Cartemas de Aloisio Magalhães
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- 1. JOO CARLOS DE MORAIS ALT CARTEMAS DE ALOSIO MAGALHES: UM PONTO DE ENCONTRO ENTRE A ARTE E O DESIGN Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Cincia da Arte do Instituto de Arte e Comunicao Social, Universidade Federal Fluminense, para obteno do grau de Mestre em Cincia da Arte. rea de concentrao: Estudos Poticos. Orientador: Prof. Dr. JOS MAURCIO SALDANHA ALVAREZ Co-orientador: Prof. Dr. ANTONIO CARLOS AMANCIO DA SILVA Niteri 2005
2. AGRADECIMENTOSAo Lus Srgio de Oliveira, vai meu primeiro agradecimento; seu incentivo, nos primrdios deste projeto, foi imprescindvel para que eu transformasse em ao o que antes era um vago propsito. Agradeo ao Jos Maurcio Saldanha Alvarez, meu orientador, pelo paciente estmulo e por todos os conhecimentos transmitidos, bem como aos professores Wallace de Deus Barbosa e Luiz Antonio Luzio Coelho, pelas valiosas crticas e sugestes apresentadas no exame de qualificao. Agradeo muito especialmente ao Tunico Amancio, amigo e co-orientador, por colocar sua competncia, entusiasmo e bom-humor a servio deste trabalho. Aos amigos Z Luiz Sanz e Cristina Cavallo, minha gratido pelo apoio generoso e a infalvel disponibilidade. Finalmente, sou grato Denise -minha mulher- e aos meus filhos Ana, Nina e Rafael, por compreenderem e apoiarem um projeto pessoal cuja realizao exigiu tanto tempo e devotamento. A eles dedico esta dissertao. 3. SUMRIO LISTA DE FIGURAS 5 RESUMO 9 ABSTRACT101. INTRODUO 112. ARTE E DESIGN: A FRGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINO183. ALOSIO MAGALHES343.1. ALOSIO, POLTICO393.2. ALOSIO, PINTOR47 3.2.1. O desencanto com a pintura 583.3. ALOSIO, DESIGNER 604. O CARTEMA734.1. A GNESE 73 4.1.1. Expresso e risco: os anos de chumbo 774.2. ANALOGIAS VISUAIS E INFLUNCIAS82 4.2.1. Livres associaes margem da arte944.3. PRINCPIOS ESTRUTURAIS E CONFIGURAO994.4. CARTEMAS DE ALOSIO MAGALHES - REPRODUES 1115. CONCLUSO 113REFERNCIAS121ANEXO125 4. LISTA DE FIGURAS Figura 1 .............................................................................................................................. p. 12 [1.3] Rodovia Castelo Branco, So Paulo, cartema da Srie Brasileira, de Alosio Magalhes (FUNARTE, 1982); [1.1] e [1.2] Imagens produzidas pelo autor, a partir de fotografia do cartema. Figura 2 ............................................................................................................................... p. 14 Calendrio UFF 2000, impresso, 14 pginas, formato 42 x 34 cm, relizao da Universidade Federal Fluminense. Fotografia produzida pelo autor. Figura 3 ............................................................................................................................... p. 19 [3.1] As sabinas que interrompem o combate entre romanos e sabinos, de Jacques-Louis David (ARGAN, 1992, p. 21); [3.2] No te escapars!, de Francisco Goya (idem, p. 43); O ancio dos dias, de William Blake (GOMBRICH, 1977, p. 387). Figura 4 ............................................................................................................................... p. 22 [4.1] Pgina do Evangelho de Lindsfarne, autor no identificado (GOMBRICH, 1977, p. 116); [4.2] Detalhe de pgina de livro holands do sculo XIV (RIBEIRO, 1987, p. 44). Figura 5 ................................................................................................................................ p. 23 [5.1] Pgina do livro Poems by the Way, de William Morris (HOLLIS, 2001, p. 20); [5.2] Colfo da Kelmscott Press, de William Morris ( ; acesso em 06.08.2003). Figura 6 ................................................................................................................................ p. 24 [6.1] Jane Avril, de Henri Toulouse-Lautrec (MULLER, 1966, vol. 68, p. 18); [6.2] France-Champagne, de Pierre Bonnard (SELZ, 1971, prancha 4). Figura 7 ................................................................................................................................ p. 24 Loe Fuller, de Jules Chret (SELZ, 1971, prancha 5). Figura 8 ................................................................................................................................ p. 26 [8.1] Media, de Alphonse Mucha (ARGAN, 1992, p. 205); [8.2] I Exposio da Secesso Vienense, de Gustav Klimt (idem, p. 173); [8.3] Tropon, de Henri Van de Velde (id., p. 184). Figura 9 ................................................................................................................................ p. 27 [9.1] Papier Coll, de Pablo Picasso (MULLER, 1966, vol. 70, p. 9); [9.2] Les formes musicales, de Georges Braque (; acesso em 07.08.2003); [9.3] Syphon, verre et journal, de Juan Gris (; acesso em 07.08.2003). Figura 10 .............................................................................................................................. p. 27 [10.1] Small Dada, de Kurt Schwitters e Theo van Doesburg (; acesso em 12.08.2004); [10.2] Das Kotsbild, de Kurt Schwitters (; acesso em 12.08.2004); [10.3] Eclipse parcial com Monalisa, de Kasimir Malevitch (; acesso em 21.10.2004). Figura 11 .............................................................................................................................. p. 48 Alosio em seu atelier da Rua da Aurora, no Recife (LEITE, 2003, p. 39). Figura 12 .............................................................................................................................. p. 52 Sem Ttulo, de Alosio Magalhes (idem, 2003, p. 56). Figura 13 .............................................................................................................................. p. 53 Sem Ttulo, de Alosio Magalhes (id., p. 53). Figura 14 .............................................................................................................................. p. 53 Sem Ttulo, de Alosio Magalhes (id., p. 53). Figura 15 .............................................................................................................................. p. 53 Sem Ttulo, de Alosio Magalhes (id., p. 53). Figura 16 .............................................................................................................................. p. 55 Monotipia, de Alosio Magalhes (id., p. 46); tipogrfica sobre papel, de Alosio Magalhes (id., p. 57); aquarela, de Alosio Magalhes (id., p. 47); cartema, de Alosio Magalhes (REDIG, 1989, p. 105). Figura 17 .............................................................................................................................. p. 57 Smbolo dO Grfico Amador, de Alosio Magalhes (ESCOREL, 2000, p. 106). Figura 18 .............................................................................................................................. p. 62 Adaptaes do smbolo do IV centenrio da cidade do Rio de Janeiro -de Alosio Magalhes- em pipa, vesturio e fantasia de carnaval (REDIG, 1989, p. 107) e em piso de calada e carrinho de ambulante (LEITE, 2003, p. 173). 5 5. Figura 19 ............................................................................................................................. p. 63 Smbolo original do IV centenrio, de Alosio Magalhes (LEITE, 2003, p. 170); esquemas construtivo e associativo do smbolo preparados pelo autor.Figura 20 ............................................................................................................................. p. 63 Diferentes verses do smbolo da Light, de Alosio Magalhes (ESCOREL, 2000, p. 116).Figura 21 ............................................................................................................................. p. 63 Smbolos criados por Alosio Magalhes: para a Itaipu Binacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Boavista (LEITE, 2003, p. 216) e a Metalrgica Icomi (idem, p. 164).Figura 22 ............................................................................................................................. p. 63 Smbolos criados por Alosio Magalhes: para o Banco Nacional (REDIG, 1989, p. 105); para o Banco Aliana (LEITE, 2003, p. 186); para a Companhia Souza Cruz (REDIG, 1989, p. 105).Figura 23 ............................................................................................................................. p. 64 Smbolos criados por Alosio Magalhes: para o Banco de Crdito Mercantil (LEITE, 2003, p. 165); para o Unibanco e para o Banespa (REDIG, 1989, p. 105).Figura 24 ............................................................................................................................. p. 64 Capas dos exemplares n 4 -de Hermelindo Fiaminghi- e n 1 -de Dcio Pignatari- da revista Noigandres (; acesso em 17.04.2004).Figura 25 ............................................................................................................................. p. 65 Poesia Eis os amantes, de Augusto de Campos, do ano de 1953 (; acesso em 17.04.2004).Figura 26 ............................................................................................................................. p. 65 Poesia concreta Beba coca cola, de Dcio Pignatari, do ano de 1957 (; acesso em 17.04.2004).Figura 27 ............................................................................................................................. p. 66 Pinturas [27.1] Movimento Contra Movimento (LEITE, 1982, p. 922) e [27.2] Funo Diagonal (ZANINI, 1983, p. 662), de Geraldo de Barros; [27.3] smbolo para a Cofap (BORGES, 1992, p. 86), de Alexandre Wollner.Figura 28 ............................................................................................................................. p. 66 [28.1] Logotipo para Cotonifcio Capibaribe (LIMA, 1997, p. 39) e [28.2] aplicao de logotipo em veculo (LEITE, 2003, p. 198), criaes da PVDI, escritrio de Alosio Magalhes; [28.3] peas publicitrias diversas (LEON, 1992, p. 80), [28.4] sacola de compras para Casa Almeida (idem, p. 81) e composio/logotipo para Balas Belavista (id., p. 80), de Ruben Martins.Figura 29 ............................................................................................................................. p. 67 Smbolos: [29.1] criao de Alexandre Wollner (BORGES, 1992, p. 86); [29.2] criao de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 77); e [29.3] criao de Alosio Magalhes (LEITE, 2003, p. 169).Figura 30 ............................................................................................................................. p. 67 Smbolo do Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81); smbolo do Clube Hpico da Bahia, de Alosio Magalhes (LEITE, 2003, p. 217).Figura 31 ............................................................................................................................. p. 68 Associao conceitual do smbolo para o Hotel Tropical, de Ruben Martins (LEON, 1992, p. 81) e estudo tridimensional do smbolo do Clube Hpico da Bahia, de Alosio Magalhes (LEITE, p. 217).Figura 32 ............................................................................................................................. p. 69 Smbolos -de Alosio Magalhes- para: [32.1] Banco Mercantil de Pernambuco (REDIG, 1989, p. 105); [32.2] Laboratrio Maurcio Vilella (LEITE, 2003, p. 154); e [32.3] Banco Comercial Brasul (idem, p. 186).Figura 33 ............................................................................................................................. p. 69 Smbolos -de Alosio Magalhes- para: [33a] o Sesquicentenrio da Independncia do Brasil (LEITE, 2003, p. 206) e para [33b] o Banco Central do Brasil (idem, p. 155).Figura 34 ............................................................................................................................. p. 69 Design -de Alosio Magalhes- para Produtos Guri, com aplicao em itens diversos (LEITE, 2003, p. 188).Figura 35 ............................................................................................................................. p. 70 Projeto de identidade visual para a Petrobrs, de Alosio Magalhes: aplicao em letreiros [35.1] suspenso (REDIG, 1989, p. 108) e [35.2] de solo (LEITE, 2003, p. 205), em [35.3] veculos (REDIG, 1989, p. 108) e em [35.4] bombas de combustveis (LEITE, 2003, p. 204).6 6. Figura 36 ............................................................................................................................. p. 70 Anverso e verso de cdula de NCr$ 1,00 -um cruzeiro novo- (; acesso em 20.05.2004), design de Alosio Magalhes, impressa no Brasil e lanada no ano de 1967.Figura 37 ............................................................................................................................. p. 71 Anverso e verso de cdula de Cr$ 500,00 -quinhentos cruzeiros- (LEITE, 2003, p. 211), lanada em 1972; design de Alosio Magalhes.Figura 38 ............................................................................................................................. p. 71 Anverso e verso das cdulas de Cr$ 1.000,00 -mil cruzeiros- (; acesso em 20.05.2004) emitidas em 1977; design de Alosio Magalhes.Figura 39 ............................................................................................................................. p. 74 Impressora offset da Casa da Moeda do Brasil (; acesso em 21.05.2004).Figura 40 ............................................................................................................................. p. 80 Inseres em Circuitos Ideolgicos, de Cildo Meireles (Enciclopdia de artes visuais, em ; acesso em 09.10.2004).Figura 41 ............................................................................................................................. p. 83 [41.1] Moa Afogada, de Roy Liechtenstein (ARGAN, 1992, p. 582); [41.2] O Bandido da Luz Vermelha, de Cludio Tozzi (ZANINI, 1983, p. 751).Figura 42 ............................................................................................................................. p. 84 [42.1] Bero Esplndido, de Carlos Vergara (ZANINI, 1983, p. 744); [42.2] Cama, de Robert Rauschenberg (ARGAN, 1992, p. 576); [42.3] Trs Bandeiras, de Jasper Johns (; acesso em 11.10.2004).Figura 43 ............................................................................................................................. p. 86 Fruteira e copo, de Georges Braque (; acesso em 30.05.2004).Figura 44 ............................................................................................................................. p. 87 [44.1] Rodovia Castelo Branco, So Paulo, cartema da Srie Brasileira, de Alosio Magalhes (FUNARTE, 1982); [44.2a a 44.2d] Simulaes preparadas pelo autor para esta dissertao.Figura 45 ............................................................................................................................. p. 88 [45.1] Smbolo do Unibanco, de Alosio Magalhes (REDIG, 1989, p. 105); [45.2a] Moebius strip e [45.2b] Knots, de M. C. Escher (ERNST, 1986, p. 99 e 101).Figura 46 ............................................................................................................................. p. 89 [46.1] Litogravura, de Alosio Magalhes (LEITE, 2003, p. 78); [46.2] Belvedere (e detalhe), de M. C. Escher (ESCHER, 1994, prancha 74).Figura 47 ............................................................................................................................. p. 89 [47.1] Imagem produzida pelo autor, a partir de fotografia do cartema; [47.2] Plane-filling motif with crabs, de M. C. Escher (; acesso em 12.11.2004).Figura 48 ............................................................................................................................. p. 90 [48.1] Um outro mundo II, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, prancha 60); [48.2] Em cima e embaixo, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, prancha 61).Figura 49 ............................................................................................................................. p. 91 Oito cabeas, de M. C. Escher (ESCHER, 1994, p. 4).Figura 50 ............................................................................................................................. p. 91 [50.1] Detalhe de nota de NCr$ 1,00, preparado pelo autor a partir da imagem mostrada na figura 36; [50.2] Smbolo do Banespa, de Alosio Magalhes (REDIG, 1989, p. 05).Figura 51 ............................................................................................................................. p. 95 [51.1] Carta de baralho digitalizada pelo autor; [51.2] (V. figura 1.2); [51.3] (V. figura 38).Figura 52 ............................................................................................................................. p. 96 Imagens caleidoscpicas: [52.1] (; acesso em 01.12.2004); [52.2] (; acesso em 01.12.2004); [52.3] (; acesso em 01.12.2004).Figura 53 ............................................................................................................................. p. 97 Trs representaes do oroboro: [53.1] (; acesso em 01.12.2004); [53.2] (; acesso em 01.12.2004); [53.3] (; acesso em 01.12.2004). 7 7. Figura 54 ........................................................................................................................... p. 100 Conjunto de ilustraes preparadas pelo autor para esta dissertao.Figura 55 ............................................................................................................................ p. 101 Praia de Copacabana - Rio, cartema de Alosio Magalhes (FUNARTE, 1982, prancha 5).Figura 56 ........................................................................................................................... p. 102 Conjunto de ilustraes preparadas pelo autor para esta dissertao.Figuras 57 e 58 ................................................................................................................... p. 103 Idem.Figura 59 ........................................................................................................................... p. 104 Idem.Figura 60 ........................................................................................................................... p. 105 Idem.Figuras 61, 62 e 63 .............................................................................................................. p. 106 Idem.Figura 64 ........................................................................................................................... p. 108 Cartema da Srie Barroca, de Alosio Magalhes (LEITE, 2003, p. 73).Figura 65 ........................................................................................................................... p. 108 Cartema da Srie em Preto e Branco, de Alosio Magalhes (FUNARTE, 1982, prancha 24).Figura 66 ........................................................................................................................... p. 109 Ilustrao preparada pelo autor para esta dissertao.Figura 67 ........................................................................................................................... p. 111 Cartema So Paulo, Largo do Paissandu, de Alosio Magalhes, c. 1973, acervo Banco Ita S.A. (; acesso em 22.10.2004)Figura 68 ........................................................................................................................... p. 112 Cartema da Srie em Preto e Branco, de Alosio Magalhes, 1974 (LEITE, 2003, p. 69).Figura 69 ........................................................................................................................... p. 112 Cartema da Srie Brasileira, de Alosio Magalhes, 1972 (LEITE, 2003, p. 71).Figura 70 ........................................................................................................................... p. 113 Cartema da Srie Brasileira, de Alosio Magalhes, 1973 (REDIG, 1989, p. 105).Figura 71 ........................................................................................................................... p. 113 Cartema da Srie Brasileira, de Alosio Magalhes (FUNARTE, 1982, capa).Figura 72 ........................................................................................................................... p. 114 ndio Uaika, Amazonas, de Alosio Magalhes, cartema da Srie Brasileira (FUNARTE, 1982, prancha 2).Figura 73 ........................................................................................................................... p. 114 Grutas do Mar Morto, Israel, de Alosio Magalhes, cartema da Srie Internacional, 1974 (FUNARTE, 1982, prancha 10).Figuras 74 e 75 .................................................................................................................... p. 115 Cartemas da Srie em Preto e Branco, de Alosio Magalhes, 1974 (FUNARTE, 1982, pranchas 13 e 21).8 8. RESUMONo ano de 1972, o artista plstico e designer brasileiro Alosio Magalhes (1927-1982) apresentava ao pblico, em exposio realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, os cartemas -o produto ento mais recente de suas investigaes no campo das artes visuais. Consagrada pelos espectadores nesta e em outras mostras que se seguiram a ela no Brasil e no exterior, a criao cartemtica no foi recebida com semelhante entusiasmo por uma ala da crtica e da classe artstica da poca. Se isto j expe, primeira vista, um conflito de expectativas entre arte e pblico, revela tambm, num exame mais aprofundado da questo, que fatores exteriores ao fato artstico em si contriburam para dificultar a insero dos cartemas -e mesmo do nome de seu criador- nos registros da histria oficial da arte no Brasil. Esta dissertao, ao mesmo tempo que analisa a intrincada rede de acontecimentos, influncias e motivaes adjacentes trajetria e produo artstica de Alosio Magalhes, constitui um esforo no sentido de recuperar, divulgar e preservar, na memria da arte nacional, essa criao artstica que, resistindo ao desvanecedora de mais de trs dcadas, segue vigorosa, surpreendendo olhares e animando sensibilidades. Alosio Magalhes. Brasil: artes visuais. Cartes-postais. Cartema. Colagem. Design.9 9. ABSTRACTIn 1972, Brazilian artist and designer Alosio Magalhes (1927-1982) exhibited, in Rio de Janeiro Museum of Modern Arts, the cartemas, then his newest production in visual arts. Praised by audiences at this and following exhibitions in Brazil and abroad, his creation wasnt received with the same enthusiasm by many artists and art critics at the time. If this alone shows an expectation conflict between art and public, further analysis will also show that elements other than artistic have made their contribution to make cartema introduction as well as its author name in official Brazilian art history harder. The present thesis, along with analysing the intricate net of events, influences and motivations amid the trajectory and artistic production of Alosio Magalhes, aims to reclaim, spread and keep alive, in national art registers, this work that, withstanding any fading effect three decades could have inflicted, goes on powerfully, amazing the eye and cheering the sensibility. Alosio Magalhes. Brazil: visual arts. Cartema. Collage. Design. Postcards. 10 10. 1. INTRODUO Em fins da dcada de 1980, ao adquirir um exemplar do catlogo da exposio de cartemas de Alosio Magalhes realizada em 1982 pela FUNARTE -uma homenagem pstuma ao artista que falecera naquele mesmo ano-, pude experimentar sensaes ambivalentes a oscilarem entre um profundo encantamento e a mais trivial das invejas. Os cartemas, que at ento desconhecia, eram a materializao de uma idia artstica que poderia ou deveria, como pretensiosamente me sugeriam tais sentimentos, ter ocorrido a mim. A comparao - previsvel pela recorrncia em relatos semelhantes-, com alguns versos da composio Certas Canes 1 , de Tunai e Milton Nascimento, torna-se ento inevitvel. Certamente, minha formao em arquitetura, a incurso pelo territrio da ilustrao e o cartum e a opo final pelo design grfico, so aspectos que facilitaram o processo de identificao pessoal com a obra. E se declaro aqui minhas impresses, fao-o com o estrito objetivo de registrar o que teria sido, poca, seu desdobramento natural: o desejo -e provvel grmen desta dissertao- de aprofundar conhecimentos sobre a origem do cartema, ou mesmo de tentar compreender a natureza do poder arrebatador daquela simples e inventiva explorao esttica. Para minha surpresa, constatei que os cartemas no eram um tema a respeito do qual se pudesse obter referncias com facilidade. Tambm no era (e continua sendo) pequeno o nmero de pessoas que, mesmo familiarizadas com a produo recente da arte brasileira, ignoravam por completo a existncia desse trabalho artstico. Levando em conta essa realidade, e em respeito a eventuais dvidas, considero a convenincia de abrir aqui um parntese para falar brevemente sobre o que vem a ser o cartema. Comeando pela etimologia, j que curiosamente os dicionrios da lngua portuguesa no negaram registro ao termo como o fizeram alguns dicionrios nacionais de arte, a palavra cartema -um neologismo proposto pelo fillogo Antnio Houaiss para denominar a obra ainda em seu nascedouro-, resulta da associao do radical cart- (de carto-postal) com o sufixo -ema (na acepo de unidade mnima estrutural), conforme destaca a edio do ano de 2001 do Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa. Como proposio esttica, o cartema um tipo particular de composio visual modular, definida pela colagem sistematizada, sobre prancha rgida de papelo, de um 1 Certas canes que ouo / Cabem to dentro de mim / Que perguntar carece: / Como no fui eu que fiz?! / .... Certas Canes, de Tunai e Milton Nascimento, gravada originalmente no disco Anima (38min32seg), Ariola, Estreo, Estdio, 33 rpm, 12 pol, 3 faixa, lado B, 3min39seg, 1982.11 11. conjunto de cartes-postais visualmente idnticos e justapostos de modo a explorar concordncias formais singulares e efeitos pticos ambguos (fig. 1).Criao artstica do pernambucano Alosio Magalhes (1926 - 1982) na dcada de 1970, o cartema revelou-se uma soluo que, j na origem, abalava convices persistentes acerca da dicotomia tcnica/esttica (aqui manifesta no confronto design/arte) e da crena, herdada das vanguardas modernistas, de impossibilidade de dilogo entre obra de arte e pblico.Movido mesmo pelo inconformismo com as tendncias soliloquistas da produo artstica brasileira de ento, a conflitarem com o interesse que sempre nutriu pelas manifestaes da cultura popular e com o seu desejo de interao com o coletivo, Alosio 12 Figura 1 - Da associao planejada do mdulo -o carto-postal (1)- chega-se ao super-mdulo (2), a partir do qual constri-se o cartema (3) 3 12 12. abandonou a pintura -que exercera desde a primeira metade dos anos 1950- para dedicar- se, no incio da dcada de 1960, comunicao visual. O exerccio do design, profisso que ele ajudara a implantar em nosso pas e que desempenharia com brilhantismo pelos aproximados quinze anos seguintes, foi o caminho que, em ltima anlise, o levou inveno dos cartemas em 1972. Por fim, assumindo de vez a causa da identidade nacional, Alosio voltou-se para o campo da poltica governamental brasileira para o patrimnio e a cultura, onde atuou -a tambm com reconhecida competncia- at o fim da vida, em 1982. Se a passagem pelo campo do design -essa rea do saber que tem na comunicao um de seus pressupostos fundamentais- foi a grande oportunidade de Alosio para atingir sua meta de interao com o grande pblico, a inveno dos cartemas foi, agora no territrio da criao sem fins de consumo, o coroamento dessa conquista. Se por este motivo, ou se pelos surpreendentes efeitos visuais da obra, o fato que os cartemas atraram sempre quantidades expressivas de espectadores s diversas ocasies em que foram exibidos em museus e galerias do Brasil e do exterior. Contudo, o perodo transcorrido desde a ltima mostra expressiva dos cartemas - uma homenagem pstuma que em 1983 percorreu dez grandes capitais no pas- at os dias atuais, parece ter feito volatilizar-se quase por completo aquele entusiasmo com que foi recebida e celebrada essa criao do artista, suscitando algumas reflexes a respeito do grau de importncia conferido obra de Alosio Magalhes no mbito da histria da arte brasileira. Feitos os esclarecimentos, fecho o parntese para retomar a narrativa do ponto em que foi interrompida, quando ento os cartemas despertaram meu interesse e admirao. Interesse e admirao que, l por meados dos anos 1990, por obra do tempo e da rotina, comeavam a se acomodar em algum compartimento pouco solicitado da memria, enquanto o catlogo dos cartemas espremia-se entre outras publicaes numa prateleira pouco visitada da biblioteca. Foi preciso que alguns anos se passassem at que, em 1998, uma inteno acadmica objetiva me levasse a resgatar os cartemas da memria e da estante de livros. Decidi incorpor-los aos exerccios aplicados regularmente na disciplina Tcnicas de Visualizao, que ento lecionava no curso de Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal Fluminense. Estava ali meu primeiro campo coletivo de observao. As reaes invariavelmente admiradas dos alunos diante dos cartemas ali produzidos, converteram-se logo em estmulo para aes de maior amplitude. Assim, no advento do ano 2000, contagiados por aquela euforia generalizada que atropelava posies mais ortodoxas 13 13. e antecipava em um ano o incio do novo sculo, oferecamos administrao da universidade, como pea comemorativa e de divulgao institucional, o projeto grfico (desta vez um trabalho da disciplina Planejamento Visual e Produo Grfica) de um calendrio de parede ilustrado com imagens cartemizadas do ambiente e cotidiano universitrios. Passados quase trinta anos do aparecimento do cartema, o mundo da tecnologia nos emprestava suas facilidades para a construo de cartemas digitais, com programas grficos e perifricos a substituir esquadros, rguas e colas Phnix, indispensveis aos cartemas artesanais. Vantagens e prejuzos parte, o fato que a inveno esttica de Alosio Magalhes, estendida, como era seu propsito, a qualquer indivduo disposto a reproduzi-la - e aqui posso me incluir -, continuava a surpreender olhares e a confirmar o que seu idealizador j constatara poca: ningum fica indiferente ao cartema. Sentamo-nos, assim, os alunos e eu, bastante vontade para veicular as propostas cartemticas produzidas em sala de aula, na medida em que a isso nos autorizava aquele desejo de compartilhamento manifestado por seu idealizador. Naturalmente, dedicamos um espao do calendrio a informaes relativas a Alosio Magalhes e seus cartemas, ao mesmo tempo uma homenagem a esse brasileiro de tantos fazeres2 e uma tentativa de resgate daquela (literalmente) admirvel tcnica de expresso artstica. Contudo, medida que o projeto evolua, amos nos dando conta -com algum estranhamento, vale dizer- da dificuldade na obteno de informaes textuais sobre os cartemas; situao que o prazo curto e as precrias condies operacionais de que dispnhamos se encarregavam de no facilitar. Trabalhamos, ento, dentro dos limites impostos por essa realidade. O Reitor, que aceitara nosso convite para comparecer classe e ser apresentado pelos alunos proposta, acolheu o projeto com entusiasmo, nos autorizando a produzi-lo. O calendrio (fig. 2) foi produzido e, ao final, o gabinete do Reitor que se encarregara da distribuio, controlada e dirigida a setores internos e externos Universidade, viu esgotar- se com surpreendente velocidade a tiragem de trs mil exemplares. As muitas manifestaes de apoio iniciativa, levadas ao nosso conhecimento pelos funcionrios envolvidos Figura 2 - O calendrio da UFF, comemorativo do ano 2000, com imagens cartemizadas do ambiente universitrio. no processo, foram o meio atravs do qual 2Alosio Magalhes foi titereiro, cengrafo, gravador, pintor, grfico, designer e, por fim, homem pblico engajado na poltica cultural governamental.14 14. pude aferir e confirmar, mais uma vez e agora num universo de anlise bastante ampliado e heterogneo, o poder de seduo visual do cartema. Todavia, ao passo que crescia meu interesse pelo assunto, igualmente ganhavam intensidade as dvidas e estranhamentos decorrentes do aparente descaso com que a literatura especializada trata os cartemas (ao contrrio do que ocorre, por exemplo e sem comparaes apressadas, com seus quase contemporneos, os objetos relacionais de Lygia Clark ou os penetrveis e os parangols de Hlio Oiticica) e, mesmo, a passagem de Alosio Magalhes pelas pertenas da arte. Mas, se de um lado a perspectiva insinuada pelo quadro descrito conduzia ao desalento, por outro o ineditismo 3 do tema tornava-o particularmente instigante. Decidi-me pela segunda via, cujo trilhamento, orientado pelos fundamentos da cincia e da arte e entremeado dos prazeres e angstias prprios empreitada, desembocou nesta dissertao.Em linhas gerais, essas foram as circunstncias que conformaram o arcabouo desta pesquisa, cujo subttulo parece denotar uma demarcao estanque dos domnios da arte e do design. Aqui, no entanto, valho-me da comparao no como reforo de uma suposta dicotomia, mas to-somente como artifcio metodolgico, pensado para ajudar a limpar o terreno de concepes equivocadas acerca das particularidades que distinguem estes dois universos da produo humana. E nessa distino apia-se, de certo modo, a questo central deste trabalho, qual seja: os cartemas de Alosio Magalhes, ao conjugar fundamentos conceituais da arte a pressupostos comunicacionais do design, no se revelam igualmente obra de arte e design, um ponto de encontro entre estas duas atividades? Se observado sob o prisma da multidisciplinaridade, o problema que a se coloca aponta para desdobramentos nos campos especficos da Arte, da Comunicao, da Poltica, da Histria, da Sociologia, da Cultura e da Ideologia, mas se apia, fundamentalmente, na combinao dos vrios aspectos que, numa certa conjuntura espao-temporal, forjaram o ambiente social no qual atuou Alosio Magalhes. Dessa forma, considerada a complexa teia dos acontecimentos ocorridos no Brasil nas dcadas de 1960 e 1970, questes subsidirias -gerais e especficas- se desprendem daquela, central, suscitando reflexo.3 Quando j havia trilhado metade do caminho, recolhido informaes relevantes para o trabalho e constatado que a contribuio de Alosio para a cultura brasileira tal como ela se configura atualmente ia bem mais alm do que pude supor de incio, fui surpreendido pelo mercado editorial com a publicao do livro A herana do olhar: o design de Aloisio Magalhes (LEITE, Joo de Souza (org.). A herana do olhar: o design de Aloisio Magalhes. Rio de Janeiro: Artviva / Senac Rio, 2003.). A frustrao com a perda do ineditismo, que ameaou trocar de posio o instigante e o desalento, no impediu que a obra viesse a se tornar, ao fim e ao cabo, um valioso instrumento de consulta. 15 15. Em resumo, estes so alguns dos aspectos que concorreram para a formatao deste trabalho nos moldes que passo a descrever.O prximo captulo [cap. 2 Arte e design: a frgil (mas persistente) distino] abre a discusso sobre a delimitao das fronteiras entre a arte e o design, como decorrncia da antiga questo esttica-tcnica cuja origem, por sua vez, antecede mesmo ao surgimento do desenho industrial como atividade socialmente reconhecida. Aqui, atravs da recuperao de passagens da histria dessas duas reas da produo humana, procuro demonstrar que esse convvio, nem sempre tranqilo, foi sempre profcuo. Para tanto e como reforo de argumentao, recorri s anlises crticas da questo a que procederam Giulio Carlo Argan (sob a tica da finalidade) e Pierre Francastel (a origem na filosofia); alm deles, amparei- me tambm no referencial histrico-sociolgico de Arnold Hauser. De Ernest H. Gombrich vieram os imprescindveis fundamentos histrico-analticos da arte mundial.A seguir [cap. 3 - Alosio Magalhes], procurei desenvolver uma biografia comentada de Alosio Magalhes, restrita ao perodo em que ele se dedicou pintura, s artes grficas, ao design e poltica, no intuito de localizar um fio condutor, um trao comum em suas realizaes, capaz de fazer entender os caminhos que o levaram inveno do cartema. Procedendo, ento, reviso de literatura sobre a relevncia da obra e a trajetria desse artista pernambucano no mbito da produo de arte brasileira, constatei um sintomtico desequilbrio de registros; se por um lado grande o nmero de referncias documentais que tratam de sua passagem pelos organismos oficiais de gesto da cultura, ou acerca do perodo em que se envolvera na criao da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), no Rio de Janeiro, ou ainda, que assinalam seu papel pioneiro na implementao e no desenvolvimento do design no Brasil relacionando premiaes e trabalhos realizados na rea da comunicao visual, por outro escassa a literatura especfica sobre os cartemas.Desse modo, foi necessrio recorrer a consultas diretas, via telefone ou correio eletrnico, a pessoas de algum modo ligadas ao artista, bem como a pesquisas documentais no setor de Documentao e Pesquisa do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no acervo de correspondncias pessoais de Alosio Magalhes, doado por sua viva Fundao Joaquim Nabuco, de Recife. Dentre os inmeros ttulos da bibliografia, trs publicaes, relativamente recentes, foram particularmente valiosas na elaborao deste captulo: A herana do olhar: o design de Alosio Magalhes (2003), organizado por Joo de Souza Leite; O Grfico Amador (1997), de Guilherme Cunha Lima; e A retrica da perda (2000), de Jos Reginaldo dos Santos Gonalves.16 16. O captulo seguinte [cap. 4 - O cartema] dedicado anlise dos cartemas: sua origem, o contexto social e poltico brasileiro nos anos 1970, seu discurso, suas particularidades esttico-compositivas e analogias visuais possveis. Nele, sempre a partir de uma perspectiva histrica, busco comparar as reaes dos artistas brasileiros diante da ao da censura imposta pelo governo militar; analiso atributos supostamente capazes de conferir valor a uma produo em arte; e, num exerccio de quase fenomenologia, devaneio pelo territrio das coincidncias cata de associaes (im?)provveis.Aqui, vali-me novamente de G. C. Argan e de sua profunda anlise das teorias, tendncias e procedimentos da arte moderna mundial, e de E. H. Gombrich, um reforo de base para estudos comparativos entre a configurao cartemtica e produes artsticas de diferentes culturas e perodos.Quanto concluso, o que posso afirmar com clareza que este no ser -e nem seria possvel ser- um trabalho definitivo, no sentido de esgotamento do tema pesquisado ou de comprovao de todas as questes havidas -ingenuamente- como comprovveis ao incio da jornada. Ser, disto estou certo, uma contribuio para o estudo e difuso dessa surpreendente e generosa inveno de Alosio Magalhes. Ser, ainda, uma oportunidade de colaborar para o entendimento das intrincadas relaes que cercam um processo de criao e que, muitas vezes, enformam o resultado do trabalho criativo. Ser, tambm, uma ajuda reflexo sobre o que seriam as fronteiras entre arte e design, ou mais precisamente entre as artes ditas visuais e o design grfico, para que se possa entender, por fim, que os cartemas de Alosio Magalhes inscrevem-se exatamente a, nesse espao de interpenetrao de campos, configurando-se um ponto de encontro entre a arte e o design. E ser, espero, uma idia-semente espera de uma vontade criadora qualquer, capaz de acolh-la, plant- la e, quem sabe, faz-la germinar e frutificar em belos cartemas.17 17. 2. ARTE E DESIGN: A FRGIL (MAS PERSISTENTE) DISTINOO recurso a expresses que antagonizam tcnica e esttica no incomum. Na verdade, a cada vez que nos utilizamos do vocbulo artes, dadas as possibilidades de interpretao que o plural lhe acrescenta, poderemos estar, inadvertidamente, contribuindo para consolidar essa idia de oposio geralmente assente no pressuposto de que tcnica significa habilidade e que esttica um atributo indissocivel e exclusivo da arte. Nesse sentido limitado -se se restringe a discusso arte e ao design-, arte no caberia seno uma destinao (um fim) espiritual, enquanto que o design, entendido como forma de arte aplicada, engendrado e conduzido por interesses fundamentalmente comerciais, estaria associado, desde sempre, a uma funo utilitria, material.Neste captulo, pretendo refletir no a respeito da origem, mas sobre alguns dos momentos ou eventos no curso da histria moderna em que a produo em Arte -numa ampla significao- deu sinais claros do desgaste dessa discusso, e buscar, atravs da tica da finalidade do trabalho criativo e da confrontao de ocorrncias na literatura recente, demonstrar que o tema ainda faz por merecer a ateno de diferentes autores, como possvel verificar no que avalia E. H. Gombrich (1977, p. 474): Aps os balbucios e hesitaes do sculo XIX, os modernos arquitetosencontraram seu rumo [...]. Quanto pintura e escultura, a crise aindano saiu do ponto de perigo. Apesar de algumas experinciaspromissoras, ainda subsiste uma lamentvel brecha entre o que qualificado de arte aplicada ou comercial, que nos rodeia na vidacotidiana, e a arte pura de exposies e galerias, que muitos tmdificuldade em entender. Mas esta opo do artista pela arte pura, ou lart pour lart, antes uma atitude reativa que o resultado de aes legtimas na perseguio de novas formas de expresso, e remonta aos efeitos das profundas mudanas nas estruturas sociais da Europa, ocorridas por obra da filosofia das Luzes no decurso do sculo dezoito.De fato, desde que os ideais iluministas foraram a reorganizao dessas sociedades e, ato contnuo, deslocaram os artistas de sua insero social tradicional -deixando-lhes por conseqncia a oportunidade de romper com os cnones ento vigentes da realizao artstica-, a Arte remodelou seu perfil, expurgando de sua (re)nascente conformao toda e qualquer atividade a ela historicamente associada, passvel de ser considerada um ofcio, o exerccio puro e simples de uma habilidade tcnica.18 18. Essa alforria da imaginao criadora -contempornea da Revoluo Francesa- no fora, certo, assimilada da mesma forma pelo meio artstico que se dividia, na passagem do sculo XVIII, entre aqueles que talvez tocados pela pedagogia das Luzes defendiam uma finalidade social para a arte, e os que, protegidos pelo patrocnio oficial, contestavam veementemente essa possibilidade abrigando-se nas hostes das academias; ciso que, por desdobramento, se confirmaria tambm no plano representacional, entre os que em sua obra privilegiariam temas clssicos ou hericos -como o fizera Jacques Louis David-, e aqueles que explorariam a representao potica dos devaneios e vises pessoais, como no caso de Francisco Goya e William Blake (fig.3). Porm, ainda que tivesse havido essa 1 23 Figura 3 - Diferentes caminhos na representao: o academicismo de J.-L. David (1), contemporneo de Francisco Goya (2) e William Blake (3). ruptura da tradio (nos dizeres de Gombrich) a significar conflitos no mbito das artes, isto no implicou em mudanas imediatas e expressivas no domnio das culturas regionais, preservadas em suas bases historicistas e utilizadas pelas classes dominantes como poderoso instrumento ideolgico1 .Um efeito direto desse processo de convulso interna por que passou a arte, foi que os artesos -colaboradores tradicionais das artes- viram-se desligados, j no sculo XVIII, da comunidade dos artistas e, conseqentemente, privados de sua participao criadora nas realizaes da alta cultura. Por fora dos interesses corporativos da classe artstica -que encontraria na questo da tcnica e da esttica um de seus argumentos-, seria ento reservada ao artesanato a condio de atividade estritamente tcnica, segundo aquela concepo de tcnica como simples prtica ou habilidade de execuo de um trabalho ou tarefa. Inevitavelmente, o mercado de trabalho dos artesos retrair-se-ia por impacto dessa investida expurgatria. 1Cf. MAYER, Arno. Culturas oficiais e vanguardas. In: A fora da tradio: a persistncia do antigo regime. So Paulo: Cia. das Letras, 1987. 19 19. Embora a produo de objetos de uso e de arte popular, estimulada desde o sculo XVI pela revoluo comercial, significasse ainda -e agora em seu apogeu- oportunidade de trabalho para os artesos, medida que crescia o mercado exportador, a especializao regional em certos ofcios artesanais tornou-se ainda mais acentuada do que antes (BURKE, 1999, p. 269), propiciando o surgimento de centros de artesanato especializados capazes de suprir demandas no apenas locais, como tambm nacionais ou internacionais; estes centros, ofertando produtos a preos mais acessveis do que poderia faz-lo a produo artesanal usualmente voltada ao atendimento de exigncias pessoais, logo recorreriam a processos mecnicos de produo e estandardizao dos objetos. A esse respeito, relata Burke (1999, p. 269)que, entre outras, [...] A indstria de azulejos de Leeuwarden, Haarlem, Amsterdam,Dordrecht e outros centros dos Pases Baixos atingiu seu auge entre1600 e 1800; os azulejos, pintados com barcos, moinhos de vento,tulipas, soldados e muitos outros motivos, eram populares no s anvel nacional, mas tambm na Inglaterra e Alemanha. [...] Ao longodo sculo XVIII, os desenhos dos azulejos holandeses foram sesimplificando at umas poucas pinceladas rpidas, e passou-se a usarmtodos semimecnicos, como o emprego de matrizes. Era questode apenas uma ou duas geraes antes que o objeto artesanal, feito amo, comeasse a ceder ao objeto padronizado, feito a mquina eproduzido em massa.Dessa forma, a revoluo comercial, que impulsionara a produo artesanal de objetos, contribua igualmente para o seu fim, na medida em que, em associao com outra revoluo, a industrial, transformava o objeto nico em produto em srie e o arteso independente, se tanto, em operrio assalariado. Porm, se esse amargo desfecho no confirmava para os artesos os pressupostos iluministas da felicidade e prosperidade humanas como decorrncia do progresso e da razo, tambm teriam custado caro aos artistas aquelas conquistas resultantes da insurreio contra os valores polticos, sociais e culturais historicistas; pois at ali, [...] sua posio na vida estava mais ou menos assegurada. Foijustamente esse sentimento de segurana que os artistas perderam nosculo XIX. A ruptura na tradio abrira-lhes um campo ilimitado deopes. [...] Mas, quanto mais ampla se tornava a gama de opes,menos provvel era que o gosto do artista coincidisse com o do pblico.[...] Assim, desenvolveu-se uma profunda brecha no sculo XIX entreaqueles artistas cujo temperamento ou convices lhes permitiamobedecer s convenes e satisfazer a demanda do pblico e aquelesque se orgulhavam de seu isolamento autodeterminado. (GOMBRICH,1977, p. 397). 20 20. Todavia, o que o estado da arte na modernidade sugere que, naquelas circunstncias espao-temporais, prevaleceu o pensamento desse segundo grupo e cavou-se mais fundo o fosso - simultnea e conseqentemente- entre a arte e o pblico e entre a arte e a indstria. certo que a incorporao de atributos estticos aos produtos industrializados -ou seja, a integrao do artista no sistema de produo- no constitua, a priori, uma preocupao da primeira revoluo industrial; assim que: Na segunda metade do sculo XIX, os produtos de massa de uso dirio,que haviam escapado ao molde estilstico do artesanato tradicional,so percebidos pela primeira vez como um problema esttico. JohnRuskin e William Morris querem superar, por meio de uma reforma dasartes aplicadas, o abismo que separou utilidade e beleza no cotidianoindustrial (industrielle Lebenswelt). (HABERMAS, 1992, p. 134) 2 No entanto, a luta empreendida por Ruskin e Morris extrapolava, como se sabe, o mbito puramente esttico da produo industrial; para alm desse aspecto, sua crtica apontava para os efeitos perniciosos da prtica capitalista construo de uma sociedade moralmente saudvel, condio que consideravam indispensvel produo de uma arte elevada. Na esteira do pensamento crtico de Thomas Carlyle, Ruskin foi: [...] o primeiro a interpretar o declnio da arte e do gosto como indciode uma crise geral da cultura e a exprimir o princpio fundamental, eainda hoje no devidamente apreciado, de que, se se quer despertarnos homens o seu sentido de beleza e a sua compreenso da arte, h,antes de mais nada, que modificar as condies em que eles vivem.[...]William Morris, o terceiro na srie dos crticos sociais representativosda era vitoriana, pensa muito mais coerentemente e vai muito maislonge do que Ruskin no campo da prtica. Deste modo, efetivamenteo maior, isto , o mais audacioso, o mais intransigente dos vitorianos,apesar de, mesmo ele, no ser completamente livre das suascontradies e concesses. [...] Apesar da sua s concepo darealidade social e da funo da arte na vida da sociedade, ele umromntico enamorado da Idade Mdia e do ideal medieval da beleza.Prega a necessidade de uma arte criada pelo povo e dirigida a ele, mascontinua a ser um diletante hedonista, que produz coisas que s estoao alcance dos ricos e s os cultos podem gozar. Faz notar que a arteprovm do trabalho, da habilidade prtica do artfice, mas incapaz dereconhecer o significado do moderno meio de produo mais importantee mais prtico a mquina. (HAUSER, 1972, p. 994-996).2 A expresso artes aplicadas de que faz uso Habermas numa referncia s crticas de Ruskin e Morris, acaba por encerrar uma irnica inadequao, visto que Ruskin, na condio de porta-voz do grupo pr-rafaelista, insistia que: A arte una, e qualquer separao entre belas-artes e artes aplicadas destrutiva e artificial. (Cf. DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 10.) 21 21. Em Morris, no entanto -ressalva Hauser-, essa restrio produo mecnica teria sido menos rigorosa que em Ruskin, e isto lhe permitira reconhecer que, em certas circunstncias, as invenes tcnicas podiam vir a ser um bem para a humanidade. De qualquer modo, desse estado de conflitos deflagrado pela industrializao europia que surge o projeto industrial, ou seja, o meio atravs do qual um novo especialista, o designer, passa a controlar o processo que vai da concepo1do produto a seu uso (ESCOREL, 2000, p. 35). Mas se no contexto dessa revoluo que se situa a origem da ramificao do design hoje denominada desenho industrial, sua outra vertente, o design grfico, tambm decorre, dentro de certos limites, de um tipo particular de revoluo desencadeada no2 sculo XV com a inveno ou aperfeioamento 3 da impressoFigura 4 - Pgina do Evangelho de tipogrfica por Gutenberg -a da expanso do alfabetismo e da Lindisfarne (1) e letra capitular em livroholands do incio do sc. XIV (2). democratizao do conhecimento. Embora a inveno do tipo mvel tenha substitudo a tarefa manual da cpia de livros -no sem antes enfrentar sria oposio dos copistas, calgrafos e miniaturistas 4 -, no seria difcil constatar que algum tratamento visual prprio do design grfico (por mais que esta expresso esteja vinculada produo em srie) j existia antes mesmo de Gutenberg; as iluminuras, as molduras, os padres e geometrismos -como os do Evangelho de Lindisfarne, de cerca de 700 d.C. (fig. 4.1)-, as letras capitulares (fig. 4.2), so exemplos de recursos estticos dos quais se valeram copistas e gravadores e que antecederam, ou mesmo inspiraram, algumas das solues visuais utilizadas na famosa Bblia de 42 linhas - uma verso da Bblia Sagrada impressa por Gutenberg na primeira metade daquele sculo. Ao menos em parte, isto pode explicar o empenho de William Morris em resgatar e reintroduzir nos produtos editoriais de sua poca, por meio da ento recente tcnica da fotografia, o desenho da tipografia clssica e o uso de alguns atrativos grfico-visuais (fig. 5) caractersticos da Idade Mdia. 3Alguns autores atribuem a Gutenberg (c. 1400 - 1468) no a inveno, mas o aprimoramento da tcnica de impresso a partir dos tipos mveis -blocos originalmente feitos de madeira contendo em relevo letras isoladas do alfabeto. Seu inventor, segundo defendem, teria sido o holands Loureno Coster (1370 - 1440) que se utilizara desse recurso na edio do Horarium, o primeiro livro impresso do Ocidente. 4 Cf. RIBEIRO, Milton. Planejamento visual grfico. 2. ed. Braslia: Linha, 1987. p.43. 22 22. Nesta linha, em 1891 foi impresso o primeiro livro na Kelmscott Press, de Morris.Entre essa poca e o ano de 1896, no qual o designer faleceu, foramproduzidos mais de cinqenta ttulos dos mais variados formatos. [...]Esses livros, e aqueles produzidos por outras editoras privadas da Gr-Bretanha, estavam entre os trabalhos grficos britnicos mais admiradosno resto da Europa. (HOLLIS, 2001, p. 20)No obstante o refinamento esttico que essas intervenes promoveram, o processo tipogrfico continuava a exigir -como bem o desejara Morris, alis- o envolvimento e a participao de diferentes artfices na produo de impressos, fossem eles tipgrafos, ilustradores ou gravadores. No entanto, se este foi o caminho percorrido at aquele momento pelas artes grficas na Gr-Bretanha, necessrio que se recue um pouco no tempo para compreender as razes do diferente rumo tomado por essa atividade na Frana. Em 1798, na ustria, a litografia5 foi inventada por Alois Senefelder. Essa tcnica revolucionria no apenas representou um salto de qualidade para os produtos realizados atravs dos mecanismos tradicionais de impresso, como tambm contribuiu para dar forma mais aproximada ao perfil do profissional dasFigura 5 - Pgina de livro de Morris (1897) e colofo da Kelmscott Press. artes grficas hoje conhecido como designer grfico. Realmente, o processo litogrfico significou para o artista grfico da segunda metade do sculo XIX -sintomaticamente designado artista comercial- uma grande liberdade de expresso e criao grficas. A possibilidade de desenhar diretamente sobre a pedra litogrfica permitiu ao artista criar e executar, ele prprio, todos os componentes grficos de suas obras, alm de propiciar um maior controle e domnio do processo e do resultado final de seu trabalho -um ganho considervel, se comparado com limitaes tpicas do sistema tipogrfico, tais como o rgido alinhamento de textos e a necessidade do uso de matrizes xilogrficas ou de metal para a reproduo de ilustraes.5 Litografia (de lthos = pedra): processo de impresso que utiliza como matriz blocos planos de pedra calcrea, sobre a qual se aplica, por meio de lpis apropriado ou outro instrumento de desenho de base oleosa, a imagem que se quer reproduzir, e cuja tcnica fundamenta-se no princpio da imiscibilidade entre gua e leo. Utilizada nos dias atuais apenas como tcnica voltada produo de gravuras artsticas, o processo litogrfico evoluiu para a fotolitografia -que incorporou princpios fotogrficos na transferncia de imagens para a pedra- e propiciou, ainda, o surgimento do processo offset de impresso.23 23. Os pioneiros affiches6 franceses de cunho publicitrio, surgidos por volta de 1870 7 , foram seguramente o meio que mais se beneficiou dessa tecnologia e que tambm, em contrapartida, mais contribuiu para o seu aperfeioamento; afinal, a explorao capitalista 1 das formas de diverso de massa -uma alternativa de lucro que se beneficiou da passagem gradual das formas mais espontneas e participativas de entretenimento para espetculos mais formalmente organizados e comercializados para espectadores2(BURKE, 1999, p. 271)- exigia novos meios deFigura 6 - Cartazes de Toulouse-Lautrec (1) e Bonnard (2) divulgao condizentes com a efervescncia da vida cultural daquela Paris recm-reformada pelo baro Haussmann, por determinao de Napoleo III. Naquele contexto, os cartazes -forma emergente de arte que se incorporou definitivamente feio das cidades e que to bem refletiu comportamentos e hbitos das sociedades fin de sicle europias- consistiram em importante meio de comunicao (e de expresso) do qual se valeram artistas do porte de Henri Toulouse-Lautrec e Pierre Bonnard (fig. 6), Alphonse Mucha e vrios outros de seus contemporneos. Todavia, em que pese a sua valiosa contribuio, no foram os artistas (numaFigura 7 - Cartaz em litografia do precursor Jules Chret. acepo bem moderna da palavra) os responsveis primeiros pela renovao da linguagem e da tcnica de execuo que fizeram do cartaz essa forma simultnea de arte e comunicao; nisto, foram precedidos por um litgrafo pesquisador e talentoso desenhista, o artista grfico francs Jules Chret (1836-1933), cujas composies visuais (fig. 7), ainda que fortemente marcadas pelo cruzamento das influncias da pintura mural de Giovanni Tiepolo (1696-1770) com as das xilogravuras japonesas exibidas nas feiras mundiais de Paris em 1867 e 1878 8 revelaram, desde cedo, uma liberdade de representao grfica incomum em sua poca.6 Affiches: designao francesa para os cartazes de publicidade afixados em painis de rua. 7 Cf. BARNICOAT, John. Los carteles: su historia y su lenguaje. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1972. p. 7. 8 Cf. HOLLIS, Richard. Design grfico: uma histria concisa. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 6.24 24. Ao lanar mo de formas simples definidas por contornos ligeiros e cores chapadas em sua obra, Chret pode ter dado importante contribuio s discusses dos pintores modernos acerca da planaridade da superfcie -essa condio nica e exclusiva da arte pictrica da qual nos fala Greenberg 9 -, como exemplifica Barnicoat (1972, p. 20-24): El llamativo uso del negro en sus primeras obras y el entrelazamientode las formas lisas entraaba una ruptura con la interpretacintradicional de los cuerpos slidos y el hbito de crear una ilusin derelieve, ruptura que artistas ms jvenes como Toulouse-Lautrec yBonnard llevaran an ms lejos. Henri van de Velde, uno de losgrandes portavoces del Art Nouveau, mencionaba a Chret como unode los precursores ms importantes de este movimiento de las artesdecorativas.[...]El elemento caricaturesco, irnico y satrico, las formas sencillas ylisas, la lnea decorativa, eran artificios que Lautrec poda emplearen un cartel, pero que no hubiera podido expresar tan sencilla ydirectamente dentro de las convenciones de la pintura de su tiempo.Sus carteles tienen un carcter de bosquejo que es mucho menospatente en los cuadros y dibujos que realiz sobre los mismos temas;volveremos a encontrar esta formulacin simplificada en la obra demuchos pintores de la primera mitad del siglo XX.Depreende-se desse encontro de Chret e Lautrec, a partir das afinidades temticas e representacionais expressas em seus affiches que, ao entretecer fundamentos da cultura oficial com o idioma da cultura popular de sua poca, esses artistas no apenas reaproximaram arte e pblico como lograram demonstrar na prtica, j quela altura, a inocuidade dos esforos de indivduos ou grupos interessados em reservar territrios distintos para a grande arte e para o que classificavam de artes menores. O desdobramento natural dessa sintonia de linguagens foi que, perfeitamente assimilados como forma de expresso artstica em fins do sculo XIX, os cartazes asseguraram um grau de reconhecimento social at ento indito para o artista-designer francs, situao esta que no tardaria a se estender, tambm, a outras partes do Ocidente. Ocorria que: [...] os artistas que moravam fora da Frana, e que consideravam Parisa capital artstica do mundo, olhavam para os psteres parisiensescheios de admirao. Todavia, Amsterdam, Bruxelas, Berlim, Munique,9Cf. GREENBERG, Clement. Pintura Modernista. In: FERREIRA, Glria e COTRIM, Ceclia (org.): Clement Greenberg e o debate crtico. Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997.25 25. Budapeste, Viena, Praga, Barcelona, Madri, Milo e Nova York tambm investiam em suas prprias escolas de artistas de psteres, gerando talentos individuais brilhantes. (HOLLIS, 2001, p. 7)A rpida insero do cartaz na esfera da cultura ocidental influiu no surgimento e afirmao de um padro de publicao editorial nas duas ltimas dcadas do sculo XIX: as revistas ilustradas 10 especializadas em temas do cotidiano e arte. Valendo-se da expanso do mercado literrio -reflexo dos benefcios legados pelos planos de educao que alguns estados europeus implantaram por volta de 1870 com o objetivo de afirmar o sentimento e a idia de nao-, essas e outras publicaes do gnero colaboraram decisivamente para a divulgao mundial da produo europia de psteres; nos Estados Unidos, por exemplo, aps a publicao de um livro sobre o assunto, Les affiches illustres, em 1886, os psteres adquiriram respeitabilidade cultural, tornando-se moda colecion- los (HOLLIS, 2001, p. 9). Essas revistas consistiam num vantajoso veculo de divulgao do trabalho dos artistas-designers, na medida em que representavam, ao mesmo tempo, um meio de difuso e o objeto de aplicao das suas teorias, 1 2 tcnicas e habilidades. Quando enfim desponta o sculo XX, os resultados da confluncia dos esforos de Morris com as pesquisas grficas de Chret j teriam promovido o reencontro dos pintores com os 3 artistas grficos, e o movimento Art Nouveau, desde sua origem, afiana essa afirmao. Alphonse Mucha (fig. 8.1), Gustav Klimt (fig. 8.2), Henry van de Velde (fig. 8.3), Charles Rennie Mackintosh, Eugne Grasset, Aubrey Beardsley, Maurice Denis e os j citados Toulouse-Lautrec e Bonnard, so alguns Figura 8 - Cartazes de autoria de A. Mucha (1), G. Klimt (2) e H. Van de Velde (3). dos artistas que transitaram no campo10Destacam-se, entre as publicaes da dcada de 1890, os peridicos ingleses The Studio e The Poster (1898), as revistas alems Die Jugend (1896), Simplicissimus (1896) e Pan (1895), a vienense Ver Sacrum (veculo do movimento Secesso, liderado por Gustav Klimt) e as norte-americanas The Chap-Book, Lippincotts e Harpers Magazine. 26 26. das artes grficas durante o perodo em que o chamado estilo moderno dominou o cenrio artstico ocidental.Da em diante, no foram poucas as ocasies em que a pintura exerceu influncias sobre as artes grficas ou foi por elas influenciada. Georges Braque, Juan Gris e Pablo Picasso estamparam letras ou palavras e colaram fragmentos de jornais e outros impressos em suas telas cubistas (fig. 9), recursos que propiciariam experincias estticas singulares2 31 Figura 9 - Nos quadros de Picasso (1), Braque (2) e Gris (3), a insero de elementos semnticos, com a constante do tema jornal.como aquelas a que procederam Roman Opalka e Emilio Isgr. Filippo T. Marinetti ampliou o sentido das palavras de seus poemas ao imprimi-las com direes, pesos, dimenses e tipos diferenciados que subverteram a estrutura convencional das composies tipogrficas (ainda que antes dele e dos demais futuristas e de maneira menos radical Mallarm j o tivesse feito em 1897, com seu poema Un coup de ds) e abriu nova alternativa esttica para os artistas grficos, italianos e no, nas duas primeiras dcadas do sculo passado. Caminho semelhante trilharam os dadastas (figuras 10.1 e 10.2), e Kurt Schwitters fornece bons exemplos do efeito dessa incorporao de produtos grficos (como bilhetes de nibus, fotografias e recortes de jornais) s suas pinturas. Da para a frente, design e pintura seguiriam trocando influncias, como se pode observar com o movimento de stjil de Tho van Doesburg e Piet Mondrian, com o suprematismo de Kasimir Malevitch (fig. 10.3) e o1 2 3Figura 10 - O cartaz dadasta de Schwitters e van Doesburg (1) aproxima-se, na linguagem, das telas de Schwitters (2) e Malevitch (3). 27 27. construtivismo russo, at que os pressupostos filosficos, a interdisciplinaridade e a produo da Bauhaus (que seriam retomados mais tarde, em meados da dcada de 1950 e em outras bases, pela Escola da Forma de Ulm) viessem confirmar a tese da indissociabilidade entre a tcnica e a esttica. Todavia, por mais consistncia que comporte, o legado dos mestres da escola de Weimar (e de Ulm) parece no ter sido convincente o bastante para pr fim a essa herana discriminatria que, ao final, o alimento de que se nutre a tendncia classificatria das diferentes formas de expresso artstica. Ora como tema de discusso levantado por crticos, designers e historiadores da arte contemporneos, ora como fato aparentemente assimilado por certos autores, o problema da referida diferenciao tem persistido e, ainda que possam causar surpresa pelo contexto no qual soem ocorrer, no so raras as construes verbais suscitando prevalncia de um sobre outro tipo de manifestao artstica. A ttulo de ilustrao transcrevo, a seguir, algumas dessas ocorrncias. A publicao Arte no Brasil, por exemplo, que trata da produo de arte no pas desde o descobrimento at a data de sua edio -o ano de 1982-, registra no captulo intitulado (Sculo XVIII) Artes Menores:O problema da existncia de uma arte brasileira, com caractersticas nacionais, talvez no deva ser colocado em funo das manifestaes artsticas puras, como a escultura ou a pintura, e sim em relao s chamadas artes aplicadas, decorativas ou menores, que incluem mobilirio, ourivesaria, cermica, imaginria, txteis etc. Nessas manifestaes artsticas, tidas como inferiores, a alma nacional soube expressar-se melhor do que nas artes superiores; se se quiser localizar a marca da mo do povo brasileiro, nessas produes modestas que se ir descobri-la, pois nelas o arteso ou o artfice soube externar- se com uma liberdade e uma inveno que nem sempre lhe possibilitaram as manifestaes artsticas mais sofisticadas. (LEITE, 1982, p. 337, grifos meus)O exemplo acima no representa, no entanto, um caso isolado. Ao contrrio, com relativa freqncia deparamo-nos com formulaes semelhantes quela, como as que reproduzo a seguir. A primeira, do autor ingls John Barnicoat, num registro em sua obra j citada:El Art Nouveau fue el estilo moderno ms caracterstico del cambio de siglo. El diseo de carteles form parte de este movimiento artstico que afect tanto a las artes mayores como a las menores. (BARNICOAT, 1977, p. 29, grifos meus) 28 28. Outra, talvez mais surpreendente, a que nos oferece em seu livro Layout: o design da pgina impressa, o designer grfico Allen Hurlburt:[...] Neste sculo [o sculo XX], mais do que em qualquer outro, as mltiplas disciplinas do design so entrelaadas para formar o tecido do estilo contemporneo. O movimento cubista estava relacionado apenas com a pintura e a escultura, mas, em composio com o Dadasmo e o Futurismo, os estilos e influncias comearam a disseminar-se das artes mais nobres para outras reas do design. (HURLBURT, 1986, p. 14-15, grifos meus) bem pouco provvel que tais citaes -por mais carregadas que sejam de atributos de valor- pretendam intencionalmente reforar essa idia de hierarquizao entre as alternativas de realizao artstica; a desateno, todavia, acaba por faz-lo. S que aceitar a qualquer condio de supremacia , em ltima anlise, acatar a tese de que as formas superiores de arte rejeitam toda e qualquer finalidade prtica; ou que seriam, segundo Kant, uma "finalidade sem fim". Quanto a isto, tendo a concordar com Pierre Francastel (1973, p. 57), quando observa:Hoje, tanto quanto em qualquer outra poca, a arte verdadeira jamais revestiu um carter de gratuidade. Os valores estticos no so os valores desligados de toda contingncia, os valores inteis. Sei perfeitamente que a opinio de Kant foi tomada por vrios, dentre os melhores pensadores. Se hoje, nos crculos de filsofos, existe uma tendncia desastrosa de identificar a arte com o suprfluo, isto se deve em grande parte a Bergson que divulgou essa iluso. Para ele a finalidade da arte criar mundos imaginrios; ela preenche a vocao fabuladora da humanidade.[...] Acresce que a arte sofre, em nossos dias, uma tentao pelo gratuito e h de se reconhecer que em grande parte a culpa cabe aos artistas e aos filsofos se os tcnicos tm uma idia to falsa sobre as relaes da arte com a tcnica. A origem dessas teorias dupla. Filosfica por um lado. Mostrei sua origem em Kant e no se poderia estar de acordo com sua frmula pois se arte era verdadeiramente uma finalidade sem fim, ou se o artista no se propunha um outro objetivo exterior a ela, seria necessrio negar arte toda significao. Ao contrrio o que ocorre de fato que a arte, servindo em todas as pocas como meio de expresso e de propaganda, um dos veculos da ideologia de seu tempo; tambm um fato que o arquiteto que constri um palcio, uma ponte ou uma igreja no trabalha no absoluto, fora de toda contingncia, mas, pelo contrrio, para satisfazer ao mesmo tempo s necessidades prticas e s exigncias de gosto de seus contemporneos.Recuando no tempo at o ano de 1923, encontraremos tambm no pensamento de Leon Trotski a seguinte abordagem sobre a relao entre arte e tcnica, sob a tica da finalidade:29 29. Tomemos o canivete como um exemplo. A combinao de arte e tcnica pode desenvolver-se dentro de duas linhas fundamentais: ou a arte embeleza o canivete e retrata em sua lmina um elefante de suprema beleza, ou a Torre Eiffel; ou a arte ajuda a tcnica a encontrar uma forma "ideal" para o canivete, ou seja, uma forma que corresponda mais adequadamente ao material de um canivete e ao seu uso. Pensar que essa tarefa pode ser resolvida por meios puramente tcnicos incorreto, porque finalidade e material permitem numerosas... variaes. Para fazer um canivete "ideal" precisamos, alm do conhecimento das propriedades do material e dos mtodos de sua utilizao, tambm de imaginao e gosto. Segundo toda a tendncia da cultura industrial, podemos pensar que a imaginao artstica na criao de objetos materiais ser dirigida para a elaborao da forma ideal de uma coisa como coisa, e no para o seu embelezamento como uma finalidade esttica em si. (SELZ, 1999. p. 471-472) As palavras de Francastel e de Trotski iro encontrar consonncia na esclarecedora parbola d'O busto e o elmo, em que o autor, Giulio Carlo Argan, estabelece comparaes de objetivos entre os trabalhos do artista -um escultor- e do arteso de um mesmo perodo histrico, empenhados em produzir, o primeiro, um busto de bronze, e o segundo, o elmo de um guerreiro. Salientando que ambos tm por referencial comum de criao a cabea do homem, Argan (1992, p. 115-116) considera:O artista que modelou o busto pensou que a cabea do homem bela porque a parte mais nobre do corpo humano, aquela que em mais alto grau reflete e revela a perfeio ideal de Deus. O arteso que lavrou o capacete pensou que a cabea a parte mais importante, vital e delicada do corpo humano, aquela que merece em mais alto grau ser protegida, e condicionou a forma do objeto a esse seu conceito de valor: aumentou a espessura do metal onde piores podem ser os efeitos dos golpes, estudou a inclinao ou a curvatura da superfcie de modo a fazer derrapar os fendentes, buscou obter o mximo de segurana com o mnimo de peso. Para o artista que modelou o busto, o valor de uma cabea estreitamente ligado semelhana, para o arteso que forjou o capacete ele praticamente independente desta. Porm, enfatiza o autor, a semelhana interessa ao artista enquanto parmetro de transposio para o universal -o espao, no qual se instalar como imagem-, aquilo que antes individual: os traos exteriores de um rosto determinado. Assim, o busto fruto da contemplao e destina-se, em ltima anlise, contemplao. Quanto ao arteso, interessa- lhe resolver o elmo como agente mediador entre a cabea e o espao em que atua o guerreiro; sua obra est, pois, em relao direta com a idia de ao. E mais:O escultor concebeu a sua forma como uma "coisa" que apenas ocasionalmente tal, mas na realidade tende a separar-se da contingncia 30 30. e temporalidade da coisa para atingir a universalidade ou a imvelespacialidade da imagem. O arteso quis, ao contrrio, criar uma formaque fosse antes de tudo e de pleno direito uma coisa, um objeto, e quecomo tal se referisse a uma contingncia especfica, a uma dada condiotemporal: a do homem que vai guerra. A forma do busto naturalistaporque nasce da considerao da figura humana como um aspecto, o maisalto aspecto, da Criao. A forma do capacete, embora aparentementeabstrata, de fato realista porque considera o homem na sua realidade, notempo e no lugar de uma circunstncia bem precisa. Para o autor do busto,tudo j criado, j est no espao, e ao artista no se permite seno imitarou repetir, mesmo que individualizando o momento eterno da beleza sob assemelhanas mutveis do contingente. Para o autor do elmo, a srie dosobjetos ilimitada como a das aes humanas; alis, h umacorrespondncia to estreita entre as aes e os objetos que so as primeirasque determinam ou criam os segundos.A prpria objeo comum sobre a pura esteticidade do busto e a purapraticidade do elmo se revela inconsistente: todos estamos de acordo emreconhecer que a forma do elmo bela, e o porque responde de modopreciso e exaustivo a uma funo. [...] Portanto, a idia de funo nosserve de unidade de medida da qualidade esttica da forma do elmo, domesmo modo como a idia da observao ou da contemplao nos servede unidade de medida da qualidade esttica do busto: s que a idia defuno implica a de ao, enquanto a idia de contemplao implica a deimobilidade. Num desdobramento desse raciocnio Argan pontua que, para cumprir com xito a funo a que se destina, preciso que ao objeto esteja associada a noo de projeto -a base do trabalho do designer (e tambm do arquiteto)-, em lugar daquela de esboo com a qual trabalha, geralmente, a maioria dos artistas. Projetar, por sua vez, requer conhecimentos dos meios de operao e das etapas da produo de determinado objeto em escala industrial; igualmente, implica na conscincia da possibilidade de atendimento s exigncias de uma certa coletividade e no mais de demandas individuais. E conclui: portanto o "projeto" ou o "desenho industrial" que determina a priori,e sempre em relao funo, a qualidade do produto, que semprequalidade esttica; e no pode, na atual condio da cultura, haver umbom projeto que no nasa de um processo de intuio ou de inveno,isto , de um processo tradicionalmente considerado de carter estticoe prprio dos artistas.Naturalmente, no se concebe hoje uma escala de produo de objetos destinados ao atendimento s necessidades materiais das sociedades que ocorra fora da indstria, e o designer o profissional que pode conferir distino de qualidade -funcional e esttica- a esses produtos. A relao entre o design (grfico ou de produto) e a indstria , pois, inextricvel; mas essa condio atual de interdependncia no implica, necessariamente,31 31. em que todo produto industrial seja esteticamente bem resolvido ou mesmo socialmente necessrio; s que neste caso, a resposta da coletividade se d de maneira clara e precisa, atravs de seu direito de escolha. Afinal, h boas e ms solues em design como h, na arte em geral, obras de maior ou menor significao, e a medida do xito ou fracasso para essas atividades pode ser dada pelo grau em que cada uma delas opera e modifica a realidade.Sabemos que a noo de finalidade que conduz o processo de criao em design no recomenda ao designer atitudes hedonistas, algo equivalente a um design pelo design; a arte, por seu lado, ainda as admite, e os mecanismos sutis -mesmo denunciados e combatidos pelos artistas mais conscientes- de parte do mecenato contemporneo, no raro as alimentam e exploram. Um livro recente, intitulado Livre-troca: dilogos entre cincia e arte -trabalho conjunto do socilogo francs Pierre Bourdieu com o artista alemo Hans Haacke-, um importante sinal de alerta que desvela, tambm, alguns dos princpios norteadores das estratgias de patrocnio da arte contempornea. o prprio Haacke (1995, p. 28-29) quem esclarece:Creio que importante distinguir a idia tradicional do mecenato das manobras de relaes pblicas que se apoderam desse termo. Invocando o nome de Mecenas, as empresas de hoje se do uma aura de altrusmo. O termo americano de sponsoring explica melhor que existe, na realidade, uma troca de bens, de bens financeiros da parte do patrocinador e de bens simblicos da parte do patrocinado. A maioria dos homens de negcio mais direta quando fala a seus pares. Alain- Dominique Perrin, presidente da Cartier, por exemplo, diz claramente que ele gasta o dinheiro da Cartier visando metas que nada tm a ver com o amor arte. [...] Segundo suas prprias palavras: "O mecenato no apenas um formidvel instrumento de comunicao; muito mais do que isto, ele um instrumento de seduo da opinio". Os contribuintes pagam aquilo que as empresas recuperam atravs de isenes fiscais pelas suas "doaes", e somos ns quem verdadeiramente subvencionamos a propaganda. Estes custos da seduo no servem apenas para o marketing dos produtos, como os relgios e as jias no caso da Cartier. mais importante para os patrocinadores criar um clima poltico favorvel a seus interesses no que diz respeito, por exemplo, aos impostos, regulamentao do trabalho ou da sade, s coaes ecolgicas ou exportao de seus produtos. 11 11Destaquei aqui o caso da Cartier -empresa multinacional de origem francesa que atua no mercado de jias- por dois motivos que me parecem relevantes. O primeiro, expresso no texto, por revelar as verdadeiras intenes do mecenato da troca e da cooptao; o segundo porque, atento s manobras da empresa, Hans Haacke produziu, em 1986, uma instalao denominada O must de Rembrandt em que desmistifica a aura de altrusmo da empresa que explora e preserva, atravs do trust Rembrandt, condies subumanas de trabalho nas minas de metais preciosos na frica do Sul. (id., 1995, p. 40-43) 32 32. Produzir arte sob tais circunstncias difere pouco daquela atitude submissa e acrtica dos artistas que trabalharam, at por volta do sculo XIX, a servio da alta cultura e das ideologias da aristocracia, da igreja e do estado; e isso, por mais que se possa pretender, no confere a qualquer dos segmentos da arte as supostas qualidades superiores; e no seria de se estranhar que fossem os beneficirios desse tipo de mecenato -que tanto os afasta de seu importante papel de transformadores sociais-, os mesmos a defender com veemncia uma condio especialmente pura para a Arte. Em situaes como esta, o pacto firmado entre o capital e a arte seguramente mais nocivo sociedade (e prpria arte, naturalmente) do que poderia s-lo a "polmica" (porm clara) relao da indstria com a arte, estabelecida atravs do design -essa "forma de expresso que se projeta para o futuro, sempre em busca de articulaes e significados novos e cujo pressuposto nuclear atender s demandas de bem- estar fsico, intelectual e emocional do ser humano" (ESCOREL, 2000, p. 69).Na controversa obra literria Desconstruir Duchamp: arte na hora da reviso, Affonso Romano de Sant'Anna (2003, p. 185), ao discorrer sobre a funo da arte, assinala que: [...] quando um congols fazia uma colher de madeira que admiramoshoje, ele a fazia, primeiramente, movido pela necessidade, mas tambmpor um desejo de funcionalidade e harmonia com seu universo. amesma coisa com a arte plumria de nossos ndios ou desenhos eesculturas astecas. [...] O processo de seduo esttica e artsticaque pode acontecer pelo avesso, at pelo exerccio do horror e dogrotesco, tem uma funo na relao entre as criaturas. No existecultura sem smbolo e sem o mnimo de esttica. E uma das maneirasde medir o grau de desenvolvimento dos indivduos e coletividades,deve (ou deveria) ser a capacidade de se expressarem simbolicamente,pelos rituais, pelos jogos, pela poltica e pela arte. Desconectada do pblico e de uma funo, a arte no serve sequer a si mesma. Compreendendo muito bem isso, no so poucos os artistas que tm buscado reafirmar seu papel na sociedade atravs de aes capazes de reatar os laos da arte com a coletividade. Alosio Magalhes, como ser mostrado a seguir, foi um deles. Para lograr xito nesta tarefa precisou experienciar o "isolamento do artista", rever criticamente seus prprios objetivos, mudar a direo de sua produo, transitar por reas de criao e realizao especficas. A soma de todas essas aes desembocou nos cartemas, trabalho artstico que confirmou a tese de que, juntos, arte e design tm mais em comum do que se pode ser levado a deduzir pela habitual (e j desgastada) pretenso de conferir graus diferenciados de valor s variadas formas de expresso artstica. 33 33. 3. ALOSIO MAGALHES A trajetria de vida do brasileiro Alosio Barbosa Magalhes foi marcada por intensa atuao nos campos da pintura, das artes grficas, do design e da poltica cultural. Nascido na cidade do Recife, em 1927, Alosio descende de famlia rica e influente no cenrio poltico pernambucano e nacional. Seu pai, o mdico e professor Aggeu Srgio de Godoy Magalhes, foi diretor da Faculdade de Medicina do Recife em meados da dcada de 1930 e mais tarde secretrio de Sade e Educao de Pernambuco; seu tio, Agamenon Magalhes, foi deputado estadual (1918), deputado constituinte eleito em 1932, ministro do Trabalho do governo Getlio Vargas, interventor do Estado de Pernambuco -sob o Estado Novo- de 1937 a 1945, ministro da Justia de Vargas, novamente deputado constituinte em 1946 e governador de Pernambuco, agora eleito, em 1950. Srgio Magalhes, outro irmo de seu pai, tambm foi deputado federal com base eleitoral no Rio de Janeiro, em princpio da dcada de 1960. Aos dezoito anos de idade, Alosio ingressava no curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, profisso que nunca viria a exercer e, sobre as razes que o levaram a escolh-la, pronunciaria mais tarde: quem que no fazia direito na poca? Era o primeiro sinal de bom senso, quer dizer, bom senso de desejo de uma projeo poltica, intelectual (LEITE, 2003, p. 27). Sua vida acadmica foi conciliada desde o incio em 1946, e at o final do curso em 1950, com as funes de cengrafo e figurinista do Teatro do Estudante de Pernambuco - TEP, cuja proposta de trabalho estava sintonizada com os movimentos estudantis do Recife que no perodo do Estado Novo tinham se engajado nas lutas antifascistas e em 1946 participavam intensamente do processo de redemocratizao poltica do pas, segundo registra em texto 1 o amigo -e ex-integrante do TEP- Jos Laurenio de Melo. Ali tambm, Alosio respondeu temporariamente pelo Setor de Teatro de Bonecos e participou da criao das Edies TEP, destinadas a divulgar a produo de uma literatura dramtica embebida na realidade brasileira. Em janeiro do ano em que se graduaria em Direito, Alosio ocupa seu primeiro cargo pblico, como redator da Diretoria de Documentao e Cultura da Prefeitura do Recife. Uma bolsa de estudos obtida do governo francs por indicao de seu amigo, o diplomata Wladimir Murtinho, leva-o a Paris entre 1951 e 1953, onde cursa museologia na1MELO, Jos Laurenio de. Alosio e o TEP. In: LEITE, Joo de Souza. A herana do olhar: o design de Aloisio Magalhes. Rio de Janeiro: Artviva, 2003. 34 34. Escola do Museu do Louvre, alm de freqentar aulas de gravura no Atelier 17 com o gravador ingls Stanley William Hayter.Em seu retorno ao Brasil, Alosio apresenta ao pblico, ainda em 1953, sua produo como pintor atravs de mostras das aquarelas, guaches e leos realizados em Paris. Expe em sua cidade natal e participa com duas obras da 2 Bienal Internacional de So Paulo.No ano seguinte integrava o grupo de intelectuais responsvel pela criao, no Recife, dO Grfico Amador, uma espcie de oficina-atelier dedicada a pesquisas e realizaes no campo das artes grficas e a edies visualmente elaboradas de textos literrios. Dessa poca at o final da dcada, Alosio participa de vrias exposies de pinturas -individuais e coletivas- no Brasil (Recife, Salvador, Rio de Janeiro e So Paulo) e no exterior (Washington, Nova Iorque, Cincinnati, Filadlfia e So Francisco); viaja para os Estados Unidos com bolsa de estudos concedida pelo Departamento de Estado americano onde se aprimora na tcnica de impresso offset na oficina The Falcon Press (na Filadlfia), de propriedade do artista grfico Eugene Feldman, com quem publicaria o livro Doorway to Portuguese. J no Brasil, publica os livros Aniki Bb -que une desenhos seus a textos de Joo Cabral de Melo Neto-, Improvisao Grfica, uma experincia grfica sobre textos de vrios autores -ambos pelo Grfico Amador-, e um segundo livro em parceria com Eugene Feldman, Doorway to Braslia; leciona por duas vezes no Philadelphia Museum College of Art, a convite do diretor, e integra a comitiva brasileira na XXX Bienal de Veneza.Quando ao final de 1961 O Grfico Amador encerrava suas atividades, Alosio j se havia estabelecido como designer na cidade do Rio de Janeiro. Em 1960 montara com o arquiteto Artur Lcio Pontual, numa casa do bairro de Botafogo, um escritrio de design - seu primeiro passo em direo a uma atividade que desempenharia com reconhecido brilhantismo e que tomaria como prioridade nos quinze anos seguintes. Esta iniciativa, de bem-sucedido pioneirismo, logo se converteu em alavanca para a implantao e desenvolvimento da profisso de designer no pas. Em 1962, convidado pelo ento governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, Alosio integrava o grupo responsvel pela criao da ESDI Escola Superior de Desenho Industrial, a primeira instituio latino-americana de ensino superior em design, de cujo corpo docente participaria por cerca de oito anos.Sua intensa dedicao a esta atividade s seria relegada a um segundo plano por volta de 1975, quando, com o interesse direcionado para questes referentes preservao da cultura brasileira, iniciava uma nova jornada com a criao do C NRC Centro Nacional de Referncia Cultural. Da por diante, Alosio enveredaria pelos caminhos da poltica oficial35 35. para a cultura -sobretudo em sua vertente patrimonial- trazendo consigo crticas e propostas de reformulao poltica tradicional do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - S PHAN - que, a seu ver, negligenciava aspectos significativos da cultura brasileira.Em sua passagem pelo servio pblico federal, ao final do governo militar nas gestes de Geisel e de Figueiredo, exerceu os cargos de diretor do I PHAN - Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (1979), presidente da Fundao Nacional Pr-Memria (1980) e secretrio de Cultura do Ministrio da Educao e Cultura (1981).No dia 13 de junho do ano de 1982 Alosio Magalhes viria a falecer em Pdua, na Itlia, quando, na condio de representante do ministro da Educao e Cultura do Brasil - Rubem Ludwig-, participava de um encontro de ministros da Cultura de pases de lngua latina realizado na cidade de Veneza.Assim relatada, a biografia de Alosio pode induzir suposio de que ruptura seja o termo que melhor traduza sua trajetria profissional, mas este um erro a que se pode ser levado por uma anlise pouco profunda de sua diversificada atuao. Na verdade, cada guinada significou, sempre, uma atitude lastreada na experincia anterior, uma escolha amadurecida e consciente, um processo de soma contnua em busca de um campo de ao de maior alcance social. como descreve o ex-assistente e parceiro de equipe de Alosio, o pesquisador Joo de Souza Leite: Sempre prximo ao exerccio do poder, fosse nas lides polticas ou frutodo exerccio intelectual, Aloisio se formou com naturalidade. Semrupturas. Certamente isso se refletiu nas vezes em que se referia segurana das coisas contnuas, tema constantemente reiterado em seudiscurso de poltico. Para Aloisio, a preservao da continuidade, daevoluo das coisas por uma contnua experimentao, computando oerro como possibilidade de correo dos rumos, era fundamental.(LEITE, 2003, p. 27) Sob um outro prisma, mas na mesma direo, o designer e professor Joaquim Redig de Campos (LEITE, 2003, p. 141) aponta, no curso da vida profissional de Alosio Magalhes (ao lado de quem se iniciou na profisso em 1966), dois momentos, que classifica como: [...] dois grandes estgios que poderiam ser chamados, o primeiro, deplstico, e o segundo, de poltico- havendo em cada estgio dois temposdefinidos: as experincias iniciais em pintura e grfica (no Recife at1960) e o escritrio de design (no Rio, de 1960 a 1975-1980)correspondem ao primeiro estgio; o Centro Nacional de RefernciaCultural (em Braslia, de 1975 a 1977-1980) e a poltica cultural noMEC, ao segundo.36 36. E, prosseguindo, esclarece: Ao mesmo tempo os dois estgios -plstico e poltico- esto interligadosem um mesmo ciclo, j que o C NRC foi uma conseqncia do escritriode design, na medida em que representou uma exacerbao e um novoestgio na busca da natureza do produto brasileiro. Seu trabalho plsticosempre teve um lado poltico, no sentido da conscientizao e da aopblica, e seu trabalho poltico sempre teve um lado plstico, naidealizao, na formalizao, e na prpria matria do trabalho. Naverdade, era tudo uma s coisa, em sua viso abrangente dos fenmenosapenas as nfases variavam, em cada momento e em cada contexto. O que se pode observar ento, em cada um desses momentos e em cada um desses contextos da vida relativamente breve de Alosio Magalhes, que nenhum deles foi explorado de forma superficial. bem verdade que os registros que ajudam a tecer a histria desse brasileiro levam iluso de que seu papel como designer sobrepuja sua atuao como homem pblico da poltica cultural, e que um e outro, combinados ou isoladamente, ofuscam seu ofcio de artista plstico. Acredito, porm, que um olhar de maior amplitude -e se possvel despojado da habitual (e at mesmo compreensvel) objeo aos privilgios das classes dominantes- lanado sobre os vrios fazeres de Alosio revelar sempre a seriedade e competncia com que ele se dedicou a cada uma dessas empreitadas, ao mesmo tempo que far transparecer aquele fio de coerncia que as alinhavou.E bom lembrar, os privilgios de que teria usufrudo, reconheceu-os Alosio em mais de uma oportunidade, quando exortava seus pares a retribuir ao pas (ou ao mundo, como em seu derradeiro discurso no encontro de ministros da Cultura) as conquistas e experincias pessoais obtidas por conta desse e outros tipos de benefcios. E como privilegiados entendia todos os que no morremos na primeira infncia. [...] [E que] tivemos acesso escola,no fomos discriminados e mantidos na ignorncia e no desconhecimentoe na tristeza. Tivemos a nossa alfabetizao garantida. E mais ainda: onosso privilgio vai ter acesso ao conhecimento de nvel superior, suniversidades, a um conhecimento especfico, a escolhas, a opes emque a nossa personalidade pde encontrar pouso e auxlio. E ainda mais.O nosso privilgio vai ainda muito adiante. Viajamos para o estrangeiro,conhecemos o mundo, temos acesso a outras culturas, informaesenriquecedoras no cotejo dialtico entre formas e preferncias deculturas diversas. Podemos voltar aos nossos pases com o privilgioimenso de termos visto outros pases, como eles operam, como elesresolvem seus problemas, como enriqueceram, eventualmente comoadensaram a sua cu