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Genealogia, âmbito e objecto da bioética * António Fernando Cascais Índice 1 Introdução 1 2 Condições de emergência da bioética 2 3 Âmbito e objecto da bioética 46 4 Referências bibliográficas 72 1 Introdução Na sua introdução à monumental Enci- clopédia de Bioética, cuja primeira edição data de 1978, Warren T. Reich definia a bioética como “o estudo sistemático da con- duta humana na área das ciências da vida e dos cuidados de saúde, na medida em que essa conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais” (Reich et al., 1982:XIX). A generalidade desta definição, embora possa ser suficientemente esclarece- dora quanto ao objecto da bioética, é também suficientemente leve para poder abrigar as diferentes perspectivas de outros tantos au- tores representativos desta área do conheci- mento, de uma maneira que de facto dissim- ula divergências acentuadas o bastante para que o objecto e o campo da bioética percam muito da estabilidade que aparentemente lhes era conferida pela definição inicial. De * Inicialmente publicado em: João Ribeiro da Silva, António Barbosa e Fernando Martins Vale, co- ords. et al., Contributos para a Bioética em Portugal. Lisboa: Centro de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa/Edições Cosmos: 47-136 resto, a própria evolução galopante deste campo, nas suas três décadas de existência, demonstra bem a instabilidade das definições e das ideias feitas, tanto no seu próprio inte- rior como por quem o perscruta de fora. A reedição do imenso repositório que é a Enci- clopédia de Bioética, em 1995, mas cujo pro- cesso remonta aos anos de 1985-87, mostra como e as entradas “Bioética”, a cargo de K. Danner Clouser (Clouser, 1982:115-127) e de Daniel Callahan (Callahan, 1995:247- 256), respectivamente na primeira e na se- gunda edições daquela, são bem ilustrati- vas de tal evolução: “Mesmo em 1985, pelo menos 50 por cento de todos os artigos da primeira edição necessitavam de significa- tiva revisão. À época em que realmente demos início ao projecto, em Janeiro de 1990, era claro que seria difícil haver um único tópico da edição original que tivesse ficado incólume às profundas mudanças não apenas na ciência, na técnica e na ética, mas até na maneira como são percebidos os problemas morais” (Reich et al., 1995:XIV). Deste modo, passados que eram quase vinte anos sobre a primeira edição, Reich passa a definir bioética como “o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo a visão moral, as decisões, a conduta e as políti- cas - das ciências da vida e da prestação de cuidados de saúde, que emprega uma variedade de metodologias éticas num meio

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Genealogia, âmbito e objecto da bioética∗

António Fernando Cascais

Índice

1 Introdução 12 Condições de emergência da bioética23 Âmbito e objecto da bioética 464 Referências bibliográficas 72

1 Introdução

Na sua introdução à monumental Enci-clopédia de Bioética, cuja primeira ediçãodata de 1978, Warren T. Reich definia abioética como “o estudo sistemático da con-duta humana na área das ciências da vidae dos cuidados de saúde, na medida emque essa conduta é examinada à luz dosvalores e princípios morais” (Reich et al.,1982:XIX). A generalidade desta definição,embora possa ser suficientemente esclarece-dora quanto ao objecto da bioética, é tambémsuficientemente leve para poder abrigar asdiferentes perspectivas de outros tantos au-tores representativos desta área do conheci-mento, de uma maneira que de facto dissim-ula divergências acentuadas o bastante paraque o objecto e o campo da bioética percammuito da estabilidade que aparentementelhes era conferida pela definição inicial. De

∗Inicialmente publicado em: João Ribeiro daSilva, António Barbosa e Fernando Martins Vale, co-ords. et al.,Contributos para a Bioética em Portugal.Lisboa: Centro de Bioética da Faculdade de Medicinada Universidade de Lisboa/Edições Cosmos: 47-136

resto, a própria evolução galopante destecampo, nas suas três décadas de existência,demonstra bem a instabilidade das definiçõese das ideias feitas, tanto no seu próprio inte-rior como por quem o perscruta de fora. Areedição do imenso repositório que é a Enci-clopédia de Bioética, em 1995, mas cujo pro-cesso remonta aos anos de 1985-87, mostracomo e as entradas “Bioética”, a cargo deK. Danner Clouser (Clouser, 1982:115-127)e de Daniel Callahan (Callahan, 1995:247-256), respectivamente na primeira e na se-gunda edições daquela, são bem ilustrati-vas de tal evolução: “Mesmo em 1985, pelomenos 50 por cento de todos os artigos daprimeira edição necessitavam de significa-tiva revisão. À época em que realmentedemos início ao projecto, em Janeiro de1990, era claro que seria difícil haver umúnico tópico da edição original que tivesseficado incólume às profundas mudanças nãoapenas na ciência, na técnica e na ética,mas até na maneira como são percebidos osproblemas morais” (Reich et al., 1995:XIV).Deste modo, passados que eram quase vinteanos sobre a primeira edição, Reich passa adefinir bioética como “o estudo sistemáticodas dimensões morais - incluindo a visãomoral, as decisões, a conduta e as políti-cas - das ciências da vida e da prestaçãode cuidados de saúde, que emprega umavariedade de metodologias éticas num meio

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interdisciplinar” (Reich et al., 1995:XXI),constituído com contributos de muitas dis-ciplinas académicas estabelecidas, entre asquais a filosofia, a teologia, a sociologia, aantropologia, o direito, a literatura, a medic-ina e as ciências da vida, mas que lhes abrenovas vias de investigação, ao mesmo tempoque lhes desafia concepções tidas por solida-mente adquiridas. Reich conclui que, quer seconsidere a bioética como um campo, quercomo uma disciplina constituída, o certo éque ela não se encontra ainda plenamenteconstituída. A nosso ver, o estado “nascente”de que Reich também fala a propósito dabioética (Reich et al., 1995:XX), imputando-o à diversidade de metodologias que interna-mente a retalham, deverá ser tido por perma-nente e, que não sejamos nisto mal interpre-tados, por desejavelmente permanente: nãoporque pretendamos fazer a apologia do im-passe ou da paralisia eventualmente resul-tante da irresolução de dilemas prementes,mas porque, porventura mais do que gerirou “solucionar” a crise das ciências e da re-spectiva regulação, será mister aprender aviver com ela, nela. Significa isto, no queà bioética concreta e “programaticamente”diz respeito, laborar contra o fechamento davocação de problematização e de question-amento que foram berço da bioética, contratoda a estabilização metodológica e concep-tual em soluções doutrinárias cristalizadas,ela sim paralizante e cinicamente irresoluta,e, em última análise, total, totalizante e total-itária.

2 Condições de emergência dabioética

Uma breve análise do período de gestação ou“pré-história” da bioética pode esclarecer-nos acerca da problematicidade que desdeas origens tem indelevelmente acompanhadoa evolução da bioética até aos dias de hoje.No entanto, essa problematicidade só poderáser claramente entendida do ponto de vistade uma genealogia, que não se reduz a umamera narrativa factual, das condições quepossibilitaram a emergência da bioética e asua autonomização como domínio específicodo conhecimento e da acção. Principiare-mos, por isso, em primeiro lugar, por umarevisão sumária dos autores que reflectiramsobre a questão, para, em seguida, analisar-mos as condições de emergência da bioéticana perspectiva genealógica. Warren T. Reichapontava três grandes razões para a emergên-cia da bioética: em primeiro lugar, o facto deque “as questões da bioética conquistaramo pensamento contemporâneo porque rep-resentam conflitos de primeira grandeza nocampo da tecnologia e dos valores humanosbásicos, precisamente aqueles que têm quever com a vida, a morte e a saúde” (Re-ich et al., 1982:XV), nomeadamente em vir-tude de “a introdução de modernas tecnolo-gias biomédicas, em especial desde os anoscinquenta, ter agravado algumas questõesantiquíssimas e ter levantado novos e sur-preendentes problemas - o prolongamento davida, a eutanásia, o diagnóstico pré-natal eo aborto, a experimentação humana, a en-genharia genética e as tecnologias reprodu-tivas, a manipulação do comportamento e apsicocirurgia, a definição de morte, o direitoà privacidade, a distribuição de recursos es-cassos e os dilemas da preservação da saúde

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ambiental” (Reich et al., 1982:XV). Em se-gundo lugar, haveria “um interesse intenso egeneralizado na bioética porque ela ofereceum estimulante desafio intelectual e moral”(Reich et al., 1982:XV), numa época emque são os próprios utensílios durante muitotempo usados para se lidar com os dilemasmorais que agora constituem objecto de con-trovérsia e em que os princípios e as pri-oridades éticas se encontram sob escrutíniosistemático. Em terceiro lugar, “o rápidocrescimento do campo da bioética tem sidofacilitado pela abertura ao trabalho multi-disciplinar que hoje caracteriza muitos es-tudiosos e instituições académicas, especial-mente em matérias que dizem respeito a as-pectos individuais e sociais do comporta-mento humano” (Reich et al., 1982:XV).

Por seu lado, H. Tristram Engelhardt, queviria a tornar-se numa das vozes mais es-cutadas da bioética, refere quatro factoreshistóricos e que são os vulgarmente men-cionados nas obras que se referem aos an-tecedentes da bioética: “1) grandes e rápidasmudanças tecnológicas que deram origem apressões no sentido de se reexaminarem ospressupostos subjacentes de práticas estab-elecidas (por exemplo, o advento da trans-plantação contribuiu para o interesse numadefinição de morte centrada no cérebro); 2)os custos crescentes da prestação de cuida-dos de saúde, que deram lugar a questõessobre a distribuição de recursos; 3) o con-texto abertamente pluralista em que os cuida-dos de saúde são hoje prestados (por exem-plo, os médicos e enfermeiros já não po-dem dar por adquirido que compartilhamcom os seus pacientes concepções comuns,ou entre si, ou que o modo como conduzema sua prática se enquadra em pressupostosjudeo-cristãos reconhecidos); e 4) a expan-

são de direitos de auto-determinação publi-camente reconhecidos” (Engelhardt, 1985:4-5). Também entre nós, Luís Archer começapor apontar como raíz remota da bioéticao Juramento de Hipócrates e o princípiode beneficência nele enunciado, para ime-diatamente acrescentar, com contraditóriaperspicácia, que a emergência recente dabioética se deve efectivamente ao facto dejá se não poderem resolver os problemasmorais postos à biomedicina com o simplesrecurso “a uma deontologia profissional euma ética de inspiração hipocrática, apoiadaapenas em algumas virtudes básicas como acompaixão e o desinteresse, assim como noprincípio de que o médico deve agir sem-pre e só em benefício do paciente” (Archer,1996:17-18). Três factos históricos seriamresponsáveis pelo desencadear de “uma novabioética”: “alguns abusos na experimentaçãocom seres humanos”, a saber, as experiên-cias médicas nazis em hospitais de alienadose em campos de concentração e os conse-quentes Julgamento dos Médicos em Nurem-berga e o Código homónimo, mas que nãoimpediram aquilo que Archer chama, eu-femisticamente, os “abusos” e “escândalos”que desde então se têm verificado na experi-mentação humana, e que, de facto, vão muitopara além de simples “abusos”; “o surgir dasnovas tecnologias”, “mais inovadoras nos úl-timos 25 anos do que o tinham sido nos an-teriores 25 séculos” e que “deram origem asituações inéditas de decisão moral”, de talmodo que, “(à) medida que a ciência trans-fere para as mãos do Homem poderes antesreservados à fatalidade da natureza, no querespeita ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto estamos autorizados a ex-ercer esses poderes e em que medida aquiloque é tecnicamente possível será eticamente

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aceitável” (Archer, 1996:20); e enfim, “apercepção da insuficiência dos referenci-ais éticos tradicionais” (Archer, 1996:20).Archer refere que a incapacidade para darresposta a tais questões, é tanto do códigohipocrático, com o paternalismo médico neleconsagrado, posto em causa pelo crescentereconhecimento do direito à autonomia dopaciente, como da ética filosófica, sobre-tudo com a crise das correntes que substi-tuíram uma racionalidade especulativa poroutra meramente processual, mas também dateologia moral, tradicionalmente baseada noconceito de lei natural, e a consequente di-ficuldade de adaptação às novas ciências doartificial, assim como da renúncia da ciên-cia à pretensão de fundamentar uma ética,após ter abandonado os conceitos de final-idade ou intencionalidade da vida, o quea fêz desistir de buscar a verdade e, logo,o bem. Archer, que assim pensa, sus-tenta, não obstante, que a bioética tem umaorigem científica, porquanto “foi sobretudodos homens de ciência que proveio o apeloe o impulso para a nova bioética, talvezpor reacção vivencial ao rápido desenvolvi-mento de um tecnologismo desumanizante”(Archer, 1996:21), podendo concluir-se, emsua opinião, que “a bioética surgiu, há cercade um quarto de século, como um conjuntode preocupações éticas levantadas por cien-tistas” (Archer, 1996:31). Não é por acasoque a percebida “desumanização” da medic-ina contemporânea tenha presidido ao im-pulso inicial da bioética: “Aquilo que hoje seconhece como ‘bioética’ teve pois início umadécada e meia após o fim da Segunda GuerraMundial como um movimento, latamenteentendido, para ‘humanizar’ a educação e aprática médica” (Pellegrino, 1999:75). Noentanto, a redução, humanista e antropolo-

gizante (Hottois, 1984; Hottois, 1992), dosproblemas levantados pelos avanços das tec-nociências biomédicas a uma questão dedesumanização é essencialmente equívoca epobre, sem com isto pretendermos negar apercepção comum e generalizada que estápor trás dela. Albert Jonsen, por sua vez,aponta cinco tópicos principais que merece-ram atenção preferencial nas primeiras dé-cadas da bioética, a experimentação humana,a genética, os transplantes, a reproduçãoe a morte e o morrer (Jonsen, 1998:125),e para quem “foi uma lenta acumulaçãode preocupações respeitantes à ambiguidadedo progresso científico que virou a velhaética médica no sentido dos novos camin-hos da bioética” (Jonsen, 1998:3). Nestaconformidade, a bioética distinguir-se-ia daética médica tradicional, concentrada nas re-lações médico-doente, por se haver com asrepercussões das tecnociências da vida sobrea natureza e a sociedade em geral, como opropugnavam desde a década de 70 os amer-icanos Van Rensselaer Potter e André Hel-legers, ambos médicos e pioneiros da teoria eda prática bioética, mas que envolvem numamesma preocupação assuntos tais como ocrescimento demográfico e a regulação danatalidade, a preservação do meio ambientee a qualidade de vida das gerações futuras,as relações entre países ricos e países po-bres, que já não apenas o universo restritodos dilemas que irrompem à cabeceira do pa-ciente.

Daniel Callahan, um dos nomes tutelaresda bioética, assevera que: “A bioética repre-senta uma transformação radical do domíniomais antigo e tradicional da ética médica(...) A palavra ‘bioética’, de colheita re-cente, veio a denotar não apenas um campoparticular de estudo – a intersecção da ética

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e das ciências da vida – mas também umadisciplina académica; uma força política nointerior da medicina, da biologia e dos es-tudos do ambiente; e uma perspectiva cul-tural de algum relevo. Entendida de modoestrito, a bioética é simplesmente mais umnovo campo que emergiu em face de grandesmudanças científicas e técnicas. Entendidade modo mais alargado, porém, é um campoque se estendeu, e que em muitos lugaresalterou, outros campos bem mais antigos.Atingiu o direito e a política pública; os es-tudos literários, culturais e históricos; a im-prensa popular; as disciplinas da filosofia, dareligião, e da literatura; e os campos cien-tíficos da medicina, da biologia, da ecolo-gia e do ambiente, da demografia e das ciên-cias sociais” (Callahan, 1995:248). Callahanaponta como condição de primeiro plano dasociogénese da bioética a confluência, na dé-cada de sessenta, do extraordinário desen-volvimento tecnológico que se avolumavadesde a Segunda Guerra Mundial e das pro-postas de vastas e profundas reformas sociaise políticas e mudanças culturais (Callahan,1999:54): “Essa década juntou os avançosmédicos que pareciam insinuar a conquistafinal da natureza e as mudanças culturaisque confeririam aos indivíduos recentementeemancipados o poder de assumirem o cont-role total dos seus próprio destinos. Nesseprogresso havia ao mesmo tempo grande es-perança e ambição, e talvez uma grandehy-bris, a crença cheia de soberba que os sereshumanos podiam transcender radicalmente asua condição natural” (Callahan, 1995:249).Assim, segundo Callahan, os efeitos dos pro-gressos das ciências biomédicas e das re-spectivas aplicações tecnológicas ter-se-iamtornado patentes nos anos sessenta, com atransformação de muitas concepções tradi-

cionais em três grandes aspectos, primeirono respeitante à natureza e ao domínio damedicina, depois ao âmbito e ao sentido dasaúde humana e enfim ao entendimento so-cial e cultural do significado de viver umavida verdadeiramente humana, de tal modoque “(o) advento da bioética pode ser vistocomo a principal resposta social a essasgrandes mudanças” (Callahan, 1995:249). Apresciência de Callahan revela-se particu-larmente quando afirma que “(q)uando umproblema moral é objecto de viva controvér-sia, pode-se razoavelmente pensar que estáem curso um processo cultural mais vasto,não passando a preocupação com a moral-idade de um sintoma deste último” (Calla-han, 1986:45). Deste modo, o ressurgir dointeresse pela ética biomédica não seria “as-sunto de filósofos ou teólogos moralistas,imperialistas ou que presumissem a sua com-petência, nem de um corpo médico inqui-eto e atingido por um complexo de culpa”(Callahan, 1986:44). Pelo contrário, eleresultaria da convergência de razões exter-nas e internas à medicina. Entre as razõesexternas, haveria que nomear: o interessecrescente que o público atribui aos factos egestos de todos os profissionais de saúde, in-cluindo médicos e cientistas dedicados à in-vestigação biomédica; a atenção acrescidados meios de comunicação, sobretudo emrelação a situações de conflito ou contro-vérsia; a amplitude e a vastidão de um sis-tema médico em larga medida público e fi-nanciado pelo Estado e que por isso concen-tra inevitavelmente a atenção do público, dostribunais e da lei; o sentimento geral de in-quietude e perplexidade em face dos avançostecnológicos; o descontentamento suscitadopela desumanização e a fala de qualidadeda prestação de cuidados de saúde; e en-

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fim a pressão a que se encontra sujeito osistema médico que tem de se encarregarde todos os males humanos que dantes nãoteriam sido encarados como relevantes paraa medicina. Entre as razões internas, dev-eriam citar-se os avanços das tecnociênciasbiomédicas e os novos dilemas éticos a quedão origem. No entanto, sublinha Callahan,há que não menosprezar o contexto culturalmais vasto que intensificou e alterou o im-pacto das pressões internas à ética biomédica(Callahan, 1986: 44-45). Nesta conformi-dade, Callahan acrescenta que: “Após umlongo período de progressos médicos rápidosmarcados pelo advento dos antibióticos e otratamento das doenças infecciosas, a medic-ina passa agora por uma evolução ligeira-mente diferente, caracterizada por progres-sos terapêuticos menos rápidos, um orça-mento mais elevado, um sistema médicomais complexo e uma interacção mais forteentre a medicina e as demais esferas da so-ciedade” (Callahan, 1986:45). E prossegue:“Os problemas de ética da ‘biomedicina’de hoje favoreceram o questionamento dosobjectivos fundamentais da medicina e sãoao mesmo tempo o reflexo desse question-amento. Seria fazer prova de uma certa in-genuidade acreditar que os objectivos tradi-cionais da medicina, de um ponto de vistamoral, podem não ser postos em causa”(Callahan, 1986:45). Ora o carácter in-evitável destas transformações não deixariade suscitar fenómenos de resistência no seiodas comunidades médicas e científicas. Dizainda Callahan que médicos e cientistas sederam conta que as novas pressões a que seviam submetidos se deviam em grande parteà intervenção do público nos debates da éticamédica e nunca gostaram de ver juristas e es-pecialistas em ética imiscuir-se e até semear

a discórdia num domínio que durante muitotempo consideraram seu território reservado,tanto mais quanto a tradição positivista e em-pirista dominante na medicina, que sempreexibiu um certo desprezo em relação às dis-ciplinas tidas por não científicas, mais nãofez que reforçar as dúvidas sobre o valordo discurso moral. Pior ainda: “O facto dese confundir continuamente a moral com amoralização, o endoutrinamento, a penaliza-ção ou simplesmente o ‘bom gosto’ não fa-cilitou as coisas” (Callahan, 1986:46). Aprincipal razão da resistência de médicos ecientistas ficaria porém a dever-se, acreditaCallahan, ao facto de que todo o reconheci-mento do valor moral tornar inevitável umaredefinição das hipóteses e dos objectivosfundamentais, o que faz acrescer aos proble-mas de ordem moral a incerteza quanto aosobjectivos profissionais que há que perseguir(Callahan, 1986:46). Mas, além da in-certeza crescente no seio da medicina, o in-teresse pela ética biomédica também se ex-plica por um fenómeno até certo ponto par-alelo do lado da filosofia e dos filósofosquanto aos fins últimos da sua disciplina:“Neste contexto, os problemas biomédicosforneceram um bom critério de apreciaçãoda proposição segundo a qual a filosofiamoral, mau grado os seus detractores, temalgo de pertinente a dizer sobre a vida hu-mana. Assim, a medicina encontra-se su-jeita à prova da moral e a própria moralfica sujeita à prova da medicina” (Callahan,1986:46). Precisamente, cita-se entre os arti-gos seminais da reflexão bioética um com osugestivo título de “Como a medicina salvoua vida da ética”, de Stephen Toulmin. Toul-min explica que, nas últimas décadas, se as-sistiu a uma interacção da medicina, da leie de outras disciplinas que teve efeitos es-

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pectaculares e irreversíveis nos métodos enos conteúdos da ética filosófica, na medidaem que reintroduziu os longamente descarta-dos tópicos da análise dos casos particulares,obrigou os filósofos a retomar os problemasda razão prática que remontam a Aristóte-les. Com efeito, desde meados do séculoXIX que a ética filosófica tinha enveredadopela investigação teórica cada vez mais ab-stracta e distante das questões da aplicaçãoa casos práticos particulares. No século XX,a tendência agrava-se com o relevo dado àmetaética como análise do discurso dos de-bates racionais entre contendores com difer-entes convicções éticas, que o filósofo de-veria supervisionar e regular em obediên-cia às regras racionais da condução da dis-cussão, mas sem intervir nela para tomarpartido. Observa Jonsen muito a propósitoque: “Enquanto a filosofia moral se de-batia com as questões metaéticas, o Holo-causto, os julgamentos de Nuremberga, Hi-roxima, o armamento nuclear, as purgas deMcCarthy e o Relatório Kinsey acontece-ram, quaase sem que se ouvisse um mur-múrio da parte dos praticantes da metaética”(Jonsen, 1998:75). Com a emergência dadiscussão de dilemas concretos no âmbitoda ética médica, nas décadas de cinquentae sessenta, e depois com a bioética, os filó-sofos viram o assunto que tradicionalmentelhes dizia respeito renascer entre as suaspróprias mãos por intermédio da ética apli-cada, a qual “. . . deixava agora de ser campopara investigação académica, teórica ou atémandarínica exclusiva. Ao invés, tinha deser discutida em termos práticos, concretose até mesmo políticos e em breve os filó-sofos morais (ou, como barbaramente prin-cipiaram a ser chamados, os ‘eticistas’) de-scobriram que eram tão passíveis como os

economistas de ser chamados” (Toulmin,1997:108-109) a participar em actividadespúblicas de informação, consultoria, acon-selhamento e tomada de decisão: “Neste sen-tido, podemos efectivamente dizer que, nosúltimos vinte anos, a medicina ‘salvou a vidada ética’, e que devolveu à ética uma se-riedade e importância humana que ela pare-cia – pelo menos nos escritos do período en-tre as duas guerras – ter perdido para sem-pre” (Toulmin, 1997: 109). Ora, em outrotexto tido por seminal, “A bioética como dis-ciplina”, originalmente publicado em 1973,Daniel Callahan mostrava como era a novadisciplina da bioética que se encontrava emcondições de superar o reducionismo disci-plinar da ética filosófica e da teologia moraltradicionais na abordagem dos dilemas éti-cos da biomedicina, reducionismo que nãopassava de uma outra forma de evadir a re-sponsabilidade e tentar alterar a natureza dosproblemas para os fazer caber na estreitezadas metodologias da ética e da moral profis-sionalizadas (Callahan, 1997:88-89). Mais,Callahan adiantava com inteira justeza queos novos dilemas éticos se exprimiam nalinguagem quotidiana que utilizam as pes-soas directamente afectadas por eles, entreas quais os pacientes, assim como os médi-cos, mas também os próprios especialistasem ética quando falam dos problemas pes-soais que os afectam. Assim, sublinhavaele, a nova disciplina da bioética deveria ex-primir as suas tomadas de posição e as suasdecisões na mesma linguagem em que aspessoas comuns normalmente pensam sobresi próprias. O rigor e a seriedade da bioéticadever-se-iam então não tanto à densidadee à inanidade da linguagem das disciplinascientíficas clássicas de que se queixavamos próprios especialistas quando se abal-

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ançavam à discussão interdisciplinar, masantes a algo diferente ao assumir como suastarefas essenciais a definição de questões, deestratégias metodológicas e de procedimen-tos para a tomada de decisões. E concluía:“. . . a disciplina da bioética deveria ser con-cebida, e os seus praticantes formados, detal modo que - independentemente dos re-spectivos custos para a elegância disciplinar– servisse directamente os médicos e biólo-gos cuja posição exige que tomem decisõespráticas. Isto exige, idealmente, um certonúmero de ingredientes como parte da for-mação – que pode prolongar-se pela vida in-teira – do bioeticista: compreensão sociológ-ica das comunidades médicas e biológicas;compreensão psicológica dos tipos de neces-sidades sentidas por investigadores e clíni-cos, pacientes e médicos, e a variedade depressões a que se encontram sujeitos; com-preensão histórica das fontes das teorias dovalor prevalecentes e das práticas comuns;formação científica de base; conhecimentoe manuseamento fácil dos métodos vulgaresde análise ética tal como são entendidosnas comunidades filosófica e teológica – enão menor consciência das limitações dessesmétodos quando aplicados a casos reais; e,finalmente, exposição pessoal aos tipos deproblemas éticos que se colocam na medic-ina e na biologia” (Callahan, 1997:91-92).Por fim, diz Callahan, “(u)m teste importanteda aceitação da bioética como disciplina seráa medida na qual cientistas e médicos fiz-erem apelo a ela” (Callahan, 1997:92).

Alguns dos textos destes e de outrosiniciadores daquilo que viria a ser a bioéticaainda antes que para ela tal nome houvesse,constituem imprescindíveis fontes de infor-mação, de que nos serviremos, sobretudoquando perscrutados à luz das mais recentes

avaliações retrospectivas das cerca de trêsdécadas de existência da bioética. Entreessas análises retrospectivas, há a referirquatro principais: a conferência sobre “Onascimento da bioética”, realizada na Uni-versidade estadual de Washington, em 23 e24 de Setembro de 1992, que reuniu muitosdos pioneiros norte-americanos da bioéticae de cujas conclusões um deles, AlbertJonsen, dá conta em livro recente (Jonsen,1998); a recolha crítica, de que este é umdos editores, de alguns dos documentos hojetidos por seminais acerca da história, dosmétodos e da prática da bioética (Jecker,Jonsen e Pearlman, 1997); a conferência“Vinte anos de bioética”, realizada em 1990em Pádua, onde se encontraram alguns dosnomes que maior proeminência grangearam,ao longo das três últimas décadas, a nívelinternacional, que não já somente os autoresnorte-americanos (Viafora et al., 1996); eo número temático doKennedy Institute ofEthics Journal, “Medicine Laid Open”, de1999, onde surgem artigos de Daniel Calla-han (Callahan, 1999), Edmund Pellegrino(Pellegrino, 1999) e Warren T. Reich (Reich,1999). Estes documentos são de molde aesclarecer que, embora as razões adiantadaspara o surgimento da bioética, pelos autoresque começámos por rever, não só não sejamcontraditórias como são ainda objecto degeneralizado consenso, é manifesta a suainsuficiência para explicar o fenómeno daemergência e da expansão imparável dabioética e são por isso passíveis de induzirem equívoco quanto à natureza e ao âmbitodela. Com efeito, poderia dizer-se que aque-les factores históricos por eles apontadostraduzem todos a real falência da ética eda deontologia médicas tradicionais, o queabriu um campo que começa a destacar-se

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dos estreitos limites dos problemas inerentesà prática médica e que eram discutidosentre pares à luz de princípios e segundoprocedimentos há muito estabelecidos. Anosso ver, a crise irreversível da regulaçãoparitária, não só da profissão médica emparticular, mas da actividade científica emgeral, deve ser de facto tomada como a maisfundamental das condições de emergênciada bioética. Porém, o sentido mais vastodeste fenómeno só poderá ser apreendidose formos para além das consideraçõesa que se vota o conjunto destes autores.Trata-se de um fenómeno que nos seriagrato desdobrar, analiticamente e tão só pormor de uma frutífera discussão, em seisgrandes alíneas, a seguir discriminadas, jáque, historicamente, elas surgem de factoentrecruzadas. Além disso, e sempre que atal houver lugar, este inquérito genealógicoabordará as condições de emergência dabioética em três estádios evolutivos: ascondições remotas, as condições próximas,constituindo estas duas a fase de pré-históriaou de gestação da bioética, e as condiçõescontemporâneas que relançam e redefinemo impulso inicial da bioética. Temos assim,como condições gerais de emergência dabioética:

1) os crimes contra a humanidade naexperimentação com seres humanos;

2) a disponibilidade de novas tecnologiasbiomédicas que, ao mesmo tempo que abremnovas possibilidades diagnósticas e terapêu-ticas, põem em causa conceitos e definiçõesantiquíssimos e suscitam perplexidades edilemas inéditos;

3) os novos campos de problematização

científica e social, como a ecologia e asaúde ambiental, a engenharia genética e asbiotecnologias, o crescimento demográfico,a manipulação tecnológica do comporta-mento, a medicina da reprodução, etc.;

4) a irrupção de novos movimentossociais que levantam questões de recortebiomédico;

5) a contestação de paradigmas médicosdominantes e do sentido e fins últimos daprestação de cuidados de saúde;

6) a necessidade de uma ética para a erada tecnociência e, simultaneamente, a criseda fundamentação de toda a ética.

1) Crimes contra a humanidade naexperimentação com seres humanos.

O campo da experimentação biomédicaem seres humanos constituiu a condiçãoprimeira de emergência da bioética e con-tinua a ser o terreno fértil que nela alimentaa reactivação das interrogações fundamen-tais acerca do rumo a que o desenvolvimentotecnocientífico vota o mundo em que vive-mos (Cascais, 2000b)1. O desenvolvimento

1Sobre a história da experimentação biomédicaem seres humanos, desde a medicina nazi aoAdvisory Committee on Human Radiation Experi-ments Final Report, de 1995, passando por todaa história da experimentação biomédica após a Se-gunda Guerra Mundial, consultar: António FernandoCascais (2000),Comunicação e bioética. A medi-ação dos saberes na experimentação humana. Tesede Doutoramento em Ciências da Comunicação pelaFaculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univer-sidade Nova de Lisboa. Versões anteriores do pre-sente artigo encontram-se, além desta tese, em: “In-trodução à bioética”, in Maria do Rosário Dias, Ar-

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científico e técnico era já objecto de ques-tionamento pelo menos desde meados doséculo XIX, mas sobretudo por correntes querecusavam doutrinariamente o mundo mod-erno e que responsabilizavam grandemente aciência e a técnica pelo que entendiam comodecadência da civilização ocidental. No en-tanto, só a partir da Segunda Guerra Mundialsurge uma inquietação de fundo acerca dodesenvolvimento tecnocientífico com difer-ente tom e conteúdo. E essa inquietaçãosurge, de modo espectacular, a propósitodas actividades biomédicas e, mais particu-larmente, da experimentação com seres hu-manos, a partir do pleno conhecimento dasatrocidades perpetradas pela medicina nazi,após a queda do Terceiro Reich. Na se-quência da vitória sobre a Alemanha nazi, oTribunal de Nuremberga, reunido em 1946pelos países aliados, julgou os crimes deguerra em que estavam implicados tantoas principais figuras do regime nacional-socialista. Um dos Julgamentos a cargo dotribunal foi o Julgamento dos Médicos, quevisou os mais altos dignitários da medic-ina nacional-socialista e foi constituído uni-camente pelos Estados Unidos. De facto,tratou-se de julgar um regime político e osistema de saúde inextricavelmente ligado aele, nas pessoas dos seus responsáveis máx-imos. A matéria principal da acusação eraa experimentação médica empreendida emcampos de concentração sobre prisioneiros

manda Amorim, eds. et al.,Clínica Dentária In-tegrada: Contributos Bio-psico-sociais. Caparica:Egas Moniz Publicações, 2000: 23-51; “A bioetikatörténete, a tudományág körébe tartozó kérdések ésa bioetika tárgya”, in Ch. Susanne, Szer. et al.,Bioetika. Pécs-Budapest: Dialog Campus Kiadó,1999: 31-54 e “Bioethics: History, Scope, Object”,Global Bioethics, 10 (1-4), 1997: 9-24.

totalmente vulneráveis e destituídos da suacapacidade de consentimento, com critériose objectivos cientificamente improváveis ecom resultados funestos para aqueles que aelas foram obrigados a submeter-se, emb-ora também tivesse sido mencionada a elim-inação selectiva de algumas categorias depessoas, nomeadamente doentes e diminuí-dos mentais, ao abrigo de um vasto programaindevidamente chamado de “eutanásia” emhospitais psiquiátricos alemães. O Julga-mento dos Médicos levantou o véu sobreum estendal de atrocidades que, de entãopara cá, passou a configurar os crimes con-tra a humanidade. No entanto, só com otempo, e sobretudo recentemente, com a mu-dança de perspectiva da inquirição histórica,se pôde traçar com rigor o quadro em quedecorreram, e que permite compreender, osfactos submetidos a juízo em Nuremberga:aquilo que Rudolf Hess chamou o primeiroregime biologisch da história, com a suapolítica de “higiene racial” que extrema odarwinismo social do virar dos séculos XIXpara XX e, enfim, o processo de genocí-dio de gigantescas proporções que posteri-ormente se estabeleceu com segurança tersido um processo medicalizado em toda asua extensão, assim como se sabe hoje quea medicina nazi não pode já desligar-se domais vasto fenómeno histórico de medical-ização generalizada na época moderna, queMichel Foucault descreveu como a ascensãoda biopolítica: “a maneira como se tentou,desde o século XVIII, racionalizar os prob-lemas postos à prática governamental pelosfenómenos próprios de um conjunto de seresvivos constituídos em população: saúde,higiene, natalidade, longevidade, raças... ”

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(Foucault: 1989:109)2. Deste modo, o Jul-gamento dos Médicos haveria de constituir oprimeiro passo num processo de avaliação,que prossegue ainda, não só da medicinanazi, mas das concepções prevalecentes noque de mais excelente havia na medicinamundial da época e que com ela partilhavauma mesma vocação eugenista; este facto,e a recorrência dele em diferentes épocase tanto em regimes democráticos como to-talitários, viria a consubstanciar uma dasquestões mais candentes na bioética, a daanalogia nazi para a época contemporânea,ou seja, a de saber se os actos perpetra-dos pela medicina nazi se podem hoje repe-tir nas condições e com a legitimidade dosEstados de direito democráticos. Não ob-stante, a importância maior do Julgamentodos Médicos é o facto de a parte final doseu acórdão ter dado origem ao Código deNuremberga, publicado em 1947, que, re-conhecendo a necessidade e legitimidade daexperimentação médica em seres humanos,estabelece as condições a que ela deve obe-decer para poder ser científica e eticamentevalidada. À cabeça, avulta o consentimentoinformado, então e pela primeira vez explic-itado de modo categórico, pois estabelece a

2Sobre a bio-história e a biopolítica em MichelFoucault, ver, nomeadamente os textos inseridos nacolecção: Michel Foucault (1994),Dits et écrits. 4vols.: I - 1954-1969, II - 1970-1975, II - 1976-1979,IV - 1980-1988. Paris: Éditions Gallimard; e o ab-solutamente seminalVigiar e punir. Petrópolis: Edi-tora Vozes, 1984, 3a ed.; estão em vias de publicaçãoos textos dos seus cursos no Collège de France, maso volume referente ao desenvolvimento do conceitode biopolítica ainda não saiu a público; no entanto,do conjunto já publicado, podem encontrar-se já al-gumas referências à biopolítica em: Michel Foucault(1997),Il faut défendre la société. Cours au Collègede France - 1976. Paris: Gallimard/Seuil.

sua obtenção como requisito primeiro e in-dispensável à prossecução de toda a exper-imentação médica em seres humanos, emb-ora, por outro lado, ao aceitar a necessidadeda experimentação, o texto do código tenda aenfatizar os benefícios que dela podem advirpara a sociedade como um todo, mais do queos que dela podem reverter para o pacienteindividual. Com o Julgamento dos Médi-cos, a prática médica foi pela primeira vezsujeita a avaliação por uma instância exte-rior aos mecanismos de auto-regulação par-itária, a instância jurídico-política. E o factode a partir dele se ter emitido um documento,o Código de Nuremberga, que, juntamentecom a Declaração Universal dos Direitos doHomem, emitida pela ONU em 1948, viria aconstituir o modelo de toda a posterior reg-ulação ética, não apenas da experimentação,mas de todas as actividades biomédicas, des-mente a tese, já sustentada pela própria de-fesa dos médicos nazis no decorrer do jul-gamento e frequentemente retomada depoispelas teses revisionistas, de que tanto o jul-gamento como o código se dirigiam exclu-sivamente à medicina nazi, ou seja, maisao regime totalitário do que à medicinaem si. Tal tese sustenta que a medicinanazi não é representativa da genuína ciênciamédica, quer por ser marginal e medíocre doponto de vista científico, quer por ser ide-ologicamente comprometida, e compreen-sível apenas como aberração histórica resul-tante da cooptação forçada da comunidademédica por um regime totalitário, o que fariadela “má ciência”, e dos médicos peões enão pioneiros. Ao obrigar toda a activi-dade de experimentação médica à obtençãodo consentimento informado, o Código deNuremberga consagra a primazia da instân-cia jurídico-política na defesa dos interesses

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do indivíduo por sobre a regulação paritáriada medicina que, ao assimilar benefício dahumanidade ao rigor científico que só ospares se encontram em condições de avaliar,identifica os interesses da ciência com os in-teresses da sociedade. O que o Código deNuremberga põe em causa será pois, em úl-tima análise, a pretensão de uma “boa ciên-cia” valorativamente neutral a eximir-se aum juízo exterior ao dos seus próprios pares.

O facto de o Código de Nuremberga con-stituir o modelo para todos os posterioresdocumentos de regulação ética da experi-mentação humana de modo algum significaque eles lhe tenham sido escrupulosamentefiéis, quer à letra, quer ao espírito. ADeclaração de Helsínquia, promulgada pelaAssociação Médica Mundial na sua 18a As-sembleia Geral em Junho de 1964, é oprimeiro desses documentos. Mais do quefiliar-se no que de mais essencial veiculavao Código de Nuremberga, a Declaração deHelsínquia pode ser entendida como umaresposta alternativa àquilo que os médicos-investigadores, e ainda mais as organizaçõescientíficas, encaravam como limitador e in-aplicável às suas práticas, visto que tinhasido promulgado por juízes, na sequência deum acórdão de um tribunal criminal, comoum documento de direitos humanos e era, as-sim, uma peça jurídica demasiado rígida deexigências legais, circunstancialmente rela-cionada com os crimes nazis. Em contra-partida, a Declaração de Helsínquia tinhapor finalidade substituir à agenda legal doCódigo de Nuremberga, baseada nos dire-itos humanos, um modelo de ética médicade algum modo mais lassa que permite opaternalismo, na medida em que constituium conjunto de recomendações, feitas pormédicos e dirigidas a médicos, concebido

para orientar os médicos na pesquisa clínicae que aponta para a supremacia da revisãopor pares sobre o consentimento do sujeitoindividual, uma vez que à qualidade cientí-fica da investigação, que só pode ser avali-ada pela própria comunidade de médicos-investigadores, com recurso a comités de re-visão do protocolo inicial, é dada clara prior-idade sobre o consentimento informado. En-contramos aqui uma fractura de primeira or-dem que pode ser traçada através da história,não só da experimentação humana, mas damedicina moderna em geral: a que, grossomodo, opõe o avanço dos poderes e dossaberes científico-tecnológicos em nome dobenefício da sociedade como um todo à de-fesa dos interesses individuais, implícita ouexplicitamente tidos por sacrificáveis. É mis-ter sublinhar, porém, que uma oposição tãonítida ocorre só se - mas sempre que - odiscurso e a prática científicos fazem assim-ilar bondade ética a rigor científico, cujaavaliação cabe em exclusivo à comunidadede pares. Ora esta linha de argumentaçãoequivale à apologia da auto-regulação par-itária da actividade médica e ela ocorre maissistematicamente do que se poderia crer. ADeclaração de Helsínquia seria emendada erevista na 29a Assembleia Geral da Associ-ação Médica Mundial, em Tóquio, em 1975,dando lugar à Declaração de Tóquio, tam-bém conhecida como Helsínquia II, sendoesta a revisão mais profunda e a que constituide facto o modelo que desde então prevalece,com posteriores alterações de menor en-vergadura nas 35a, 41a e 48a AssembleiasGerais da Associação Médica Mundial, re-spectivamente em Veneza, em 1983 (Hel-sínquia III), Hong Kong, 1989 (HelsínquiaIV) e Sommerset West, África do Sul, 1996(Helsínquia V). Há a notar, da versão inicial

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de 1964 para a primeira revisão, de 1975, omaior relevo dado à obtenção do consenti-mento informado, mas trata-se de um requi-sito que figura em nono lugar entre os requi-sitos básicos a satisfazer para que um exper-imento seja eticamente admissível, quandoo primeiro desses requisitos nunca deixa deser, em todas as versões da Declaração, o dacientificidade, só pelos pares avaliável.

A experimentação humana é a arena ondese tem jogado a regulação estritamente par-itária da prática médicaversusuma forma deregulação que envolve a participação de in-stâncias extra-profissionais e de que a dis-senção entre o Código de Nuremberga e aDeclaração de Helsínquia dá a ver apenas asuperfície. Com efeito, a ambiguidade pro-funda, essencial, de raíz, que impregna a re-lação da sociedade moderna com a ciência ea técnica constitui o sustentáculo da topolo-gia por que se reparte a competição pela reg-ulação da experimentação médico-científicacom seres humanos, mas também do própriocampo da bioética. Se a primeira versãoda Declaração de Helsínquia, de 1964, éindependente da bioética, mais difícil é jádizer que as suas posteriores revisões sãoindependentes da progressiva instalação dabioética, cuja capacidade de pressão sobrea comunidade médico-científica cresce demaneira directamente proporcional ao da suarespeitabilidade. Nota-se isto no sentido dasrevisões que sucedem à versão original de1964, que vão dando maior ênfase, se bemque nunca clara primazia, à defesa da au-tonomia, mas também nos restantes docu-mentos reguladores da experimentação hu-mana que reflectem, e devem ser enquadra-dos, no contexto da dissenção entre o priv-ilégio da beneficência e a defesa primor-dial da autonomia. Acontecimento capital

na história dessa dissenção, e já plenamentecontemporâneo da bioética é a constituição,nos Estados Unidos, da Comissão Nacionalpara a Protecção dos Seres Humanos Su-jeitos a Experimentação Biomédica e Com-portamental, reunida entre 1974 e 1978,e ao hoje célebre Relatório Belmont, queem 1978 dá conta das conclusões finais dotrabalho da referida Comissão, onde sãodefinidos os princípios de respeito pelaspessoas, autonomia e justiça que estão naorigem do paradigma bioético dominante,o modelo principialista. O principialismoficou de facto a dever-se à formulação deTom L. Beauchamp e James Childress, emPrincípios de ética biomédica(Beauchamp,Childress, 19943, publicado no ano imedi-atamente a seguir ao do Relatório Belmont,onde a fórmula quádrupla da beneficência,da autonomia, da não-maleficência e dajustiça se vem substituir ao antiquíssimo eexclusivo primado da beneficência, de ex-tracção hipocrática: “Mas o autenticamenteimportante não é isso, e sim o facto de quecom este sistema a bioética assumiu todauma peculiar forma de definir e manusearos valores. A partir de Beauchamp e Chil-dress a bioética em geral, e a bioética norte-americana em particular, fizeram girar to-dos os problemas de valor à volta dessesquatro princípios. Eles são qualquer coisa

3Henry K. Beecher (1966), “Ethics and ClinicalResearch”,New England Journal of Medicine, 274(24): 1354-1360. Também o médico inglês MauriceH. Pappworth publicou em 1968 uma obra de denún-cia de experimentação criminosa -Human GuineaPigs: Experimentation on Man. Boston: BeaconPress - porventura mais cáustica e detalhada que a deBeecher, informa Albert Jonsen, mas que passou des-percebida na altura e mais tarde vilipendiada quandode facto lhe foi dada atenção, talvez devido à vulner-abilidade do autor, menos renomado que Beecher.

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como os núcleos de confluência de todo ouniverso dos valores. Não é que não exis-tam muitos outros valores, o que acontece éque todos saturam em torno a estes quatroeixos ou pontos. Dito de outra maneira, to-das as questões de valor podem ordenar-se àvolta destes quatro princípios. A linguagemdos valores pode-se reduzir a estas quatropalavras” (Gracia, 1995:40). Isto mesmocorrobora Daniel Callahan: “Chamarei a istoo movimento da autonomia, que enfatizaa necessidade de proteger os que são vul-neráveis, de dar poder aos que são com-petentes e de encontrar um melhor equi-líbrio entre médico e paciente do que aqueleque representou o clássico paternalismo datradição hipocrática. A sua plena expressão,suspeito eu, pode ser encontrada na teoriamoral do principialismo, na qual os princí-pios, quando são sopesados, revertem to-dos à autonomia, o mais poderoso e dom-inador dos princípios. Tal era a bioéticacomo filha natural do individualismo amer-icanop” (Callahan, 1999:65). Tanto consti-tui a primeira formulação histórica - deliber-ada, porque implicitamente já o era o Códigode Nuremberga - de uma regulação da ac-tividade da investigação biomédica alterna-tiva à estrita regulação paritária. E tantoconstituirá justificação suficiente para que sepossa afirmar que a condição essencial daemergência da bioética é, em última análise,a crise da regulação paritária das actividadesbiomédicas, que não só as de investigação,ideia de resto cara a Diego Gracia, atráscitado, pois os princípios de Beauchamp eChildress almejaram, e efectivamente con-seguiram, expandir-se do domínio da exper-

imentação humana, seu berço, a todas as de-mais actividades biomédicas4.

Teríamos assim que a regulação ética daexperimentação humana é uma das maioresresponsáveis pela deslocação do âmbitoda ética biomédica tradicional, de matrizhipocrática, para o âmbito da bioética, quenão coincide com aquele, o extravaza einclusivamente é de molde a pôr-lhe emcausa os principais pressupostos e preten-sões. A experimentação biomédica em sereshumanos ocupa uma posição chave na tec-nociência moderna e torna patente o quesignifica os homens disporem e ao mesmotempo estarem à mercê de uma ciência cujanatureza é experimental; a experimentaçãobiomédica em seres humanos trata da prosse-cução de possibilidades tecnocientíficas di-rectamente investigadas e aplicadas em sereshumanos concretos; experimentar em sereshumanos é, por isso, a todos os títulos,alçar-se do nível do laboratório às alturasde um autênticoexperimentum mundi: re-criar seres humanos encontra-se pois no cen-tro de um projecto mais vasto de recriaçãotecnocientífica, demiúrgica, do mundo. Con-tudo, a multiplicação previsível de possi-bilidades experimentais proporcionadas peloavanço tecnológico não constituiu o únicocentro de preocupações nos anos contem-porâneos da emergência da bioética. Umareavaliação geral, mais ampla e profunda, di-

4Sobre a crise da auto-regulação paritária comocondição de emergência da bioética, ver, nomeada-mente: Diego Gracia, (1987), “La bioética, una nuevadisciplina académica”,Jano, XXXIII (781): 69-73;(1988), “Historia de la ética médica”, in FranciscoVilardell, coord. et al.:Ética y medicina. Madrid:Espasa Calpe: 25-65 e (1995), “El qué y porqué dela bioética”, Cuadernos del Programa Regional deBioética. Santiago: O.P.S./O.M.S.,1: 35-53.

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rigida não apenas para o discernimento dascondições do presente, mas também retro-spectivamente, da necessidade, da legitimi-dade, da natureza e fins últimos da experi-mentação biomédica enquanto projecto tec-nocientífico da era moderna, acompanhou aevolução dos códigos concebidos para a reg-ulamentar. Precipitada pelo conhecimentopúblico de algumas experiências em sereshumanos ostensivamente anti-éticas, essareavaliação foi inclusivamente prosseguida anível institucional, num processo de “fact-finding” conduzido nos EUA por comissõesgovernamentais que se haveria de prolon-gar e intensificar até ao presente. As maisnotórias dessas experiências foram as deTuskegee, no Estado americano do Alabama,onde, entre 1932 e 1972, cerca de seiscen-tos afro-americanos pobres foram privadosde tratamento para a sífilis que os afectava,recebendo apenas placebos, para se estu-darem os efeitos do curso natural da doença,sem que disso fossem informados e apesarda descoberta da cura através da penicilinaem 1954 (Jonsen, 1998:146-148). Outrasexperiências chegaram igualmente ao con-hecimento público, porém: as efectuadasentre 1956 e 1971 em crianças diminuí-das mentais da Escola Estadual de Willow-brook, em Nova York, a quem foi injectadoo vírus da hepatite para pesquisa de umavacina eficaz; as experiências de imunoter-apia, patrocinadas pelo Serviço de SaúdePública dos Estados Unidos, realizadas em1963 em idosos internados no Hospital eCentro Médico Judaico para doenças cróni-cas de Brooklyn, a quem foram injectadascélulas cancerosas (Jonsen, 1998:143); osensaios de drogas psicotrópicas em mil-itares americanos e vários outras experimen-tos de manipulação bioquímica do compor-

tamento humano, nomeadamente com re-curso ao LSD, empreendidos pelaCentralIntelligence Agency(CIA) ao abrigo de ob-scuros programas como o MKULTRA, tantoem civis como militares, que conjugavamo imperativo da salvaguarda dos interessesnacionais dos EUA e o avanço do conhec-imento médico no quadro da guerra fria.Alguns destes experimentos, e muitos out-ros mais, foram mencionados por HenryKnowles Beecher no seu artigo “Ethics andClinical Research”, publicado em 1966 noNew England Journal of Medicine4[?], ummarco na história da denúncia de experimen-tação criminosa com um imenso impactona comunidade médico-científica da época(Jonsen, 1998:144-146; Reich, 1996a:83-87). Não obstante ser um defensor daDeclaração de Helsínquia como alterna-tiva necessária ao Código de Nuremberga,Beecher não se abstém de afirmar, porém,que a obtenção do consentimento informadoé um imperativo sociológico, ético e legal,dado o sistemático desrespeito dos exper-imentadores pelos próprios documentos deregulação - e a Declaração de Helsínquiadatava de dois anos antes deste seu artigoque cita os exemplos a prová-lo. De resto,Beecher haveria de ser um dos primeiroscolaboradores activos da nova disciplina dabioética (Callahan, 1999:59). Jay Katz, umdoa mais proeminentes e influentes autoresque se dedicou à ética da experimentaçãobiomédica, afirma a sua dívida, e de umageração inteira anterior à bioética, em re-lação a Beecher (Katz, 1994:88). As reve-lações de Beecher, assim como das atroci-dades da medicina nazi, tiveram um impor-tantíssimo papel de “consciousness raising”na época que precedeu de perto a emergên-cia da bioética enquanto disciplina e discurso

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(Katz, 1994:89). Já não como condição re-mota de emergência da bioética, que as an-teriores são, mas como facto que relança ainterpelação fundamental que ela endereça àtecnociência biomédica, encontramos o maisrecente instrumento de denúncia e avali-ação de experimentação criminosa, o ComitéConsultivo Sobre a Experimentação de Ra-diações em Seres Humanos (Advisory Com-mittee on Human Radiation Experiments),nomeado em 1994 pelo presidente Clinton,com o fim de investigar a experimentaçãodos efeitos da radioactividade em seres hu-manos realizada por iniciativa dos Depar-tamentos da Energia e da Defesa do gov-erno federal norte-americano desde a Se-gunda Guerra Mundial. Facto a notar, comoindício da plena instalação da bioética aomais alto nível das instâncias de consultoriae decisão, é o de, à frente deste comité, seencontrar a bioeticista Ruth Faden, escolhidaexclusivamente pela sua qualidade de rep-resentante prestigiada da disciplina. Dadoa público em 1995, o Relatório Final doComité revela que, entre 1944 e 1974, foiempreendido um gigantesco programa de in-vestigação dos efeitos da radioactividade emseres humanos. Teve início ainda durante aSegunda Guerra Mundial, no âmbito do Pro-jecto Manhattan que criou as primeiras bom-bas atómicas e tratava inicialmente de inda-gar os efeitos da radioactividade na popu-lação civil e militar exposta acidentalmenteàs deflagrações (Cascais, 2000b:147-187).Prosseguida pelas instituições herdeiras doProjecto Manhattan, primeiro a Comissãoda Energia Atómica e, depois, o Departa-mento de Energia, a experimentação passoutambém pela exposição deliberada de indi-víduos singulares e de grupos inteiros a ra-diações, dos mineiros índios do urânio ra-

dioactivo às populações das ilhas do Pací-fico onde se realizaram explosões experi-mentais, ao pessoal civil e militar das bases eaos habitantes das imediações, e, enfim, aospacientes a quem eram administrados isóto-pos radioactivos como meio de diagnóstico.As instituições envolvidas, desde bases mil-itares a hospitais e laboratórios, o númerode pessoas, desde as muitas centenas de in-vestigadores às dezenas de milhares de víti-mas que de algum modo sofreram os efeitosda experimentação, os astronómicos finan-ciamentos e a sofisticação do aparato ex-perimental, fazem deste conjunto de exper-imentos porventura o de maiores proporçõesde sempre, desde o Projecto Manhattan atéao actual Programa Genoma Humano. En-tre as conclusões a que chega o RelatórioFinal, avultam: a improbabilidade de umainstituição ou indivíduo poder oferecer al-guma forma de resistência eficaz à sua in-strumentalização por um organismo de Es-tado, em nome dos imperativos da segurançanacional, ou outra qualquer instituição igual-mente poderosa, que o fizesse em nome dobem comum - exactamente o que foi in-vocado, tanto para legitimar a experimen-tação como para lhe manter o secretismodurante décadas, até à primeira presidênciaamericana, a de Clinton, que decorre in-teiramente fora do quadro da guerra fria;a persistência da experimentação criminosafora do quadro de regimes totalitários, comoo tinha sido a Alemanha nazi, e como oera a então União Soviética que empreendiaidênticos programas experimentais; e, en-fim, a impossibilidade, senão mesmo a re-lutância, da comunidade médico-científicaresistir quer ao poder e à influência do Es-tado, sobretudo quando legitimado com oimperativo da segurança nacional, quer às

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extraordinárias possibilidades de aquisiçãocognitiva, legitimadas com a prossecuçãode um bem comum superior aos interessessingulares dos indivíduos a ele sacrificados,quer ao mercado que, por meio das insti-tuições financiadoras, públicas ou privadas,garante meios de outro modo inacessíveis,tanto aos organismos que acolhem os projec-tos de investigação médico-científica, comoàs carreiras dos investigadores individuais.Os críticos mais avisados concluem comuma nota céptica, senão mesmo pessimista,quanto à dinâmica imparável da experimen-tação biomédica, quanto à capacidade decontrole dos instrumentos reguladores delaque se verifica não bastarem para impedir arepetição de autênticas atrocidades, e quantoà sempre reivindicada auto-suficiência dacomunidade científica que afirma praticarum rigor científico e estar submetida aimposições éticas que os perpetradores decrimes passados não possuíam (Cascais,2000a). Não falta quem, a este respeito, ad-vogue a instauração de um novo Tribunal deNuremberga permanente, capaz de arbitrar aquestão que permanece no âmago das pre-ocupações desde o Julgamento dos Médicose que, hoje como então, opõe, de um lado,a apologia da liberdade de investigação cien-tífica em nome dos superiores interesses daciência ou da sociedade e, do outro lado, adefesa dos interesses do indivíduo.

O conjunto de fenómenos que con-stituem condições remotas de emergênciada bioética remonta pois ao imediatopós-Segunda Guerra Mundial. Trata-se deacontecimentos que não se podem desligardo estabelecimento da ordem mundial dopós-guerra, nem, como é óbvio, do papeldeterminante dos Estados Unidos comosuper-potência vitoriosa que tanto organiza

o Julgamento dos Médicos como empreendeo Projecto Manhattan e a experimentaçãodos efeitos da radioactividade na sequênciadele. Não é de surpreender que a bioéticaviesse a surgir nos Estados Unidos e a man-ter perduravelmente as características típicasda sociedade e da organização políticanorte-americana. O domínio da regulaçãoda experimentação humana, com a capitalimportância que teve para a emergência dabioética como forma de problematização daciência e da técnica modernas, constituiuigualmente a via da instalação da própriabioética no interior do processo tecno-científico moderno, instalação que, há quereconhecê-lo, se operou ao preço do seuensimesmamento numa prática profissionalde especialistas autorizados, a nova classedos bioeticistas (Cascais, 2000a). De talinstalação dão prova vários factos. À cabeça,a multiplicação de documentos reguladores,não só da prática de investigação biomédica,mas de toda a prestação de cuidados desaúde que incessantemente têm sucedido, eem ritmo crescente, ao Código de Nurem-berga e à Declaração de Helsínquia numafúria codificadora e juridificadora que, nomomento presente, prossegue de modo tãoimparável quão imparável é o desenvolvi-mento tecnocientífico. Mas a integração dabioética no próprio processo tecnocientí-fico é ainda atestada pelo estabelecimentoe a institucionalização generalizada dascomissões de ética, quer de investigação,quer de âmbito geral - nomeadamente ascomissões hospitalares e as comissõesnacionais de ética - e pela institucional-ização do seu ensino, que culmina a suaconsagração académica. Ora é precisamenteesta integração que tem suscitado reservas,sobretudo no campo da filosofia, quanto

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à possibilidade de a bioética constituirperspectiva analítica suficientemente lúcida- por falha do suficiente distanciamento -do processo tecnocientífico e veículo paraobviar efectivamente aos efeitos inumanosda sua imparável dinâmica interna. Con-frontado com o desembaraço dos cientistasem qualificar de “ético” tudo quanto édo interesse da ciência que abusivamentepraticam, há mesmo quem apode a bioéticade Instituto das Permissões Científicas5.

2) A disponibilidade de novas tecnolo-gias biomédicas que, ao mesmo tempo queabrem novas possibilidades diagnósticase terapêuticas, põem em causa conceitose definições antiquíssimos e suscitamperplexidades e dilemas inéditos.

Seria empresa impossível dar aqui contade todos os desenvolvimentos tecnológicosque estão na origem de uma mudança pro-

5A expressão, que dá voz a uma corrente deopinião, encontra-se em Richard John Neuhaus(1992), “The Way They Were, The Way We Are”,in Arthur Caplan, ed. et al.,When Medicine WentMad. Bioethics and the Holocaust. Totowa: HumanaPress: 211-230. A crítica mais ou menos radical dabioética gerou já uma literatura considerável, tantonos EUA como na Europa; para maior conhecimento,V. nomeadamente: Pierre-Henri Gouyon, DominiqueLecourt, Dominique Memmi, Jean-Paul Thomas eDominique Thouvenin (1999),La bioéthique est-ellede mauvaise foi? Paris: Presses Universitaires deFrance; Dominique Memmi (1996),Les gardiens ducorps. Dix ans de magistère bioéthique. Paris: Édi-tions de l’École des Hautes Études en Sciences So-ciales; Lucien Sève (1994),Pour une critique de laraison bioéthique. Paris: Odile Jacob; Wesley J.Smith (2000), Culture of Death. The Assault onMedical Ethics in America. San Francisco: En-counter Books e Jean-Paul Thomas (1990),Misère dela bioéthique. Pour une morale contre les apprentissorciers. Paris: Albin Michel.

funda das possibilidades biomédicas ou danatureza e do alcance da prestação de cuida-dos médicos. Do mesmo modo, o sentidocultural, social, ético e político profundo detal mudança não pode ser entendido a par-tir da mera listagem desses desenvolvimen-tos tecnológicos. Podem porém citar-se al-guns que fizeram história, pelo seu contrib-uto para a transformação de noções prevale-centes a respeito do início e do fim da vida,de corpo próprio e de identidade individual,assim como na erosão de alguns dos maissólidos pilares da antropologia e da ética, epelo papel que desse modo desempenharam,quer como condições próximas de emergên-cia da bioética, quer como factores de reacti-vação da problematização bioética da tecno-ciência biomédica.

O surgimento da tecnologia da hemod-iálise para tratamento da insuficiência re-nal crónica terminal deu azo a uma dasprimeiras controvérsias públicas que ante-cede a emergência da bioética, mas que semanteve com toda a sua vivacidade nos anosde instalação desta; tratava-se do problemada sua escassa acessibilidade desse recursoterapêutico e a consequente necessidade dese estabelecerem prioridades na respectivaalocação, com a correspondente seriação decandidatos e a delicadeza dos critérios da suainclusão ou exclusão, que pode implicar umadecisão de escolha entre a vida e a morte,como ocorreu com o pioneiro programa dediálise de Seattle, nos EUA, iniciado em1960 (Jonsen, 1993:S2; Jonsen, 1998:211-213). As primeiras tentativas de transplantes,ainda com carácter experimental, tiveram lu-gar na primeira metade da década de cin-quenta, começando a generalizar-se na dé-cada seguinte com a introdução de imunos-supressores contra a rejeição (Jonsen, 1998:

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197-208). As transplantações cardíacas, ini-ciadas por Christian Barnard em 1967, maisnão fizeram que reactivar as discussões jáprecipitadas pelas renais (Jonsen, 1993:S2;Jonsen, 1998: 200-201). Jonsen assinalacontudo, a este respeito, que o tipo de dis-cussões surgidas neste campo, se inaugu-raram um estilo de fazer ética que haveria dese tornar comum na tradição bioética norte-americana, não passava porém pela análiserigorosa de uma teoria ética prévia e da suaposterior aplicabilidade à matéria em debate,mas antes pela discussão em torno de umcaso concreto, empiricamente bem definidomas vago em termos éticos, a partir de quese tiravam conclusões que levavam a algumaforma de definição útil para estabelecer umcurso de acção. Diz Jonsen que se tratade uma questão metodológica que atravessatoda a história da bioética norte-americana,a de saber “como é que se há-de adaptar ateoria ética às deliberações práticas – ou seráque se deveria sequer adaptar? Essa questãohaveria de ocupar o centro das atenções nabioética dos anos noventa” (Jonsen, 1998:211). Os transplantes de órgãos suscitaramalguns dos primeiros debates do que viriaa entender-se por bioética, porquanto rev-olucionaram as definições até então prevale-centes de identidade individual, ou de morte,e levantaram questões que continuam emaberto, como o valor social e ético da doaçãoem dadores vivos e da recolha de órgãosem cadáveres. O problema da escassez deórgãos punha-se desde o início das transplan-tações e é ele que mais tem contribuído pararelançar a problematização bioética, levan-tando os problemas colaterais da distribuiçãode recursos escassos, tal como começou poracontecer com a hemodiálise, com a ressalvaque, no caso dos transplantes, esta questão

suscita problemas colaterais mais candentesainda, como os do risco de tráfico de órgãose a consequente transformação dos seres hu-manos em meros bancos de órgãos, o quepoderia ocorrer maximamente no caso de aclonagem humana se vir a efectuar com essepropósito e a legitimar-se como terapêuticaem nome dele. No entanto, também se podedar como exemplo de interferência frutíferada bioética no impulso imparável da tecno-ciência o papel de uma preocupação bioéticana inflexão da investigação científica no sen-tido da clonagem de tecidos e órgãos iso-lados que não passe pelo indivíduo inteiro,ou da exploração das possibilidades do xeno-transplante.

Em 1968, uma comissão da Faculdade deMedicina da Universidade de Harvard, en-cabeçada por Henry Knowles Beecher, prop-unha pela primeira vez a definição de mortecerebral para encerrar uma questão que oPapa Pio XII tinha aberto em 1957, a pedidode um grupo de eminentes anestesiologistaspreocupados com as repercussões filosóficase éticas da então recente tecnologia da res-piração artificial através de máquinas venti-ladoras, inicialmente ensaiadas durante umaepidemia de poliomielite na Dinamarca, em1952 (Jonsen, 1993:S3; Jonsen, 1998:238-242). A controvérsia que haveria de opôrum entendimento da morte como aconteci-mento ao seu entendimento como processo“foi um luminoso momento nos dias iniciaisda bioética” (Jonsen, 1998:241) e teria pre-cisamente lugar em 1970 noHastings Cen-ter, uma das duas primeiras instituições de-votadas à nova disciplina. Além do campodos transplantes, a questão da redefiniçãoda morte tornou-se igualmente crucial comas tecnologias de manutenção artificial davida, desde os primitivos “pulmões de aço”,

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concebidos em 1929, até às mais sofisti-cadas aparelhagens de reanimação cárdio-respiratória, que se generalizaram a partirda década de cinquenta e revolucionaram ocampo do intensivismo, transformando asunidades de cuidados intensivos em labo-ratórios de ponta, ao mesmo tempo que pal-cos de alguns dos mais dilacerantes dilemasbioéticos. Será nesse quadro que, na dé-cada de cinquenta, neurologistas francesesirão elaborar a noção de coma ultrapassado,ou irreversível. O “desligar da máquina”tornava-se doravante um dos tópicos e have-ria de agitar um dos fantasmas maiores dabioética, nomeadamente quando a seu re-speito se retomou a discussão da eutanásia.Pouco após a fundação dos primeiros cen-tros de investigação em bioética, o dramáticocaso de Karen Ann Quinlan, em 1975-76, - a“mãe de todos os casos” - é de molde a figu-rar como o melhor exemplo da ambivalênciados avanços das tecnociências biomédicas edas controvérsias a que deram origem. Nocaso Quinlan, tratava-se de pôr termo à sus-tentação artificial da vida de uma pacienteem coma irreversível e dos correlativos prob-lemas de futilidade médica e de respons-abilidade médica ou parental por procuraçãona tomada de decisões. A decisão final doSupremo Tribunal do Estado de Nova Jer-sey, em 31 de Março de 1976, foi no sen-tido de aceder favoravelmente aos pais dajovem em coma ultrapassado para que fossedesligada do sistema de manutenção artifi-cial da vida, o que até aí os médicos que atratavam e a direcção do hospital onde es-tava internada recusavam (Jonsen, 1993:S3).Lembra Daniel Callahan que o caso Quin-lan demonstrava bem a situação de fundoprevalecente nos Estados Unidos: ele marcao termo de uma época em que o modelo de

decisão se centrava exclusivamente na pes-soa do médico e na sua consciência pessoalou profissional; no caso Quinlan, perante asposições e convicções irredutíveis dos médi-cos e dos pais que disputavam entre si o di-reito de decidir, houve recurso para uma in-stância reguladora terceira, naquele caso ainstância jurídica, mas cujo papel haveria deser progressivamente cometido à nova dis-ciplina nascente, a bioética; esta marcariaassim a falência do modelo de resoluçãodos conflitos éticos centrado na consciên-cia e nas qualificações respectivas dos difer-entes actores (Callahan, 1986:52). Alémdas suas repercussões na delimitação do finalda vida, a inovação tecnológica no domíniodo intensivismo teve efeitos no aumento daspossibilidades de sobrevivência de recém-nascidos de outro modo inviáveis, facto que,aliado à inovação tecnológica nas áreas dodiagnóstico e da terapêuticain utero, seiria repercutir, por sua vez também, na re-definição dos limites da possibilidade de in-tervenção biomédica antes do nascimentoe, consequentemente, na reconfiguração doinício da vida. Estes fenómenos conjuga-dos encontram-se, de resto, na definição deuma nova disciplina biomédica em 1960, aneonatalogia. Exemplo clássico de tecnolo-gias de diagnóstico pré-natal responsáveispor aquele tipo de alterações é a amnio-centese, que permite a detecção precoce dedoenças e malformações e a prevenção atem-pada, sobretudo quando terapêuticas igual-mente novas existem para a intervençãoinutero, mas que também podem ser respon-sabilizadas por fornecerem fundamentos in-éditos para a interrupção terapêutica e selec-tiva da gravidez.

Outra consequência de primeiro plano dainovação tecnológica no campo terapêutico,

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desde a tecnologia da diálise e dos trans-plantes e de toda a farmacologia, a eles as-sociada ou não, foi o extraordinário alarga-mento da cronicidade da doença. Este factoacarretou de maneira directa problemas deredefinição do esforço terapêutico e de fu-tilidade médica, mas também veio conferirrenovada acuidade a problemas como os dalegitimidade da eutanásia ou da necessáriadefinição de conceitos como o de qualidadede vida, com toda a arbitrariedade e rela-tivismo a ele ligados, este último sendo deinegável importância quando abrange direc-tamente uma crescente população de doentescrónicos, cuja vida apenas pode ser prolon-gada por meios tecnológicos, num estado dedoença terminal que há não muito tempotinha um prognóstico fatal a curto prazo. Asinsuficiências crónicas terminais, coronárias,hepáticas, renais, etc. dão disto superabun-dantes exemplos, pondo em causa ao mesmotempo tanto o modo de conceber um es-tado terminal que se prolonga ao ponto depermitir ao doente uma expectativa de vidasemelhante ao do indivíduo saudável, comoo modo de conceber os parâmetros de nor-malidade biológica numa multidão de pes-soas cuja sobrevivência é uma vitória tec-nológica mas que muito frequentemente ap-resentam valores analíticos que pouco ounada correspondem a um estado de saúdeestritamente entendido. Juntamente com oalargamento da cronicidade, foi também omorrer que se prolongou a um ponto quecentrou nele uma preocupação essencial decuidar onde outrora se procedia à preparaçãopara o além, inteiramente referido ao mo-mento culminante, brutal e espectacular daagonia, a morte. Não é por acaso que surgeem 1969 o hoje clássicoOn Death and Dying

da psiquiatra Margaret Kübler-Ross6. Igual-mente coextensivos à disponibilização de no-vas tecnologias biomédicas, como os prob-lemas da definição do princípio e do fim davida, do aborto, da eutanásia, do encarniça-mento terapêutico e do conceito de qualidadede vida, permanecem sempre presentes osproblemas da distribuição de recursos escas-sos. Contudo, estes problemas não são senãoaqueles que mais de perto se ligam ao pro-gresso das tecnociências biomédicas e quesurgem no interior do campo da prestação decuidados de saúde enquanto tal.

Na verdade, uma ambiguidade fun-damental projecta a sua sombra sobrea disponibilidade de novas tecnologiasbiomédicas e sobre o progresso médico deque elas são portadoras. O mesmo se podedizer, evidentemente, acerca da maior partedas tecnologias e do progresso científico-tecnológico em geral: elas são alvo tantode expectativas positivas como negativas,são igualmente desejadas pelo seu sucessoesperado na refrega contra novas e antigasaflições humanas e temidas pelos seusefeitos secundários inesperados ou indese-jáveis. Mais exactamente, a ambiguidadea que nos temos vindo a referir respeitaà avaliação do sentido emancipatório doprogresso médico em particular e do pro-gresso científico-tecnológico em geral. Oexemplo que, a este propósito, se tornoureferência obrigatória, é o da talidomida,medicamento administrado às mulheresantes ou durante a gravidez e que foi causade graves malformações fetais no inícioda década de sessenta. A evidência dosefeitos teratogénicos da talidomida levou à

6Elisabeth Kübler-Ross (1969),On Death and Dy-ing. New York:MacMillan.

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alteração da legislação americana em 1963,no sentido de condicionar a autorização decomercialização de novos medicamentos àverificação prévia das respectivas segurançae eficácia mediante ensaios clínicos sujeitosa avaliação por comissões independentesde ética, osInstitutional Review Boards,desde então institucionalizados (Archer,1996:18-19; Jonsen, 1998:140-142): “Oinício da revisão paritária por uma comissãoética independente (. . . ) foi o princípio dofim da ingénua confiança na integridade doinvestigador” (Jonsen, 1998:145). Autoreshá, inclusive, que estão persuadidos que ocaso da talidomida terá sido responsávelpor forçar a adopção da Declaração deHelsínquia. O certo é que ele precipitouconsiderável preocupação pública e tornou-se símbolo de justificados receios a respeitodo sentido do progresso médico nos anosque precederam de perto o surgimentodos debates bioéticos. E demos exemplosapenas dos primeiros problemas a terem sidolevantados, na qualidade de causas próxi-mas da emergência do campo da bioética.Quanto aos factores actuais de reactivaçãoda problematização bioética, bastará referiras actuais possibilidades da terapia génica,abertas pelos avanços da biologia molecular,para mostrar como se trata de um processoimparável. O estado de permanente rev-olução científica e tecnológica das últimasdécadas tem efectivamente consequênciasbem mais vastas e profundas, tanto namedicina como em todos os domíniosda investigação científica, contribuindonomeadamente para um desafiar de algunsconceitos fundamentais das humanidadesmédicas em particular e das humanidadesem geral, em cujo contexto as mudanças naprática e no pensamento biomédicos não

podem deixar de ser entendidas. Calla-han enumera como efeitos principais dasmudanças tecnociências biomédicas osseguintes: o prolongamento da expectativamédia de vida, que revolucionou a nossamaneira de encarar o ciclo de vida, comalterações fundamentais na natureza dainfância e das relações de parentalidade; acapacidade de controle da procreação, comalterações radicais no modo de conceber arelação entre ela e a sexualidade e o papelda mulher na sociedade; a alteração dapirâmide etária nas sociedades desenvolvi-das, com repercussões essenciais no modode entender as relações geracionais e o papeldo envelhecimento e da idade avançada; aalteração do sentido do conhecimento dosfenómenos humanos, primeiro através dapsiquiatria e depois através da benética,com efeitos directos na nossa autocom-preensão e no modo de conceber as relaçõesinterindividuais; a alteração das concepçõesda fixidez da natureza humana, que, certasou equívocas, faz com que a sua persecuçãose transforme ela própria numa fonte demudança (Callahan, 1994:29).

3) Novos campos de problematizaçãocientífica e social, como a ecologia e asaúde ambiental, a engenharia genéticae as biotecnologias, o crescimento de-mográfico, a manipulação tecnológica docomportamento, etc..

O desenvolvimento tecnocientífico levan-tou preocupações muito para além dodomínio biomédico, mas que não podiamdeixar de se espelhar nele. A consciênciados perigos do desenvolvimento tecnocien-tífico tinha vindo a crescer desde que RobertOppenheimer, presidente do projecto Man-

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hattan, contesta a bondade da física nuclearaplicada a fins bélicos. Em termos porven-tura mais públicos, aquela consciência ganhaimpulso sobretudo a partir do momento emque começaram a notar-se os efeitos biológi-cos a longo prazo da radioactividade nossobreviventes do bombardeamento atómicode Hiroxima e Nagasaki, facto que marcao nascimento do movimento anti-nuclear(Hens e Susanne, 1998:100) e não cessa dese desenvolver na senda da competição tec-nocientífica entre as grandes potências, noquadro da corrida ao armamento na épocada guerra fria, mas também com o conheci-mento das devastações ambientais causadaspelas armas convencionais, como as bom-bas denapalm. Os desastres nucleares degrandes proporções, desde o deThree MileIsland, em Harrisburg, nos Estados Unidos,em 1979, ao de Chernobyl, na antiga UniãoSoviética, em 1986, mais não fazem quetransformar a preocupação de sectores in-formados e intervenientes na tragédia impo-tente de muitos e na generalizada consciên-cia pública dos perigos da tecnociência. Em-bora o tema da responsabilidade científica jáfosse esgrimido desde o século XIX pelascorrentes religiosas num tom fundamental-ista, anti-científico e anti-moderno, o casoOppenheimer constitui o episódio inaugu-ral da problematização da responsabilidadecientífica pelos próprios cientistas. O outromomento alto da consciência da responsabil-idade científica surgiria com a moratória dePaul Berg, já na década de setenta. Noentanto, e ao contrário do que entre nóssustenta Luís Archer, não só o papel dospróprios cientistas no questionamento éticoda ciência teve um papel consideravelmentemodesto na emergência da bioética, comoa racionalidade tecnocientífica é, pela sua

própria natureza, avessa a qualquer éticae de modo nenhum possui as condiçõesnecessárias à fundamentação de uma éticapara a tecnociência. Na época do surg-imento da bioética, a problematização daresponsabilidade científica tinha já percor-rido um longo caminho e havia-se entretantocruzado com a preocupação ambientalista.Episódios relevantes desse cruzamento e quefazem parte da pré-história da bioética forama catástrofe dosmogde Londres, que em1952 causou 4000 mortes (Hens e Susanne,1998:99) e a tragédia da chamada “doençade Minamata” que afectava uma populaçãode pescadores habitantes da baía com mesmonome, no Japão, entre 1959 e 1965, e cujacontaminação maciça por resíduos industri-ais de mercúrio esteve na origem de grandenúmero de mortes e malformações congéni-tas. Este caso deu também origem a umaiconografia fotográfica de extraordinária ex-pressividade que muito contribuiu para adramatização de um dos maiores problemascom que se confronta a humanidade contem-porânea. Em 1962, a publicação do livroSilent Spring, da bióloga americana RachelCarson, constitui um marco7. Torna-se mod-elar das preocupações ecológicas a denún-cia aí feita do lento mas irreversível enve-nenamento ambiental por pesticidas comoo DDT, então de uso generalizado e pos-teriormente interdito nos países desenvolvi-dos (Hens e Susanne, 1998:100; Soromenho-Marques, 1998:31-32), isto bem antes deo movimento ecológico adquirir expressãopolítica e social tão significativa como omovimento “Verde” na República Federal daAlemanha das décadas de setenta e oitenta,

7Rachel Carson (1964),Silent Spring. London:Readers Union/Hamish Hamilton (ed. or.: 1962).

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até ao mais recenteGreenpeace. Os termosem que Rachel Carson se exprimia contin-uam a ser aqueles com que se abordam ca-sos tão espectaculares como os dos gigan-tescos derrames de petróleo, desde o do Tor-rey Canyon em 1967 e do Amoco Cadiz, em1978, na costa da Bretanha francesa até ao doExxon Valdez, já na década de 90, ao largoda costa do Alasca, mas também os inúmerosexemplos comezinhos com que hoje nos con-frontamos quotidianamente ao pé da porta.

Pode efectivamente dizer-se que a bioéticae o ambientalismo contemporâneo nascemde um mesmo chão. Pelo menos três cam-pos podem mostrar-nos como estas duas pre-ocupações confluem a determinados níveis:a saúde ambiental, as biotecnologias e ademografia. Com o avanço do tempo, apreocupação com o ambienteper se, semperder nenhum do seu vigor, viria a ser re-tematizada em termos de saúde ambiental,englobando os seres humanos enquanto seresvivos dependentes de um nicho ecológico, oque não deixa de constituir um certo deslo-camento epistemológico de consequênciasnão negligenciáveis. Pontos chave nestatransformação são os acidentes de Seveso,em Itália, em 1976, o primeiro grande aci-dente industrial com a libertação de diox-ina, num complexo fabril da Hoffman-LaRoche, e isto numa altura em que o mecan-ismo da acção biológica no organismo aindanão tinha sido descrito, e da fábrica damultinacional Union Carbide, em Bhopal,na União Indiana, em 1984, com a liber-tação de isocianato de metilo que causou amorte por gaseamento a pelo menos 3000pessoas. Casos mais recentes, que periodica-mente dão origem às mais desencontradasopiniões científicas e preocupações públi-cas e privadas, mais não fazem que prolon-

gar e generalizar o processo até o transfor-mar numa questão pública de primeiro plano,como o da encefalopatia espongiforme bov-ina e da sua contrapartida humana, a doençade Creutzfeld-Jacob, e da sua relação causalcom aquilo que é a transformação de her-bívoros em autênticos carnívoros alimenta-dos com rações feitas com base em produ-tos provindos da sua própria espécie. Aomesmo tempo que o elo entre os comporta-mentos colectivos - a poluição química e in-dustrial - e os desiquilíbrios ambientais e adoença humana ficou bem estabelecido, umarelação semelhante entre o comportamentoindividual e as alterações do estado de saúde- o cancro, as malformações congénitas ecertas doenças degenerativas - principiava adar uma renovada legitimidade ao esboço depolíticas de saúde pública voltadas para aavaliação e o controle da manipulação bio-química ou genética de produtos para con-sumo humano. O caso presente dos alimen-tos transgénicos constitui o exemplo maissignificativo disto mesmo, assim como é em-blemático do outro campo em que as con-cepções originárias da bioética e do ambien-talismo inicialmente se fundiam, isto é, o dapreocupação com as biotecnologias.

Na sequência da descrição da dupla hélicedo ácido desoxirribonucleico em 1953 porJames D. Watson e Francis H. Crick, aspotencialidades biotecnológicas da biologiamolecular no controle sem precedentes damoldura genética dos seres vivos, vegetais,animais e humanos, em breve se tornou si-multaneamente fonte de grandes expectati-vas e não menores receios: a terapia génica,o reforço de traços genéticos desejáveis ouaté o melhoramento de espécies vegetais eanimais para uso humano, senão mesmo o daprópria espécie humana, até culminar com

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o Programa do Genoma Humano e as pos-síbilidades totalmente inéditas por ele aber-tas. Na origem de tais perspectivas es-tiveram as técnicas de recombinaçãoin vitrodo ADN, desenvolvidas pela primeira vezem 1972, possibilitando a criação de organis-mos transgénicos, ou seja, de organismos ge-neticamente modificados, logo no ano imedi-ato. Depressa se tornaram patentes os inter-esses comerciais na produção de micróbios,plantas e animais geneticamente modifica-dos para uso humano, nomeadamente nas in-dústrias alimentares. Em Janeiro de 1973,um grupo de cientistas encabeçado por PaulBerg, da Universidade de Stanford, con-vocou a primeira conferência de Asilomarna qual foi proposta uma moratória volun-tária sobre certas experiências de recombi-nação genética, tomada como um protela-mento voluntário da investigação com a fi-nalidade de adiar ou talvez mesmo de aban-donar futuramente as experiências científi-cas com o ADN recombinante cujos riscosnão pudessem ser ainda cabalmente avalia-dos, em particular aquelas que envolvessema libertação de organismos geneticamentemodificados no meio ambiente (Krimsky,1982:13-23). A proposta foi publicada em1974 em revistas tão prestigiadas como aScience, a Naturee Proceedings of the Na-tional Academy of Sciences(EUA) e foi pos-teriormente objecto de acesa discussão na se-gunda Conferência de Asilomar sobre Peri-gos Biológicos, em Fevereiro de 1974, ondeum grupo internacional de cientistas se re-uniu com o objectivo de avaliar os riscos danova tecnologia e estabelecer as condiçõessob as quais a investigação poderia ou dev-eria ser prosseguida. Nesta conferência par-ticiparam vários juristas, alguns dos quaisestavam estreitamente ligados ao Hastings

Center. As Conferências de Asilomar mar-caram um novo estádio na consciência quea comunidade científica, o governo e a so-ciedade tinham da responsabilidade dos ci-entistas e de que a investigação não tem lu-gar num vazio social e político. Diz Jonsenque: “A questão ética que motivou a bioéticadesde os seus primórdios estava silenciosa-mente presente nas discussões de Asilomar:como deveríamos avaliar riscos para atin-girmos bens?” (Jonsen, 184). Foram elasque lançaram as bases da institucionaliza-ção da revisão científica; poucos meses de-pois, surgia na Universidade da Califórniaem São Francisco a primeira comissão debiosegurança. por pares da investigação. Háque lembrar que, por essa altura, os Esta-dos Unidos se encontravam ainda envolvidosna guerra do Vietname e nas conferênciasde Asilomar participou um certo número decientistas preocupados nomeadamente comos usos da investigação com fins bélicos ecom os usos sociais da ciência em geral –Paul Berg era inclusive um militante contraa guerra (Jonsen, 1998:182-185; Krimsky,1982:58-96).

A questão do sobrepovoamento mundial,com os problemas conexos da distribuição derecursos alimentares escassos, extravazavaos estreitos limites da ciência demográficapara se tornar num assunto de interessepúblico em finais dos anos sessenta (Jon-sen, 1998:13-14) e começar a ser enten-dida a partir da questão mais vasta dos lim-ites do crescimento e do questionamentode um modelo de desenvolvimento mundialem cujo seio não deixava de se cavar oabismo entre os países desenvolvidos e o en-tão chamado Terceiro Mundo. O primeirorelatório do Clube de Roma, ou RelatórioMeadows, sobre os “Limites do cresci-

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mento”, surge em 1972 (Hens e Susanne,1998:100; Soromenho-Marques, 1998:30)Um pouco antes, em 1968, tinha apare-cido o livro The Population Bomb, de PaulEhrlich8, que em tom apocalíptico augura acatástrofe a que inevitavelmente conduziráum crescimento demográfico inestancável ecuja republicação, em 1991, revela, maisdo que a permanência, o agravamento doproblema, agora ligado a fenómenos comoo aquecimento global, a destruição das flo-restas equatoriais, a fome e a poluição (Hense Susanne, 1998:100), e que já na décadade noventa virá a tornar-se enfim tema pri-oritário com a Conferência do Cairo. Al-iás, o tema da explosão demográfica foicaro a bioeticistas como Van Rensselaer Pot-ter, que fez dele cavalo-de-batalha, e An-dré Hellegers, que era mesmo especialistana área (Jonsen, 1998:302). Desde a dé-cada de sessenta, o acesso aos níveis ociden-tais de bem-estar económico e de padrões deprestação de cuidados de saúde estavam naordem do dia e começavam a ser patentesas contradições dos modelos de desenvolvi-mento, ou seja, uma população afluente cadavez mais idosa que padece sobretudo dedoenças de comportamento, no Norte de-senvolvido, por oposição às massas do Sul,jovens e famintas, devastadas por doençasde ambiente, e um Norte onde prevalece abaixa mortalidade associada à baixa natali-dade, contra um Sul onde a elevada mortal-idade não compensa, nem estatísticamentenem de nenhuma outra maneira, a elevada

8Paul Ehrlich (1968),The population Bomb. NewYork: Ballantine Books. A republicação do livroé feita em colaboração com a sua mulher; ed.ut.: Paul R. Ehrlich e Anne H. Ehrlich (1993),La explosión demográfica. El principal problemaecológico. Barcelona: Salvat Editores

natalidade. E com isto se retomava, decertoque noutros termos, mas à escala global,um problema que fêz escola no princípio doséculo e para o qual o darwinismo social emgeral e a higiene racial nazi propuseram umasolução cuja monstruosidade não se podedeixar de ter em mente no modo como hojese re-problematiza o assunto e há que lhe darrespostas que não repitam a inumanidade deoutrora: “A dimensão ambiental da presentecrise social global significa, nesta viragemde milénio, que as relações de poder entregrupos, sexos, etnias, classes, povos, Esta-dos e gerações dependem da mediação queos nossos modelos científicos, técnicos, cul-turais e económicos estabelecem com a ‘Na-tureza”’ (Soromenho-Marques, 1998:24). Énestas águas que navega Van Rensselaer Pot-ter, quando afirma, na sua proposta origináriapara a bioética: “a finalidade última (dabioética) deveria ser, não enriquecer as vi-das individuais, mas prolongar a sobrevivên-cia da espécie humana numa forma aceitávelde sociedade” (Potter, 1992:5). Embora arelação entre a preocupação (bio)ética, nodomínio da clínica e da prestação de cuida-dos de saúde, e a preocupação ecológica es-tivesse já claramente estabelecida na origemda bioética - como o atestam as obras não sóde Potter como de Hans Jonas - depressa elashaveriam de divergir, do ponto de vista emque nos situamos, entre, por um lado, umaconcepção reducionista da bioética e, poroutro, a ecologia; aquela ligação só muito re-centemente voltaria a ser recuperada por viade uma reconstruída afinidade entre aquiloque Potter chamará a bioética global e aecoética ou a ecofilosofia.

A convergência entre ecologia e bioética,em campos e a níveis discriminados, colocaporém outro tipo de problemas e que tam-

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bém têm que ver com as características orig-inárias da preocupação ambiental. Tal comoacontecia com as origens remotas do temada responsabilidade científica, numa atitudeanti-científica e anti-moderna de pendor re-ligioso, também o ambientalismo modernoenraíza no conservacionismo do século XIX,cujas correntes dominantes preconizavamuma forma de respeito quase religioso pelomundo natural e veiculavam uma desconfi-ança profunda em relação à técnica enquantoempresa humana de conquista da natureza.O ideário conservacionista remonta a mea-dos do século XIX norte-americano e inglês,com a atribuição do estatuto de protecção aovale do Yosemite, na Califórnia, em 1864, ea criação do primeiro parque natural, o Par-que Nacional de Yellowstone (Soromenho-Marques, 1998:25). AManchester Associ-ation for the Prevention of Smoke, criadaem 1843, e as célebresAudubon Society, em1886, e oSierra Club, em 1892, nos Esta-dos Unidos, foram as primeiras organizaçõesnão governamentais de defesa do ambiente(Soromenho-Marques, 1998:27). O períodoentre 1902 e 1910 é frequentemente apon-tado como o da fundação do actual movi-mento ecológico, com as mais representa-tivas instituições a surgirem logo após, aBritish Ecological Society, em 1913, e aEco-logical Society of America, em 1916 (Hens eSusanne, 1998:98). Uma das vozes mais in-fluentes no mundo norte-americano foi AldoLeopold, com o seu célebreA Sand CountyAlmanac9, de 1949, no qual apregoa uma“ land ethic” de retorno romântico a um ru-ralismo pré-mecanizado que alarga a noção

9Aldo Leopold (1968),A Sand County Almanac.And Sketches Here and There. Oxford: Oxford Uni-versity Press (ed. ut.).

de comunidade a ser protegida à terra, comos seus recursos minerais, vegetais e an-imais, para além dos seres humanos. Oideário conservacionista acaba por ser es-pecífico de alguns traços culturais do mundoanglo-saxónico, e também germânico, o quetorna compreensível que a sua influência per-dure nas correntes contemporâneas da ecolo-gia profunda do americano Arne Naess, nosanos oitenta do século XX, ou na “DeepGreen Theory” dos australianos Richard Syl-van e Val Plumwood (Hens e Susanne,1998:109). Não é também por acaso que os“Grüne” alemães tiveram uma pujança semigual em qualquer outro país, assim comoreuniram no seu seio tanto os jovens univer-sitários urbanos pós-modernos como os últi-mos representantes da agricultura tradicionalda antiga Prússia de sentimentos fortementepré e mesmo anti-modernos. Por outro lado,a definição originária de ecologia parece re-montar a Ernst Haeckel, eminente biólogoalemão de século XIX, no seu discurso inau-gural como docente de Botânica da Univer-sidade de Iena (Hens e Susanne, 1998:98).Haeckel foi também um dos grandes inspi-radores do eugenismo que dominou as ciên-cias biomédicas de finais do século XIX eque perdurou mesmo para além da medicinanazi e da Segunda Guerra Mundial. Nestecaso, o passadismo religioso reconverte-sena tecnociência biomédica que recupera emtermos seculares as funções de controle so-cial dantes a cargo da religião.

O que há de comum, por um lado, ao dar-winismo social que culmina com a higieneracial nazi e o holocausto e a ideologia do“sangue e terra” que lhes correspondem,e, por outro lado, as correntes da ecologiaprofunda é o anti-humanismo. Algumascorrentes que pugnavam pelo regresso à

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natureza na Alemanha pré-nazi tinham umpendor decididamente conservador e consti-tuíram um contingente de recrutamento dequadros do Terceiro Reich. Rudolf Hess éo mais célebre dos praticantes do naturismoalemão que o nazismo conquistou e quejustamente denominou o regime debiolo-gisch, isto é, aquele que se lhe afiguravaser o único consentâneo com os ditames danatureza e que por isso mesmo garantia asobrevivência da espécie humana, ou talvez,melhor dizendo, dos representantes delapor excelência, a raça ariana, em perigodevido à reprodução desenfreada das raçasinferiores ou de membros degenerados daraça superior. O anti-humanismo da ecolo-gia profunda, por sua vez, consiste no seubiocentrismo, isto é, no facto de privilegiara biosfera como depositária fundamental dovalor, ao qual as preocupações com os sereshumanos se devem vergar. Do ponto de vistada ecologia radical, perante a salvaguardados últimos exemplares de uma espécieem extinção e o respeito pela vida de umbebé africano a morrer de fome num mundoque se diz sobrepovoado, a opção pelosprimeiros é inequívoca. Esta atitude não édestituída de perigosas semelhanças comoutras atitudes no campo da saúde ambientale da bioética mais recente. Na perspectivada saúde ambiental, os seres humanos,enquanto seres vivos, equiparam-se a toda abiosfera na qualidade de vítimas potenciaisem permanente risco e cuja vida e saúde háportanto que salvaguardar como condiçãomesma de tudo quanto possa ser a suahumanidade. Em contrapartida, a biosfera, eem particular os animais, readquirem comotal, e na medida do perigo que correm,uma dignidade de que a ciência modernaos tinha destituído desde o século XVII,

recusando à natureza qualquer valor éticopara além do proveito instrumental quedela se poderia retirar como matéria primaindefinidamente disponível e cujos recursoscom a maior candura e boa consciênciase acreditava serem inesgotáveis. Ora arestituição, à natureza, da dignidade de quea ciência a tinha destituído, quando operadaa partir de categorias mediante as quais sepretende interpretar de modo normativo asconcepções científicas, pode efectivamentetraduzir-se em atitudes anti-humanistas eprecipitar uma inumanidade equivalenteàquela de que os cientistas costumam acusara superstição. Parafraseando a célebre frasede Goya, é como se a vigília da razão fossetão responsável pela monstruosidade como osono dela. Um desenvolvimento recente dabioética levanta precisamente esta questãoa partir da fundamentação biológica dosdireitos, já não apenas do homem, masdos animais. Ora, a actual pretensão defundar direitos em dados biológicos nãoé diferente do modo como os ideólogosnazis legitimavam as prerrogativas da raçaariana, que começava com um direito pri-mordial ao espaço vital. Assim como fundardireitos em dados biológicos é simétricode os retirar com igual fundamento, factoque se prefigura no nosso horizonte se oconhecimento genético preditivo, sobretudona sequência do mapeamento integral dogenoma humano, for utilizado como critériode selecção no mercado de trabalho oupelas companhias seguradoras. Tanto nãofaria mais que consumar o processo dabiopolítica moderna, tal como começoupor descrevê-lo Michel Foucault e depois oprosseguiu Giorgio Agamben10, para quem

10Agamben desenvolveu a sua reflexão sobre a

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o paradigma biopolítico da modernidade nãoé já a antigapolis grega, onde imperava ojogo racional mediado pela palavra humana,mas antes o campo de concentração, ondeo que prevalece é aquilo que ele chama avida nua, ou seja, a matéria prima do corpoindefinidamente manipulável. Neste sentido,o eixo biocêntrico, que em certas correntesda bioética contemporânea almeja contrabal-ançar o antropocentrismo caduco que desdehá muito foi responsável pela deplecçãodos recursos naturais, bem se pode ter naconta de um prolongamento da biopolíticana sua dimensão mais decididamente anti-humanista e por isso mesmo susceptível deprecipitar os desenvolvimentos mais inu-manos. Com efeito, a protecção dos animaisnão humanos e o reconhecimento de direitoscom base na sensibilidade à dor, que elestêm em comum com os animais humanos,repõe o biocentrismo no centro dos debates(bio)éticos mais recentes. É deste modoque chega a propôr-se a substituição dosanimais de experimentação, nos ensaiosclínicos, por seres humanos doentes. PeterSinger é um dos nomes proeminentes dabioética que mais finamente desenvolveuesta problemática na sua já célebreLiber-tação animal11. Descendente de judeus e

biopolítica sobretudo em: Giorgio Agamben (1997),Homo sacer. Le pouvoir souverain et la vie nue. Paris:Éditions du Seuil, no qual desenvolve a tese de que oparadigma biopolítico da modernidade é o campo deconcentração e já não a polis grega clássica; V. tam-bém:Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris:Éditions du Seuil, 1995 eCe qui reste d’Auschwitz.Paris : Éditions Payot et Rivages, 1999.

11Peter Singer (1999)Liberación animal. Madrid:Editorial Trotta; para melhor se compreender o pen-samento de Singer, V: “Bioethics and Academic Free-dom”, Bioethics, 4 (1), 1990: 33-44;Ética prática.Cambridge: Cambridge University Press, 1995 e

insuspeito de defender posições semelhantesàs da biomedicina nazi, Singer foi noentanto impedido violentamente de realizarconferências na Áustria por manifestantesque o acusavam de fazer a apologia damundividência nazi com as suas posiçõesacerca do respeito pela dignidade dos ani-mais. A título de memória instrutiva, quenão exactamente de fábula moral, poderámesmo assim observar-se que a primeiralegislação de protecção do bem-estar dosanimais de experimentação foi promulgadaem 1933 pelo regime nazi, pouco antesdas leis de Nuremberga, que retiravam aosmembros das raças inferiores a cidadaniaalemã, dando-se assim o primeiro passo nasenda que conduziria ao extermínio12.

4) Irrupção de novos movimentossociais que levantam questões de recortebiomédico.

Não pode ser negligenciada a importânciados movimentos sociais que irrompem nassociedades ocidentais sobretudo após a Se-gunda Guerra Mundial, e especialmente nosanos sessenta e setenta, sobretudo aquelescom incidência biopolítica directa. O queestá em jogo na relação entre os movimen-tos sociais e as questões biomédicas é, umavez mais, o sentido emancipatório das tec-nologias biomédicas. E uma vez mais, é deum sentido ambivalente que se trata, con-sistindo a sua duplicidade, por um lado, nocontrole público das condutas privadas quenunca deixou de crescer na razão directa da

Repensar la vida y la muerte. El derrumbe de nuestraética tradicional. Barcelona: Paidós, 1997.

12É isto mesmo que lembra Luc Ferry em (1992),Le nouvel ordre écologique. L’arbre, l’animal etl’homme. Paris: Grasset: 181-186.

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medicalização da sociedade, e, por outro, naexploração das possibilidades tecnocientífi-cas no sentido do desenvolvimento de novosestilos de vida que exercem pressão con-stante sobre os limites de tolerância social noquadro das sociedades abertas em que vive-mos. Os movimentos feministas,gayse lés-bicos foram aqueles que de forma mais pro-funda, duradoura e consequente se empen-haram na crítica do poder e do saber médi-cos, e da tecnociência em geral, como in-strumentos de controle social, e que no seuseio deram corpo a um número substancialde estratégias de resistência a ele. Desde ostempos mais heróicos do sufragismo nove-centista que, em paralelo com a luta pelosdireitos cívicos, se desenvolvia um trabalhoe um combate mais lentos, mais morosos etalvez mais discretos, no campo da saúde dasmulheres, dos seus direitos reprodutivos e dasua sexualidade, mas também da informaçãoe da educação sexual dirigida a toda a so-ciedade, e isto de um modo já então alterna-tivo ao higienismo que na época se ocupavadas mesmas questões mas num sentido bemdiferente. Segundo Reich, os acesos debatesem torno do controle da fertilidade, longabatalha da célebre Margaret Sanger (Jonsen,1998:298-299), desempenharam um papelcrucial na emergência da bioética: “e numsentido bem real, muita da enorme energiaque foi canalizada para a bioética por voltade 1970/71 era energia desviada dos debatesreligiosos então cada vez mais fúteis acercado controle da fertilidade” (Reich, 1999:37).Por outro lado, todo o debate contemporâneoà volta do aborto, que continua a ser pontocentral nas discussões bioéticas, teve um mo-mento alto nos Estados Unidos ao mesmotempo que surgia a bioética enquanto dis-ciplina e discurso, com o caso Roe contra

Wade, que, em 1973, esteve na origem da al-teração legislativa que deu início à liberaliza-ção da prática da interrupção voluntária dagravidez (Callahan, 1986:49). Alvos perma-nentes da crítica feminista continuam a ser,por exemplo, os critérios economicistas deselecção de candidatos a ensaios clínicos, aspolíticas totalitárias de limitação da natali-dade, com recurso a práticas como a ester-ilização compulsiva e a interrupção forçadada gravidez, mas também a educação e a in-formação sexual como forma de combate àprática da mutilação feminina em certas cul-turas. A progressiva feminilização da profis-são médica, assim como da ciência e do en-sino médicos, teve também enormes conse-quências na abordagem biomédica do corpoe da saúde da mulher. Em contrapartida,novas tecnologias biomédicas, sobretudo nocampo da medicina da reprodução, foramapropriadas pelos movimentos feministas nosentido de servirem móbeis emancipatóriosda condição feminina, tais como a satis-fação da reivindicação da livre disposição dopróprio corpo pela separação entre sexuali-dade e reprodução, com todas as decorrentesconsequências na vida individual e social. Ocaso exemplar sempre citado a este respeitoé o da pílula contraceptiva, a qual constituiu,desde a década de sessenta, a realização téc-nica, concreta e eficaz, de uma reivindicaçãoantiga, até então apenas possível de ser satis-feita a nível simbólico. No entanto, a pílulacontraceptiva foi apenas o ponto de partidada canalização das possibilidades tecnocien-tíficas no campo da medicina da reproduçãopara a persecução de modos de vida alter-nativos à família heterossexual nuclear tradi-cional. Pense-se apenas no caminho percor-rido pela fertilizaçãoin vitro, que permitiuo nascimento do primeiro “bebé-proveta”,

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Louise Brown, em 1978, no Reino Unido(Jonsen, 1998:308), até aos actuais e futurospréstimos da inseminação artificial para oscasais de mulheres lésbicas.

A repercussão da fortíssima tradiçãode associativismo e de participação cívicanorte-americana na emergência da bioéticade modo algum se resume aos movimentosfeministas. Associações cívicas como asde doentes e de consumidores remontampelo menos às primeiras décadas do séculoXX, como a Associação Americana deConsumidores, onde, já na década de cin-quenta, pontifica Ralph Nader, advogadonovaiorquino que se notabilizou pela ferozdefesa dos direitos dos consumidores (Hense Susanne, 1998:99). Estes movimentosderam um contributo decisivo para o afina-mento dos critérios da qualidade, e a práticaefectiva da sua exigência, na prestaçãode cuidados de saúde, assim como para acriação de um público informado e atentode “concerned citizens”. Os direitos dospacientes constituíram, por outro lado,uma preocupação central no pensamentode Daniel Callahan, na época em quefundou oHastings Center. Comum a estesmovimentos sociais é a sua ênfase, deresto afim do espírito de Nuremberga, naautodeterminação e na autonomia comopressupostos fundadores da defesa dosdireitos civis, o que teve um impacto directona tradicional relação entre médico e doentee entre a profissão e a ciência médicase a sociedade em geral, com contributosessenciais na superação do paternalismomédico e das funções de controle socialda biomedicina. É neste sentido queconstituiu um marco histórico a exclusãoda homossexualidade da lista de doençasmentais, pela Associação Psiquiátrica

Americana, no início dos anos setenta epouco depois da revolta de Stonewall quemarca o começo dos movimentosgays elésbicos contemporâneos. Assistia-se entãoao advento de uma ciência pós-normal -não necessariamente no sentido que Kuhnpoderia atribuir ao termo - que a poucoe pouco deixava de observar as minoriassociais sob o prisma do desvio e da normal-ização, ou seja, como objectos indefesos evulneráveis de experimentação biomédicacompulsiva com o móbil da promoção deum superior bem colectivo. Recordemos queas experiências de Tuskegee se realizaramsobre negros pobres e que boa parte dapopulação institucionalizada sempre serecrutou entre os grupos sociais minoritáriose de algum modo discriminados, à partea sua condição de pacientes. Com efeito,como anteriormente vimos, os indivíduose grupos de algum modo discriminadose vulneráveis por razões não necessaria-mente médicas, mas também por elas e poracréscimo, sempre constituíram fonte derecrutamento para experimentação humanaem virtude da sua disponibilidade, e que,neste sentido, boa parte da literatura ref-erente à regulação da experimentação sedebruça sobre a protecção destes indivíduose grupos específicos. Melhor, estamos hojeem condições de saber que foi nas pessoas enos corpos deles que os regimes e as institu-ições totalitárias sempre ensaiaram os seusmais altos vôos de controle de sociedadesou populações inteiras. Neste contextoalargado de mudança social e de desafio àmedicalização global da sociedade modernadevem também entender-se movimentoscomo a anti-psiquiatria e a crítica globalda institucionalização, que se encontravajá in nuce nas controvérsias suscitadas

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pela leucotomia pré-frontal de Egas Monize o seu posterior desenvolvimento comolobotomia, por Watts e Freeman nos EstadosUnidos, uma das discussões com maiorimpacto na consciência pública antes dosanos sessenta e que regista uma viragem ab-solutamente essencial na história do controlesocial medicalizado (Jonsen, 1998:100, 102,105)13. No movimento anti-psiquiátricopontificavam entretanto as obras de ThomasSzasz, David Cooper e Ronald Laing, cominfluência no mundo anglo-saxónico, aomesmo tempo que em França surgiam asteses doravante clássicas de Robert Castel ede Michel Foucault14, além de associações

13Sobre a psicocirurgia de Egas Moniz, WalterFreeman e James Watts e as controvérsias científicase ético-políticas por ela suscitadas, V. A. FernandoCascais (2001), “A cabeça entre as mãos. Egas Mo-niz, a Psicocirurgia e o Prémio Nobel”, in João Ar-riscado Nunes e Maria Eduarda Gonçalves, orgs. etal., Enteados de Galileu? A semiperiferia no sistemamundial da ciência. Porto: Edições Afrontamento:291-359.

14V. nomeadamente: Thomas Szazs (1978),Es-quizofrenia. O símbolo sagrado da psiquiatria. Lis-boa: Publicações Dom Quixote – ed. or.: 1977e (1988),The Theology of Medicine. The PoliticalFoundations of Medical Ethics. Syracuse: SyracuseUniversity Press – ed. or.: 1977; David Cooper(1983), A linguagem da loucura. Lisboa: Edito-rial Presença – ed. or.: 1978; David Cooper eal. (1977),Psiquiatria e antipsiquiatria em debate.Porto: Afrontamento; Ronald D. Laing (1979),Apsiquiatria em questão. Lisboa: Editorial Presença;Ronald Laing, J. L. Fabregas e A. Calafat (1978),A política da psiquiatria. Lisboa: Moraes Editores;Thomas Szazs (1978),Esquizofrenia. O símbolosagrado da psiquiatria. Lisboa: Publicações DomQuixote – ed. or.: 1977 e (1988),The Theologyof Medicine. The Political Foundations of MedicalEthics. Syracuse: Syracuse University Press – ed. or.:1977; Robert Castel (1978),L’ordre psychiatrique.L’âge d’or de l’aliénisme. Paris: Éditions de Minuit etoda a obra de Michel Foucault desde (1961),Folie et

dos próprios pacientes, na época da fun-dação dos primeiros centros de investigaçãoem bioética e pela mesma altura em que ouso político da psiquiatria contra dissidentesda União Soviética se começava a divulgare a discutir. Com o tempo, as ciências docomportamento haveriam de tomar o rumoda abordagem biográfica da saúde e dadoença e de serem percebidas e utilizadascomo instrumento de (re)construção deidentidades individuais e colectivas, comoacontece actualmente com as correntes dateoria queer e da psicoterapia afirmativa.Com efeito, foi no âmbito da psicologiae da psicoterapia contemporâneas que serecompôs de modo mais espectacular umparadigma científico em que outrora imper-aram a psiquiatria e a antropologia biológica.

5) A contestação de paradigmas médi-cos dominantes e do sentido e fins últimosda prestação de cuidados de saúde.

Na verdade, o Julgamento dos Médicose o Código de Nuremberga constituem omaior golpe jamais desferido na antiquís-sima tradição do paternalismo hipocráticoque consagrava uma relação carismática en-tre o médico que decide a sós, sem o con-curso do seu paciente e por ele, a beneficên-cia da sua intervenção diagnóstica, pre-ventiva ou terapêutica. De resto, a éticahipocrática é uma ética da virtude que as-socia rigor da arte a pureza ritual, equaçãoesta que a antropologia mostra ser um traçohistórico universal que não se restringe aomundo helénico da Antiguidade, mas quemarcaram particularmente toda a tradição

déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris:Plon.

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das “maneiras de cabeceira” da medicinaocidental (Jonsen, 1998:6). A era da medic-ina científica moderna mais não faz do queagravar o paternalismo: a sofisticação tec-nocientífica torna a antiga arte médica her-mética ao olhar leigo, ao mesmo tempo quea medicina não é já uma medicina do pa-ciente individual, mas de uma populaçãoem que a singularidade deste se vê sufo-cada. Doravante, o juízo da cientificidadeda intervenção médica ficava exclusivamentecometido à comunidade dos pares iniciadosno saber médico, que detêm o múnus datransmissão deste e da certificação do ex-ercício profissional. Regulação exclusiva-mente paritária das actividades médicas eabsorção da beneficência pela cientificidadesão pois o verso e o reverso da modernamedicina científica. Ora as transformaçõespor que passou a relação médico-doente con-stitui um dos aspectos mais frequentementemencionados pelo seu peso nas origens dasdiscussões bioéticas. É comum resumir-seaquelas transformações à crise do modelopaternalista que tradicionalmente regia a re-lação médico-paciente, progressivamente su-plantado por uma crescente consideração daautonomia deste último. A verdade é que,por um lado, o reconhecimento da autono-mia do paciente é corolário da crise do pa-ternalismo, mas, por outro lado, nem o re-conhecimento da autonomia se ficou a de-ver à boa vontade da classe médica, nema crise do paternalismo se resume à ordemjurídico-política, mas antes se trata em boamedida de uma questão da ordem técnica.Com efeito, foi o próprio desenvolvimentotecnocientífico que alterou as condições deexercício profissional da medicina e tevepor efeito a erosão do paternalismo clás-sico. O paternalismo médico possui raízes

antigas na medicina hipocrática e no seuprincípio de beneficência, um pilar da vir-tude médica ao longo dos séculos, mas deacordo com o qual a definição do bem dodoente era responsabilidade e privilégio domédico, que tinha o direito de o prosseguirmesmo contra a vontade do doente, olhadocomo essencialmente incompetente. O pa-ternalismo médico não deixou de se re-forçar consideravelmente durante o processohistórico da biopolítica, com a medicaliza-ção generalizada da vida nas sociedades oci-dentais dos dois últimos séculos, sobretudoquando a relação do médico com o pa-ciente individual passa a institucionalizar-se no hospital e noutros serviços estatais deprestação de cuidados de saúde. A medic-ina massifica-se numa medicina das popu-lações, cuja saúde se torna assunto de inter-esse público e matéria cometida ao Estado,e a prática da medicina cada vez mais de-pendente das políticas estatais de saúde. Oraa sofisticação tecnocientífica da biomedic-ina levou paradoxalmente à erosão do pa-ternalismo clássico na medida em que sub-stituiu o antigo carisma do médico individ-ual pela inacessibilidade da linguagem cien-tífica aos olhares leigos, mas que, por in-termédio da especialização, se voltou tam-bém contra o próprio médico, que assim sedepara paternalista a despeito de si mesmo.Nomeadamente, a sofisticação tecnocientí-fica contribuiu de decisivo para erodir a clás-sica autoridade do mestre com a sua exper-iência, o seu “olho clínico” criado à custade tempo e maturidade. A actual correnteda medicina baseada na evidência (evidencebased medicine) é um claro indício distomesmo (González, 1998:423-425).

Na sequência dos Julgamentos de Nurem-berga, assistiu-se a uma generalizada conde-

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nação da anamorfose nazi do paternalismomédico. A suspeição acerca dos fins últi-mos da medicina e da legitimidade do pa-pel da medicina como meio de controle so-cial, e não necessariamente em condiçõestotalitárias, não foi tão imediata e general-izada, porém. Um primeiro sintoma daquelasuspeição pode mesmo assim detectar-sena Declaração Universal dos Direitos doHomem de 1948, na qual o direito ao própriocorpo é pela primeira vez estatuído contra osinteresses do Estado ou da sociedade, de ummodo que recupera de forma renovada, a dadefesa dos direitos individuais, o princípioiluminista da autonomia. Seria necessáriochegar aos anos sessenta e setenta para quetal suspeição se transformasse em princí-pio político organizador de movimentos so-ciais e pelo menos até aos de noventa paraque se procedesse a uma reavaliação globaldos fins da medicina (Allert et al., 1996).A autonomia do indivíduo, quer como pa-ciente, quer como cidadão, começa a par-tir daí a ser reivindicada em tom cada vezmais insistente e elaborado, mas este pro-cesso não deveria ser entendido apenas emtermos éticos, isto é, ser avaliado pelo seupresumível progresso ético, ainda que o seja,porque de facto a autonomia do pacientetem sido estimulada pelo próprio desenvolvi-mento, e por mor da eficácia, das tecno-ciências biomédicas. A existência de no-vas tecnologias terapêuticas, que permitem atransformação de doenças anteriormente fa-tais a curto prazo em doenças crónicas desobrevivência prolongada, contribuiu para oalargamento da expectativa de vida de cres-centes massas de doentes crónicos termi-nais, cuja activa cooperação se tem que con-fiar a bem da própria eficácia do tratamento;por outro lado, um mais vasto leque de al-

ternativas terapêuticas dão renovada ênfaseà autonomia do paciente, estimulado paracompartilhar com o clínico a responsabili-dade na tomada de decisões, na definiçãode um padrão pessoal de qualidade de vidaassim como no desenvolvimento de com-petências próprias, nomeadamente quandolhe é possível ocupar-se do seu tratamento;os insuficientes renais crónicos em faseterminal, que se auto-dialisam sob super-visão médica, constituem porventura exem-plo paradigmático deste fenómeno. Alémdisso, a existência de novas tecnologias di-agnósticas, a cargo de outros profissionaisespecializados que não o médico, contribuipara que o processo que conduz ao diagnós-tico se torne mais transparente aos olhos dodoente, que se torna mais crítico e exigenteem relação ao médico que, por sua vez, tendea ser considerado, não como a figura pater-nal dotado de inquestionáveis bondade e au-toridade, mas sobretudo como um técnicoque presta um serviço especializado. Esteprocesso é frequentemente percebido pelomédico como uma perda de controle da suaprática, tanto mais quando o diagnóstico eaté mesmo a terapêutica têm de depender deespecialidades estranhas à clínica, como a dabiologia molecular, cuja liberdade de inves-tigação chega a ser invejada pelos médicosque dela dependem mas que não é tolhidapelos constrangimentos próprios da práticae da investigação clínicas. Outra caracterís-tica que contribui para aquele sentimento deperda de controle do processo de cura é aextrema especialização médica15, que garan-tiu a eficácia terapêutica, mas que cada vezmais é sentida como um obstáculo a uma

15V. Karl Jaspers (1998),O médico na era da téc-nica. Lisboa: Edições 70.

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abordagem global das necessidades do pa-ciente. Quando hoje se tem por adquiridoque toda a afecção somática é acompan-hada de conflito psíquico, que por sua veza experiência da doença é determinada pelopatrimónio cultural do paciente, a relaçãodeste com o médico pelo seu grau de litera-cia científica e a capacidade de definir parasi próprio e negociar com o clínico o sentidobiográfico do tratamento pela sua competên-cia como doente e como cidadão, a especial-ização médica torna-se assim um autênticoobstáculo a uma relação terapêutica que nãoseja para ambos, doente e médico, uma fontede sofrimento e tensão equiparável aos daprópria doença16.

O desenvolvimento tecnocientífico have-ria de redefinir de outro modo ainda o en-tendimento da relação entre o médico e odoente como cliente e como cidadão que for-mula solicitações que vão muito para alémda terapêutica e, por extensão, o valor e afinalidade da medicina na satisfação de pe-didos e necessidades inéditas e que não seenquadram nas áreas clássicas da biomedic-ina, a prevenção, o diagnóstico e a terapêu-tica. Com efeito, um crescente número evariedade de solicitações extra-terapêuticasforam dirigidas às competências que a classemédica é vista como a melhor posicionadapara oferecer. Trata-se, obviamente, da ma-nipulação do comportamento, por meios far-macológicos ou cirúrgicos, em todos os cam-pos da vida, desde a melhoria da prestaçãodesportiva, à dietética, ao controle do sonoe da vigília, do humor e da sensibilidade,à medicina estética que está em vias detransformar o cirurgião estético, não num

16V. Hans-Georg Gadamer (1997),O mistério dasaúde.Lisboa: Edições 70.

artista, pois que a sua liberdade de expressãoé limitada, mas num artesão especializadoque produz corpos “ready-made” conformesaos critérios convencionais de beleza dopaciente/cliente que lhe encomenda alter-ações à sua aparência17. Dois exemplosmaiores, mas de sentidos diferentes, destefenómeno geral, atestam bem a essencialambiguidade do desenvolvimento das tecno-ciências biomédicas. As intervenções paramudança de sexo, hoje prática corrente, masa primeira das quais data de 1955, com umtranssexual dinamarquês, que parecem ex-tremar o sentido emancipatório das tecno-ciências biomédicas canalizadas para a per-secução de estilos de vida alternativos (Mori,2000:736). E o chamado eugenismo “deconsumo” ou “à la carte”, com a possibili-dade de selecção genética de bebés com ascaracterísticas desejadas pelos progenitores- qualquer espécie de progenitores - sus-ceptível de repetir, no quadro dos regimesdemocráticos e com a legitimidade do re-speito pelos direitos, liberdades e garantiasdos seus cidadãos-consumidores, as políti-cas eugenistas compulsivas dos Estados to-talitários passados ou presentes18.

O desafio ao paradigma prevalecente damedicina, vindo quer do interior quer doexterior do domínio biomédico, foi na ver-dade muito para além do questionamento dopaternalismo médico e do papel da medicinacomo meio de controle social. A tal ponto amudança de paradigma é profunda e extensa

17V. o esclarecedor artigo de Soren Holm (2000),“Changes to bodily appearance: the aesthetics of de-liberate intervention”,Journal of Medical Ethics -Medical Humanities, 26 (1): 43-48.

18V. especialmente: Jean-Noel Missa e Charles Su-sanne, eds. et al. (1999),De l’eugénisme d’État àl’eugénisme privé. Bruxelles: De Boeck.

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que Mori propõe substituir definitivamenteo termo de medicina pelo de cuidados desaúde (Mori, 2000:735). Neste sentido,em finais dos anos sessenta, princípios desetenta, a crítica externa à medicina definiacomo alvo primordial o crescimento dospoderes médicos e apontava como emblemaa iatrogenia resultante da própria eficáciamédica. O que se punha em questão erao paradigma alopático da medicina e aagressividade das intervenções terapêuticas,um modelo que remontava às políticas desaúde pública do século dezanove e queatravessava toda a moderna medicina clínica.Mas, ao mesmo tempo que se encontravaa caminho uma mudança de paradigmasegundo uma dinâmica interna à medicina(Mori, 2000:732-743), pela mesma alturaa profissão médica tendia a desconsiderar,como anti-médicas, as críticas radicais queatacavam o paradigma do exterior, oriundasnomeadamente de perspectivas ligadasao surgimento das várias correntes dasmedicinas chamadas alternativas, holísticas,homeopáticas, da recuperação de tradiçõesmédicas não-ocidentais, dos programasdesinstitucionalizadores da antipsiquiatria,ou de obras tão contundentes e de tão granderepercussão na época como a da críticaneo-marxista da medicina por Ivan Illich19

e das obras de René Dubos20 e de HansJonas21, que se contam entre os pioneiros

19Ivan Illich (1977),Limites para a medicina. Lis-boa: Livraria Sá da Costa Editora e (1996), “BraveNew Biocracy: A Critique of Health Care FromWomb to Tomb”, in Jennifer Chesworth, ed. et al.,The Ecology of Health. Identifying Issues and Alter-natives. London: Sage: 17-29.

20René Dubos (1959),Mirage of Health: Utopias,Progress and Biological Change. New York: Harper& Row.

21Hans Jonas foi um desses pioneiros com o seu

do que se haveria de tornar um caudal deliteratura de reflexão crítica, epistemológ-ica e política, das ciências da saúde e davida e que hoje é apanágio dos campos,actualmente pujantes, dos estudos culturaisda ciência e da medicina. As primícias deuma mudança de paradigma na medicina,juntamente com uma crítica mais ou menosradical dos seus principais avatares, con-tribuíram para moldar o ambiente social eintelectual que testemunhou o nascimentoda bioética (Allert et al., 1996). Remonta aesses tempos o lento processo de avaliaçãoe redefinição de fundo dos fins da medicinaque haveria de ser prosseguido já de maneirareflectida e formal pela própria bioética.Esse processo culminou com a formaçãode um grupo composto por especialistasinternacionais provindos tanto de países queocupam um lugar central na produção cien-tífica e na prestação de cuidados de saúdecomo países periféricos, à frente dos quaisse encontra o bioeticista Daniel Callahan(Callahan, 2000:680), e um projecto deinvestigação cujos trabalhos foram dadospor terminados em 1996-1997 (Callahan,1999:66). Concluiu-se que a medicinadeveria perseguir quatro fins maiores: a pre-venção da doença e do dano e a promoção emanutenção da saúde, o alívio da dor e dosofrimento causado pelas doenças, o cuidadoe a cura das pessoas doentes e o cuidadodaqueles que não podem ser curados, o evi-

The Phenomenon of Life. Toward a Philosophical Bi-ology. New York: Harper & Row, 1966. Aliás, nestaobra surge um texto, “The Practical Uses of Theory”,resultante de uma conferência originalmente publi-cada em alemão em 1959, e que é o texto seminal deuma reelaboração conceptual que Jonas prosseguiriaaté formular o seuImperativo Responsabilidade, jáem 1979.

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tamento da morte prematura e a prossecuçãode uma morte serena. Como implicaçõespráticas da redefinição dos fins da medicina,apontam-se como prioridades: “Deveria serdesenvolvido um modelo de investigaçãoque incorpore a peritagem em epidemiologiae saúde pública para proporcionar umacompreensão mais vasta das várias doençaspresentes na sociedade. Deveria dar-seinício a esforços para desenvolver sistemasde saúde com um sólido núcleo de prestaçãode cuidados primários e de emergência elevar em consideração as necessidades dosmembros mais frágeis da sociedade. Deveriaensinar-se aos estudantes de medicina quea morte é inevitável e que nem sempre elesserão capazes de curar. Têm de aprender aabordar os problemas da doença crónica. Osnovos médicos têm também de ter formaçãoem economia, nas humanidades e na organi-zação dos cuidados de saúde para poderemestar à altura das realidades económicas dossistemas de saúde contemporâneos” (Allert,et al., 1996:S1-S27). Como fins médicosequívocos, denunciam-se nomeadamente “ouso de informação da saúde pública parajustificar antidemocraticamente a coerçãode vastos grupos de pessoas no sentidode modificarem os seus comportamentos‘doentios’. No outro extremo, a medicinanão pode ter por fim o bem-estar do indiví-duo para além do fim de uma boa saúde. Amedicina é também incapaz de determinaro bem global da sociedade” (Allert et al.,1996:S1-S27). Finalmente, como forma deobviar à possibilidade de abuso ou mau usodos fins da medicina, esta deveria aspirar aser honrosa e a controlar a sua própria vidaprofissional, a ser temperante e prudente, aser economicamente acessível e sustentável,a ser justa e equitativa e a respeitar as

escolhas e a dignidade humanas (Allert etal., 1996:S1-S27).

6) A necessidade de uma ética para aera da tecnociência e, simultaneamente, acrise da fundamentação de toda a ética.

A evidência de que a tecnociência mod-erna apresenta problemas inteiramente novosque requerem abordagens igualmente novasem vários campos de investigação propor-cionou uma nova consciência da respons-abilidade da ciência e, por extensão, da so-ciedade, entre os cientistas e em particularentre os médicos e os filósofos. Muito antesda emergência da bioética, já a sociologia daciência e a filosofia da técnica tinham em-preendido uma extensa inquirição acerca dosefeitos de ambas na modelação da sociedademoderna. No entanto, essa inquirição, deindiscutível importância a todos os títulos,não envolveu os próprios cientistas e podeser encarada como uma preocupação maisou menos privada de académicos no domíniodas humanidades, sem referência a qual-quer tipo de preocupação pública. Aliás, acrítica radical da racionalidade instrumentalda ciência moderna fazia escola pelo menosdesde Friedrich Nietzsche, passando pelahermenêutica de Wilhelm Dilthey a MartinHeidegger e a fenomenologia de EdmundHusserl a Merleau-Ponty, anteriormente àemergência do tema de uma ética para aera da técnica e não deixaria de fundamen-tar esta, mas, uma vez mais, aquela riquís-sima reflexão filosófica não correspondia aotipo de preocupação pública a que a éticapara a técnica se vocacionava para dar re-sposta. Por outro lado, desde finais do séculodezanove que a abordagem da sociedade in-dustrial e tecnocientífica moderna como uma

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sociedade anómica e decadente constituíaum dos temas maiores da sociologia da cul-tura, mas estava longe de ser partilhada pelospróprios cientistas, que defendiam uma visãoessencialmente positiva da ciência e da tec-nologia como instrumentos da persecução debens humanos, isto é, como instrumentos deprogresso. Esta visão sempre foi largamentepartilhada pelos médicos e a sua concepçãode progresso sanitário, cujos principais con-tendores podiam normalmente encontrar-seno campo teológico. Com efeito, o debateentre a ciência e a religião marcou váriasgerações e polarizava-se entre reivindicaçõesopostas da bondade quer da ciência querda religião no melhoramento da condiçãohumana, tanto material como moralmente.Tanto mais quando estavam em jogo con-cepções opostas da natureza humana, o queacontecia pelo menos desde a época do de-bate entre o evolucionismo darwiniano e ocriacionismo e que por vezes se radicali-zou entre o mais empedernido positivismocientista, de um lado, e o mais ultramon-tano fundamentalismo religioso, do outro.A história portuguesa moderna fornece ex-emplos sumamente esclarecedores deste úl-timo tipo de polarização, com um pico naPrimeira República, mas que ainda hoje tementre nós um peso para o qual se torna cadavez mais difícil encontrar paralelos nas so-ciedades ocidentais desenvolvidas. Os fun-damentalismos religiosos, sobretudo os dasreligiões monoteístas, concentram-se hojequase em exclusivo em questões muito re-stritas das tecnociências biomédicas como oaborto e a eutanásia ou as questões relativasà sexualidade e à reprodução, e a esgrim-irem aí com uma truculência que não usamem praticamente mais assunto nenhum. Otema da falência da tecnociência, e do pre-

sumível progresso que ela acarretaria, é hojebrandido contra os cientistas sobretudo pelascorrentes imbuídas de misticismo da con-tracultura radical, ou inclusive da ecolo-gia profunda, que defendem uma forma ex-trema de cepticismo e suspeição a respeitoda moderna sociedade tecnocientífica e quefrequentemente propugnam o retorno a for-mas sociais e modos de vida pré-modernoscomo única alternativa a um futuro apoc-alíptico. Na outra ponta do panorama cul-tural, as correntes tecnocráticas de pensa-mento continuaram a sustentar uma visão deprogresso mais ou menos indefinido e cumu-lativo por intermédio de incessantes realiza-ções científicas e tecnológicas, em obediên-cia ao chamado “imperativo técnico”, à luzdo qual nada é tecnicamente impossível etudo o que é possível é desejável.

Na verdade, um fenómeno que levou aoengrossamento das fileiras da bioética foia desilusão dos sectores católicos mais de-sapontados com as posições da hierarquiada Igreja na sequência do Concílio VaticanoII. Embora o espírito e a letra conciliarestivessem representado uma imensa aberturanas posições tradicionais da Igreja, as at-itudes que prevaleceram em relação a al-gumas questões candentes, como a contra-cepção e o aborto, e as posições tomadaspor Paulo VI na EncíclicaHumanae Vi-tae, foram entendidas como um recuo per-ante a inovação conciliar e deram origem aum movimento de desafecção de certos sec-tores católicos norte-americanos. De resto,a postura permanente de entidades como aSagrada Congregação para a Doutrina daFé e do seu responsável máximo, o cardealRatzinger, assim como do Papa João PauloII, cuja intransigência se faz notar exemplar-mente na condenação do uso do preservativo

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como meio de combate à epidemia de Sida,continuam a alimentar hoje o mesmo tipo defuga e distanciamento em relação à hierar-quia católica que um dia contribuiu para asociogénese da bioética. Tal como DanielCallahan e Warren T. Reich, André Hellegersfoi um dos fundadores do campo da bioéticaque se voltou para esse novo campo emparte devido à sua desilusão com as posiçõesda Igreja Católica nos debates das questõessuscitadas pelo progresso das tecnociênciasbiomédicas, à cabeça das quais a do controleda fertilidade (Jonsen, 1998:301). AndréHellegers foi inclusive um dos altos respon-sáveis da comissão papal sobre o controle dafertilidade que, nessa sua qualidade, estevena origem de um inquérito aos casais católi-cos que veio demonstrar as dificuldades queeles sentiam em seguir a doutrina da Igrejasobre a moral sexual e os expedientes a querecorriam para a contornar (Reich, 1999:37-41). Com a EncíclicaHumanae Vitae, de1968, o Papa Paulo VI rejeitou as conclusõesda comissão, dando o conteúdo e o tomàs posições desde então defendidas pela hi-erarquia da Igreja. Do lado protestante,assistia-se a idêntico movimento de distan-ciamento em relação à teologia moral clás-sica das igrejas reformadas. Este movimentode revisão teológica aproximou pensadorescatólicos e protestantes, distanciando-os si-multaneamente das respectivas ortodoxias efundamentalismos e encaminhando-os para abioética nascente (Jonsen, 1998:42-55). Es-clarece Callahan que, para que a aceitaçãoda bioética na América fosse possível, “. . . aprimeira coisa que as pessoas empenhadasna bioética tiveram de fazer foi (. . . ) pôrde lado a religião. Era igualmente claroque o modelo do médico como único decisorteria de dar lugar a um quadro mais com-

plexo acerca do singnificado da vida moral.Aquilo a que assistimos foi o movimento demuita gente empenhada na bioética rumo aum tipo diferente de linguagem moral na cor-rente dominante das políticas públicas, emdirecção a uma linguagem de direitos, pre-ocupações com questões de pluralismo, es-forços para encontrar consensos morais e es-tratégias morais em face de uma situaçãocultural diferente. E em especial, tratava-seda necessidade de encontrar alguma formade lidar com a hostilidade em relação àética em geral” (Callahan, 1993:S8). Cos-tumam referir-se a este respeito, dois au-tores e obras marcantes na sua época e comopredecessores da literatura bioética:Moralsand Medicine22, de 1954, pelo teólogo epis-copal Joseph Fletcher, que terá sido pio-neiro ao propôr uma ética de situação detipo utilitarista contra o tradicional privilé-gio teológico dos princípios morais absolu-tos e inflexíveis (Callahan, 1990:3; Jonsen,1993:S3; Kuhse e Singer, 1998:7), eThePatient as Person23, de 1970, pelo teólogometodista Paul Ramsey, o qual tem a posiçãodiametralmente oposta à de Fletcher, rejei-tando toda a ética de situação e preconizandoum firme apego aos princípios morais tradi-cionais na linha do mais rígido moral-ismo teológico (Callahan, 1990:3; Calla-han, 1986:46-47; González, 1998:148; Jon-sen, 1993:S3). Diz Callahan que a bioéticanascente abriu caminho – e abriu caminhoà sua própria aceitação pública – na me-

22Joseph Fletcher (1954),Morals and Medicine.The Moral Problems of: the patient right to know thetruth, contraception, artificial insemination, steriliza-tion, euthanasia. Boston: Beacon Press.

23Paul Ramsay (1970),The Patient as Person: Ex-plorations in Medical Ethics. New Haven: Yale Uni-versity Press.

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dida em que optou por uma via intermé-dia entre aqueles dois autores e modos depensar e adquirindo um carácter predomi-nantemente regulatório (Callahan, 1993:S8).Além de Fletcher e de Ramsey, teve aindapapel de relevo na emergência da bioética oteólogo moral jesuíta Richard McCormick,que representava uma atitude moderada en-tre as dos outros dois (Jonsen, 1998:41).Também o teólogo Robert Veatch, teólogometodista, paladino dos direitos dos doentesna década de sessenta, foi o primeiro fun-cionário pago do Hastings Center, após tersido apresentado a Daniel Callahan por VanRensselaer Potter (Jonsen, 1998:57). Naverdade, a filosofia e a teologia constituíamos campos de onde provinha, em exclusivo,a problematização da biomedicina antesda definição do campo bioético (Callahan,1990:2; González, 1998:148). A influênciados teólogos no início da bioética começaa declinar em meados da década de se-tenta, quando os filósofos seculares passama predominar (Callahan, 1999:61-63; Pelle-grino, 1999:74; Reich, 1996a:100; Viafora,1996:8). Entre estes, além de Daniel Calla-han, tiveram papel proeminente StephenToulmin e Hans Jonas, de formação clás-sica europeia, a que posteriormente viriamacrescentar-se Samuel Gorovitz e K. Dan-ner Clouser. Toulmin e Jonas já se tinhamdistinguido como filósofos antes de se dedi-carem a temas de bioética. Toulmin tinha es-tudado em Cambridge com Ludwig Wittgen-stein e integrou aNational Commission forProtection of Human Subjects of Biomedi-cal and Behavioral Researchdo Congressodos Estados Unidos, entre 1974 e 1978, foium dos relatores do Belmont Report (Jon-sen, 1998:102-104), e depois aCommis-sion for the Study of Ethical Problems in

Medicine and Biomedical e Behavioral Re-search, da Presidência dos Estados Unidos,entre 1980 e 1983, que em 1981 have-ria de produzir o relatórioDefining Death,que definia a morte como a cessação ir-reversível da função cardio-respiratória oua cessação irreversível de todas as funçõescerebrais, incluindo as do tronco cerebral(Jonsen, 1998:110). Por sua vez, HansJonas, judeu de origem alemã e refugiado doregime nazi desde 1935, tinha feito a sua for-mação filosófica com mestres como EdmundHusserl, Martin Heidegger e Rudolf Bult-mann. Em 1967 e 1968, a Academia Amer-icana de Artes e Ciências promoveu duasconferências sobre a ética da experimentaçãohumana que constituíram um marco nestecampo de reflexão e para o que Jonas con-tribuiu com o seu ensaio “Reflexões filosó-ficas sobre a experimentação com seres hu-manos”24, que revolucionou o modo até en-tão prevalecente de pensar a ética da experi-mentação humana a partir da polaridade en-tre os direitos individuais e o bem comume a respectiva legitimidade nos termos docontrato social; ao invés, Jonas opõe quea experimentação só se pode legitimar emtermos de fins melhoradores e que por issoa submissão dos indivíduos a experimen-tação transcende os deveres sociais, é antesda ordem da absoluta gratuitidade e volun-tariedade, pelo que o mero consentimentonão basta. Neste ensaio, Jonas é também oprimeiro filósofo a debruçar-se sobre a re-definição de morte do relatório da Universi-dade de Harvard, de 1968. A partir daqui, oempenhamento de Jonas na reflexão bioética

24V. tradução portuguesa in Hans Jonas (1994),Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega: 117-169,trad. António Fernando Cascais.

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levá-lo-á a produzir um caudal de literaturaentre o qual se destaca o seu entretanto céle-bre Princípio Responsabilidade. Em buscade uma ética para a era da técnica(Jonas,1984) – obra de 1979 que, além de for-mular o princípio que o tornou uma refer-ência incontornável, formula também pelaprimeira vez a ideia de uma ética para a tec-nociência que pairava já no ambiente intelec-tual de então mas que a partir daí se trans-forma num tema intelectual de primeira or-dem. A tensão que começou por desenhar-seentre filósofos e teólogos, nos primórdios dabioética, haveria de reproduzir-se mais tardeentre bioeticistas e cientistas sociais (Calla-han, 1999:64-65).

A ciência e a medicina, porém, prati-camente nunca foram desafiadas na esferapública a partir de outros pressupostos quenão os religiosos antes da Segunda GuerraMundial, quando os efeitos conhecidos ouprevisíveis dos seus crescentes poderes setornaram patentes em termos públicos. Sóa partir daí é que a necessidade de uma regu-lação ética da tecnociência pôde realmentedeixar de ser apanágio da reflexão privadados filósofos para se metamorfosear em per-cepção pública largamente difundida. A ex-traordinária proliferação de conferências so-bre os problemas sociais e éticos levanta-dos pelo progresso tecnocientífico, nos Esta-dos Unidos, na década de sessenta, que con-tribuiu para criar o clima favorável ao surgi-mento da bioética como disciplina e discursoespecíficos, é um sintoma claro da suspeitapública em relação à bondade científica (Jon-sen, 1998:13-19). No entanto, após tudo oque atrás foi dito, é mister reconhecer queessa percepção exprime uma experiência decrise que nada tem de conjuntural, antes re-flecte algo de essencial, irreversível e perante

a qual toda a atitude expedita falha. Comefeito, uma ética para a tecnociência apre-senta uma dificuldade de princípio que con-siste numa situação aporética: como formu-lar uma ética para uma tecnociência que elaprópria é a principal responsável por com-prometer irremediavelmente a possibilidadede fundar toda a ética? Em suma, diríamosque se trata de pensar a crise, mas no interiordela e tomando-a como o “estado de coisas”permanente com que há que viver e queaprender a viver como a própria condiçãode todo o pensamento e o pensamento éticoem particular enquanto capacidade de de-strinça entre possíveis tecnocientíficos dese-jáveis e indesejáveis. Assim, a crise não seresume de modo nenhum ao facto de o de-senvolvimento das tecnociências biomédicasromperem, em actos e casos discriminados,com os valores estabelecidos que há que re-por por intermédio de uma regulação éticadas práticas e actividades tecnocientíficas, detal modo que essa regulação ética se limitariaa aplicar aos novos problemas-infracções asnormas-soluções perenes, como se de umaespécie de nova deontologia geral da técnicase tratasse. Nada disso, e nada de mais alheioao que implica uma ética para a tecnociênciaou que faz necessitar uma bioética.

Nesta conformidade, temos por feridas deum equívoco essencial as ideias, solidáriasaliás, que reduzem a bioética, quer a umamera ética aplicada, quer a uma deontolo-gia, mas que deram corpo a práticas efecti-vas que não podemos deixar de olhar comoum empobrecimento daquilo que a emergên-cia da bioética originariamente promete, deque continua a ser portadora e que será dese-jável levar por diante, sob o nome de bioéticaou de outro qualquer. A ideia equívocaque reduz a bioética a uma simples ética

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aplicada, seja ela teológica e com recursoa um fundamento onto-teológico transcen-dente, ou filosófica e com recurso a um fun-damento fenomenológico-imanente, reflecteainda o paternalismo esclarecido, pois sóse pode proceder à aplicação a casos práti-cos uma ética cuja verdade já tinha previa-mente sido constituída a nível doutrinário, demaneira assertiva e apodítica, por uma co-munidade profissional de pares especializa-dos, sejam eles teólogos, médicos ou filó-sofos. Eis por que é igualmente equívoca aideia da bioética como deontologia, suscep-tível de ser fundada na própria racionalidadetecnocientífica. Ora a racionalidade tecno-científica possui uma dinâmica imparável deprodução indefinida, ou de autoproliferação,que o imperativo técnico bem exprime e quea torna pela sua própria natureza avessa àformulação de qualquer princípio de auto-limitação. O mesmo é dizer que ela não pos-sui a capacidade de gerar uma ética com osmesmíssimos materiais que são os maioresobreiros da erosão da possibilidade de a fun-dar. A racionalidade tecnocientífica, coma sua dinâmica imparável, exclui qualquerjusta medida e nesse sentido ela representa,por esse simples facto, se não mesmo umobstáculo à responsabilidade e à boa von-tade do cientista, pelo menos o objecto de-las. A racionalidade tecnocientífica é aquiloque pode garantir o rigor e a eficácia da in-tervenção médica e é com tal promessa ecompromisso que ele se apresenta peranteo doente, mas não é a racionalidade tec-nocientífica que pode formular os termosem que é beneficente a relação deste como doente e pode inclusivamente ser inimigada beneficência do médico. Deste modo,qualquer limitação ética da tecnociência emgeral, e das tecnociências biomédicas em

particular, ou seja, qualquer destrinça entreo que é desejável e o que não é desejável,não pode prescindir de instâncias e pessoasexteriores às comunidades científicas. Destemodo, a discussão doutrinária e a avaliaçãode casos concretos obriga à inclusão, paraalém dos elementos da comunidade médicaou científica, de representantes de outrascomunidades de saber igualmente especial-izado, como a teologia, a filosofia, o di-reito e as ciências sociais e humanas, masnão só. Efectivamente, só se pode aceder auma avaliação realmente rigorosa dos peri-gos reais que há que evitar, ou dos danos quehá que de algum modo reparar, mediante aparticipação activa daqueles sobre quem re-caem os efeitos, benéficos ou prejudiciais daactividade científico-tecnológica. Ora a in-clusão destes no processo de discussão e dedecisão é uma das vias que tem deslocado,e a nosso ver afortunadamente, a reflexãoético-política sobre a tecnociência para o ter-reno das suas consequências e a fazer comque sejam elas, ou a previsibilidade delas,a lançar luz sobre a própria concepção dosprogramas e projectos tecnocientíficos. Comefeito, uma ciência - no caso a ciência exper-imental, como o poderiam ser o saber filosó-fico ou ascientiateológica - que reconhecee aceita, ou é levada a reconhecer e a aceitar(Callahan, 1990):

a) que os seus limites possam ser deter-minados numa discussão em que partic-ipam em pé de igualdade tanto aquelesque a fazem como quantos experienciamas suas consequências e nessa qualidadesão convocados a participar na discussãoou inclusivamente forçam a sua partici-pação nela, e

b) que justamente no estabelecimento

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desses limites se privilegie a consider-ação destas consequências, integrando aavaliação delas no processo de decisão,

é uma ciência que renunciou já às suaspretensões ontológicas, porquanto toda apretensão ontológica só se pode realizarefectivamente no mundo da vida activa namedida em que se dotar dos meios extra-teóricos que garantem a sua “verdade” in-terna, ou seja, dos meios políticos de con-trole do acesso à discussão. A emergên-cia de algo como a bioética provaria a im-possibilidade de a ciência, ou o discurso dosaber em geral, continuar a proceder àquelecontrole com exclusivo recurso aos meiosde que tradicionalmente esteve dotada: aracionalidade que lhe é própria e cuja vali-dade universal é exclusivamente estabelecidae verificada pela comunidade dos seus paresno seio das suas organizações representati-vas. Tanto equivale a dizer que a condiçãosine qua nonde emergência da bioética re-side na crise irreversível da auto-regulaçãoparitária das actividades médico-científicas.Essa crise situa-se por sua vez no contextomais vasto da incapacidade de a tecnociên-cia se auto-limitar com recurso à sua própriaracionalidade, cuja natureza a impede dedistinguir entre possíveis desejáveis e inde-sejáveis. A percepção pública da neces-sidade desta destrinça consubstanciou umaética para a tecnociência ou, no domínio es-pecífico das tecnociências biomédicas, umabioética, que faz apelo aos saberes humanís-ticos e científico-sociais tradicionalmente re-jeitados pelo paradigma dominante da ciên-cia moderna. No entanto, esse apelo demodo nenhum deve significar uma pura esimples recuperação das tradições religiosasou da teologia moral, cujos fundamentos a

própria tecnociência não deixou intactos eque se mostram por isso incapazes de enten-der o que está em jogo nela e de dar soluçãoaos dilemas por ela levantados. Tanto obrigaa que a bioética não se reduza nem a umadeontologia profissional nem a uma teologiamoral aplicada (Malherbe, 1996:136-138).

No coração da controvérsia intelectual epública em torno da ética para a era da téc-nica e da bioética encontram-se valores ereivindicações de sinal contrário: os perigosda moderna tecnociência e a necessidade deos controlar ou evitar, por um lado, e o po-tencial emancipatório da tecnociência na ex-ploração de novas possibilidades e vias derealização humana, por outro. A respons-abilidade científica, veiculada por uma in-cessante solicitação social, em atender a am-bas pretensões viria a atravessar toda a co-munidade científica, mas também a dilacerá-la em dilemas frequentemente tematizadoscomo problemas de natureza ética, mas queinegavelmente apontam com igual força paraescolhas de ordem cultural e decisões decarácter político. O tema da responsabil-idade científica tornou-se assim particular-mente acutilante para alguns membros da co-munidade médica, assim como investigaçãode primeira linha para a filosofia, que tinhamuma clara percepção da carência de meiosda tecnociência para fazer face aos prob-lemas humanos causados pelo seu própriodesenvolvimento. Não é pois de surpreen-der que a investigação bioética tenha sidoempreendida pelos esforços conjugados demédicos e de filósofos em finais dos anossessenta nos Estados Unidos da América,os quais estiveram na origem dos primeiroscentros de investigação exclusivamente ded-icados à bioética. Com efeito, a bioéticatem o seu berço no mundo social e cul-

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tural norte-americano e pode sem dificul-dade ser entendida como um desenvolvi-mento contemporâneo daBerufsethik de-scrita por Max Weber, a ética protestantena sua afinidade essencial com o espírito docapitalismo. Segundo Jonsen, a bioética éafim doethosamericano com fortes pilaresno melhorismo e no individualismo moraise assinala com toda a razão que as lon-gas tradições europeias de sistemas públi-cos de prestação de cuidados de saúde noâmbito do Estado-providência filtram o en-tendimento que na Europa se tem da bioética(Jonsen, 1998:389-401). Por outro lado,diz ele que, desde os tempos heróicos dosprimórdios, com toda a sua excitação int-electual, astúcia política e coragem moral,a bioética tornou-se hoje aborrecida (Jonsen,2000:690). Terá sido esse o inevitável preçoda respeitabilidade entretanto grangeada e abioética só poderá recuperar se empreenderuma decisiva reflexão sobre o ethos partic-ular da sociedade norte-americana que foiseu berço e, para tanto, é necessário quedeixe o seu pequeno mundo e se aventurepor outras paragens disciplinares que tenhama ver com a questão ética e que se abal-ance a uma viagem - filosófica? - pelo es-trangeiro (Jonsen, 2000:694-697). DanielCallahan assinala, a este propósito, que abioética emerge no quadro do debate, acesodesde os anos sessenta, entre o privilégiopolítico dos direitos individuais próprio doindividualismo norte-americano, com a cor-respondente ausência de uma linguagem co-munitária forte e com poderes equivalentes,e a atenção a prestar ao interesse colectivo eao bem comum, mais próprios da linguagemdo direito e da moral, a cujo papel regu-lador se faz apelo - sobretudo nos EstadosUnidos - sempre que se trata de delimitar

fronteiras e fazer jus a exigências contra-ditórias de modo a que se perceba o quepode autorizar ou interditar a lei na preser-vação da ordem pública ao mesmo tempoque se respeitam os imperativos privados deordem moral (Callahan, 1986:48). Por essamesma razão a bioética norte-americana ten-deu a ser um modelo de exportação univer-sal cujos limites, no entanto, se tornariampatentes à medida do seu confronto com re-alidades sociais, culturais e políticas diver-sas daquelas que lhe deram origem. Sobre-tudo a partir da década de noventa, começama esboçar-se adaptações e formulações al-ternativas, com especial relevo nos paíseseuropeus (Bompiani, 1996; Bondolfi, 1996;Bourgeault, 1992:32; Gracia, 1996; Mal-herbe, 1996), onde o desafio que se põe àbioética consiste precisamente em “ver se elaé capaz de recrear as questões bioéticas à luzdas suas próprias tradições e cultura” (Gra-cia, 1996:169). Sintomático da diferença en-tre o modo de entender e praticar a bioéticanos Estados Unidos e na Europa é o facto deo projecto de revisão dos fins da medicina,tão caro a Daniel Callahan que o inspirou,ter tido acolhimento bastante mais favorávelno continente europeu do que na América,berço da bioética (Callahan, 1999:66).

Eis o quadro em que surgem os primeiroscentros de investigação em bioética. OIn-stitute of Society, Ethics and the Life Sci-encesfoi fundado emHastings-on-Hudson,Nova York, em 1969, pelo filósofo DanielCallahan e o psiquiatra Willard Gayling, queamadureciam a ideia desde o ano anterior(Callahan, 1999:56; Jonsen, 1998:20-22).Tentativas de criar centros similares não pas-saram disso mesmo, nas universidades deYale e da Pennsylvania, pela mesma época(Callahan, 1999:57). A denominação orig-

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inal do centro reflectia o pensamento e asintenções de Daniel Callahan (que foi pres-idente do centro até Setembro de 1996),numa época em que o espírito, mas aindanão o nome de bioética, se encontrava já empleno desabrochar. O centro haveria pos-teriormente de chamar-seHastings Center,nome por que ficou célebre, a partir da sualocalização geográfica inicial em Hastings-on-Hudson, no Outono de 1970 (Callahan,1999:58); após sucessivos deslocamentos, ocentro encontra-se actualmente sediado emGarrison, no Estado de Nova York. Nosseus quase trinta anos de existência, adquiriurenome mundial pela qualidade da sua inves-tigação, que reúne os nomes mais proemi-nentes neste domínio, entre os quais HansJonas, e que tem liderado projectos inter-nacionais da maior relevância. OJosephand Rose Kennedy Institute for the Study ofHuman Reproduction and Bioethicsfoi fun-dado no primeiro de Outubro de 1971 - ob-viamente, quando o termo bioética já tinhasido forjado - pela iniciativa de André Hel-legers, um obstetra, fisiologista e demógrafode origem holandesa que trabalhava na Uni-versidade de Georgetown em Washington, auniversidade católica de maior prestígio nosEUA, onde o centro sempre esteve sediado ecuja tendência filosófico-teológica não deixade reflectir. Mais tarde, o seu nome haveriade mudar paraKennedy Institute of Ethics.André Hellegers foi seu presidente até à suamorte em 1979, tendo-lhe sucedido EdmundPellegrino (Jonsen, 1998:22-24). O nasci-mento do instituto deve-se aos bons ofíciosda família Kennedy, já então patrocinadorada Fundação Joseph P. Kennedy, cuja vice-presidente era então Eunice Shriver, com lig-ações familiares aos Kennedys. Segundo Re-ich, foi a partir dos contactos com o casal

Sargent e Eunice Shriver que Hellegers teveacesso à família Kennedy e o que cimentou arelação terá sido o facto de ambas as famíliase o próprio Hellegers terem sido profunda-mente afectados pela deficiência mental deque padeciam familiares de todos eles (Re-ich, 1999:29-30). As publicações periódi-cas oficiais de ambos os centros continuama ser as de maior prestígio e excelência nocampo da bioética: oHastings Center Reporte oKennedy Institute of Ethics Journal, quese publicam, respectivamente, desde 1971 edesde 1990 (Cascais, 1992).

Na opinião de Edmund Pellegrino, ahistória da bioética teria atravessado três es-tádios distintos nas suas três décadas de ex-istência: uma primeira fase, a proto-bioética,entre 1960 e 1972, uma segunda, a dabioética filosófica, de 1972 a 1985, e umaterceira, a da bioética global, de 1985 ao pre-sente (Pellegrino, 1999:74). Warren T. Re-ich admite que, nas suas três décadas de ex-istência, a bioética passou por dois paradig-mas, um baseado nos princípios, outro naexperiência (Reich, 1996a:98-106) e “o fu-turo da bioética será determinado pelos mo-dos como esses dois paradigmas se desen-volverão separadamente até acabarem por sereunir” (Reich, 1996a:98). E os problemasque dominarão a cena da reflexão e da práticabioética serão a genética, a alocação de re-cursos, a sida e a saúde ambiental (Reich,1996a:106). Segundo David Roy, além dagenética e da sida, as áreas donde provirão osmaiores desafios para a bioética serão a em-briologia humana, a medicina fetal, a geria-tria e a gerontologia, a imunologia e as neu-rociências (Roy, 1996:54) e a bioética as-sumirá decisivamente o carácter de uma éticaplanetária ou global num sentido que se aviz-inha do que lhe deram Hans Jonas e Van

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Rensselaer Potter (Roy, 1996:73-76). Tam-bém James F. Drane, nome particularmentereconhecido na bioética norte-americana, éde opinião que a importância e a expansãoda bioética ficarão ligadas ao futuro da epi-demia de sida, em que praticamente nada háque não constitua problema bioético, e aodesenvolvimento do Projecto Genoma Hu-mano, que está para as ciências da vida dostempos que correm da mesma maneira quea fissão nuclear estava para a década dequarenta (Drane, 1998:304). Quanto a Calla-han, o destino da bioética está intimamenteligado ao futuro da medicina enquanto ciên-cia e disciplina profissional, da prestação decuidados de saúde enquanto política e gestãopública, da cultura e das ideologias enquantoforças que moldam a medicina e os cuidadosde saúde e da ética biomédica enquanto fonteinfluente de sabedoria e perspectiva (Calla-han, 2000:678). No entanto, avisa Callahan,se a bioética tem futuro, isto é, intuições eperspectivas valiosas que possa passar comêxito às gerações futuras, não será se se lim-itar a um papel essencialmente regulador:“Ela só pode ter futuro se for imaginativa,independente, susceptível de colocar vastasinterrogações acerca do bem humano e deprovidenciar respostas complexas – não ostipos de resposta reducionista que resolvesseas questões morais por meio de uma espé-cie de apelo demolidor a direitos„ ou princí-pios, ou procedimentos, ou a alguma espé-cie de esforço para chegar a consensos (... )A bioética ainda tem muito que andar. Temtido um sucesso demasiado fácil e, no en-tanto, com tudo isso, tem dado poucos con-tributos importantes e duradouros” (Calla-han, 2000:686).

3 Âmbito e objecto da bioética

Embora por vezes se encontrem referên-cias, raras, ao facto de o termo bioética tersido pela primeira vez sugerido por AldoLeopold, a paternidade do termo bioética éatribuída ao oncologista Van Rensselaer Pot-ter da Universidade do Wisconsin em Madi-son, que pela primeira vez o empregou pub-licamente em 1970. Mas não no seu muitocitado livro Bioethics: Bridge to the Fu-ture25, porquanto o termo já ocorria nos tí-tulos de dois artigos anteriores: “Bioethics,the Science of Survival”, de 197026, e“Bioethics”, de 197127, assim como numanota de rodapé em outro artigo, “Biocyber-netics and Survival”28. O termo bioéticaocorre pela primeira vez na imprensa no ar-tigo “Man into superman: the promise andperil of the new genetics”, na edição da re-vista Time de 19 de Abril de 1971 (Jon-sen, 1998:27). De acordo com Warren T.Reich, porém, o termo bioética passou porum nascimento bilocalizado: pouco depoisde ter sido forjado por Potter, André Hel-legers superintendeu à sua introdução no en-tãoJoseph and Rose Kennedy Center for theStudy of Human Reproduction and Bioethics,de onde haveria de expandir-se para os meiosde comunicação, os meios académicos, asciências biomédicas e os governos. O termopegou e adquiriu o generalizado uso públicode que goza hoje. Alguns acontecimentos

25Van Rensselaer Potter (1971),Bioethics: Bridgeto the Future. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.

26Van Rensselaer Potter (1970), “Bioethics, theScience of Survival”,Perspectives in Biology andMedicine, 14: 127-153

27Van Rensselaer Potter (1971), “Bioethics”,Bio-Science, 21: 1088.

28Van Renselaer Potter (1970), “Biocyberneticsand Survival”,Zygon, 5:229-246.

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contribuíram para consolidar esse uso: o pro-jecto da Enciclopédia de Bioética, com War-ren T. Reich como seu editor-chefe, que de-cide atribuir-lhe esse nome em 1972, quandocomeça a elaborá-la (Jonsen, 1998:27; Re-ich, 1996a:90), que é anunciada em 1973e que viria a público em 1978, com umareimpressão em 1982, para se transformara partir de então na grande obra de refer-ência no campo, a tal ponto que foi inclu-sive um dos maiores instrumentos do seuestabelecimento, com uma nova edição re-vista em 1995 (Reich et al., 1995:XIX);e a publicação do artigo de Daniel Calla-han, “Bioethics as a Discipline”, no primeironúmero doHastings Center Studies29, nomeque então tinha o órgão do centro homón-imo (Callahan, 1997:87-92), ao qual seriaatribuído o valor de autoridade justificativa,pela equipa da Biblioteca do Congresso dosEstados Unidos, para a criação de uma novareferência bibliográfica que classificasse umlivro então recebido pelos bibliotecários,Se-lected Readings: Genetic Engineering andBioethics, de Robert Paoletti30, que pas-sou assim a ser o primeiro título fichadona categoria de “bioética”. Na Europa, otermo bioética surge em língua francesa pelaprimeira vez em 1973 (Malherbe, 1996:119).Embora Daniel Callahan assevere que, “es-pecialmente a partir do momento em queosmediacomeçaram a interessar-se pelo as-sunto, houve uma grande pressão para quese arranjasse um termo simples que pudesseutilizar-se rapidamente para uso público”(Reich, 1994:331), a denominação do campo

29Daniel Callahan (1973), “Bioethics as a Disci-pline”, Hastings Center Studies, 1(1):66-73.

30Robert Paoletti (1974),Selected Readings: Ge-netic Engineering and Bioethics. New York: MSSInformation Corporation, 2a ed.

não é questão de somenos, porque assentanuma profunda discussão científica acercados diferentes entendimentos quanto ao seusentido e âmbito: “O campo da bioéticasurgiu com a palavra ‘bioética’, em parteporque a própria palavra simbolizou e es-timulou uma interacção inédita de proble-mas biológicos, médicos, tecnológicos, éti-cos e sociais e métodos de pensamento”(Reich,:1995:30). O âmbito e o sentidoda bioética é assim melhor definido pelopolemos, os questionamentos ou as prob-lematizações que abrem o campo da inves-tigação, tanto teórica como prática, do quepelas respostas providenciadas pela perspec-tiva de cada autor. Muito a propósito, Kuhsee Singer contrariam a opinião de GeorgeBernard Shaw, para quem toda a profissãoera uma conspiração contra os leigos: “Abioética, em contrapartida, é uma empresamais abertamente crítica e reflexiva. Nãolimitada a questionar as dimensões éticas dasrelações médico-paciente e médico-médico,vai bem para além do âmbito da ética médicatradicional de várias maneiras. Primeiro, oseu objectivo não é o desenvolvimento de,ou a adesão a, um código ou um conjuntode preceitos, mas uma melhor compreensãodas questões. Segundo, está preparada parapôr questões filosóficas profundas acerca danatureza da ética, do valor da vida, do queé ser pessoa, a importância de ser humano.Terceiro, abrange questões políticas e da ori-entação e controle da ciência. Em todos estessentidos, a bioética é um campo de pesquisanovo e distinto” (Kuhse e Singer, 1998:4).

Entre nós, Archer dá ênfase ao factode a bioética não ser “simplesmente umanova versão da antiga ética médica” (Archer,1996:23), mas, ao afirmá-lo, ignora o pa-pel da crise da auto-regulação da biomedic-

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ina como condição fundamental da insufi-ciência, senão mesmo da falência da éticamédica, limitando-se a justificar a sua afir-mação pelo facto de a bioética incluir áreasnão médicas e de possuir uma inegável di-mensão social, o que a obriga a situar-se “em zonas de intersecção de váriossaberes, nomeadamente das tecnociências(sobretudo a biologia e a medicina), das hu-manidades (filosofia, ética, teologia, psicolo-gia, antropologia), ciências sociais (econo-mia, politologia, sociologia, impacto so-cial) e doutras disciplinas como o direito”(Archer, 1996:25). E adianta, com bem maisrazão, que “a bioética não é propriamenteuma disciplina mas antes uma nova transdis-ciplina” (Archer, 1996:25), num esforço deintegração que faz dela um opositor frontaltanto do cientismo e tecnicismo em quea tecnociência moderna tende a constituir-se como explicação global única, como deum filosofismo negador da autonomia doconhecimento científico e técnico. De ummodo muito próximo, neste ponto concreto,do primeiro Engelhardt, Archer reconheceque a busca interdisciplinar se faz numa so-ciedade pluralista cuja heterogeneidade ac-erca do valor da vida e da morte constituiprecisamente a causa dos problemas bioéti-cos, chegando a afirmar que, por isso, “elanão deve ser negada, sob pena de desvirtuara bioética, que deveria até dar voz àquelesque a não têm, como são as minorias éti-cas” (Archer, 1996:25). Eis por que, paraArcher, o discurso a utilizar pela bioéticanão pode ser “dogmático nem persuasivo,mas antes heurístico e criativo, baseando-se num diálogo pluridisciplinar e pluralistaque deverá entrar em profundidade no estudodas raízes históricas, culturais e religiosasdas diferentes posições” (Archer, 1996:26)

e seguir uma metodologia indutiva, quandose sabe que as “realidades respeitantes a val-ores últimos não são susceptíveis de provaracional” (Archer, 1996:26), de maneira queé pelo recurso à intuição, como forma deconhecimento sintético que chega à certezade direitos e deveres anteriormente a qual-quer raciocínio discursivo, que “se tem, porvezes, conseguido que pessoas com moti-vações ideológicas diferentes cheguem a umjuízo ético comum, relativamente coerente,acerca de uma situação concreta” (Archer,1996:26). Seria ainda marca da bioética aimprescindível abertura à participação de umpúblico cada vez mais competente e exigentee pelo seu papel de assessoramento de políti-cas nacionais num esforço de harmonizaçãoreguladora internacional que é exigido peloconfronto entre a natureza universal da ciên-cia e o carácter regional das culturas ondeela é produzida e aplicada. Deste modo,será lícito “definir bioética como o sabertransdisciplinar que planeia as atitudes quea humanidade deve tomar ao interferir como nascer, o morrer, a qualidade de vida ea interdependência de todos os seres vivos.Bioética é decisão da sociedade sobre astecnologias que lhe convém. É expressãoda consciência pública da humanidade”(Archer, 1996:32). Propondo, aparente-mente, a profissionalização do bioeticistaque, aliás, é já prática adquirida sobretudonos países anglo-saxónicos, Archer concluique “(s)ó o treino profissional numa análisefilosófica que leve à fundamentação ética dojuízo moral poderá impedir que a bioéticase limite a um pragmatismo ético-científico,se dissolva num relativismo ético ou de-genere num sociologismo moral” (Archer,1996:32). Outra autora, M. Patrão Neves,atribui à evolução da bioética o mérito de

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uma quádrupla conquista, “cada uma assina-lando a instauração de uma nova realidadeque contribui, de forma ímpar, para a con-stituição do que vem sendo a bioética nasua especificidade” (Neves, 2001:26): dosmédicos e cientistas, da sociedade, as quaisdecorrem necessariamente das condições deorigem da bioética, e do governo e dopoder (Neves, 2001:26-27). Repara, no en-tanto, que importa simultaneamente consid-erar que cada nova conquista enfrenta de-safios ou perigos susceptíveis de comprom-eter a sua identidade e a natureza do seudesenvolvimento, nomeadamente devido àespecialização da bioética e à profissional-ização dos bioeticistas. De resto, Nevesaponta muito justamente que o reverso doextraordinário sucesso da bioética se encon-tra naquilo que podem ser igualmente indí-cios da sua caducidade, pela ausência de umestatuto epistemológico objectivamente fun-damentado e consensualmente reconhecido,conjugado com os abusos que a sua evocaçãofrequente e diversificada tem permitido. Defacto, a bioética, ou o seu universo temático,é hoje matéria de amplo debate público, emque rapidamente a curiosidade e o interessese autopromovem em conhecimento e au-toridade com uma consequente descredibi-lização deste novo domínio da reflexão e daprática. E a bioética permanecerá exposta aeste tipo de abusos enquanto não conquis-tar um estatuto epistemológico, o que, porseu turno, a interdisciplinaridade de origemdificulta” (Neves, 2001:21). Assinale-se,a propósito, que este raciocínio é corrob-orado por Bourgeault, para quem há umaincompatibilidade de fundo entre a preten-são de a bioética adquirir estatuto autónomoentre as demais disciplinas e a exigênciasimultânea de que ela seja praticada na

pluridisciplinaridade ou na interdisciplinar-idade, visto que é através da sua pluridis-ciplinaridade, mas para além dela, que abioética põe em marcha a confrontação in-terdisciplinar em vista da discussão e datomada de decisão (Bourgeault, 1992:41).Também Callahan afirma que se a bioéticapretende preservar o seu carácter interdisci-plinar, como deveria, então talvez nunca en-contre uma boa solução para o problema dasua metodologia (Callahan, 2000:683). ParaNeves, isto significaria que o momento pre-sente seria o de repensar a bioética comoconquista de si própria, “não preferencial-mente em termos do desenvolvimento dosseus temas originários ou da ampliação dassuas características problemáticas” (Neves,2001:29), mas na sua identidade própria, nasua natureza e desígnio, de tal modo que“o sucesso da bioética dependerá da fidel-idade à sua intencionalidade originária noprotagonizar do espírito humanista” (Neves,2001:30). Ora, saber em que consiste aocerto tal humanismo, que talvez nunca tenhasido claro, mas antes sempre atravessadopor uma irreprimível ambiguidade, propi-ciará o necessário esclarecimento da inten-cionalidade originária da bioética de modoa percebermos a que terá ela de ser real-mente fiel para repetir no futuro os frutosdo seu passado. Convirá não esquecer, aeste propósito, que uma das maiores virtuali-dades da bioética foi a ruptura que ela repre-sentou com a estreiteza e o acanhamento doshumanismos da teologia moral ou da deon-tologia de funestas consequências na prática.

Uma breve revisão do pensamento dosfundadores e dos mais proeminentes pen-sadores no campo da bioética, como VanRensselaer Potter, André Hellegers e DanielCallahan, Hans Jonas, Hugo Tristram En-

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gelhardt e Gilbert Hottois, pode contribuirpara se compreender quão controversa é adefinição do âmbito da bioética. Ao con-trário de Callahan, Potter e Hellegers nuncareivindicaram para si o estatuto de filóso-fos, no sentido de nunca terem praticadouma ética filosófica, embora nunca tenhamrejeitado o título de bioeticistas, sobretudoo segundo. Quanto a Jonas, Engelhardte Hottois, recorreremos aos seus préstimosporquanto são estes os pensadores proemi-nentes que declaradamente se abalançaram àquestão da fundamentação de uma bioética, enão tanto para explanarmos a grande questãofilosófica da dificuldade de fundamentar umaética geral, ou sequer uma ética para a téc-nica, o que nos lançaria numa incomportávelinquirição junto de uma imensidade de au-tores e de referências.

A intenção de Van Rensselaer Potter aoforjar o termo de bioética era apresentar umanova disciplina que, ao combinar o conhec-imento biológico com o conhecimento dossistemas humanos de valores, erguesse umaponte entre a cultura das ciências e a cul-tura das humanidades. Neste sentido, Pot-ter retomava a seu modo uma questão bemmais antiga e vasta no pensamento ociden-tal. À luz da visão de Potter, a bioética pos-sui uma distinta focagem antropocêntrica, depreferência a biocêntrica. Potter identifi-cava o problema humano dominante comoum problema de sobrevivência e a bioéticaseria a nova disciplina dedicada ao estudo eà avaliação de um óptimo de mutação am-biental e de um óptimo de adaptação hu-mana a ele, de modo a “não só enriqueceras vidas individuais, mas prolongar a so-brevivência da espécie humana numa formaaceitável de sociedade” (Reich, 1994:322).Por mais importante que possa ter sido, o

contributo de Potter para a bioética deve-ria permanecer largamente marginalizado atéa uma época recente, quando foi de algummodo redescoberto e redefinido sob o nomede bioética global, já em finais da décadade oitenta, também ainda por influência dopróprio Potter e que teve influência deci-siva no pensamento de Brunetto Chiarelli,antropólogo e bioeticista italiano31. Parale-lamente a Potter, André Hellegers desen-volveu inicialmente uma outra concepção debioética noKennedy Institute of EthicsnaUniversidade de Georgetown, mas tambémaqui a sua morte prematura haveria de limitara sua influência no próprio meio académicoonde sempre trabalhou. Segundo Reich, An-dré Hellegers não achava que fossem tanto osproblemas levantados pelas novas tecnolo-gias biomédicas a fornecer o impulso inicialà bioética, mas sobretudo “aquilo em que setinha tornado a medicina num mundo em quea saúde e a doença se tinham transformadoem conceitos profundamente confusos” (Re-ich, 1999:43). Reich aponta nomeadamentea crescente preocupação de Hellegers coma medicalização generalizada da vida doshomens e mulheres contemporâneos e odeslize dos fins preventivos e terapêuticos damedicina para fins extra-terapêuticos, querda ordem dos consumos privados, quer daordem do controle público dos comporta-mentos; Hellegers ter-se-ia oposto ao mas-caramento da medicina pela sociedade e dadoença pela medicina, a qual se dedicavaa “mascarar as doenças sociais tratando osrespectivos sintomas biologicamente” (Re-ich, 1999:45). Ainda segundo Reich, Hel-

31Brunetto Chiarelli (1992), “Man, Nature andEthics: Global Bioethics”,Global Bioethics, 5 (1):13-20 e (1993),Bioetica Globale, Firenze: A. Pon-tecorboli Editore.

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legers teria favorecido uma ética centradano cuidado de preferência a uma ética cen-trada na autonomia (Reich, 1999:46-47). Deacordo com Hellegers, a bioética deveriaconjugar as ciências médicas, as ciências so-ciais e a peritagem ética de um modo quepermitisse aos clínicos uma maior proficiên-cia nessa especialidade que a dos filóso-fos e dos teólogos morais. A bioética sig-nificaria a conjugação, profissionalizada, daperícia médica e da proficiência ética, maspermaneceria em larga medida dentro do âm-bito de uma especialidade médica com o sen-tido mais restrito de um estudo revitalizadoda ética médica. Efectivamente, a visãoque Hellegers tinha da bioética haveria desobreviver à sua morte em 1979 e inspiraruma das tendências contemporâneas da in-vestigação em bioética, conhecida sobretudocomo bioética clínica (Reich, 1999:48).

O nascimento “bilocalizado” ou “bicé-falo” da bioética de que fala Warren T. Reicha este propósito, referindo-se a Van Rens-selaer Potter e André Hellegers, implica defacto duas concepções de bioética que emmuitos aspectos se entrechocam, mas quepor vezes coincidem. Segundo Reich, to-davia, as principais diferenças não são real-mente entre os autores, como se se tratassede “abordagens gémeas” que se tivessemseparado à nascença, mas sim entre Pot-ter e a perspectiva doKennedy Institute ofEthics/Universidade de Georgetown que, aoapropriar à sua maneira o pensamento deHellegers, teve um papel decisivo na pro-moção daquele que durante muito tempo se-ria o sentido largamente aceite de bioética,uma disciplina baseada numa abordagemfilosófica e humanística das questões rela-tivas às políticas públicas de saúde (Reich,1999:48). A concepção que Potter tinha

da bioética enraízava numa maneira holís-tica de entender a saúde que advinha dasua própria consciência, como oncologista,do forte laço entre a carcinogénese e ascondições ambientais e da ênfase colocadana necessidade de prevenção, mais do queem meras questões de terapia. Potter apelavaao desenvolvimento de uma ética normativageral para a saúde global, que só poderiaser prosseguida no âmbito de uma disciplinainteiramente nova que combinasse o con-hecimento científico e filosófico no pressu-posto de que eles não só não são incomen-suráveis, mas que, pelo contrário, existemfortes afinidades entre ambos. A bioéticaencontrar-se-ia assim comprometida com aprocura da sabedoria que permitisse o de-senvolvimento de uma nova ética voltadapara a condução de escolhas morais comvista à sobrevivência humana global e val-orizada. Em contrapartida, o modelo debioética de Georgetown centrava-se em dile-mas médicos concretos e apresentava ar-gumentos filosóficos precisos no campo daética normativa aplicada, de tal modo que abioética não seria mais do que um ramo deuma disciplina já existente, a ética aplicada.O entendimento de Georgetown sublinhavatambém a incomensurabilidade da ciência eda ética e, a nível epistemológico, procu-rava resolver problemas morais concretos doforo médico, por intermédio da aplicação deprincípios éticos pré-estabelecidos e univer-salmente válidos. Warren T. Reich observaque Hellegers, tal como Potter e ao con-trário do modelo originalmente prevalecenteem Georgetown, abraçava de facto uma per-spectiva global da bioética em todos os trêssentidos do termo global: “1) relativa à,ou implicando, a terra inteira: uma éticamundial para bem do mundo; 2) acarreta a

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inclusão geral de todas as questões éticasnas ciências da vida e na prestação de cuida-dos de saúde (tanto as questões ‘biomédicas’como as questões ‘ambientais’ do debateclássico); 3) utiliza uma visão geral de méto-dos para abordar essas questões: incorpo-rando de maneira alargada todos os valores,conceitos, maneiras de pensar e disciplinasrelevantes” (Reich, 1995:24). Ao fazer estaobservação, Reich visa propôr um quadroglobal para a bioética, sem o qual “a bioéticaconcebida de modo mais estreito e medica-mente orientado mais facilmente se trans-forma numa lista de questões e argumentosdescosidos acerca destes problemas” (Re-ich, 1995:28), tendendo a medicalizar todo ocampo da bioética e a esvaziar gradualmente“as energias morais da bioética das questõesmais vastas da sobrevivência humana e daqualidade de vida e de saúde dos pontosde vista demográfico e ambiental” (Reich,1995:29). Por outro lado, “a bioética é mel-hor definida no seu sentido global, comoa ética das ciências da vida e da prestaçãode cuidados de saúde. Significa isto que abioética vai para além das questões éticas damedicina, para incluir as questões éticas rel-ativas à saúde pública, ao crescimento pop-ulacional, à genética, à saúde ambiental, àspráticas e tecnologias reprodutivas, à saúdee bem-estar dos animais, e por aí fora. Esteâmbito alargado, com o qual, opina Reich,afinal concordariam tanto Potter como Hel-legers, constituía a intenção originária dosoutros pioneiros da bioética, reunidos emtorno doHastings Centerque, desde o seuinício, concentrava todo o seu trabalho em‘ética e ciências da vida”’ (Reich, 1995:29).Ainda segundo Reich, “a palavra ‘bioética’desempenhou um papel da maior importân-cia na criação de um novoforume uma nova

tribuna de onde falar, afastando as suspeitasde sectarismo e ideologia religiosa anteri-ormente sugeridas ao público pela palavra‘ética’. A palavra possuía o inovador e es-pantoso efeito de criar um terreno secularaceitável - tanto no interior das academiascomo no forum público - onde as ideiascientíficas, relacionadas com as questões dasaúde, religiosas, filosóficas, sociais e políti-cas poderiam encontrar-se e criar um novo emultidisciplinar modo de investigação” (Re-ich, 1995:30-31). Ainda segundo Reich, édesta redescoberta do sentido originário dabioética que dão testemunho os editores daEnciclopédia de Bioética que temos vindoa referir. Ao contrário de muitos académi-cos e do público em geral, que tendem areduzir o âmbito da bioética à estreiteza deum sentido médico estrito - “a bioética se-ria uma ética médica ligeiramente alargada,incluindo a ética da investigação biomédica”(Reich et al., 1995:XXI) - entendem aquelesque no âmbito da bioética cabem as questõessociais, ambientais e globais das ciências dasaúde e da vida, de tal modo que ele “vaipara além da ética biomédica para englobaras questões morais relativas à saúde e à ciên-cia nas áreas da saúde pública, da saúde am-biental, da ética da população e do manusea-mento de animais” (Reich et al., 1995:XXI).O que há que evitar, nesta perspectiva, eporque se trata de dar razão de unir as áreasmédicas com as áreas sociais e globais dasciências da saúde e da vida, é uma “orien-tação médica excessivamente estreita (que)tende a medicalizar e tecnologizar o campoda bioética, tornando assim o seu programade trabalho e até os seus métodos mais facil-mente moldáveis pelas actuais formas dastecnologias clínicas e por poderosas institu-ições médicas” (Reich et al., 1995:XXII).

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Em 1988, Van Rensselaer Potter re-definiria a sua própria concepção origináriade bioética, substituindo-a pela noção debioética global. Os seus pressupostos fun-damentais são: “a) que uma forma aceitávelde sobrevivência humana não pode ser pres-suposta e é improvável sem um renascimentoda ciência, da religião e da teoria económica;b) que a base fundamental da origem da es-pécie e da evolução por processos naturaisé a chave do nosso passado remoto e dasnossas dificuldades presentes, embora nen-huma das grandes religiões tenha adoptadoesta posição (. . . ); c) que a sobrevivência hu-mana numa forma aceitável requer a utiliza-ção do conhecimento existente e da continu-ada investigação nas ciências básicas, médi-cas, do ambiente e do comportamento para odesenvolvimento de uma posição de autori-dade moral; d) que a recente taxa de cresci-mento da espécie humana em muitas regiõestem levado ao sobrepovoamento numa baseglobal e tem de ser invertida se se tomaem consideração a sobrevivência aceitável;e) que a bioética global é necessária comofonte secular de autoridade moral num diál-ogo com as religiões cooperantes para se re-sponder ao desafio da sobrevivência da espé-cie humana numa forma aceitável através doterceiro milénio e para além dele: como tal,a bioética global é moralmente justa e con-veniente enquanto meio de unificar as diver-sas comunidades étnicas, religiosas e políti-cas do planeta Terra, apesar dos interessesinstalados que podem optar por se lhe opor;f) que a sobrevivência aceitável é concebívele alcançável, embora difícil num mundo plu-ralista, se para tanto um número suficientede espíritos humanos puderem ser mobiliza-dos e motivados para efectivar uma evoluçãocultural consciente em direcção à bioética

global sem demora; g) que qualquer pressu-posto fundamental está aberto a questiona-mento e modificação, de preferência por pro-cessos ordeiros “ (Potter, 1992:5-6).

Em suma, o projecto de uma BioéticaGlobal, tal como Potter o apresenta, acar-retaria mudanças fundamentais nas políti-cas mundiais e, se implica um necessárioextravazamento dos limites tradicionais daética ou da deontologia médicas, representaigualmente um contraponto secular ao fun-damentalismo religioso, se bem que não umarecusa liminar da admissão à discussão detoda a perspectiva religiosa. Neste sentido,Potter pretende que a bioética seja uma éticade inspiração propriamente filosófica, na me-dida em que se distingue quer de uma de-ontologia profissional, quer de uma moralconfessional, e na medida em que dirigetanto às profissões em geral, e científicase médicas em particular, como às religiões,o desafio racional de formularem e prov-idenciarem valores, ou seja, que as ques-tiona no sentido de saber que valores de-fendem e como pode ela apropriá-los. Noentanto, a bioética global de Potter é tam-bém suficientemente generalista, ou também“piedosa” no seu generalismo, para de certomodo acomodar, e poder ser explorada emproveito dos cientistas que (re)fazem uma in-terpretação naturalista da sua própria ciên-cia, designadamente quando defendem queé na sua “descoberta” do “facto” da biodi-versidade que assenta, em última análise, ainjunção de respeito por esta, o que se temtornado numa autêntica palavra-de-ordem.Com efeito, a convicção nos fundamentosnaturais da ética, cara a autores como Jean-Pierre Changeux32, convergiu com a bioética

32V. em especial: Jean-Pierre Changeux (1991),O

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por intermédio de uma interpretação partic-ular da bioética global de Potter – mas quePotter não rejeitou, note-se – e tem sido de-senvolvida sobretudo por Brunetto Chiarelli.No entanto, há que recordar que a ideia deuma ética evolucionista33 deve ser entendidanum quadro mais geral que assimila atitudecientífica e racionalidade ética, mas ao preçoda naturalização desta, à luz de um mod-elo que remonta a Darwin e a Haeckel, queo positivismo científico-social prosseguiu eque hoje desemboca em correntes como a so-ciobiologia.

Quanto a Daniel Callahan, a emergên-cia da bioética marca as limitações da éticamédica que, além de ter que ver com “os di-versos e delicados dilemas morais com quese confrontam os médicos, os pacientes e oconjunto do sistema médico”, deve englo-bar, em sentido mais vasto, os debates so-bre os conceitos de saúde e de doença, sobreos fins da medicina e sobre o modo comoas decisões devem ser tomadas” (Callahan,1986:43). A este respeito, em meados dos

homem neuronal. Lisboa: Publicações Dom Quixote,Jean-Pierre Changeux e tal. (1996),Fundamentosnaturais da ética. Lisboa: Instituto Piaget e o debateentre Jean-Pierre Changeux e Paul Ricoeur (1998),Cequi nous fait penser. La nature et la règle. Paris: Édi-tions Odile Jacob.

33São óbvias as afinidades entre o pensamentode Brunetto Chiarelli e as posições da ética evolu-cionista – V. nomeadamente: Brunetto Chiarelli(1991), Origem da sociabilidade e da cultura hu-mana. Coimbra: Instituto de Antropologia da Uni-versidade de Coimbra e Paul Thompson, ed. et al.(1995), Issues in Evolutionary Ethics. New York:State University of New York Press. Por outro lado, aconvergência entre Potter e Chiarelli ficou selada coma RevistaGlobal Bioethics, editada pelo primeiro naUniversità Degli Studi de Florença e de cujo conselhoredactorial Potter foi presidente honorário até à suamorte em 2001.

anos oitenta já Callahan dizia claramente que“a análise e a prescrição morais só raramenteabrem caminho em matéria de evolução so-cial e cultural. Pelo contrário, elas represen-tam geralmente uma tentativa de organizarpráticas imperfeitas e díspares e princípiosprecários e adaptados a cada caso (aquiloque geralmente se designa com o termo deusos) num sistema moral coerente e estru-turado” (Callahan, 1986:44). A ética sópode cumprir eficazmente um papel refor-mador sob duas condições, a primeira dasquais consiste em apreender e compreendercorrectamente as realidades culturais e soci-ais e a segunda que os princípios e as per-spectivas por ela estabelecidos representemuma real capacidade de organização e depercepção, ressalvando-se porém que todaa análise moral dá quase inevitavelmenteorigem a uma tensão entre os ideais moraise as realidades da vida quotidiana que tornadifícil a obediência a esses ideais (Calla-han, 1986:44). As duas tarefas maioresque se perfilaram diante da bioética emer-gente foram: um esforço de apagar a dis-tinção entre factos estritamente científicos evalores exclusivamente éticos e “desafiar acrença segundo a qual os peritos em ciên-cia e medicina eram tão capazes de tomardecisões morais como médicas” (Callahan,1995:249); e uma tentativa de desenvolver asmetodologias necessárias à abordagem dosnovos dilemas éticos. Logo desde o inícioimpuseram-se as questões da necessária in-terdisciplinaridade da bioética e de saber quedecisões deveriam ser remetidas ao foro pri-vado e que decisões deveriam ser deixadas àesfera pública. No entanto, diz Callahan quea definição do âmbito da bioética, a sua re-lação com as disciplinas da teologia moral eda filosofia moral, com os seus campos con-

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ceptuais e as suas metodologias estabeleci-das, e a dilaceração da bioética entre a am-plitude da interdisciplinaridade e a estreitezade metodologias comprovadas, foram prob-lemas que acompanharam a bioética tambémdesde o início e que estão longe de ser re-solvidos. Mais, entende Callahan que, en-quanto campo, a bioética oferece duas difi-culdades de monta: “ela fracassou na perse-cução, suficientemente imaginativa, da ideiade bem comum, ou interesse público, porum lado, e da ideia de responsabilidade pes-soal, ou dos usos morais da escolha individ-ual, por outro. Em virtude da sua tendên-cia de reduzir o problema do bem comum àjustiça e da vida moral individual à aquisiçãode autonomia, ela deixou um vazio moral”(Callahan, 1994:28). Assim, a evolução dabioética levaria à sedimentação de quatrograndes áreas no seu interior, como respostapossível e pragmática àqueles problemas defundo. Assim, haveria quatro grandes áreasde pesquisa: a bioética teórica ou fundamen-tal, que lida com os fundamentos epistémi-cos do campo, a bioética clínica, que abrangea resolução de problemas éticos concretos e atomada de decisões “à cabeceira”, a bioéticaregulatória e das políticas públicas, com umimenso manancial de instrumentos de regu-lação e de decisões políticas, e a bioética cul-tural, que se refere à abordagem das questõesbioéticas do ponto de vista das ciências soci-ais e dos estudos culturais. De facto, é certoque se desenvolveram correntes inteiras dereflexão em cada uma destas áreas ou sub-especialidades no interior da bioética, desdeo privilégio da bioética clínica e a metodolo-gia casuística de Albert Jonsen34, nos EUA,

34Albert R. Jonsen, Mark Siegler e William J.Winslade (1998),Ética clínica: Uma Abordagem

passando pela recuperação de uma ética davirtude, com Edmund Pellegrino e DavidThomasma35, que se opõem tanto ao princip-ialismo de Tom Beauchamp e James Chil-dress36, como à defesa da autonomia, porRobert Veatch37, que por sua vez se dis-tinguem todos das correntes feministas eda ética do cuidado de Carol Gilligan38 eda ética narrativa39, enquanto que na Eu-ropa, Diego Gracia40, desenvolve estudos

Prática de Decisões Éticas em Medicina Clínica. Al-fragide: McGraw-Hill de Portugal.

35Edmund D. Pellegrino (1985), “The VirtuousPhysician, and the Ethics of Medicine”, in Earl E.Shelp, ed. et al:Virtue and Medicine. Dordrecht: Rei-del: 237-255, (1995b), “Toward a Virtue-Based Nor-mative Ethics”, inKennedy Institute of Ethics Jour-nal, Vol. 5 (3): 253-277 e Edmund D. Pellegrino(2000), “Bioethics at Century’s Turn: Can NormativeEthics be Retrieved?”,The Journal of Medicine andPhilosophy, 25 (6): 655-675; Edmund D. Pellegrino eDavid C. Thomasma (1988),For the Patient’s Good:The Restoration of Beneficence in Health Care. NewYork: Oxford University Press e (1993),The Virtuesin Medical Practice. New York: Oxford UniversityPress.

36Tom L. Beauchamp (1985) “What’s So SpecialAbout the Virtues?”, in Earl E. Shelp, ed. et al.:Virtue and Medicine. Explorations in the Characterof Medicine. Dordrecht: D. Reidel Publishing Com-pany: 307-327, (1993), “The Principles Approach”,Hastings Center Report, 23 (6): S9, (1995), “Prin-ciplism and Its Alleged Competitors”,Kennedy In-stitute of Ethics Journal, 5 (3): 181-198 e Tom L.Beauchamp e Laurence B. McCullough (1987),Éticamédica. Las responsabilidades morales de los médi-cos. Barcelona: Editorial Labor.

37Robert Veatch (1981),A Theory of MedicalEthics. New York: Basic Books.

38Carol Gilligan (1998),In A Different Voice. Cam-bridge: Harvard University Press e Margaret OliviaLittle (1996), “Why a Feminist Approach to Bioethics?”, Kennedy Institute of Ethics Journal, 6 (1): 1-18.

39V. Kathryn M. Hunter (1991),Doctor’s Stories.Princeton: Princeton University Press.

40Para um conhecimento aprofundado, além do tí-

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de bioética fundamental, que, no que re-speita às suas metodologias, assume umavisão sincrética da bioética muito próximada de Daniel Callahan e doHasting Center, eGilbert Hottois se distinguiu sempre por umareflexão filosófica e científico-social que seaproximaria muito daquilo que atrás foi de-scrito como “bioética cultural”, sem no en-tanto se esgotar nessa definição.

Posição claramente distinta, senão mesmooposta, à de um Potter é tomada por HansJonas quanto à legitimidade da persecuçãolivre e autónoma de possíveis biomédicos,científicos e tecnológicos e de estilos devida, a cujo propósito o filósofo formulouo seu célebrePrinzip Verantwortung, ouPrincípio Responsabilidade (Jonas, 1984). Apremissa fundamental do seu princípio ouimperativo de responsabilidade, que, alertaJonas, parte de um diagnóstico que já nãoé novo, é que a tecnologia moderna elevouo poder do homem sobre a matéria, a vidae o próprio homem para além de tudo oque antes era conhecido; de acordo comela, desenvolve Jonas cinco teses fundamen-tais: 1) a natureza do agir humano foi al-terada, o que levanta questões morais paraas quais nos não prepararam as antigas éti-cas e cujos princípios há que repensar; 2)a extensão das nossas acções põe a respon-sabilidade, que tem no próprio destino dohomem o seu objecto, no centro do domínioético, sendo concomitantemente necessáriauma teoria da responsabilidade que entenda

tulo referido na bibliografia, V. Diego Gracia (1989),Fundamentos de bioética. Madrid: Eudema, (1990),Primum non nocere. El princípio de no-maleficenciacomo fundamento de la ética médica. Madrid: Insti-tuto de España/Real Academia Nacional de Medicinae (1991)Procedimientos de decisión en ética clínica.Madrid: Eudema.

esta como um correlato do poder e que sejacapaz de uma previsão alargada da evoluçãofutura, ou seja, trata-se de uma responsabili-dade que tem por objecto não apenas o des-tino dos homens, mas também o destino detodos os fenómenos naturais e vivos que pos-sibilitaram a evolução da humanidade da to-talidade da própria vida; 3) qualquer ex-trapolação a partir dos dados actualmentedisponíveis terá de levar em conta a preg-nância causal das nossas acções tecnológ-icas, pelo que uma imaginativa “heurísticado medo”, que substitui as anteriores pro-jecções da esperança, deve poder dizer-noso que é que está provavelmente em causa eaquilo contra que devemos acautelar-nos, emnome de uma regra pragmática que dá prior-idade à profecia agonística sobre a promessade redenção, típica do optimismo utópicoherdado do Iluminismo, e tendo em vistaque nos é mais fácil saber o que não quere-mos do que o que queremos; 4) aquilo quedevemos evitar a todo o custo é determi-nado por aquilo que devemos preservar atodo o custo, sendo este, por sua vez, pred-icado da nossa imagem do homem, a qual,com o eclipse contemporâneo da religião,só pode ser dada por uma razão secular-izada e especulativa, susceptível de fundaros deveres do homem para consigo próprio,a sua posteridade longínqua e a plenitudeda vida terrestre sujeita ao seu domínio, detal modo que uma filosofia da natureza dev-erá articular o “é” cientificamente validávelcom o “deve” das injunções morais; 5) oconceito de imperativo humano objectivo as-sim obtido permite-nos discriminar entre osfins legítimos e os ilegítimos, propostos aonosso poder prometeico, discriminação essaque contraria a imodéstia dos fins decor-rentes da aliança entre utopia e progresso

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tecnológico, trocando-a pelo fim mais ade-quado que consiste em salvar a sobrevivênciae a humanidade do homem dos excessos doseu próprio poder (Jonas, 1984:IX-X). HansJonas formula deste modo um imperativo deresponsabilidade dirigido para a preservaçãode um mundo adequado à habitação humanae para a preservação da presença do homemno mundo como aquele ser pelo qual a ca-pacidade ética vem à existência. SegundoJonas, este imperativo de uma responsabil-idade apriorística aplica-se sobretudo à es-fera pública, como no campo das políticas deinvestigação, em que ele propõe, por exem-plo, a interdição total de experimentação hu-mana com fins eugénicos; em contrapartida,Jonas defende uma visão muito mais liberalda autonomia individual na esfera privada,como por exemplo na defesa que faz do dire-ito a certas formas de eutanásia voluntária.Embora a fundação metafísica do seu im-perativo de responsabilidade, que vai contrapraticamente todas as linhas contemporâneasde pensamento filosófico, soberanamente ig-noradas por Jonas, assim como os constrang-imentos que a heurística do medo lança sobrea liberdade humana, tenham sido objecto deabundante comentário crítico41, o seu pensa-mento tem usufruído de considerável acolhi-

41V. AAVV (1995), The Legacy of Hans Jonas,Hastings Center Report(Special Issue), 25 (7); Karl-Otto Apel (1995), “Epílogo: Límites de la ética dis-cursiva ?”, in Adela Cortina:Razón comunicativay responsabilidad solidária, Salamanca, EdicionesSígueme, 3a ed.; Dominique Bourg (1991) “Faut-ilavoir peur de la bioéthique ?”,Esprit, 171 : 22-39e (1993), “Hans Jonas et l’écologie”,La Recherche,24 (213): 886; A. Fernando Cascais (1994), “Sal-var que natureza e que homem?”, in Hans Jonas,Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega: 5-24; SylvieCourtine-Denamy (1997), “Hans Jonas - HannahArendt: Histoire d’une complémentarité”, in HansJonas:Entre le néant et l’éternité. Paris : Éditions

Belin : 7-74; Marie-Luce Delfosse (1996), “Expéri-mentation médicale sur l’être humain et philosophie”,in Jean-Noel Missa et al.:Le devoir d’expérimenter.Études philosophiques, éthiques et juridiques sur larecherche biomédicale. Bruxelles : De Boeck : 207-225; Strachan Donneley (1995) “The Art of MoralEcology”,Ecosystem Health, 1(3): 170-176 e (1996),“Transgenic Animals and ‘Wild’ Nature. A Land-scape of Moral Ecology”, in Jennifer Chesworth,ed. et al.: The Ecology of Health.Identifying Is-sues and Alternatives. Thousan Oaks: Sage Publica-tions: 47-58; Anne Fagot-Largeault (1996), “Norma-tividade biológica e normatividade social”, in Jean-Pierre Changeux, dir. et al.:Fundamentos naturais daética. Lisboa : Instituto Piaget: 179-211 ; Luc Ferry(1992),Le nouvel ordre écologique. L’arbre, l’animalet l’homme. Paris: Grasset; C. Fethe (1993), “Beyondvoluntary consent: Hans Jonas on the requirements ofhuman experimentation”,Journal of Medical Ethics,19 (2): 99-103; Jean Greisch (1995), “L’amour dumonde et le principe responsabilité”, in AAVV:La re-sponsabilité. La condition de notre humanité. Paris :Éditions Autrement : 72-93 ; Gilbert Hottois (1992),O paradigma bioético. Uma ética para a tecno-ciência, Lisboa, Edições Salamandra e (1997),Dela Renaissance à la Postmodernité. Une histoirede la philosophie moderne et contemporaine. Brux-elles : De Boeck; Gilbert Hottois, ed. et al. (1993),Aux fondements d’une éthique contemporaine. HansJonas et H. Engelhardt. Paris: Vrin; Gilbert Hottoise Marie-Geneviève Pinsart, eds. et al. (1993),HansJonas. Nature et responsabilité. Paris: Vrin; LeonKass (1981), “The New Biology: What Price Reliev-ing Man’s Estate ?”, in Thomas Shannon, ed. et al.:Bioethics. Basic Writings on the Key Ethical Issuesthat Surround the Major, Modern Biological Possibil-ities and Problems. Ramsey: Paulist Press: 295-318;Teresa Levy (1997), “Philosophical ethics meets tech-nology: a difficult state of affairs”,Global Bioethics,10 (1-4): 35-54 e (1998), “Rethinking ethics: A crit-ical appraisal of Hans Jonas’ work on ethics”, inAAVV: Ética e o futuro da democracia. Lisboa:Edições Colibri: 443-450; Carl Mitcham (1989),Quéés la filosofía de la tecnología ?Barcelona: Edito-rial Anthropos, (1994),Thinking Through Technol-ogy. The Path Between Engineering and Philoso-phy. Chicago and London: The University of ChicagoPress e (1996), “Biomedical Technologies and the En-

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mento entre algumas correntes políticas e so-bretudo entre os meios ambientalistas e ecol-ogistas, atraídos pela sua fundação da ca-pacidade ética humana numa metafísica daevolução natural que, por isso, alarga o bemhumano, e o faz inclusive radicar na pro-tecção do bem da natureza e da vida, mas istoem termos diametralmente opostos aos daética evolucionista. Por outro lado, o princí-pio de responsabilidade de Jonas permanececomo a tentativa filosoficamente mais sofisti-cada de contrariar as tendências do pen-samento contemporâneo e os riscos do ni-hilismo ontológico e do relativismo ético,exercendo por esta via um fascínio inegávelpara a grandes preocupações do século42.

vironment: Rejecting the Ethics of Rejecting Nature”,in Jennifer Chesworth, ed. et al.:The Ecology ofHealth. London: Sage Publications: 3-16; MiguelBaptista Pereira (1992), “Do biocentrismo à bioéticaou da urgência de um paradigma holístico”,RevistaFilosófica de Coimbra, 1 (1): 5-50; Marie-GenevièvePinsart (1996), “Nature humaine ou expérimentationhumaine chez Hans Jonas”, in Jean-Noel Missa etal.: Le devoir d’expérimenter. Études philosophiques,éthiques et juridiques sur la recherche biomédicale.Bruxelles : De Boeck: 187-205; Paul Ricoeur (1996),Soi-même comme un autre. Paris : Éditions du Seuil;Jean-Pierre Séris (1994),La technique. Paris : PressesUniversitaire de France; Lucien Sève (1994),Pourune critique de la raison bioéthique. Paris : Édi-tions Odile Jacob; Franck Tinland (1997),L’Hommealéatoire. Paris : Presses Universitaires de France;Lawrence Vogel (1996), “Hans Jonas’s Exodus: FromGerman Existentialism to Post-Holocaust Theology”,in Hans Jonas, Lawrence Vogel, ed.:Mortality andMorality. A Search for the Good after Auschwitz.Evanston: Northwestern University Press: 1-40.

42Para um conhecimento aprofundado do pensa-mento de Jonas, além dos títulos referidops na bib-liogragfia, V.: Hans Jonas (1963),The Gnostic Reli-gion. The Message of the Alien God and the Begin-nings of Christianity. Boston: Beacon Press; (1980),Philosophical Essays. From Ancient Creed to Tech-nological Man. Chicago: The University of Chicago

Explica Jonas que falar da natureza al-terada do agir humano significa que to-das as éticas até hoje conhecidas partiamdas premissas tácitas interligadas de quea condição humana, determinada pela na-tureza do homem e pela natureza das coisas,estava dada de uma vez para sempre, que obem humano era por isso de imediato de-terminável e que a latitude do agir humano,ou seja, da responsabilidade, se encontravaestreitamente circunscrita. Acontece que,segundo Jonas, que neste aspecto revela asua dívida para com a reflexão de MartinHeidegger acerca da técnica, estas premis-sas já não se mantêm. Tendo a natureza doagir humano sido alterada pela técnica mod-erna, é absolutamente necessário formularuma ética que se preocupe com esse agir epara a qual não existe precedente nos mod-elos e cânones da ética tradicional. Ao con-trário dateknegrega, cujo carácter artesanalnão alterava os grandes ciclos da natureza,marcando antes a diferenciação entre ela e o

Press; (1981), “The Right to Die”, in Thomas A.Shannon, ed. et al.,Bioethics. Basic Writings onthe Key Issues that Surround the Major, Modern Bi-ological Possibilities and Problems. Ramsey: PaulistPress: 195-208; (1991), “De la Gnose au Principe Re-sponsabilité. Entretien avec Hans Jonas”, Esprit, 171:5-21; (1994),Le concept de Dieu après Auschwitz.Paris: Éditions Rivages & Payot; (1995), “Not Com-passion Alone: On Euthanasia and Ethics”,HastingsCenter Report, 25 (7): 44-50; (1996a),Mortality andMorality. A Search for the Good after Auschwitz, ed.by Lawrence Vogel. Evanston: Northwestern Uni-versity Press; (1996b),Pour une éthique du futur.Paris: Payot et Rivages ; (1997),Entre le néant etl’éternité. Paris: Éditions Belin; (1998),Pensar sobreDios y otros ensayos. Barcelona: Editorial Herder;(1999),Sull’orlo dell’abisso. Conversazioni sul rap-porto tra uomo e natura. Torino: Giulio Einaudi Edi-tore; (2000),Organismo e libertà. Verso una biologiafilosofica. Torino: Giulio Einaudi Editore.

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mundo humano que delimitava o âmbito dasinjunções morais, a técnica moderna é porta-dora de uma capacidade de manipulação efi-caz dos fenómenos naturais que pôs termoà essencial imutabilidade da natureza, comoordem cósmica, fazendo com que ela deix-asse de ser o horizonte moral da acção hu-mana e se tornasse igualmente em objecto deresponsabilidade sobre o qual há que velareticamente na medida directa do poder ma-nipulador que sobre ela a técnica exerce. As-sim, de acordo com Jonas, são característi-cas das éticas anteriores: tudo o que dizia re-speito ao domínio não humano datekneeraeticamente neutro, salvo a medicina, tantoem relação ao objecto como ao sujeito detal acção, e atekne era entendida comosimples tributo à necessidade; a relevânciaética advinha da relação do homem com ohomem, a ética era antropocêntrica; a enti-dade do homem era considerada constanteem essência e não como um objecto ma-nipulável pelatekne; os valores a que de-via ater-se a acção permanecem próximosdo próprio acto, quer napraxis, quer noseu alcance imediato; eram éticas do pre-sente imediato no espaço e no tempo, quedeixavam as consequências longínquas daacção ao acaso, ao destino e à providência;consequentemente, o tipo de conhecimentoem que se baseavam estas éticas era da or-dem do senso comum a todos os homensde boa vontade, permanente e universal, quenão necessitava de grande capacidade pred-itiva com que contrariar o não maior poderdo homem. Em contrapartida, com a téc-nica moderna, surgem novas dimensões deresponsabilidade: a vulnerabilidade da na-tureza à intervenção tecnológica, registadapela ecologia, o que faz com que a preser-vação da biosfera se torne objecto de respon-

sabilidade; e as gerações futuras, dado que ocarácter cumulativo da auto-propagação tec-nológica, ao alterar a situação inicial, modi-fica as condições do agir e leva assim a umafastamento crescente entre a capacidade depredizer e o poder de agir, o que obriga a quenos preocupemos com as consequências dasnossas acções presentes para as gerações quehão-de vir e sofrer-lhes as respectivas con-sequências: “Em face das potencialidadesquase-escatológicas dos nossos procedimen-tos técnicos, a ignorância das implicaçõesúltimas torna-se ela própria num motivode contenção responsável” (Jonas, 1984:22).Neste sentido, e ao contrário da ética kan-tiana, que se baseava numa teoria do conhec-imento, doravante não é já o conhecimento,a racionalidade, que se transforma num de-ver primeiro e coextensivo à escala causal donosso agir, mas antes o nosso poder de agirque nos obriga a formular racionalmente umimperativo que precisamente nos responsabi-lize por esse poder de que nos deparamosdetentores: “Por outras palavras, a técnica,para além das suas realizações objectivas, as-sume importância ética em virtude do lugarcentral que hoje ocupa nos fins humanos”(Jonas, 1984:9). Recobrindo hoje a totali-dade do mundo natural, por obra e graça datécnica, a Cidade Universal tornou-se numasegunda natureza; já não há diferença entrea cidade e a natureza, mas uma megalópoleque usurpou o mundo não humano da na-tureza. A presença do homem no mundosurge então como o grande imperativo deuma ética para a era da técnica: de dadoinquestionável, do qual partia toda a ideiade obrigação moral, a presença do homemno mundo tornou-se ela própria objecto deobrigação moral, a obrigação de assegurara própria premissa de toda a obrigação, ou

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seja, a base que sustenta um universo moralno mundo físico. A necessidade de umaética equivale de facto à necessidade de umaciência dos efeitos a longo prazo do agirtecnológico, que ocupa o seu lugar entre oconhecimento ideal dos princípios éticos e oconhecimento prático da aplicação política,ou seja, uma ciência da projecção hipotética,uma “futurologia comparativa” daquilo queo medo ou a esperança devem promover ouprevenir; trata-se de uma necessidade heurís-tica de uma doutrina dos princípios éticos ca-paz de visualizar as contingências ainda dis-tantes. Só pode assegurar-se uma imagemdo homem por extrapolação das ameaças aela: “. . . e exactamente da mesma maneiracomo não poderíamos conhecer o valor daverdade sem estarmos cientes das mentiras,nem da liberdade sem a falta dela, e por aífora – então também, na nossa procura deuma ética da responsabilidade para as con-tingências longínquas, é uma previsão dadistorção do homem que nos ajuda a detec-tar aquilo que na concepção normativa dohomem há que preservar contra ela. E pre-cisamos da ameaça à imagem do homem– e de tipos de ameaça bem específicos –para nos certificarmos da sua verdadeira im-agem pelo simples acto de recuar com hor-ror dessa ameaças. Enquanto o perigo fordesconhecido, não saberemos o que preser-var e porquê. O conhecimento disso vem,contra toda a lógica e método, da percepçãodo que há que evitar. (. . . ) Sabemos quecoisa corre perigo apenas quando sabemosque ela corre perigo” (Jonas, 1984:26-27).O escândalo precede assim o conhecimento,visto que saber o que recear não é, por si só,definir um mal, nem aquilo que é mais dese-jável corresponde necessariamente ao sumobem. Tanto constitui aquilo que Jonas chama

a heurística do medo. Diz ele que o mauprognóstico prevalece sobre o bom prognós-tico: primeiro, porque a interferência tec-nológica sobre o sistema da vida precipita ainserção de novos elementos de insegurançae acaso na evolução natural, que são estran-hos à lentidão que a caracteriza, ou seja, avelocidade dos acontecimentos subtrai-se àauto-correcção; segundo, porque os desen-volvimentos tecnológicos têm uma dinâmicacumulativa que retira das mãos dos seus ini-ciadores a lei da acção; terceiro, porque háque preservar a herança da evolução con-tra o imperativo técnico que reivindica aexclusividade da competência técnica paracumprir a completa liberdade nihilista dojogo criativo, que nos autoriza o facto denada ser sancionado pela natureza, e quenada guia a não ser o próprio capricho doimpulso de jogar. A natureza primeiro, edepois o homem, foram neutralizados emtermos de valor e estremecemos agora nodesabrigo de um nihilismo no qual emparel-ham a omnipotência quase absoluta e o vazioquase absoluto; a questão aqui em causa é ade saber se, sem ressuscitar a categoria dosagrado, aquela que mais meticulosamentefoi destruída pelas luzes da ciência, é pos-sível conceber uma ética capaz de ombrearcom os poderes extremos de que hoje dispo-mos: “Considerando que as consequênciasdo uso desses poderes são suficientementeiminentes para ainda nos chegarem a atin-gir, o medo poderia aqui fazer as vezes dosagrado – tantas vezes o melhor substitutoda virtude ou da sabedoria genuínas. (. . . )Só o temor sagrado com o seu desassom-brado veto é independente dos cômputos domedo mundano e do alívio decorrente da in-certeza a respeito de consequências demasi-ado distantes. (. . . ) E enquanto que da fé

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se pode dizer que ela existe ou não existe,da ética forçoso é que exista. (§) É forçosoque exista porque os homens agem e a éticaserve para ordenar as acções e regulamentaro poder de agir” (Jonas, 1994:59-60). As-sim sendo, deve assertar-se alguma espéciede autoridade para se determinar um modelode decisão, e essa autoridade só pode basear-se numa essencial suficiência da nossa na-tureza, tal como evolui no mundo; trata-seda suficiência em face da verdade, da liber-dade e da valoração; a autoridade dela decor-rente nunca pode pois incluir a desfiguração,a ameaça ou a remodelação de si própria; osujeito da evolução assume assim um valorsacrossanto. Significa isto: que a existên-cia do “homem” nunca deve ser posta emcausa enquanto único ser pelo qual o própriovalor vem ao mundo, que a humanidade nãotem o direito de se suicidar, tem um deverincondicional de existir, no sentido de nãoter o direito de consentir, agora, nem de pre-sumir o consentimento das gerações futurasque ainda não existem, tanto quanto à suanão existência como à sua desumanização:“Assim, num tempo de pressões unilateraise galopantes riscos, há o lado da moderaçãoe da circunspecção, do ‘toma cuidado!’ edo ‘preserva!”’ (Jonas, 1984:204).. Trata-sepois, aqui, de um dever supremo de assegu-rar o futuro que não é fornecido pela ideiatradicional de reciprocidade de direitos e de-veres, pois ela excluía aquilo que (ainda) nãoexiste da possibilidade de reivindicar dire-itos. O dever para com a posteridade prova-se pela razão de que somos hoje responsáveispelas condições de existência das geraçõesfuturas, pois elas têm origem no nosso actoprocriador; mas isto é insuficiente para umateoria ética, ainda que baste para uma prag-mática; o crime maior será impossibilitar às

futuras gerações serem o que devem ser eesse dever ser está tanto acima de nós comodelas, é o dever de serem verdadeiramentehumanas: “Este tipo de ‘responsabilidade’ ede ‘se sentir responsável’ é o que temos emmente, e não o tipo vazio e formal segundoo qual todo o agente é responsável pelosseus actos, quando falamos de ‘responsabili-dade pelo futuro’ como a marca de uma éticaque hoje é necessária” (Jonas, 1984:93).É precisamente este o primeiro imperativo:que haja uma humanidade: “Um imperativoque desse resposta ao novo tipo de acçãohumana e dirigido ao novo tipo de inter-venção que a comanda poderia exprimir-se como segue: ‘Age de tal maneira queos efeitos da tua acção sejam compatíveiscom a preservação da vida humana genuína’;ou, expresso negativamente: ‘Age de talmaneira que os efeitos da tua acção nãosejam destruidores da futura possibilidadedessa vida’; ou simplesmente: ‘Não com-prometas as condições de uma continuaçãoindefinida da humanidade sobre a terra’; oude modo mais geral: ‘Nas tuas opções pre-sentes, inclui a futura integridade do Homementre os objectos da tua vontade”’ (Jonas,1984:11; Jonas, 1994:46). Um dever nãopara com a humanidade a haver, mas paraque ela própria exista; é uma responsabili-dade ontológica pela ideia de Homem e nãopelos indivíduos enquanto tais; não se tratade uma prova ontológica que garanta a ex-istência do seu sujeito a partir da respectivaessência, mas sim da ideia de que tal pre-sença deve existir: “Só a ideia de Homem,ao dizer-nos porquê devem existir homens,nos diz também como devem ser (Jonas,1984:43). A ideia ontológica gera um im-perativo não hipotético, mas sim categórico:“. . . o primeiro princípio de uma ‘ética da fu-

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turidade’ não reside ele próprio no interiorda ética enquanto doutrina da acção (. . . ),mas no interior da metafísica enquanto dout-rina do ser, de que a ideia de Homem fazparte” (Jonas, 1984:44). Segundo Jonas,tem de se permitir a possibilidade de umametafísica racional, a despeito do veredictode Kant em contrário (Jonas, 1984:45), mashá que recusar, porém, o antropocentrismoda ética helénico-judaico-cristã, pois “. . . aspossibilidades apocalípticas inerentes à téc-nica moderna ensinaram-nos que o exclu-sivismo antropocêntrico poderia ser um pre-conceito que, no mínimo, carece de ser re-examinado” (Jonas, 1984:46). E acrescentaJonas: “A dignidade do homemper sesópode ser dita potencial, sob pena de se tornarno discurso de imperdoável vaidade. Con-tra tudo isto, a existência da humanidadevem primeiro, quer seja ela merecida pelosseus feitos passados e a sua provável contin-uação, quer não. É a sempre transcendentepossibilidade, obrigatória em si mesma, quetem de ser mantida aberta pela existênciacontinuada. Preservar esta possibilidade éuma responsabilidade cósmica; daí o deverde a humanidade existir. Dito epigramati-camente: a possibilidade de haver respons-abilidade no mundo, que se encontra ligadaà existência do homem, é, de todos os objec-tos de responsabilidade, o primeiro” (Jonas,1984:99). A existência da humanidade sig-nifica tão-só que vivam homens na terra,como primeiro mandamento, e que vivambem, como segundo; o facto bruto da sua ex-istência, sobre o qual nada lhes cabia dizer,tornou-se para eles um primeiro imperativoontológico, normalmente não expresso, masimplícito em todos os posteriores impera-tivos e que as excepcionais circunstânciasdos dias que correm obrigam a tornar explíc-

ito. Diz Jonas que: “O cuidado do futuroda humanidade é o dever supremo da acçãocolectiva humana na era da civilização téc-nica que se tornou ‘todo-poderosa’, se nãono seu potencial de produção, pelo menosno seu potencial de destruição. Este cuidadotem obviamente de incluir o cuidado do fu-turo de toda a natureza neste planeta comouma condição necessária do próprio futurodo homem” (Jonas, 1984:136). E conclui:“. . . se algumas das implicações práticas dosmeus raciocínios dão a impressão de ir nosentido de uma mais lenta marcha do pro-gresso, isso não deveria ser motivo de con-sternação por aí além. Não esqueçamos queo progresso é um objectivo facultativo, nãoum compromisso incondicional, e que o seuritmo, por compulsivo que possa vir a tornar-se, nada tem de sagrado. (. . . ) Lembre-mos enfim que o progresso não pode ter pormeta abolir a condição da mortalidade. Deum ou de outro mal, cada um de nós mor-rerá. A nossa condição mortal recai sobrenós com a sua crueldade mas também coma sua sabedoria – porque sem ela não have-ria a promessa eternamente renovada da fres-cura, da imediatez e da sofreguidão da juven-tude; nem existiria para nenhum de nós in-centivo para contarmos os nossos dias e fazercom que valham a pena. Com todo o denodoque pomos em arrebatar o que pudermos ànossa mortalidade, deveríamos suportar-lheo fardo com paciência e dignidade” (Jonas,1994:165-166).

Talvez em virtude da sua considerávelrepercussão, a obra de Jonas tem concitadonão menos abundantes reparos, que têm omérito de lhe revelar as muitas limitaçõese equívocos, assim como algumas quali-dades não negligenciáveis. Observa Hottoisque quanto de renovação ética se pode de-

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scortinar na obra de Jonas tem a ver como facto de ela dar expressão a uma maiorresponsabilização consciente dos indivíduose das colectividades no que respeita ao al-cance temporal e espacial das respectivasacções, em contraponto à ressurgência deconvicções comunitárias absolutistas inspi-radas pela angústia, bem mais que pela pre-ocupação com o exercício responsável daliberdade (Hottois, 1993:11). Para todos osefeitos, o tempo tem vindo a revelar que aobra de Jonas continua a ser fonte de ines-gotável inspiração, pelo seu fôlego filosó-fico e a sua inquebrantável coerência. Omesmo não se pode dizer de Hugo Tris-tram Engelhardt, o outro autor que tem sidotomado como referência cardial do pensa-mento bioético desde que começou a fazer-se notado com o seu livroOs fundamen-tos da bioética, cuja primeira edição data de1985 (Engelhardt, 1985). Com efeito, a obrade Engelhardt acabou por fornecer um bomexemplo das limitações e incoerências deboa parte da reflexão que se apresenta comobioética, cujos tortuosos meandros sugeremfortemente a fragilidade de um pensamentocom extremas dificuldades em subsistir pe-los seus próprios meios e sem se arrimaraos mais sólidos sustentáculos da filosofia,ou das ciências sociais, ou do direito ouda teologia moral. Deste modo, a reflexãoque para si própria reivindica o nome e acoisa de bioética dá frequentes vezes mostrasde ceder a cada um daqueles campos, masdesfigurando-o sem que disso resulte maisque uma caricatura inútil quer para os prob-lemas de que ela deveria ocupar-se, quer paraa desejável transformação de qualquer umdeles. É assim que, a pretexto de bioética,se pratica diletantismo filosófico, sociolo-gismo moral, formalismo legiferante e fun-

damentalismo religioso. Assinala Hottois,comparando Engelhardt com Jonas, que, as-sim como este, Engelhardt começou porquestionar radicalmente a ética enquanto tal,como modalidade do ser-no-mundo próprioda humanidade, que já não se justifica porsi só e que tem de começar por preocupar-se consigo própria, por interrogar-se sobre asua própria significação, o seu valor, o seualcance e limites. A resposta que Engelhardtdeu inicialmente a esse questionamento di-vergia porém consideravelmente de Jonas eos dois foram longamente tomados como ospólos do debate acerca da fundamentação deuma bioética. Assim, enquanto que Jonasrecupera uma fundação metafísica, ou pe-los menos os avatares dela, de uma ética daresponsabilidade, Engelhardt principiou porremeter toda a ética para a resolução de con-flitos numa sociedade secular e pluralista emque o privilégio da autonomia individual sus-pende toda a possibilidade de fundação onto-teológica (Hottois, 1993:13-14). Entretanto,a posição de Engelhardt haveria de se mod-ificar até se tornar completamente irrecon-hecível e pôr em causa o seu próprio lugar nocampo da reflexão bioética. Após a primeiraedição deOs fundamentos da bioética, bem1985, surge uma segunda, em 1996, que revêaquela e lhe altera em parte os conteúdos, so-bretudo radicalizando-os, até que, em textomais recente, Engelhardt passa uma autên-tica esponja sobre todo o seu anterior per-curso, dedicando-se à apologia dogmática dofundamentalismo religioso e moral.

Engelhardt tinha começado por sustentarque as questões bioéticas emergem sobreum fundo de crise moral estreitamente lig-ado a uma série de perdas tanto de con-vicções éticas como ontológicas no mundoocidental, o que precipita a necessidade de

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elaborar e justificar um ponto de vista éticofora de uma rede de premissas que o sus-tentem, modeladas por uma tradição especí-fica, religiosa ou de outro tipo. Exprimia-seele assim em 1985: “A história da bioéticanas duas últimas décadas tem sido a históriado desenvolvimento de uma ética secular(. . . ) A bioética é um elemento de umacultura secular e a bisneta do Iluminismo(. . . ) A bioética desenvolverá inevitavel-mente uma tessitura secular de racionalidadenuma época de incerteza. Isto é, a existên-cia de discussão aberta e pacífica entre gru-pos divergentes, tais como ateus, católicos,judeus, protestantes, marxistas, heterossex-uais e homossexuais, sobre as questões depolítica pública respeitantes aos cuidados desaúde exercerá inevitavelmente pressão nosentido de uma linguagem comum neutra.A bioética está a desenvolver-se comolin-gua francade um mundo preocupado com oscuidados de saúde, mas que não possui umponto de vista ético comum (. . . ) A bioética,ao contrário de muitos códigos de ética, nãopropende para ser nacional ou paroquial,porque os desenvolvimentos na prestação decuidados de saúde e nas ciências biomédi-cas encontram-se geralmente ligados ao de-senvolvimento das sociedades industriais”(Engelhardt, 1985:5-6). Neste sentido, abioética ultrapassa o domínio tradicionalda ética médica para desempenhar um pa-pel mediador central na adaptação intelec-tual mútua da cultura e da ética biomédica,apresentando-se como necessária alternativaao comunitarismo ético, sobre cujas ruí-nas vai erguendo os seus alicerces. Essasruínas, traduzem-se, na prática concreta daprestação de cuidados de saúde, num feixede incertezas que transcendem os próprioslimites das profissões particulares ligadas

à prestação de cuidados de saúde e à in-vestigação biomédica, de tal modo que sepode considerar que “(a) bioética, ao abor-dar essas incertezas, é a filosofia empen-hada numa das suas tarefas centrais: aju-dar a cultura a clarificar as suas perspec-tivas sobre a realidade e os valores” (En-gelhardt, 1985:8). Assim sendo, a bioéticacumpriria a função, não de procuradora deuma qualquer confissão religiosa, nem deuma espécie de aconselhamento moral comrespostas singulares de antemão prontas paraquestões específicas, mas, acima de tudo, deproporcionar orientação racional para as es-colhas com incidência ética no campo dabiomedicina, no que a função primordialda bioética se confunde com o objectivomaior de todas as humanidades (Engelhardt,1985:11). Para poder cumprir os objectivosa que se propõe, a bioética não pode es-capar à secularidade, isto é, sem ser anti-religiosa, a bioética apela à racionalidade, depreferência às convicções religiosas individ-uais, como única lógica possível do plural-ismo que caracteriza as sociedades ociden-tais contemporâneas e instrumento de nego-ciação pacífica entre convicções éticas con-flituais (Engelhardt, 1985:11). Engelhardtadverte peremptoriamente que aquilo que oseu apelo à racionalidade transporta con-sigo é mais da ordem da exigência do queda esperança: “Se os argumentos racionaisnão são de molde a revelar algumas linhasde conduta como imorais, então o manuse-amento da medicina no hospital de AlbertSchweitzer e os campos de morte nazis sãoigualmente defensáveis ou indefensáveis”(Engelhardt, 1985:37). Uma exigência defundação racional não por mor da racional-idade em si, mas por mor de algo que tran-scende a tematização filosófico-cognitiva do

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problema ético em causa: “Afigurar-se-iaque não existe base racional para se escol-her um conjunto de pontos de vista moraise não outros quaisquer, fora de consider-ações de vantagem pessoal. Assim, se hou-vesse que tentar comparar a moralidade oua imoralidade de um Adolf Hitler ou deum Dietrich Bonhoeffer, não encontraríamosprincípios gerais para sustentar uma con-clusão acerca do que seria moralmente cor-recto. Não existiria base geral para se distin-guir entre a prática da obtenção do consen-timento livre e informado dos indivíduos su-jeitos a investigação e a prática de pressionaros indivíduos a prestar serviço” (Engelhardt,1985:38). Trata-se, pois, de superar o rel-ativismo, que com a maior facilidade der-rapa para o desespero nihilista e que, a seutempo, e porque ninguém o pode sustentar- viver nele - por muito tempo, frequente-mente acaba por desembocar nas soluçõestotalitárias de refundação violenta. Destemodo, a bioética adquire um carácter to-talmente incompatível com todo e qualquerfundamentalismo ou integrismo: “O riscoque para a humanidade decorre da guerra eda repressão brutal em nome da rectidão re-ligiosa e ideológica sobreleva de longe osdanos passíveis de resultar da tolerância emrelação a males tais como a autodetermi-nação, o aborto e o infanticídio” (Engelhardt,1985:13), o que, não obstante, obriga a re-conhecer que o preço a pagar por “essa pazé a tolerância da tragédia pessoal - a tolerân-cia de estilos de vida desviantes, desde quepacíficos, e a aceitação das tragédias que aspessoas experienciam em resultado das suaslivres escolhas” (Engelhardt, 1985:13). Abioética engelhardtiana exprime pois a ne-cessidade premente de superar a viciada al-ternativa entre o relativismo em permanente

perigo de queda nihilista e a sempre pre-sente tendência de a necessidade de fun-damentação se verter numa tentação funda-mentalista. Para Engelhardt, a bioética teráde fundar-se, além de no conhecimento pu-ramente fenoménico tal como foi estabele-cido desde Kant e no pressuposto básico darelatividade de todo o conhecimento, tam-bém no que ele chama um pressuposto po-liteísta, por oposição ao monoteísmo daséticas comunitárias regidas por um princí-pio único e exclusivo de conhecimento ede valor, estabelecendo assim um compro-misso entre a liberdade e a autonomia in-dividuais e a relatividade ética (Engelhardt,1985:19-22). Como afirma Engelhardt, acaracterização do tecido moral está ligada àprópria empresa de se ser pessoa: “É este ocaso, porquanto ao colocar-se uma questãosobre a moral enquanto questão filosófica, oque se procura. . . é um argumento decisivopara uma discussão sobre qual das possíveismaneiras de viver ou de praticar medicinase deve escolher e na qual a sanção paraa violação do ‘deve’ não é uma ameaça deforça ou um sentimento de culpa, mas a ir-racionalidade, a censurabilidade ou a inca-pacidade de realizar os bens que nos pro-pusemos alcançar. (. . . ) Com os argumentosaduzidos neste sentido, podemos compreen-der porque não deveriam os médicos tratar,experimentar ou manejar um doente compe-tente sem a autorização do próprio” (Engel-hardt, 1985:68).

A edição de 1996 dosFundamentoscon-serva os traços maiores da proposta de En-gelhardt: “Este não é um livro de ética apli-cada. Mais exactamente, este não é um livroque aplica um ponto de vista moral particu-lar, canónico, concreto, pleno de conteúdo,à prestação de cuidados médicos. Para isso

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existe uma multiplicidade de éticas alterna-tivas prontas a levantar um burburinho debioéticas conflituais. Esta circunstância con-stitui o desafio moral fundador de todas aspolíticas de saúde (. . . ) De preferência apartilhar uma moral, confrontamos visõesmorais ostensivamente diferentes e narrati-vas de obrigações, direitos e valores morais.Cada narrativa assevera a sua própria prior-idade. (. . . ) Quando se lhes pede que jus-tifiquem esses diversos pontos de vista, al-guns apelam à consideração das consequên-cias; outros fazem apelo a princípios de beme de mal que são independentes das conse-quências. É sobre esta cacafónica plurali-dade de bioéticas que se recortam as políti-cas de saúde contemporâneas. A diversidadede visões e justificações morais desafia a co-erência de sustentar que existe uma bioéticasecular. Este livro reconhece a impossibili-dade de descobrir a ética secular, canónica,concreta. Os fundamentos da bioética tentaantes assegurar uma ética secular destituídade conteúdo” (Engelhardt, 1996:VII). Mas,ao mesmo tempo que os traços maiores daproposta engelhardtiana se conservam, o au-tor entende necessário começar por esclare-cer a filiação dela no pensamento ilumin-ista cuja crise, ao mesmo tempo, ele não secansa de sublinhar, tanto numa como noutraedição. Em 1985, explicava que a dificul-dade de fundar uma perspectiva - ou um sen-tido ou intuição moral (moral sense) - in-fundido com autoridade bastante para, aomesmo tempo, possuir as condições para dis-tinguir entre perfídia e decência, entre ví-tima e perpetrador, e para fornecer os pro-cedimentos necessários à negociação pací-fica de conflitos entre perspectivas à partidainconciliáveis, se devia essencialmente aofacto de não se ter ultrapassado, e porven-

tura não se poder talvez nunca realmente ul-trapassar, a crise do fundamento ontológicoque milenarmente sustentou as éticas ociden-tais: “A dificuldade é particularmente per-turbante porque a cultura ocidental presumiuque existe uma estrutura da lei natural em cu-jos termos se pode ajuizar do bem e do maldas acções através das culturas e dos tempos.Tais presunções guiaram o direito ocidentaldesde a época do Império Romano aos tem-pos modernos e aos julgamentos de Nurem-berga” (Engelhardt, 1985:38). Na edição de1996 pode ler-se que: “O projecto de as-segurar tanta universalidade quanto possívelàs alegações da bioética enraíza no projectoiluminista de estabelecer uma ética universalplena de conteúdo e uma comunidade moralde todas as pessoas fora de quaisquer pressu-postos religiosos ou culturais específicos. Oprojecto iluminista, pela sua parte, tem raízesna teoria da lei natural e nos pressupostosfilosóficos ocidentais respeitantes às capaci-dades da razão. Este livro centra-se no fra-casso deste projecto em descobrir uma éticacanónica e plena de conteúdo que a bioéticapossa aplicar” (Engelhardt, 1996:VIII). Foijustamente a tentativa de dar réplica às impli-cações últimas desse fracasso que deu lugaraos muitos mal-entendidos de que amarga-mente se queixa Engelhardt e que estão naorigem dos esclarecimentos introduzidos nanova redacção do seu texto. Ele referenomeadamente a acusação de falta de simpa-tia pelas matrizes de obrigações e de valoresque cimentam as comunidades morais conc-retas.

Ao abordar os problemas do juízo éticoem bioética, Engelhardt propõe dois grandesprincípios; em 1985, chamava-lhes ele oprincípio de autonomia e o princípio debeneficência. Considerando, de um modo

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muito próximo das éticas comunicacionaisou discursivas de um Jürgen Habermas oude um Karl-Otto Apel, que a autoridade parase praticarem acções que envolvem outrosnuma sociedade secular e pluralista derivado livre consentimento, quer implícito querexplícito, dos que por ela são atingidos, “oprincípio de autonomia exprime o facto deque a autoridade para a resolução de confli-tos éticos numa sociedade secular e plural-ista apenas pode ser derivada da concordân-cia dos participantes nas discussões, vistoque não pode ser derivada de um argumentoracional ou de uma crença comum. Porisso, o consentimento é a origem da autori-dade e o respeito do direito dos participantesao consentimento é a condição necessáriada possibilidade de uma comunidade moral.O princípio da autonomia proporciona agramática mínima da linguagem moral” (En-gelhardt, 1985:86). A sua máxima é “Nãofaças aos outros o que não querem que lhesseja feito, e faz-lhes o que se contratou quefosse feito” (Engelhardt, 1985:86) e “fundaaquilo que se pode chamar a moralidadeda autonomia como respeito mútuo” (Engel-hardt, 1985:86). Por sua vez, e visto que umcompromisso com a beneficência caracterizao empreendimento da moralidade, “o princí-pio de beneficência reflecte a circunstânciade que as preocupações morais são coexten-sivas à procura de bens e ao evitamento demales. Visto que tais discussões se podemresolver em sociedades seculares e pluralis-tas apenas por meio de um apelo ao princí-pio de autonomia, o princípio de autono-mia precede conceptualmente o princípio debeneficência” (Engelhardt, 1985:86); a suamáxima é “Faz aos outros o seu bem” (En-gelhardt, 1985:87) e “funda o que se pode

chamar a moralidade do bem-fazer e dassimpatias sociais” (Engelhardt, 1985:87).

Na segunda edição deOs fundamentos daBioética, de 1996, Engelhardt altera o nomedo seu primeiro princípio, aquele a que dáinequívoco primado na sua proposta de uma(bio)ética secular para uma sociedade plu-ralista. Ao princípio de autonomia, passaa denominá-lo de princípio de permissão.Alteração ínfima e absoluta, naquilo quefaz adivinhar. A redacção de ambos osprincípios, de facto, quase só parece regis-tar as modificações decorrentes do que, su-perficialmente, se afigura não ser mais doque uma transformação terminológica; ora opróprio Engelhardt atalha logo que o que estáem causa não se limita a isso: “Este carácterlibertário de uma ética secular geral defen-sável não se opõe às moralidades das comu-nidades morais concretas cujos compromis-sos pacíficos podem estar longe de ser lib-ertários. (. . . ) Mesmo assim, muitos com-preenderam mal osFundamentoscomo ummanifesto libertário que celebra o valor daliberdade, como uma tentativa de estabele-cer uma ética concreta e específica hostil àsmorais comunitárias que ligam muitas, defacto a maioria, das comunidades morais es-pecíficas. (§) Como passo para dissipar aconfusão, nesta segunda edição rebaptizei ‘oprincípio de autonomia’ com o nome de ‘oprincípio de permissão’ para melhor indicarque aquilo que está em causa não é um qual-quer valor que possua a autonomia ou a liber-dade, mas o reconhecimento que a autori-dade moral secular deriva da permissão dequantos se encontram implicados numa em-presa comum” (Engelhardt, 1996:X-XI). Oprincípio de permissão sublinha o facto deque, a partir do momento em que os indi-víduos não pertencem todos a uma mesma

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comunidade de convicção e a razão não con-segue descortinar uma ética canónica conc-reta, então nem a razão, nem Deus, nem asconcepções de uma comunidade específicapodem ser fonte de autorização moral jus-tificável, mas apenas a permissão dada pe-los indivíduos (Engelhardt, 1996:XI). Per-missão e beneficência surgem-nos então daseguinte maneira na segunda edição deOsfundamentos da bioética, de 1996. A per-missão é aquilo que funda a autoridade ouo consentimento numa sociedade secular epluralista; o princípio de permissão exprimeo facto de que a autoridade para resolver con-tendas morais numa sociedade secular e plu-ralista só pode decorrer do acordo entre osparticipantes, visto que não pode derivar daargumentação racional ou da crença comum;portanto, a permissão ou o consentimento é acondição necessária da possibilidade de umacomunidade moral; o princípio de permis-são proporciona a gramática mínima do dis-curso moral secular e o fundamento moralpara políticas públicas dirigidas para a de-fesa dos inocentes; o princípio de permissãofunda aquilo que se pode denominar a moral-idade da autonomia como respeito mútuo; asua máxima é: “Não faças aos outros aquiloque eles não querem que lhes seja feito e faz-lhes aquilo que ficou contratado fazer-lhes”.Quanto à beneficência, Engelhardt consideraque, sendo o propósito da acção moral a con-secução de bens e o evitamento de males,mas dado o facto de, numa sociedade seculare pluralista, não ser no entanto possível es-tabelecer de modo canónico nenhuma razãoou ordenamento de bens e de males, entãonão é também possível, dentro dos limites dorespeito da autonomia, estabelecer nenhumavisão específica plena de conteúdo acimade perspectivas opostas; porém, um com-

promisso com a beneficência caracteriza oempreendimento da moralidade, porque semum empenhamento na beneficência a vidamoral não tem conteúdo; nesta conformi-dade, o princípio de beneficência reflecte ofacto de as preocupações morais abarcarem apersecução de bens e o evitamento de males;uma vez que, em sociedades seculares e plu-ralistas, tais discussões só podem ser resolvi-das fazendo-se apelo ao princípio de permis-são, o princípio de permissão é conceptual-mente anterior ao princípio de beneficência,o que significa que se pode saber quando seestá a violar a moralidade do respeito mú-tuo, mesmo quando não é possível saber,por causa da sua falta de conteúdo, se seestá a violar o princípio de beneficência; oreconhecimento do princípio de beneficên-cia proporciona a caracterização mínima doconteúdo que é exigido pelas preocupaçõesmorais e o próprio princípio de beneficên-cia proporciona o fundamento moral para di-reitos de bem-estar recusáveis e deduzidosde pontos de vista comuns e funda aquiloque se pode chamar a moralidade do bem-estar e das afinidades sociais; a sua máx-ima é: “Faz aos outros o seu bem” (Engel-hardt, 1996:122-124). Noutros textos43, en-tretanto publicados, Engelhardt aprofunda assuas considerações acerca da possibilidadeda bioética num mundo plural, na linha dasduas primeiras edições dosFundamentos.

43H. Tristram Engelhardt (1991),Bioethics andSecular Humanism. The Search for a CommonMorality. London: SCM Press/ Philadelphia: Trin-ity Press International, (1996), “Bioethics Reconsid-ered: Theory and Method in a Post-Christian, Post-Modern Age”,Kennedy Institute of Ethics Journal, 6(4): 336-341 e (1999), “Bioethics and the Third Mil-lenium: Some Critical Anticipations”,Kennedy Insti-tute of Ethics Journal, 9 (3): 225-243).

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Finalmente, em 2000, Engelhardt, surgecom um novel Foundations of ChristianBioethics44 em que dá mostras de ter aban-donado todas as suas anteriores posturas.Nesta obra, o autor para passar a defenderque só uma bioética com um fundamentoreligioso estará em condições de constituirumas alternativa à bioética secular que é de-sprovida de conteúdo. No entanto, uma vezque mesmo a bioética cosmopolita e lib-ertária (por cuja defesa ele se tinha precisa-mente notabilizado) é compatível com o pen-samento e a prática das confissões cristãscontemporâneas, mas não com o espírito ea letra do verdadeiro Cristianismo, torna-senecessário retornar às fontes cristãs prim-itivas que sobreviveram apenas nas Igre-jas Ortodoxas. Estas preservaram o teo-centrismo evangélico contra o antropocen-trismo tanto do Catolicismo como do Protes-tantismo modernos que não estão por issoem condições de fundar uma bioética porqueo sentimento de obrigação moral não ad-vém da racionalidade humana mas da rev-elação divina e do contacto pessoal comDeus através da fé. Tanto explica que oautor acabe por afirmar, em última análise,que passou a defender o Cristianismo orto-doxo tal como ele o interpreta, simplesmenteporque ele sabe que é verdadeiro. Nem porisso a posição de Engelhardt se torna fá-cil de distinguir das versões fundamental-istas quer do Catolicismo, quer do Protes-tantismo. Tanto equivale a fazer a apologiasem rebuços do retorno a um exacerbado pa-ternalismo médico ancorado numa ética davirtude de inspiração religiosa. Este tipo de

44Engelhardt, H. Tristram (2000),The Foundationsof Christian Bioethics. Lisse: Swets & ZeitlingerPublishers.

percurso intelectual não é desconhecido, so-bretudo nos meios filosóficos. No caso deEngelhardt, a consequência mais imediataé lançar uma suspeita de inutilidade, tantoem relação à sua “work in progress” comoa toda a literatura crítica que foi alimen-tando a polémica de que ela constituiu umdos pólos, nomeadamente como opositor deum Hans Jonas. Não significa isso que a suacontraposição a Jonas se tivesse de repentedesvanecido, porque as suas posições actuaiscoincidem tão pouco com as de Jonas comoas iniciais. O que de facto tende a ficar, dessapolémica, é a oposição entre a coerência doespírito filosófico solidamente formado deJonas e a fragilidade de uma aventura reflex-iva que, de tanto correr sempre à frente desi mesma, se depara traída pela sua próprianostalgia de fundamento que a leva a cederenfim ao fundo cultural religioso donde tinhaemergido.

No entender de Gilbert Hottois, porven-tura o nome europeu mais conotado com areflexão sobre a bioética do ponto de vistadas ciências humanas e da filosofia, qua-tro determinações primordiais delimitariamo âmbito da bioética: “1) ela trata dequestões colocadas pelos novos desenvolvi-mentos (tanto ao nível da pesquisa comoda aplicação) nas tecnologias biomédicasque desse modo envolvem a manipulação deorganismos vivos (especialmente seres hu-manos); 2) trata de questões de importânciaética; 3) trata de práticas e discursos (seja en-tendido que essas práticas e discursos pos-suem pelo menos uma relevância prática in-directa ou potencial); 4) trata de questõescaracterizadas por uma forte interacção co-municacional: a multidisciplinaridade e aconfrontação pluralista” (Hottois, Parizeauet al., 1993:52). Gilbert Hottois visa su-

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perar a oposição entre a prossecução livree autónoma dos possíveis tecnocientíficos ehumanos defendida por Engelhardt e a lim-itação desses possíveis em nome da preser-vação da integridade da natureza e da identi-dade humana, por Jonas. Retém, de Jonas,a injunção de prudência necessária a con-trariar ahybrisda dinâmica tecnológica quenão conhece medida, mas contrapõe-lhe aabertura de Engelhardt ao carácter abissalda criatividade humana e natural, em per-manente risco de queda no inumano, comopreço necessário da condição de liberdadeque sustenta toda a realização de possíveis.De acordo com Hottois45, e na linha da

45Para um conhecimento aprofundado, além dostítulos referidos na bibliografia, V. Gilbert Hottois(1984) Le signe et la technique. La philosophie àl’épreuve de la technique. Paris: Aubier Montaigne,(1986a), “Philosophie des sciences et/ou Philosophiede la technique ?”, in AAVV:Philosophies et Sci-ences. Bruxelles : Éditions de l’Université de Brux-elles : 125-134, (1986b), “La ‘liberté’ et la ‘per-sonne’ à l’âge de la manipulation technoscientifiquede l’homme”, in Jacques Lemaire et al: Naissance,vie, mort - Quelles libertés ?Bruxelles : Éditions del’Université de Bruxelles : 87-97, (1987), “Éthique ettechnoscience; entre humanisme et évolutionnisme”,in AAVV: Science et éthique. Bruxelles. Éditions del’Université de Bruxelles: 7-27, (1988e), Le signe etla technique. Paris: Vrin, (1988a), “De la marginal-ité philosophique en milieu scientifique”, in JacquesLemaire et al:Les marginalismes. Bruxelles : Édi-tions de l’Université de Bruxelles : 9-20, (1988b),“Évaluer la technique et/ou (ré)évaluer l’éthique ? Enguise d’introduction”, in Gilbert Hottois, ed. et al:Évaluer la technique. Aspects éthiques de la philoso-phie de la technique. Paris : Vrin: 9-12, (1988c),“Liberté, humanisme, évolution”, in id., ibid. : 85-96, (1988d), “Bioéthique: du problème des fonde-ments à la question de la régulation”, in GilbertHottois, Charles Susanne et al:Bioéthique et libre-examen. Bruxelles: Éditions de l’Université de Brux-elles: 101-111, (1990), “Demande et refus d’un con-trôle éthique de la science. Une analyse et une réfléx-

filosofia da técnica de Martin Heidegger,a tecnologia moderna possui um caráctermuito distinto dateknegrega, ao ponto de aespeculação científica moderna se subsumirà eficácia técnica. A ciência moderna jánão é logoteórica, mas antes logotécnica; aciência é tecnociência, criando o próprio ob-jecto sobre que se debruça, afirma Hottois,que, de facto, forjou o termo hoje consagrado(Hottois, 1984). A tecnologia tornou-se namanifestação ostensiva da verdade do con-hecimento operativo, perdendo deste modoa antiga inocência do conhecimento contem-plativo, facto que exige uma reavaliação rad-ical daquilo que entendemos por ética. Essareavaliação não pode ser cumprida pelo queele chama a clássica avaliação antropologistada técnica que considera a técnica como umsimples meio para atingir fins humanos e

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que ambiciona devolver o poder tecnológicoa fins humanistas. A tecnociência modernatrouxe consigo a possibilidade real da ma-nipulação tecnológica dos seres humanos,muito para além da tradicional manipulaçãosimbólica que deixava intacto o que tende-mos a considerar ser a própria “natureza hu-mana”, facto que destruiu a possibilidade dese manter, nos nossos dias, uma definiçãoexclusivamente teológica do que é/deve sero humano, deixando em aberto a perguntaantropológica, a questão que Kant reputavacomo a fundamental do pensamento da Mod-ernidade: O que é o homem? - e paraa qual o antropologismo humanista reivin-dicava poder fornecer uma resposta defini-tiva, com base no pressuposto que a tecnolo-gia moderna não altera a condição básica daacção humana, apresentando-se assim comocapaz de proporcionar respostas éticas teo-logicamente fundadas para problemas cujanatureza alterada recusa na verdade recon-hecer. Um certo entendimento da bioéticaassenta, de facto, na recusa declarada destereconhecimento, quando se entende, equiv-ocamente, a bioética como uma mera reit-eração ou reactivação de antigas respostasético-teológicas, ou seja, como uma sim-ples moral confessional ou comunitária apli-cada, resumindo-se os problemas da bioéticaa simples questões de aplicação de fórmulasde há muito consagradas. Como dirá Hot-tois, este tipo de atitude teórico-prática temnormalmente por consequência a contempo-rização com o desenvolvimento tecnocientí-fico, que dá a ilusão de controlar, quando narealidade agrava a mútua surdez das lingua-gens da ciência e das humanidades, sublin-hando ao invés a reivindicação que por vezesfaz a comunidade científica da incomensu-rabilidade da ciência que nenhum outro dis-

curso pode de facto abarcar e de tal modoque os problemas da limitação dos perigostecnocientíficos acabam por atolar-se na ne-gociação mais privada que pública, de inter-esses políticos e de arranjo de esferas de in-fluência. E o questionamento por excelên-cia da tecnociência seria porventura o da ne-cessidade, ou da legitimidade, ou da deseja-bilidade, de se limitar a livre disposição eo livre desenvolvimento das possibilidadestecnocientíficas “em nome de”; ou por out-ras palavras, a questão de saber se a hu-manidade pode, em última instância, dar re-sposta à sua condição de outro modo que nãoo simbólico, isto é, de um modo conservadorda condição humana. Se a filosofia, queJonas tão classicamente faz, constitui a re-sposta simbólica do homem à sua condição eao abismo que a afunda, é inteiramente legí-tima a questão de saber se o homem poderesponder em última análise à sua condiçãode outra maneira que não a simbólica, istoé, conservadora da humana condição. Ou,colocada a questão de modo mais radicalainda: é legítimo limitara priori e absolu-tamente a livre disposição e o livre desen-volvimento do possível tecnocientífico “emnome de”? Trata-se da questão da limitaçãoda potência não simbólica em nome do/pelosimbólico, em nome de um Nome, cuja le-gitimidade formal (de uma lei em nome de)reenvia à definição teológico-filosófica dohomem como ser vivo simbólico (Hottois,1993:12-13).

Nesta conformidade, Hottois propõe umaalternativa, por um lado, à reivindicaçãoética antropologista/humanista de preservaro par homem/natureza a todo o custo, talcomo é sustentada pelas correntes da ecolo-gia radical, por filósofos como Hans Jonascom a sua noção de uma heurística do medo,

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mas também por concepções religiosas fun-damentalistas, e, por outro lado, às tendên-cias tecnocráticas “mainstream” que sus-tentam uma visão exclusivamente positivade progresso indefinido por meio da livreprossecução de possíveis à luz do imperativotécnico, segundo o qual não só tudo é pos-sível, mas tudo o que é possível é legítimo edesejável. Hottois chama à sua alternativaa ambas as correntes anteriores a via mé-dia (Hottois, 1992), formulando nesse sen-tido alguns princípios maiores de selecção elimitação dos possíveis tecnocientíficos, taiscomo os critérios de liberdade, segundo oqual o consentimento informado é a pedra-de-toque da livre prossecução da investi-gação, de beneficência, de acordo com o qualhá que não tentar nada que não seja para obem-estar dos indivíduos e da humanidadeem geral, e de responsabilidade, de acordocom o qual qualquer reivindicação ética sefunda naquilo que Hottois chama a soli-dariedade antropocósmica, isto é, o homemé produto da evolução natural, as fases não-humana e humana do processo evolutivo nãosão inimigas ou incomensuráveis, mas antesinextricáveis; neste sentido, só uma éticaevolutiva, que de modo nenhum se confundecom a corrente da ética evolucionista, podedar conta da abertura e da imprevisibilidadeque caracteriza a condição humana como umconjunto de possíveis tanto naturais comoculturais; pragmatismo, prudência e respons-abilidade deveriam portanto ser as linhas ori-entadoras da abordagem do sentido da com-plexidade e da ambivalência de todo o em-preendimento humano. De acordo com Hot-tois, a bioética não é nem uma nova disci-plina tecnocientífica, nem uma ética univer-salista, mas um campo que cobre a ética ea deontologia médicas e a ética ambiental, o

seu eixo é a solidariedade antropocósmica,próxima de uma filosofia da natureza atentaàs dimensões evolutivas. A bioética rep-resenta a totalidade das questões de relevoético, isto é, que tratam de valores, que nãopodem ser resolvidas a não ser através deescolha e que são colocadas pelo crescentepoder da intervenção tecnocientífica no servivo e, em especial, mas não exclusivamente,o homem. A bioética é uma metodolo-gia, de vocação multidisciplinar ou inter-disciplinar, uma abordagem necessariamentepluralista imposta pela complexidade e di-versidade das sociedades que levantam es-sas mesmas questões, embora reconheça queelas dizem respeito a toda a humanidade enão se lhes pode dar resposta susceptível deser legitimamente monopolizada por qual-quer grupo ou indivíduo.

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