Carvalho - Mentes Perigosas na Academia: sobre plágios, responsabilidades, diagnósticos e estigmas

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    1/3Ano 21 - n 245 - ABRIL/2013 - ISSn 1676-3661

    jurisprudncia.Revista do Advogado 118/35.

    (5) TJPR,HC909975-6, 2. Cm. Crim., Rel. Lilian Romero, j. 14.06.2012.

    (6) STF,HC86.879/SP, j. 21.02.2006.

    (7) oliveira, Luiz Renato. Reexes sobre os crimes tributrios.RBCCRIM86/222,set.-out., 2010.

    (8) O simples fato de ser scio ou administrador de empresa no autorizaa instaurao de processo criminal por crimes praticados no mbito dasociedade, se no restar comprovado, ainda que com elementos a serem

    aprofundados no decorrer da ao penal, a mnima relao de causa e efeitoentre as imputaes e a sua funo na empresa, sob pena de se reconhecera responsabilidade penal objetiva (STJ,HC17872, 5. T., Rel. Min. GilsonDipp, j. 27.09.2005). No mesmo sentido, ainda exemplicativamente: STJ,

    HC32116, 5. T., Rel. Min. J. Arnaldo da Fonseca,DJ06.12.2004, p. 342 eSTJ,HC86718, 5. T., Rel. Min. Flix Fischer,DJ03.12.2007, p. 348.

    (9) STF, Recebimento da Denncia 3898-3, Rel. Min. Gilmar Mendes,j. 26.08.2009.

    Gabriel Bertin de AlmeidaMestre e Doutor em Filosofa pela USP.

    Proessor de Direito Penal e Processual Penal nos cursos deGraduao e Ps-graduao em Direito da PUC-PR.

    Advogado.

    Mentes perigosas na academia:sobre plgios,responsabilidades, diagnsticos e estigmas(*)

    Salo de Carvalho

    Os psicopatas so os vampiros da vida real(...).Podemos consider-los

    autnticas criaturas das trevas, possuem um extraordinrio poder de

    nos importunar e de nos hipnotizar com o objetivo maquiavlico de

    anestesiar nosso poder de julgamento e nossa racionalidade. Com

    histrias imaginrias e falsas promessas nos fazem sucumbir ao seu jogo

    e, totalmente entregues sorte, perdemos nossos bens materiais e somos

    dominados mental e psicologicamente.

    Tenha absoluta certeza: o problema so eles. So vampiros humanos

    ou, se preferir, predadores sociais. Eu adoraria dizer que encontr-los

    por a algo raro e improvvel, mas se assim eu o zesse, estaria agindo

    como um deles: mentindo, omitindo a verdade, impossibilitando-o de se

    precaver contra as suas maldades e perversidades (Silva, 2008: 42).

    1. A psiquiatra, autora dos best-sellersMentes perigosas, Mentes

    ansiosas e Bullying: mentes perigosas na escola ttulo que inspiraeste artigo , est sendo acusada de plgio. A originalidade de vrias

    das suas obras foi contestada na Justia por colegas investigadores

    nas reas da Psiquiatria e Neurocincias. Isso signica, em termos

    jurdico-penais, que existe contra a autora, consultora da roteirista

    Glria Perez para construo de personagens psicopatas protagonistas

    de soap operas nacionais, uma imputao de crime contra a propriedade

    intelectual (violao de direitos do autor, art. 184 do Cdigo Penal).

    Segundo reportagem daFolha de S. Paulo, o livroMentes ansiosas

    foi retirado do mercado a partir de deciso judicial que, em sede liminar,

    concluiu: a anlise das duas obras revela semelhanas notrias, sendo

    que ambas apresentam diversos excertos longos com praticamente o

    mesmo contedo, simplesmente com alteraes no estilo da escrita

    (Folha de S. Paulo, 01.03.2013).

    A tentao de fazer um diagnstico da autora a partir dos elementos

    trazidos pela reportagem grande, confesso.

    Seria possvel, utilizando a escala PCL-R (Hare Psychopathy Checklist

    Revisited) desenvolvida por Robert Hare para anlise de transtornos de

    personalidades antissociais (TASP), utilizada pela autora em seu estudo

    Mentes perigosas: a psicopatia mora ao lado ,(2) dizer que Ana Beatriz

    (1.) altamente sedutora ao apresentar, em palestras, entrevistas e aulas,

    as ideias desenvolvidas em seus livros; que (2.) desenvolveu uma grande

    autoestima a partir da popularizao das suas obras; que, no entanto, (3.)

    apresenta um grau elevado de mentira (mentira patolgica) ao sustentar

    como as suas pesquisas de outros pesquisadores, situao que (4.) indiciaria

    elementos notrios de esperteza e manipulao; que (5.) inegvel a falta

    de remorso e de culpa da autora, o que seria possvel comprovar na reiterada

    negao do fato (plgio), ou seja, que no demonstraria qualquer tipo de

    arrependimento pela usurpao de obra alheia; que (6.) apresentaria sinais

    de supercialidade emocional ao persistir no uso de trabalhos de terceiros

    mesmo aps as denncias (inmeras obras so acusadas de apropriao

    de trabalhos alheios, segundo a reportagem), fato que (7.) revelaria um

    nvel alto de insensibilidade e de falta de empatia; e, sobretudo, que (8.)

    a autora falha em aceitar a responsabilidade decorrente dos seus erros.

    No h na reportagem qualquer dado sobre a infncia de Ana Beatriz,

    sugerindo a prtica de agresses contra animais. Mas segundo os dados

    fornecidos pelo peridico, este seria o nico item da escala 1 do PCL-R em

    que haveria alguma espcie de dvida quanto aos critrios para denio

    de uma personalidade marcada pelo narcisismo agressivo.

    Alm disso, seria possvel perceber na acusada dos sucessivos crimes

    contra a propriedade intelectual alguns sinais de estilo de vida socialmente

    desviante (escala 2), como (1.) comportamento parasitrio mediante a

    manuteno do seu status em decorrncia do trabalho dos seus manipulados

    (autores plagiados); (2.) incapacidade de enxergar as consequncias dassuas aes no futuro (processos criminal e civil de responsabilizao);

    (3.) impulsividade; (4.) irresponsabilidade.

    Registro, porm, para que nenhuma dvida exista acerca da ironia do

    artigo, que a livre manipulao desta escala, no caso Ana Beatriz, serve

    apenas como uma metfora, uma espcie de licena cientca para tratar

    de temas recorrentes (diagnsticos, estigmas e responsabilidades) nesta

    complexa relao entre os campos ius epsi. Deixo explcito, portanto,

    desde o princpio, que no acredito na pertinncia tica e na validade

    cientca destas escalas de medio do mal, fundamentalmente

    porque entendo que este tipo de tcnica opera a partir de perspectivas

    causais-deterministas e essencialistas, pouco adequadas aos padres

    epistemolgicos da contemporaneidade. Ademais, fundamental referir

    que, assim como qualquer outra perspectiva cientca, esta tcnica

    carrega e sustenta um projeto poltico (no caso um projeto poltico-

    criminal) muito bem denido e que produz, na atualidade, um volumeinominvel de pessoas vulnerveis criminalizao, tanto pela excluso

    formal em crceres e em manicmios, quanto pela excluso simblica

    que se concretiza no cotidiano atravs dos estigmas e preconceitos.

    2. A tentao de propor uma avaliao que permita perceber na autora

    atitudes insensveis voltadas exclusivamente obteno de status, poder

    e prazer (traos indicativos de uma personalidade antissocial), a partir

    dos dados colhidos pela reportagem, decorre do fato de Ana Beatriz

    atuar exatamente dessa forma em inmeras entrevistas. Em vrias

    oportunidades, sobretudo em programas de grande audincia, a acusada

    tem realizado diagnsticos de personalidades nocivas, pessoas

    incapazes de ter afeto, predadores da vida real, personalidades

    ms em sua essncia nesse sentido, por exemplo, conferir os

    programas Happy Hour (GNT, 05.11.2008); Sem Censura (TVE,

    06.11.2008); Alternativa Sade (GNT, 01.04.2009); Mais Voc

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    (Globo, 14.03.2011), todos disponveis na web. Nos shows televisivos

    mencionados, a psiquiatra, em inmeras oportunidades, diagnostica

    pessoas a partir de elementos genricos narrados pelos ncoras ou pelos

    jornalistas. Aps a narrativa, a expertrealiza o enquadramento do sujeito

    idealizado nas categorias de psicopatia leve, moderada e severa.

    Todavia, neste ponto creio importante no avanar na irnica e

    metafrica propositura de um diagnstico inclusive porque no sou

    prossional da rea e seguir o alerta da prpria Ana Beatriz de que sejam

    cuidadosas quaisquer avaliaes precipitadas, notadamente porque o PCL

    uma complexa ferramenta cuja utilizao clnica somente deve ser feita

    por prossionais ou servios qualicados (...); e que muitas pessoas

    podem ser sedutoras, impulsivas, pouco afetivas ou at mesmo terem

    cometido atos ilegais, mas nem por isso so psicopatas (Silva, 2008: 68).

    A propsito Hoenisch, Pacheco e Cirino demonstram o equvoco

    que o de julgar-se capaz de falar (analisar) sobre um discurso que

    no se escutou, no caso do produzido pelo sujeito acusado. Assim,

    indagam os autores, como podemos, na condio de (re)produtores

    de um conhecimento que se busca legtimo acerca do humano, falar

    sobre um caso a partir de notas de jornais, ou fragmentos de entrevistas

    televisivas? (hoeniSch, Pacheco & cirino, 2009: 86).

    Nesse sentido, para alm do extremo cuidado no uso desta

    ferramenta de preciso questionvel, entendo que propor um diagnstico

    de Ana Beatriz representaria uma inominvel ofensa tica porque no justicvel, sob hiptese alguma, que algum seja avaliado, rotulado e

    exposto publicamente , e constituiria um grave equvoco dos pontos de

    vista terico e metodolgico. Do ponto de vista conceitual, o conjunto

    de erros refere-se dubiedade das categorias utilizadas para enquadrar o

    comportamento desviante; do ponto de vista metodolgico, diz respeito

    forma tcnica para apreender este contedo altamente malevel.

    3. A primeira questo diz respeito aos equvocos tericos. No diz

    respeito, portanto, aos critrios utilizados pelo expert para aferir se o

    sujeito sedutor, esperto, manipulador, insensvel, supercial

    emocionalmente e impulsivo ou se apresenta ausncia de remorso,

    incapacidade de culpa, falta de empatia, comportamento

    parasitrio; mas ao signicado e aos limites na interpretao dessas

    categorias (anlise conceitual).

    A anlise dos critrios expostos nas escalas do tipo PCL-R critriosque so utilizados como referenciais em inmeras percias e laudos no

    processo penal (por exemplo, laudos criminolgicos, exames de cessao

    de periculosidade e avaliao de inimputabilidade) revela no apenas

    dubiedade e volatilidade conceituais como possibilita julgamentos

    marcadamente morais que acabam por substituir valoraes de fatos

    por juzos de valor indemonstrveis (por exemplo, seduo, esperteza,

    manipulao e insensibilidade afetiva). Nota-se, ainda, que o contedo

    de muitas destas categorias se confunde ou permite uma dupla (ou tripla)

    valorao do mesmo elemento de fato (bis in idem) o fato de o sujeito

    no admitir o erro, por exemplo, pode ser considerado um indcio de

    que insensvel, mas, ao mesmo tempo, permite aferir que supercial

    emocionalmente e incapaz de culpa, circunstncia que produz, sob uma

    mesma base emprica (inadmissibilidade do erro), valoraes mltiplas

    na mesma escala de avaliao.

    Outrossim, se tais valoraes so possveis (cabveis) no mbito

    da Psiquiatria e da Psicologia ortodoxas (positivistas), em termos

    jurdico-processuais so invlidas em decorrncia do seu contedo

    moral (limite material) e da impossibilidade de refutabilidade e de

    exerccio do contraditrio (limite processual). Nos termos expostos por

    Ferrajoli (1998), uma prova processual somente vlida se passvel de

    refutao emprica, ou seja, quando baseada em fatos e no em juzos

    ou impresses. A valorao judicial deve ser feita, portanto, a partir de

    dados concretos e no realizada sobre outras valoraes (metavalorao

    ou valorao de valorao). Ademais, os fatos a serem analisados devem

    ter estreita relao (nexo de causalidade) com o fato imputado (no caso, o

    delito). Por este motivo, na novela de Camus (1991), Meursault deveria ter

    sido julgado exclusivamente pelo assassinato do rabe e no pelo fato de

    no ter chorado no enterro da me. Do contrrio, estar-se-ia legitimando

    um modelo de Direito Penal do autor, vedado nos sistemas democrticos

    de Direito Constitucional (carvalho, 2008; carvalho, 2013).

    Determinadas valoraes (juzos) so processualmente invlidas nos

    modelos de Direito Penal do fato porque impedem que os argumentos

    sejam empiricamente refutados (contraditados), exatamente por

    serem sustentadas em hipteses e no em dados objetivos. Tome-se,

    por exemplo, os casos de atribuio de insensibilidade moral,

    esperteza ou seduo a determinada pessoa. Qualquer armao

    (positiva ou negativa) acerca dessas imputaes decorre muito mais de

    um valor atribudo pelo intrprete, sempre a partir do seu cdigo moral,

    do que propriamente da anlise de dados relativamente objetivos que

    possam ser confrontados com outros elementos empricos. No por

    outra razo vedado na instruo penal que a testemunha manifeste

    suas apreciaes pessoais, salvo quando inseparveis da narrativa do

    fato (art. 213 do Cdigo de Processo Penal).

    No entanto, no campo jurdico-penal, em inmeras situaes (laudos

    na execuo das penas e das medidas de segurana, por exemplo), as

    apreciaes dos experts das reas psi, materializadas no processo de

    interpretao e de atribuio de signicado do contedo destas categorias

    abertas, ingressam judicialmente como argumentos de autoridade.

    A qualidade de percia tcnica possibilita, pois, em vrias situaes

    processuais, que determinados juzos (morais) enunciados pelos experts

    sejam reconhecidos como prova cientca. Trata-se, porm, de um

    procedimento de manipulao com a nalidade de validao de umaprova invlida. Invlida porque se estas mesmas categorias de anlise

    (categorias psiquitricas) integrassem tipos penais incriminadores

    (elementares tpicas), dicilmente subsistiriam a um rgido controle de

    constitucionalidade, exatamente em razo da sua vagueza, ambiguidade

    e impreciso (tipos penais lacunares e contraditrios). Assim, o que se

    h em termos jurdicos uma anlise de circunstncias extratpicas e de

    elementos acerca da individualidade/identidade do acusado, o que, em

    decorrncia do fato de estarem para alm dos horizontes do tipo penal

    imputado, no podem ser valorados sob pena de ofensa aos princpios da

    legalidade penal e da secularizao do direito. No demasia lembrar

    que o Direito Penal, nos Estados Democrticos de Direito, responsabiliza

    as pessoas por fatos que ofendem bens jurdicos palpveis (Direito Penal

    do fato); no criminaliza ou pune estados ou condies pessoais (Direito

    Penal do autor) (carvalho, 2008; carvalho, 2013).

    4. A segunda questo diz respeito ao equvoco metodolgico,

    normalmente perceptvel no fato de grande parte das pesquisas sobre

    comportamento criminal ter como objeto de investigao grupos

    previamente selecionados como criminosos lembre-se, por exemplo,

    da proposta de pesquisa neurolgica com adolescentes em conito com

    a lei no Rio Grande do Sul h alguns anos.

    Ao operar sobre um grupo previamente selecionado (criminalizado)

    mesmo havendo estudo e aplicao das mesmas escalas em populaes de

    controle, ou seja, em grupo de indivduos considerados no delinquentes ,

    o resultado desta escolha metodolgica acaba sendo inuenciado por

    uma varivel que pode ser denida como profecia que se autocumpre

    (self-fulllling-prophecy), na tradicional construo de Lemert (1967) e

    Schur (1971), quando lanadas as bases do paradigma do etiquetamento

    (labelling approach). Neste cenrio de eleio prvia da populao

    delinquente, o pesquisador j parte de uma hiptese consolidada: o objetode investigao um criminoso; ou o criminoso um psicopata.

    Assim, cabe ao expertreconstruir a histria de vida do investigado e

    colher aqueles elementos parciais que apontam e comprovam o ato nal

    (crime). Trata-se, portanto, sempre de um diagnstico retrospectivo:

    a partir de uma hiptese (o sujeito criminoso ou o criminoso um

    psicopata), so cuidadosamente selecionados eventos da sua vida que,

    primeiramente, indiciam ou sugerem, e, posteriormente, comprovam

    aquele comportamento criminal (neste sentido, conferir hoeniSh, 2002;

    Pacheco, 2011). Por outro lado, a populao de controle em pouco

    auxilia na compreenso da hiptese. Pelo contrrio, atua sempre como

    um instrumento ou uma varivel de comprovao da tese central, pois o

    mesmo procedimento realizado, s que em sentido inverso ou seja,

    so selecionados eventos parciais da vida das pessoas que compem o

    grupo de controle que indicam no serem criminosos e/ou psicopatas.(3)

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    Alm disso, por mais representativa que seja a amostra do grupo de

    pesquisa (amostra e populao de controle), as variveis acerca da

    seletividade do sistema punitivo e das cifras ocultas expostas pela

    criminologia crtica sempre marcaro uma diferena radical entre as

    formas de interpretao do fenmeno: o foco na criminalidade como

    um dado da natureza (paradigma etiolgico, criminologia ortodoxa);

    a anlise da criminalizao como uma construo poltico-criminal

    (paradigma do conito, criminologia crtica).

    Em termos processuais penais, este diagnstico retrospectivo pode

    ser aproximado daquilo que Franco Cordero (1986) designa como

    primado das hipteses sobre os fatos, a forma mentis que caracteriza

    o estilo inquisitorial de reconstruo da verdade. Neste procedimento,

    o inquisidor arma previamente uma hiptese e depois reconstri ou

    manipula os dados (provas, eventos ou circunstncias) com o objetivo

    da sua comprovao. Assim, a profecia se autocumpre, mas de forma

    inversa; no do presente para o futuro, mas de determinado passado para

    o presente (e, logicamente, em momento posterior, para o futuro, em

    termos de periculosidade).

    Jock Young (2002) denomina esta tcnica de excluso de

    essencializao do crime e do criminoso. Toda a histria de vida do

    sujeito interpretada como um momento preparatrio do grande evento

    que o crime; momento de regresso atvica ao estado de barbrie que

    o criminoso no conseguiu superar e atingir a maturidade civilizatria(carvalho, 2013). A essencializao aprisiona, portanto, tanto o passado

    (que apenas um momento preliminar) quanto o futuro (que vive da

    expectativa da repetio) do desviante. A no repetio apenas um

    estado de ebulio, pois a potncia (delitiva) inexoravelmente ser

    transformada em ato. Se a recidiva no se manifestar, decorrncia da

    ausncia de tempo suciente para apotentia criminalis emergir.

    5. A falha mais grave, porm, em todo este procedimento de anlise

    e etiquetamento de mentes perigosas, a de natureza tica, pois o

    pesquisador que opera esta tcnica aniquila a pessoa; substituindo a

    sua identidade pelo rtulo inextirpvel do sujeito perigoso. Assim,

    concretizada a essencializao, a leitura da histria de vida do sujeito e

    a expectativa quanto ao seu comportamento futuro so reduzidas a um

    estigma xo e imutvel que o aprisiona: o crime. O sujeito anulado,

    subsistindo apenas a imagem idealizada no rtulo (ou no dado estatstico,

    se a preocupao for restrita lgica gerencialista).

    Exatamente por isso no eticamente justo e cienticamente vlido

    aplicar contra Ana Beatriz esta tcnica de excluso e de aniquilamento

    do ser. A autora, como todo mundo, merece ser preservada neste

    momento de fragilidade e somente poder ser responsabilizada, civil

    ou criminalmente, aps enfrentar um devido processo, respeitados o

    contraditrio, a ampla defesa e, sobretudo, a presuno de sua inocncia.

    No obstante, ao nal, o que interessa ao campo jurdico para aferir

    responsabilidade pelo crime a (in)existncia de provas concretas de que

    Ana Beatriz se apropriou do trabalho intelectual dos seus colegas. Nada

    mais. Sobretudo porque no deve inuenciar na responsabilizao ou

    na punio o fato de Ana Beatriz no ter derramado lgrimas no velrio

    de sua me. Metfora que pode ser concretizada no sensacionalismo,

    na virulncia e na agressividade com a qual a acusada, em seus textos

    e entrevistas, se refere, invocando pnicos morais queles sujeitos querotula como vampiros da vida real ou criaturas das trevas.

    Referncias BibliogrcascaMuS, Albert. O estrangeiro. 3. ed., Rio de Janeiro: Record, 1999.

    carvalho, Salo.Antimanual de criminologia. 5. ed., So Paulo: Saraiva, 2013.

    _______.Pena e garantias. 3., ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

    cordero, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986.

    ferrajoli, Luigi.Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. 5. ed., Roma:Laterza, 1998.

    hoeniSch, Julio. Div de procusto: critrios para a percia criminal no

    Rio Grande do Sul. Dissertao (Mestrado) apresentada ao Programa dePs-Graduao em Psicologia da PUCRS, 2002.

    _______; Pacheco, Pedro; cirino, Carlos. Transgresso, crime, neurocincias:impasses aos saberes da psicanlise?Estudos de Psicanlise, n. 32, 2009.

    leMerT, Edwin. Human deviance, social problems and social control.New Jersey: Prentice-Hall, 1967.

    Morana, Hilda. Identicao do ponto de corte para a escala PCL-R(Psychopathy Checklist Revised) em populao forense brasileira .Tese (Doutorado) apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psiquiatriada USP, 2003.

    Pacheco, Pedro. Pesquisas do crebro e psicopatias: a potencialidade docriminoso justicada por saberes cientcos. Tese (Doutorado) apresentadaao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da PUC-RS, 2011.

    Schur, Edwin. Labeling Deviant Behavior: its sociological implications.New York: Harper & Row, 1971.

    Silva, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado.Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

    YounG, Jock.A sociedade excludente: excluso social, criminalidade e diferenana modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

    Ns:

    (*) Agradeo a Carolina dos Reis, Felipe Oliveira, Julio Hoenish, Lilian Reolon,Marcelo Mayora, Mariana Garcia, Mariana Weigert e Renata Costa pelaleitura e pelas contribuies.

    (2) Com esse instrumento [PCL-R], o diagnstico da psicopatia ganhouuma ferramenta altamente convel que pode ser aplicada por qualquer

    prossional da rea da sade mental (...).

    O PCL examina de forma detalhada diversos aspectos da personalidadepsicoptica, desde os ligados aos sentimentos e relacionamentosinterpessoais at o estilo de vida dos psicopatas e seus comportamentosevidentemente antissociais (transgressores) (Silva, 2008: 67).

    (3) Veja-se, por exemplo, a seleo da amostra e do grupo de controle deuma das pesquisas de validao da escala PCL-R no Brasil: os sujeitosde experimentao foram avaliados no Instituto de Medicina Social e de

    Criminologia do Estado de So Paulo (IMESC); ou estavam cumprindopena na Penitenciria do Estado de So Paulo; no centro de ObservaoCriminolgica (SP); Casa de Custdia de Taubat (SP), Hospital deCustdia Andr Teixeira Lima (Cidade de Franco da Rocha, SP) ou aindana Penitenciria de Ita (SP) (Morana, 2003: 77).

    Todos estes indivduos cumpriam pena em diversos presdios no Estadode So Paulo, exceto um deles, que foi selecionado em ambulatrio (...).Uma amostra de 30 indivduos sem antecedentes criminolgicos ou

    psiquitricos, que no preencheram critrios para TAS, foi usada comocontrole (Morana, 2003: 78).

    Foram selecionados [para a populao de controle] sujeitos conhecidosda autora e da psicloga auxiliar da pesquisa, assim como parentes eamigos que, devido ao longo convvio (em mdia 10 anos), sabia-se da vida

    pregressa isenta de transtornos, quer sejam psiquitricos, psicolgicos ouda esfera judicial (negativos para registro criminal no Frum CriminalCentral Mario Magalhes) (Morana, 2003: 82).

    Salo de CarvalhoDoutor em Direito (UFPR).

    DirEtoria ExECutiva

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