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    Cadernos de Letras da UFF Dossi: Literatura, lngua e identidade, no 34, p. 139-148, 2008 139

    IB SEN: CLSSICO E MODERNO

    Karin Volobuef

    RESUMO

    A contribuio de Ibsen ao teatro vista hoje comouma das mais substanciais. Ele tanto empregou tc-nicas da tragdia antiga, como incorporou traos doNaturalismo; tanto explorou o indivduo em con-fronto com seu meio social, como penetrou nos me-andros dos sonhos e iluses subjetivos. Nossa dis-cusso pretende destilar as marcas mais peculiaresde algumas peas desse verdadeiro clssico damodernidade.

    PALAVRAS-CHAVE: Henrik Ibsen; Casa de bonecas- o pato selvagem.

    Henrik Ibsen (1828-1906) descrito por Otto Maria Carpeaux1

    como o maior dramaturgo do sculo XIX. MalcolmBradbury, por seu turno, afirma que Ibsen o dramaturgo

    que, mais do que qualquer outro escritor, dominou o incio do movi-mento modernista2.

    Iniciando sua produo com peas calcadas no Romantismo a pri-meira foi Catilina, publicada em 1850 Ibsen enveredou pelo Realismo echegou mesmo a tornar-se verdadeiro catalisador do Naturalismo (pode-se dizer que Ibsen significou para o teatro o que Zola significou para oromance naturalista). Ibsen acolheu em seus dramas os conflitos da socie-dade e do indivduo, retratando com acurcia os problemas que percebia

    1 CARPEAUX, Otto Maria. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, Henrik. Seis dramas.Peas traduzidas por Vidal de Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1960. p. 31.

    2 BRADBURY, Malcolm. Henrik Ibsen. In:_____. O mundo moderno. Dez grandes escrito-res. Traduo de Paulo Henriques Britto. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 61.

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    sua volta. Mais do que isso, abraou as concepes mais inovadoras desua poca, explorando as noes de hereditariedade e supremacia do am-biente sobre o indivduo. Mas Ibsen no parou a: imbuiu-se das tendnci-as simbolistas e impressionistas, embrenhando-se pelos meandros de umaarte mais sutil e menos enraizada no contexto imediato. Por fim, ao lon-go de suas 25 peas (das quais a ltima Quando ns os mortos despertamos, de1899), alcanou uma riqueza esttica que no se deixa limitar por qual-quer movimento estanque. Ibsen desenvolveu uma arte que conjuga vari-

    ados perfis estticos, visto que foi essencialmente inovadora equestionadora. Segundo Bradbury, Ibsen comeou a escrever

    numa poca em que no havia uma dramaturgia nacionalna Noruega e a tradio teatral europia estava agonizante;em que as nicas peas importantes eram dramas romnticosfeitos para serem lidos e no montados. [...] Ibsen dominoue transformou toda a concepo de teatro moderno, almde liderar uma revolta de idias modernas. Quando morreu,o teatro era uma arte importante, altura da poesia e doromance. Nenhuma outra figura do movimento modernomodificara no apenas o esprito das artes mas todo umgnero artstico. 3

    Para chegar a esse ponto, Ibsen enfrentou uma oposio ferrenha. Aencenao de suas peas foi acompanhada de protestos horrorizados queas taxaram de indecentes e depravadas. E quando os crticos no seguiampor esse caminho, censuravam seu descumprimento das convenes tea-trais. Tanto uma linha como a outra fez-se ouvir inclusive na recepo deIbsen no Brasil. Conforme nos relata Joo Roberto Faria4, uma crticapublicada noJornal do Brasil, em 1895, acusou Ibsen de defender o amorlivre em Os espectrosapenas porque uma personagem (sra. Alving) hesitaem contar ao filho (Osvaldo) que ele tem uma meia-irm (Regina). Poroutro lado, a encenao de Casa de bonecas, em 1899, levou Artur Azevedoa expressar sua insatisfao no jornalA notcia, apontando para vrios as-pectos que toma por defeitos da pea: considerou excntrica a cena (Se-gundo Ato) em que o Dr. Rank revela a Nora a gravidade de sua doena e

    3 Ibidem, p. 62.4 FARIA, Joo Roberto. Idias teatrais. O sculo XIX no Brasil. So Paulo: Perspectiva,

    2001. (Coleo Textos, 15). p. 237.

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    que lhe falta pouco de vida; avaliou como recurso dramtico ultrapassadoa cena em que Nora dana a tarantela para adiar o momento de revelaoda verdade; censurou o desfecho inesperado, pois ele no teria sido devi-damente preparado pelos atos anteriores; e acusou a pea de no ser com-preensvel para o pblico comum5. Tambm crticos brasileiros favor-veis a Ibsen lamentaram que suas peas no seguiam o padro usual, con-forme se v nas palavras de Joo do Rio:

    As suas peas no constituem verdadeiras composies

    teatrais.

    H em todas elas uma verdadeira despreocupao dasqualidades de autor dramtico, do escritor que tem de serapreciado e discutido num meio convencional como oteatro.6

    Em relao a essas crticas, vale a pena dizer que no apenas o Dr.Rank de Casa de bonecas(1879), mas diversos outros personagens de Ibsen,como Osvaldo de Os espectros(1881) e Hedvig de O pato selvagem(1884) sovtimas da sfilis, doena que teriam herdado de seus pais, culpados porlevarem vidas dissolutas, entregando-se ao abuso do lcool e vida se-

    xual desregrada. Conforme j enfatizou Anatol Rosenfeld7

    , embora Ibsentenha sido taxado de imoral e at pornogrfico, suas peas tm na ver-dade um carter moralizante. De um lado, esse trao de Ibsen enfraque-cido pelo seu vis positivista e cientificista usual na poca, e hojeultrapassado. De outro, porm, mantm sua fora na medida em queest integrado impiedosa luta de Ibsen contra as hipocrisias sociais: asfalhas, injustias e incoerncias da sociedade encontram-se assentadassobre as fraquezas e insuficincias dos indivduos. Ibsen no poupounada nem ningum.

    Quanto dana da tarantela por Nora, Joo do Rio equivocada-mente serviu-se dela para ver na personagem de Ibsen um tipo comple-

    xo de histrica com o desequilbrio nervoso da mulher do norte, chicote-

    5 Ibidem, p. 242-243.6 Ibidem, p. 236.7 ROSENFELD, Anatol. Navalha na nossa carne. In: ______. Prismas do teatro. So Paulo:

    Perspectiva, So Paulo: EDUSP, Campinas: EDUNICAMP: 1993. (Debates, 256). p. 143-144.

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    ada pelo vento glacial8 Tal interpretao de Nora j rejeitada por JooRoberto Faria, para quem Joo do Rio aplicou indevidamente um estere-tipo corrente na literatura naturalista, mas que no adequado persona-gem, pois seu nervosismo causado por um perigo concreto e iminente.

    Mas Wolfdietrich Rasch9, em seu ensaio A dana como smbolo devida no drama por volta de 1900, vai ainda mais longe: para ele, Noradana desesperadamente no apenas por que sua felicidade conjugal estpor um triz e ela quer manter o marido longe da caixa postal (onde se

    encontra a carta reveladora), mas tambm por que seus movimentos fre-nticos indicam um impulso de libertao interna. Segundo a anlise deRasch, o empenho do marido, Helmer, em conter a dana e torn-la maislenta e controlada d continuidade ao processo de infantilizao e subju-gao a que Nora esteve submetida durante toda a sua vida. Dessa vez,porm, ao invs de aceitar as diretrizes de Helmer (que se afasta do traba-lho e se dedica a ensaiar sua esposa), Nora afirma que no consegue dan-ar de outro jeito. Agitando-se cada vez mais rpido at ficar sem flegoe com o penteado desfeito ela d a impresso de danar como se suavida dependesse disso10. Sua dana, mais do que meramente postergar aleitura de uma carta pelo marido, torna-se assim um gesto libertador, que

    desprende, ainda em um nvel no verbal, as amarras que sempre a manti-veram presa e a boneca ou marionete passa a mexer-se conforme seusprprios impulsos, no se limitando a repetir os passos que seu adestra-dor quer lhe impor. Dessa forma, a tarantela serviria tambm de preparopara o desfecho, no qual a ex-marionete abandona definitivamente a casade bonecas e vai viver sua prpria individualidade.

    Para Rasch11, Nora em 1879 foi a primeira danarina de uma fileirade vrias outras que logo a seguiram, como a Salom (da pea homnima,que, alis, Richard Strauss musicou em 1894) de Oscar Wilde; a Lulu (deO esprito da terra, 1895) de Frank Wedekind (musicada por Alban Berg); a

    8 FARIA, op. cit, p. 238.9 RASCH, Wolfdietrich. Tanz als Lebenssymbol im Drama um 1900. In: ______. Zur

    deutschen Literatur seit der Jahrhundertwende. Gesammelte Aufstze. Stuttgart: J. B. MetzlerscheVerlagsbuchhandlung, 1967. p. 62-63.

    10 IBSEN, Henrik. Casa de bonecas. Drama em trs atos. Traduo de Cecil Thir. So Paulo:Abril Cultural, 1976. (Teatro Vivo). p. 119.

    11 RASCH, op. cit., p. 61.

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    Elektra (da pea homnima, 1903) de Hugo von Hofmannsthal; Pippa(de E Pippa dana, 1906) de Gerhart Hauptmann. A dana teria aqui a fun-o de ajudar a criar a conscincia moderna, uma forma especfica de vere agir, prpria do sculo XX que despontava.

    Assim como essa poca presencia a alvorada da pintura abstrata, adana tambm se remodelou, buscando novas formas de expresso. IsadoraDuncan a musa dessa expanso de possibilidades, pelas quais os passosdo bal convencional deram lugar a movimentos que seriam espontneos

    e autnticos, recuperando a expressividade primitiva do ser humano12.

    Essa, no fundo, a idia de Eric Bentley13 ao afirmar que:

    Como pensador e artista, Ibsen representa o esprito dohomem lutando por seus direitos como tambm por suaexistncia em um mundo mecanizado, embora o Ibsen,geralmente mal-interpretado como materialista, prosaico emanipulador, parea ser um produto dcil dessa mecanizao.

    Bentley14 v as peas de Ibsen como tragdia[s] em trajes moder-nos. De fato, em Casa de bonecas, por exemplo, diversos requisitos datragdia clssica ou neoclssica parecem, primeira vista, terem sidocumpridos: ao centrada na protagonista Nora; nmero de persona-gens, espao e tempo concentrados; equilbrio e simetria na composi-o de cenas e atos, havendo dois momentos de maior tenso (a tarantela,que funciona como peripcia, e abandono do lar por Nora guisa dedesfecho trgico). Alm disso, a herona agiu estritamente conformesuas crenas e valores pessoais: Nora falsificou uma assinatura, sim, maspara salvar ou resguardar entes queridos (pai e marido) em um momen-to de perigo (doena).

    Contudo, certos aspectos rompem de forma contundente com a for-ma clssica. Se no teatro grego o momento de reconhecimento fundamental,

    podendo servir para impulsionar a peripcia, em Casa de bonecasa tarantela

    12 Ibidem, p. 63-64.13 BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Um estudo da dramaturgia nos tempos mo-

    dernos. Traduo de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1991.p. 169.

    14 Ibidem, p. 154.

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    representa o pice da mentira, do disfarce, do mascaramento. Quanto ao, ela em boa medida desmembrada pelo ncleo paralelo que se criae ganha volume com o reencontro de Krogstad e Sra. Linde e que, para-doxalmente, prepara um final feliz (mediado pela devoluo da promiss-ria). Mas esse final feliz no ocorre por que, na verdade, a pea no sobreNora, mas sobre acasa de bonecas. Ou seja, no trata simplesmente do desti-no individual da herona Nora, mas tambm da problemtica social maisampla do materialismo, das falsas aparncias, das injustias e desigualda-

    des que permeiam o espao pblico e inclusive o espao das relaesfamiliares. Com esse campo temtico, a obra de Ibsen desengata-se datragdia clssica, e se filia ao gnero da tragdia burguesa.

    Na opinio de Gero von Wilpert15, a tragdia burguesa transita portrs caminhos temticos: a burguesia em combate contra a opresso pelanobreza (conforme exemplificam tambm as peas Emilia Galotti, de Lessing,e Os bandoleiros, de Schiller); os conflitos dentro da prpria burguesia (pers-crutados por Ibsen, Bernhard Shaw, etc.); e o choque da burguesia com aclasse trabalhadora, que reivindica melhores condies de vida (em cujobojo se insere o teatro pico de Bertolt Brecht).

    No caso de Ibsen, de acordo com a interpretao de EliseDosenheimer16, em O drama social alemo de Lessing a Sternheim, estamos diantede um dramaturgo destitudo de quaisquer intenes polticas, socialistasou liberais. Enquanto pensador e crtico, no entanto, Ibsen dedicou-se acolocar mostra as incongruncias da sociedade burguesa: suas hipocrisi-as, preconceitos e convencionalismos.

    Em O pato selvagem, por exemplo, essa exposio vai sendo preparadadesde o incio. A primeira cena introduz uma srie de elementos de mist-rio que, como se fossem uma pesada neblina, insinuam erros e omissesdo passado. Assim, um rico industrial (Sr. Werle) oferece um jantar paraseu filho, que no via h cerca de quinze anos; treze lugares ocupados

    mesa parecem um prenncio de azar; um dos convivas esconde o rostoquando um velhote sai do escritrio e atravessa o salo porque a outra

    15 WILPERT, Gero von. Sachwrterbuch der Literatur. Aufl. Stuttgart: Alfred Krner, 1989.p. 129.

    16 DOSENHEIMER, Elise. Das deutsche soziale Drama von Lessing bis Sternheim. Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1989. p. 122.

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    porta estava trancada. Na opinio de Hans-Dieter Gelfert17, esses elemen-tos formam um conjunto que fazem lembrar uma histria policial, umahistria de crimes.

    Essa comparao no to forada quanto parece primeira vista:Gregers Werle (o filho) reencontra seu amigo de infncia, Hjalmar Ekdal,e comea nessa mesma noite a juntar os pedaos do quebra-cabea. Con-forme a neblina de segredos vai se dissipando, descobre um srdido cen-rio de falsidades e manipulaes. Seu pai enriqueceu custa da runa da

    famlia Ekdal, traiu e maltratou a esposa at sua morte, casou sua ex-amante grvida com o amigo de infncia do filho. Contudo, Werle Paino um vilo; apenas mais um elo de uma longa cadeia formada portoda a sociedade. Tal como em um romance policial, no qual cada perso-nagem poderia, em princpio ser o criminoso (e durante a investigaopolicial, um a um tratado temporariamente como suspeito nmeroum), em Ibsen todas as figuras do drama acabam colocando mostra assuas torpezas. Ningum escapa, nem mesmo o prprio Gregers que, aofinal, cego em sua fria corretiva, leva morte Hedvig, a filha de Hjalmar,que tem apenas quatorze anos. De uns o pecado a ambio desmedida,de outros, a fraqueza, a leviandade, o egosmo. Em Gregers, o radicalis-

    mo quase fantico com que se empenha por fazer valer a honra e probida-de. O anjo da justia revela-se um anjo da morte. Nesse contexto, o patoselvagem simboliza o carter ilusrio e enganador que permeia todas asligaes, sentimentos e gestos.

    A nica sada dessa armadilha encontrada pelo velho Werle e a Sra.Soerby, que tm a coragem de confessar abertamente um ao outro as suasfalhas e deslizes. Ao encararem a verdade de suas prprias vidas, conquis-tam a chance de uma relao baseada na compreenso mtua e na aceita-o de si mesmos e do outro. Nessa capacidade para o dilogo aberto epara o perdo, eles se assemelham a Krogstad e Sra. Linde de Casa debonecas, que tambm encontraram a redeno da mentira.

    E aqui que encontramos o aspecto moralizante de Ibsen. A solu-o que ele prope como capaz de redimir e sanar os pecados a verdade,a confisso aberta e franca dos erros, e o perdo!

    17 GELFERT, Hans-Dieter.Wie interpretiert man ein Drama?Stuttgart: Philipp Reclam, 1995,p. 137-138.

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    Mas essa verdade plena barrada na vida cotidiana por valores hip-critas, como o senso de dever e o respeito pela opinio alheia. Outroinimigo da verdade o materialismo desmedido que, de um lado, faz comque tudo e todos tenham um preo e estejam venda, e, por outro, tornaos indivduos dispostos a sacrificar qualquer coisa e qualquer pessoa parasatisfazer suas prprias ambies. Esses so, para Ibsen, os oponentes nos da verdade em si, mas da prpria naturezahumanados homens.

    Ibsen apresentou esse seu diagnstico em vrias peas. O cerne deCasa de bonecas, por exemplo, o problema da falsidade e dissimulao indicado j no ttulo , que afeta inclusive as relaes familiares e ocasamento. A dissimulao alimentada pela disputa por poder e di-nheiro, pelo jogo de interesses que d as cartas na sociedade. Junto como diagnstico, Ibsen apresenta tambm a soluo: a pea termina com apartida de Nora. Esse gesto, no entanto, tambm evidencia que o cami-nho rumo verdade exige coragem e firmeza: para tentar resgatar suaintegridade e firmar-se como pessoa adulta, Nora precisa abrir mo doconforto e segurana para enfrentar o desconhecido e incerto. A verda-de tem um custo.

    Em Os espectros, Ibsen retoma a mesma situao de Casa de bonecas, masdessa vez apresenta a opo inversa: a Sra. Alving dobra-se ao senso deresponsabilidade, curva-se perante a moral estabelecida e desiste de suaprpria paz e liberdade. O resultado nefasto: o sacrifcio que ela noteve foras para realizar no passado exigido dela no presente pela imola-o de seu filho, Osvaldo.

    A falncia da moral e dos costumes no poderia ser mais evidente: otexto culmina com um efetivo desmoronamento da casa de bonecas pois loucura e incndio varrem do mapa o lugar que o pastor Manderschama de casa de pecados. A Sra. Alving que fez tudo para manter asaparncias e no deixar transparecer aos olhos do mundo a verdadeira

    situao de seu casamento obrigada a reconhecer a inutilidade de seusesforos.

    A despeito dessa mensagem to devastadora, trata-se de uma peacuja estrutura formal das mais tradicionais: os trs atos passam-se emum mesmo aposento da casa dos Alving (unidade de espao); toda a aose desenrola durante um dia at o alvorecer da manh seguinte (unidade

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    de tempo); o retorno de Osvaldo traz de volta os espectros do passado eisso serve de elo entre os cinco personagens da pea (unidade de ao).Do ponto de vista da forma, a tradio mantida intacta; do ponto devista temtico, porm, a runa final aponta para uma imperiosa necessi-dade de reviso dos valores estabelecidos. Mas esse aparente paradoxoest a servio da construo esttica: o conservadorismo formal servede espelho e complementao ao conservadorismo da sociedade. Comoresultado, a simetria e o comedimento formais tornam ainda mais evi-

    dentes as irregularidades e desequilbrios que pululam por debaixo dasuperfcie.

    Na pea O pato selvagem, Ibsen deixa transparecer o mesmoinconformismo social que impregna as peas anteriores. E o animal queserve de ttulo representa simbolicamente a condio humana. Tendo sidoatingido por uma bala de caador e mergulhado at o fundo do mar, opato foi salvo da morte por um triz e, desde ento, mantido em umsto, onde vive em meio a coelhos e galinhas. O pato funciona no textocomo um elemento aglutinador e cheio de significados. Para comear,serve de metfora para o anseio do homem em libertar-se da masmorraem que as convenes o aprisionaram. Alm disso, simboliza ainda a soli-

    do humana, a falta de comunicao, a falncia de uma sociedade divididaentre caadores e caas.

    Ao lado do sentido social emerge em O pato selvagemuma constelaode temas e um modo de abordagem que se afasta claramente do perfilrealista e adentra os limites mais sutis da psique humana. Conforme aspalavras de Eric Bentley,

    De O Pato Selvagem(1884) em diante, Ibsen torna-se cada vezmais o que foi chamado de mstico significando [...]edificante embora ininteligvel. A verdade que [...] oNaturalismo torna-se menos a substncia e mais umamscara, que empregado um simbolismo complexo,astucioso para o pavor daqueles que esperam que osimbolismo seja puramente decorativo ou alegrico [...]. Aprimeira gerao dos filisteus, que era como Ibsendenominava homens como Manders [Os espectros], Kroll[Rosmerholm], ou Brack [Hedda Gabler], tentou abalar Ibsen comseu dio; a segunda gerao quase o matou com sua amizade.Deve-se voltar para as peas do ltimo perodo de Ibsen

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    para redescobrir um gnio torturado, introvertido,inteligente, repelente, oblquo e sutil.18

    A temtica do indivduo em confronto com seu meio social nodesapareceu da obra de Ibsen. Mas houve uma mudana de tom e umalargamento dos horizontes. Longe de perder de vista as incongrunciasda sociedade, ele conseguiu utilizar sua sensibilidade para penetrar nosmeandros da subjetividade, dos sonhos e das iluses pessoais.

    O leque de elementos artsticos e humanos coberto por sua obra extremamente amplo. Graas a isso, Ibsen no apenas um dos nomesmais consagrados da literatura norueguesa, mas da literatura dramticamundial. Embora sua obra tenha sido declarada ultrapassada nas primei-ras dcadas do sc. XX, logo em seguida, ainda nesse mesmo sculo, suacontribuio ao gnero dramtico foi reconhecida como uma das maissubstanciais. E hoje em dia no podemos pensar no teatro social europeusem pensar em Ibsen.

    Nesse sentido a leitura de peas como Casa de bonecas, Os espectrose Opato selvagempermite destilar algumas das marcas mais peculiares do teatrode Ibsen e evidenci-lo como um verdadeiro clssico da modernidade.

    ZUSAMMENFASSU

    Ibsens Beitrag fr das Theater wird heute alsgrundlegend erkannt. Er hat sowohl Techniken derTragdie des Altertums als auch Eigenschaften desNaturalismus aufgenommen; er hat sich sowohl mitdem Individuum im Konflikt mit der Umwelt alsauch mit der Subjektivitt der Trume und Illusionenauseinandergesetzt. Diese Eigenschaften seinesWerkes mchte ich analysieren unter dem

    Gesichtspunkt, dass Ibsen als eigentlicher Klassikerder Modernitt gelten kann.

    STICHWRTER: Henrik Ibsen; Das Puppenhaus Diewilde Ente.

    18 BENTLEY, op. cit., p. 160.