilusão de que seu papel como designer sobrepuja sua atuação como

homem público da política cultural, e que um e outro, combinados ou isoladamente, ofuscam

seu ofício de artista plástico. Acredito, porém, que um olhar de maior amplitude -e se possível

despojado da habitual (e até mesmo compreensível) objeção aos privilégios das classes

dominantes- lançado sobre os vários fazeres de Aloísio revelará sempre a seriedade e

competência com que ele se dedicou a cada uma dessas empreitadas, ao mesmo tempo que

fará transparecer aquele fio de coerência que as alinhavou.

E é bom lembrar, os privilégios de que teria usufruído, reconheceu-os Aloísio em

mais de uma oportunidade, quando exortava seus pares a retribuir ao país (ou ao mundo,

como em seu derradeiro discurso no encontro de ministros da Cultura) as conquistas e

experiências pessoais obtidas por conta desse e outros tipos de benefícios. E como

privilegiados entendia todos os que

não morremos na primeira infância. [...] [E que] tivemos acesso à escola,não fomos discriminados e mantidos na ignorância e no desconhecimentoe na tristeza. Tivemos a nossa alfabetização garantida. E mais ainda: onosso privilégio vai ter acesso ao conhecimento de nível superior, àsuniversidades, a um conhecimento específico, a escolhas, a opções emque a nossa personalidade pôde encontrar pouso e auxílio. E ainda mais.O nosso privilégio vai ainda muito adiante. Viajamos para o estrangeiro,conhecemos o mundo, temos acesso a outras culturas, informaçõesenriquecedoras no cotejo dialético entre formas e preferências deculturas diversas. Podemos voltar aos nossos países com o privilégioimenso de termos visto outros países, como eles operam, como elesresolvem seus problemas, como enriqueceram, eventualmente comoadensaram a sua cultura. (LEITE, 2003, p. 262-263)

Page 38: Cartemas de Aloisio Magalhães

38

Seria o caso de proceder, então, ao estudo em separado do desempenho de Aloísio

em cada uma dessas experiências, com o propósito de relacioná-las umas às outras, e todas,

tanto quanto possível, ao cartema, o objeto desta pesquisa.

Por razões puramente metodológicas, recorrerei aqui a uma inversão da cronologia,

iniciando pela carreira pública -a que aparentemente menos se aproxima dos cartemas-,

para abordar em seguida a pintura e o design de Aloísio Magalhães.

Page 39: Cartemas de Aloisio Magalhães

39

3.1. ALOÍSIO, POLÍTICO

Um ponto de convergência nas descrições que fazem os contemporâneos de Aloísio

Magalhães sobre suas qualidades de “homem público” ressalta a habilidade, pertinácia e

competência com que eram habitualmente conduzidos e implementados suas idéias e projetos.

Estes predicados, aliados ao trânsito que seguramente as relações familiares e sociais facilitaram

e ao acurado senso de oportunidade (e de responsabilidade), certamente explicam sua rápida

ascensão na esfera da política governamental brasileira para a cultura, no período compreendido

entre os anos de 1975 e 1982. Poder-se-ia somar a isso ainda -se colhidas e acolhidas algumas

impressões de pessoas próximas ou parceiras de equipe- um reconhecido carisma, um grande

poder aglutinador, uma segura e suave liderança, ou mesmo a particular aptidão em traduzir

idéias em palavras e palavras em ação. Mas estes são, em boa parte, depoimentos emocionados;

e, como declarações póstumas, talvez devam ser considerados com reservas.

Divagando um pouco, acrescentarei ao texto algumas linhas com o relato de uma

ocorrência insólita.

Num sonho recente, apareceu-me Aloísio Magalhães; falava-me então de seu projeto

interrompido rumo à presidência da república (!?). Não raro os sonhos carregam absurdos,

e não raro os absurdos aparentes revelam sentidos plausíveis. Aloísio, que desde os

primórdios de sua vida estivera cercado de políticos (alguns poderosos) estaria

procedendo agora, na maturidade, a um retorno aos registros da infância? Buscava

fechar o círculo, cumprindo uma missão para a qual fora predestinado?... Tais eram,

em sonho, meus pensamentos. Ao despertar, ocorriam-me à lembrança fragmentos de seu

derradeiro discurso no encontro de ministros de Cultura dos países de língua latina, em

Veneza, horas antes de sua morte, quando parecia tomar para si responsabilidades próprias

de um governante firmemente comprometido com a construção da identidade de sua nação.

Também me vinha à memória uma declaração dada por ele em mais de uma ocasião, quando,

já inserido no meio político e completamente dedicado à causa do patrimônio cultural

brasileiro, prognosticava: “Agora não há mais tensão, porque não há outra possibilidade.

Esta é a minha experiência por toda a vida adiante”.

Mas isso aconteceu num sonho, e sonhos carregam absurdos; se prováveis ou

improváveis, melhor será deixar que os registros da história, de um período ainda recente,

orientem as conclusões.

(...)

Page 40: Cartemas de Aloisio Magalhães

40

O processo de “abertura política” empreendido no regime militar pelo presidente

Ernesto Geisel (1974-1978) passava pela revisão, entre outras, das relações entre o estado

e a cultura; em 1975 era lançada pelo governo federal a Política Nacional de Cultura -

PNC-, que destinou significativo montante de recursos para os setores culturais do MEC,

então sob o comando de Ney Braga, um ex-governador do Paraná que “marcou sua gestão

à testa do executivo paranaense por inúmeras iniciativas na área cultural (Fundação

Educacional do Paraná, Teatro Guaíra, Companhia Oficial de Teatro).” (MICELI, 1984, p.

65).

Miceli (1984, p. 65) assinala que:

O simples fato de o governo Geisel ter escolhido para ministro daEducação e Cultura um militar reformado cuja carreira política seconsolidara através de sucessivas vitórias eleitorais e que se beneficiavaainda da imagem de prócer simpático ao patrocínio das artes evidenciao cálculo de lograr dividendos em função do apoio concedido aos meiosintelectuais e artísticos. Somente um ministro forte teria condições paraassegurar o montante de recursos necessário ao trabalho de “construçãoinst i tuc ional ” nas d imensões aprec iáve is em que acabou sedesenvolvendo, ou então, para guindar aos postos executivos deconfiança nas instituições culturais porta-vozes legítimos da “classeintelectual e artística”, sobejamente à esquerda dos administradoresculturais típicos até então recrutados pelo regime de 64.

Na condição de designer, Aloísio Magalhães já havia se aproximado dos círculos

governamentais em 1966, quando, ao vencer um concurso promovido pelo Banco Central

para reformulação visual do padrão monetário brasileiro, foi contratado como consultor

desta instituição e da Casa da Moeda do Brasil. Agora, em virtude deste quadro que estreitou

as relações do governo militar com intelectuais e artistas, abria-se para ele a oportunidade

decisiva de atuação no campo da política oficial de cultura, com a criação do Centro Nacional

de Referência Cultural, o CNRC, um

grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério da Indústria e doComércio, em 1975, em convênio com o Governo do Distrito Federal,em espaço cedido pela Universidade de Brasília. O objetivo maior destegrupo, composto por pessoas de formação diversa, como físicos,matemáticos, literatos e arquitetos, entre outras, era levantar questõesreferentes não só ao processo de desenvolvimento econômico comotambém à preservação dos valores da nossa formação cultural, passandopelo papel do desenho industrial na definição de uma fisionomia dosprodutos brasileiros. Os resultados alcançados pelo trabalho no primeiroano do projeto levaram à adesão da Secretaria de Planejamento daPresidência da República, do Ministério da Educação e Cultura, do

Page 41: Cartemas de Aloisio Magalhães

41

Ministério do Interior, do Ministério das Relações Exteriores, da CaixaEconômica Federal, além do Ministério da Indústria e do Comércio,Universidade de Brasília e Governo do Distrito Federal (através desua Fundação Cultural).Chama a atenção, neste caso, a rapidez com que se conseguiu reunirtantas áreas governamentais em torno de um só projeto, evidenciandoa capacidade política de Aloísio Magalhães em ‘saber vender o seupeixe’ e saber agregar. (BOTELHO, 2000, p.94)

Até o momento em que Aloísio ingressara efetivamente nos organismos oficiais

voltados para a identificação e defesa dos bens culturais brasileiros, eram dois os nomes de

maior expressão associados diretamente a essa questão no país: Mário de Andrade e Rodrigo

Melo Franco de Andrade.

Ao primeiro coube uma ação pioneira quando, juntamente com alguns integrantes

do movimento modernista, empreendeu viagens pelo país nos anos 1920 -a que eles

próprios chamaram “redescoberta” do Brasil-, em busca de identificar os elementos

culturais genuinamente brasileiros capazes de conduzir, conforme pretendiam, à produção

de uma autêntica arte nacional. Destas ações resultou que, em 1936, Mário de Andrade

fosse convidado a elaborar, com a ajuda de Paulo Duarte2 , um anteprojeto para criação

de um organismo federal de proteção ao patrimônio cultural nacional. No ano seguinte, já

sob o Estado Novo, um decreto presidencial fundado nas proposições de Mário de

Andrade dava origem ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional3 – SPHAN,

subordinado ao Ministério da Educação e Saúde então comandado pelo ministro Gustavo

Capanema.

Rodrigo Melo Franco de Andrade, por sua vez, foi o intelectual designado por

Capanema para exercer o cargo de diretor do SPHAN, aí permanecendo desde 1937 até

1969 - ano de sua morte-, quando então a instituição passou a ser dirigida pelo arquiteto

Renato Soeiro, um arquiteto integrante da equipe de Rodrigo desde 1938. Por cerca de

dez anos Soeiro permaneceu à frente do IPHAN, numa administração cuja orientação

assemelhava-se à de seu antecessor, porém “desamparada, frente à prepotência de

autoritarismo e do falso milagre econômico, aos gastos e desmandos da EMBRATUR e de

2 Paulo Alfeu Junqueira Monteiro Duarte (1889-1984). Advogado, jornalista, memorialista, ensaísta e tradutor. Fundador em1935, também com Mário de Andrade, do Departamento Cultural da cidade de São Paulo. Exerceu função política, foi professor,dirigiu diversos jornais e revistas.

3 “A instituição veio a ser posteriormente Departamento, Instituto, Secretaria e, de novo, Instituto do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional (IPHAN), como se chama atualmente”. Conforme registrado na página da internet (http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos37-45/ev_ecp_sphan.htm). Acesso em 11/02/2004.

Page 42: Cartemas de Aloisio Magalhães

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outras estatais, aliadas à cobiça imobiliária sem limites, e à especulação financeira, já sem

a máscara do desenvolvimentismo dos anos 50 e 60” (CAMPOFIORITO, 1985, p. 37).

Em 27 de março de 1979, nomeado pelo ministro Eduardo Portella4 , da Educação e

Cultura do governo João Figueiredo, Aloísio Magalhães substituía Renato Soeiro no

comando daquela instituição.

A inserção efetiva de Aloísio nos círculos da política cultural governamental dera-

se, como já dito, a partir da implantação do Centro Nacional de Referência Cultural. O

processo de idealização do CNRC aproximou Aloísio do ministro da Indústria e Comércio,

Severo Gomes -um entusiasta do projeto-, e também do ministro Golbery do Couto e Silva

que, a seguir, tanto daria apoio à implantação do projeto quanto influiria na indicação de

seu nome para a direção do IPHAN5 . Aí, seja por conta de sua concepção mais abrangente

dos aspectos que definem a cultura nacional, seja por sua capacidade de sistematizar e

operacionalizar institucionalmente seus projetos, a presença de Aloísio assinala uma nova

era na história da instituição. Se até aquele momento a política conduzida pelo SPHAN para

preservação do patrimônio histórico e artístico refletia uma noção elitista de patrimônio

cultural -que identificava no barroco colonial, sobretudo o de Minas Gerais, a expressão

da cultura nacional-, com Aloísio essa noção se modifica no sentido de contemplar a

diversidade e a complexidade que caracterizariam, em sua opinião, o patrimônio cultural do

Brasil.

O que Aloísio fazia era retomar, em novas bases, o caminho indicado por Mário de

Andrade no projeto formulado em 1936, onde a idéia de patrimônio cultural “estava muito

mais próxima de uma concepção democrática e pluralista do que a que veio a inspirar a

política implementada por Rodrigo” (GONÇALVES, 2002, p.71) e continuada por Ricardo

Soeiro ao longo de sua gestão no IPHAN. O fato de discordar da orientação doutrinária de

seus antecessores, no entanto, não impedia Aloísio de reconhecer que

o período de Rodrigo M. F. de Andrade à frente do Sphan foifundamental para a consolidação de políticas públicas referentes aopatrimônio no Brasil, mas o desafio será estabelecer uma políticade preservação “democratizada, no sentido de que seja efetivamente

4 Eduardo Portella é citado por Isaura Botelho (p. 103) como amigo e contemporâneo de faculdade de Aloísio, no Recife. Suaindicação para a pasta da Educação e Cultura do governo Figueiredo, segundo Sérgio Miceli (p. 67), é atribuída ao escritor eteatrólogo Guilherme Figueiredo, irmão do presidente.

5 Cf. MICELI, Sergio. O processo de “construção institucional” na área cultural federal (anos 70). In: ___. Estado e Cultura doBrasil. São Paulo: Difel, 1984 (p. 67).

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apropriada, enquanto produção simbólica e enquanto prática política,pelos diferentes grupos que integram a sociedade brasileira.” 6 (BO,2003, p. 29)

Assim, não obstante as divergências conceituais e pragmáticas, “Aloísio trouxe para

dentro daquela instituição a sua visão de que o conhecimento crítico do passado seria

fundamental para qualquer ação duradoura no futuro.” (BOTELHO, 2000, p. 95)

Pródigo no uso de metáforas, Aloísio ilustrava essa sua visão quanto à importância

do passado na afirmação da identidade cultural de uma nação com a imagem do bodoque

(ou do estilingue), lembrando que quanto mais atrás se leva a corda (ou o elástico), mais à

frente vai o projétil.7

O problema da identidade esteve presente no discurso de Aloísio, como também

estivera, sempre, no de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Cada um a seu tempo, ambos

tomaram para si a tarefa de colaborar para a construção da identidade da nacional e,

A despeito de suas diferenças, tanto na narrativa de Rodrigo quantona de Aloísio a identidade nacional brasileira é considerada como algoque está ainda por ser realizado. Em ambas as narrativas a nação éobjetificada como uma “busca” pela identidade. Como toda busca,pressupõe um “centro”: uma entidade unificada, auto-idêntica e queautoriza ou legit ima aquela busca. A nação, enquanto entidadeobjetificada - ou como um “centro” -, existe mesmo na medida em queé buscada. Esse centro, no entanto, é instável, uma vez que escapacontinuamente dessa busca obsessiva. Na narrativa de Rodrigo, essecentro é a “ t rad ição” e a “c iv i l ização” ; na de Aloís io é a“heterogeneidade cultural” da nação e o seu “desenvolvimento”. Emsuas narrativas, tanto Rodrigo quanto Aloísio aparecem plenamenteidentif icados com essa busca por uma identidade nacional. Dediferentes maneiras, suas personalidades públicas são modeladas porsua profunda dedicação à causa do patrimônio. (GONÇALVES, 2002,p. 58)

A inevitabilidade de comparações entre as administrações de Rodrigo e Aloísio no

IPHAN -bastante freqüentes- pode ser explicada, em parte, pelo fato de que numa existência

de aproximados quarenta e três anos, a instituição só tenha sido dirigida por três diferentes

6 Citando FONSECA, Maria Cecília Londres da. O patrimônio em processo: trajetória da política de preservação no Brasil. Riode Janeiro: Ed. UFRJ, 1977, p. 261.

7 Noutras situações, recorreria à figura do cristal, para dar suporte à asserção de que nada há de novo no processo de formação deuma cultura: “o novo é apenas uma forma revista do passado. O novo é um ângulo de um cristal que pode ser visto através daincidência de uma nova luz. Mas o cristal é o mesmo. As faces são as mesmas e o conteúdo que ele espelha é o mesmo.” (LEITE,2003, p. 245)

Page 44: Cartemas de Aloisio Magalhães

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titulares. Por conta dessa particularidade, a historiografia oficial do Patrimônio registra as

três administrações como três períodos distintos: o primeiro, a fase “heróica”, correspondente

à gestão de Rodrigo M. F. de Andrade (1937 a 1969) e caracterizada pelo trabalho de

construção e consolidação institucionais; o segundo, o período Soeiro (1969 a 1979), que

não foi marcado por qualquer alteração significativa da política do patrimônio, ou, pior que

isso, uma “fase de declínio” segundo Campofiorito (1985, p. 32); e o terceiro período,

inaugurado por Aloísio Magalhães, assinalado como uma fase de profundas mudanças de

orientação conceitual – com a introdução do conceito de “bens culturais” 8 em substituição

à idéia então corrente de “patrimônio histórico e artístico”- e, por desdobramento, de

alteração de política e estrutura institucionais.

Uma simplificação dessa mudança doutrinária é apresentada por Joaquim Falcão

(1984, p.46-47) quando, alertando para o fato de que “uma política pública [para a cultura]

é a opção por uma determinada ideologia cultural”, escreve sobre a experiência brasileira

recente na área da preservação patrimonial:

Até o final da década de setenta [...] a questão da preservação dopatrimônio histórico nacional estava reduzida à atuação solitária de umaúnica instituição federal, o IPHAN. [...] Estava reduzida à preservaçãoarquitetônica dos monumentos de pedra e cal da elite brasileira, comestreita vinculação com a religião católica. Isto no que diz respeito aosbens tombados individualmente. [...]No final dos anos setenta, ampliamos o conceito de patrimônio cultural,através do conceito de bem cultural. Admitimos o pluralismo ideológicona determinação das políticas de preservação. Logo incorporaram-sena preservação da cultura nacional os bens culturais de outras etnias,de outras religiões, de outras classes sociais e de todas as regiões dopaís. Pela primeira vez foi tombada uma região como a de Canudos,cuja marca patrimonial fundamental é o fato de ter abrigado umimportante movimento político-popular. Como pela primeira vez foitombado um território de candomblé [o Terreiro da Casa Branca, emSalvador], ampliando étnica, religiosa e arquitetonicamente a políticade preservação.

Quanto ao redesenho da estrutura governamental para o trato das questões culturais

esta resultou, num primeiro momento, da necessidade de institucionalização do CNRC;

aceitas as propostas de reformulação da política patrimonial defendidas pela equipe de

Aloísio, o CNRC foi incorporado, juntamente com o PCH (Programa de Cidades Históricas,

8 Sobre a abrangência do conceito de bens culturais proposto por Aloísio, cf. MAGALHÃES, Aloísio. Bens culturais: instru-mento para um desenvolvimento harmonioso. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico, Rio de Janeiro, n. 20, 1984.

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da Secretaria de Planejamento da Presidência da República), ao IPHAN em 1979. Por fim,

com o apoio conquistado junto ao Executivo, à elite política e cultural e a representantes

do grupo pioneiro do SPHAN -conjunto a que Miceli (1984, p. 82-83) denomina “tríplice

aliança”9 - a “idéia da fusão se concretizou no projeto de transformação do referido instituto

em secretaria e, concomitantemente, na criação da Fundação Nacional Pró-Memória -

FNPM, respectivamente em 13 e 26 de novembro daquele mesmo ano” (BOTELHO, 2000,

p. 95).

Em janeiro de 1980, aprovados os estatutos da Fundação Nacional Pró-Memória

pelo presidente João Figueiredo, Aloísio Magalhães foi nomeado também para a

presidência da Fundação, mas o exercício dessa dupla função seria temporário; em

dezembro do mesmo ano o ministro Rubem Ludwig, da Educação e Cultura, entregou-lhe

o comando da Secretaria de Assuntos Culturais - SEAC, com o objetivo de que fosse

promovida a fusão desta com a SPHAN, que ele já dirigia. Desta fusão, ocorrida em abril

de 1981, resultou a Secretaria de Cultura - SEC, uma supersecretaria subordinada

diretamente ao ministro e composta de duas subsecretarias: a do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional (SPHAN) e a de Assuntos Culturais (SEAC). Até a data de seu

falecimento, em junho de 1982, Aloísio exerceu o cargo de secretário de Cultura (do

MEC), cercado de especulações quanto à perspectiva de criação de um Ministério da

Cultura -possibilidade que ele achava prematura, mas que não descartava- e a possível

indicação de seu nome para a pasta.

Há que se ressaltar, no entanto, uma particularidade que perpassou a política cultural

levada a efeito por Aloísio Magalhães ao longo desse trajeto, que se traduz na nítida opção

pela vertente patrimonial, em detrimento de toda produção artística da época que não

refletisse o “fazer das comunidades”. Inclusive na Secretaria de Cultura,

[...] a política de Aloísio Magalhães relegou o desafio da produçãoart ís t ica a um espaço secundár io. A questão patr imonia l fo iassumidamente mais elaborada por ele, em que pese a sua trajetóriade art ista plástico e designer. A questão da produção culturalcontemporânea e os inúmeros problemas que vão se associando à cadeia‘produção, circulação e consumo’ pouca atenção tiveram em suasinúmeras intervenções ou entrevistas. Embora ele, por princípio ouformação (ou ambos), devesse não ter os preconceitos detectados nagestão anterior em relação às artes, esse silêncio torna-se indicadorde algo mais.

9 A configuração da “tríplice aliança” institucional envolvia, entre outros: os ministros Golbery do Couto e Silva e EduardoPortella, pela Presidência da República; como representante da elite intelectual e política, Afonso Arinos de Melo Franco; e oarquiteto Lúcio Costa, do grupo original do Sphan.

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A escolha do universo do sócio-cultural como prioridade amplia seusignificado se extrapolarmos o universo especificamente cultural econsiderarmos a conjuntura política do período. (BOTELHO, 2000, p.107)

De fato, essa opção consistia, antes de uma peculiaridade administrativa, numa diretriz

dos dois últimos governos militares que apostavam nas ações culturais voltadas para as

“populações menos favorecidas” e “regiões carentes”, como meio de salvaguardar sua

doutrina e ideologia quando da devolução do poder aos civis. Some-se ainda a isso, a

confluência de interesses dessa política governamental com as recomendações expressas

nos diversos encontros realizados pela UNESCO -como a Conferência de Bogotá em 1978-,

que preconizavam ser a dimensão cultural -ao lado dos aspectos econômicos- fator

imprescindível para a consolidação do desenvolvimento das nações. Aliás, colocar em dúvida

a consistência de um processo de desenvolvimento conduzido tão-somente por parâmetros

econômicos era um aspecto recorrente no discurso de Aloísio. Da mesma forma com que

ele buscara legitimar suas críticas à política do IPHAN recorrendo ao projeto original de

Mário de Andrade, agora parecia autenticar a implementação de sua política cultural, com

rigorosa consonância com as recomendações da UNESCO. Porém, mais do que uma estratégia

de ação bem articulada num regime ainda autoritário, há que se reconhecer em Aloísio uma

clara identificação com as manifestações e produções culturais populares, revelada já nos

tempos do Teatro do Estudante de Pernambuco. Daí, que não seria absurdo supor uma

correlação entre as conseqüências dessa sua “predileção” pela arte e cultura populares no

comando da política cultural e uma possível re(tali)ação corporativa dos artistas da época,

traduzida pela (suposta) recusa de reconhecimento a Aloísio Magalhães como pintor.

Page 47: Cartemas de Aloisio Magalhães

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3.2. ALOÍSIO, PINTOR

Parece haver, por parte da crítica especializada em arte e mesmo de alguns artistas,

certa resistência em incluir Aloísio Magalhães no rol dos artistas pintores brasileiros. Antes

uma sensação que uma hipótese, essa impressão torna-se mais acentuada quanto mais nos

aprofundamos nas pesquisas dos registros da passagem de Aloísio pelo campo da produção

artística nacional. Daí que chega a surpreender, por exemplo, a segurança na afirmação que

faz Sérgio Miceli ao discorrer (mesmo que sucintamente) sobre o início da trajetória

profissional de Aloísio; escreve ele: “Tendo firmado primeiro sua reputação como artista

plástico, Aloísio Magalhães consegue se profissionalizar através de um escritório de desenho

industrial no Rio de Janeiro, onde também participa ativamente da fundação da ESDI* .”

(1984, p. 81, grifo meu).

Em contraste com essa afirmação, encontraremos na publicação Arte no Brasil10

(v. 2, p. 947) não mais que quatro linhas de texto de uma magra coluna, em referência à

produção artística de Aloísio; e isso num capítulo dedicado à comunicação visual no Brasil,

essa atividade tão reconhecidamente associada ao nome de Aloísio Magalhães. Ali, como

por mal dissimulada concessão, Aloísio é mencionado como “o designer das cédulas de

Cruzeiro (...) que projetou marcas e diagramou livros”, em flagrante conflito de informação

com o respectivo verbete, ao final da mesma publicação, no qual se lê: “Pintor , artista

gráfico e desenhista industrial, é considerado pioneiro no campo da comunicação visual

no Brasil” (v. 2, p. 1050, grifo meu).

Tomo essas duas citações como demarcadoras do terreno de contradições em que

se coloca o problema do reconhecimento de valor reservado a Aloísio Magalhães. De um

lado, o texto de um cientista social de assegurada competência; de outro, o registro

presumidamente abalizado de críticos de arte bem conceituados. Entre ambos, depoimentos

contraditórios, matérias jornalísticas elogiosas, um número expressivo de exposições

realizadas individual e coletivamente, aquisições relevantes...

Ainda que consideremos o fato de que ninguém é uma unanimidade, quando aplicada

ao caso de Aloísio, pintor, essa regra parece adquirir uma peculiar magnitude.

A incursão de Aloísio Magalhães pelo território da pintura acontece na virada da

década de 1940, no Recife. Nesta cidade, na Rua da Aurora, ele exercitava sua autodidaxia

* Escola Superior de Desenho Industrial, vinculada à atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

10 LEITE et alii, José Roberto Teixeira. Arte no Brasil, 2 v., São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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num atelier (fig. 11) partilhado com o pintor Reynaldo Fonseca, também pernambucano e

co-fundador da Sociedade de Arte Moderna do Recife.

Criada em 1948, esta entidade favoreceu o surgimento, quatro anos depois e na

mesma capital, do Ateliê Coletivo,

um espaço aberto à realização de cursos de desenho, pintura e esculturavoltados ao aperfeiçoamento técnico dos artistas. [...] Em oposição aouniverso acadêmico, os integrantes do Ateliê buscavam a valorizaçãode uma expressão brasileira na arte, defendiam a democratização doensino artístico e a integração entre o trabalho do artista e a culturapopular. [Identificavam-se com o] Realismo Social cujas influênciasse f izeram sentir na escolha de temáticas que privi legiavam arepresentação de camponeses, retirantes e trabalhadores.11

Da data da criação até o ano de

1957, em que foi dissolvido, o Ateliê

Coletivo contou com a colaboração de

importantes nomes das artes plásticas

brasileiras. Freqüentaram-no, entre outros,

os artistas Abelardo da Hora, Gilvan Samico,

Reynaldo Fonseca, Ionaldo Cavalcanti,

Wellington Virgolino, João Câmara e José

Cláudio. Pintor, gravador, escultor, crítico de

arte e escritor, José Cláudio ingressou no Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna

do Recife após interromper o curso de direito na Universidade Federal de Pernambuco,

iniciado por volta de 1952. É de autoria dele um trabalho literário preparado em 1983, cujo

objeto de interesse é a produção artística de Aloísio Magalhães.

Dois fragmentos desse texto foram publicados recentemente no livro A Herança do

olhar: o design de Aloísio Magalhães12 -organizado por João de Souza Leite, designer,

professor e ex-parceiro de equipe de Aloísio- sob os títulos História do pintor Aloísio

Magalhães (pp. 38 a 45) e O Atelier 415 (pp. 46-47). Já no parágrafo inicial do primeiro

deles, o autor dá indícios que confirmam, em certo grau, a premissa lançada na abertura

deste subcapítulo:

Fig. 11 - Aloísio em seu atelier na Rua da Aurora, 415

11 Ateliê Coletivo. Verbete disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=Detalhe&cd_verbete=4>; acesso em 15 de março de 2004.

12 LEITE, João de Souza (org.). A Herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural,2003.

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Em primeiro lugar é preciso resgatar o Aloisio pintor antes quese generalize ainda mais a concepção errada de que não o era,deixou de ser, ou isso era coisa de pouca importância na sua vida –quando de fato o ser pintor era nele a espinha dorsal e até, aumentandoa imagem se quisermos, os pés e as mãos, o coração e a cabeça. (p.38, grifo meu)

E continua, ainda na página 38:

Nenhuma atuação dele esteve afastada dessa sua qualidade primordial,embora a exercida em outros campos, na aparência, lhe tenha granjeadomais fama ou poder, luxo exterior de repercussão: era o pintor, o quetrabalha com as mãos, o designer também, que movia a outra ponta donervo que termina no cérebro.

Mas, sabe-se, só é passível de resgate aquilo que tendo possuído (e possuindo)

algum significado ou valor, encontra-se em vias de esquecimento ou desaparecimento, quando

não em ocultação propositada. No caso do pintor Aloísio, no entanto, qualquer dessas

alternativas remete o problema novamente ao seu ponto de partida: o do sentido de valor.

Mas que aspectos sustentam os indicadores de valor para uma obra de arte -e

conseqüentemente para seu criador- num determinado contexto social?

Ainda que não me pareça haver respostas plenamente satisfatórias para esta

indagação, entendo que uma referência aceitável -por ser mesmo bastante usual- seria a

que resulta da conjunção de fatores como: receptividade pública, número (e destino) de

aquisições e participação do artista em mostras individuais e coletivas. Uma outra

alternativa possível consideraria, por exemplo, a contribuição pessoal do artista ao

desenvolvimento da arte, através de sua dedicação a pesquisas de forma, linguagem etc.

Uma terceira, ainda, poderia levar em conta o papel e a influência do artista e sua obra na

configuração e preservação da cultura de uma determinada comunidade. E vários outros

critérios seriam ainda concebíveis, mas seguramente bem poucos artistas, pintores ou não,

seriam tão exemplares e completos a ponto de satisfazê-los todos. Aloísio com certeza

não estaria entre estes, mas não teria ficado tão distante que sua contribuição para a arte

brasileira fosse considerada irrelevante.

De fato, desde que iniciara sua jornada de pintor no atelier da Rua da Aurora até o

fim da vida, Aloísio jamais abandonou inteiramente a pintura e, mesmo no ano de seu

falecimento, ao preparar-se para a defesa da inclusão da cidade de Olinda (Pernambuco)

na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO, produziu uma série de litografias em preto e

Page 50: Cartemas de Aloisio Magalhães

50

branco documentando visualmente a cidade. Durante esse tempo -quase sempre conciliado

com outros fazeres- Aloísio logrou conquistar espaço e reconhecimento no campo das artes

visuais (sobretudo nos anos mais remotos, de dedicação mais intensa à atividade), e as

diversas exposições de sua obra, no Brasil e no exterior, testemunham essa realidade.

Começando por expor no 4º Salão de Arte Moderna do Recife, em 1949, as mostras

de seus trabalhos -óleos, desenhos, gravuras, aquarelas- se sucederiam:

- no Departamento de Educação e Cultura / Recife-PE (1953 - Individual);

- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1954 - Paisagens de Pernambuco -

Individual);

- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1956 - Individual);

- na Pan American Union / Washington (1956 - EUA - Individual);

- na Roland de Aenlle Gallery / Nova York (1957 - EUA - Individual);

- no Museu de Arte Moderna / Rio de Janeiro (1958 - Pintura e arte gráfica -

Individual);

- na Galeria Oxumaré / Salvador-BA (1958 - Individual);

- na Roland de Aenlle Gallery / Nova York (1959 - EUA - Individual);

- no The Print Club of Philadelphia / Filadélfia (1959 - EUA - Individual);

- na Petite Galerie / Rio de Janeiro (1961 - Individual);

- na Galeria Lotus / Recife-PE (1973 - Aquarelas e litografias - Individual);

- no Ministério da Educação e Cultura / Rio de Janeiro (1974 - Individual) e

- no Museu de Arte Moderna / São Paulo (1974 - Individual).

Em mostras coletivas, seus trabalhos estiveram presentes nas Bienais Internacionais

de São Paulo dos anos de 1953 (2ª), 1955 (3ª), 1959 (5ª) e 1961 (6ª), realizadas no

Museu de Arte Moderna /SP, e mais:

- no Salão do Estado de Pernambuco (1954 - Recife/PE);

- no 4º Salão Nacional de Arte Moderna (1955 - Rio de Janeiro/RJ);

- nos 50 Anos da Paisagem Brasileira (1956 - Museu de Arte Moderna - São

Paulo/SP);

- na 5ª Bienal Internacional de Litografia Contemporânea em Cor (1958 -

Cincinnati Art Museum – Cincinnati/EUA);

- na Recent Acquisitions of the Collection (1958 - MoMA - Nova York/EUA);

- na Arte Moderna Brasileira na Europa (1959 - Munique/Alemanha);

- na 30ª Bienal de Veneza (1960 - Veneza/Itália);

Page 51: Cartemas de Aloisio Magalhães

51

- na Arte Contemporânea Brasileira (1962 - Walker Art Center - Minneapolis/EUA);

- no 29º Salão Paranaense (1972 - Teatro Guaíra - Curitiba/PR);

- na Arte/Brasil/Hoje: 50 anos depois (1972 - Galeria da Collectio - São Paulo/SP);

- no 6º Panorama da Arte Atual Brasileira (1974 - Museu de Arte Moderna - São

Paulo/SP);

- no Salão do Estado de Pernambuco (1974 - Recife/PE) e

- n’O Desenho Jovem dos Anos 40 (1976 - PESP - São Paulo/SP).

A este elenco de exposições somar-se-iam ainda aquelas relacionadas estritamente

à produção em design e artes gráficas, bem como as mostras exclusivas de cartemas, o que

não é pouco, se considerado o fato de que esse interstício de cerca de 25 anos de trabalho

não foi dedicado exclusivamente à produção de quadros. Ademais, Aloísio não pintava

para seu próprio deleite, ou para formar acervo; suas obras foram adquiridas, quer seja

por particulares ou por organizações, no Brasil e no exterior, e, a menos que se suponha

que seu prestígio pessoal tivesse tamanha influência e alcance, isso denota o valor de sua

arte. Um valor que transparece, também, nos comentários e registros de alguns reconhecidos

intelectuais contemporâneos do artista.

Do acadêmico Antonio Houaiss -filólogo, lexicógrafo e ensaísta- ouviríamos:

Creio que no Brasil, ele, melhor que ninguém, deu à noção de "gráfico"a amplitude que através dos tempos lhe vem sendo atribuída.[...]Essa província gráfica da personalidade de Aloísio Magalhães nãoera o germe, senão que uma das outras faces do seu ser: a da pintura,lato sensu. Pois que, em verdade, ele foi também sempre pintor. Nessecampo, a inventividade de Aloísio teria sido ilimitada, já que seassenhoreava com extrema facilidade de diferentes técnicas, achando-as até, pois que na sua pintura há sempre o "gráfico" a que acima nosreferimos. (FUNARTE, 1982)

Walter Zanini, em sua História Geral da Arte no Brasil, situa-o no rol dos pintores

brasileiros que “se empenharam no Informalismo, seja como dedicação temporária ou como

sistemática definitiva” (Zanini, 1983, p. 697). Sobre a obra pictórica de Aloísio, Roberto

Pontual assinala que, “voltada para o mundo do possível, e não para o mundo do real, essa

pintura buscava manter-se no ponto de equilíbrio entre lirismo e construção, emotividade e

exercício racional, gesto e disciplina"13.

13 Apud. Enciclopédia Artes Visuais. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=1997&busca=Aloisiomagalhães&procura=Procurar&cd_tipo_materia=31519>. Acesso em 20.05.2004.

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52

O escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, em texto no catálogo da exposição

realizada em 1958 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Aloísio Magalhães:

Pintura e Arte Gráfica), ao confrontar sua opinião de que “a arte deve manter uma

comunicação de natureza profunda com o real” com a opção de Aloísio pelo abstracionismo,

ouviria deste:

[...] admito, ao lado desta e mais conforme com minhas tendências,uma outra arte, que não se contenta em transfigurar a realidade. Umaarte que deseja cr iar, com mais l iberdade, sem se preocupardemasiadamente com o que existe. Talvez a natureza forneça mesmocertos elementos a esta arte. Mas o artista lança mão deles de maneiramais desembaraçada, ajunta-lhe outros e atinge, desse modo, umnúmero menos limitado e mais fascinante de combinações e invenções.(LEITE, 2003, p. 54)

Outro, é o crítico e historiador da arte Clarival do Prado Valladares, que vislumbra

na raiz da obra pictórica não-figurativa de Aloísio Magalhães, influências das paisagens

natural e urbana do Recife: o casario e os reflexos de objetos e do ambiente nas águas do

rio Capibaribe. Realmente, a imagem refletida marca boa parte da pintura abstrata de Aloísio.

Ostensivamente ou não, os quadros se organizam espacialmente ora segundo um eixo

horizontal (fig. 12), ora a partir de eixos ortogonais horizontal e vertical, como na obra Sem

Título (óleo sobre madeira), mostrada na figura 13 (página seguinte).

o eixo

horizontal

Fig. 12 - A imagem �refletida� segundo um eixo horizontal (Sem título. Offset manual sobre papel)

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Page 53: Cartemas de Aloisio Magalhães

53

Uma outra característica também

perceptível e recorrente em seus quadros

vem do sentido de fracionamento estrutural

(influência do cubismo?), expresso na

partição do espaço pictorial em fragmentos

predominantemente retangulares e de

relativa autonomia quanto ao tratamento

plástico (fig. 14).

Não raro, essas particularidades se

conjugam numa mesma obra. Também não

raro formas figurativas parecem emergir de

sua pintura abstrata -como no caso da figura

15- pondo em curso aquele “ jogo de

cumplicidade”, que diz ao observador: - Eu

estou aí, mas só existo porque você me

quer ver. E a ambigüidade que daí se extrai,

revelava-se igualmente noutro trecho do

aludido debate com Suassuna, quando o

art ista, dist inguindo-se dos pintores

figurativistas, ponderava:

o eixovertical

Fig. 13 - A divisão da superfície em �quadrantes� e a �reflexão� insinuada

o eixo

horizontal○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○

Fig. 14 - O fracionamento como recurso plástico

Fig. 15 - O abstrato encontra o figurativo

Page 54: Cartemas de Aloisio Magalhães

54

[. . . ] Não acho i legí t ima a posição dos pintores que assim secomportam, mas quanto a mim, prefiro manter uma atitude maisindependente em face do real. Ordinariamente, meu quadro, que seresolve como quadro, é feito ao mesmo tempo em que se constrói.[...] Mas isso não me impede de experimentar uma certa satisfaçãoquando combinações e invenções nasc idas na minha p in turareencontram uma forma natural. Com isso elas recebem uma espéciede autorização, de legitimidade.

Aloísio permitiu-se trabalhar, sempre, com grande liberdade representacional,

independentemente da técnica de que se utilizasse, e não se pode mesmo afirmar que sua

produção ao longo do período compreendido entre 1949 e 1976 tenha seguido

rigorosamente os preceitos de qualquer dos movimentos de arte que se sucederam no

Brasil (ou no mundo) nesse tempo; também não se pode dizer que teria passado tão ao

largo que não sofresse deles alguma influência. Assim, como mostra a figura 16, ainda que

o figurativismo predominasse em suas gravuras e litografias, o veríamos convergir para

o abstrato-informalismo nas pinturas a óleo e tintas tipográficas, aproximar-se do

Fig. 16 - As várias técnicas e linguagens da pintura deAloísio Magalhães

Monotipia em papel Tinta tipográfica sobre papel

CartemaSérie Brasileira (detalhe)

Aquarela elápis sobre papel

Page 55: Cartemas de Aloisio Magalhães

55

figurativismo poético nas aquarelas e guaches, plasmar-se “pop” e “op” nos cartemas.

Afinal, as especificidades das diferentes e simultâneas frentes de trabalho abertas por

Aloísio autorizavam essa liberdade.

O aprendizado em gravura (Paris, entre 1951 e 1953) “com Stanley Hayter no Atelier

17, que, naquela altura,era um dos mais importantes centros de gravura da Europa” (LIMA,

1997, p. 87), os experimentos levados a cabo nas oficinas d’O Gráfico Amador, e depois

os conhecimentos adquiridos nos trabalhos e pesquisas desenvolvidos nos Estados Unidos

com o artista e desenhista industrial Eugene Feldmann na The Falcon Press, são fatores

que, sem dúvida, influíram bastante na feição da sua obra pictorial.

Pouco se sabe da passagem de Aloísio pelo Atelier 17 além da ocasião em que isso

aconteceu; todavia a história desse espaço de pesquisa e criação fundado em 1927 –e que

após a morte de Hayter em 1988 foi retomado pelos artistas Juan Valladares e Hector

Saunier, e sobrevive até os dias atuais com o nome de Atelier 17 Contrepoint-, que recebeu

a contribuição de nomes expressivos da arte mundial, fornece indicadores razoáveis para

avaliação de sua importância no aprimoramento profissional de seus freqüentadores.

Anton Ehrenzweig (1969, p. 59) descreve o método que Stanley William Hayter

adotava para trabalhar com os alunos:

Ele instruía seus alunos para que trabalhassem em estágios sucessivossem planejar antecipadamente a composição. Em cada estágio, apareciaalgum novo motivo ou processo técnico. Os estudantes tinham queinventar primeiro um motivo único para depois equilibrá-lo com umcontramotivo que enriquecesse o primeiro e acrescentava, a cada passo,novas idéias e técnicas. Havia uma misteriosa coesão lógica nocrescimento gradativo da composição. Cada passo tinha a mesmaimportância crítica, embora isso não se percebesse com precisão naocasião. Se o aluno fizesse a coisa certa, isso apressaria o fluxo deidéias, mas se ele tomasse o caminho errado suas idéias logo seextinguiriam e o trabalho pararia prematuramente.

Hayter, considerado o pioneiro da gravura moderna e um dos principais responsáveis

pelas inovações introduzidas no campo das artes gráficas contemporâneas,

no concebía su taller como un centro de formación de artistas gráficos,sino como un lugar de encuentro para todos aquellos artistas deseosos deexperimentar con nuevas técnicas, y que estuvieran dispuestos a compartirsus hallazgos con otros artistas plásticos. Se consideraba a él mismo comoun agente facilitador, en lugar de un maestro en sentido estricto.En 1940, debido a las dificultades generadas por la Segunda GuerraMundial, Hayter se traslada de la ciudad de París a Nueva York, yreabre el Atelier 17 como parte de los programas auspiciados por New

Page 56: Cartemas de Aloisio Magalhães

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School for Social Research. Durante los próximos cinco años, desarrollósu trabajo gráfico en un ambiente de colaboración. Intercambió conteóricos como Eric Fromm, Ems Kris, Stuar Davis, Meyer Shapiro; yartistas europeos exiliados como Marc Chagall, Max Ernst, AndréMasson, Ives Tanguy; junto a un grupo de artistas de Nueva York comoRobert Motherwell, Jakson Pollock y Max Rothko, entre otros.En 1950, Hayter regresa a la ciudad de París y continua con susactividades gráficas promoviendo la técnica de impresión simultáneade tintas a color en una sola plancha.14

Nos anos imediatamente subseqüentes ao retorno do atelier a Paris Aloísio passa

a freqüentá-lo, ao mesmo tempo em que estudava museologia na escola do Museu do

Louvre. O conhecimento resultante da exploração das possibilidades que aí se abriram

está na raiz do interesse que o mobilizaria, em maio de 1954 e já no Brasil, a fundar no

Recife, com outros artistas e intelectuais, a oficina tipográfica O Gráfico Amador. Mas

chamar oficina tipográfica a’O Gráfico Amador é decerto desmerecê-lo, por omissão, de

suas outras tantas qualidades.

Escreve Guilherme Cunha Lima (1997, p. 87) que:

O Gráfico Amador foi fundado porque o grupo desejava publicarseus próprios escritos e o circuito editorial comercial não lhes eraacessível.Nesse tempo não havia editoras em Pernambuco. Quem quisessepublicar um livro teria não apenas que contactar uma gráfica, mastambém envolver-se em todos os passos relativos à distribuição dosexemplares.[...] A pretensão inicial d’O Gráfico Amador era editar exclusivamentetextos produzidos pelos membros do grupo. Apesar disso, em 1957,começaram a publicar também outros autores. Mas o preceito central,o de só publicar livros “sob cuidadosa forma gráfica”, foi mantido atéo fim.

O grupo era constituído de pessoas que se associavam por interesses variados, e

os membros, em número flutuante,

podem ser divididos em três categorias: aqueles que davam suportefinanceiro, pagando mensalidades que viabilizavam a publicação doslivros, recebendo em troca um exemplar de cada edição; os que eramescritores, poetas ou colecionadores e que assim tinham interesse naprodução de livros; e os que se envolviam diretamente no processoeditorial, entre os quais se incluem os ilustradores. Mas no jargão

14 CROS, Deledda. Arte hoy: en exposición grabados de Atelier 17. Disponível na Internet em: <http://www.radiouniversidad.org/secciones/reportajes/arte_hoy/Atelier%2017.html >; acesso em 06.04.2004.

Page 57: Cartemas de Aloisio Magalhães

57

interno da sociedade a divisão se fazia em apenas duas categorias:os chamados “mãos limpas”, ou seja, os que não sujavam as mãoscom tinta de impressão por não participarem diretamente da produçãodos livros, e os “mãos sujas”, que sujavam as mãos produzindo oslivros. (LIMA, 1997, p. 96)

Os “mãos sujas” eram quatro: Aloísio Magalhães, José Laurenio de Melo e

Gastão de Holanda -que trabalharam juntos no Teatro de Estudante-, e Orlando da Costa

Ferreira -convidado a juntar-se ao grupo por interessar-se e conhecer teoricamente o

assunto. Aos “mãos sujas” cabia efetuar o projeto gráfico, ilustrar, compor -algumas vezes

fabricando os tipos que iriam utilizar-, imprimir e dar acabamento às edições d’O Gráfico

Amador, tudo dentro do padrão que as caracterizou como edições de bibliófilo. E dos

“mãos limpas” fizeram parte, entre outros: Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Reynaldo

Fonseca, Francisco Brennand, Odilon Coutinho, Osman Lins, José Mindlin e Lourenço

Barbosa, o mestre Capiba.

A casa da Rua Amélia, chamada Atelier 415, foi o último endereço d’O Gráfico

Amador. Além deste, funcionavam também ali o escritório de arquitetura de Glauco Campello,

Jorge Martins Júnior e Artur Lício Pontual, e o atelier-residência de Aloísio Magalhães. Ao

longo da existência da oficina foram editados vinte e sete livros, três folhetos culturais, dois

boletins (Noticiário 1 e 2), um programa de teatro para a peça A Pena e a Lei, de Ariano

Suassuna, e vários impressos efêmeros (convites, cartões, catálogos etc.).

Consta que paralelamente às publicações oficiais,

aquelas que levavam o timbre d’O Gráfico Amador (fig. 17)

e eram distribuídas entre os associados, imprimiram-se ali

algumas edições privadas; estas, ainda que tenham sido

elaboradas com o mesmo esmero dispensado às encomendas

“oficiais”, não foram consideradas produções da associação.

Aloísio Magalhães também se valeu das oficinas d’O

Gráfico Amador para levar a efeito algumas experiências

gráfico-editoriais próprias; nessa linha foram publicados três

livros seus, de tiragens não superiores a trinta unidades:

Pregão Turístico do Recife (com poema de João Cabral de Melo Neto, 1955), Aniki

Bóbó (poema de João Cabral de Melo Neto e Aloísio Magalhães, 1958) e Improvisação

Gráfica (textos selecionados pelo autor, 1958). Neles, Aloísio pôde experimentar diferentes

técnicas, tais como combinações de tipografia e desenhos feitos com barbante colado sobre

Fig. 17 - O símbolo do �Gráfico�, criaçãode Aloísio Magalhães

Page 58: Cartemas de Aloisio Magalhães

58

blocos de madeira (um clichê15 experimental), aplicações de áreas de cor através de moldes

vazados (técnica de pintura conhecida como pochoir) e ilustração e textos manuscritos

efetuados diretamente sobre chapas plásticas planas.

Em resumo, O Gráfico Amador foi um terreno fértil onde através de ações coletivas

e criações objetivas, Aloísio pôde cultivar e colher os frutos provenientes da sua imaginação

criadora e de seu empenho na exploração de novas formas de linguagem e expressão artísticas.

Toda essa experiência, porém, não frutificaria apenas no terreno da expressão

plástica; ela também patrocinaria uma nova inflexão na trajetória profissional de Aloísio

Magalhães.

3.2.1. O desencanto com a pintura

O futuro na atividade de pintor parecia próspero e assegurado a Aloísio Magalhães,

e assim bem provavelmente se houvesse confirmado não fosse um novo horizonte profissional

a anunciar-se, despertando o seu interesse.

Na segunda metade dos anos 1950, ao aceitar convite para uma nova e mais

prolongada estadia nos Estados Unidos -em que voltaria a trabalhar com Feldmann-, Aloísio

entrava em contato “com as novas linguagens gráficas de comunicações e com os novos

paradigmas de análise (teoria da informação, etc.)” (MICELI, 1984, p. 80).

Eugene Feldmann dirigia desde 1956 o Departamento de Design Tipográfico da

Philadelphia Museum School of Art -na qual, a convite, Aloísio fora lecionar em duas

ocasiões; Feldmann, obsessivo pesquisador das artes gráficas, era também o dono da The

Falcon Press, um híbrido de gráfica comercial e laboratório de exploração das

potencialidades da tecnologia offset16 de impressão.

É nesse contexto que Aloísio, alternando-se entre pesquisa técnica e criações gráfico-

editoriais17, informa-se sobre os fundamentos do design moderno e a noção de projeto

como direcionador da ação criadora. Os conhecimentos aí adquiridos contribuiriam para

15 Clichês são matrizes de impressão em alto relevo, geralmente gravadas em chapa de metal aplicada sobre base demadeira, e utilizadas na impressão tipográfica para reprodução de imagens fotográficas ou ilustrações.

16 A invenção da técnica de impressão designada offset é atribuída (não sem contradições) ao norte-americano Ira WashingtonRubel, ocorrida por volta do ano de 1904, e segue princípios semelhantes aos da impressão litográfica. A pedra, que neste últimoprocesso é a matriz de impressão, foi substituída no processo offset por chapas metálicas flexíveis revestidas por substânciafotossensível, para as quais são transferidas as imagens a serem impressas.

17 Dois livros foram produzidos em parceria com Feldmann: Doorway to Portuguese, em 1957 -premiado no Art DirectorsClub da Filadélfia-, e Doorway to Brasília, de 1959, uma edição dedicada à construção de Brasília e lançada no Museu deArte Moderna - RJ com a presença do presidente Juscelino Kubstichek.

Page 59: Cartemas de Aloisio Magalhães

59

acentuar ainda mais a frustração que já sentia com o alcance social do trabalho do pintor, na

medida em que, por comparação de objetivos, permitiam-lhe constatar a crescente

dificuldade de comunicação entre o artista e a coletividade.

Pessimista quanto à expectativa de sucesso na reconquista do interesse público pela

arte, Aloísio -que chegou nessa época a considerar que “a pintura estava morta”- sente-se

atraído pelo design:

Eu comecei a sentir uma insatisfação muito grande com a pintura,porque é um gesto muito pessoal, muito isolado. Eu vivia de pintura -evivia bem-, fazia exposições em galerias... Mas, com toda essainsatisfação, senti a necessidade de uma maior participação social,coletiva. Eu me deparei com o design, que é exatamente isso: aplicartodo o instrumental de uma linguagem advinda das formas de criatividadevisual num processo de interesse coletivo. (BEZERRA, 1987)

Convém lembrar que, àquela altura da década de 1950, o governo de Juscelino

Kubistchek propunha a modernização industrial do Brasil ao ritmo de desenvolvimento de

“cinqüenta anos em cinco” e, com isso, o país formava seu mercado consumidor urbano

com o qual as empresas tinham que se comunicar. Sendo o design um dos principais

instrumentos para realização desse propósito, é possível inferir-se daí o grau de interesse

que essa oportunidade despertou em Aloísio e o entusiasmo com que certamente ele teria se

lançado nesta empreitada.

Afinal, a natureza agregativa de Aloísio é referida com freqüência, em depoimentos

dos que conviveram com ele, como um aspecto marcante da sua personalidade. Aspecto

que ele próprio reconhecia ao explicar, alguns anos depois, as motivações que o levaram à

opção pela comunicação visual:

Achei que por meio do design, em trabalhos pragmáticos de uso coletivo,poderia encontrar uma fonte de questões muito mais viva e dinâmica.A idéia de participação do coletivo era o que mais me interessava. Aatividade do pintor demasiadamente subjetiva, isolou muito o artista dacomunidade e o que me interessava era retomar este contato de maneiradireta e participante. (AYALA, 1997, p. 18)

Começava aí um dedicado trabalho, cujos resultados projetariam seu nome para

além das fronteiras brasileiras, e a partir do qual também se construiriam as bases para o

desenvolvimento e afirmação do design no Brasil.

Page 60: Cartemas de Aloisio Magalhães

60

3.3. ALOÍSIO, DESIGNER

A decisão de Aloísio Magalhães de se profissionalizar em design materializou-se

com a abertura de um escritório na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1960. A casa de

número 130 da Rua da Passagem, no bairro de Botafogo, foi o breve palco daquela que

seria a primeira de seguidas versões de seu escritório de design. No local, onde já funcionava

o estúdio de fotografia dos irmãos Humberto e José Franchesci, Aloísio passa a desenvolver

seus projetos de design associado ao arquiteto Artur Lício Pontual (que juntamente com os

arquitetos Glauco Campelo e Jorge Martins Júnior havia compartilhado com ele e O Gráfico

Amador, no Recife, o espaço do Atelier 415). Pouco depois, já no bairro do Leme e com a

inclusão de Luiz Fernando Noronha, mudava-se a configuração do escritório, que passava

então a denominar-se Magalhães+Noronha+Pontual, o MNP. Assim constituído e com a

inclusão eventual de profissionais de outras áreas -cinema, pintura, tipografia- o escritório

atuava em diferentes frentes (projetos de arquitetura, construção de agências bancárias,

etc.), não se configurando ainda propriamente um escritório de design, como os poucos que

já conquistavam espaço em São Paulo e de que são exemplos o pioneiro Forminform, de

Alexandre Wollner e Ruben Martins (1958), e a Metro 3 (embrião da agência de publicidade

DPZ, ainda em atuação no mercado) dos espanhóis Francesc Petit e José Zaragoza.

O design, que no início dos anos 1960 despontava como profissão no Brasil, veio

tocado pela influência da escola de Ulm -a Hochschule für Gestaltung da Alemanha-, de

orientação marcadamente funcionalista. Esta escola, considerada em termos doutrinários a

sucessora da Bauhaus, e

cujos prédios foram desenhados por Max Bill, seu primeiro reitor, abriusuas portas em 1951. Ela era menos importante pelo tipo de design queproduzia do que por suas idéias, que influenciaram as escolas de designde todo o mundo. A escola se preocupava em desenvolver métodosque usassem a lógica matemática para resolver problemas de design.A importante contribuição de Ulm nessa tentativa foi descobrir umalinguagem e um sistema criterioso para o estudo da comunicação visual.Tomando emprestadas idéias lingüísticas, a escola desenvolveu oconceito de “retórica visual” e empregou a semiótica (a ciência dossignos) na análise dos anúncios. (HOLLIS, 2001, p. 180-181)

Pela Hochschule für Gestaltung passaram alguns dos pioneiros da instituição do

design no Brasil, através da prática profissional e do ensino, como é o caso de Alexandre

Wollner e do colega de Ulm trazido por ele para o Brasil, o alemão Karl Heinz Bergmiller.

Page 61: Cartemas de Aloisio Magalhães

61

Em entrevista a Pedro Luiz P. de Souza, Bergmiller -que chegou ao país em 1959- historia

as primeiras tentativas de implantação do ensino do desenho industrial no Brasil:

No início dos anos 60, a consciência do problema do desenho industrialcomeçava a se institucionalizar no Brasil. Já haviam ocorrido pelo menosduas iniciativas anteriores, a do professor [Pietro Maria] Bardi, com oInstituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo, e aEscola Técnica de Criação do Museu de Arte Moderna do Rio deJaneiro, as duas ainda na década de 50, quando eu ainda estava emUlm. O ensino estabeleceu-se de fato um pouco depois, já no início dadécada de 60. Em 1962, o desenho industrial foi introduzido como umaseqüência disciplinar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro se fundava aEscola Superior de Desenho Industrial, a ESDI, da qual participei e atéhoje [início de 1992] faço parte. (SOUZA, 1992, p.42)

O grupo constituído pelo governador Lacerda para criação da ESDI foi formado,

relata Alexandre Wollner, “por Simeão Leal, do MEC, o arquiteto Maurício Roberto, o

crítico de arte Flávio de Aquino, o Aloísio Magalhães e eu” (BORGES, 1992, p. 85). A

escola iniciou seus trabalhos em 1963 e “até hoje é um fenômeno. Ulm existiu de 1954 a

1970, a Bauhaus durante 10 anos, mas a ESDI existe há 36 anos”18, diria ele numa entrevista

de 1999.

O quadro de professores dos primeiros anos da ESDI colocava lado a lado designers

mais e menos ortodoxos em relação aos ensinamentos da Escola da Forma de Ulm. A

presença de Aloísio Magalhães entre eles,

no primeiro período situado entre meados de 60 e início de 70,certamente ajudou a escola a dosar certos excessos funcionalistas,temperando-os com possibilidades de cunho mais lúdico, onde aambigüidade estética tinha licença para se manifestar.Embora tenha sofrido forte influência dos movimentos construtivos eadotasse uma certa racionalidade projetual, seus trabalhos exalavam ofrescor gráfico típico de quem não desprezava as livre associações daforma e seus imperativos plásticos. (ESCOREL, 2000, p.115)

Todavia, se o nome de Aloísio vinculou-se definitivamente ao design no Brasil não

foi somente graças às suas ações no campo da formação profissional; também contribuíram

para isso os projetos desenvolvidos por seu escritório, que desde cedo ratificariam seu

18 Trecho de entrevista concedida a Márcia Denser e Marcia Marani. Disponível em <http://sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/linha/idart%205/dpoiment.htm>; acesso em 10.04.04.

Page 62: Cartemas de Aloisio Magalhães

62

talento gráfico expresso em criações de amplo acolhimento pela comunidade. O símbolo

comemorativo do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, de 1964, é um desses

casos. No Brasil, até os dias atuais, poucos projetos de design lograram conquistar de

forma tão entusiástica a admiração pública. Apropriado pela população, o símbolo foi

estampado em fachadas e muros, veículos, pipas, fantasias de carnaval, carrinhos de

ambulantes e vitrines, além de aplicado, com curiosa adaptação, a modelos de biquínis (fig.

18). Referindo-se a isso, Ana Luiza Escorel (2000, p. 114) lembra que “o sucesso do

símbolo foi tal que Aloisio, numa tentativa de compreender o fenômeno, acabou descobrindo

que havia, sem se dar conta, trabalhado com uma poderosa mandala”.

Uma vez mais Aloísio utilizava-se do espelhamento como recurso de criação, aspecto

que ao lado do rotacionamento do elemento gráfico básico, verificar-se-ia em muitos outros

dos trabalhos que realizou. Assim é, por exemplo, no símbolo -mais exatamente um

ideograma- projetado em 1966 para a Light, a empresa de eletricidade do Rio de Janeiro.

Na solução proposta para o símbolo do IV Centenário, o algarismo 4, eleito como

elemento modular duplamente refletido, remete concomitantemente a sentidos específicos:

Figura 18 - A livre adaptação do símbolo do IV Centenário e algumas de suas aplicações (na pipa, em roupas e fantasias de carnaval, calçadas etc.)

Page 63: Cartemas de Aloisio Magalhães

63

um sentido de associação numérica -o todo que reproduz o valor da parte ao mesmo tempo

em que o subverte (4 x 4 = 4)- e um sentido simbólico, de cunho histórico, dado pela

aproximação gráfica com a cruz de malta dos portugueses, fundadores da cidade (fig.19).

Já no projeto de identidade corporativa desenvolvido para a Light, Aloísio Magalhães

propunha como símbolo um ideograma (fig. 20) cujo conceito se materializa na alternância

do sentido lógico (a duplicação em simetria circular da inicial “L”) para o analógico (o raio,

representação convencional de eletricidade).

Além do freqüente recurso ao espelhamento e à rotação (fig. 21) Aloísio valeu-se

também da seriação sistematizada de um único elemento formal -um módulo- em várias de

suas criações gráficas (fig. 22), e da exploração das potencialidades tridimensionais do

Figura 20 - O símbolo da Light, e a correspondência com a convenção gráfica de eletricidade

Figura 19 - O duplo espelhamento e as associações numérica e simbólica na marca do IV Centenário do Rio de Janeiro

Figura 21 - Espelhamento e rotação nos símbolos da Hidrelétrica de Itaipu, do Banco Boavista e da Metalúrgica Icomi

Figura 22 - A seriação sistematizada nos símbolos dos bancos Nacional e Aliança, e da Companhia Souza Cruz

Page 64: Cartemas de Aloisio Magalhães

64

“círculo tripartido” (fig. 23), conforme destaca o designer e professor Chico Homem de

Melo em minuciosa análise19 do léxico visual aloisiano.

Estes não eram, no entanto, recursos estranhos ao movimento construtivista que

dominou o cenário artístico brasileiro desde o início da década de 1950, através de suas

vertentes concreta e, mais tarde, neoconcreta.

A formulação do ideário concretista partia da abolição de toda e qualquer conotação

lírica ou de representação da realidade na obra, e promoviam a linha, o ponto, a cor e o

plano -na medida em que estes são elementos desprovidos de quaisquer vínculos não-

pictoriais- à condição de elementos constitutivos mais concretos de uma pintura. O artista

suíço Max Bill, um dos formuladores da arte concreta e principal responsável pela introdução

do concretismo no Brasil, defendia a idéia segundo a qual “a matemática é o meio mais

eficiente para o conhecimento da realidade objetiva e uma obra plástica deve ser ordenada

pela geometria e pela clareza da forma”.

Conclui-se daí que, por operar dentro dessas possibilidades (ou seriam limitações?)

já bastante familiares às artes gráficas, a arte concreta tenha facilitado o trânsito não só dos

pintores como também dos prosélitos da poesia concreta pelo território do design.

Mas que tipo de ingerência poderiam ter os poetas concretistas na definição de

rumos e feição para o design gráfico?

O Brasil é considerado oficialmente o berço da

poesia concreta, o braço literário do movimento

concretista, iniciado em 1952 por iniciativa de Décio

Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos,

integrantes do Grupo Noigandres. O manifesto da poesia

concreta, no entanto, foi publicado apenas em 1958 no

número 4 da revista Noigandres (fig. 24) -cuja capa éFigura 24 - A revista Noigandres no 4 (capa deFiaminghi) com a de no 1 (capa de Pignatari) ao fundo

Figura 23 - Nos símbolos dos bancos de Crédito Mercantil (1963), Unibanco (1965) e Banespa (1969), variações do �círculo tripartido�

19 Cf. Aloísio, designer de sinais. In: LEITE, João de Souza (org.). A Herança do olhar: o design de Aloísio Magalhães.Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2003, pp. 50-56.

Page 65: Cartemas de Aloisio Magalhães

65

de autoria do pintor, desenhista e artista gráfico Hermelindo Fiaminghi-, sob a denominação de

Plano Piloto da Poesia Concreta, no qual os signatários apontam como precursores:

mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo:“subdivisions prismatiques de l’idée”; espaço (“blancs”) e recursostipográficos como elementos substantivos da composição. pound (thecantos): método ideogrâmico. joyce (ulysses e finnegans wake):palavra ideograma: interpenetração orgânica do tempo e espaço.cummings: atomização de palavras, tipografia fisiognômica; valorizaçãoexpressionista do espaço. apollinaire (calligrammes): como visão, maisdo que como realização. futurismo, dadaísmo: contribuições para a vidado problema. no brasi l : oswald de andrade (1890-1954; “emcomprimidos, minutos de poesia”). joão cabral de melo neto (n. 1920 -o engenheiro e a psicologia da composição mais anti-ode: linguagemdireta, economia e arquitetura funcional do verso. (CAMPOS, 1965)

O contato inicial do grande público com a poesia concreta (fig. 25 e 26) deu-se em

duas oportunidades: na primeira Exposição Nacional de Arte Concreta aberta em São Paulo

em 1956, e no Rio de Janeiro, no ano seguinte, para onde a mostra foi transferida. Após o

lançamento do Plano Piloto, a poesia concreta passa a ser conhecida internacionalmente

ganhando adeptos em diversos países (Itália, Suíça, Japão, França etc.). Desde os primeiros

momentos os proponentes do movimento empreenderam ações no sentido de ampliar a

divulgação da poesia concreta em outros meios que não apenas os livros.

Nesse tempo o B ras i l passava po r d i ve rsastransformações sociais, políticas e econômicas. Taismudanças se refletiam na área cultural. As revistase jornais começam a se tornar mais agradáveisgraficamente; poetas e pintores passam a colaborarnos suplementos culturais dos grandes jornais ondenovos recursos gráficos são utilizados.[ . . . ] A poes ia concre ta u t i l i za proced imentoss im i l a res àque les u t i l i zados pe los me ios decomunicação de massa, o que parece ter facilitadosua penetração junto ao público.As experiências tipográficas desenvolvidas pelosmov imen tos de vanguarda eu ropé ia , como oFuturismo, o Dadaísmo e o Construtivismo Russo,assim como os trabalhos desenvolvidos pela EscolaSuíça de Tipografia, constituíram claras fontes deinspiração para os poetas concretos brasi leiros.Esses poetas-des igners (Augus to de Campos,Haroldo de Campos e Décio Pignatari) deram umagrande importância ao t ipo e seus elementos decomposição, explorando a sua expressividade dentroda página. (LIMA, 1997, pp. 27-28)

Figura 26 - �beba coca cola� (1957), de Décio Pignatari

Figura 25 - Poesia concreta de Augusto de Campos

BEBA COCA COLA BABE     COLA BEBA COCA BABE COLA CACO CACO C O L A     C L O A C A

Page 66: Cartemas de Aloisio Magalhães

66

Mas se os poetas concretistas buscaram dotar sua obra de artifícios e princípios

próprios das artes gráficas e da publicidade, estas também não ficariam imunes às influências

de tal aproximação. Assim foi que

muitas das invenções sintáticas e semânticas do movimento da poesiaconcreta entraram para o repertório do design gráfico. As pesquisaspromovidas no campo da linguagem visual alcançaram um granderefinamento, vindo a influenciar especialmente os anúncios publicitáriosda segunda metade dos anos 1960, que passaram a usar a forma dostipos como elementos expressivos da mensagem escrita. Além disso,na procura de um ideograma perfeito, os concretistas seguiram as trilhasdo designer que procura a melhor síntese visual para uma marca defantasia. (LIMA, 1997, p. 29)

Formava-se assim o quadro no qual imbricavam-se as linguagens da poesia, do design

e da publicidade, todos sob o efeito dos fundamentos da arte concreta que imprimia sua

marca nas realizações dessas atividades nas décadas de 1950 e 1960.

De um lado, os elementos formais concretos da composição estabelecendo um certo

nivelamento de soluções visuais entre as obras de pintores e de designers (fig.27); de outro,

a conquista da dimensão estética, e não mais puramente semântica, para os componentes

textuais da mensagem aproximando conceitual e visualmente as produções da poesia concreta

das da comunicação visual e principalmente, conforme assinalou Guilherme C. Lima, da

publicidade (fig. 28).

Figura 27 - Duas pinturas de Geraldo de Barros do início dos anos 1950 (1 e 2) e um símbolo (3) de autoria de Alexandre Wollner

1 2

3

Figura 28 - Reflexos da poesia concreta no design do escritório de Aloísio Magalhães (1 e 2) e nas criações em design e publicidade de Ruben Martins (3, 4 e 5)

1

4

3

2

5

Page 67: Cartemas de Aloisio Magalhães

67

Ocorrem também situações em que as semelhanças de resultados aconteceram no

âmbito do mesmo campo de atuação, e isso é passível de constatação, no caso do design,

ao compararmos símbolos (fig. 29) criados por Aloísio Magalhães e por dois de seus

contemporâneos, os já mencionados Alexandre Wollner e Ruben Martins.

No exemplo, embora os autores tenham tomado por base figuras geométricas

diferentes (ou aparentemente diferentes, já que o formato20 da primeira equivale ao da

segunda submetida a simples rotação) -um “losango”, um quadrado e um retângulo-, a divisão

interior do espaço a que procederam segue princípios bastante semelhantes (mesmo que

para isso cada designer tenha adotado tipos específicos de “incisões” -retilínea, circular e

parabólica- transversais ao eixo vertical). Dos três, Aloísio e Ruben Martins são considerados

os de menos ortodoxia quanto à aplicação dos preceitos da escola ulmiana, na medida em

que cada um procurou, à sua maneira, conferir uma certa carga de “brasilidade” ao design

que produziu. Ainda assim, entendendo que ambos absorveram e se

expressaram segundo o “idioma” visual dominante em sua época,

iremos encontrar uma curiosa concordância formal (e talvez mesmo

de conceito) em dois símbolos (fig. 30) que produziram: o de Ruben

Martins para o Hotel Tropical e o do Clube Hípico da Bahia, de

autoria de Aloísio Magalhães.

Descartada qualquer suposição fora da coincidência, creio

ser oportuno um comentário, superficial que seja, a respeito das duas

soluções. A natureza dos serviços oferecidos pelos dois

empreendimentos por si só já estabelece os limites comuns do terreno

onde se origina o processo associativo; mas isto, desde que o designer

gráfico se permita recorrer a associações extra-pictoriais. E aí reside

... do Hotel Tropical...

... e do Clube Hípico da Bahia.

Fig. 30 - Os símbolos...

Figura 29 - Os símbolos de Wollner (1), Martins (2) e Magalhães (3): frutos de uma mesma árvore

1 2 3

20 A noção de formato aqui adotada corresponde àquela definida na obra Princípios de forma e desenho (Wong, 1998,p. 347), expressa como “as características de uma linha ou de um plano, ou a aparência de uma forma de determinadoângulo e distância”. Por extensão, “um formato plano é normalmente definido por um contorno que pode ser preenchidocom cor, padrão e/ou textura. [...] Formato e forma são às vezes usados como sinônimos; porém o formato exclui todasas referências a tamanho, cor e textura, enquanto a forma engloba todos estes elementos”.

Page 68: Cartemas de Aloisio Magalhães

68

a diferença -que reconduz à questão da finalidade- entre a prática

do design e a da pintura, posto que à arte é facultada a opção pela

forma “pura” (concreta, no caso), enquanto que o design, por ser

l inguagem, deve construir-se calcado em pressupostos

comunicacionais. O desafio do comunicador visual consiste, pois,

em relacionar graficamente elementos formais a elementos

conceituais. Desse modo, lazer, vegetação tropical, sol e sombra,

são “ingredientes conceituais” bastante plausíveis e eficazes na

orientação do pensamento criativo e objetivo que, por seu turno,

irá materializar-se num sinal inteligível. Em sua proposta para o Hotel

Tropical, Ruben Martins revelou ter-se referenciado na sombra

projetada sobre uma parede por uma folha de costela-de-adão (fig.

31.1). Quanto a Aloísio, a tirar pelo modelo tridimensional (fig. 31.2)

elaborado para o estudo do símbolo do Clube Hípico, a idéia

condutora pode muito bem ter tido origem na relação que o senso

comum estabelece entre lazer / coqueiros / Bahia.

Daí que uma questão se coloca: se a transposição do conceito para a representação

gráfica poderia se dar num nível mais direto de correspondência formal com os referentes (a

costela-de-adão ou o coqueiro), como entender a coincidência de resultados entre duas

soluções tendentes à configuração abstrata? A resposta passaria, naturalmente, pela

conformidade às convenções da linguagem concretista da época, suas possibilidades e

limitações; afinal, o emprego mais freqüente de formas figurativas na definição de símbolos

apenas iria ocorrer a partir da década de 1980. No entanto, antes que os designers gráficos

se permitissem adotá-las como alternativa às soluções geométricas decorrentes da

perseguição à "forma pura", houve um aspecto estético-formal que Aloísio Magalhães

explorou com desenvoltura e pioneirismo em algumas de suas criações, ainda nos anos 1960:

a simulação da tridimensionalidade.

Chico Homem de Melo pontua, no texto crítico já aludido, que:

A tridimensionalidade sempre seduziu Aloisio, manifestando-se já nosseus primeiros sinais. É tão forte essa presença a ponto de constituirtalvez o traço mais singular de sua obra como designer. É intrigantesaber que vár ios pro je tos foram resolv idos antes em peçastridimensionais, para só depois serem traduzidos para um desenho emsuas dimensões. Isso nos revela um Aloisio com talento para o raciocínioespacial tanto quanto para o bidimensional, sua faceta mais conhecida.(LEITE, 2003, p. 155)

Figura 31 - Origens dos conceitosdo símbolo para o Hotel Tropical (1) epara o Clube Hípico da Bahia (2).

1

2

Page 69: Cartemas de Aloisio Magalhães

69

E assim, antecipando um recurso que futuramente se instalaria com a "construção"

da linguagem publicitária televisiva, ele tiraria partido da sugestão da profundidade nos

trabalhos (bidimensionais) que realizou para o Banco Mercantil de Pernambuco, Banco

Comercial Brasul e Laboratório Maurício Villela (fig. 32), para o Banco de Crédito Mercantil,

Unibanco e Banespa (fig. 23, p. 59) -todos da década de 1960-, e nos símbolos criados

mais tarde, no curso dos anos 1970, para o Sesquicentenário da Independência do Brasil e

para o Banco Central (fig. 33).

A vasta produção de Aloísio Magalhães em design, todavia, extrapola em muito a

criação de símbolos e sinais apenas. Os projetos de seu escritório -sobretudo aqueles

desenvolvidos a partir da segunda metade dos anos 1960 quando instalado à rua Mena

Barreto 137 (novamente em Botafogo) sob o nome de Aloísio Magalhães Programação

Visual-, contribuíram também para a consolidação, no Brasil, da noção de identidade visual,

entendida como um "conjunto sistematizado de elementos gráficos que identificam visualmente

uma empresa, uma instituição, um

produto ou um evento, personalizando-

os, tais como um logotipo, um símbolo

gráfico, uma tipografia, um conjunto de

cores" (ADG, s. d., p. 59).

Nessa linha foram elaborados

programas para a L ight , para o

Laboratório Maurício Vi l lela, os

Produtos Guri (fig. 34) e, em 1970, o

revolucionário projeto de identidade

Fig. 32 - 1. Banco Mercantil de Pernambuco (1963); 2. Laboratório Maurício Vilella (1964/65); 3. Banco Comercial Brasul (1966)

1 2 3

a b

Fig. 33 - a. Sesquicentenário da Independência do Brasil (1971); b. Banco Central do Brasil (1975)

Fig. 34 - A marca Guri com aplicação ampliada a produtos, impressos e veículos

Page 70: Cartemas de Aloisio Magalhães

70

visual da Petrobrás que envolveu, inclusive, desenho de produtos e de equipamentos conforme

exemplificado na figura 35.

Outro fato marcante da trajetória de Aloísio, designer, resultou de sua participação

num concurso restrito instituído pelo Banco Central do Brasil em 1966, com vistas à

reformulação visual do padrão monetário nacional.

O governo militar criara o Cruzeiro Novo -ou NCr$- em substituição ao desvalorizado

Cruzeiro -Cr$- e planejava conquistar a autonomia do país na fabricação das cédulas do

dinheiro brasileiro, até então inteiramente produzidas pelas empresas estrangeiras American

Bank Note e Thomas de La Rue. Do concurso participaram:

Alexandre Wollner, Aloisio Magalhães, Goebel Weine, Ludovico Martino,Rubem Martins e dois funcionários da instituição. Aloisio ganhou acompetição com um projeto extremamente inovador [fig. 36], inspiradonum brinquedinho de criança que havia trazido da Europa, pouco antes:lâminas de acetato com impressões de círculos concêntricos, em váriasespessuras. Superpondo-as, ele criava configurações em moiré [*], queacabou por uti l izar como princípio básico de seu projeto, numprocedimento que dá bem a medida da importância que a intuiçãoocupava em seu trabalho. (ESCOREL, 2000, p. 115)

Por comportar recursos gráf icos não

convencionais no processo de produção de papéis-

moeda, a proposta de Aloísio enfrentou de início

grande resistência da parte dos dirigentes da Thomas

de La Rue - Giori, a empresa contratada pelo

governo brasileiro para desenvolver as matrizes de

impressão. Acompanhando de perto o processo na

condição de consultor do Banco Central, Aloísio

pode discutir e defender suas idéias com os europeus

e assim viabilizar o projeto das notas de Cruzeiro

Fig. 35 - No projeto de identidade visual da Petrobrás, a extensão da marca a letreiros (1 e 2), veículos (3) e equipamentos (4)

Fig. 36 - NCr$ 1,00: nota impressa no Brasil em 1967

1

2

3 4

[*] Moiré: termo que em artes gráficas designa o efeito óptico -geralmente indesejável- causado pela superposiçãoincorreta das retículas (padrões gráficos compostos de linhas ou pontos) necessárias à impressão de imagens coloridas ouem meios-tons.

Page 71: Cartemas de Aloisio Magalhães

71

Novo -que a partir daquele momento passavam a ser impressas no Brasil- postas em

circulação no ano de 1967.

As sucessivas desvalorizações da moeda brasileira fizeram com que, por duas outras

vezes, o governo militar recorresse a Aloísio Magalhães para dar feição às cédulas de dinheiro

nacionais resultantes de alterações na política monetária; a primeira, com o lançamento em

1972 -quando o Cruzeiro Novo já havia cedido seu lugar ao (novamente) Cruzeiro-, da

nota de quinhentos cruzeiros (Cr$ 500,00) em comemoração aos cento e cinqüenta anos da

independência do Brasil (fig. 37).

A outra oportunidade ocorreu em 1976 com a perspectiva de implementação, para

o ano seguinte, de um novo programa de emissão; desta feita, por conta de seu envolvimento

com o Centro Nacional de Referência Cultural e o conseqüente afastamento da produção

em design, Aloísio encarregou-se apenas do

projeto da nota de Cr$ 1000,00 (fig. 38),

cujos princípios formais nortearam o trabalho

dos técnicos da Casa da Moeda do Brasil,

responsáveis pelo desenvolvimento das

demais cédulas do plano. A partir daí

nacionalizava-se toda a produção do

dinheiro nacional, do design à fabricação

do papel, passando pela geração das

Fig. 38 - Um novo conceito no design da cédula de Cr$ 1.000,00, em suas duas versões

Fig. 37 - Na nota de Cr$ 500,00 Aloísio manteve ainda o efeito de moiré

Page 72: Cartemas de Aloisio Magalhães

72

matrizes de impressão. Se isto representou uma grande conquista para o país, igualmente

importante foi o significado dessa conquista para Aloísio Magalhães. E por que?

Já foi dito antes, a questão do auto-imposto compromisso com a construção e

afirmação de uma identidade cultural nacional -a causa, como identificada por José Reginaldo

Gonçalves (GONÇALVES, 2000)- e a inclinação para o trabalho artístico coletivo são

aspectos que marcaram claramente a trajetória profissional de Aloísio. Sua decisão de migrar

da pintura para o design foi tomada mesmo com base no propósito de concretizar tais

expectativas e, por um período de aproximados quinze anos de dedicação, o trabalho de

designer cumpriu essa função.

Com o design do padrão monetário e o projeto de identidade visual da Petrobrás -

tendo em vista a grande carga simbólica de ambos e a amplitude de sua implantação- Aloísio

Magalhães alcançava a condição de participante direto, num determinado momento, do

processo de transformação da cultura brasileira. E este, já o sabemos, seria seu caminho

daí por diante.

Importa, contudo, saber em que medida essas particularidades e ações influíram na

invenção dos cartemas.

Page 73: Cartemas de Aloisio Magalhães

73

4. O CARTEMA

4.1. A GÊNESE

A definição consta da edição de 1998 do “Aurélio” -a bem assimilada metonímia

através da qual geralmente nos referimos ao Novo Dicionário da Língua Portuguesa1 :

cartema. [De cartão (-postal).] S. m. Neol. Bras. Colagem executadacom cartões-postais com valores visuais equivalentes e que, colocadoslado a lado, dão ao todo uma nova unidade visual. [T. criado por AntônioHouaiss (1915- ), em 1974, para essa composição artística de AloísioMagalhães (1927-1982).]

Em sua versão eletrônica, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa2 também

registra:

cartema. /ê/ s.m. (1974 cf. AF2) ART.PLÁST B colagem estruturadaa partir da colocação, lado a lado, de cartões-postais Ø ETIM rad.cart- (de cartão-postal) + 1-ema ‘unidade mínima estrutural’; palavracriada, em 1974, por Antônio Houaiss (1915-1999), para designar acriação artística de Aloísio Magalhães (1927-1983); ver cart-

Há, porém, no verbete transcrito de ambas as fontes, uma incorreção quanto à data

em que Houaiss teria criado o termo. Na verdade, pelas próprias palavras do filólogo, os

cartemas foram assim denominados durante os preparativos de sua primeira exibição ao

público, ocorrida no Rio de Janeiro em 1972.

Escreveu Antônio Houaiss:

Pelos fins de 1971 estivemos em longa conversa, provocada por umaexposição que [Aloísio] iria fazer no Museu de Arte Moderna, no Riode Janeiro. Sua alegria era contagiante e o seu prazer de fazer, deHomo faber também, era uma festa. Foi-me revelando no seu estúdiode Botafogo as peças de uma expressividade visual (e onírica!) que iapondo, uma após outra, ante meus olhos maravilhados. Pouco depois,de torna-viagem da Europa, dava-me a ver novas peças e, depois, novasoutras: três séries de usos de cartões-postais - comercialíssimos eturisticíssimos - que se transformavam em matéria-prima dos seus -como dar-lhes nome? Buscando-o, pensando naquelas unidades,naquelas cartas postais, lembrava-lhe tantas unidades em -ema, neste

1 FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

2 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

Page 74: Cartemas de Aloisio Magalhães

74

nosso mundo de Deus e do Diabo: fonema, semema, semantema,monema, morfema, ideologema, mitema, tonema e o que mais sequisesse: cartema era a palavra - e ele aderiu, exultante. (FUNARTE,1982)

A correção de data adquire aqui certa relevância, na medida em que o fato se relaciona

diretamente com outro mencionado ao final do capítulo anterior que, por sua vez, se vincula

à origem dos cartemas. Refiro-me ao projeto de Aloísio Magalhães para o padrão monetário

brasileiro, naquela versão que, conforme foi relatado na página 71, começou a circular no

ano de 1972.

É do conhecimento geral que a técnica de fabricação de dinheiro exige recursos

projetuais e de impressão significativamente mais complexos que os normalmente empregados

na grande maioria dos produtos impressos. No caso em questão, dadas as inovações gráficas

introduzidas pelo projeto das notas brasileiras, os testes iniciais de impressão extrapolaram

em muito a prática habitual até que se confirmassem exeqüíveis e seguros os revolucionários

artifícios. Um destes testes, realizado na Holanda em 1970, era acompanhado de perto por

Aloísio, então consultor contratado do Banco Central do Brasil. Ali, ao sair

[...] das máquinas impressoras em grandes folhas de papel-moeda, aunião de dezenas de notas iguais num mesmo espaço [fig. 39] formadesenhos que atraem o interesse de Aloisio, já voltado para odesenvolvimento de formas estruturadas a partir de imagens refletidas,como foi, entre vários outros, o caso do símbolo que desenhou para oIV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro. (FUNARTE, 1982)

Mas é certo que alguma motivação

anterior orientava esse interesse que, sob

aquelas circunstâncias, se deixava “atrair”.

O artista, que Aloísio nunca deixara de ser,

estivera até então apenas desencantado com

os rumos tomados pela arte, e a sensação

mesma manifestada por ele de que “a arte

estava morta”, não era algo tão particular

que não tivesse sido experimentado por

(tantos) outros artistas da sua época e de antes. Giulio C. Argan, inclusive, refere-se ao

problema como uma decorrência da “dificuldade da relação entre arte e sociedade” que,

potencializada no período entre guerras, “agravara-se depois da Segunda Guerra a ponto

Fig. 39 - O processo de impressão de papel-moeda; na foto, uma impressoraoffset, da Casa da Moeda do Brasil, imprime cédulas do Real.

Page 75: Cartemas de Aloisio Magalhães

75

de levar a crer que a ‘morte’ da arte era inevitável, iminente e talvez já tivesse ocorrido”

(1992, p. 508). Mas a recusa de Aloísio Magalhães ao “isolamento do artista” conduzira-o

à comunicação visual, e agora, no pleno exercício desta profissão, e convencido que estava

da possibilidade de comunicação entre artista e público que a produção em design lhe

confirmara, animava-se a promovê-la também no espaço da criação puramente artística.

A materialização desse objetivo, contudo, não se deu pela via das tintas e pincéis,

mas por meio da manipulação de um signo bastante familiar à cultura popular ocidental (se

não universal): os cartões-postais.

Deslocados aí de sua condição de produto industrial acabado para o estado de

matéria-prima do trabalho artístico, os postais renasciam sob a forma de cartema, uma

solução estética que, na origem, já se revelava síntese dos fazeres múltiplos de seu criador,

pois que sendo obra do artista -a colagem-, surge da observação de um processo -a

impressão das notas- pelo gráfico, constrói-se segundo um procedimento técnico familiar

ao designer -a arte-final-, e toma por matéria constitutiva um produto trivial da cultura

popular -o cartão-postal.

Da articulação desses diferentes níveis de intenção e ação emergiu o instigante

resultado visual que inaugurava, com a primeira apresentação ao público no Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro, em 1972, um ciclo de mostras sempre concorridas no país e no

exterior. No catálogo projetado por Aloísio para esta exposição, a relação com a ambigüidade

que permeia e caracteriza a sua obra (e mesmo a sua vida, em certos aspectos3 ) chega ao

paroxismo: ao concebê-lo, o autor retoma o processo cartemático pelo caminho inverso,

quando insere no impresso cartões-postais cujas imagens são reproduções dos cartemas

apresentados na mostra4 .

As exposições que se seguiram a esta aconteceram:

- no Museu do Açúcar, no Recife, em 1972;

- na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, nesse mesmo ano;

- no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1973;

- na Galeria Múltipla, em São Paulo, também em 1973;

- na Galeria da Praça, Rio de Janeiro, em 1974; e

- na Fischback Gallery, de Nova Iorque, em 1977.

3 A ambigüidade aqui referida, pode ser confrontada com as palavras do próprio artista, citado por João deSouza Leite: “Eu me situo muito numa postura dialética entre o sim e o não, entre o preto e o branco; acho queo caminho está exatamente nessas situações complementares, que são situações ricas, são contrastadas.”(Leite, 2003, p. 22).

4 Cf. em FUNARTE. Cartemas: a fotografia como suporte de criação. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1982.

Page 76: Cartemas de Aloisio Magalhães

76

Há, ainda, registros que informam sobre exibições dos cartemas em “várias galerias

do Brasil e do exterior”; tais indicações, no entanto, são bastante imprecisas quanto aos

locais e datas em que isso teria acontecido.

As aquisições -outro indicador de receptividade-, igualmente não foram poucas.

Apenas na exposição da Fischback Gallery, em Nova Iorque, foram adquiridos “mais de

doze cartemas”, conforme relatado em correspondência5 enviada a Aloísio Magalhães por

Claude Mollard6 , em 1977, e disponível nos arquivos pessoais do artista cedidos por sua

viúva à Fundação Joaquim Nabuco, de Recife.

No Brasil os cartemas integram, entre outros, os acervos do Museu de Arte

Contemporânea de Niterói (RJ), da empresa Comgás, em São Paulo, do Museu de Arte

Moderna Aloísio Magalhães e da Fundação Joaquim Nabuco, ambos em Recife; no exterior,

o artista realizou um cartema mural para a sede da ATT - American Telegraph and Telephone

Company, em Nova Iorque.

Duas outras mostras públicas dos cartemas seriam ainda organizadas, a partir de

1982, como homenagem póstuma a Aloísio. Na primeira delas, realizada naquele ano pela

Galeria de Fotografia da Funarte, no Rio de Janeiro, foi incluída entre as obras uma série

inédita de quinze cartemas em preto e branco, elaborados com cartões-postais franceses da

coleção Chefs-d’oeuvre de la Photografie (editada pela galeria parisiense Agathe Gaillard).

No ano seguinte, uma segunda exposição, itinerante, foi levada às capitais de dez estados

brasileiros.

Posteriormente, os cartemas figuraram também em eventos temáticos, como ocorreu

nas mostras Imagens Seqüestradas -paralela ao 16º Salão Nacional de Artes Plásticas

(Funarte/MAM-RJ, 1998)-, Apropriações/Coleções (no Santander Cultural, Porto Alegre/

RS, 2002) e A Subversão dos Meios (no Instituto Itaú Cultural, 2004).

Todavia, se as exposições e aquisições dão indícios, ao menos na superfície, do

interesse admirado do público por esse trabalho plástico de Aloísio Magalhães, o desafio

principal aqui será o de buscar extrair e compreender, nas raízes da linguagem cartemática,

que particularidades responderam (e ainda respondem) por essa identificação, que é

síntese da interação entre os territórios da criação e o da fruição da arte. Só que a procura

por tais explicações passa, necessariamente, pela avaliação dos condicionantes históricos

5 Disponível no endereço eletrônico <www3.fundaj.gov.br/cgi-bin/isis3g-p>. Acesso em 27.04.2002

6 O francês Claude Mollard é escritor, exerceu o cargo de Secretário Geral do Centro George Pompidou, em Paris, e fundou oInstitut Supérior de Management Culturel da França.

Page 77: Cartemas de Aloisio Magalhães

77

que agem, num dado espaço e num dado tempo, sobre os processos de criação e produção

artísticas.

Nesse sentido -e principalmente se admitirmos que a relação entre arte e público

pode ser um canal de ocorrências pedagógicas- será importante considerar, paralelamente

aos aspectos de natureza estética e comunicacional, as circunstâncias sob as quais surgiram

os cartemas; ou seja, avaliar a correlação entre a produção em arte e a ditadura militar do

Brasil nas proximidades dos anos 1970, um período da história nacional em que -para usar

uma expressão ao gosto do último general presidente- recrudesciam as medidas restritivas

às liberdades individuais e coletivas, adotadas por um regime indisfarçavelmente autoritário

e, na primeira metade daquela década, particularmente cruel.

4.1.1. Expressão e risco: os “anos de chumbo”

Em março de 1964, o golpe militar no Brasil impunha uma radical mudança de direção

na trajetória esquerdizante traçada pelo governo do presidente João Goulart.

Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciênciapublicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentosarcaicos da pequena burguesia. Tesouros de bestice rural e urbanasaíram à rua, na forma das “Marchas da família, com Deus pelaLiberdade”, movimentavam petições contra divórcio, reforma agráriae comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o “Terçoem Família”, espécie de rosário bélico para encorajar os generais. Deusnão deixaria de atender a tamanho clamor, público e caseiro, e de fatocaiu em cima dos comunistas. (SCHWARZ, 1978, p. 70)

O apoio paranóico da classe média brasileira ao golpe legitimou, em certo grau, o

cerceamento à exteriorização de todo pensamento não alinhado com a ideologia

anticomunista do Estado, que não tardou a se institucionalizar como a Censura, oficial,

urdida para demarcar, com não rara truculência, os limites da criação, expressão e

produção artística e literária no país. A imediata e calculada investida dos militares

governantes para “enquadrar” essa área da produção humana já é um indicador, por si só,

do entendimento que tinham da arte como instrumento potente de libertação. A decretação

do Ato Institucional nº 5 -o AI-5- em 13 de dezembro de 1968, tornou ainda mais tensas

e perigosas as relações entre o poder instituído e a criação (pois esta não constitui também

uma forma de poder?). O quanto os artistas se deixaram levar pelo temor ou reagiram,

dentro das suas possibilidades, contra esse nível de interferência, isso é um fato que já

Page 78: Cartemas de Aloisio Magalhães

78

alimentou e ainda há de alimentar incessantes discussões, mas do qual não pretendo aqui

explorar senão um ou dois aspectos. E nessa exploração há um duplo objetivo: avaliar até

que ponto as obras produzidas pelos pintores brasileiros do período diferiam do cartema

em termos de conteúdo discursivo ou de linguagem estética e, concomitantemente, refletir

sobre o papel, a importância e desempenho, naquele contexto social e político, de diferentes

segmentos das artes visuais.

Se de início, no âmbito da produção visual, nos ativermos tão somente ao grupo dos

artistas que mesmo sob o peso dos “anos de chumbo” se valeram de suas obras para

demonstrar seu inconformismo, denunciar os mecanismos oficiais de controle e repressão e

assim cumprirem seu papel de transformadores, chegaremos a uma curiosa constatação (que

remete à discussão proposta no primeiro capítulo e põe em xeque a questão da

“hierarquização” na arte). Naquelas circunstâncias desfavoráveis ao pleno exercício da

criação artística, foi justamente um dos representantes das “artes menores”, o cartum e suas

variantes (a caricatura, a charge e a história em quadrinhos), o segmento das artes visuais

que esteve no front de uma luta de resistência que por cerca de duas décadas desafiou e

denunciou as arbitrariedades daquele regime de exceção. A pintura, habitualmente

reverenciada como a mais “nobre” das artes, ainda que não tenha ficado imune aos ataques

das forças oficiais de patrulhamento e repressão, preservou um aparente (e seguro)

distanciamento -exceção feita a alguns poucos de seus representantes7 - das causas e anseios

de boa parte da sociedade brasileira da época.

Costuma-se justificar essa posição argumentando-se que o alcance da pintura é

restrito, na medida em que lhe faltam estruturas de veiculação tão amplas e eficientes quanto

aquelas de que se serve o cartum; e isso é verdade. Há que se considerar, no entanto, que

um meio de comunicação é, antes, uma iniciativa empresarial e, como tal -já nos

acostumamos a ver-, não hesita em sacrificar seus colaboradores e relativizar princípios em

favor dos interesses financeiros da empresa.

Um episódio ocorrido com o intelectual e humorista Millôr Fernandes, responsável

pela seção Pif Paf da revista O Cruzeiro -um fenômeno editorial brasileiro surgido em

1928-, ilustra bem o que foi dito.

Em 1963, a violenta reação da ala conservadora da Igreja a um desenhode Millôr, levara O Cruzeiro a suspender esta seção de suas páginas,

7 Dentre os poucos pintores no período que fugiram à regra da alienação político-ideológica podemos destacar, porexemplo, Rubens Gerchman, Cildo Meireles, Carlos Zílio e João Câmara.

Page 79: Cartemas de Aloisio Magalhães

79

após dezoito anos de publicação; a resposta de seu criador foi olançamento de o Pif Paf como revista de humor, independente. O PifPaf durou apenas oito números, o último dos quais apreendido pelacensura –uma existência marcada, do princípio ao fim, pela intolerância.Mas a idéia da criação de uma revista independente, sustentada pelospróprios jornalistas que nela trabalhavam, deitou raízes. (LEITE, 1982,p. 957)

Daí que seria ingenuidade presumir que as facilidades de veiculação sejam um

proveito pelo qual não seja preciso pagar um preço. Fosse assim e o grupo de intelectuais

e artistas responsável pela criação do semanário O Pasquim -um descendente direto do

Pif Paf- não precisaria ter-se dado ao trabalho de erigir sua própria cidadela e abrir um

canal de comunicação com a sociedade submetendo-se, ao desnudar as mazelas do regime,

a perseguições e chantagens de toda ordem; ou, os cartunistas não se teriam organizado

para criar e sustentar, por exemplo, espaços de visibilidade e resistência como o Salão de

Internacional de Humor de Piracicaba8 , hoje uma instituição -não mais um evento- com

aproximados trinta anos de existência.

É evidente que engajar-se não é condição indispensável ou mesmo necessária à

produção de obras de arte de qualidade, bem como não se pode esperar dos artistas, por

indivíduos que são, reações idênticas -para o bem ou para o mal- diante das mesmas

solicitações da vida. Não é isso, e a relação da arte com as convulsões sociais ao longo

da história da humanidade revela que a agressão à sensibilidade do artista pode conduzir

ao desencanto e, por desdobramento, ao afastamento ou à negação da realidade, sem

que isso signifique, necessariamente, ausência de qualidade em suas realizações. Por outro

lado, os conflitos, as guerras, a exploração e opressão humanas não impõem também,

como única alternativa ao artista, a alienação, a resignação ou o niilismo. A criatividade

que alimenta o núcleo poético do artista não pode igualmente contribuir para a descoberta

de meios originais de comunicação com o público? Certamente que sim, e para confirmação,

podemos recorrer a uma iniciativa, de 1975, do artista Cildo Meireles.

Em outubro daquele ano os órgãos de repressão haviam prendido para

interrogatório e executado, sob tortura, o jornalista Wladimir Herzog. A versão oficial

informava que o preso suicidara-se, na cela, com o cinto de seu uniforme. O caso -que

8 Ainda que neste ponto seja tentadora a oportunidade de aprofundar-me na análise das razões do flagrante desequilíbrioentre, de um lado, o contingente de pintores, e de outro, o de cartunistas (como de resto o de compositores populares,dramaturgos, poetas, cineastas e escritores) que combateram o autoritarismo com sua arte na vigência da ditadura militar,preferirei deixar aqui apenas o registro desta possibilidade.

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80

voltou recentemente aos jornais- vazou para a imprensa que, mesmo submetida ao controle

da censura, achou meios de noticiá-lo e cobrar do estado rigorosa apuração de

responsabilidades. Revoltado com as tentativas do governo para mascarar e desviar a

atenção do fato, Cildo Meireles estampou sua indignação com a frase “Quem matou

Herzog?” carimbada em notas de um cruzeiro (fig. 40) que, a seguir, repôs em circulação9 .

O protesto político, porém, era apenas parte -ainda que significativa- da motivação do

artista; complementavam-na a crítica aos padrões convencionais da “arte burguesa” e a

oportunidade da realização artística com ênfase no

conceito e no processo -como propunham na época os

grupos alternativos-, mais que no produto. Atitudes

assim não foram, no entanto, a característica que marcou

os artistas plásticos do período; em depoimento à

jornalista Maria Hirszman, na edição especial “Os 30

anos do AI-5” publicada pelo jornal O Estado de São

Paulo, o crítico Frederico de Morais pontua que, na

vigência do referido ato institucional, a “arte brasileira

viveria momentos de grande inquietação, até estabilizar-

se, negativamente, com a autocensura, numa aceitação

passiva do status-quo”10 .

Sabemos todos que a autocensura é um dos processos mais perniciosos que a

ameaça exterior à livre manifestação das idéias e opiniões costuma desencadear no

indivíduo. Sob seu efeito é comum que o artista -mas aquele que não renuncia ao seu

papel-, ao buscar exprimir-se, o faça através de linguagem hermética, apoiada em

metáforas ou alegorias por vezes ininteligíveis aos seus contemporâneos; ou, que procure

trabalhar dentro das condições permitidas pelo agente exterior; ou, que se deixe seduzir

pelas oportunidades do mercado; ou, ainda, que se concentre, por exemplo, na solução

de problemas técnicos, de forma, matéria ou fatura.

De qualquer modo, num momento histórico desfavorável à liberdade de criação, o

que se produz em arte sob ação da autocensura, soma-se ao que se produz fora dela, e

Fig. 40 - Com Inserções, Cildo Meireles criava seuespaço de atuação política.

9 Uma curiosa coincidência, especialmente para esta dissertação que aborda o encontro -agora com ironia- da arte com odesign, é o fato de Cildo Meireles ter utilizado como suporte de sua obra um produto projetado por Aloísio Magalhãese tão estreitamente vinculado à origem dos cartemas.

10 HIRSZMAN, Maria. Artes plásticas conviveram com autocensura, O Estado de São Paulo, caderno especial sobre o AI-5.São Paulo, 1998.

Page 81: Cartemas de Aloisio Magalhães

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ambas as situações traçam o perfil da produção artística do período. É de se supor que a

procura e opção por caminhos tão diversos, dada a heterogeneidade de seus resultados,

tenham concorrido para caracterizar os anos setenta do século XX como a “década da

experimentação” da arte brasileira.

No caldeirão de experimentações da criação artística nacional, misturavam-se,

em torno do início daquela década, tendências, linguagens e procedimentos os mais

variados, indo da pop art à arte conceitual, dos happenings à representação hiper-realista,

das propostas desmaterializadoras da arte às preocupações com a revisão da relação

arte-público. É também um tempo em que, a exemplo do que Alexander Calder realizara

nos anos 1930 com a invenção dos móbiles, proliferaram as demarcações de “nichos”

cuja exploração estética particularizada tornava indistinguíveis obra e autor: Parangolés

- Hélio Oiticica, Polaróides - Andy Warhol, Objetos relacionais - Lygia Clark, Popcretos

- Waldemar Cordeiro, (...) e Cartemas - Aloísio Magalhães.

Feitas estas considerações, creio então ser possível afirmar que a criação dos

cartemas não foi uma solução anacrônica ou estranha à conjuntura da arte brasileira dos

anos setenta. Nem seria menos admirável porquanto priorizou a ludicidade ao engajamento,

ou o aprimoramento dos sentidos ao chamado à luta política11 . Afinal, se no outro extremo

da produção artística (quando não na origem ou no centro dela) está o espectador, é

preciso que se considere e respeite seu direito de identificar-se com o que lhe aprouver,

dentre tudo aquilo que se oferece a ele como arte (ou mesmo como antiarte), antes que se

pretenda, como propunha Rubens Gerchman ao final dos anos 1960, “pegá-lo pelo pescoço

e fazê-lo pensar” (Leite, 1982, p. 974). Reconheço que o excesso de Gerchman foi

explorado aqui também com algum excesso, mas ele reflete bem a importância que tem

para os artistas -incluídos os que propõem ignorar- algum tipo de resposta do público às

suas obras; e é óbvio que essa resposta jamais será unânime, diante da rica diversidade

de proposições, linguagens e recursos e, mais importante, de subjetividades presentes

nessa relação.

11 Aloísio não foi um artista militante, à esquerda ou à direita, e creio que a desenvoltura com que se movimentava noscírculos oficiais tenha contribuído para, provavelmente, associar seu nome ao ideário do governo militar, a despeito desua atuação em programas e instituições de esquerda (governo Miguel Arraes, em Pernambuco, e o Teatro do Estudantedo Recife), ou das relações de amizade que sempre manteve com notórios opositores à ditadura (Ariano Suassuna, JoãoCabral de Mello Neto, Antônio Houaiss, entre outros).

Page 82: Cartemas de Aloisio Magalhães

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4.2. ANALOGIAS VISUAIS E INFLUÊNCIAS

Aloísio Magalhães já se consagrara como designer no Brasil e internacionalmente quando

criou o cartema. As freqüentes viagens ao exterior, causa e efeito de seu cosmopolitismo,

colocaram-no desde cedo em contato com artistas, rumos e perspectivas da arte mundial da

segunda metade do século vinte, e seria mesmo improvável que o acúmulo de tantas vivências,

informações e identificações, aliado àquela “constante da invenção”12 que o caracterizava, não

viesse a desaguar num ato de criação. Se no Brasil as artes plásticas inauguravam, num momento

de internacionalização das linguagens, a sua fase “experimentalista”, pode-se inferir que as

possibilidades aí apresentadas tenham reacendido em Aloísio o desejo de retomar as explorações

estéticas e comunicacionais das quais, uma dezena de anos antes, se havia distanciado por

desencanto com os rumos da produção artística.

É verdade que o caminho traçado por ele, nessa retomada, não perpassava o território

da arte politicamente engajada e tampouco cruzava os domínios de grupos de vanguarda cujas

atitudes e propostas fizeram estremecer os padrões aceitos da arte naquele momento histórico.

Mas seu caminho não passou completamente ao largo das questões com as quais, àquela altura,

os artistas se viam às voltas, pois a idéia da interação arte-espectador, que o movia, era um

objetivo perseguido também por vários de seus contemporâneos. Prova disso é que, ao inventar

seus cartemas lançando mão de cartões-postais comerciais, Aloísio agregava ao ato criador a

intenção de oferecer ao público um modus faciendi, um processo composicional artístico, realizável

com baixo custo e passível de execução por qualquer indivíduo interessado em realizá-lo.

O triunfo desta vontade já teria sido, por si só, motivo suficiente para fazer do cartema

uma criação bem-sucedida do ponto de vista da função social, pois, ao fazer do espectador

um (possível) agente, a obra não se constituía um instrumento de transformação da realidade?

Mas pode-se ir além na análise (e nas divagações) acerca das muitas intencionalidades

que se “desprendem” da obra. Nesse sentido, podemos tomar como ponto de partida as

próprias palavras do artista, em entrevista13 ao Jornal da Tarde, de São Paulo, quando sua

obra era exibida no Museu de Arte Moderna daquela capital:

Embora simples, o cartema não é um achado. Tem toda a vivência e otreinamento de um olho atento a tudo. O cartão-postal é importante e

12 A expressão foi usada pelo crítico Clarival do Prado Valladares, em texto publicado no folder da exposição de AloísioMagalhães realizada na Galeria da Praça, no Rio de Janeiro, em 1974.

13 KRUSE, Olney. Foi preciso criar uma palavra para esta arte. Jornal da Tarde. São Paulo, 19 de março de 1973. Para se ter umaidéia do sucesso dos cartemas junto ao público, somente a mostra do MAM/SP, com duração aproximada de três semanas, rendeucerca de trinta reportagens em grandes periódicos nacionais.

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universal. Tão importante que ficou banal. A arte anda meio trágica,densa, sufocada. Perde diariamente o caráter lúdico e a graça. Ocartema restitui ao espectador a alegria perdida. Ninguém ficaindiferente. (FUNARTE, 1982)

Em sua concisão, este depoimento contém os ingredientes fundamentais para a análise

pretendida: a experiência, o olho treinado, o postal, a alegria contraposta ao estado “trágico”

da arte, o lúdico e a integração. Iniciemos pelas circunstâncias que conduziram à escolha do

cartão-postal como elemento primordial daquela composição.

Quando Aloísio ainda se dedicava à pintura, em meados dos anos 1950, a pop art

dava os primeiros sinais de vida nos Estados Unidos, a partir de trabalhos de Jasper Johns

e Robert Rauschenberg14. Ganhando força nos anos sessenta, com as contribuições de Andy

Warhol e Roy Lichtenstein, o movimento (que Argan prefere classificar de fenômeno e o

crítico brasileiro Mário Pedrosa15 aponta -não sem sérias críticas- como sendo o marco da

pós-modernidade na arte) conquistaria adeptos também no Brasil e, embora fosse aqui

adaptado às temáticas “tupiniquins”, alguns recursos de fatura manter-se-iam bastante

próximos dos desenvolvidos nas soluções americanas.

Lichtenstein expunha em 1961, na Galeria Leo Castelli de Nova Iorque, pinturas

baseadas na narrativa visual das histórias em quadrinhos (fig. 41.1); seis anos depois, o

paulista Cláudio Tozzi explorava recursos semelhantes em sua série de pinturas O bandido

da luz vermelha (fig. 41.2), admitidamente referenciadas na obra do primeiro. Lá ou cá, a

14 Argan, 2000, p. 575.

15 Cf. MADEIRA, Angélica. Mário Pedrosa entre duas estéticas: do abstracionismo à Arte Conceitual. Disponível em:<http://www.unb.br/ics/sol/itinerancias/pip.html>; acesso em 27.10.2004.

Fig. 41 - (1) A técnica de Lichtenstein (Moça afogada, de 1963)... ...ecoa na obra (2) de Tozzi (O bandido da luz vermelha, 1967)

1 2

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arte pop extraía dos produtos industrializados, dos mitos e signos da cultura de massa, das

coisas emblemáticas e dos objetos do cotidiano, servíveis ou inservíveis, a seiva de sua, por

assim dizer, vitalidade. Em alguns casos foi acrescida, aqui, de conteúdo político, como nas

“bananas metafóricas” de Antônio Henrique Amaral (fins da década de 60), ou na instalação

Berço esplêndido (1969), de Carlos Vergara (fig. 42.1), esta invocando inevitáveis

associações -a um só tempo- com as obras Cama (1955), de Rauschenberg (fig. 42.2) e

Três bandeiras (1958), de Johns (fig. 42.3).

Em 1962, Warhol produziria uma tela com imagens múltiplas serigrafadas de cédulas

da moeda americana -aliás, a paródia da serialização industrial foi um recurso de linguagem

recorrente, tanto em forma quanto em essência, nas telas do artista- e neste ponto pode-se

estabelecer uma conexão com a história dos cartemas. Seria coincidência ou obra do

inconsciente criativo de Aloísio que a idéia lhe ocorresse justamente no instante em que

observava o processo industrial de impressão das notas do dinheiro brasileiro, saindo lado

a lado, nas folhas de papel moeda?

Não havendo como responder com segurança à pergunta, posso conjecturar (e visto

que estamos no território do pop, aproveito-me do que os versos da canção me sugerem:

“as idéias estão no chão / você tropeça e acha a solução.”16).

Aqueles que já tiveram a oportunidade de observar uma impressão offset em

andamento, sabem dos efeitos potencialmente hipnóticos decorrentes da associação da

16 Versos da canção A melhor forma (de Sérgio Britto, Paulo Miklos e Branco Mello), do cd musical Titãs acústico. Weamusic, 1997.

1 2

3

Fig. 42 - A obra de Vergara (1): associações formaiscom as de Rauschenberg(2) e Johns (3)?

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cadência da máquina impressora com o movimento rítmico de acomodação das folhas,

empilhando-se, uma a uma, ao final do processo. Sendo o transe hipnótico (mesmo o semi-

hipnótico) um estado alterado de consciência e, como tal, uma condição passível de redundar

num ato de criação, não seria completamente sem sentido a suposição de que a idéia dos

cartemas tenha acontecido em circunstância semelhante. Porém, ainda que a suposição

procedesse, faltaria explicar (ou divagar sobre) a opção de Aloísio pelo cartão-postal; nesse

caso, com mais possibilidades de acerto.

A explicação pode estar no interesse que, conforme foi dito no capítulo anterior,

desde cedo Aloísio manifestou pela cultura popular. Se recorrermos aos dois extremos do

tempo de sua vida dedicado aos campos da cultura e da arte, encontrá-lo-emos, no início,

integrado ao Teatro do Estudante de Pernambuco -onde comandou o Departamento de

Bonecos- ou, no final da vida, já Secretário da Cultura do MEC, comprometido com a “causa”

da identidade nacional, que buscava afirmar através da valorização do “fazer das

comunidades”. Na função de designer, sua participação na conformação da cultura brasileira

foi direta, quando realizou projetos de alcance nacional como o das notas de cruzeiro, a

cujo processo de produção me referia parágrafos atrás e a cuja relação com a origem dos

cartemas retorno agora.

Dispor imagens de notas de dinheiro lado a lado num quadro, Andy Warhol o fizera

quase dez anos antes. Que outro ícone da cultura mundial poderia equiparar-se ao dinheiro,

em termos de abrangência e de apelo aos valores identitários? Selos? Ídolos do cinema e da

música mundialmente famosos? Garrafas de coca-cola? Tudo isso freqüentou as obras de

Warhol. Os postais, não. “O cartão-postal é importante e universal”, já ouvimos do artista;

o que era idéia, em Aloísio, começava então a tomar corpo.

Seria conveniente, nesse ponto, esclarecer que não pretendo insinuar que os cartemas

pudessem ser a pura e simples adaptação de uma intenção a um processo preexistente (uma

ocorrência, na arte, da conduta típica dos “diluidores”, conforme o escritor e crítico norte-

americano Ezra Pound, em seu “ABC da literatura” 17 , classifica os escritores que se

aproveitam de descobertas alheias em suas realizações). Realmente não foram. Seriam, isto

sim, uma referência a um trabalho artístico anterior; ou seja, tanto guardam semelhanças

quanto diferenças em relação a ele. Diferenças que, no caso, começam pela técnica -lá, a

serigrafia; aqui, a colagem-, passam pelo procedimento -citação em Warhol; apropriação

em Aloísio-, e terminam na relação com o espectador -contemplação versus interação.

17 POUND, Ezra. ABC da literatura . São Paulo: Cultrix, 1970.

Page 86: Cartemas de Aloisio Magalhães

86

A colagem e a apropriação não seriam, no entanto,

um aspecto inovador do cartema. A primeira é um antigo

recurso plástico cuja (re)introdução na arte moderna é

atribuída a Georges Braque, com o quadro Fruteira e copo

(fig. 43), datado de 1912. Depois dele e dos demais cubistas,

a colagem passaria a ser um procedimento relativamente

comum nas produções artísticas.

As apropriações, igualmente, não são uma prática nova

na arte e sua história está intimamente ligada à da fotografia.

Em 1919, Marcel Duchamp acrescentou bigodes à imagem

da Mona Lisa impressa num postal, numa intervenção

denominada por ele próprio L.H.O.O.Q.18 ; mas antes dele, na última década do século

XIX, não teria sido apropriação a iniciativa de William Morris de recuperar através da

fotografia, para uso em suas publicações, os caracteres e ornatos dos livros medievais?

Tornada prática comum a partir da década de 1960, a apropriação traria como

conseqüência um novo estatuto para a obra de arte e, a reboque, a reformulação da noção

de autoria. Jacques Rancière (2003, p. 10) afirma que aquela

Era a época em que os artistas pop, com seus retratos de “stars” ousuas latas de sopa em série, destruíam o privilégio da obra única. Depoisvieram: a arte das instalações em que o artista geralmente se contentaem redispor objetos de uso e imagens já existentes; a prática dos DJmixando elementos sonoros tomados de composições existentes, a pontode torná-las impossíveis de reconhecer; e por f im a revoluçãoinformática, instaurando a reprodutibilidade sem controle e ilimitadade textos, canções e imagens.Assim parece desfazer-se o que constituía o conteúdo mesmo da noçãode obra: a expressão da vontade cr iadora de um autor numamaterialidade específica trabalhada por ele, singularizada na figura daobra, erigida como original distinto de todas as suas reproduções. Aidéia de obra torna-se radicalmente independente de toda elaboraçãode uma matéria em particular.

Mas isso se aplicaria aos cartemas de Aloísio Magalhães? Até onde foi possível

saber, eles são obras únicas, geradas por um objeto do qual o artista sem dúvida se

apropriou, mas que funciona aí não mais como o objeto cartão-postal, senão como “matéria”

sujeita à vontade criadora do autor. Afinal, na etapa de seleção da “matéria” básica

18 A pronúncia em francês das iniciais L.H.O.O.Q. aproxima-se foneticamente da frase “Elle a chaud au cul” - algoequivalente, em português, a “Ela tem fogo no rabo”.

Fig. 43 - Fruteira e copo, de Braque, aintrodução da colagem na pintura.

Page 87: Cartemas de Aloisio Magalhães

87

const i tu t iva do car tema, o conteúdo

“narrativo” cede lugar, em importância, às

características plásticas (mais que estéticas)

do postal, e este constitui um primeiro

momento sensível do processo comandado

pela “vivência e o treinamento de um olho

atento a tudo”. A partir daí, o trabalho de

Alo ís io cons is t ia em exp lorar, na

justaposição dos módulos -através de

deslocamento, rotação ou ambos-, a melhor

forma de concordá-los para atingir seu

intento: a obtenção do supermódulo, que se

repetiria criteriosamente para dar corpo à

composição final. Por sua vez, são variadas

as maneiras de se processar a serialização

dos supermódulos, com cada uma delas

proporcionando ao conjunto uma dinâmica

visual específica (fig. 44). E aqui chega-se

ao ponto crucial da criação cartemática: a

solução final é sempre o resultado de uma

escolha pessoal do artista dentre uma

quantidade inf ini ta de possibi l idades

concretas.

Fig. 44 - A solução final de um cartema de Aloísio(1) e quatro alternativas obtidas a partir de diferentes formas de justaposição dos módulos (2a, 2b, 2c e 2d).

1

2b

2c

2d

2a

Page 88: Cartemas de Aloisio Magalhães

88

Ehrenzweig (1969, p. 91) afirma, a propósito do processo de criação em arte, que “em

qualquer espécie de trabalho criador chegamos a um ponto em que termina o nosso poder de

livre escolha. O trabalho assume uma vida própria que oferece ao seu criador as únicas alternativas

de aceitá-lo ou rejeitá-lo”; um pressuposto que, acredito, será tão mais axiomático quanto maior

for o grau de flexibilidade admitido para o instante de ocorrência desse “ponto limite”. Parece-me

claro que na feitura de uma pintura de ação, por exemplo, ele tenderia a acontecer mais

rapidamente do que na construção de um cartema, dado que aqui o artista opera com maior grau

de previsibilidade e até, se preciso, com mais possibilidades de correção de rumo. A explicação

para essa diferença pode estar exatamente no fato de que o princípio compositivo do cartema

resolve-se, simultaneamente, como criação artística e atividade projetual. Nele, à sensibilidade

do artista soma-se a habilidade do designer gráfico, e a composição, materializada a partir da

submissão espacial do cartão-postal à organização objetiva do campo diagramado acaba por

resultar, aí, predominantemente pop; mas não estritamente pop. Com efeito, a poética cartemática

resvala do pop para outras referências e influências. A obra de Maurits Cornelis Escher (1898-

1972) é uma delas, e, possivelmente, a mais significativa.

Aloísio era um admirador confesso deste habilidoso artista holandês. No texto Aloísio,

designer de sinais -já citado no subcapítulo 3.3- o autor, Chico Homem de Melo, chama a

atenção para o que classifica de “impressionante sincronia entre as investigações de Aloisio e as

de M. C. Escher”, tomando por exemplos o símbolo do Unibanco (fig. 45.1), criado pelo designer

brasileiro em 1964/65, e desenhos das séries Moebius Strip (1961) e Knots (1965), realizados

pelo segundo (fig. 45.2).

Pouco adiante, Melo acrescenta que “mais tarde, no início da década de 1970, quando

Escher passou a ter ampla divulgação internacional, Aloisio se entusiasmaria com sua obra, a

ponto de, em 1973, realizar uma série de litografias em sua homenagem”. Realmente, litogravuras

preparadas com esse objetivo integraram a exposição da Galeria da Praça (Rio de Janeiro, 1974);

Fig. 45 - (1) Símbolo do Unibanco, de autoria de Aloísio Magalhães, e as gravuras das sériesMoebius strip (2a) e Knots (2b), realizadas por Escher.

1 2b2a

Page 89: Cartemas de Aloisio Magalhães

89

numa delas (fig. 46.1), Aloísio incluiu um detalhe extraído de Belvedere (fig. 46.2), uma das

obras litográficas nas quais Escher exibe sua maestria na exploração de relações espaciais

impossíveis. Na mostra, foram também exibidos aquarelas e cartemas, e penso que, mais do que

supor que “esse recurso [as litogravuras] derivou da experiência do cartema, e se destinando,

talvez, a uma revisão de sua inventividade”, conforme as palavras de

Clarival Valladares no folder da exposição, as litografias teriam

servido ali não só para tornar pública a admiração do autor, mas

também para revelar a principal fonte de inspiração da criação

cartemática. Mesmo porque, qualquer rápida comparação entre a

maneira como normalmente os cartões-postais são manipulados no

cartema e a estruturação de algumas das gravuras realizadas por

Escher, permitirá constatar a estreita semelhança de princípio

compositivo entre as soluções (fig. 47).

Isto posto, creio que o fato de Aloísio estar justamente

na Holanda quando inventou o cartema, não deve ser visto como

(mais uma) simples coincidência; ao contrário, prefiro considerá-

lo mais como o resultado, inconsciente ou não, de um processo

de acentuada identificação19 (na acepção que a psicologia

Fig. 46 - Na litogravura (1) de Aloísio Magalhães, a inclusão do detalhe (ao centro) extraído da obra Belvedere (2), criada por M. C. Escher em 1958.

1 2

Fig. 47 - A manipulação do módulo numcartema (1) e no estudo (2) de Escher parauma divisão regular da superfície .

2

1

19 A existência de pontos comuns nas trajetórias dos dois artistas, com Escher se antecipando a Aloísio em termostemporais, coloca em dúvida para mim a questão da sincronicidade a que se refere Chico Homem de Melo. Der Zauberspiegeldes M. C. Escher, um livro de autoria de Bruno Ernst, apresenta particularidades da vida profissional do artista holandêsque, comparadas a certos momentos e realizações da carreira de Aloísio, contribuem para dar força à minha hipótese da“acentuada identificação”. Como a análise mais detida desses aspectos não só demandaria tempo como implicaria emprejuízo para a objetividade desta dissertação, preferirei transferi-la para ocasião mais oportuna.

Page 90: Cartemas de Aloisio Magalhães

90

empresta ao termo). E mais: uma análise da criação

cartemática que se pretenda sincera -assim entendo-, não

pode ignorar a possibilidade de Aloísio ter tomado

conhecimento da obra de Escher em época anterior àquela

que Homem de Melo aponta como tendo sido a “de ampla

divulgação internacional” desse artista20. Quanto mais seja,

porque reconhecer e revelar tal influência não reduzirá em

nada as qualidades específicas do cartema; afinal, poder-

se-ia igualmente dizer de algumas obras de Escher (como

as da fig. 48), que seriam também elas -em certa medida e

sem que isso as subtraia de originalidade e inventividade-

beneficiárias das pesquisas e conquistas estéticas dos

cubistas, conquanto aí o artista recorreu à representação

simultânea de um mesmo motivo capturado de diferentes

ângulos de observação. Mas esta seria uma discussão a ser

explorada noutra oportunidade.

De volta às semelhanças, a maior aproximação entre

a obra do artista holandês e os cartemas, em termos

conceptuais e visuais, encontra-se na conhecida série

denominada Divisão regular de uma superfície, iniciada

por Escher em 1922, sobre cujo método construtivo seu

autor alertava: “Quem quiser representar simetria numa

superfície plana, tem de tomar em linha de conta três

princípios fundamentais da cristalografia: translação, rotação

e reflexão com escorregamento” (ESCHER, 1998, p. 8).

Como já foi visto anteriormente, estes princípios,

conjugados ou isoladamente, nortearam várias das criações de Aloísio Magalhães em sua

pintura primordial e em seus projetos gráficos, sendo que o cartema pode ser considerado

a expressão exata da aplicação de dois deles: a translação (invariavelmente) e a rotação

20 A atuação profissional de Escher não se restringiu às realizações em sua terra natal; do ano de 1922, em que produziusuas primeiras gravuras, até falecer em 1972, viveu por dez anos na Itália (de onde fez inúmeras viagens de estudos àEspanha e à França), dois anos na Suíça e cinco anos na Bélgica. Nesses cinqüenta anos de dedicação às artes visuais,produziu cerca de 450 gravuras, mais de dois mil desenhos e estudos, além de trabalhos literários. Se associarmos estesfatos às várias viagens de Aloísio pelo continente europeu, inclusive o aprendizado de gravura no atelier de Hayter,teremos elementos bastantes para dar sentido a essa suposição.

Fig. 48 - Em Um outro mundo II (1) e Em cima eembaixo (2), obras de Escher do ano de 1947,recursos visuais que remetem ao cubismo.

1

2

Page 91: Cartemas de Aloisio Magalhães

91

(freqüentemente). As semelhanças, no entanto, não param por aí, e, na mesma linha de

desenvolvimento daquela série de desenhos de Escher, o processo cartemático:

a) inicia-se pela modulação geométrica do espaço (mesmo com possibilidades menos

amplas do que aquelas com que operava Escher);

b) constrói-se a partir da serialização da imagem (diferentemente dos cartemas, que

utilizaram um ou no máximo três tipos21 de cartões-postais na mesma obra, as divisões

regulares escherianas resolviam-se com maior grau de liberdade quanto ao número

de componentes formais aplicados, como se pode constatar na obra Oito cabeças -

a primeira da série-, mostrada na figura 49);

c) revela-se lúdico ao manipular os elementos formais justapondo-os perfeitamente

uns aos outros como num puzzle que refuta, a priori, a existência de espaços vazios na

composição; e

d) explora condições visuais ambíguas, perturbadoras da experiência sensorial primária.

Esta última particularidade esteve na essência da Op(tical) Art -“a mais

intelectualmente controlada das técnicas modernas”, na visão de Ehrenzweig (1969, p. 91)-

surgida nos anos 1960 como desdobramento das pesquisas estéticas e ópticas iniciadas

ainda no século XIX pelos impressionistas, levadas adiante pelos cubistas, por Mondrian,

pelos construt iv istas e pela Bauhaus, e

enriquecidas pelas experiências cinético-visuais

de Laszló Moholy-Nagy -artista pesquisador

que, falecido em 1946, é tido por Argan (1992,

p. 519) como o precursor desse movimento.

É importante ressaltar, no entanto, que

os artistas não foram os únicos a contribuir para

essa revolução do modo de ver que desembocou

na op art. Em Frankfurt, no início da segunda

década do século XX, os pesquisadores Max

Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka

promoveram estudos no campo da psicofísica

buscando relacionar forma e percepção e

21 É o caso dos cartemas da Série Barroca, produzidos por volta de 1974, com postais que retratam detalhes de obras dearte do barroco nacional. Nesta série, a associação de diferentes cartões-postais temáticos não apenas sacrificou a idéia decontinuidade do cartema para além dos limites do quadro, como resultou em composições de simetria estática, constituindo,a meu ver, os menos instigantes de todos os cartemas criados por Aloísio Magalhães.

Fig. 49 - Em Oito cabeças, a primeira das divisões regulares dasuperfície criadas por Escher, quatro rostos femininos e quatromasculinos se alternam como figura e fundo, preenchendo toda a áreada composição.

Page 92: Cartemas de Aloisio Magalhães

92

lançaram os alicerces daquilo que alguns anos mais tarde seria conhecido como a Teoria

Gestalt. M. C. Escher foi contemporâneo desses cientistas, e as divisões regulares da

superfície produzidas por ele são uma demonstração da exploração criativa, em arte, dos

fundamentos gestaltistas sobre as relações perceptuais ambíguas entre figura e fundo. Um

dado curioso é que, não obstante um intervalo de quase quarenta anos separe as primeiras

divisões regulares da eclosão do movimento op art, o nome de Escher é comumente incluído

no rol dos artistas adeptos desta tendência22 . Ainda que em termos cronológicos possa ser

indevida tal classificação, as representações engenhosas e intencionalmente desarticuladoras

dos padrões “lógicos” de visualização e cognição -substância primordial de grande parte

das suas criações-, fazem com que não seja exagero considerá-lo um elo entre a psicologia

e a arte. É o que deixa transparecer Allen Hurlburt (1986, p. 143) quando, em alusão à

natureza do trabalho desse artista, afirma:

M. C. Escher, um mestre da gravura e da impressão, utilizou a ilusão ea ambigüidade mais d i re tamente que qualquer out ro ar t is tacontemporâneo. Escher criou paradoxos dimensionais compondodiversos pontos de observação numa mesma cena, edifícios que mudamde perspectiva em cada um dos andares, escadarias que tanto parecemlevar para cima como confluir para um retângulo sem saída. Seutrabalho não pode ser classificado como freudiano, mas cria seu próprioclima surrealista, tirando proveito das ambigüidades da percepção.

Quanto a Aloísio Magalhães, foi já na condição de

designer que ele testemunhou a breve permanência da op art

como tendência hegemônica no cenário artístico ocidental; a

influência desse movimento em sua produção é particularmente

perceptível nos projetos desenvolvidos para as cédulas de

cruzeiro -marcadas deliberadamente pelo efeito (óptico) moiré-

e no símbolo criado em 1969 para o Banespa (fig. 50).

Tendo ocorrido de forma mais imediata e ostensiva

sobre o design de Aloísio, os sinais da arte óptica mostrar-se-

iam também, só que pouco mais tarde, no cartema. Distintamente

porém do ocorrido com as divisões regulares de Escher, que

22 É verdade que os últimos trabalhos de Escher foram realizados por volta de 1960 (Belvedere, 1958; Ascending anddescending, 1960; Waterfall, 1961), quando a op art começava a se firmar como tendência, mas um olhar retrospectivosobre a vasta produção deste artista revela que eles terão sido mais o resultado natural de suas próprias descobertas doque fruto de eventuais influências da arte óptica ou daquelas experiências que antecederam imediatamente a ela.

Fig. 50 - Efeitos ópticos no detalhe danota de Cr$ 1,00 (1) e no símbolo doBanespa (2), criações de Aloísio Magalhães.

1

2

Page 93: Cartemas de Aloisio Magalhães

93

ao se anteciparem àquela tendência ajudaram a pavimentar o caminho em direção a ela, o

cartema buscou referência nela; pois não é verdade que ao negar estabilidade à atenção de

quem o observa o cartema se reveste de pelo menos uma particularidade que o aproxima da

condição op? É preciso ressaltar, todavia, que aí já não se trata, como em Escher, de

surpreender condicionamentos habituais da percepção a partir da exploração habilidosa da

alternância figura-fundo, ou das situações espaciais impossíveis; tampouco se trata de tirar

partido, como o fizeram artistas expressivos da op art -entre os quais Victor Vasarely e

Bridget Riley-, da seriação meticulosamente programada de linhas, formas e cores, para

alcançar padrões rítmicos abstratos altamente instáveis e incômodos à observação superficial

e, através deles, transformar visão mecânica em olhar compreensivo (o responsive eye).

Nos cartemas, a presença da arte óptica revela-se, especificamente, através do poder -que

lhes é exclusivo- de extrair reações perceptuais e intelectivas do conflito entre abstração

simulada e figuração explícita.

Com a arte óptica, Escher, e a pop art como referências, com a apropriação, a colagem

e a diagramação como meios e a comunicação como objetivo, Aloísio Magalhães demonstrava,

em seu fazer artístico, a importância daquela visão retrospectiva que sempre defendeu como

base para o desenvolvimento de políticas culturais consistentes para o país. A receptividade e

admiração do coletivo por esse trabalho de arte confirmam, como correta, a tese sustentada

por ele, e expressa em um de seus depoimentos23, quando secretário geral da cultura no Brasil:

“Na medida em que conhecermos as nossas verdades, que têm sidoditas através do processo histórico, em que conhecermos essescomponentes, é que poderemos, realmente, pensar no tempo novo. Aimagem que eu utilizo é a do estilingue ou do bodoque. A pedra irásempre mais longe quanto mais recuarmos a borracha, e é precisoque a borracha não parta, é preciso que nessa busca da forçaenergética pretérita não ocorra ruptura, e, portanto, que se conheçanum contínuo os componentes que fazem verdadeiramente essaenergia, e aí a pedra irá mais longe”.

Em resumo, o caminho de criação que conduziu à idealização do cartema não seguiu o

mapa da ruptura ou do vanguardismo, nem se propôs objetivo maior que o de comunicar-se com

o público numa linguagem acessível e eficaz; em vez de negar, Aloísio preferiu reconhecer e

valorizar experiências e descobertas de artistas que o precederam, somou-as às suas próprias e,

ao incorporar tal herança ao cartema de modo criativo e original, contribuiu para perenizá-la.

23 Disponível em <http://www.ars.com.br/projetos/ibrasil/apresen.htm>; acesso em 19.06.03.

Page 94: Cartemas de Aloisio Magalhães

94

4.2.1. Livres associações à margem da arte

Pertencem à esfera da arte os movimentos e produções dos quais advêm as influências

mais perceptíveis sobre a invenção dos cartemas; no entanto, a inventividade e o ludismo

que emanam da obra evocam correlações que transbordam desse domínio exclusivo para o

território mais amplo da cultura. Uma vez que qualquer componente material ou imaterial de

uma cultura -inclusive aquele que escapa à classificação de objeto de arte-, é um fator

potencialmente capaz de influenciar ou até mesmo de formatar um processo de criação que

aconteça no seio desta mesma cultura, entendo ser cabível extrapolar as fronteiras da arte à

procura de elementos que se relacionem, por algum tipo de semelhança estrutural ou analogia

visual, com o processo construtivo, aparência e linguagem cartemáticos.

Uma dessas ocorrências já foi assinalada, parágrafos atrás, quando sugeri

comparações entre a construção cartemática e os quebra-cabeças, explicadas do ponto de

vista do processo de montagem de ambos e, principalmente, do aspecto lúdico responsável

por essa aproximação. O puzzle, no entanto, não será o único dos objetos de nossa cultura

material, no universo dos jogos e brincadeiras, no qual se percebem relações de semelhança

com particularidades dos cartemas. O baralho e o caleidoscópio são duas outras

possibilidades.

O baralho é um componente da cultura universal, cuja data e local de origem são

imprecisos, embora haja registros de sua existência na China já em meados dos anos novecentos.

Introduzido na Europa apenas entre os séculos XIII e XV, acabou ganhando o mundo por

ação dos colonizadores europeus. Em virtude da rápida disseminação do hábito do jogo de

cartas pelo continente europeu, alguns países, vendo aí a oportunidade de arrecadação de

impostos, logo adotariam medidas de controle em relação à sua produção e comercialização.

A coroa portuguesa, por exemplo, assumiu através da Gráfica Real o monopólio de fabricação

e comercialização das cartas, que vigorou de 1769 a 1832 e, de forma geral, foi somente a

partir do século XIX que as colônias -entre elas o Brasil- começaram efetivamente a produzi-

las. Nos dias atuais, estima-se em três quartos da população mundial o número de pessoas

que usam alguma dentre as muitas versões existentes de baralho24.

Com um papel tão marcante no desenho das mais diversas culturas, o baralho é hoje,

mais que nunca, um produto da indústria gráfica. Como solução visual-funcional, as versões mais

usuais adotam na configuração das imagens das cartas, particularmente aquelas que representam

24 Disponível em: <http://loja.copag.com.br/portalcopag/jsp/institucional/historia/index.jsp>. Acesso em 14. 11.2004.

Page 95: Cartemas de Aloisio Magalhães

95

as figuras da dama, do valete e do rei, um arranjo estrutural baseado no recurso da simetria. A

função óbvia deste inteligente artifício é facilitar o reconhecimento das cartas durante o jogo, sem

a necessidade de girá-las para adequá-las à posição de cada jogador.

Mas que relação há entre isso e o cartema?

Um começo de resposta poderia tomar como ponto comum o fato de que tanto o

cartão-postal quanto as cartas do baralho são produtos gráficos -pertencem, portanto, ao

campo de atuação do designer; são impressos de formato retangular com proporções similares

e, em cada um deles, uma das faces impressas apresenta tratamento estético privilegiado

em relação à outra. Estreitando um pouco mais, caberia ressaltar a semelhança entre o

princípio de desenho a partir do qual se ilustram as figuras desse jogo (fig. 51.1), e o modo

de estruturação aplicado com freqüência nos supermódulos das composições cartemáticas

(fig. 51.2). Todavia, o fator decisivo para confirmar o pressuposto da referida influência

vem da própria produção de Aloísio Magalhães: no projeto desenvolvido a pedido do Banco

Central do Brasil para a cédula de mil cruzeiros (fig. 51.3), o designer, observando a

correspondência de procedimento entre o ato de manuseio e troca do dinheiro e o das

cartas de baralho, não hesitou em utilizar como partido gráfico aquela solução visual-funcional

culturalmente consolidada. Ainda que o projeto seja posterior ao ano de invenção dos

cartemas, já vimos que a simetria -especular ou circular- perpassou boa parte das criações

aloisianas, fossem elas em design ou na pintura.

No que concerne ao caleidoscópio, a semelhança entre suas imagens e os cartemas

ocorre -comparativamente ao baralho- num nível mais imediato, porém menos consistente,

sendo recorrentemente mencionada nas situações de um primeiro contato com esse trabalho

artístico. A inclinação primária da percepção humana pelas formas e configurações simétricas

é uma particularidade que dá sentido a esse tipo freqüente de associação. Sabe-se que a

reflexão especular constitui o princípio básico de funcionamento do caleidoscópio. O

Fig. 51 - A solução gráfica da carta de baralho (1), que pode ter influenciado a concepção do supermódulo docartema (2), inspirou Aloísio Magalhães no design da nota de mil cruzeiros (3).

1 2 3

Page 96: Cartemas de Aloisio Magalhães

96

espelhamento multidirecional caleidoscópico adiciona à imagem, já simétrica, uma

estruturação radial responsável por particularizá-la, tornando-a ainda mais pregnante (fig.

52). De outro lado atuam os componentes culturais (assimilação, difusão, trocas etc.), assim

como no caso anterior, emprestando seu reforço a essa pregnância, mesmo que o tempo de

existência do caleidoscópio25 na cultura mundial não se compare ao do baralho. Por esses

motivos é que não nos intriga o fato de sermos perfeitamente compreendidos quando falamos

genericamente de imagens caleidoscópicas, mesmo sabendo que ao menos em teoria cada

forma gerada num caleidoscópio é única e irrecuperável (se desfeita). Qualquer correlação,

portanto, que se possa estabelecer entre tais formas e a configuração cartemática acontecerá,

primeiramente, por efeito dessa pregnância estética. Poder-se-ia acrescentar a isso que a

simetria caleidoscópica, por ser radial e contínua (podendo estender-se ao infinito), produz

imagens cujo processo de apreensão visual, para consumar-se, prescinde de normas e

artifícios facilitadores, igualmente ao que se verifica nos cartemas. De fato não há, nas

composições cartemáticas, um ponto ou sentido definido de entrada de “leitura”, embora a

varredura visual da obra sofra a inevitável influência do padrão ocidental de escrita/leitura

e tenda a desenvolver-se no sentido do canto superior esquerdo para o canto inferior direito

do plano observado. A rigor, algumas soluções cartemáticas, baseadas na montagem do

supermódulo a partir da rotação em 180° de um dos módulos, dispensariam até mesmo a

determinação prévia daquilo que seria a base ou o topo da composição; a simetria

estabelecida no início estende-se por todas as direções e culmina por moldar, também

simétrica, a feição final da obra.

25 A invenção do caleidoscópio, atribuída ao cientista e escritor escocês Sir David Brewster, remonta ao ano de 1816 eaconteceu como desdobramento de experimentos pioneiros realizados com a polarização da luz. A intenção inicial de queo caleidoscópio fosse tão somente um instrumento científico acabou extrapolando dessa condição para a categoria debrinquedo, dado o encantamento que a beleza e mutabilidade das imagens luminosas produzidas pelo aparelho exerceramsobre o público leigo da época.

Fig. 52 - A imagem caleidoscópica agrega particularidades que a tornam reconhecível como tal, mesmo que cada uma seja única, ou se desenvolva segundoestruturas radiais quadrangular (1), pentagonal (2), hexagonal (3), ou de qualquer outro tipo.

1 2 3

Page 97: Cartemas de Aloisio Magalhães

97

Observadas (o quanto possível com o espírito desarmado) através destas

características, quando então princípio e fim se confundem e o sentido de leitura já não

altera o conteúdo da mensagem, as construções cartemáticas se aproximam conceitualmente

da figura do oroboro26 , símbolo místico da magia medieval (fig. 53). Advirto que não me

proponho aqui a tarefa de extrair de tal aproximação qualquer conotação esotérica, e sim

valer-me da oportunidade que a designação para a “serpente-dragão que morde a própria

cauda”, grafada daquele modo, me oferece. À parte o fato de a forma oroboro ser antes

uma adaptação gráfica e sonora a práticas místicas (que vêem sentido mágico na possibilidade

de pronunciá-la ou escrevê-la em direções opostas), ela se configura, para o que interessa

aqui, um palíndromo. Mais um desafio lúdico do que um recurso literário, os palíndromos

encontram os cartemas através exatamente da independência de ambos em relação a um

sentido preestabelecido de varredura visual. Variando de exemplos simples como ROMA

ME TEM AMOR -considerado o mais antigo na língua portuguesa- até soluções de grande

complexidade, o palíndromo é prática conhecida na linguagem escrita desde os gregos do

século III a.C., havendo registros de sua existência em pelo menos dez diferentes idiomas.

No Brasil, conquistou adeptos tais como o matemático-escritor Malba Tahan, o humorista

Millôr Fernandes e o compositor Chico Buarque de Hollanda, além do entusiasta e estudioso

dessa arte, o advogado-escritor Rômulo Marinho. Num texto27 sobre o assunto, Marinho

transcreve as impressões do poeta francês Claude Gagnière: “para os que amam as palavras,

o palíndromo representa uma espécie de felicidade em estado puro: é a frase espelho, a

perfeição na simetria, ou a serpente que morde a própria cauda, o ingresso no círculo mágico

dos vocábulos que não têm fim”. Certamente, não será por mera coincidência que ao serem

26 Apesar da preferência dos lexicógrafos pelo vocábulo nas grafias ouróboro ou uróboro, a forma oroboro, adotada aqui,é também admitida.

27 Cf. MARINHO, Rômulo. Você sabe o que é palíndromo? Disponível em <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=5789&cat=Artigos>. Acesso em 11.06.04.

Fig. 53 - Três diferentes representações do oroboro: como dragão (1), como serpente marinha (2) e na forma combinada de ave e serpente (3).

1 2 3

Page 98: Cartemas de Aloisio Magalhães

98

substituídos nessa fala do poeta os substantivos palavras, frase e vocábulos pelo termo

imagem(ns), e também palíndromo por caleidoscópio, a idéia expressa continue fazendo

sentido apesar de deslocada do campo verbal para o visual.

Em nível menos direto de correspondência, caberia ainda explorar a questão da

ambigüidade que, visual no cartema, pode se manifestar na língua falada sob a forma de

construções cacofônicas ou de duplo sentido. Certas mensagens verbais são capazes de

transportar, simultaneamente, significados absolutamente distintos, revelados conforme se

transmitam através da escrita (Porque Maria estava adiando a ida, eu e os outros não

entendemos; ou outra: Não a via naquele canto nem sem óculos escuros) ou da fala

(Porque Maria está vadiando, Aída, eu e os outros não entendemos; Não havia naquele

canto nem cem óculos escuros). Evidentemente, arranjos verbais dessa natureza só se

justificam como um jogo, intencional, com a língua; e, por se constituírem um artifício lúdico,

estreitam um pouco mais sua (cabível) conexão com o processo cartemático.

Page 99: Cartemas de Aloisio Magalhães

99

4.3. PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS E CONFIGURAÇÃO

Fragmento de um continuum capturado no espaço do quadro o aspecto final do

cartema, em resumo, é isto: uma configuração abstrata, de construção geométrica e marcada

fortemente pelo ritmo, cujas condições visuais instáveis negociam permanentemente com o

observador a preferência de sua atenção, ora atraída pela pregnância das imagens “reais”

do módulo, ora pelo extraordinário da conformação não-figurativa do conjunto. O princípio

de organização estrutural das composições cartemáticas -fator determinante da aparência

geométrico-abstrata da obra-, é um processo no qual se podem reconhecer vestígios da

orientação racionalista do design suíço-alemão da Escola da Forma de Ulm, tão presente na

obra de Aloísio Magalhães. Mas se a razão informa o cartema em sua materialidade, a

emoção é que o provê de expressividade, pois é ela que dirige o olhar criador em busca de

concordâncias cromáticas ou formais que propiciam,

[...] através do múltiplo, visualizações de conjunto que fazem do todouma nova unidade visual. Os cartões-postais se juntam formandosurpreendente continuação da imagem descoberta. A nova imagem nãoé mais aquela contida no cartão-postal, do mesmo modo que o muronão lembra o tijolo. Mas é sua unidade de estrutura. E por mais desigualque possa ser o cartão do próprio cartema, ali está para sempre, comosua vértebra, suas vísceras.28

Seria o caso de se deduzir daí que quanto mais harmoniosa for a coexistência desses

desiguais -a unidade e o conjunto- mais expressivo será o cartema? Ou que, dada a relativa

independência dos predicados visuais de um em relação aos do outro, qualquer postal pode

levar a uma solução cartemática esteticamente satisfatória? Respostas a estas questões

haverão de considerar, necessariamente, alguns aspectos típicos das composições visuais

modulares; o processo de desenvolvimento, por exemplo.

Conceitualmente, a composição modular bidimensional é um padrão gráfico-visual -

assim como o são, também, certas texturas e patterns- obtido pela repetição sistematizada

de um elemento formal básico, o módulo original. Para que uma composição modular seja

percebida e assimilada como tal, faz-se necessária a aplicação seriada da unidade geradora

em mais de uma direção, com adjacência total às peças vizinhas, e em quantidade variável

conforme o grau de complexidade e de efeitos rítmicos pretendidos por seu criador. Levando-

se em conta que uma composição modular é produto do esforço conjugado de intelecção e

28 Valladares, Clarival do Prado. Aquarelas, litogravuras e cartemas de Aloisio Magalhães. In: LEITE, João de Souza. Op. cit., p. 77.

Page 100: Cartemas de Aloisio Magalhães

100

sensibilidade, é fácil concluir que o principal desafio do artista será então o de extrair

resultados estéticos inusitados da seriação do elemento modular escolhido, em arranjos tão

elaborados que dificultem, ao primeiro olhar, a identificação do módulo no corpo da obra.

Isto não implica, no entanto, na exigência de atributos visuais especialmente ricos ou

complexos para a unidade padrão; ao contrário, resultados estéticos surpreendentes e

diversificados podem ser alcançados, como mostra a figura 54, a partir de elementos

modulares de construção bastante singela.

É preciso ressaltar, no entanto, que o exemplo em questão, se comparado ao cartema,

beneficia-se de certas facilidades composicionais, tais como o formato quadrado do módulo

e a organização espacial assente num diagrama quadrangular regular, além do fato de que aí

Fig. 54 - A unidade modular (à esquerda) definida apenas pela alternância de branco e preto segundo a diagonal do quadrado,propicia composições modulares de configurações diversas, com diferentes graus de complexidade (abaixo).

Page 101: Cartemas de Aloisio Magalhães

101

o artista tem a oportunidade de criar simultaneamente o módulo e a composição. E por que

isso constitui uma facilidade? Em primeiro lugar, porque o módulo quadrado, quando girado

em ângulos de 90º sobre seu centro geométrico, mantém inalteradas tanto sua posição relativa

no espaço quanto sua adjacência às demais unidades. Esse recurso faz com que as

possibilidades de continuidade visual entre os elementos formais das peças contíguas sejam

consideravelmente ampliadas. De outro lado, a montagem sobre uma estrutura básica

quadrada29 garante o alinhamento perfeito dos módulos, na horizontal e verticalmente,

evitando a ocorrência de espaços remanescentes -os “vazios” indesejáveis- no corpo da

composição.

Aloísio Magalhães explorou esse método composicional em pelo menos um dos

cartemas que produziu. Para isso, seccionou os cartões-postais de modo a torná-los

quadrados e, mesmo tendo a alternativa de justapô-los de modo desalinhado, optou por

não fazê-lo; e o resultado, contrariando a idéia de monotonia geralmente associada ao

quadrado, foi surpreendentemente dinâmico (fig. 55). O desalinhamento a que me refiro é

Fig. 55 - Praia de Copacabana, Rio, cartema em que Aloísio utilizou postais seccionados.

29 A concepção de estrutura básica utilizada neste trabalho segue os conceitos apresentados pelo artista e designer italiano BrunoMunari, no livro: MUNARI, Bruno. Design e comunicação visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Page 102: Cartemas de Aloisio Magalhães

102

aquele admissível nas composições modulares, ou seja,

acontece com o deslocamento sistematizado de uma linha

(ou grupo de linhas) ou de uma coluna (ou grupo de

co lunas) em re lação à pos ição anter io r de seu

correspondente, conforme demonstram os esquemas

diagramáticos da figura 56. A dinâmica visual da obra

Praia de Copacabana, patrocinada pelo movimento

circular aparente dos supermódulos, deve-se à forma de

montagem das unidades que, ao serem organizadas em

grupos de quatro, sofrem rotação seqüencial de 90º. Visto

que cada um dos módulos pode assumir em sua célula

quatro diferentes angulações (0º, 90º, 180º e 270º), deduz-

se facilmente que o artista, também aqui, dispunha da

opção de organizar o supermódulo de maneiras bastante

variadas. Se associados, deslocamento e rotação levam

estas possibilidades a um número infinitamente maior, mas

Aloísio não se ter ia deixado seduzir por isso, e,

curiosamente, adotou sempre os menos complicados

recursos de montagem na criação de seus cartemas. Em

verdade, seu propósito parecia voltar-se mais para a

descoberta e aproveitamento de pontos de continuidade

formal e cromática das imagens dos cartões-postais, do

que propriamente para o método de estruturá-los.

Todavia, é pelo fato de ser planejada que a

distribuição espacial dos supermódulos permite ao artista

prever e controlar, com razoável precisão, o resultado final

do seu trabalho. Conciliada com o fazer artístico, essa base

projetual é o fator que alça o cartema à categoria

simultânea de obra de arte e de design. A alternativa de

se pensar a estrutura organizacional ao mesmo tempo em que se resolve a obra (ou até

antecipadamente a ela) não implica, pois, em afastar o cartema das características que o

fazem tão singular; pelo contrário, reforça-lhe a dupla natureza. Além disso, ao lado das

qualidades imagéticas dos cartões-postais, a organização composicional dos cartemas -que

Fig. 56 - Os diagramas estruturais quadrados, nasversões: regular (1); com deslocamento progressivo(2) ou alternado (3) das colunas ou grupos decolunas; e deslocamento progressivo (4) oualternado (5) das linhas ou grupos de linhas.

1

2

3

4

5

Page 103: Cartemas de Aloisio Magalhães

103

decorre sempre da forma geralmente retangular e das dimensões padronizadas deste modelo

de impresso- é o que responde pela modulação rítmica de cada solução. Conforme as

unidades se justaponham em conjuntos de dois ou quatro cartões para conformação do

supermódulo -ou módulo secundário de composição-, a aparência do conjunto se altera,

sugerindo por vezes seriações periódicas à semelhança da propagação linear de ondas, por

outras padrões visuais “estelares” como o do quadro Praia de Copacabana.

Tomo agora este quadro como exemplo, para demonstrar o quanto as variações

diagramáticas podem interferir na configuração final de uma composição modular. Para isso,

foram produzidas algumas simulações de cartemas, montadas a partir de postais igualmente

simulados, limitadas inicialmente a alternativas compatíveis com o modelo de estrutura

quadrangular. Transpondo a obra em questão para uma representação esquemática, tem-se:

a) o seccionamento do postal para adequá-lo à malha quadrada (fig. 57);

b) o supermódulo montado a partir da rotação seqüencial (em 90o) da unidade geradora,

já ajustado à malha quadrada regular (fig. 58.1); e

c) o cartema simulado (fig. 58.2), nos moldes da montagem em Praia de Copacabana.

Fig. 58 - A rotação seqüencial em 90º dá origem ao supermódulo, que se repetirá alinhadamente nas direções horizontal e vertical.

21

Fig. 57 - As proporções originais do postal P são alteradas, através de seccionamento, para o formato quadrado.

Page 104: Cartemas de Aloisio Magalhães

104

Admitindo-se esta simulação como correspondente àquela obra que lhe serviu de

modelo, várias soluções alternativas serão possíveis ao se processarem mudanças sutis no

princípio de construção do supermódulo, ainda que se mantenha o critério de repetição adotado

no original. Os resultados, como mostra a figura 59, terão configurações bem diversificadas.

Fig. 59 - Exemplos de composições com variação apenas da condição angular dos componentes do supermódulo.

Page 105: Cartemas de Aloisio Magalhães

105

Quanto mais se modificam os parâmetros de seriação e o sistema diagramático de

suporte -neste caso observados certos limites de procedimento, como foi assinalado na

página 100-, mais se amplia o campo de ação do artista em termos de possibilidades

composicionais. As simulações mostradas a seguir (fig. 60), baseiam-se nos diagramas não-

regulares da figura 56 e constituem tão-somente uns poucos exemplos retirados de um rol

significativamente extenso de opções. É preciso ainda considerar que as esquematizações lá

apresentadas não esgotam as formas de organização diagramática, que podem definir-se,

também, pela alternância de desiguais -colunas (ou linhas) duplas com colunas (ou linhas)

simples, por exemplo-, pela alteração da posição relativa de partes semelhantes (e/ou

dessemelhantes) -seqüência de colunas e/ou grupos de colunas (ou linhas e/ou grupos de

linhas) com giro alternado de 180º-, e por modelos mais complexos de serialização que

sejam compatíveis com as dimensões pretendidas para o cartema.

Mesmo que as considerações feitas até então se refiram a composições derivadas

de módulos quadrados (os postais destituídos de suas características dimensionais originais),

grande parte do que se aplica aí é válida também para o processo desenvolvido com cartões-

postais retangulares, que de fato constituem a base da maioria dos cartemas criados por

Aloísio Magalhães. Uma das diferenças reside no procedimento que emprega a rotação em

90º do cartão, que, naquele caso, não interfere no desenho da estrutura de suporte; o efeito

visual -como o de Praia de Copacabana- decorrente desse mecanismo, para acontecer no

Fig. 60 - Alternativas de composições obtidas com deslocamento progressivo (1 e 2) ou alternado (3 e 4) de linhas ou de colunas...

... e exemplos (5 a 8) de soluções em que os mesmos tipos de deslocamento são aplicados a conjuntos de linhas ou de colunas.

1 432

5 876

Page 106: Cartemas de Aloisio Magalhães

106

diagrama retangular, exige artifícios especiais

de justaposição das unidades. Uma das

maneiras de proceder para obtê-lo implica

em conjugar a redução da altura do cartão-

postal (através de incisão longitudinal) de

modo a forçar a proporção de 1:2 entre os

seus lados (fig. 61.1), com a montagem do

supermódulo em forma de suástica (fig.

61.2) ; estas duas condições são

interdependentes e imprescindíveis para

evitar a presença de espaços vazios no corpo

da composição.

Outra alternativa nesta mesma linha

provém da montagem, em “L”, de dois

módulos com as proporções retangulares originais e que, unidos por simetria não-especular

a outro conjunto de iguais características dimensionais, irão configurar o supermódulo. Este

artifício permite duas soluções capazes de assegurar a perfeita união de todos os elementos

formais ao longo do processo: uma, quando as formas em “L”, invertidas, são perfeitamente

adjacentes pelo seu maior lado (fig. 62), e a outra, quando há a adjacência completa dos

dois menores (fig. 63).

Foi exatamente às potencialidades do recurso estrutural que me referi, à pagina 87

do capítulo anterior, ao comentar as formas “de se processar a serialização dos supermódulos,

com cada uma delas proporcionando ao conjunto uma dinâmica visual específica”, e sua

contribuição para ampliar o universo de ação (e de escolha) do artista -um recurso que

Aloísio não chegou a explorar. Ao elaborar os exemplos 2a e 2b da figura 44, na mesma

2

3

1a 1b

Fig. 61 - O postal cortado na proporção 1:2 (1a e 1b) gera o supermódulomontado como suástica (2), que propicia a alternativa de composição (3).

Fig. 63 - Quando unidos pelo lado menor (1), os conjuntos em �L� alterama aparência do supermódulo (2) e, por extensão, a da composição(3).

1

2 3

Fig. 62 - A união dos �L� pelo lado maior (1) define o supermódulo (2) queconduz a soluções compositivas peculiares (3).

1

2 3

Page 107: Cartemas de Aloisio Magalhães

107

página, utilizei dois tipos de justaposição de supermódulo inéditos nas composições

produzidas por ele e, ressalvando que a intenção não é a de estabelecer qualquer comparação

estética entre o original e seus (meus) simulacros, essas proposições alternativas constituem,

a meu ver, soluções cartemáticas bastante convincentes.

Afora a eventualidade de Aloísio haver desprezado os benefícios desse artifício

composicional por uma simples questão de preferência, é oportuno assinalar a possibilidade de

que duas circunstâncias tenham concorrido para fazê-lo passar desapercebido aos olhos do artista.

Uma, é que não existindo naquele tempo as facilidades operacionais que os computadores,

os equipamentos de captura digital de imagens e os programas gráficos oferecem atualmente,

todas as experimentações anteriores ao processo final de montagem do cartema implicavam na

manipulação direta dos próprios cartões-postais. Isso equivale a dizer que, se pretendida pelo

criador, a avaliação comparativa (e simultânea) de vários estudos efetuados para uma mesma

composição demandaria um tempo de dedicação e uma quantidade de postais consideravelmente

superiores aos necessários para a produção apenas daquela que seria a solução eleita.

O outro motivo, de certo modo entrelaçado com o anterior, diz respeito à divisão de

tarefas no processo de realização do cartema, segundo o método de trabalho adotado por

Aloísio. Importado diretamente do exercício do design gráfico para o campo da criação

artística, este procedimento envolvia também a participação do arte-finalista, o profissional

cuja função consistia -como aliás costuma ser quando viabiliza tecnicamente projetos

gráficos30- em tão-somente reproduzir e dar acabamento ao que fora previamente planejado

e iniciado pelo artista. Era o arte-finalista no entanto, e não o idealizador, quem mantinha

contato mais estreito com o princípio de estruturação de cada uma das obras, muito embora

a posteriori. Não competindo a ele exercer aí senão o papel mecânico de continuador do

processo de serialização, a oportunidade de investigação de novas e mais complexas maneiras

de justapor as unidades modulares acabava por se perder ao longo do processo.

Naturalmente, tudo isso são conjecturas, e, não fosse a morte prematura do artista,

é provável que esgotados alguns recursos estéticos por força da repetição de procedimento,

uma eventual retomada da produção de cartemas conduzisse a soluções inovadoras, tanto

em forma quanto em conteúdo. Afinal, ele deu sinais claros de que havia ainda caminhos a

explorar nos domínios da criação cartemática, quando, por exemplo, buscou conjugar dois

ou mais tipos de cartões num mesmo trabalho -assim foi com as composições temáticas da

30 Talvez aqui fosse mais adequada a flexão verbal em tempo pretérito, já que a evolução dos meios tecnológicos, reduzindoetapas do trabalho em design, aproximou criador e produto e acabou por condenar à extinção a profissão do arte-finalista.

Page 108: Cartemas de Aloisio Magalhães

108

Série Barroca (fig. 64)-, ou quando decidiu-se pela utilização de postais contendo imagens

fotográficas de reconhecido valor artístico ou documental (e já não mais aquelas “turísticas”),

como nas obras produzidas a partir de exemplares, em preto e branco, da coleção francesa

Chefs-d’Oeuvre de la Photografie (fig. 65).

Fig. 64 - Cartema da Série Barroca, com associação de três diferentes tipos de cartões-postais.

Fig. 65 - Cartema da Série em Preto e Branco criada a partir de postais franceses.

Page 109: Cartemas de Aloisio Magalhães

109

Convém observar, entretanto, que muito embora a exploração da vertente temática

esboçada na primeira destas duas séries apontasse para o alargamento de horizontes do

trabalho cartemático, a combinação de diferentes tipos de postais na mesma composição

terminou por se configurar uma limitação formal, que condicionou o arranjo dos módulos a

padrões estruturais bastante elementares; o esquema diagramático (fig. 66) construído a

partir da obra mostrada na figura 64, da página anterior, corrobora essa afirmativa.

Com a Série Barroca o eixo de

equilíbrio entre processo e conteúdo, que

norteou as produções iniciais, começava a se

deslocar para uma posição que relegava a

forma a um papel secundário. Promovia, além

disso, um progressivo distanciamento daquela

condição pop do começo, na medida em que

o artista buscava “refinar” suas criações ao

pensá-las a partir dos aspectos conteudísticos

ou estéticos -e não mais exclusivamente

plásticos- dos cartões-postais.

Algo semelhante ocorreu com a Série em Preto e Branco, a última produção de

cartemas de Aloísio Magalhães, quando então o objetivo primordial do artista parecia consistir

em “produzir arte divulgando a arte”. Neste caso, o método estrutural recuou aos padrões

típicos das composições primordiais, mesmo que aí nenhum problema de ordem técnica o

impedisse de adotar soluções diagramáticas mais requintadas. Não que a simplicidade

estrutural pudesse trazer prejuízos aos cartemas produzidos nesta série, e de fato não trouxe;

na realidade, o processo composicional (entenda-se: a técnica diagramática, como dimensão

do design) teria sido aí um elemento acessório ao interesse do artista, voltado que estava

para a resolução de questões próprias de outra dimensão: a artística. É como assinala,

baseado nas idéias de Walter Benjamin, o diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio

Magalhães, Moacir dos Anjos, em texto31 para o catálogo da exposição Apropriações/

Coleções (Porto Alegre/RS, 2002):

Ao utilizar cartões-postais de obras de fotógrafos pertencentes aocânone artístico para construir a presente série de cartemas (objetos

Fig. 66 - Versão esquemática do cartema da Série Barroca, composto de trêsdiferentes tipos de cartões-postais.

31 Texto Coleções de Sentidos, de autoria de Moacir dos Anjos, publicado no catálogo da exposição Apropriações/Coleções, realizada no Santander Cultural, Porto Alegre/RS, em setembro de 2002, na qual foram exibidas obras dediversos artistas brasileiros e, entre elas, os cartemas da Série em Preto e Branco de Aloísio Magalhães.

Page 110: Cartemas de Aloisio Magalhães

110

de arte singulares e valorizados como tais), Aloisio Magalhães nãosomente reitera o “valor de exibição” que essas imagens [reproduzidasem cartões-postais] possuem – por meio de seu acúmulo sobre umsuporte único – mas, paradoxalmente, as reinsere no circuito dosartefatos que possuem “valor de culto”. Também esses cartemas,porém, podem ser (e efetivamente o são) reproduzidos mecânica oueletronicamente em catálogos ou transformados eles mesmos em outroscartões-postais, novamente ganhando “valor de exibição” e ampliando,uma vez mais, a circulação de imagens originalmente destinadas àcontemplação.

É compreensível que Aloísio, animado no plano exterior pela consagração do cartema

junto ao público, e motivado internamente por sua inventividade, sentisse necessidade de

proceder a essas revisões da realização cartemática; fosse simplesmente no sentido de renová-

la em sua visualidade, fosse no intuito de torná-la um meio de difusão e educação cultural

(do que a Série Barroca seria um exemplo) e artística (Série em Preto e Branco). Todavia,

por mais que tenha havido revisão de objetivos, aquela combinação singular e indissociável

de idéia e processo que caracterizou os cartemas desde sua origem, permaneceu inalterada,

na essência, ao longo do período em que ele dedicou-se a produzi-los. Quando faleceu, a

produção de cartemas já havia ficado para trás, quem sabe descartada mesmo das

preocupações do artista, em função do devotamento às questões da cultura nacional que a

partir de certo momento ele passara a considerar como sua missão “por toda a vida adiante”.

Passados mais de trinta anos da criação dos últimos cartemas, essa invenção estética

segue surpreendendo sensibilidades e despertando interesses com o vigor próprio das obras

de arte singulares; com uma especial diferença: esta é uma obra que não se pretende única,

completa, nem autoral. Ao oferecer sua criação ao coletivo, Aloísio Magalhães deixava

também a seus pósteros a liberdade de transformá-la.

Page 111: Cartemas de Aloisio Magalhães

111

4.4. CARTEMAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES - REPRODUÇÕES

A seguir, são apresentadas algumas soluções cartemáticas de autoria de Aloísio

Magalhães. São, em sua maioria, reproduções extraídas de fontes que se abastecem umas às

outras com os mesmos poucos exemplares registrados fotograficamente. Se isso já é em si

um sintoma do tão comentado descaso, é igualmente indício de que a situação foi aceita mesmo

por aqueles que, de algum modo, se dedicam a garantir-lhes uma condição mais favorável no

panorama das artes visuais brasileiras.

Como informou por correspondência o diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio

Magalhães, Moacir dos Anjos, à exceção de todas as criações da Série em Preto e Branco,

poucos cartemas foram assinados ou datados pelo artista, o que dificulta a tentativa de organizá-

los cronologicamente. Diante disto, decidi mostrá-los, aqui, numa seqüência aleatória.

Figura 67 - Aloísio Magalhães: São Paulo, Largo do Paissandu, cartema da Série Brasileira, 87 x 62 cm, c. 1973.

Page 112: Cartemas de Aloisio Magalhães

112

Figura 69 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira, 1972.

Figura 68 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.

Page 113: Cartemas de Aloisio Magalhães

113

Figura 70 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira, 1973.

Figura 71 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série Brasileira.

Page 114: Cartemas de Aloisio Magalhães

114

Figura 73 - Aloísio Magalhães: Grutas do Mar Morto, Israel, cartema da Série Internacional, 1974.

Figura 72 - Aloísio Magalhães: Índio Uaika, Amazonas, cartema da Série Brasileira.

Page 115: Cartemas de Aloisio Magalhães

115

Figura 75 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.

Figura 74 - Aloísio Magalhães: Cartema, Série em Preto e Branco, 1974.

Page 116: Cartemas de Aloisio Magalhães

116

5. CONCLUSÃO

Que não haja dúvidas: esta dissertação é fruto da admiração. Não tem, pois, as

características de um trabalho científico nos moldes daqueles que pretendem guiar-se pela análise

isenta e racional. Assim surgiu e assim se conclui (conclui?), embora não lhe tenha faltado, sempre

que recomendável, a necessária dosagem de isenção.

O estudo da poética cartemática, tomado de início como objetivo central desta pesquisa,

revelou-se uma empreitada modesta diante das tantas implicações que (des)orientam o fazer

artístico no Brasil. Assim, o que consistia a princípio numa suposição periférica -qual seja, se

houve pouca disposição da historiografia oficial da arte em reconhecer a produção artística de

Aloísio Magalhães-, adquiriu importância e contornos mais nítidos à medida que o exame dessas

relações ia sendo aprofundado. Da resposta (cuidadosa) de Jorge Coli1 à indagação que lhe

encaminhei acerca do problema, me veio o primeiro sinal de confirmação daquilo que a intuição já

percebera; dizia-me ele, pelo correio eletrônico, em 10 de setembro de 2003: “A história do

interesse ou desinteresse por certos artistas e obras - mesmo do passado - não passa

unicamente pela qualidade intrínseca deles. Há um jogo complexo na valorização e

desvalorização; a opinião geral, sempre sumária, vai atrás daqueles que são mais celebrados.

Isso tem pelo menos um ponto positivo: deixa, aos pesquisadores, a possibilidade de encontrar

terrenos virgens. Se o seu objeto não foi estudado, tanto melhor para você, que poderá

descobrir, de fato, coisas”.

A expressão “sair-se pela tangente” seria uma boa tradução para o juízo a que me fez

chegar a reação imediata às palavras de Coli (de quem eu, comodamente, esperava uma resposta

conclusiva); vencida a desconfortável precipitação, pude enfim perceber o recado: havendo um

“jogo complexo” subjacente à trajetória artística de Aloísio, minha tarefa consistia em localizá-lo

e procurar desvendar-lhe as regras. E assim foi feito. É curioso notar, no entanto, que é a partir da

recorrente defesa que fazem os amigos em favor do reconhecimento da condição de pintor para

Aloísio Magalhães, que se chega à constatação de que o oposto disso também existe, manifestado

de forma velada, através de omissão, negligência etc., como foi apontado no subcapítulo 3.2

[Aloísio, pintor]. Em suma, existem as objeções, mas nunca assumidas publicamente. Os propósitos

e os argumentos, não sendo explicitados, abrem caminho para especulações. Trabalhando então

no plano conjectural, acredito que a questão abarque motivações que vão desde razões meramente

1 Jorge Coli, escritor, professor e historiador da arte, publica regularmente suas críticas de arte na seção Ponto de Fuga do jornalFolha de São Paulo.

Page 117: Cartemas de Aloisio Magalhães

117

empáticas a restrições de natureza ideológica, passando por retaliações corporativistas. De fato,

a história pessoal e profissional de Aloísio Magalhães reúne particularidades que, em comparação

com a vida de milhões de brasileiros, levam a crer que poucas vezes os deuses são tão generosos

quanto teriam sido com ele. E se a vida o brindou com privilégios típicos das elites, ele soube

como aproveitá-los e a seguir transformá-los, com criatividade e competência, em benefícios

para o coletivo. Talentoso e politicamente bem relacionado, Aloísio não se furtou às oportunidades

de identificar, discutir e participar da solução de problemas institucionais brasileiros, como a

reforma monetária e a formulação de políticas para o patrimônio artístico e cultural. Midiático,

valeu-se com freqüência do apoio dos meios de comunicação para imprimir projeção nacional (e

internacional) às suas propostas e realizações. À importância do seu trabalho como designer e

gestor da cultura, juntar-se-ia a consagração do trabalho do artista, decorrente da receptividade

e admiração do público pelos cartemas.

Isto faz pensar que tantas qualidades, reunidas numa só pessoa, talvez já se configure

motivo bastante para despertar sentimentos que a decepcionada constatação do compositor Tom

Jobim -“no Brasil sucesso é ofensa pessoal”- desnuda com desconcertante ironia; mas este é um

terreno pantanoso que a cautela recomenda evitar. Além do mais, há um fato mencionado por

Elisa Botelho (e registrado nas páginas 43 e 44 desta dissertação) que, este sim, permite concluir

que a resistência de parte da classe artística em reconhecer Aloísio como artista plástico é de

natureza reativa e tem origem na pouca atenção que ele, quando administrador da cultura nacional,

dispensou às questões da arte contemporânea. A autora revela, inclusive, que a FUNARTE -

subalterna da então Secretaria de Cultura e órgão de apoio à produção cultural e artística- era

sarcasticamente definida pelo secretário como “um transatlântico ancorado na rua Araújo Porto

Alegre”. Também não deve ter soado bem aos ouvidos da classe a opinião dele, em entrevista, de

que a arte tornara-se progressivamente “densa, sufocada e destituída de graça e ludicidade”.

Assim, não havendo como negar sua capacidade criativa, seu carisma e projeção, a melhor forma

de retaliação encontrada pela parte ressentida da categoria seria (tentar) ignorá-lo.

Qualquer esforço dedicado a recuperar um lugar mais justo para os cartemas nos registros

da historiografia da arte, para lograr êxito, há que considerar esse complexo emaranhado de

motivações. É evidente que proceder à defesa e à tentativa de “resgate” de Aloísio Magalhães ao

panteão dos artistas plásticos brasileiros é, nos dias de hoje, uma tarefa bastante facilitada pelo

arrefecimento das tensões entre as ideologias; do mesmo modo que não foi difícil construir um

quadro desfavorável a ele nos anos da ditadura brasileira, já que a exacerbação do embate

ideológico, à época, não dava espaço para posicionamentos apolíticos ou isentos, determinando,

pelos mais discutíveis meios de aferição, que aquele que não comungasse o ideário de um dos

Page 118: Cartemas de Aloisio Magalhães

118

lados, pertencia, inelutavelmente, ao outro. E o que se viu, foi que a luta política, opondo a quase

totalidade da classe artística ao regime dos militares, culminou por estigmatizar como alienados

todos (ou quase todos) aqueles que não utilizaram sua arte como veículo de denúncia ou contestação

dos propósitos e desmandos da ditadura brasileira. Não bastasse isso, todo (ou quase todo)

ocupante de função pública expressiva era visto com a desconfiança dispensada aos cúmplices

do sistema. Daí, tendo em conta a dupla condição de Aloísio -artista não engajado e gestor oficial

da cultura-, é possível deduzir em que território o sectarismo o teria situado e, principalmente, o

quanto as conseqüências desse julgamento (ou sentença?) influíram sobre os registros, na história

da arte brasileira, de sua produção artística.

Para completar, o cartema surgia no início dos anos 1970, em meio àquelas dissensões

que marcaram a “fase do experimentalismo” na arte brasileira, como uma súbita aparição

descomprometida com as proposições então em voga (a crise do suporte, a arte efêmera, a

antiarte etc.). Entretanto, aquilo que aos olhos de parte do meio artístico foi talvez percebido

como extemporâneo, do lado do público (e da mídia) aconteceu de forma bem diferente, através

de franca e entusiasmada receptividade. O que se pode concluir desse conflito?

Em primeiro lugar, que a consagração do cartema por um contingente tão heterogêneo

de pessoas -para as quais a classificação de politicamente alienadas seria uma generalização

imprudente- é indicadora de que a arte não precisa estar necessariamente atrelada a ideologias

para estabelecer vínculos de comunicação ou ser legitimada como tal. Melhor dizendo, não

precisa ser doutrinária. A luta política é necessária e valiosa, sempre; a questão é que nem só

de luta política se nutre a alma humana, nem é a arte o único veículo através do qual seja

possível deflagrá-la. Ademais, tentar impor caminhos à realização artística não significa privar

o coletivo dos benefícios da pluralidade? Nunca é demais lembrar que, por mais que seja

facultado ao artista escolher o seu público, ao final é o público -inespecífico- quem escolhe,

pelas mais variadas razões, quais obras e artistas celebrar.

Uma outra premissa que este fato confirma é a de que a incorporação às artes visuais

de linguagens, procedimentos ou descobertas oriundos de outros campos do conhecimento,

é não apenas possível quanto também benéfica em seus resultados. Disso já deram provas a

história do cartaz nas sociedades modernas (unindo arte e comunicação social), as divisões

regulares da superfície de Escher (arte e matemática), a pedagogia da Bauhaus (artes

visuais, design, arquitetura, sociologia), as artes concreta e óptica (arte, psicologia, design),

e, mais próximos de nós, os cartemas. É importante ressaltar ainda, em todos estes casos,

que a noção de esboço foi substituída pela de projeto, sem que a racionalidade inerente à

prática projetual tenha implicado em perda de expressividade para as soluções; mesmo

Page 119: Cartemas de Aloisio Magalhães

119

porque, o ato de projetar não antagoniza com a manifestação da sensibilidade, e também

porque, em arte, todo projeto é precedido de uma vontade criadora, e, para corporificá-la,

é preciso que ele se processe em conformidade com os ditames dessa vontade. O cartema,

uma solução híbrida de arte e design, jamais se afastaria da condição de criação artística

por dever sua materialidade a procedimentos típicos da atividade do designer. Se o interesse

da crítica sectária, valendo-se das circunstâncias políticas dos anos 1970 e da incontestável

importância de Aloísio no campo do design, tentou talvez confundir a opinião pública

buscando enquadrar esta obra na categoria (supostamente desqualificadora) de produto de

design gráfico e assim justificar sua exclusão dos registros da produção artística brasileira,

a tentativa foi, em parte, bem sucedida. A ação do tempo, no entanto, tem se encarregado

de amenizar o estrago que esse estado de coisas acarretou, e a inclusão dos cartemas em

mostras retrospectivas recentes das realizações artísticas no Brasil (em 2002, Apropriações/

Coleções, Porto Alegre/RS, e, em 2004, Apropriações (Colagens), Niterói/RJ e A

subversão dos meios, São Paulo/SP), ao mesmo tempo que contribui para lhes restituir o

valor subtraído, demonstra que as regras que regem o tal “jogo complexo”, falado ao início,

não foram, no caso em questão, nem claras, nem limpas.

O fato de os cartemas terem sobrevivido à ação de tantos entraves, além de confirmar-

lhes a estatura de obra de arte atemporal, confirma também o poder de encantamento que possuem.

Na simplicidade dessa invenção estética (que atribuiu predicados visuais inéditos para os cartões-

postais), está também o seu requinte. A aura de ludismo que a envolve propõe ao observador um

tipo de jogo de ambigüidade e adivinhação -cujas regras são claramente expostas- que, ao ser

aceito, transforma atitude contemplativa em participação.

O convite ao jogo, no entanto, não constitui um estágio primário do processo de interação

obra-espectador. Antes dele, e surpreendentemente, age como fator de sedução do olhar a

aparência geométrico-abstrata do cartema. E o que há nisso de surpreendente?

Uma idéia corrente no senso comum -que a exploração maliciosa pelo cartum e por

programas humorísticos dos meios de comunicação muitas vezes contribui para consolidar- é a

de que composições visuais abstratas são trabalhos desprovidos de qualquer fundamento estético

consistente, de qualquer intencionalidade ou significação. E tanto mais, quanto menor for a

possibilidade de se deduzir delas alguma correspondência com formas da realidade física

observável. Seriam, assim, uma decorrência de afetações, humores ou voluntarismo do “artista”.

É possível que atitudes desse tipo -também alvo freqüente da ironia, como mostra a satírica letra

da canção O conto do pintor (Anexo A)- tenham mesmo contribuído com a origem do preconceito

que se tornou defesa ante o ininteligível ou impalatável. Não foram poucas as ocasiões em que

Page 120: Cartemas de Aloisio Magalhães

120

ouvi universitários -tomados como exemplo porquanto deles se espera um nível de educação

visual razoavelmente bom- manifestarem sua opinião diante de pinturas abstratas com frases do

tipo “– Ah, isso aí até eu faço...” , geralmente complementadas por algo do tipo “quero ver é

pintar como...” (aqui referindo-se ao nome de algum virtuoso figurativista). Paradoxalmente,

motivos abstratos criados com fins ornamentais são recursos artísticos bastante admirados,

manipulados e perfeitamente incorporados ao universo do mesmo público que olha com reservas

a arte abstrata. Nos padrões usuais da estamparia de tecidos, na decoração artesanal ou

industrializada de utensílios, na azulejaria, nos ornamentos tipográficos de peças editoriais, nos

arabescos e gregas das construções e objetos milenares ou mesmo nas conformações geométricas

dos quilts norte-americanos, elementos formais não-figurativos dificilmente serão julgados com o

mesmo “rigor crítico” que os que integram uma obra de arte abstrata, ou, mais especificamente,

uma pintura abstrata; um fato que talvez se explique pelo tempo de existência de cada uma dessas

produções no âmbito da cultura humana. Mas como explicar então, no caso da composição

cartemática, que o processo de sedução do observador se dê exatamente a partir da aparência

“abstrata” da obra? Acredito que a resposta esteja na semelhança visual e (principalmente) estrutural

que, à primeira vista, o cartema apresenta com padrões compositivos ornamentais como os já

citados, que têm, na seriação rítmica, sua base generativa. A modulação rítmica, por sua vez,

exerce seu poder de atração sobre o espectador, na medida em que, tanto propicia relações de

identificação com os fenômenos cíclicos da vida -dos mais imediatos (as pulsações cardíacas, a

seqüência das horas, dias etc.) aos menos perceptíveis-, quanto atende àquela tendência “natural”

da percepção humana pela disposição organizada das formas no espaço.

Na eficácia deste recurso estético reside o momento decisivo do processo de comunicação

do cartema com o público, quando então o convite ao jogo poderá ou não ser aceito; contribuirá

para isso o maior ou menor grau de inteligibilidade das imagens escolhidas pelo criador. Incentivado

à observação mais criteriosa da obra por conta de um primeiro e vago reconhecimento das formas

“realistas” que se desprendem do todo “abstrato”, o espectador adentra um segundo nível de

decodificação da linguagem cartemática, quando identifica com mais clareza o significado e a

natureza -fotográfica- das imagens multiplicadas à sua frente. Por fim, reconhecendo ali um

componente trivial de seu universo cultural -o cartão-postal-, o jogador decifra a lógica construtiva

da composição, e então encerra-se o jogo. Ou será justamente aí que começa o jogo?

Page 121: Cartemas de Aloisio Magalhães

121

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Page 125: Cartemas de Aloisio Magalhães

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O CONTO DO PINTOR1

(Miguel Gustavo)

Desembarquei fantasiado de pintorNo aeroporto já encontrei o IbrahimFez um discurso e apresentou-me ao DouradoQue deu de cara um apartamento para mim.

– Moreira, vais levar um magnífico triplex. Agora preferes morar em francês, inglês, russo ouitaliano? Temos os edifícios Paul Valéry, edifícios André Breton, Igor Stravinsky, SpaguettiD’Oiro ou Hollywood Center. Você entra pelo hall, passa pelo living-room, se quiser passarpelo bathroom, vai direto ao room e, da janela, o paraíso.– Muito obrigado, muita gentileza de sua parte, eu não mereço tanto.

Fomos direto ao Museu de Arte ModernaA grande obra de Madame NiomarCondecorando-me com a Ordem do VaqueiroO Tinhorão quase que chega a me estranhar:

– Calma, calma senhor crítico, calma Zé... como bem sabe eu também sou produtor e admiradordas artes e manhas do Brasil.

Mas ali mesmo demonstrei o meu talentoPintei triângulos redondos e um quadrado todo ovalEles olhavam perturbados e diziam:– Este Moreira é um artista genial!

Mais que depressa eu vendi noventa quadrosDepois de dar uns dois ou três em benefícioEntrevistado pelo Sérgio Chapelin eu respondi:– Ora, qual nada, é meu ofício.

Pintei vassouras com feitio de espadasPintei espadas qual vassouras, retirei-me do localMas a ilustríssima platéia delirava:– Este Moreira é um artista genial!

Pintei um quadro só por fora das moldurasEu joguei tinta nas paredes, todo mundo achou legalEu comi rosas, e as madames exclamaram:– Este Moreira é um artista genial!

– Fui a Brasília, dei um quadro de presente ao maioral...Era um triângulo redondo... e ele até que achou legal.

1 Composição de autoria do jornalista, poeta, compositor e radialista Miguel Gustavo (1922-1972), de abril de 1960,interpretada por Moreira da Silva no LP Malandro em sinuca, 1ª faixa, lado A, Odeon, 1961.

ANEXO