CASE STUDY JOSÉ MOURINHO

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CASE STUDY JOSÉ MOURINHO UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O FENÓMENO DA LIDERANÇA E A OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA DA COMPLEXIDADE Dissertação Apresentada para Obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Comunicação, Organização e Novas Tecnologias Por Luís Manuel Guerreiro Dias Alves Lourenço Sob orientação do Prof. Doutor Fernando Ilharco RESUMO A investigação que se apresenta tem como objecto o case study José Mourinho, especificamente na sua dimensão de liderança. Trata-se de uma abordagem interpretivista que analisa o trabalho e a liderança de José Mourinho à luz de desenvolvimentos teóricos vários, tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmática da complexidade, essencialmente tal como ela é entendida na obra de Edgar Morin. Apresentamos José Mourinho enquanto líder e treinador de futebol, dando a conhecer a sua trajectória profissional desde o anonimato até ao estrelato onde actualmente se move. Esta investigação apela a um corpus teórico diversificado e relevante para a compreensão do fenómeno da liderança, especificamente da eficácia da liderança de José Mourinho. Assim, sob a perspectiva paradigmática da complexidade, moldando o progresso da investigação e estabelecendo as relações entre os diversos blocos teóricos, utilizamos para a análise do nosso objecto de estudo a teoria da inteligência emocional, um conjunto importante de investigações sobre a constituição e dinâmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias consagradas sobre o fenómeno da liderança – desde a teoria do grande homem às teorias neo-carismáticas, passando pelas análises comportamentais e contingenciais, entre outras. Apresentamos também uma revisão da investigação em curso sobre o fenómeno da liderança no que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderança e entre complexidade e emoções. A análise que fazemos do trabalho e da liderança de José Mourinho é precedida por duas entrevistas, uma ao próprio José Mourinho e a outra a Rui Faria, técnico-adjunto de Mourinho no Chelsea. Na análise que apresentamos no Capítulo 9, e que ocupa uma parte importante da dissertação, propomos entendimentos,

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CASE STUDY JOSÉ MOURINHO

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O FENÓMENO DA LIDERANÇA E A

OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA DA COMPLEXIDADE

Dissertação Apresentada para Obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Comunicação,Organização e Novas TecnologiasPor Luís Manuel Guerreiro Dias Alves LourençoSob orientação do Prof. Doutor Fernando Ilharco

RESUMO

A investigação que se apresenta tem como objecto o case study José Mourinho, especificamente na sua dimensão de liderança. Trata-se de uma abordagem interpretivista que analisa o trabalho e a liderança de José Mourinho à luz de desenvolvimentos teóricos vários, tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmática da complexidade, essencialmente tal como ela é entendida na obra de Edgar Morin.

Apresentamos José Mourinho enquanto líder e treinador de futebol, dando a conhecer a sua trajectória profissional desde o anonimato até ao estrelato onde actualmente se move. Esta investigação apela a um corpus teórico diversificado e relevante para a compreensão do fenómeno da liderança, especificamente da eficácia da liderança de José Mourinho. Assim, sob a perspectiva paradigmática da complexidade, moldando o progresso da investigação e estabelecendo as relações entre os diversos blocos teóricos, utilizamos para a análise do nosso objecto de estudo a teoria da inteligência emocional, um conjunto importante de investigações sobre a constituição e dinâmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias consagradas sobre o fenómeno da liderança – desde a teoria do grande homem às teorias neo-carismáticas, passando pelas análises comportamentais e contingenciais, entre outras. Apresentamos também uma revisão da investigação em curso sobre o fenómeno da liderança no que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderança e entre complexidade e emoções.

A análise que fazemos do trabalho e da liderança de José Mourinho é precedida por duas entrevistas, uma ao próprio José Mourinho e a outra a Rui Faria, técnico-adjunto de Mourinho no Chelsea. Na análise que apresentamos no Capítulo 9, e que ocupa uma parte importante da dissertação, propomos entendimentos, noções e conceitos que nos parecem pertinentes para a compreensão da liderança de José Mourinho e da sua eficácia.

Entre esses aspectos, e a título de exemplo, propomos uma articulação teórica da operacionalização da complexidade na liderança, tal como é levada a cabo por José Mourinho; identificamos e caracterizamos a noção de globalidade da acção profissional como uma consequência da aplicação da perspectiva da complexidade; analisamos a noção de dominante, introduzida pelo próprio Mourinho, propondo um enquadramento conceptual complexo; sugerimos, e exploramos, o conceito à líder como indicador de um tipo de comportamento necessário para a liderança e cuja genuinidade é importante; avaliamos a acção concreta de José Mourinho à luz das diversas teorias introduzidas sobre liderança, e não esquecendo o seu enquadramento paradigmático na complexidade, sugerimos que os modelos com os quais ele tem mais afinidades são o carismático e o transformacional. Por fim, consideramos, com a devida modéstia, que esta investigação pode também abrir caminhos para novos desenvolvimentos, nomeadamente no que respeita à transferibilidade da prática profissional de José Mourinho para as organizações em geral.

Introdução

O caso de sucesso que constitui a carreira de José Mourinho, actual treinador do Chelsea FC, de Londres, para ser compreendido plenamente não pode ser encarado, ou estudado, apenas na vertente de treinador de futebol. As vitórias que já conquistou – e foram muitas num curto espaço de tempo – colocaram sobre ele os holofotes da fama a nível mundial.

Muitos perguntam hoje quem é José Mourinho, um homem que para além de um bem sucedido treinador de futebol é igualmente um líder que arrasta e influencia milhões de pessoas por todo o mundo.

José Mourinho é uma figura pública de expressão mundial. Ele não é apenas o treinador da equipa de futebol do Chelsea. Ele é o líder que muitos seguem, admiram e respeitam: muitos jovens ambicionam ser como ele, muitos homens gostariam de ser como ele, muitos profissionais gostariam de aprender a ser mais como José Mourinho. Mourinho é um líder e os seus actos e as suas palavras fazem sonhar legiões de admiradores.

Na investigação que a seguir apresentamos propusemo-nos estudar a dimensão da liderança no trabalho de José Mourinho. Vamos tentar perceber o homem e o profissional, simultaneamente como treinador de futebol e como líder de profissionais de alto rendimento. Nesta dissertação mais do que tentar objectivar factos, estabelecer modelos de liderança, ou determinar relações de causa-efeito, que supostamente nos conduzam a verdades ou a leis universais, interessa-nos observar atentamente, seguir pistas, descobrir caminhos, estudar detalhadamente e reflectir teoricamente sobre a complexidade do que encontrarmos.

Interessa-nos compreender melhor o fenómeno que investigamos, o qual, estudado desde há muito, não temos dúvidas que é imensamente complexo, subtil e de enormes desafios. Nesta investigação interessa-nos, também, promover o desenvolvimento de um tipo de conhecimento que aceita a complexidade do mundo e a mudança em que a acção humana sempre está envolvida e se envolve.

Deste ponto de vista interpretivista, procuramos descrever e entender a eficácia da liderança de José Mourinho a partir de teorias e perspectivas várias, capazes de nos proporcionarem um entendimento coerente, profundo e detalhado do fenómeno em causa.

Desta forma, conforme à prática estabelecida nas ciências sociais e humanas, optámos por levar a cabo uma investigação interpretivista, assente num corpo teórico considerado apropriado para o objecto em estudo e numa recolha qualitativa de dados, fundamentalmente constituída – mas não apenas – pelas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8.

A presente dissertação está organizada em nove capítulos. No Capítulo 1 faremos uma apresentação de José Mourinho. Traçaremos o seu percurso e mostraremos Mourinho através de Mourinho, ou seja, pelas suas acções e pelas suas palavras iremos oferecer uma imagem global daquilo que fez de Mourinho aquilo que ele é hoje e que justifica a sua ascensão ao mais alto patamar do mundo do futebol e que, por simpatia, acabou por fazer dele um homem conhecido em todo o planeta.

No Capítulo 2 iniciaremos a fase teórica da dissertação. O objecto desta investigação é a liderança de José Mourinho. A perspectiva de fundo que modelará o nosso trabalho é a da complexidade. É também esta perspectiva paradigmática que há muitos anos influencia o trabalho de José Mourinho. Assim, referiremos várias teorias e noções no seio da perspectiva da complexidade, nomeadamente, os estudos desenvolvidos por Edgar Morin e por Ilie Prigogine.

Tentaremos ir um pouco mais além, apresentando trabalho de outros pensadores, filósofos e teóricos sociais, que tanto tiveram influência no estudo e no trabalho de Mourinho, como é o caso Manuel Sérgio, como recorrentemente têm tido influência em estudos de ciências

sociais sobre a perspectiva da complexidade, como, por exemplo, é o caso do alemão Martin Heidegger (1889-1976).

O projecto do mapeamento do genoma humano servir-nos-á como ilustração da necessidade de um pensamento complexo para o estudo do homem, bem como das implicações da acção humana. Procuramos nesta dissertação apresentar um texto integrado – na sequência do nosso propósito de realizar um estudo integrado – onde desde o seu inicio, e à medida que formos apresentando as teorias que iremos utilizar, faremos aproximações ilustrativas ao trabalho de Mourinho. Trata-se de uma prática que iremos seguir ao longo do nosso estudo.

O Capítulo 3 apresenta um dos blocos de teorias que constituirá um dos fundamentos da análise do trabalho de José Mourinho. Trata-se da teoria da inteligência emocional, tal como foi desenvolvida e proposta por Daniel Goleman. Nesse capítulo faremos uma primeira aproximação a Mourinho como líder emocionalmente inteligente.

No Capítulo 4 apresentaremos uma revisão sobre a investigação levada a cabo nas últimas décadas sobre o fenómeno dos grupos. Pode, de resto, dizer-se que não é possível falar da perspectiva da complexidade sem se falar no todo, como um grupo constituído por partes.

O trabalho de José Mourinho decorre no seio de um grupo de profissionais de alta competição que ele lidera. É desta forma que neste capítulo iremos introduzir o conceito de grupo e rever a investigação que sobre ele tem recaído numa perspectiva de ciências sociais. Apresentaremos os fundamentos do conceito de grupo, bem como noções sobre o seu desenvolvimento e maturidade, as formas como nasce, se desenvolve e se mantém, e ainda diversas tipologias que têm sido propostas para o seu estudo.

No Capítulo 5 focaremos as teorias que descrevem e explicam o fenómeno da liderança. Será um olhar simultaneamente histórico e evolutivo, já que iremos apresentar as diversas teorias sobre a liderança desde os primeiros estudos propostos, em meados do século passado, até aos dias de hoje, sob critérios que se prendem com o seu próprio desenvolvimento, na medida em que aqueles estudos se foram tornando relevantes e respondendo às necessidades da sociedade.

No Capítulo 6 procuramos apresentar um ponto de situação em termos da investigação actual sobre o fenómeno da liderança. Porque José Mourinho assenta o seu trabalho e a sua liderança nas teorias da complexidade, com um forte apelo à inteligência emocional, procurámos essencialmente papers recentes que ligassem a liderança à complexidade, bem como a liderança às emoções.

No Capítulo 7 reentramos no caso de estudo da nossa dissertação. No capítulo 1 fizemos uma primeira apresentação de José Mourinho e do seu trabalho. Este capítulo é inteiramente constituído por uma entrevista a José Mourinho, na qual, pretendemos ouvir na primeira pessoa as razões das suas escolhas e decisões, da sua prática e da sua sistematização. Procurámos discutir exploratoriamente os principais aspectos do trabalho de Mourinho sobre os quais recai a nossa investigação: a complexidade e o seu trabalho; a forma como lida emocionalmente com os seus liderados; a sua noção de grupo e o funcionamento dos seus grupos; e o seu estilo de liderança.

O Capítulo 8 prossegue a discussão exploratória acima iniciada. Se no capítulo anterior obtivemos o olhar do líder sobre as questões acima enunciadas, já neste capítulo, seguindo a mesma metodologia – a de discutir exploratoriamente os temas referidos – pretendemos obter uma visão de liderado, de um dos seguidores de José Mourinho. Apresentamos assim a entrevista que realizámos a Rui Faria, adjunto no Chelsea FC, o “braço direito” de Mourinho na equipa técnica.

Finalmente no Capítulo 9 apresentamos a nossa análise do fenómeno em estudo: a liderança de José Mourinho. Sob a perspectiva da complexidade, com base nas teorias introduzidas, sobre as emoções, o funcionamento dos grupos e a liderança, analisaremos a acção e o trabalho concreto de José Mourinho, focando principalmente o material introduzido no capítulo 1 e nas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8. Gostaríamos de salientar que sendo a perspectiva da complexidade a nossa primeira base teórica, a que por isso modela toda a investigação, termos procurado ao longo da dissertação nada separar em demasia, não separar perdendo a noção do todo, e tudo pensar em conjunto nas suas relações e complementaridade, nada por isso descontextualizando.

Desta forma se deverão entender as ligações, as conexões e os enquadramentos que

formos tentando fazer e apontar ao longo da dissertação, porque como adiante mencionaremos, citando Hegel no contexto da epistemologia em que assentamos esta investigação, “a verdade é o todo”.

CAPÍTULO 1QUEM É JOSÉ MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM PÚBLICA

1.1. Quem é José Mourinho?

Parece ser hoje consensual que José Mourinho, o treinador de futebol do Chelsea FC, se tornou, num curto espaço de tempo, num case study um pouco por todo o mundo. Com 43 anos de idade e apenas 6 anos como treinador principal de futebol conta já com um currículo invejável e talvez não menos surpreendente. Nas seis temporadas que já efectuou apenas em quatro delas escolheu, preparou e conduziu equipas do princípio ao fim da época, já que nas duas primeiras esteve apenas dois meses no Benfica e seis meses na União de Leiria. Nas restantes quatro épocas liderou as equipas de futebol profissional do FC Porto e do Chelsea FC e se só estas levarmos em conta, pelos motivos apontados, pode afirmar-se que José Mourinho é o treinador de maior sucesso da actualidade em todo o mundo. O seu currículo só pode mesmo ser comparado a alguns treinadores com largos anos de experiência em grandes clubes europeus.

Assim, em termos curriculares – e não contando aqui com os ínumeros prémios pessoais já ganhos – José Mourinho colecciona, na sua sala de troféus, dois Campeonatos nacionais de Portugal, uma Taça de Portugal, duas Supertaças portuguesas, uma Taça UEFA e uma Taça da Liga dos Campeões e chegado há duas épocas a Inglaterra já conquistou a Taça da Liga inglesa e também dois campeonatos. O velho “mito britânico” segundo o qual ninguém no primeiro ano naquele país consegue vencer a sua mais importante prova acabou com José Mourinho.

Vamos, pois, neste capítulo introduzir José Mourinho. Iremos traçar em termos genéricos o seu percurso enquanto treinador principal de uma equipa de futebol. Como se lançou e como se afirmou na rota do sucesso são introduções que importa fazer para um entendimento do que se pretende nesta dissertação: o estudo, de um ponto de vista de ciências da comunicação, das práticas de interacção grupal e de liderança de José Mourinho.

O sucesso do actual técnico do Chelsea não passa, de facto, despercebido a ninguém. Nas televisões é hoje um líder de audiências, os jornais aumentam as tiragens sempre que

Mourinho é noticia de primeira página e os produtos aos quais o treinador empresta a sua imagem são sucessos de venda. A constatação que, por agora, se faz é que a imagem de José Mourinho extravasou, em larga escala, o campo desportivo. Ele transformou-se num fenómeno global a ponto de ser hoje o rosto promocional de várias marcas de nome mundial, como sejam os casos da Adidas, da American Express e da Samsung, entre outras. Portanto, no desporto ou nos negócios, Mourinho é uma referência mundial seja no plano estrito da liderança seja no campo comunicacional mais vasto.

The million dollar question: a que se deve este impacto comunicacional? Apenas aos resultados conseguidos nos jogos de futebol? Parece-nos que a resposta terá de ser dada pela negativa. Tanto mais que se nos afigura pacifico que José Mourinho não é apenas visto como um treinador de futebol de sucesso. Eventualmente, será assim no “mundo do futebol” mas fora dele profissionais de todo o mundo têm os olhos postos nos seus modelos de interacção, de gestão e de liderança, o que o torna, também, um gestor e um líder de sucesso.

Deste modo, Mourinho, é objecto de estudo e de apetência pelas empresas de marketing e publicidade e a sua imagem é utilizada não apenas como um treinador de sucesso mas como um “homem de sucesso”. Nos spots publicitários da American Express realça-se a segurança e a determinação do profissional, bem como a sua capacidade de antecipação; na campanha publicitária da Samsung compara-se José Mourinho ao famoso agente secreto James Bond – 007, sugerindo vertentes comuns no carácter de ambos: homens destemidos, arrojados e decididos.

Desta forma, parece-nos claro que hoje em dia existe um convencimento geral de que o sucesso de José Mourinho não se deve apenas aos seus conhecimentos técnicos sobre futebol. A forma como comanda e gere uma equipa de futebol é considerada, igualmente, determinante para os resultados que vai obtendo. A revista Exame, na sua edição de Abril de 2005, dedica um artigo a José Mourinho com o título: “18 Lições de Campeão”. No ante título podemos ler: “Pode o modelo de gestão de José Mourinho ser aplicado em empresas fora do mundo do futebol? Sim. O seu livro tem ensinamentos para todo o tipo de gestores”.

Não procurando, por agora, abordar a prática profissional de José Mourinho em toda a sua extensão, pretendemos neste capítulo introdutório apontar de uma forma clara o que se considera serem os principais pontos fortes do treinador do Chelsea enquanto líder e comunicador, ou seja, aquilo que lhe dá força para o exterior bem como a força interior que consegue transmitir aos seus jogadores. A forma como José Mourinho se relaciona com estes últimos, enquanto catalizador de motivações, sejam elas de grupo ou individuais, e como interage emocionalmente, gerindo as fraquezas e os pontos fortes do grupo, são elementos que têm levado, não poucas vezes, as suas equipas a superarem-se. Emerge aqui a inteligência emocional de José Mourinho, a qual aliada à sua organização profissional e à sua eficácia comunicacional tem conduzido a uma conclusão generalizada: Mourinho consegue transformar jogadores quase banais em super campeões e grupos quase banais em super grupos.

1.1.1. Mourinho: Um Caso Mediático

O treinador de futebol José Mourinho é hoje um caso raro de popularidade no mundo inteiro. A razão que justifica esta constatação assenta nos resultados atingidos em seis anos de actividade profissional como treinador principal de futebol, bem como na sua imagem de liderança. O que Mourinho ganhou catapultou-o para o estrelato e fez dele um dos maiores protagonistas do futebol da actualidade. Mourinho conseguiu aliar à sua performance

desportiva uma forma diferente de estar no futebol, com uma linguagem diferente e uma imagem diferente. Os resultados desportivos, a sua acção enquanto líder e o seu discurso conjugados com o marketing fazem de José Mourinho o que ele é hoje, ou seja, um homem de sucesso reconhecido internacionalmente.

Como profissional do futebol, Mourinho joga em todos os campos: dentro e fora das quatro linhas. Joga também de formas diversas: com a razão e com a emoção. Num e noutro caso José Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem do fenómeno futebolístico e tenta colmatar os seus pontos fracos e, no caso dos adversários, tenta anular os respectivos pontos fortes e explorar as suas fraquezas. A chave do seu sucesso tem sido, também, atribuída à sua capacidade de criar grupos coesos e motivados, capazes de ir buscar forças aos próprios antagonistas e de descobrir em si forças desconhecidas explorando-as até ao limite. Também a empatia com todos os que consigo trabalham é algo de muito importante e com certeza determinante. Desta forma, é fácil de entender que o trabalho de José Mourinho junto do seu grupo não se resume às componentes físico-tácticas dos atletas.

Mourinho é, também, um condutor de homens e, como tal, um comunicador nato, um gestor de emoções e um explorador de recursos. O trabalho mental é uma das suas maiores armas. A comunicação eficaz com o grupo bem como as relações interpessoais constituem algumas das ferramentas essenciais do seu trabalho.

1.1.2. Em Constante Desafio

José Mourinho era aos 36 anos um profissional bem instalado na vida. Era treinador adjunto de um dos maiores e mais conceituados clubes do mundo, o Barcelona FC, e gozava de prestígio reconhecido no seu país e em Espanha, o país onde trabalhava. Em grande parte pela visibilidade que o clube naturalmente lhe dava, Mourinho ia aos poucos sendo reconhecido na Europa do futebol. No final da temporada de 1999/2000 quase que abruptamente e com mais um ano de contrato, José Mourinho decidiu rescindir com Barcelona. Para trás deixava um salário que, pela sua idade e experiência reduzidas, seria difícil de igualar em qualquer outro clube. Deixava também uma posição cómoda e estável como treinador adjunto, cujo trabalho sem pressões lhe permitiria continuar a desenvolver as suas ideias e a sua aprendizagem.

Só que, a avaliar pela sua decisão, dinheiro e estabilidade não são tudo. Mesmo com mulher e dois filhos menores – um deles com menos de um ano de idade – José Mourinho optou por desafiar o futuro. “ Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso fazer a diferença e que posso vencer” (Mourinho in Lourenço 2004: 25), e desta forma José Mourinho fez as malas e saiu de Barcelona. Nessa altura a sua mente era dominada por um sentimento único: ser treinador principal numa equipa de futebol. Mesmo que calculados, correu riscos, mas estava absolutamente determinado conforme o comprovam as palavras da altura na sua biografia autorizada:

“Julgo que é possível, mais tarde ou mais cedo, encontrar um clube de segunda linha. (…) Tenho um projecto para entregar a quem me quiser contratar, tenho ambições e objectivos bem definidos. Levo comigo um documento orientador que será a garantia do meu trabalho. Por outro lado, se o Barcelona me deu algo – e muito me deu, com toda a certeza – foi visibilidade no meu próprio país. (…) Quem me quiser contratar já está familiarizado com o meu trabalho, pelo que não sou um completo desconhecido. Não fará, pois, uma aposta totalmente no escuro porque sabe o que eu quero, só não sabe se eu vou ou não conseguir colocar em prática as minhas ideias. De qualquer forma não quero pensar nisso agora” (Mourinho in Lourenço 2004: 27).

E desta forma Mourinho entrou para as estatísticas do desemprego em Portugal. De uma vida de sonho em Barcelona, num ápice, passou a desempregado em Setúbal. Está bom de ver que a questão económica não se lhe colocava com especial acutilância. Antes, era na questão profissional que mais e maiores riscos corria. José Mourinho estava, na altura, longe de ser a figura pública que é hoje. Por outro lado ainda não tinha dado provas a ninguém de que poderia, com algum sucesso, ser treinador principal numa equipa de futebol. Por fim, constatando que no mundo do futebol vale bem o ditado “quem não aparece esquece”, José Mourinho não se podia dar ao luxo de estar muito tempo afastado.

Pelas razões apontadas, Mourinho correu alguns riscos profissionais. Porém, a sua forte determinação, não temendo o futuro em nome de algo em que acreditava profundamente, fizeram-no dar, talvez, o primeiro grande passo para conquistar tudo o que conquistou até hoje. E de facto, volvidos quatro meses da sua saída de Barcelona, José Mourinho encontrava-se no relvado do estádio da Luz a treinar, como técnico principal pela primeira vez na sua vida, o Benfica.

Sobre a forma como José Mourinho encara o futuro, sem receios de maior, uma outra situação, ocorrida cerca de ano e meio depois de se ter iniciado no Benfica – e que tanta tinta fez correr nos jornais portugueses – ajuda a conhecer o seu carácter. Depois de uma disputa acesa entre Benfica e FC Porto para a sua contratação, em Janeiro de 2002, foi a equipa do norte que levou a melhor. O FC Porto estava longe dos seus tempos áureos e o presidente do clube portista, Jorge Nuno Pinto da Costa, tentava devolver ao clube o passado recente, ou seja, tentava voltar às vitórias. Pinto da Costa optou então por demitir o treinador, Octávio Machado, que não conseguira mais do que um desesperante 6º lugar ao iniciar-se a segunda volta do campeonato. Para além disso o clube não conseguia ser campeão ia para três anos consecutivos, performance de que só havia registo semelhante nos idos anos 70.

Pela primeira vez, em cerca de 20 anos como dirigente portista, Pinto da Costa começava também a ser contestado pela massa associativa. Pinto da Costa apostou então em José Mourinho, com a certeza de que aquela temporada, em termos de uma vitória no campeonato, estava definitivamente comprometida, mas com a esperança que melhores épocas viriam.

A debilidade desportiva que o clube vivia na altura pareceu, também, não ter atemorizado José Mourinho, o novo treinador do clube do Porto. No dia de apresentação à imprensa José Mourinho deixou o país desportivo atónito com “tanta sobranceria”... Estávamos, no dia 23 de Janeiro de 2002 quando, numa sala cheia de jornalistas, José Mourinho disse o seguinte: “para o ano vamos ser campeões”. O que o levava Mourinho, logo no primeiro dia no clube, a desafiar os adversários com a “certeza” de que o FC Porto até já podia, com ano e meio de antecedência, encomendar as faixas de campeão? Uma razão muito simples: tratava-se de comunicar com eficácia para todo o clube, desde os jogadores aos adeptos.

“José Mourinho quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para ganhar. (…) Ficou, desta maneira, içada a bandeira portista no mastro principal das Antas e Mourinho quis, desde logo, toda a nação azul e branca unida à volta da nova bandeira” (Lourenço 2004: 99).

E no ano seguinte o FC Porto ganhou o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e a Taça UEFA. Mourinho prometeu menos do que aquilo que conseguiu. Parece claro que José Mourinho não teme comprometimentos. Parece também correcto afirmar que o faz em prol do seu grupo de trabalho. Manter um grupo unido, com uma missão de futuro e, principalmente, sem pressões, parece ser a sua forma de actuação. Nem que para isso tenha

de chamar a si todas as pressões exteriores. Mas José Mourinho também gosta disso. Por exemplo, Mourinho sabia que o seu regresso ao Estádio da Luz, enquanto treinador de uma equipa adversária do Benfica, justamente o FC Porto, não seria pacífico. Estava agora do lado do “inimigo nº1” e os adeptos benfiquistas não lhe perdoavam a “traição”. Por isso afirmou:

“[S]abia claramente que quando entrasse em campo teria, aí sim, uma estrondosa recepção… pela negativa, claro está. Por isso fiz questão de entrar sozinho, antes da equipa. O estádio estava cheio quando pisei a relva da Luz pela primeira vez no dia 4 de Março de 2003. Faltava ainda cerca de hora e meia para o início do jogo. Foi fantástico. Vivi uma sensação linda. Nunca fui um jogador de primeiro nível para sentir, por exemplo, o que o Figo sentiu quando regressou a Barcelona e portanto não tinha bem a noção do que seria 80 mil pessoas a assobiar-me e a apupar-me. Julgo que quando somos mentalmente fortes o efeito que as pessoas buscam, de intimidar e perturbar, sai completamente furado. Ao invés, dão força e alento para prosseguir o caminho. Senti-me a pessoa mais importante do mundo ao ouvir em uníssono o coro de assobios e vaias com que os adeptos benfiquistas me receberam no Estádio da Luz. Ao mesmo tempo, ao descarregarem em cima de mim, acabaram por poupar a equipa, o que também foi importante” (Mourinho in Lourenço 2004: 149).

Tal como já referimos, a liderança de José Mourinho não se esgota na vertente interna da sua organização. Ela passa para o exterior e muitas vezes produz um efeito boomerang, ou seja, a mensagem é passada para o exterior de forma a muito claramente ser eficaz no interior.

Atente-se na conferência de imprensa em Barcelona, em Fevereiro de 2005, na véspera do encontro da primeira-mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões Europeus. Os jornalistas, ingleses e espanhóis, estavam ansiosos por saber qual a equipa que José Mourinho faria alinhar. O técnico português queria fazer passar a mensagem de que o Barcelona, para ele, não tinha segredos e isso era uma arma poderosa com que os seus jogadores poderiam contar. Era uma forma de os motivar ao saberem que o líder tinha tudo previsto, com base em total informação sobre o seu opositor. Ao mesmo tempo, o adversário também se desmotivaria – ou amedrontaria – ao saber que não poderia contar com o factor surpresa. Mourinho aproveitou a pergunta dos jornalistas sobre a constituição da sua equipa para fazer a sua “jogada”.

A resposta apanhou todos os jornalistas de surpresa de tal modo que ela correu mundo. José Mourinho nomeou então todos os jogadores do Chelsea que iriam entrar em campo no dia seguinte frente ao Barcelona. E quando os jornalistas pensaram que a resposta estava dada, enganaram-se.

Mourinho disselhes ainda que lhes ia poupar trabalho… Sem se deter disse de imediato a constituição da equipa que Frank Riijkard, treinador do Barcelona, iria fazer jogar contra si no dia seguinte. E quando os jogadores entraram em campo pôde constatar-se que nem num só nome José Mourinho se havia enganado.

1.1.3. Só a Vitória Interessa

Nos nossos dias, com especial e compreensível acutilância no mundo do desporto, o instinto competitivo é fundamental para se vencer. Um exemplo, de um passado já algo distante, pode ilustrar o sentido competitivo de José Mourinho, para quem só a vitória interessa.

O autor desta dissertação é amigo de José Mourinho desde a infância. Na nossa terra natal, Setúbal, todos os anos se realiza um torneio de futebol de salão que faz sonhar os jovens que praticam a modalidade. É o maior e mais visível torneio da cidade e disputa-se em Junho. Quis o sorteio que, nas meias-finais se defrontassem José Mourinho e eu próprio, naquela que, consideravam os “observadores”, seria a final antecipada do torneio. A cinco minutos do fim do jogo ainda se mantinha o empate a zero. Mourinho “pega” então na bola

e arranca num “sprint” a alta velocidade. O último dos jogadores adversários, até chegar ao guarda-redes, era eu, ironia do destino, o seu amigo em campo. José Mourinho em velocidade “passou” por mim, saltando-me por cima das pernas que tentavam cortar a bola.

Um simples toque tê-lo-ia desequilibrado e feito cair. Teria sido falta, mas não teria sido como foi – golo. Só que um simples toque, à velocidade a que Mourinho seguia, poderia tê-lo magoado seriamente. A minha decisão, instintiva obviamente, foi não fazer falta, não correndo assim o risco de o lesionar. No final, já depois do banho tomado, encontrámo-nos para seguir juntos para casa. José Mourinho não perdoou a minha decisão... Para ele, ali dentro do campo, não havia amigos mas sim adversários. Por uma má decisão minha, todo um grupo havia sido prejudicado e todo um outro grupo, neste caso o dele, havia sido beneficiado.

O grupo que foi prejudicado – o meu – não tinha nada a ver com as relações entre nós, argumentava Mourinho. Se a situação ocorrida durante o jogo fosse inversa ele teria tomado a decisão de fazer falta, confidenciou-me. O caso aconteceu tínhamos ambos 22 anos. Na altura passou-me despercebido... Hoje ajuda-nos a compreender que a competitividade de Mourinho não nasceu ontem…

Passadas cerca de duas décadas a situação, repetiu-se. Mourinho continuou a ser um dos protagonistas, o outro é que mudou. Nas meias-finais da Taça UEFA, na época de 2002/2003, o FC Porto defrontou a Lazio de Roma, considerado, então, o grande favorito à vitória naquela competição. Quis o sorteio que o primeiro jogo fosse no Estádio das Antas, no Porto. Naquele que Mourinho considerou o “melhor jogo da época do FC Porto”, a dois minutos do final os portistas venciam por 4-1, um resultado excelente não fosse o adversário marcar ainda um golo, o que já não seria tão positivo. Ir a Roma com uma diferença de três golos seria fantástico, com uma diferença de dois seria apenas bom.

“Faltava um ou dois minutos para o final quando, numa jogada de contra-ataque, a bola sai pela linha lateral mesmo junto a mim. De imediato o argentino Castroman apanha a bola e prepara-se para servir um companheiro seu. Estava no enfiamento da linha limite da nossa grande área e apercebi-me do perigo. A nossa defesa estava descompensada, ou seja, dois avançados italianos para dois defesas meus, pelo que sobrava, de imediato, o Castroman, que logo se integraria na manobra ofensiva. O 4-1 era um resultado excelente mas o 4-2 já não era assim tão bom. Ele (Castroman) estava mesmo junto a mim e eu puxei-o para que não fizesse de imediato a reposição da bola em jogo. O argentino reagiu, o árbitro viu e fez o que tinha de fazer: expulsoume e mostrou um cartão amarelo ao jogador da Lazio. É evidente que foi feio. Não foi uma situação instintiva da minha parte, por isso, reconheço a justiça da minha expulsão. Não tive fair play, para além de ter intervido directamente no jogo. Logo na altura eu pedi desculpa ao Castroman e ele a sorrir respondeu-me apenas: «Mister, é futebol»” (Mourinho in Lourenço 2004: 156).

1.1.4. Estrelas e Anónimos: Todos São o Grupo

Uma equipa de futebol da dimensão do Chelsea FC é composta por ínumeras estrelas. Não há um único jogador do Chelsea – à excepção do guarda-redes suplente, Carlo Cudiccini – que não seja internacional pelo seu país. Sob o comando de José Mourinho estão nomes famosos do futebol mundial como Frank Lampard, John Terry, Didier Drogba, Michael Ballack ou Andrei Schevschenko, entre outros. Para José Mourinho são nomes importantes no mundo do futebol, mas o nome mais importante é mesmo Chelsea FC. Só em torno deste emblema acontece o êxito, justamente, porque para o treinador o importante, a verdadeira estrela, é mesmo o grupo. E o grupo – enquanto todo – vale mais que a soma das partes. O grupo supera-se na soma de todas as partes. No entanto o grupo não começa nem acaba nos jogadores da sua equipa. Ele vai muito para além disso. Todos os que fazem parte da estrutura profissional de futebol constituem o grupo de José Mourinho, e todos eles, nos seus respectivos lugares, são importantes para o sucesso final do grupo. Esta é uma

imagem que Mourinho não prescinde de fazer passar a todos os que trabalham com ele. Não nos poderemos, pois, admirar com episódio a seguir descrito.

Estávamos no início da temporada de 2004/2005. José Mourinho tinha chegado ao clube inglês há cerca de um mês. O clube encontrava-se na pré-temporada e os primeiros 30 dias foram de trabalho em Stamford Bridge, o estádio do Chelsea. Cedo o técnico portuguêspercebeu que a relva se encontrava em condições magníficas. Essas condições permitiramlhe excelentes treinos, que tiveram como prémio a primeira vitória num torneio realizado nos Estados Unidos, onde o cabeça de cartaz era o AC Milan, recentemente coroado Campeão Europeu. A taça foi levantada, em campo pelo capitão John Terry, mas o seu destino já estava traçado. Em reconhecimento ao trabalho do tratador da relva de Stamford Bridge, pelos treinos proporcionados à equipa, e que José Mourinho considerou um dos obreiros da vitória, a Taça, uma vez chegada a Londres, foi directa para a casa daquele profissional do Chelsea. Aquele homem, de quem ninguém, à excepção de Mourinho, se havia lembrado quando o Chelsea conquistou o troféu, teve nos dias seguintes os seus merecidos momentos de glória. Os jornais britânicos não deixaram passar em claro o destino do troféu. Nunca um tratador de relva havia dado tantas entrevistas, havia visto tantas fotografias suas nos jornais e, muito provavelmente e mais importante, nunca havia sentido o seu trabalho tão reconhecido.

Estas histórias servem, numa análise necessariamente breve, para que se possa compreender a dimensão do profissional em questão. Trata-se de episódios escolhidos para de uma forma abrangente ilustrar o carácter do profissional, evidentemente intimamente ligado ao carácter do ser humano José Mourinho.

1.1.5. Razão e Emoção

“Os jogadores foram fantásticos e mostraram o grupo que somos, mostraram o quanto crescemos como organização; os adjuntos são unidos, não há ciumeiras, sabem para quem trabalham e o que devem fazer, têm carácter moldado ao do líder, foram a minha voz”, disse José Mourinho depois de se ter sagrado campeão inglês, pelo segundo ano consecutivo ao serviço do Chelsea.1

José Mourinho é um treinador especial, e os seus resultados comprovam isso mesmo. Enquanto técnico está em permanente actualização, em estudo constante. Como profissional tem aquilo a que na gíria futebolística se chama “instinto de treinador”. Além disso, ou talvez relacionado com isso mesmo, José Mourinho é um excelente comunicador e um líder eficaz.

Quando concebe de raiz uma equipa, o treinador do Chelsea tem um perfil traçado para os profissionais que pretende. Quer jogadores jovens, pobres e sem títulos ganhos. Pretende, desta forma, motivação e ambição.

No conceito de grupo de Mourinho o individual tem pouco valor se não trabalhar em prol do colectivo. O grupo é o que mais conta e o individual é entendido na perspectiva de melhorar a actividade do grupo.

Na sua liderança Mourinho é centralizador, mas não dispensa as opiniões dos diversos elementos do seu grupo de trabalho. É frontal e preconiza a justiça como o caminho para atingir a lealdade e disciplina nos vários graus hierárquicos.

José Mourinho motiva os membros das suas equipas ao discutir com eles o seu desempenho; vai de encontro à natural necessidade de afiliação; e informa-os sempre que

toma decisões. Desta forma, Mourinho comunica com eficácia com os jogadores e com os outros profissionais do seu grupo. Qualquer jogador tem sempre a porta do gabinete de José Mourinho aberta.

A este nível de comunicação interpessoal, José Mourinho é um líder particularmente atento. Nos casos de indisciplina José Mourinho parece igualmente gerir o seu grupo com mestria. Em dois casos, tratou os envolvidos de formas eficazes, mas totalmente diferentes. Num caso a que adiante nos referiremos com maior detalhe, o benfiquista Maniche, em 2000, foi relegado para a equipa B depois de ter sido expulso num encontro do campeonato português e posteriormente ter mostrado um evidente desinteresse nos treinos. Num outro caso passado com Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, levantou um processo disciplinar e afastou-o, sumariamente, do grupo depois de uma violenta discussão no balneário, onde Mourinho achou ter havido desrespeito para com o líder do grupo. A comunicação, no caso de Maniche, foi informal e, de certa forma, paternal.

No caso de Baía foi autoritária, sem margem para discussões, porque o papel que cada um desempenha no grupo e as suas próprias personalidades são diferentes e Mourinho sabia muito bem disso. Contudo, em ambos os casos, ao fim de relativamente pouco tempo, aqueles jogadores estavam de volta à equipa, e com resultados excepcionais. Servem estes dois exemplos para apontar a importância e a influência de José Mourinho, quer ao nível do desempenho do grupo e da motivação individual, quer no plano do exercício da sua autoridade.

Talvez por estes motivos, José Mourinho só contrata para as suas equipas jogadores evoluídos culturalmente e com “opiniões próprias” (Lourenço 2004: 27), para assim poder levar a cabo o seu método de treino, aprendizagem e motivação a que chamou “descoberta guiada” e que mais adiante descreveremos com algum detalhe. Importa, por agora, destacar a importância da comunicação interpessoal e intra-grupal – a sua coerência e consistência interna, mesmo na diversidade que muitas vezes apresenta – na forma como José Mourinho lidera o seu grupo de trabalho.

A maneira como José Mourinho usa a razão para compreender as suas emoções e as do seu grupo de trabalho, e assim tomar decisões racionais em ambientes muitas vezes intensamente emocionais, faz com que muitos o apontem como um “mestre” na difícil tarefa de conduzir e motivar um grupo de profissionais. Nos exemplos anteriormente apontados nota-se a conjugação de uma comunicação constante e frontal com os seus jogadores, bem como um equilíbrio constante entre razão, isto é, competência e capacidade de análise, e emoção, isto é, relações humanas e motivação pessoal. Atente-se na carta escrita por Mourinho, no início da época de 2002/2003, aos jogadores do FC Porto.

“[E]spero que as férias te tenham oferecido o que delas esperavas e que te tenham «recarregado» as baterias da motivação e da ambição. «Ser campeões» tem de ser sempre o nosso objectivo. Um objectivo diário, uma motivação consistente e permanente uma luz que tem de guiar o nosso trajecto a partir de agora. (…) A nossa relação pessoal, não tenho dúvidas, vai crescer rapidamente e a nossa equipa vai continuar a evoluir. (…) Eu e a Administração acreditamos em ti. É precisamente por isso que aqui estás. (…) Ser titular nunca será uma palavra correcta, porque o equilíbrio qualitativo é enorme. Preciso de todos porque o trabalho é longo e difícil. Todos serão opção e todos serão um contributo para a equipa. Todos vós precisam unsdos outros. Somos uma EQUIPA. «Só há espírito de equipa», diz o André numa frase que considero fantástica, «quando um atleta não convocado está a ver o jogo no camarote e não aceita que alguém critique um colega seu». Eu acrescento: motivação + ambição + espírito de equipa = sucesso” (Lourenço 2003: 128).

Por estas palavras se pode entender a preparação psicológica que José Mourinho exercesobre os seus jogadores logo desde o primeiro dia de trabalho. Também se entendefacilmente o rumo do seu pensamento ao fazer depender o sucesso da conjugação de três

premissas: motivação, ambição e espírito de equipa. Sublinha-se ainda a interdependênciados elementos perante o grupo (incluindo-se aqui a ele próprio) quando afirma que todosos elementos dependem uns dos outros. Por fim deixa bem vincada a sua liderança, aindaque duma forma indirecta, ao dizer que acredita no jogador, por isso ele faz parte do grupo“por si escolhido”.

Para além de recursos humanos, Mourinho gere também de uma forma muito interessante a sua imagem. Quer para dentro do grupo quer para a opinião pública, o tipo de comunicação que efectua obriga à reacção. Para o exterior Mourinho passa a imagem de arrogante, “compra” ou provoca “guerras” e em caso algum se atemoriza. José Mourinho aprendeu que a indiferença dos outros não lhe é útil. Desta forma é um estudioso das reacções humanas e procura nos outros forças para si mesmo e para o seu grupo. Desencadeada esta espécie de processo de guerrilha, Mourinho controla as suas emoções e explora as do adversário em seu proveito. Pode bem dizer-se que transforma fraquezas alheias em forças suas. Além disso, e como amigo de longa data do treinador actual do Chelsea – e conforme ao espírito descritivo deste capítulo – devemos acrescentar que desde há muito é para mim pacifico que José Mourinho tem uma especial, e talvez rara, capacidade para lidar com a pressão.

Será mesmo talvez de dizer, possivelmente sem exagerar por aí além, que a pressão exterior não o atinge; que 80 mil pessoas vaiando-o no Estádio da Luz, antes do encontro com o Benfica, não só não o incomodaram como o motivaram e fizeram-no entrar em campo primeiro que os seus jogadores, poupando-os assim ao ruído ensurdecedor das primeiras vaias dos adeptos benfiquistas.

Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem dos seus jogadores, gere as suas emoções e utiliza-as em proveito do grupo. Busca, de igual modo, toda a informação possível sobre os seus adversários, através de um estudo exaustivo, transmite-a ao grupo e com a colaboração dos que consigo trabalham estuda as melhores formas de anular os pontos fortes e explorar as fraquezas dos adversários. Mourinho é muito mais do que um técnico de futebol. Se o é, então como Manuel Sérgio referiu (in Lourenço 2004: prefácio), ele é um novo treinador e não apenas um treinador novo. Ele é um líder, um visionário, e um comunicador nato. Sabe qual o caminho a seguir para fazer a diferença. Enquanto gestor de pessoas, de emoções, de afectos e interacções, o cunho pessoal de Mourinho parece de facto ter um lugar único no mundo do futebol.

1.1.6. José Mourinho, O Carismático

A revista Visão, edição de 4 de Abril de 2005, escrevia como subtítulo de uma reportagemsobre o treinador do Chelsea: “À beira de ser campeão, no primeiro ano em Inglaterra, SirMourinho tem o mundo a seus pés. Em Londres é amado e odiado. Seja pelas vitórias doChelsea, a arrogância, o sobretudo ou a barba de três dias”. É assim José Mourinho, umafigura pública que não deixa ninguém indiferente. Para isso o treinador reúne váriascaracterísticas que o tornam único na sua profissão.19Na sociedade mediática em que vivemos, cada vez mais os membros das diversascomunidades tendem a identificar-se, a seguir e até a apaixonar-se por aqueles que seapresentam como líderes, nos mais diversos sectores das sociedades. Aliás, esta linha deidentificação e de paixão com e pelo líder, foi há muito indicada por Sigmund Freud(1856-1939), como o substrato mais profundo do fenómeno grupal.O carisma, lato sensu, pode indicar-se como uma atracção irracional, isto é, semnecessidade de uma explicação racional, por parte das massas por alguém que lhes inspirapoder e confiança, amor ou ódio. Ora José Mourinho é hoje um homem carismático, gostese

ou não dele. Ele gera sonhos, imitações e inspirações, provoca ódios e paixões comopoucos. Seja pelas suas vitórias, pela sua arrogância aparente, pela barba – geralmente com3 dias por fazer... – ou pelo seu sobretudo cinzento – que tanta tinta fez correr nos jornaisingleses –, pelas suas declarações frontais e por vezes provocatórias, Mourinho está semprenas luzes da ribalta. “José” como é conhecido em Inglaterra é, em tantos cantos do mundo,o homem que adolescentes e adultos gostariam de ser. Porquê? Talvez porque conseguiuum sucesso mundial aos 40 anos de idade, porque é famoso, porque tem bom porte, umapersonalidade vincada e porque sabe o que quer e para onde vai. Depois, desde a suaimagem às suas palavras e actos, Mourinho comunica de uma forma ímpar todo estemanancial de virtudes para o mundo exterior.Desta forma, parece-nos apropriado fechar esta subsecção com a história que, por ventura,mais celebrizou José Mourinho em todo o mundo. A história que o baptizou como TheSpecial One. No dia da sua apresentação como treinador do Chelsea FC, José Mourinhocompareceu aos jornalistas ingleses, em Londres, para a habitual conferência de imprensa.Todos queriam saber como é que um português de 41 anos iria gerir, comandar e treinaruma das maiores e mais mediáticas equipas de futebol do mundo. Quem era JoséMourinho? Como chegara ali? O que pretendia? Como iria adaptar-se a uma realidadenova e seguramente difícil? Como reagiria à pressão? Enfim, muitas e pertinentes questõesteriam de ser colocadas a este português com fama de arrogante, aparentemente muitoseguro de si, mas que sem dúvida pouco ou nada conhecia da realidade britânica. Todas asperguntas foram feitas e uma resposta teve dimensão mundial: “Because I’m a SpecialOne”. Esta resposta foi dada por José Mourinho com base nos resultados conseguidos peloFC Porto, sob o seu comando, nas duas temporadas anteriores, conquistando a Taça UEFAe a Liga dos Campeões. José Mourinho afirmou, então, que se o futebol inglês, o Chelsea e20os seus jogadores eram especiais, ele, com toda a certeza também o era, por aquilo quetinha ganho, pela forma como tinha ganho e, acima de tudo, no clube onde tinha ganho,seguramente, um clube com pouca dimensão económica quando comparado com osgrandes da Europa. Ainda assim, em dois anos seguidos, ele rivalizou com os “grandes” daEuropa e ganhou. Isso tornava-o diferente, special, de tal forma que não teve qualquerhesitação em admiti-lo perante uma plateia de jornalistas ingleses. No dia seguinte asprimeiras páginas dos jornais britânicos fizeram-se em uníssono: “I’m a Special One”.Hoje, em toda a Inglaterra e, provavelmente, grande parte do mundo – pelo menosdesportivo –, quando se fala no The Special One todos sabem que se está a falar de JoséMourinho.1.2. José Mourinho: a Imagem PúblicaEntramos assim na sua segunda parte deste capítulo, dedicada à imagem pública de JoséMourinho. Caracterizado que está – ainda que em traços largos – o percurso e o sucesso deJosé Mourinho, passamos agora a outra fase deste capítulo. Procuraremos nas páginasseguintes enquadrar José Mourinho face ao que dele se comenta com mais regularidade.Ao olharmos os jornais, ao vermos a televisão, ao ouvirmos a rádio, ou até mesmo nasconversas de rua, quando se fala de Mourinho existem sempre algumas ideias que sesobrepõem e que são, de certa forma, consensuais para a generalidade das pessoas, quer segoste ou não da figura em causa. Da nossa experiência pessoal, e como biógrafo de JoséMourinho, recolhemos aqui alguns dos traços que geralmente lhe são atribuídos.1.2.1. DisciplinaReconhecidamente, José Mourinho conduz os seus grupos de trabalho com mestria. Numaequipa de futebol, recheada de “estrelas”, não é fácil gerir ambições, emoções emotivações, e torna-se problemático resolver conflitos. O treinador português enfrenta-oscom autoridade e disciplina.Num caso que acima já fizemos referência, quando treinava o Benfica, após Maniche serexpulso num jogo com o Boavista, e depois de outros incidentes, Mourinho interpelou ojogador com frontalidade:

21“Das duas uma: ou tens um problema de cabeça e precisas de o resolver ou tens umproblema físico e precisas, na mesma, de arranjar solução. Por isso vais treinar para aequipa B e quando achares que ou a cabeça ou o físico já não têm problemas vens tercomigo” (Lourenço 2004: 44).Passados quatro dias Maniche dirigiu-se ao técnico, pediu-lhe desculpas e depois de pagaruma multa de 1000 euros foi reintegrado na equipa principal do Benfica. Poucas semanasdepois Maniche era o capitão benfiquista e foi, posteriormente, um dos elementosessenciais na equipa do FC Porto – com José Mourinho – e da selecção nacional. Chegouainda a jogar pelo Chelsea sob o comando do treinador português.1.2.2. AutoridadeDepois de passar pelo Benfica, José Mourinho assumiu o comando técnico da União deLeiria. No estágio de pré-temporada, na localidade de Tábua, quando todos os elementosdo grupo ainda se estavam a conhecer surgiu uma situação que, para os jogadores,esclareceu cabalmente o papel de cada entidade e de cada profissional na estruturaleiriense. Num sábado de sol os administradores do clube marcaram um encontro defutebol com os jornalistas que acompanhavam a equipa. Não tinha acabado o treino daequipa de Mourinho e já alguns “patrões” da União de Leiria realizavam, do outro lado docampo, exercícios de aquecimento com vista ao “amigável” que se seguiria.“Mourinho parou imediatamente a sessão e, gritando para os «atletas» que iniciavam oaquecimento, mandou-os abandonar o campo. A surpresa foi geral, tanto de um ladocomo de outro. Os jogadores e restante equipa técnica ficaram mudos à espera que a«bronca estalasse». Os elementos da SAD da União de Leiria entreolharam-se semacreditar muito bem que estavam a ser expulsos por um seu subordinado. Por mais trêsvezes, com voz firme e grossa, José Mourinho gritou para o outro lado do campo apalavra «RUA». Um deles ainda retorquiu: «Mas porquê Mister? Você está a treinar aíe nós estamos aqui, qual é o problema?». Mourinho manteve-se inalterável no seupropósito: «Eu depois explico-vos. Agora, rua!!!». A indecisão deu lugar à obediênciae o campo ficou totalmente livre para a União de Leiria continuar a treinar” (Lourenço2004: 82).Mais tarde Mourinho explicou aos administradores as razões da sua atitude: aquele era, naaltura, um local de trabalho, não de diversão e por esse motivo só o seu grupo de trabalho22poderia estar ali; tudo o resto só ajudava à desconcentração, algo que Mourinho nãopermite. Deram-lhe razão e prometeram que não se repetiria uma cena idêntica.1.2.3. MotivaçãoAo serviço do FC Porto, em vésperas de um importante Porto/Benfica, José Mourinhodeparou-se com uma entrevista do então Presidente do Benfica, Manuel Vilarinho, na qualafirmava ter sonhado que a sua equipa iria ganhar, por 3-0, no Estádio das Antas.“Quando Vilarinho tornou público o seu sonho de imediato pensei: «aí está aprovocação que eu preciso para agitar o orgulho dos meus jogadores. De imediatomandei fazer uma fotocópia da entrevista do presidente do Benfica e coloquei-a naparede do balneário das Antas durante toda a semana, para que ninguém se esquecessedo “sonho” de Vilarinho. Aos jornais disse apenas que na nossa casa ninguém nosganha por 3-0. E fomos para o jogo de alguma forma espicaçados” (Lourenço 2004:105).A verdade é que o jogo terminou com uma vitória do FC Porto por 3-2.1.2.4. DeterminaçãoCom apenas dois meses de treinador principal, José Mourinho sentiu que o seu futuropoderia não passar pelo Benfica. Em início de carreira, a vida no clube da Luz não foi fácil.Face à a mudança de um presidente que lhe dava toda a confiança (Vale e Azevedo) paraoutro que lhe retirava toda a confiança (Manuel Vilarinho), Mourinho não temeu o futuro earriscou. Devia ou não continuar no Benfica? Devia ou não definir de uma vez por todas oseu futuro com a direcção do clube? Devia ou não esperar que o despedissem? Devia ounão, simplesmente, bater com a porta? A caminho de casa, na auto-estrada que liga Lisboa

a Setúbal, Mourinho tomou a decisão que iria abalar o país desportivo. «Agora vai ser otudo ou nada», referiu. Manuel Vilarinho recebeu José Mourinho no gabinete presidencialdo Estádio da Luz. O presidente já sabia do que se tratava pelo que não era necessáriaqualquer introdução prévia ao assunto. Na reunião valeu o pragmatismo. José Mourinhonão se deixou tentar pelas palavras de Vilarinho. Estava demasiado fragilizado por tudo oque lhe tinha acontecido até então na Luz. “Agora ou era «preto no branco» ou era… nada.23E deu nada!” (Lourenço 2004:64). Nesse mesmo dia José Mourinho rescindiu contratocom o Benfica e não mais voltou a treinar a equipa da Luz.1.2.5. FrontalidadeNa gestão de Mourinho não têm lugar jogadas subterrâneas. A comunicação frontal é vistacomo algo imprescindível ao bom funcionamento do grupo. Um exemplo de frontalidade éo caso da dispensa de Maniche da equipa principal do Benfica, acima referido. Nos gruposde José Mourinho todos devem comunicar entre si e dizer o que têm a dizer, semconstrangimentos e com total lealdade. Assim, nos minutos que antecederam o seuprimeiro treino ao serviço do Benfica, Mourinho prometeu aos seus jogadores que o moteera “olhos nos olhos”: “ofereci-lhes frontalidade total. Quis, assim, que todos tivessem acerteza de que quando o treinador tomasse decisões sobre os jogadores do Benfica, fossemelas quais fossem, eles seriam sempre os primeiros a saber e por meu intermédio”(Lourenço 2004: 39). Ainda no Benfica um outro exemplo ilustra de forma cabal afrontalidade da actuação de José Mourinho.No início do ano de 2001, Mourinho treinava a União de Leiria quando surgiu o interessedo Benfica em contratá-lo. Toni havia sido despedido e o clube de Lisboa necessitava deum novo técnico. Mourinho foi o escolhido e iniciaram-se as negociações. Existia, noentanto, um entrave. Jesualdo Ferreira estava no clube como treinador adjunto e Mourinhonão contava com ele na sua equipa de trabalho. Os dirigentes do Benfica insistiam, porém,na integração do técnico na equipa de adjuntos de Mourinho. Na reunião a posição de JoséMourinho ficou bem clara: “Das duas uma: ou digo directamente, olhos-nos-olhos, aJesualdo Ferreira que não quero trabalhar com ele, para que, claramente, entenda que soueu que não quero trabalhar com ele, ou então nada feito e não vou para o Benfica(Mourinho in Lourenço 2004: 93). E por esta e outras razões Mourinho acabou mesmo pornão chegar a acordo com o Benfica.1.2.6. RiscoJosé Mourinho não tem medo de desafiar o futuro. Para isso arrisca, provoca ecompromete-se. No ano de 2003, ao serviço do FC Porto, a sua equipa perdeu, em casa,24nos quartos de final da Taça UEFA, por 1-0, com o Panathinaikos da Grécia. No final doencontro, Mourinho viu o treinador adversário, Sérgio Markarian, a festejar como se játivesse vencido a eliminatória. Não gostou e de imediato se dirigiu ao seu opositor:“Não estejas aos saltos que isto ainda não acabou”. Logo de seguida passou pelosadeptos portistas, nas bancadas do Estádio das Antas e fez-lhes um sinal como que adizer ‘tenham calma, ainda temos uma palavra a dizer... (…) Quando chegou aosbalneários, depois de ter visto a festa grega, deparou-se com o inverso. Os seusjogadores estavam tristes, frustrados e de cabeça baixa. Logo ali José Mourinho quisdeixar as coisas bem claras. «Isto não acabou e eu disse isso, mesmo agora, aotreinador deles. Nós vamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acreditaque é possível ganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu voupara a Grécia com outro» (Lourenço 2004: 151).Quinze dias depois o FC Porto ganhou o jogo por 2-0, qualificando-se para a meia-final daTaça UEFA, competição cuja edição desse ano havia de ganhar.1.2.7. ParticipaçãoPara o actual treinador do Chelsea FC todas as opiniões contam. O líder, para ele, sóadquire a liderança de facto e de direito se esta for conquistada racional e emocionalmente.

Daí que nos seus métodos de trabalho todos sejam chamados a participar e todos fiquemcom a certeza de que contribuíram para as decisões finais que envolvem o grupo. Destaforma, os jogadores são responsabilizados quer pelas vitórias quer pelas derrotas.“O trabalho táctico que promovo não é um trabalho em que de um lado está o emissore do outro o receptor. Eu chamo-lhe a «descoberta guiada», ou seja, eles descobremsegundo as minhas pistas. Construo situações de treino para os levar por umdeterminado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos aconclusões” (Mourinho in Lourenço 2004: 26).1.2.8. GrupoUm conceito de grupo coeso e solidário é algo de que José Mourinho não prescinde. Aideia é de imediato transmitida a todos os seus colaboradores: ninguém está acima dogrupo. Assim, no estágio de pré-temporada do FC Porto, em 2002, ao fim de alguns dias, o25treinador portista deu, finalmente, uma noite de folga aos seus jogadores. Marcou-lhes ahora de regresso ao hotel e esperou por eles.“Fiquei completamente surpreendido, não só por terem aparecido muito antes da horamarcada, mas também por terem chegado todos ao mesmo tempo. Perguntei, então, aoJorge Costa, que ia a passar por mim:- Jorge, o que é que se passou aqui?- Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo Mister.É difícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e talhomens que estavam juntos há cinco dias, na sua primeira folga optaram por estarjuntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer”(Mourinho in Lourenço 2004: 123).E nasceu, de tal forma, que nesse ano o FC Porto ganhou tudo o que tinha para ganhar:Campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA.1.2.9. ConfiançaJosé Mourinho é naturalmente um homem confiante. Acredita sempre na vitória e fazquestão de passar esse estado de espírito para os que consigo trabalham. Só acreditando navitória se pode ganhar.Na temporada de 2002/2003 o jogo que decidia a vitória portista no campeonato estavaagendado para o Estádio na Luz, com o Benfica. Na preparação do encontro Mourinho,treinador do Porto, surpreendeu os seus jogadores.“Para moralizar os meus jogadores não sou um treinador que opte pelos “gritos deordem” tipo: «vamos a eles, até os comemos, somos os melhores, etc., etc., ». Nadadisso. No que respeita ao jogo com o Benfica fiz passar a mensagem de superioridadetotal sobre o adversário. Eu sabia que o Camacho – treinador benfiquista -, sempre queestava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-loexactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as investidas atacantes doSokota. Até que um jogador, meio surpreendido me disse: «Mas, Mister, eles nãojogam com o Sokota, jogam com o Zahovic!!!». Era o que eu queria ouvir para deimediato responder: «Jogam com o Zahovic quando estão a ganhar. Contra nós vão ter26de jogar com o Sokota, que é a opção de Camacho quando estão a perder…»”(Mourinho in Lourenço 2004: 147-8).O facto é que o FC Porto chegou à Luz e ganhou o encontro por 1-0. Camacho, o treinadorbenfiquista, foi mesmo obrigado a colocar Sokota em campo.1.2.10. AnáliseNada no seu trabalho José Mourinho quer deixar ao acaso. Mourinho não parte para umjogo sem conhecer ao pormenor o adversário. Saber os terrenos que pisa é essencial aobom desempenho do seu grupo. Na final da Liga dos Campeões, contra o Mónaco, naAlemanha, em 2004, a análise do adversário foi mais longe que nunca.“Na preparação do jogo começámos pelo visionamento de muitos jogos efectuadospelo nosso adversário. Eu já sabia tudo sobre o Mónaco mas queria que os meusjogadores também soubessem e sobretudo que eles vissem com os próprios olhos (…).

Para além destas informações globais, fizemos algo que nunca tínhamos feito. Cadajogador ficou com um DVD individualizado para ver e analisar. A título de exemplodei ao Paulo Ferreira um DVD com todas as acções individuais e colectivas doRothen, que era o «ala» do Mónaco que iria jogar «em cima» dele. Os centrais tinhaminformações sobre o Morientes e o Prso. Enfim, cada jogador tinha o seu DVD paraestudar. Depois discutimos em conjunto a informação individual de cada um. Foi destaforma que ficámos a conhecer o Mónaco e considero que a equipa francesa não tinhasegredos para nós” (Mourinho in Lourenço 2004: 221).O FC Porto venceu a final da Liga dos Campeões por 3-0.1.2.11. ValoresMourinho tem regras, assentes em valores, permanentemente definidas. Um dos seusexercícios, quase diário, é não deixar que essas regras – e por consequência, os valores nosquais elas assentam – resvalem por caminhos que poderão desviar o grupo dos objectivospretendidos.27No final da época de 2002/2003, depois da equipa do FC Porto ter ganho tudo, ou seja, aLiga portuguesa, a Taça de Portugal e a Taça UEFA, José Mourinho temeu uma mudançade atitude por parte dos seus jogadores:“[A]pós o sucesso da primeira época, em que ganhámos tudo o que havia para ganhar,tive «medo» da segunda [época]. Tive «medo» relativamente à abordagem da épocapor parte dos jogadores, sobretudo a nível mental, psicológico, ao nível da motivação,do comportamento, do crescimento no bom ou mau caminho, no estatuto de algunsjogadores. (…) Não era com medo que se deitassem mais tarde ou que bebessem maiscopos, era dentro do próprio jogo. (…) Então decidi que aquela disciplina que noscaracterizava na primeira época, dentro daquele padrão de jogo, não se podia perder eque o rigor táctico devia aumentar. (…) Assim, aproveitei o seu maior rigor em termosde disciplina táctica, em termos de posições e de funções, para trabalhar muito mais àvolta do 1x4x4x22. Porque esta estrutura, da forma como eu a concebo, é muito maistáctica que o 1x4x3x33. Muito mais táctica! (…) É um sistema à partidadesequilibrador (…) é um sistema que tem coisas más. E, ao obrigar os meusjogadores a jogar neste sistema táctico, «obrigo-os» a ser naturalmente disciplinados,rigorosos e concentrados” (Mourinho in Oliveira et al 2006: 177-8).E de seguida – para melhor se compreender o raciocínio do treinador – Mourinho concluiu:“ [A]cho que quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir àprocura dos aspectos disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antespelo rigor táctico, pela procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que euconsigo uma disciplina global. Lá está, a partir da minha ideia de jogo e da suaoperacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todasas minhas preocupações (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).Nessa temporada, com um modelo de jogo mais rigoroso, mais difícil e de menorqualidade (pelo menos na opinião de José Mourinho), o FC Porto conquistou a Ligaportuguesa e a Liga dos Campeões Europeus.2 Esquema táctico utilizado no futebol que traduz a disposição dos jogadores dentro do campo. No caso aequipa joga com o guarda-redes, 4 defesas, 4 médios e 2 avançados.3 Aqui a equipa joga estruturada com o guarda-redes, 4 defesas, 3 médios e 3 avançados.281.2.12. ComprometimentoA temporada de 2001/2002 trouxe a José Mourinho uma realidade nova. Pela primeira vezna sua carreira escolheu e preparou, de início, uma equipa. Foi ela, justamente, a União deLeiria. Desconhecendo quase por completo a maioria dos seus jogadores tentou, logo nafase inicial, criar empatia com o seu grupo e ao mesmo tempo motivá-lo. Para atingir osseus fins comprometeu-se, deixando claro que a sua motivação era elevada: “Não tenhodúvidas que mais tarde ou mais cedo eu vou para um «grande». Quando eu for, alguns devocês vêm comigo” (Mourinho in Lourenço 2004: 86). Ficou a promessa e também aesperança que a todos atingiu, porque a qualquer um poderia tocar.“Nunca especifiquei quem ia comigo porque dependeria sempre do clube para onde eu

fosse. Sabia, por exemplo, que o Benfica precisava de um defesa esquerdo e, portanto,o Nuno Valente estava certo que iria comigo. O Benfica precisava igualmente de umextremo e o Maciel também sabia que se eu fosse para a Luz ele iria comigo, enfim,eles sabiam que mais tarde iriam comigo. Esta situação constituiu um factor demotivação para os jogadores e, ao mesmo tempo, criou uma certa cumplicidade entrenós. Do tipo «vocês ajudam-me a chegar lá que eu depois levarei alguns de vós». Foidesta forma que eu me comprometi perante o grupo. Assim mesmo…” (Mourinho inLourenço 2004: 86-7).Alguns meses depois Mourinho saiu da União de Leiria para ir treinar um «grande», o FCPorto. No final da época contratou dois jogadores do seu anterior clube: Nuno Valente eDerlei. Mais tarde foi a vez de Maciel seguir os passos dos seus companheiros.1.2.13. WorkahoolicJosé Mourinho só “desliga” do trabalho quando está em férias. Durante um mês – em todoo ano – não se pensa nem se fala sobre futebol. Sai de férias, desliga o telefone e ficainacessível. No que toca aos restantes onze meses do ano, José Mourinho só vive para asua profissão e só não pensa nela quando dorme... A este respeito, é ilustrativo umcomentário da sua mulher:“Mesmo em casa ele está sempre a falar ou a pensar no futebol. O jogo nunca lhe saida cabeça. Depois dos jogos, nas Antas vamos geralmente os dois jantar fora. Noinício do jantar começa por me perguntar como foi o meu dia e o dia dos filhos. A29meio do jantar já está a falar de futebol e na sobremesa pega num pedaço de papel ecomeça a fazer a equipa e a escrever a táctica para o jogo seguinte. Ele é assim e nãohá «volta» a dar-lhe. Vai ser sempre assim…” (Matilde Mourinho in Lourenço 2004:166-7).1.2.14. EmpatiaO mundo do futebol é um mundo de crenças e superstições. Se a crença é positiva omesmo já não se poderá dizer da superstição. José Mourinho não é – e não se cansa de orepetir – supersticioso. Diz mesmo que a superstição é prejudicial ao ambiente de trabalhoe, por consequência, ao desempenho do grupo. Ao combatê-la não só tenta resolver oproblema em si como pretende ir mais longe. No caso concreto que a seguir se descreve,José Mourinho criou novas e mais fortes empatias, especialmente com as vítimas dasuperstição...“Tínhamos, então, o embate FC Porto – Denislizpor para fazer esquecer o Funchal4.Mas outro desafio esperava o grupo. Vencer Silvino5, o «pé frio»6. Tratou-se de maisuma «provocação» de José Mourinho, tal era a confiança na recuperação da equipa enum resultado positivo contra a equipa turca. Normalmente Silvino Louro não vai parao banco a não ser nas competições europeias onde é permitida a presença de mais umelemento técnico. Assim, Silvino acompanhou muito poucas vezes José Mourinho nobanco, sendo que, nas duas últimas que o tinha feito – com o Sparta de Praga para aLiga dos Campeões, em 2001/02 e com o Polónia Varsóvia para a Taça UEFA, já natemporada 2002/03 – a equipa perdeu sempre. Silvino ficou logo com a alcunha de«pé frio» e dela custou a livrar-se. No dia antes do jogo o treinador do FC Porto fez oanúncio: Silvino vai estar no banco a meu lado. Logo algumas «almas mais tementes»começaram a «assobiar para o ar», desconfiadas e assustadas com a reacção que osdeuses do infortúnio poderiam provocar dada a presença do treinador de guarda-redesdo FC Porto no banco. José Mourinho sorriu e manteve-se firme na sua posição: tenhotanta certeza que vou ganhar amanhã que o «pé frio» vai para o banco. O próprioSilvino mostrou-se assustado com a situação, até por saber que existiam pessoas4 O jogo do Funchal, com o Marítimo, tinha constituído a primeira derrota da época 2002/2003 de JoséMourinho no FC Porto. Quatro dias depois jogaria com a equipa turca do Denislizpor, em jogo referente àprimeira-mão dos oitavos-de-final da Taça UEFA.5 Treinador de guarda-redes do FC Porto na equipa técnica comandada por José Mourinho.6 Na gíria futebolística significa “azarado”.30«desagradadas» com a ideia. José Mourinho manteve-se inabalável na decisão.

«Ganhámos por 6-1 e o pé frio, a cada golo que marcávamos, dava-me toques nobraço e fazia um sorriso sarcástico como que a dizer: vá, agora sempre quero ver quemé que vai ter coragem de me continuar a chamar pé frio». E a alcunha de Silvino ficoupor aí” (Lourenço 2004: 145-6).Silvino Louro mantém-se na equipa técnica de José Mourinho no Chelsea FC.1.2.15. EnvolvimentoA época de 2003/2004 ficou marcada, logo em Outubro, por uma grave lesão de umjogador recém-chegado às Antas. Tratou-se de César Peixoto que, em França, frente aoOlympique de Marselha havia contraído a pior lesão que se pode ter enquanto jogadorprofissional de futebol7. A única saída, nestes casos, é a sala de operações. Pelaimportância do processo, pela união do grupo e – talvez acima de tudo – pelo “homem”,José Mourinho tomou uma atitude inédita na sua vida. Vestiu a bata de médico e foi para asala de operações.“Enchi-me de coragem e estive presente. Achei que, tendo essa oportunidade, eraimportante para mim e para o César Peixoto estar presente. Pela minha parte, paraperceber o conteúdo da operação e para poder ter uma acção mais activa narecuperação. Pela parte do César, porque julgo que é importante para um jogador saberque tem a seu lado, numa altura muito difícil da sua vida, o treinador. No fundo estarali significava dizer-lhe: «cura-te que estamos à tua espera». (…) Esta intervençãocirúrgica fez-me entender a dimensão daquele tipo de lesão e ao mesmo tempo acaboupor condicionar algumas das minhas atitudes futuras. Percebi que a pressão que ostreinadores sempre fazem, quer aos jogadores quer aos departamentos médicos dosclubes, para acelerar as recuperações, afinal, na maior parte das vezes, não faz sentido.A partir daquele momento passei a ser mais condescendente com as queixas dosjogadores e com as preocupações dos médicos” (Mourinho in Lourenço 2004: 197).Infelizmente, poucos meses depois e pelo mesmo motivo, Mourinho voltaria à sala deoperações. Desta vez com Derlei8.7 César Peixoto fez uma ruptura do ligamento cruzado anterior da perna esquerda. Em média este tipo delesão demora entre 6 a 8 meses a debelar o que equivale ao jogador não jogar mais na temporada.8 Avançado do FC Porto na altura.311.2.16. HumorPode a sua aparência pública sugerir o contrário, mas para quem o conhece bem, como afamília e os amigos mais chegados, não existem dúvidas de que José Mourinho é umhomem com sentido de humor. Esta sua faceta é espelhada em vários campos da sua vida.O CD editado no final de 2005, no qual um artista irlandês imita José Mourinho a falar nobalneário aos seus jogadores, terminando com o treinador do Chelsea a cantar, é disso umaboa prova. José Mourinho não só afirmou publicamente ter gostado do trabalho como fezquestão de conhecer pessoalmente o seu autor para lhe dar os parabéns.Também no seu grupo José Mourinho aprecia a boa disposição. No final de um encontroentre a União de Leiria e o Benfica, estando Mourinho ao serviço do clube da cidade doLiz, o seu adjunto Baltemar Brito foi motivo de muitos risos na viagem de regresso aLeiria. Mourinho fez questão de contar o episódio na sua biografia:“No parque automóvel os autocarros dos dois clubes estavam estacionados lado a lado.Como têm as mesmas cores prestavam-se a confusões. O Brito foi o primeiro a sairdos balneários e entrou no autocarro que estava mais à mão. Sentou-se logo no lugardo Jesualdo Ferreira9 e não se fez rogado quanto aos lanches que estavam em cima dosassentos. Começou a comer o lanche que, por acaso, até devia ser o de JesualdoFerreira quando, de repente, começa a ver entrar a malta do Benfica. Só teve tempo debaixar a cabeça, pensar «grande barraca» e abandonar o autocarro em passo acelerado.É evidente que viemos a rir e a brincar com o Brito de Torres10 até à chegada a Leiria.Uma das frases era: «Já queres vir nesse autocarro, é?!! Tem calma Brito, não podesdar tanto nas vistas»” (Mourinho in Lourenço 2004: 87).Alguns meses depois Baltemar Brito e José Mourinho entrariam num outro autocarro paranele viajar durante dois anos e meio. O autocarro azul e branco do FC Porto.

Neste capítulo procurámos caracterizar e enquadrar o trabalho de José Mourinho, bemcomo traçar em termos gerais, consensualmente aceites, a imagem pública do actualtreinador do Chelsea.9 Ao tempo Jesualdo Ferreira era o treinador principal do Benfica.10 Na época de 2001/2002 a União de Leiria realizou os jogos em casa emprestada, em Torres Novas, devidoao facto de estar a construir um novo estádio em Leiria.32

CAPÍTULO 2SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE33Em bom rigor não podemos determinar com exactidão quando começou esta investigação.O autor desta dissertação conhece José Mourinho desde a infância, é o seu biógrafo oficiale tem um profundo conhecimento da sua maneira de ser e de pensar. Daqui resulta que àpartida para esta investigação já conhecíamos, de alguma forma, alguns dos fundamentosteóricos em que assentava o trabalho de Mourinho. De resto, Manuel Sérgio, seu antigoprofessor e um dos teóricos que mais influenciou Mourinho no caminho profissional por siseguido, em conversas prévias, já nos havia alertado para a perspectiva de trabalho quedecidimos adoptar nesta dissertação. Desta forma, de um ponto de vista epistemológico emetodológico, o principal desafio que nos surgiu passou pelo enquadramento do estudo dotrabalho de José Mourinho na perspectiva da complexidade. Em suma, são duas as razõesque justificam o percurso escolhido e desenvolvido nesta dissertação: (i) a perspectiva dacomplexidade, nomeadamente no que respeita à sua aplicação na motricidade humana(Sérgio 2003, 2004), é o ponto de partida do trabalho desenvolvido por José Mourinho; e(ii) a nossa intuição, que se foi tornado cada vez mais forte nestes últimos anos, de que aperspectiva da complexidade seria a melhor forma para explicar o trabalho e o sucesso deJosé Mourinho.2.1. Para um Novo Paradigma do Conhecimento: ComplexidadeSão vários os pensadores contemporâneos que defendem podermos estar – no final do séc.XX e início do séc. XXI – perante e emergência de um novo paradigma científico: acomplexidade ou, se quisermos, o pensamento complexo.O pensamento científico que dominou o séc. XX – e que encontra no séc. XVII, comDescartes, o seu fundamento – assenta em bases reducionistas, ou seja, num esquema depensamento que preconiza a separação e a divisão das partes para, a partir do entendimentodetalhado destas e da sua posterior junção, tentar explicar o todo. Edgar Morin (1921- ),pensador contemporâneo cuja tese sobre pensamento complexo servirá de perspectiva defundo a esta investigação, chamou àquele modelo de pensamento o paradigma dasimplicidade. Para Morin este paradigma é sustentado por três princípios: disjunção,redução e abstracção.No que à disjunção diz respeito, Descartes fez a separação entre o sujeito pensante (egocogitans) e a coisa extensa (res extensa) e ao fazê-lo formulou o paradigma que iria34dominar o pensamento europeu até aos nossos dias: o modelo sujeito/objecto. Desteraciocínio resultou a diferenciação entre filosofia e ciência. A partir de então ficou clara aexistência de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das coisas, sendo que ambos nãose tocariam e só aparentemente se poderiam complementar. É neste contexto que Morinsugere a disjunção entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Embora estepensamento modelo tenha permitido grandes avanços, não só do conhecimento científicocomo da reflexão filosófica, desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin não o isenta degraves deficiências:“[U]ma tal disjunção, rareando as comunicações entre o conhecimento científico e areflexão filosófica, devia finalmente privar a ciência de se conhecer, de se reflectir emesmo de se conceber a si própria cientificamente. Mais ainda, o princípio dadisjunção isolou radicalmente uns dos outros os três grandes campos do conhecimentocientífico: a física, a biologia, a ciência do homem” (Morin 2003: 17).

É desta forma que enquadramos a redução que decorre do trajecto inevitável do complexopara o simples. Ao dividir, ou separar, o conhecimento científico retalhou o “tecidocomplexo das realidades” ao mesmo tempo que se tentava, como ideal do conhecimentocientífico “descobrir, por detrás da complexidade aparente dos fenómenos, uma ordemperfeita legislando uma máquina perpétua (o cosmos), ela própria feita dos microelementos(os átomos) reunidos diferentemente em objectos e sistemas” (Morin 2003: 17). Ora, estetipo de conhecimento científico encontrava, desta forma, o seu fundamento de rigor eoperacionalidade na medida e no cálculo. Só que para Morin, entre outros pensadores,como por exemplo Martin Heidegger (1889-1976), Prigogine (1917-2003) e Merleau-Ponty (1907-1961), a matematização e a sua operacionalização separam os seres e ascoisas, descontextualizam-nos do todo que é o mundo, a realidade vivida e experimentada,para apenas considerarem como realidades inteligíveis e explicáveis as fórmulas e asequações que regem as partes que se podem quantificar. Mais, só o quantificável e omensurável pode desta forma ser conhecido. Heidegger comentou, com alguma ironia, quea matematização do ser vivo o permite conhecer em todo o detalhe, excepto precisamentecomo ser vivo (Heidegger 1977). Sob esta perspectiva, Morin considera que “opensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo: ouainda unifica abstractamente ao anular a diversidade” (Morin 2003: 17-8).35Com a conjugação destes dois princípios Morin chega ao terceiro princípio do paradigmada simplicidade: a abstracção. Neste ponto do seu pensamento, Morin conclui que este é ocaminho percorrido até ao ponto em que apelidou de “inteligência cega”, o beco sem saídado paradigma da simplicidade. A partir daqui são muitas as críticas. Ao considerar que ométodo desintegra a realidade e cria fendas entre as disciplinas do saber, este autor alertapara os riscos da perigosa viragem do conhecimento, cada vez menos disponível para areflexão e discussão dos homens e crescentemente modelado para “ser incorporado nasmemórias informacionais e manipuladas pelos poderes anónimos, nomeadamente osestados” (Morin 2003: 18).Para Morin é no séc. XX que a necessidade de viragem do pensamento científico se colocamais acentuadamente. Reconhecendo os enormes progressos do conhecimento científico eda reflexão filosófica desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin acentua que “as suasconsequências nocivas últimas só começam a revelar-se no século XX” (Morin 2003: 17).Morin insiste nesta ideia por diversos motivos, entre os quais, e talvez o mais forte, o factode o “velho” pensamento se ter fechado sobre si próprio, ao mesmo tempo que ignorouquase por completo as novas realidades emergentes no século XX, desde logo com o surgirda mecânica quântica, que abalou profundamente os alicerces da ciência, porque fez comque as chamadas ciências exactas deixassem de ser... exactas. O princípio da incerteza,enunciado por Werner Heisenberg (1901-1976), refere precisamente que ao nível dos maispequenos elementos constitutivos da matéria, a observação muda o fenómeno observado, eque, por isso, o conhecimento humano nunca pode ser ‘exacto’; o princípio referenomeadamente que o observador só pode conhecer ou a posição ou a velocidade de umelemento, nunca as duas simultaneamente. Também a teoria da relatividade de Einstein(1879-1955) havia revolucionado a física newtoniana, unindo o espaço e o tempo numanova dimensão a que chamou espaço-tempo. Mais recentemente o projecto desequênciação do genoma humano ilustrou de uma forma particularmente interessante,como adiante descreveremos, os limites do reducionismo positivista para o estudo danatureza humana.A estes exemplos deve ainda acrescentar-se o contínuo testemunho da imprevisibilidade daacção humana. No século XX, desde o eclodir da II Guerra Mundial no berço dacivilização ocidental, à queda do Muro de Berlim, à implosão da URSS, a Chernobyl e ao36novo terrorismo global, são vários os exemplos da imensidão de eventos que escapam àsrelações simplificadoras de causa-efeito.

As novas realidades, de que os casos acima referidos são exemplo, provocaram cortes ecisões nos modelos reducionistas existentes. Persistiu-se assim no erro decorrente dacegueira, tal como lhe chamou Morin. O pensamento e, por consequência, as ciências,separadas e estanques deixaram de conseguir dar respostas às muitas perguntas novas quese colocam cada vez com maior intensidade. Não custa, pois, aceitar que Morin fale não sóna necessidade de um novo pensamento filosófico, como também, na necessidade de umnovo paradigma de conhecimento científico. Morin propõe, então, a complexidade comoresposta às novas necessidades porque ao reduzir o todo às partes para a partir daí tentarexplicar o todo, será o mesmo que aplicar a lógica mecânica aos problemas do ser vivo eda vida social.Numa outra linha de investigação, o etnólogo Marcel Mauss (1872-1950), afirmou na suaobra Essai de Sociologie, publicada em 1971, que “é preciso recompor o todo”. É nestarecomposição do todo que assenta a necessidade de um novo paradigma do pensamento.Uma nova lógica que, sem romper com a anterior, esteja aberta a mais possibilidades,porque o universo não parece ser a perfeita máquina determinista que os modelosdecorrentes do “cogito, ergo sum” – penso, logo existo – pressupunham.Entramos assim no pensamento complexo, na lógica do “todo que está na parte que está notodo”, ou seja, entramos num sistema de pensamento em que a abordagem não é feita defora para dentro mas sim sempre dentro do sistema e a parte só é separada enquantoelemento do todo, nunca saindo nem se isolando dele, apenas servindo para o compreenderporque dele é parte integrante. É, então, uma lógica em que compreender as partessignifica também compreender o todo, mas compreender o todo, por si só, tambémsignifica compreender as partes, porque desintegrar um qualquer elemento significadescontextualizar não só as partes como igualmente o próprio todo o que, nesta perspectivacomplexa não faria qualquer sentido já que renegaria a sua lógica intrínseca de percepçãointerrelacional, interactiva e interdependente dos elementos de uma qualquer realidade. Opensamento complexo, ou a contribuição de Morin para um possível paradigma dacomplexidade, desafia-nos, pois, a ver a árvore-e-a-floresta. É desta forma que entramos,segundo Morin, numa “considerável revolução”.37No paradigma da simplicidade “as falhas, as fendas multiplicam-se”, no entanto, trata-sede uma modelo matriz que não será abandonado. Decorrente do paradigma prevalecente ametodologia científica é reducionista e quantitativa.“Reducionista, uma vez que era preciso chegar às unidades complementares nãodecomponíveis, as únicas que podiam ser cercadas, clara e distintivamente; equantitativista, uma vez que estas unidades discretas podiam servir de base a todas ascomputações” (Morin 2003: 80).Com um controlo rígido assente nos princípios enunciados, pode entender-se que a lógicado pensamento ocidental tem exercido uma acção apertada, ou guiada se quisermos, doprogresso do pensamento, no entanto, limitado no seu próprio método, que é fechado e nãoaberto a um desenvolvimento fora dos seus limites. Como conclui Edgar Morin, “[a]imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sidopossível, só entravam na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eramsempre epistemologicamente condenáveis” (Morin 2003: 81). De resto, e também sobre anecessidade de um novo pensamento que faça face às insuficiências do paradigma reinante,já o filosofo e historiador da ciência, Thomas Kuhn (1922-1996), no seu ensaio TheStructure of Scientific Revolutions (Kuhn 1996), publicado em 1962, defende que os novosconceitos têm a capacidade de nos sugerir uma nova maneira de ver o mundo, portanto,não mais se devendo encarar a verdade científica como a única verdade, podendo edevendo esta ser plural.2.2. Genoma Humano e ComplexidadeO projecto de investigação científica de mapeamento do genoma humano,consensualmente aceite como um dos mais avançados empreendimentos da ciência

contemporânea, ilustra de uma forma interessante os limites dos métodos reducionistasbem como os desafios que se colocam a uma investigação conduzida sob a perspectiva dacomplexidade.Desta forma, podemos começar por colocar a pergunta: o que é o homem? A pergunta ésecular e aparentemente, com o projecto do genoma humano, estaríamos à beira deconhecer a resposta. O projecto do genoma tentou dar-nos esta resposta e como estamos afalar do mais evoluído e ousado cruzamento da ciência com a tecnologia, fundaram-se38esperanças de que aquela pudesse de facto ser obtida. Inspirado fundamentalmente noparadigma cartesiano, que divide e separa para compreender o todo, o projecto dividiu ohomem na menor divisão que a ciência actual pode conseguir: o gene. Assim, com ohomem geneticamente dividido – isolado e descontextualizado – e depois de sequenciadoencontrou-se uma – não a – resposta: afinal somos, entre nós humanos, geneticamenteiguais em mais de 99,9 por cento. E que dizer de outra conclusão: somos praticamenteiguais a um rato, com uma diferença genética de apenas 1 por cento e só depois vem anossa igualdade ao macaco, com uma diferença de 2 por cento. Somos, então, todospraticamente iguais? Deixemos as partes e olhemos o todo: até um animal nos diferencia.O que significa, assim, o projecto do genoma? Significa, tão só, que o que é idêntico é anossa sequência genética, não nós mesmos, os indivíduos em si.“O que tudo isto quer dizer é que os genes, só por si, com os seus tipos e a suaquantidade, não são explicação cabal para modo de ser nenhum. Por outras palavras,simplificando e banalizando, o que foi descoberto é que os genes são como que afotografia do ser humano, só que este ser humano, na sua essência, não é umafotografia, mas um filme” (Ilharco 2004: 27).O filme é, afinal, a sequênciação lógica e natural de um determinado número defotografias, logo, o genoma, como fotografia de um filme que é o homem, é apenas umapequena parte da explicação de um filme cujo final ainda não é conhecido.Daqui decorre que a resposta ao “quem somos” ou “o que somos” não pode ser encontrada,apenas, na nossa composição química, biológica, ou genética, em suma, na matéria. Nopaper de Venter et al (2001) refere-se que a quantidade modesta de genes humanos – oarroz tem quase o dobro dos nossos genes… – significa que para descobrirmos osmecanismos que geram as complexidades inerentes ao desenvolvimento humano e ossofisticados sistemas que mantêm a homeostase temos de procurar noutro lugar; ora ooutro lugar é a perspectiva da complexidade, aliás, como os próprios cientistas o admitem:“We will soon be in a position to move away from the cataloging of individualcomponents of the system, and beyond the simplistic notions of «this binds to that,which then docks on this, and then the complex moves there…» to the exciting area ofnetwork perturbations, nonlinear responses and thresholds, and their pivotal role inhuman diseases. The enumeration of the «parts lists» reveals that in organisms withcomplex nervous systems, neither gene number, neuron number of cell types39correlates in any meaningful manner with even simplistic measures of structural orbehavioural complexity” (Venter et al 2001: 1347).Daí que os autores concluam que existem falácias no modelo de pensamento cartesianoque nos impedem de pelas partes chegar ao todo, logo, o gene só por si nunca dará respostaà pergunta “quem somos?”“There are two fallacies to be avoided: determinism, the idea that all characteristics ofthe person are “hard-wired” by the genome; and reductionism, the view that withcomplete knowledge of the human genome sequence, it is only a matter of time beforeour understanding of gene functions and interactions will provide a complete causaldescription of human variability. The real challenge of human biology, beyond thetask of finding out how genes orchestrate the construction and maintenance of themiraculous mechanism of our bodies, will lie ahead as we seek to explain how ourminds have come to organize thoughts sufficiently well to investigate our ownexistence” (Venter et al 2001: 1348).

Entende-se assim a dúvida que, afinal e contra todas as perspectivas, o projecto genomaveio desfazer: não é pelas partes que conseguiremos entender o homem. A resposta está notodo. Aliás, como Manuel Sérgio nos referiu, citando Hegel, “a verdade é o todo”.2.3. Dois Paradigmas: Reducionismo e ComplexidadeTraçada que está, em termos gerais e em especial na visão de Edgar Morin, a emergênciade um novo paradigma de pensamento passamos ao enunciar do que podemos chamar oscontornos de cada um dos paradigmas, uma vez que deixámos implícito que o surgir de umnovo modelo matriz não requer a implosão do outro que existia previamente. Pelocontrário, a sua coexistência e interacção darão sentido aos dois modelos fundamentais depensamento filosófico e científico. Afinal, esta posição decorre directamente da tese de que“o todo está na parte que está no todo”.Paradigma é sinónimo de modelo, neste caso, de modelo matriz ou de modelo estrutura.No entanto, a própria noção de paradigma tem conhecido desenvolvimentos ouaperfeiçoamentos ao longo dos tempos. Para Khun (1996), paradigma é a ferramentateórica e o conjunto dos procedimentos e leis que constituem a raiz que orienta toda ainvestigação em dada altura e contexto histórico. Daí que a história da ciência nos ensine40que cada vez que muda um paradigma seja o próprio mundo a mudar. Ao mudar o mundomudam, necessariamente, os homens e neles a sua forma de olhar, de interpretar e deexperimentar o mundo e as coisas. É desta forma que Khun considera que o maisimportante é justamente esse olhar, uma vez que enquanto se opera a revolução das ideiasque leva ao novo paradigma, os cientistas vêem novas e diferentes coisas quando olham osvelhos e mesmos objectos, ou, dito por outras palavras, será o mesmo que nostransportarmos subitamente para um outro planeta, com as mesmas coisas com que semprelidámos mas que se tornam elas mesmas diferentes aos nossos olhos já que passam a serobservadas num contexto completamente diferente: “[w]hat were ducks in the scientist’sworld before the revolution are rabbits afterwards” (Khun 1996: 111).Para Morin (2003) um paradigma é uma relação lógica extremamente fecunda e poderosaque se situa entre noções mestras, noções chave e princípios chave. Ora é justamente afecundidade dessa relação lógica que faz com que, numa mudança de paradigma, tudomude numa sociedade. Assim, no entender de Morin, aquilo que afecta um paradigma, quese traduz na pedra angular de todo o sistema de pensamento, acaba por afectar, invariável esimultaneamente, a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica e por simpatia, aprática, a política, a sociedade. Numa perspectiva de integração podemos, então, falar emparadigma como o mundo das ideias onde uma trave mestra condiciona e conduz de formafecunda não só o pensamento como o próprio método científico. Mudar essa trave mestra émudar o próprio edifício no qual habita toda uma civilização enquanto passado, presente efuturo. Ao fazê-lo, é essencialmente o passado que se questiona e o futuro que se repensaporque a nossa visão mudou radicalmente. Afinal, tudo o que já vimos não é exactamente oque já vimos mas o que julgámos ter visto. O passado não foi o que foi e o futuro seráoutro.É importante, no entanto, realçar que quando falamos em complexidade não é pacifico queestejamos a falar num paradigma da complexidade. O próprio Edgar Morin formula oproblema ao afirmar:“[N]ão se pode tirar, eu não posso tirar, nem pretendo tirar do meu bolso umparadigma de complexidade. Um paradigma, se tiver de ser formulado por alguém,por Descartes por exemplo, é no fundo, o produto de todo um desenvolvimentocultural, histórico e civilizacional. O paradigma da complexidade surgirá do conjuntode novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que41vão conciliar-se e juntar-se. Estamos numa batalha incerta e não sabemos ainda quema ganhará” (Morin 2003: 112).Morin trabalha, assim, para o desenvolvimento de um paradigma que pode não existir

enquanto tal, mas sim que poderá estar a construir-se e que poderá vir a ser, finalmente,reconhecido como o paradigma da complexidade. “De este modo, su obra abre caminos,inicia y vislumbra recorridos. Es equivocado buscar en él pensamiento consolidado. Morinarticula caminos posibles, pero aún poco transitados, que parecían imposibles.” (Moreno inVelilla 2002:21). Já na década de 80 o biólogo e filósofo Francisco Varela (1946-2001)arriscou o prognóstico de o pensamento complexo evoluir para paradigma. É essa aconclusão que poderemos extrair das suas palavras.“Acredito convictamente que existe uma grande mudança ou uma tendência para amudança na nossa sensibilidade contemporânea e na epistemologia científica, nosentido de estarmos cada vez mais interessados numa epistemologia que não vê omundo como uma fotografia, mas que se ocupa de criar o mundo (laying down of aworld) onde o sujeito e o objecto emirjam por mútua especificação” (Varela inMagalhães 2005: 57).Magalhães (2005) defende que esta mudança já está em curso e que se chamacomplexidade. Afirma que a revolução está a acontecer de uma forma abrangente e que asua operacionalização já é visível em vários campos da ciência, nomeadamente, na gestãoe organização de empresas.Não é, pois, pacífica a questão da complexidade enquanto paradigma, embora muitosautores já a enquadrem como tal. De qualquer forma, seja qual for a terminologia queadoptemos – problema, questão, perspectiva, aproximação, corrente, paradigma, entreoutras – parece claro que o conceito e as ideias que encerra estão em fase dedesenvolvimento e maturação, sendo que só talvez o tempo, entendido este como odesenvolvimento cumulativo da acção humana, nos dirá de que forma se contextualizará acomplexidade no mundo das ciências.No que respeita ao paradigma do positivismo reducionista a que Morin chamou dasimplicidade, ele atravessou a história do pensamento ocidental desde o séc. XVII até aosnossos dias. Descartes deu-lhe o impulso primário, ao separar, no homem, corpo e mente.Da evolução do “cogito, ergo sum” nasceu aquilo a que se convencionou chamar o“método científico”. Aquela afirmação, porventura a mais famosa da história da ciência,42surgiu pela primeira vez na quarta secção de O Discurso do Método, em 1637, e sugerenosa ideia de que só no pensar se encontra o fundamento do existir ou, se quisermos,através da instrumentalização da matéria existimos em separado enquanto corpo e mente.Com esta premissa entendemos em Descartes a lógica que separa a res cogitans (coisapensante) da res extensa (coisa material). Esta última advém e só pode existir e tersubstância na primeira. Ora, foi justamente nesta divisão primeira, mente/corpo, que sefundou e desenvolveu o moderno método científico. A divisão, a separação, a hierarquiasão noções mestras de um pensamento operacionalizado em método que atravessou osquatro últimos séculos da história ocidental. Deste método resultou, então, a separaçãoclara do domínio do humano, enquanto reflexão sobre a sua natureza e fim – entregue àfilosofia – e do domínio da matéria, e/ou corpo – entregue ao conhecimento científico.Filosofia e ciência seguiram, desta forma, caminhos diferentes e separados e ao fazê-lodificilmente poderiam socorrer-se uma da outra, interagir e cooperar, logo, fechar-se-iamsobre si mesmas. Em resultado disto mesmo, entende-se o paradigma da simplicidade e oseu objectivo: o seu princípio “quer separa o que está ligado (disjunção), quer unifica o queestá disperso (redução)” (Morin 2003: 86). Tomando o homem como referência, Morindeixa-nos um exemplo ilustrativo:“O homem é um ser evidentemente biológico. É ao mesmo tempo um serevidentemente cultural, metabiológico e que vive num universo de linguagem, deideias e de consciência. Ora estas duas realidades, a realidade biológica e a realidadecultural, o paradigma da simplificação obriga-nos quer a separá-los quer a reduzir amais complexa à menos complexa. Vai portanto estudar-se o homem biológico nodepartamento de biologia, como um ser anatómico, fisiológico, etc., e vai estudar-se ohomem nos departamentos das ciências humanas e sociais. Vai estudar-se o cérebro

como órgão biológico e vai estudar-se o espírito, the mind, como uma função ourealidade psicológica. Esquece-se que um não existe sem o outro; ou melhor que um ésimultaneamente o outro, embora sejam tratados por termos e conceitos diferentes”(Morin 2003: 86).Com este exemplo, onde o homem nos surge como uma realidade diversamente ordenada,podemos indicar uma das grandes insuficiências do pensamento reducionista: ele nãoaceita a desordem. Ao invés, segue o caminho da ordem esquecendo-se que a desordem fazparte do universo, desde logo porque só face a um contexto de desordem podemosentender a ordem e vice-versa. Basta lembrarmo-nos de Boltzman, citado em Morin43(2003), que nos veio dizer que aquilo a que chamamos calor não é mais do que a agitaçãoem desordem de moléculas ou átomos. A simplicidade vê o uno e o múltiplo mas torna-seincapaz de compreender que o uno pode ser também no mesmo momento múltiplo. Asimplicidade separa e reduz o complexo ao menos complexo possível.Esta breve exposição sobre o paradigma da simplicidade é, pois, fundamental paraentendermos a aproximação da complexidade. Desde logo porque aquela lhe é anterior;depois, porque se partirmos do princípio que os dois paradigmas se podem complementar eportanto formar um todo múltiplo, não faria sentido tentar perceber o todo semconhecermos também as partes enquanto componentes desse mesmo todo. Daí que Morintenha afirmado não ser “preciso acreditar que a questão da complexidade se ponha apenasa partir dos novos desenvolvimentos científicos” (Morin 2003: 83), concluindo quedevemos tentar descortinar a complexidade onde ela, em geral, está pouco exposta ou atéausente como, por exemplo, na vida quotidiana.A complexidade pode, por isso, bem ser a “segunda metamorfose da ciência”, sendo que aprimeira terá sido precisamente o modelo cartesiano sujeito-objecto. Esta ideia deFrancisco Guedes (1999), no seu livro Economia e Complexidade, sugere-nos que acomplexidade emerge como uma resposta à ineficácia crescente da simplicidade. Oreducionismo e a fragmentação acabam por descontextualizar os fenómenos, tornandoassim impossível explicá-los na sua totalidade e como um todo. Ora, é ao reintegrá-los notodo, ao contextualizá-los no todo, que encontramos a resposta da complexidade. Daí que opensamento complexo encontre parte do seu fundamento na teoria geral dos sistemas, aqual chama decisivamente a atenção para o todo (sistema) em que se inserem as partes(elementos).O pensamento sistémico, tal como o formulou o biólogo Ludwig Von Bertalanffy (1901-1972), propõe-nos a abordagem das diversas realidades em termos de conexões, relações econtextos como contraponto ao pensamento separador ou/e reducionista, ou dito de outraforma, substitui a concepção todo/partes pela relação sistema/elementos. A sua visão ésempre relacional e, como tal, não é possível, em termos sistémicos, pensar numa realidadesem que ela não esteja ligada a outra, logo pensar de forma sistémica é pensar de formarelacional. Daqui passamos para um segundo princípio, o da fecundidade. Ao entrarmosnuma realidade entramos numa complexa teia de relações, interacções e interligações. A44teoria geral dos sistemas proporciona-nos o método de desenvolver o conhecimentoconexo nas suas variadas vertentes e sob os seus mais diversos ângulos, uma vez que por sisó nada acontece descontextualizado.Fica clara, assim, a afirmação anterior na qual se atribui à teoria geral dos sistemas umainfluência decisiva na evolução do pensamento complexo. A sua postura relacional, bemcomo a fecundidade na forma como analisa o real, são prova disso. De resto, ainda dentrodo campo dos sistemas e do seu desenvolvimento, Nicolis e Prigoggine – em particulareste último, físico-químico e filósofo, laureado com o Prémio Nobel da Química em 1977–, vieram dar uma importante contribuição para o debate da complexidade ao fazerem adistinção entre sistemas conservadores e sistemas dissipativos.Sob o prisma dos sistemas conservadores, o universo é visto como um sistema no qual as

diferentes partes coexistem e se interrelacionam, existindo, no entanto, um princípioprimordial de não mudança. Era assim caracterizado o pensamento das ciências físicas atéao séc. XIX, altura em que se chocaram as ciências físicas e as biológicas. Nas ciênciasfísicas, encarava-se a conservação de energia como uma fonte de ordem, ao mesmo tempoque a irreversibilidade e a dissipação não eram mais que degradação. Nas ciênciasbiológicas, por seu lado, o consumo ou a dissipação de energia estavam ligadas à evoluçãoe à complexidade (Magalhães 2005).Com Prigogine, que iniciou os seus estudos no campo da termodinâmica, os sistemasdissipativos, também chamados sistemas “longe-do-equilibrio”, são entendidos comoaqueles sistemas em que a dissipação de energia, na transferência de calor ou na fricção,não faz supor perda ou degradação, mas sim a manutenção da estrutura e, frequentemente,a emergência de uma nova ordem ou de novos padrões de comportamento. Em geral, paraum sistema dissipativo se manter em funcionamento requer-se a infusão constante deenergia. Em termos técnicos, energia corresponde a informação, a organização. Esta noçãofoi desenvolvida pela teoria do caos, área na qual se defende que a ordem e a organizaçãopodem acontecer espontaneamente, a partir da desordem (caos) e através de processos deauto-organização. E assim, segundo estes princípios, na actualidade, o pensamentocientífico vê muitos sistemas físicos como próximos dos biológicos, uma vez que osprimeiros são igualmente sistemas dissipativos. Aqui chegados estamos em condições de45entender Morin quando fala em conjunção complexa (incluindo aqui as noções dedistinção, de conjunção e de implicação) por oposição à disjunção e redução.“Juntai a causa e o efeito, e o efeito voltará sobre a causa, por retroacção, o produtoserá também produtor. Ides distinguir essas noções e ides juntá-las ao mesmo tempo.Ides juntar o Uno e o Múltiplo, ides unir, mas o Uno não se dissolverá no Múltiplo e oMúltiplo fará apesar de tudo parte do Uno” (Morin 2003: 112).Não se pense, contudo, que iremos encontrar nesta corrente as respostas finais de tudo oque procuramos até porque a incerteza é parte integrante da essência da complexidade.Como escreve Moreno “por primera vez en la historia del Occidente, se pueden pensar, porejemplo, el devenir y la incertidumbre, en términos reconocidos como científicos”(Moreno in Velilla 2002: 13). Daí que Morin (2003) nos alerte para o facto de que nãopoderemos confundir complexidade com completude porque não é essa, de facto, aambição do pensamento complexo. O que se pretende é a articulação entre os várioscampos do saber, facto que não acontece no pensamento disjuntivo, uma vez que este isolae separa o que está ligado e interage. É aqui que nos damos conta do pensamento complexoenquanto pensamento multidimensional, sendo, pois, razoável aceitar que a completude doconhecimento será impossível de alcançar. De resto, Morin defende que uma das bases dacomplexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma omnisciência (Morin 2003).No fundo podemos afirmar que Morin não só não defende a completude como vai maislonge ao defender a própria ideia de incompletude. Incompletude no mundo que se estendepara lá do cosmos e incompletude do homem e do seu inalienável direito de sonhar para epor um futuro que, enquanto e sempre incerto, está a todo o momento aberto a novaspossibilidades:“[A] complexidade não compreende apenas quantidades de unidades e interacções quedesafiam as nossas probabilidades de cálculo; compreende também incertezas,indeterminações, fenómenos aleatórios. A complexidade num sentido tem semprecontacto com o acaso. Assim, a complexidade coincide com uma parte de incerteza,quer mantendo-se nos limites do nosso entendimento quer inscrita nos fenómenos.Mas a complexidade não se reduz à incerteza, é a incerteza no seio dos fenómenosricamente organizados” (Morin 2003: 52).Nesta linha importa citar Prigogine que, no seu discurso de abertura no colóquio “Haveráum século XXI?”, promovido pela UNESCO, em Paris, em 1988, a propósito das leis46deterministas fundadas nas “leis da natureza” que caracterizaram a ciência ocidental, se

recusou a aceitar o homem como um autómato em relação ao seu próprio futuro. Na defesada sua tese cita um exemplo dado por Karl Popper (1902-1994) quando este pergunta se opapel da humanidade equivale a uma ida ao cinema onde desconhecemos a vítima edesconhecemos o assassino mas o realizador do filme sabe bem quem é um e quem éoutro, simplesmente porque já tudo está feito, tudo está determinado embora o espectadornão saiba o que foi previamente determinado. Daí a interrogação de Prigogine sobre se onosso papel será simplesmente o de espectadores passivos perante um mundo submetido esubjugado às leis deterministas. Prigogine acredita que não é assim, ao mesmo tempo quedefende que o problema do determinismo não se relaciona apenas com a ciência mastambém com a forma como ela situa o homem na natureza.É nesta negação do automatismo humano que Prigogine introduz o termo bifurcação paradar liberdade ao nosso futuro através das nossas opções. Temos a capacidade de escolherlivremente entre vias de acção distintas, porque o mundo está organizado em estruturas quese reproduzem em pontos de bifurcação.“É aí que a antiga estrutura se torna instável e que as novas estruturas nascem. É onascimento do complexo. (…) Com efeito, as bifurcações mostram que a natureza éimprevisível porque, no ponto da bifurcação, apresentam-se em geral diversaspossibilidades. É então um problema de probabilidade o de determinar qual daspossibilidades se vai realizar. É o fim das certezas e o aparecimento da pluralidade dosfuturos” (Prigogine in Spire 1999: 169-70).Nas conclusões do seu discurso na UNESCO, Prigogine é claro no caminho que pretendeseguir:“Vamos de um mundo de certezas para um mundo de probabilidades. Temos deencontrar a via estreita entre um determinismo alienante e um universo que seriaregido pelo acaso e desde logo inacessível à nossa razão. Chegamos a um conceitodiferente de realidade. A realidade associada à mecânica clássica era comparada a umautómato. A mecânica quântica não veio melhorar a situação porque, na mecânicaquântica ortodoxa, a realidade depende das nossas medidas (…). [C]hegamos àconcepção de um mundo em construção. Esta concepção rompe com a hierarquiatradicional das ciências. As ciências duras falavam de certezas. Esse era muitofrequentemente o modelo, o fim supremo das ciências humanas. As ciências humanas47como a economia ou a sociologia podem agora reportar-se a outro modelo”(Prigogine in Spire 1999: 173).Prigogine conclui, então, que o pensamento complexo não é o contrário do simplificador.Ele opera a união entre simplicidade e complexidade porque considera que a natureza ébastante mais rica, inesperada e até complexa do que a imaginávamos antes. Logo propõeuma nova noção de racionalidade onde a razão já não será mais apenas a certeza e onde aprobabilidade não terá mais um vínculo efectivo com a ignorância. Então o papel criativoda natureza e por consequência do homem no mundo que o rodeia terá, enfim, um papelefectivo.Também Morin defende a coabitação entre os dois paradigmas – o da complexidade e o dasimplicidade. Um não anula o outro e, por definição, não será nunca o complexo a anular osimplificador porque na sua essência, como mostrámos acima, está a coexistência, acorrelação e a interactividade. Logo, as lacunas tendem a ser preenchidas quer por um tipode conhecimento quer pelo outro, num processo de jogos sistémicos múltiplos, fecundos esempre em movimento no sentido da readaptação. Ao colocar a tónica sobre asemergências, as interferências, como fenómenos constitutivos do objecto, o pensamentocomplexo não aceita apenas uma rede informal de relações porque o que ele reconhece sãoas realidades, não feitas apenas de uma só substância, mas sim compósitas e comautonomia, embora limitada (Morin 2003). O sistema terá assim de ser aberto para aincerteza e para a transponibilidade. O pensamento complexo não ignora nem anula aimportância e o contributo do paradigma simplificador na história moderna do pensamentocientífico. Ele apenas reconhece as suas lacunas, limitações e impossibilidades,

nomeadamente, quando separa e descontextualiza. Daí que Morin fale em unidade daciência para afirmar que ela só fará sentido quando formos capazes de apreendersimultaneamente unidade e diversidade, continuidade e ruptura (Morin 2003) – árvore-efloresta,diríamos nós. Esta unidade, no fundo, mais uma vez se encontra na noção “o todoque está na parte que está no todo”. Nesta investigação esta é a posição de fundo, a dacomplementaridade dos dois tipos de pensamento; uma complementaridade concebida eentendida sob a perspectiva da complexidade.482.4. Complexidade e Ser HumanoDa exposição sobre a perspectiva da complexidade resulta que muito está por fazer nestaárea. Trata-se de uma perspectiva epistemológica contrária à do reducionismo positivista,que pressupõe o conhecimento do todo como algo resultante do conhecimento separadodas partes. Na complexidade, o todo, a globalidade, vem primeiro. Como Morin refere, acomplexidade, quer como perspectiva, pensamento, ou paradigma, está ainda a dar osprimeiros passos, e a investigação terá de ir mais além para que se consigam resultadoscrescentemente práticos. Esta investigação respeita também a este último aspecto. Não só aperspectiva da complexidade, sustentamos nós, é determinante para se descrever com rigoro quê e o porquê do trabalho de José Mourinho, como o trabalho do técnico português doChelsea FC traduz a operacionalização numa actividade humana concreta desta mesmaperspectiva.Relembremos as palavras de Morin (2003: 112): “o paradigma da complexidade surgirá doconjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexõesque vão conciliar-se e juntar-se”. Neste quadro, numa investigação como a que aquiapresentamos, confrontamo-nos com a necessidade de trazer o pensamento complexo, aperspectiva da complexidade, para o domínio da acção humana, da acção individual ecolectiva dos homens. Não se trata de uma questão nova. São vários os investigadores nasciências sociais e humanas, e em número crescente, que têm utilizado a perspectiva dacomplexidade, nomeadamente algumas das suas ideias centrais como o conhecimento dofenómeno pela sua globalidade, “o todo que vem primeiro”, a incerteza e ainterdependência, a fluidez e a mudança, a emergência, o feedback e o feedforward. Nestetipo de trabalho, os investigadores das ciências sociais e humanas geralmente não sebaseiam apenas nas ideias, conceitos e princípios da perspectiva da complexidade. Antespelo contrário, a transposição daquela perspectiva para o domínio da actividade humanaconcreta é feita com auxílio importante de teorias sociais e filosóficas. Ralph Stacey e asua escola de investigação (e.g., Stacey 1999, 2003; Stacey et al 2000; Shaw 2002), porexemplo, que estudam o fenómeno da estratégia sob a perspectiva da complexidade, têmvindo a recorrer crescentemente a autores como Immanuel Kant (1724-1804), EdmundHusserl (1848-1938) e George Herbert Mead (1863-1931).49A obra de Martin Heidegger (1889-1976) (1962) Sein und Zeit, escrita em 1927, porexemplo e para citar um outro filósofo de influência crescente nas ciências socais ehumanas, é referida, entre outros, por Sérgio (e.g., 1984, 2003, 2005), Tsoukas (2005),Introna e Ilharco (2004), Merali (2004), Introna (1997), Spinosa, Flores e Dreyfus (1997),Winograd e Flores (1986), Dreyfus e Dreyfus (1986), Dreyfus (1982). Refere Merali:“To assimilate and accommodate the phenomenology of chaos, emergence, andcomplex adaptive systems, we need to identify a philosophical position (…).Heidegger’s Being and Time (Heidegger 1962) offers us a number of enablingconcepts for this endeavour. His Dasein (being-there or being-in-the-world) gives usthe articulation of individual and collective being and is relationship with past, presentand future time. Dasein is the wholeness of being that includes the context andassimilates objects of the world into itself” (Merali 2004: 434-5).Partilhando muitos dos pressupostos de fundo da perspectiva da complexidade, a obra de

Heidegger (1962) oferece-nos uma descrição detalhada do ser humano – do modo de serhumano – a qual nos permite constituir uma base, uma ontologia, do que poderíamosdescrever como a complexidade do humano. De alguma forma, no que ao ser humanorespeita, o texto de Heidegger (1962) pode ser considerado como uma semente dacomplexidade. Em Ser e Tempo, Heidegger constitui o ser individual e colectivo quesomos no contexto da temporalidade; de uma temporalidade centrada, essencialmenteassente, não no presente ou no passado mas no futuro. O homem, Dasein segundo aterminologia heideggeriana, existe no mundo não como uma coisa que está porque está,mas envolvido no mundo – fazendo parte dele e com ele. Dasein é o ser-aí (traduçãoliteral), imerso e envolto no mundo, interessado, já com um passado e sempre projectado eprojectando para o futuro e o seu futuro. O ser humano é sempre-e-já-no-mundo um todo; éeste todo que vem sempre primeiro. É no âmbito do todo que somos que experimentamos econhecemos o que nos rodeia, as pessoas, os objectos, as ideias, etc.Sob esta perspectiva, e utilizando a argumentação de Manuel Sérgio (1984, 2003, 2005),questionamos: que lugar ocupa o nosso corpo nas nossas vidas? Não parece abusivoafirmar que, conforme ao dualismo antropológico cartesiano, o corpo é físico apenas. Como “cogito, ergo sum” separou-se, como foi dito, corpo e mente, atribuindo-se assim aocorpo a dimensão de “coisa”, ficando desta forma marcada de forma indelével a relação dohomem com o seu corpo. Na mente residiria a essência da natureza humana; no corpo50residiria a instrumentalidade mensurável daquilo que somos na aparência. Por isso, nonosso dia a dia, o exercício que fazemos é sermos autênticos no sentido de nãomascararmos as nossas mentes. Elas são o que são e a civilização ocidental semprevalorizou essa superioridade da mente – porque ela traduz a essência do nosso ser – emesmo quando não estamos, premeditadamente, a sê-lo existe uma construção deaparência dessa mesma autenticidade. Ao invés, com o corpo, a atitude é oposta. Aqui, aautenticidade é relegada para um plano tal que, cada vez mais, o próprio corpo como coisaé entendido como um objecto ornamental que se transforma, embeleza, molda e constrói. Éassim quando vestimos esta ou aquela roupa, quando usamos este ou aquele ornamento,este ou aquele batom, brinco, anel ou piercing. Hoje também é assim quando fazemos umalipoaspiração, quando aumentamos ou diminuímos os seios ou os lábios, quando fazemosuma cura de emagrecimento, etc. E mesmo quando recorremos a todos estes artefactos, dereconstrução artificial do corpo, aqui incluindo a cura de emagrecimento, com ajustificação da chamada “vida saudável”, não mais estamos a fazer que subordinar o corpoà mente e a celebrar o velho adágio romano “corpo são, em mente sã”. Logo o queinteressa é a saúde da mente e o corpo é apenas um dos seus instrumentos. Neste quadro, aperspectiva reducionista, que fragmenta os fenómenos nas suas partes constitutivas paradessa forma os investigar e posteriormente juntar para compreender o todo, mantém aseparação funda entre corpo e mente. Não foi por acaso que a educação física nasceu emplena época do racionalismo em que se considerava, portanto, que o corpo não passava deinstrumento da mente.Segundo alguns autores a expressão educação física surge pela primeira vez em JohnLocke (1632-1704), no seu livro Pensamento Sobre a Educação. É sob a perspectivacartesiana que nasceram as escolas de educação física. A própria terminologia já diz bem oque está em causa, ou seja, a educação física como educação do físico, por isso separada daeducação da mente. Uma e outra são tratadas em departamentos diferentes e sem relaçãoou interacção. Sintomáticas desta perspectiva são igualmente as definições quer na ciênciaquer na lei. Na Proposta de Lei de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à AssembleiaNacional para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física), é definido, noseu texto, o corpo como sendo “o digno instrumento de uma vontade esclarecida”.Vinte e um anos depois continuava ainda, embora sob outro prisma, a consagrar-se aProposta de Lei de 1939. Porque o corpo era encarado pelos teóricos como instrumento ao51

serviço da mente, facilmente se entende o papel atribuído ao preparador físico, àquele queestá incumbido da educação física, como está descrito na página 19 do Manual sobreCursos de Preparação Pedagógica e Técnica para Treinadores Desportivos, publicado em1960, pelo Conselho Provincial de Educação Física (Província de Angola) onde se podeler:“O professor de educação física, quando não seja treinador, deverá limitar-se àpreparação física da equipa e dos seus jogadores ou atletas e colaborar com o médicona verificação dos resultados do ponto de vista funcional, de aprendizagem e de treino.E, neste particular, cabe-lhe missão de esclarecimento, que não de interferência, juntodo treinador respectivo.”Ora, é neste contexto que nos aparece, na década de 70, a primeira voz em Portugal,Manuel Sérgio, que ao contrariar a visão cartesiana do ser humano, inicia a aplicação deteorias da complexidade ao homem questionando a tradicional educação física. Seguindonuma linha de pensamento e de investigação humanista, com referências importantes aMerleau-Ponty e a Heidegger, Manuel Sérgio propõe uma nova epistemologia da educaçãofísica e do desporto em geral. Renegando a educação física enquanto produto doracionalismo (decorrente do corpo cartesiano, entendido como mera res extensa ou, poroutras palavras, como simples máquina sujeita às leis da natureza), Manuel Sérgio olha oser humano como um todo complexo, inseparável e indivisível, logo, ser corpo é serhumano.“[É] evidente que o corpo humano não é só o que a fisiologia descreve, nem o que aanatomia desenha, nem o que a biologia, em suma, refere. Porque o corpo é amaterialização da complexidade humana. Razão tem Edgar Morin ao escrever: «o serhumano não é físico pelo seu corpo» (O Método 1. A Natureza da Natureza). De factoninguém tem um corpo. Há uma distância iniludível entre mim e um objecto quepossuo: posso deitá-lo fora sem deixar de ser quem sou. Com o meu corpo não sucedeo mesmo: sem ele eu deixo de ser quem sou. Por isso o meu corpo não é físico, nosentido cartesiano do termo, não é Korper, mas o fundamento de toda a minhaexistência, da minha própria subjectividade, o Leib” (Sérgio 2003:182).Um tal pensamento propõe-nos um corte epistemológico profundo: um rompimento, a umtempo, com o positivismo e com uma tradição que atribuía, cartesianamente, o lugarprimacial no desporto à preparação física desligada da inteligência estratégia e táctica, bem52como da consideração do estado emocional e motivacional do indivíduo. Manuel Sérgiopropõe então a passagem da educação física (apenas corpo) à motricidade humana (ohomem enquanto todo complexo). A motricidade é considerada como algo que excede omovimento biomecânico e animal, sendo expressão e produção da experiência e doconhecimento da comunidade e do indivíduo.Introduzindo a linguagem técnica de Heidegger (1962), consideremos um jogador defutebol com uma bola. Como objecto, enquanto alguém lhe pega, vê e a analisa para, porexemplo, decidir se é com essa bola que se vai jogar, a bola está à-vista (Heidegger 1962).Quando o jogador joga focado no passe, concentrado no golo que quer marcar, a bola (epasse a ironia...) está à-mão (Heidegger 1962). No entanto em qualquer destes modos deser, a bola não pode relacionar-se com o seu próprio modo de ser no sentido de sequestionar ou interpretar como o que é ou vai ser no mundo. Ao invés, o jogador de futebolnão é meramente um “jogador de futebol”. Se lhe perguntarmos, justamente, quem é,muito provavelmente responder-nos-à que é português, nascido em Lisboa, pai de umfilho, casado, etc. Ora, são estas dimensões que enquadram o seu passado e que lhe abrempossibilidades e o projectam para o futuro. Ele encontra-se a si próprio enquanto pai,marido, profissional, português e ao interpretar-se a si próprio projecta-se a si mesmo. Eleé sempre-e-em-qualquer-momento, segundo a linguagem e entendimento heideggeriano,essa mesma projecção. O que projectamos para nós próprios, o que esperamos, desejamos,queremos ou aspiramos vir a ser no futuro, é fundamentalmente o que hoje contextualiza asminhas acções e mesmo o próprio entendimento do passado, o qual está longe de ser

sempre o mesmo. A questão é pois ontológica, relacional, de forma e de conteúdo.Heidegger (1962) aponta aquelas duas maneiras básicas do homem se relacionar, de seenvolver, com e no mundo, entendendo este como o todo significante, por oposição aoentendimento Cartesiano do mundo como a totalidade dos entes. No modo à-mão as coisas,os objectos, as ideias, etc., que utilizamos como que se constituem numa extensão de nóspróprios, para atingirmos este ou aquele objectivo. Quando o jogador remata, ele estáconcentrado em fazer o golo e nesse momento, a bola, as suas chuteiras, a baliza, tudo oque com ele se relaciona de uma forma não obstrutiva, está à-mão. A contrario, porexemplo, se a bola se revela furada ou se a chuteira se rompe, esses objectos tornam-seobstrutivos para a acção do jogador; ele interrompe a sua acção, analisa-os, pondera comoos arranjar – então, eles estão à-vista. A ciência da motricidade humana, e voltando a53Manuel Sérgio, promove então a compreensão e a explicação do movimento intencionalque surge em acções, nos modos à-mão e à-vista, mas sobretudo no primeiro:“Não há educação de físicos, mecanicamente considerados, nem processos decolonização de técnicos ou professores autoritários, porque o educando, ou o atleta, ouo bailarino, ou o paciente, é um sujeito que só de modo inter, trans, multidisciplinarpoderá conhecer-se e que não pretende a superação de si, a partir de si, mas asuperação de si, ao apelo do Outro, ou de Deus” (Sérgio 2005: 52.).Encara-se a ciência da motricidade humana como sendo a ciência da abrangência do corpo:o corpo-memória, o corpo-estrutura, o corpo-conduta, o corpo-razão, o corpo-emoção, ocorpo-cultura, o corpo-natural, o corpo-lúdico, o corpo-produtivo e o corpo comnecessidades especiais (Sérgio 1994). Daqui decorre que:“[A] motricidade humana [se] funda no sujeito, no humano, no social, no cultural.Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem em toda a suaamplitude e profundidade. Reduzir ao físico a motricidade humana equivale aperpetuar o positivismo” (Sérgio 2005: 243-4).Com esta argumentação Manuel Sérgio sintetiza a sua filosofia ao defender que passar daeducação física à motricidade humana equivale a passar do corpo-objecto ao corpo-sujeitoe assim se entende a sua definição de motricidade humana.“A motricidade humana, como energia para o movimento intencional datranscendência e do sentido, como consciência de um facto irredutível que é asuperação constante (superação física, biológica, antropossociológica), como condutamotora ou acção, é uma ciência do homem, como afirmação de identidade, no quadrogeral das ciências” (Sérgio 2005: 244).Inverte-se assim o paradigma cartesiano, onde se cavou um fosso entre o ser e o pensar.Assim, em Manuel Sérgio, na linha de Heidegger (1962), não é pensando que somos massim é sendo que pensamos. Já somos-no-mundo, já temos um passado, já estamosinteressados e a projectar o futuro. Tudo tem já significado para nós. Esse significado vemda equiprimordialidade do ser e do mundo como constitutivos da nossa acção.Desta forma, é num contexto relacional, com base nas expectativas que temos para o futuroe na forma como entendemos hoje o passado que tivemos, que abrimos portas eescolhemos caminhos para o que vamos viver (Polt 1999). Assim, Dasein, o ser-no-mundo54que somos, é aquilo que previamente já se experimentou no ser permanente eestruturalmente projectado sobre o futuro. Por isso ser-no-mundo é acção, é o futurotransformado em acção, passando por nós, em direcção ao ter sido que o passado é.“[N]o-mundo estamos já e sempre em acção. A acção é por isso primária ao homem eao mundo. Ou dito de outra forma, é o mundo feito humano na linguagem, nosignificado, na abertura do que pode ser, do que pode vir, das possibilidades que ofuturo pode trazer” (Ilharco 2004: 144).O homem é então o ser cuja essência se encontra no seu modo de ser, na sua existência.Esta existência, conforme à perspectiva que seguimos e aos autores em que assenta estainvestigação, é algo de contínuo, de emergente, de espontâneo, de incerto, de incompleto,

de complexo. Neste contexto, tomando-nos como o ser-no-mundo heideggeriano, citandoManuel Sérgio (2003), dado o corpo não mais poder ser considerado como matéria,necessitamos então de uma consciência corporal, bem como do reconhecimento da suaimportância. Só pelo e com o meu corpo posso eu ser eu, em toda a minha dimensão ecomplexidade humana, enquanto projecto global da própria humanidade.A perspectiva da motricidade humana, conforme ao trabalho de Manuel Sérgio, sendoantidualista e antimecanicista, preconiza na teorização e na prática do desporto anecessidade de uma reforma não programática mas paradigmática, que tenha em conta asnoções de sistema, de organização e auto-organização e de complexidade, defendendo apassagem do corpo-objecto ao corpo-sujeito. Para Manuel Sérgio o desporto fundamentaseno sujeito, no humano, no social e no cultural. Problematizá-lo significa equacionar nãoum físico mas o Homem em toda a sua amplitude e profundidade; reduzir o desporto aofísico equivale a perpetuar o positivismo. “O Homem é um apelo à transcendência e, comotal, um ser práxico que na totalidade corpo-alma-natureza-sociedade e pela motricidadeprocura transcender e transcender-se” (Sérgio 1994: 26).Assente nestes princípios, que entendem o desporto não como uma actividade física mascomo uma actividade humana, fundou-se em Portugal, na década de 1980, a Faculdade deMotricidade Humana (FMH), que tomou então o lugar do extinto Instituto Superior deEducação Física (ISEF), onde há cerca de vinte anos estudou José Mourinho.55

CAPÍTULO 3EMOÇÕES E INTELIGÊNCIA EMOCIONAL56Ainda não há muito tempo, talvez não mais de duas décadas, que os líderes e gestores detodo o mundo, decorrente de uma visão cartesiana e mecanicista, com a consequentedivisão, separação e descontextualização do objecto de estudo, entendiam que o processodecisório se consubstanciava apenas com base num elemento: a razão. Alargando esteconceito à temática da liderança podemos imaginar com relativa facilidade a ideia de líder– e de liderança – que lhe está subjacente. Trata-se do homem directo, frontal, que decide afrio, com rigor, sem dúvidas e sem emoções. Pretendia-se, desta forma, transmitir, antes demais, a segurança do líder. Segurança nas suas competências e segurança nas suasdecisões. O líder, distanciado, como que fora do mundo das incertezas, da ambiguidade edas emoções, estava no mais alto patamar da organização, aliás onde Frederick Taylor(1856-1915), o autor que pela primeira vez propôs uma abordagem cientifica à gestão dasorganizações, o havia colocado, e dessa forma exercia a sua autoridade de uma maneiradistante e segura. Ser emocional, ou mostrar sentimentos era sinónimo de fraqueza, o queentão não era admitido, tal como ainda tende a não o ser hoje.Na sequência da discussão sobre os fundamentos e essência da liderança – assunto que sócomeçou a ser debatido com alguma profundidade depois da Segunda Guerra Mundial –surgem autores a questionar o quociente de inteligência (QI) dos líderes como factorfundamental da boa liderança. Porém, só em finais do séc. XX nasce o conceito deinteligência emocional, o qual encontra em Daniel Goleman o seu mais destacadodefensor. Goleman, que tem desenvolvido a sua investigação sobre liderança noConsortion for Research of Emotional Inteligence in Organizations, na Rutgers University,nos Estados Unidos da América, dedica-se ao tema e num curto espaço de tempo vê a suaobra ter aceitação e ser divulgada por todo o mundo, em especial depois de em 1996 terpublicado o best-seller Inteligência Emocional. As teorias de Goleman servem, pois, aonosso propósito de introduzir nesta investigação a base teórica da inteligência emocionalna liderança.“Os parâmetros do mercado estão a mudar. Estamos a ser avaliados por novoscritérios. Já não importa apenas o quanto somos inteligentes, nem a nossa formação ouo nosso grau de especialização, mas também a forma como lidamos connosco e comos outros” (Bilhim 2004: 244).

E porque é que, afinal, tudo está a mudar? Afirmamos que, desde logo, estamos perante umnovo olhar sobre o homem, fundamentado nas novas teorias da complexidade. Já não57separamos o que não está separado, nem dividimos o que nos surge sempre primeiro comoum todo. As partes são vistas no contexto do todo e o todo não pode ser visto sem ainterligação e interacção das partes. Como podemos, então, subtrair ao pensamentohumano, e ao pensamento humano transformado em acção, as emoções que nosacompanham durante toda a nossa existência?3.1. Os Estudos de DamásioO neurocientista português António Damásio – radicado nos Estados Unidos há mais de 30anos e actualmente professor e director do Departamento de Neurologia da Universidadede Iowa – definiu a emoção da seguinte forma: “No seu mais essencial, as emoções servempara reagir de uma forma automática a uma série de ameaças ou oportunidades que sepõem a um organismo vivo” (Damásio in Marques 2004:68). Se as emoções nos fazemreagir de forma automática presume-se que essa reacção não depende de nós enquantoopção única da razão, logo, será legitimo afirmar que estamos condenados a trabalhar comelas em todos os processos activos das nossas vidas. Tal como não conseguimos nãopensar, não conseguimos, igualmente, pensar sem emoções, a não ser que, biologicamentedisso sejamos impedidos. Mas se isso acontecesse continuaríamos a ser nós próprios?Continuaríamos a olhar o mundo da mesma maneira? Continuariam a ser os nossos actos, àluz da nossa história, minimamente previsíveis?Partindo da constatação científica de que o nosso sistema emocional está localizado eperfeitamente definido numa parte do nosso cérebro, Damásio (2005), conta-nos umahistória, baseada na sua investigação, que nos sugere respostas para as perguntas acimaformuladas. Elliot11, um cidadão norte-americano na casa dos trinta anos, vivia uma vidade sucesso. Marido e pai estimado, profissional reconhecido levava uma vida tranquila dehomem bem sucedido, quer profissional quer socialmente, até ao dia em que lhe foidiagnosticado um tumor cerebral. Não era maligno e a sua extracção seria a solução para oproblema, ainda para mais porque uma vez removido era convicção cientifica de que nãovoltaria a crescer. A operação foi um sucesso aparente e as perspectivas eram excelentes. Otumor foi retirado, bem como o tecido do lobo frontal que tinha sido danificado. Segundonos descreve Damásio (2005), muitos e novos problemas, no entanto, ainda estavam para11 Nome fictício atribuído por Damásio, por se tratar de um personagem real ao abrigo do sigilo médico.58começar. Durante a recuperação, família e amigos começaram a notar diferenças sensíveisno comportamento de Elliot. Em contraposição ao homem activo, estável e equilibrado, umnovo Elliot revelava-se agora. Necessitava de incentivos para ir trabalhar, raramente ou amuito custo terminava uma tarefa e a instabilidade começou a fazer parte da sua vida a talponto que Elliot se tornou incapaz de tomar decisões. Esta sua nova personalidade depressao levou a dois divórcios e a vários despedimentos nos múltiplos empregos que obteve nostempos seguintes. Claramente “Elliot já não era Elliot” (Damásio 2005:56) e a sua vidatornou-se um caos. Não obstante todos os traços da sua personalidade serem agoradiferentes, Elliot mantinha intactas todas as suas capacidades mentais e físicas. O seuraciocínio não foi perturbado, o seu QI mantinha-se acima da média, como foi confirmadopela realização de testes, e Elliot tinha também todos os seus sentidos inalterados. Assim,em certa medida, Elliot ainda era Elliot. Mantinha-se o mesmo quanto às suas capacidadesneurológicas mas revelava-se outro quanto à operacionalização dessas mesmascapacidades.“Os seus problemas não eram resultado de «doença orgânica» ou de «disfunçãoneurológica» – por outras palavras doença cerebral – mas sim o reflexo de problemasde ajustamento «emocional» e «psicológico»” (Damásio 2005: 59- 60).Elliot era, desta forma, um homem com um intelecto perfeitamente normal que se traía a sipróprio pela incapacidade de tomar decisões em especial quando elas se revestiam de

natureza pessoal ou social. Enquanto paciente de Damásio, Elliot realizou todo o tipo detestes até que o médico começou a desviar a sua atenção para uma questão até aí quaseignorada: as emoções. E Damásio (2005) pôde comprovar, depois de mais uma dasinúmeras sessões com Elliot, que o caminho para a descoberta do que se estava a passarpoderia muito bem ser esse. Entendeu mostrar ao paciente imagens de catástrofes, comocasas a arder, edifícios a ruir em terramotos, pessoas feridas, etc., com o objectivo de tentarperceber de que forma ele reagia a estímulos emocionalmente fortes e desconcertantes.“[E]le disse-me, sem qualquer equívoco que os seus sentimentos se tinham alteradodesde a sua doença. Conseguia aperceber-se de que os tópicos que anteriormente lhesuscitavam emoções fortes já não lhe provocavam qualquer reacção, positiva ounegativa” (Damásio 2005: 64, 65).E foi neste ponto que se começou a fazer luz na investigação de Damásio. Imaginemos omais fanático fã de José Mourinho que de repente se dava conta, ao ver um jogo de futebol59do Chelsea, que esse mesmo jogo já nada lhe dizia. Imagine-se um golo, na final da Ligados Campeões, e a reacção emocional do fã ser igual à de beber um copo de água. Ouentão, imagine-se ainda alguém a contemplar uma magnífica paisagem e a experimentarum sentimento como se da visão mais trivial se tratasse. Em ambos os casos, recorde-se, aspessoas já tinham experimentado sentimentos fortes e arrebatadores em situaçõessemelhantes, pelo que agora se apercebiam perfeitamente do que estava errado, ou seja, játinham sentido emoções em situações similares e agora estavam perfeitamente conscientesde que já nada sentiam. Os exemplos poderiam ser muitos, mas estes são suficientes parase perceber o estado de Elliot: saber mas não sentir (Damásio 2005). Dito por outraspalavras, Elliot estava consciente de tudo no mundo que girava à sua roda, tinha noção dobem e do mal, do certo e do errado, do branco e do preto, mas não conseguia dar-lhesfuncionalidade, sublinhe-se, na vida real, porque privado de emoções era-lhe igual seguirpor um caminho ou por outro, logo não conseguia tomar decisões, não era capaz de optar.Damásio escreve que começou “a pensar que a frieza do raciocínio de Elliot o impedia deatribuir diferentes «valores» às diferentes opções, tornando a sua paisagem de tomada dedecisões desesperadamente plana” (Damásio 2005: 70).Depois de Elliot e até 1993, Damásio estudou mais 12 casos similares de lesões préfrontais.Em todos eles o cientista observou ligações entre a perda de emoções e adeficiência na tomada de decisão. As razões desta associação são explicadas por Damásionas suas obras O Erro de Descartes (1995), O Sentimento de Si (2000) e Ao Encontro deEspinosa (2003). Interessa-nos, com este exemplo, ilustrar a associação, ou ligação, entreemoções e comportamento, estabelecendo com certeza que aquelas estão intimamenteligadas a este, de tal forma que a construção comportamental não mais será a mesma – ouperderá mesmo a sua funcionalidade – se condicionada seriamente pelas emoções, querpela sua ausência, quer por uma overdose.Todos sabemos que o excesso de emoções nos traz alterações comportamentais, bastalembrarmo-nos de algumas das nossas atitudes quando experimentamos elevados níveis deansiedade ou nervosismo. O que ainda não sabíamos – e ficou provado, nomeadamentecom os trabalhos de Damásio (1995, 2000, 2003) – é que a sua ausência pode serigualmente dramática.60Assim, quando pensamos que temos de tomar uma decisão com a “cabeça fria”, isto é, semqualquer tipo de influência emocional, estamos a laborar num erro porque as emoçõesestão lá sempre, connosco, muitas vezes imperceptíveis, mas estão lá e sempre a participarno processo decisório. No-mundo, envolvidos porque o que nos rodeia interessa-nos epreocupa-nos, somos já-e-sempre o que somos emocionalmente, num certo tipo dedisposição (Heidegger 1962). Daí que se coloquem algumas questões: sendo as emoçõesparte integrante da nossa vida, se a sua ausência ou o seu excesso nos provocam alterações,se estamos condenados a viver com elas e a ser, até, felizes ou infelizes com elas, será

racional da nossa parte deixá-las simplesmente evoluir e mudar, actuando sem qualquertipo de controlo ou de influência sobre elas? Será razoável não olhar para as emoções e nãoperguntar como e de que forma nos poderão elas ser mais úteis? Não será melhor conhecêlaspara a sua utilização na justa medida em que elas poderão e/ou deverão ser usadas? Econstituindo as emoções um factor fundamental do nosso carácter, logo do nossocomportamento, não será pertinente um conhecimento mais aprofundado e efectivo sobreelas? A teoria da inteligência emocional diz-nos que sim. Mais: não só nos diz que sim,como também nos aponta caminhos, ou seja, dá-nos pistas para sermos inteligentes sobreas nossas emoções, para que possamos beneficiar delas e evitar ao máximo os seus efeitosnefastos face às ameaças e às oportunidades com que somos confrontados no nosso dia adia.Para que servem então as emoções? Charles Darwin (1809-1882) na sua obra TheExpression of Emotions on Man and Animal publicada em 1872 – entretanto traduzidapara português (Darwin 2006) –, explica como as emoções constituem um sistemacomplexo mas eficaz de adaptação ao meio envolvente. Depois de nos queimarmos,passamos a ter uma relação emocional com o fogo que nos protege de nos queimarmosmais vezes. Um susto que nos provoca o automóvel que surge a alta velocidade quandoatravessamos a rua, faz com que das próximas vezes tenhamos mais cuidado e naquelemomento dá-nos a força e a rapidez que nos permite correr e ficar a salvo. A raizetimológica da palavra emoção é motere, verbo latino que significa «mover». Juntou-se-lheo prefixo «e-», que significa ‘para’, ‘para fora’, indicando também a noção de atenção bemcomo o enfatizar da restante expressão da palavra (Introna e Ilharco 2000) – o mover, nestecaso. Emoção é, assim, atenção, mover para. O agir, ou acção, está, desta forma, implícitonas emoções, como, de resto, já poderíamos ter concluído da definição apresentada por61Damásio (2005). Num plano mais fecundo – do que aquele já por nós acima transcrito –Damásio conclui sobre aquilo que considera ser a emoção:“[A] emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples oucomplexo, com respostas disposicionais a esse processo, na sua maioria dirigidas aocorpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas tambémdirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral)resultando em alterações mentais adicionais” (Damásio 2005: 153).Desta forma entendemos a emoção como uma resposta a um elemento exterior ou, poroutras palavras, como um estado de alma reactivo em que a razão não é chamada aparticipar. Assim, se a reacção for transformada em acção acabamos por reagir por impulso– ou se quisermos, se na acção não tivermos coordenados (no sentido de ponderados,equilibrados) emoção e razão –, o que poderá aumentar a probabilidade de erro na respostadada.Também Goleman et al (1995: 310) definiram emoção como referindo-se a um“sentimento e aos raciocínios daí derivados, estados psicológicos e biológicos, e o leque depropensões para a acção”. Julgamos que as diferenças entre esta noção e a noção deDamásio (2005) dizem mais respeito ao objecto de estudo de cada um deles do quepropriamente a divergências estruturais. No fundo poderemos fazer uma aproximação entreas duas definições de molde a poder trabalhá-las em conjunto e sem antagonismos nosobjectivos que pretendemos explorar. Concluímos, assim, que tanto Goleman et al comoDamásio falam em estados emocionais, decorrentes de elementos exteriores (sobretudo),que predispõem para a acção e reacção.Já referimos o que são as emoções e também constatámos que elas estão sempre presentesao longo da nossa vida. Sabemos igualmente que elas poderão ser usadas por excesso e pordefeito e que, num caso ou noutro, o desequilíbrio pode levar à tomada de más decisões,justamente, o que pretendemos evitar em cada acto consciente das nossas vidas. O queainda não sabemos é como e em que medida as podemos usar para a melhorar o nosso

comportamento.Ao nível da liderança, a teoria da inteligência emocional afigura-se-nos apropriada para osnossos objectivos. No primeiro capítulo referimos alguns traços de personalidade ecomportamentais geralmente apontados como importantes na acção de José Mourinho,62como, por exemplo, o entusiasmo, o humor, a empatia, o envolvimento e ocomprometimento com aquilo que faz. Neste capítulo revemos a teoria da inteligênciaemocional com o objectivo de entender melhor alguns desses traços, exercício que nosajudará a dar uma profundidade acrescida à análise e aplicação de teoria ao trabalho deJosé Mourinho, que será apresentada na parte final desta dissertação..No livro de 1996, bem como no artigo de 1998 “What Makes a Leader”, publicado naHarvard Business Review, Goleman et al (2005) e Goleman (1998) questionaram oquociente de inteligência e as competências técnicas dos líderes como sendo ascaracterísticas mais importantes da liderança. As suas investigações apontavam para quenão obstante a inteligência analítica e matemática ter o seu grau de importância, ainteligência emocional pudesse ser a condição sine qua non para a boa liderança. Mas oque é, então, a inteligência emocional? De uma forma simplista, poder-se-á dizer queestamos a ser emocionalmente inteligentes quando conseguimos ser inteligentes sobre asnossas emoções. Na inteligência emocional assume-se que podemos conscientemente lidarcom as nossas emoções e com as dos outros, dar-lhes sentido e aproveitá-las eficazmente,não de uma forma isolada mas conjugadas com a razão. É a ausência desta conjugação –porque privado de um dos elementos estruturantes, a emoção – que tornou Elliot (que sabemas não sente) diferente da maioria dos seres humanos (que sabem e sentem). Por issoGoleman et al (1995) propuseram-nos a teoria das duas mentes, segundo a qual temos,justamente, duas mentes: uma que pensa (e que se ocupa do departamento da razão) e aoutra que sente (e que se ocupa do departamento da emoção). Trata-se, em rigor, de duasmaneiras diferentes de saber, de entender o nosso próprio modo de ser mas que estãosempre presentes em nós, em interacção. Dessa forma, assentando o nosso modo de ser nasduas mentes não conseguimos de uma forma premeditada não pensar e não e não teremoções. Estas duas mentes tendem a trabalhar em equilíbrio para nos guiar na nossaacção. As duas mentes constituem-se num sistema aberto e, portanto, são sujeitas apressões exteriores. São as ameaças e as oportunidades do meio que as fazem tender para oequilíbrio, podendo, contudo, experimentar situações de caos. Estas acontecem quandoexiste um desequilíbrio, ou seja, quando uma das partes tende a superiorizar-se à outra.Assim, quando a razão ignora a emoção ou quando a emoção toma conta da razão, abalança desequilibra-se, uma mente toma conta da outra e ao fazê-lo o mais provável queaconteça é o erro. A teoria das duas mentes – que, perceba-se, actuam num sistema63complexo de pensamento, logo interligadas, interelacionadas e em interacção constante,não sendo, portanto, possível separá-las ou descontextualizá-las sob pena de “Elliot deixarde ser Elliot” – pressupõe, portanto, o justo equilíbrio entre as duas, logo um estado estávelda pessoa humana. A partir daí é possível “jogarmos” com e nas nossas emoções para delastirarmos partido, podendo, então, sermos emocionalmente inteligentes.É certo que a teoria da inteligência emocional se pode aplicar em qualquer acto oucircunstância da nossa vida, contudo, o objecto deste trabalho centra-se na liderança e nosprocessos de comunicação e de interacção em que ela se traduz.3.2. Liderança PrimalRecordo-me de em Março de 2005 me ter deslocado a Stamford Bridge, o estádio doChelsea, para assistir ao encontro da Liga dos Campeões entre a equipa de José Mourinhoe os espanhóis do Sevilha. A meio da segunda parte já o Chelsea ganhava por 4-0,colocando em delírio os adeptos ingleses que enchiam por completo o estádio. Subitamentetodos os espectadores, em uníssono, iniciaram um cântico com uma única frase: “Stand up,stand up for the special one”. Ao mesmo tempo todo o estádio se levantou e à medida que

cantavam faziam uma vénia em direcção a José Mourinho que continuava sentado nobanco da equipa. Tal como José Mourinho, mantive-me sentado, a olhar ao meu redor e acontemplar o espectáculo proporcionado pelos adeptos do Chelsea. Contudo, não continueisentado muito tempo... de súbito, um deles olhou para mim, com ar algo zangado, eenquanto entoava os cânticos dirigidos a Mourinho, fazia-me sinal com as duas mãos paraque, também eu, me levantasse e fizesse a devida vénia ao seu líder, o special one. Foi oque fiz. Serve este exemplo para dizer que “os grandes líderes nos emocionam. Acendemas nossas paixões e inspiram o melhor que há em nós. (…) [A] Grande Liderança baseia-senas emoções” (Goleman et al 2005). O carisma e a empatia que os líderes geram nos seusseguidores podem levá-los a superarem-se e a conseguirem resultados inesperados,simplesmente porque as pessoas seguem o líder, confiam nele e acreditam que sob a sualiderança os melhores resultados serão conseguidos. Relembremos a derrota do FC Porto,em casa, com os gregos do Panathinaikos. No primeiro jogo, nas Antas, os gregosvenceram por 1-0 e a tristeza abateu-se sobre os portistas. No final do jogo, Mourinhodisse à sua massa associativa e aos seus jogadores que nada ainda tinha acabado. O jogo da64segunda mão, em Atenas, seria para ganhar. Os adeptos portistas acreditaram que assimseria e quando encontravam Mourinho na rua cobravam-lhe a promessa: “ Nós vamos láganhar porque você prometeu”. Os jogadores também acreditaram na promessa do seulíder e no segundo jogo venceram por 2-0 e seguiram em frente na eliminatória. Esteepisódio ilustra a importância que assume a comunicação – que leva à empatia e aocarisma – entre líder e seguidores. O impacto da mensagem sobre o estado de espírito daspessoas é fundamental e, por isso, a consciência do papel das emoções nos seguidores –porque não há líderes sem seguidores – faz a diferença entre a liderança poderosa, quetransforma e escreve a história, e a liderança comum.No desenvolvimento das suas ideias, Goleman, Richard Boyatzis e Annie McKee (2005)apresentam-nos no seu último livro, Os Novos Líderes – A inteligência emocional nasorganizações, um novo conceito: liderança primal. Defendem Goleman et al que o “papelemocional do líder é primal – isto é, vem em primeiro lugar – em dois sentidos. É oprimeiro acto de liderança e, ao mesmo tempo, é o mais importante” (Goleman et al 2005:25). Ou seja, uma das principais acções do líder passa por conduzir as emoções colectivasdos seus seguidores de forma a conseguir resultados e efeitos superiores ao simplesdesempenho positivo das tarefas. Este aspecto, como à frente se verá e desde já se podeintuir, é chave na liderança de José Mourinho. Também aqui o todo – se bem conduzido –vale mais que a soma das partes. Os seguidores, para além da liderança simplesmentetécnica – o líder é o que sabe mais – procuram uma “relação de apoio emocional”(Goleman et al 2005) que se traduza em empatia. Por isso, seja em que patamar for, destaou daquela maneira, por este ou por aquele caminho, a liderança cruza-se com estadimensão primal, o papel emocional do líder enquanto primeiro e mais importante acto deliderança. No entanto, para que tudo isto funcione o líder terá de apelar, ou socorrer-se, dasua inteligência emocional, na forma como conhece, entende e gere as suas emoções e asdos seus seguidores. Estamos a falar de um circuito – ou sistema – aberto por oposição aoscircuitos – ou sistemas – fechados. Nestes últimos não existe comunicação nem dinâmicainteractiva e tomemos como exemplo o sistema circulatório humano (Goleman et al 2005).O que está a acontecer no meu sistema não afecta o do meu vizinho. De todo não é isto queacontece no capítulo das emoções. Neste caso falamos em sistema aberto porque asemoções interagem entre os diversos indivíduos. A minha alegria ou a minha tristezaprovoca – ou pode provocar – estados semelhantes ou alterações do estado emocional65àqueles que comigo lidam diariamente. O mesmo princípio se aplica ao líder e à liderançana relação que mantém com os seus seguidores. Daí que devamos falar em contágio e,neste quadro, podemos entender as criticas de que Mourinho foi alvo, por parte dos seusseguidores, por não ter festejado com eles a vitória na Liga dos Campeões, quando a

comitiva chegou ao Porto e desfilou pelas ruas da cidade enquanto o seu líder se refugiavaem casa, longe dos festejos e das multidões (Lourenço 2004).12 Para o bem e para o mal,todos olham para o líder, os holofotes estão sempre sobre ele e, dessa forma, o lídercontagia não apenas pelo que diz mas pelas emoções que provoca, as quais vão muito paraalém das suas palavras. Num caso e noutro cabe ao líder retirar das pessoas, com quemtrabalha, o melhor que há nelas, para as tornar mais válidas, mais competentes e maisfelizes. Quando o consegue, Goleman et al (2005) dizem que o líder cria ressonância,quando acontece o contrário o líder cria dissonância. O que se pretende da parte daliderança é pois criar ressonância. Daí que, no circuito aberto em que as emoções seconstituem, os investigadores que estamos a citar confiram uma importância muito especialao riso. A alegria é um sentimento de contágio fácil, enquanto que a irritabilidade é menoscontagiosa e a depressão quase não nos toca. O sorriso é, pois, o mais contagiante de todosos sinais emocionais (Goleman et al 2005). É fácil, no nosso dia a dia, arrancar um sorrisoa alguém, mesmo que desconhecido, basta que façamos um sorriso e normalmente somosretribuídos.“É possível que o sorriso seja muito potente devido ao seu papel na evolução: segundoespeculações dos cientistas o riso e o sorriso evoluíram como formas não verbais decimentar alianças, indicando que a pessoa está descontraída e é amistosa, em vez deestar na defensiva ou numa posição hostil. (…) Em sentido neurológico, o riso é adistância mais curta entre duas pessoas, porque liga instantaneamente os seus sistemaslímbicos” (Goleman et al 2005: 30).Desta forma se entende que a transmissão dos estados emocionais de um líder estejarelacionada com a sua expressividade facial, com a sua voz e com os seus gestos. De todasestas maneiras se transmitem sentimentos que podem – ou não – criar ressonância. Assimse entende a ressonância que Mourinho criou nos adeptos do Chelsea que cantando emcoro se levantaram e fizeram a vénia ao Special One; assim se compreende a ressonância12 Nessa altura, num episódio rocambolesco mas real, José Mourinho esteve ameaçado, tal como a imprensareferiu na altura e Lourenço (2004) relata.66que Mourinho criou, com um simples gesto, entre a massa associativa do FC Porto no finaldo encontro com o Panathinaikos (capítulo 1). E o mesmo se poderá dizer de Luis FilipeScolari, seleccionador nacional, quando pediu ao povo português que colocasse bandeirasnacionais nas janelas durante a realização do Euro 2004, em Portugal. A sua mensagempassou de tal forma que uniu todo o país – mesmo aqueles que não gostavam de futebol –em torno de um grupo de 23 elementos. Nestes casos houve liderança com ressonância.3.3. Domínios da Inteligência EmocionalDe que forma, então, um líder consegue chegar a este estado de graça entre os seusseguidores? Goleman et al (2005) falam-nos em domínios da inteligência emocional,dizendo-nos que eles são quatro13, a saber, autoconsciência, autogestão, consciência sociale gestão das relações. As duas primeiras são competências pessoais e determinam aautogestão. As duas últimas são competências sociais e determinam a gestão das relações.Todos estes domínios estão interligados e interagem entre si através das suas váriascompetências associadas, que são dezoito. Não vamos, neste trabalho, rever em detalhecada uma dessas competências. Pareceu-nos apropriado apenas fazer-lhes referência noâmbito da exposição do essencial da teoria da inteligência emocional.A autoconsciência, cujas competências associadas são a autoconsciência emocional, aauto-avaliação e a autoconfiança, traduz-se na capacidade que temos de nos conhecermosa nós próprios, enquanto seres com qualidades, defeitos, limitações, ambições, motivaçõese valores. Só conhecendo-nos a nós próprios e às nossas emoções poderemos estar aptos aconhecer os outros e as suas emoções. Pode considerar-se assim a autoconsciência como abase da inteligência emocional.A autogestão compreende as competências do auto-domínio emocional, transparência,capacidade de adaptação, capacidade de realização, capacidade de iniciativa e optimismo

e é uma derivante da autoconsciência (Goleman et al 2005). Baseia-se na energia que oslíderes necessitam para atingir os seus objectivos. O líder tem de controlar as suas emoções– neste caso emoções negativas ou perturbadoras que são aquelas que produzemsentimentos negativos por oposição aos positivos, que são o melhor que há em nós – para13 No início dos seus estudos Goleman apontava cinco domínios da IE: Autoconsciência, Autogestão,Motivação, Empatia e Aptidão Social.67delas não ficar refém. Desta forma se entende que o estado de espírito dos líderes nãopertence apenas à sua esfera pessoal de comportamento já que, como atrás foi referido,devido ao contágio emocional do líder as suas emoções têm consequências no domínio dasua equipa e do público. Por isso “nenhum líder é capaz de gerir as emoções dos outros senão for capaz de gerir as suas próprias emoções” (Goleman et al 2005: 66).Na consciência social encontramos como competências associadas o espírito de serviço, aconsciência organizacional e a empatia, sendo esta última, claramente, a mais importante.Este é o domínio fundamental para gerar ressonância, assim se entendendo a importânciada empatia. Em sintonia com os seguidores o líder poderá decidir sobre a melhor maneirade aproveitar das emoções dele e dos outros. Poderá conter tensões ou dividir alegrias,aplacar optimismos ou aliviar pessimismos, enfim, poderá e deverá gerar os equilíbrios quesirvam as tarefas.Por fim, a gestão das relações engloba a liderança inspiradora, a influência, a capacidadede desenvolver os outros, a catalisação da mudança, a gestão de conflitos, a criação delaços e o espírito de equipa e colaboração. A gestão das relações começa com aautenticidade – ser honesto, verdadeiro, fazer o que se diz e dizer o que se faz – umacaracterística fundamental para a relação com os outros. Um líder autêntico inspiraconfiança e esta facilita a capacidade de persuasão, a gestão dos conflitos, a disposiçãopara a mudança e a própria colaboração dos seguidores e desta forma torna-se mais fácil –e mais eficaz – o entusiasmo geral à volta de um projecto comum.3.4. Estilos de Liderança EmocionalA inteligência emocional eficaz implica todos aqueles domínios, pois a generalidade dassuas competências deverá e terá de ser usado. No entanto é a personalidade –características individuais únicas – de cada um que faz com que este todo seja utilizado,actue, em dosagens diferentes. É este doseamento, ou seja, a capacidade de o líder usar, ousocorrer-se, mais deste ou daquele aspecto, em maior ou menor grau, nesta ou naquelacircunstância, que produz os diferentes estilos de liderança. Goleman et al (2005)propõem-nos então seis estilos de liderança que não são, contudo, estanques, no sentido depara a cada líder corresponder apenas um estilo de liderança. Um líder pode, de uma formamarcante, ser seduzido por um estilo, mas nada o impede, na prática, de em determinado68momento, sob certas circunstâncias, actuar mais de acordo com outro estilo que possaproduzir resultados mais eficazes. Este aspecto ajuda-nos a perceber um outro tipo dedivisão. Dos seis estilos, quatro deles – visionário, conselheiro, relacional e democrático –são geradores de ressonância. Os outros dois – pressionador e dirigista – tenderão aproduzir dissonância a não ser em situações muito específicas. Abaixo descrevemosbrevemente cada um dos estilos de liderança, com exemplos de aplicação prática a JoséMourinho. Embora para quase todos os estilos possamos encontrar exemplos nocomportamento de José Mourinho, o que é algo digno de registo e que analisaremos mais àfrente nesta dissertação, cremos que este treinador português se aproxima mais de um dosestilos de liderança emocional. Mas, como referimos, tal análise é feita adiante no capítulo9.Estilo Visionário – Talvez a característica mais importante do líder visionário sejaa de inspirar os seus seguidores. Contudo, o seu segredo está na forma como o faz.Este tipo de liderança encontra suporte na forma como exprime os seus objectivos.Porque o que vale para os outros vale para si próprio, este líder sintoniza-se com os

seus subordinados porque partilha os mesmos valores, logo é autêntico. Assim, nãolhes incute ideias e fins sem que eles os descubram por si mesmos, e nelesgenuinamente acreditem, embora, obviamente condicionados pelo caminho que olíder lhes propõe e pelos objectivos a atingir. O líder visionário leva os seguidores arealizarem as suas tarefas de uma forma envolvente, ou seja, deixa-lhes espaço paraque sejam eles a descobrir um caminho que ele próprio já imaginou. ComMourinho é isto mesmo que se passa com a técnica que apelidou de descobertaguiada. A sua autenticidade e partilha dos valores que apregoa está bem expressaquando, depois da derrota com o Panathinaikos, ele disse aos seus jogadores: “Nósvamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acredita que é possívelganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu vou para aGrécia com outro” (Lourenço 2004: 151).Estilo Conselheiro – Este estilo encontra muito do seu fundamento na capacidaderelacional do líder com cada um dos seus subordinados. O líder vê o homem paraalém do profissional e interessa-se pelo seu bem-estar dentro e fora do trabalho.Conversa, ouve e aconselha de uma forma individual, porque cada ser humano éuno e diferente. Goleman considera que este estilo não é muito praticado na69actualidade, no entanto é um estilo capaz de gerar ressonância já que os líderesconselheiros ao estabelecer ligações ajudam as pessoas a identificar os seus pontosfortes e fracos, criando uma ligação directa e efectiva ao seu desempenho. Nãosendo talvez o seu ponto forte, José Mourinho pode, também aqui, encontraralguma fundamentação da sua liderança. Podemos perceber isso nas palavras deDesmond Morris14: “Mourinho identifica-se mais com a sua equipa do quequalquer outro treinador. Ele está apaixonadamente envolvido com eles. (…)[D]iscordo ligeiramente do retrato que fazem dele como um pai para os seusjogadores. Ele é mais como um irmão mais velho. Ou o chefe do bando” (Morris inBarclay 2006: 157-8).Estilo Relacional – Este estilo caracteriza-se pela partilha de emoções. O lídercelebra e o líder chora. Coloca a ênfase no ser humano e nos seus sentimentos maisque no profissional e ao fazê-lo gera grandes laços de fidelidade e relacionamento.É, no entanto, um estilo de liderança que não melhora de uma forma directa odesempenho das pessoas. Embora Mourinho se emocione com os seus jogadoresnão podemos considerá-lo um líder relacional já que ele raramente admite erros eprocura sempre de uma forma directa o aperfeiçoamento individual e colectivo,sendo isto, para ele, o mais importante. Não dissocia, portanto, numa perspectivacomplexa, a felicidade pessoal do desempenho pessoal tal como se percebe daspalavras do jogador do Chelsea, Joe Cole: “Ele é a primeira pessoa a olhar a sériopara mim e para a minha maneira de jogar” (Cole in Barclay 2006: 142).Estilo Democrático – O líder democrático, tal como o próprio nome indica, recorreaos contactos pessoais, à discussão, à partilha de ideias e às sugestões. Fá-lo emreuniões, que podem ser alargadas, e escuta as preocupações dos participantes. Aoouvir os outros encontra grande parte do fundamento do seu próprio processodecisório. Cria um clima emocional globalmente positivo e funciona melhor se olíder tiver dúvidas. Pela própria personalidade, conhecimentos técnicos ecompetência de José Mourinho não o enquadramos directamente neste estilo deliderança, como a análise final comprovará14 Autor do célebre best-seller O Macaco Nu.70Estes quatro estilos de liderança que acabámos de analisar geram, em maior ou menorgrau, ressonância. Vejamos agora, numa breve descrição, os dois estilos que deverão serusados com muito cuidado ou o seu resultado final poderá ser desastroso, porque geradorde dissonância.

Estilo Pressionador – É um estilo de actuação utilizado em determinadoscontextos porque não traça linhas claras de actuação. Quase sempre o líder estáfocalizado nos objectivos, deixando para um plano completamente secundário aspessoas, o que poderá ter como resultado – e a médio/longo prazo tem seguramente–a dissonância. Contudo, como referimos, num contexto determinado e em dosesmoderadas a pressão pode levar a desempenhos positivos. É um estilo que pode ounão identificar-se com José Mourinho. Lembrarmo-nos da sua entrada no Estádioda Luz para o jogo Benfica/Porto em 2003, antes dos seus jogadores, como formade os aliviar da pressão exercida pelos adeptos benfiquistas. Mourinho tenta sempreretirar a pressão, ou demasiada ou não apropriada pressão, dos que consigotrabalham. No entanto, a pressão em causa neste exemplo é algo que vem doexterior da equipa, não é exercida pelo líder. Quando falamos na pressão exercidapelo líder – e aqui o enquadramento no estilo pressionador já será mais correcto –,então podemos afirmar que José Mourinho se encaixa também neste estilo deliderança. A comprovar esta análise estão as palavras de Rui Faria, no capítulo 7:“Quem vive profissionalmente com ele tem de saber viver com grande pressão e aomesmo tempo tem de dar resposta positiva. A pressão que José Mourinho exercesobre o seu grupo de trabalho é feita de um modo muito particular em função dasdiferentes situações.” Mourinho pressiona os jogadores, desfiando-os constante econsistentemente, a dar o máximo deles próprios, a superarem-se, a “serem osmelhores”.Estilo Dirigista – Este estilo de liderança preconiza a obediência cega, o que o ligaa uma forma eminentemente coerciva de estar na vida. Na sociedade actual é omenos aceitável e tolerável podendo, no entanto, ser aceite em situações muitoesporádicas, como, por exemplo, face a ameaças.Ficou assim revista a teoria da inteligência emocional, a qual, sob a perspectiva dacomplexidade, constitui uma das bases teóricas desta investigação. Mostrámos que a sua71principal noção – a emoção – é algo intrínseco ao nosso ser. A inteligência emocional diznosque devemos ser inteligentes sobre as nossas emoções e as dos outros, noção que seaplica com maior intensidade aos líderes. Alguns dos aspectos desta teoria ficaramobviamente fora desta nossa abordagem. Não focámos aspectos como a aprendizagem ou oaperfeiçoamento da inteligência emocional, ou mesmo o seu intrínseco valor na liderançaem comparação com o QI. Estes e outros pontos tiveram que ficar de fora dada a suamenor relevância para o estudo do caso em análise.72

CAPÍTULO 4O GRUPO E O COMPORTAMENTO GRUPAL73Não existe liderança que não se dirija a alguém. Por definição, liderar pressupõe o plural,ou seja, um líder a comandar alguns ou muitos seguidores ou subordinados. A liderança emcausa nesta investigação – a de José Mourinho – dirige-se, essencialmente, a um grupo deprofissionais, cerca de 30 a 35 elementos, na sua maioria jogadores de futebol, inseridosnum clube de topo mundial e, portanto, actuando num ambiente altamente competitivo. Éeste o contexto da revisão da actividade de investigação sobre o fenómeno dos grupos, queagora apresentamos; tema que, pelos vários exemplos enunciados, tudo indica deveassumir uma posição importante na investigação sobre o trabalho e a liderança de JoséMourinho.4.1. O Grupo: o TodoNuma perspectiva de complexidade, ao olharmos para uma equipa de futebol, para umgrupo concreto de profissionais de alta competição, olhamos para uma organização, umsistema aberto e complexo, interactivo no seu seio e com o exterior. Trata-se de um todo

composto pelas partes que são os jogadores individuais, também eles, em si mesmo,sistemas abertos, interactivos e complexos, que encontram o seu enquadramento e projectono todo de que fazem parte. Ao analisarmos o fenómeno dos grupos no contexto destainvestigação, não poderemos deixar de ver as partes – os jogadores – como um outro tododentro do todo maior que é o grupo – a equipa de futebol.Nos anos 30/40, sob forte influência dos autores do que hoje é conhecido como a escolaclássica da teoria organizacional, Frederick Taylor (1856-1915), Henry Fayol (1841-1925) eMax Weber (1864-1920), encarava-se o indivíduo como uma peça singular, seminteractividade grupal, emocional, motivacional. Partia-se do geral para o particular, ouseja, determinava-se o espaço, o tipo de tecnologia e a tarefa para determinado objectivo esó depois se “encaixava” o indivíduo que, assim, vinha em último lugar (Ferreira et al2001), como se da última peça de um puzzle se tratasse. Esquecia-se – ou desconhecia-se –que a organização é um todo complexo e, como tal, ela desenvolve actividades cujaessência é o funcionamento grupal e não individual.Mas o que é, então, um grupo? Numa primeira análise poderíamos ser levados a pensar quea resposta seria fácil e até a questionarmo-nos sobre a necessidade de se procurar umesquema conceptual para analisar o fenómeno grupos. Sendo o grupo algo tão essencial74para as nossas vidas – todos nós fazemos parte de grupos formais ou informais, públicos ouprivados, pequenos ou grandes, profissionais ou lúdicos, nacionais ou internacionais, etc. –não seria o bom senso condição mais que suficiente para a sua definição? A literaturaoferece-nos um vasto leque de posições sobre o tema. Stephen Littlejohn, a propósito dacomunicação em pequeno grupo afirma que a investigação sobre grupos se trata de umaárea “particularmente confusa de estudo” (Littlejohn 1988: 253). Vaz Freixo sublinha omesmo aspecto:“[O] domínio da chamada dinâmica de grupo continua a ocupar um lugaraparentemente mal definido nas ciências sociais: aspira a um lugar em disciplinascomo a psicologia social, a sociologia, a psiquiatria, a psicologia industrial, o serviçosocial e a psicologia clínica. (…) [A] dinâmica de grupo não se encontra organizadaem parte alguma” (Vaz Freixo 2006: 176-7).Esta passagem reflecte a dificuldade de recolha de material consistente sobre um tema emque a literatura se encontra extremamente dispersa, surgindo por vezes nos seuspressupostos e nos seus termos e expressões mesmo como algo contraditória. Assim,seguimos um método de investigação e de sistematização assente num critério desobreposição. Este caminho tenta ser fiel à consensualidade de posições numa amplitudeque vai da psicologia à teoria organizacional, passando por áreas como a sociologia ou apsiquiatria, entre outras. No entanto, não quisemos deixar de rever a investigação sobregrupos já que, como se verá adiante – e de alguma forma no primeiro capítulo se pôde jáconstatar – a noção, a dinâmica e o funcionamento grupal são aspectos fundamentais notrabalho de José Mourinho.Das muitas noções de grupo que analisámos, todas elas, de uma forma geral, nos referemas ideias de interacção, de interdependência e de consciência mútua dos seus membros.Efectivamente, um grupo constitui-se através de uma série de pessoas, unidas em torno deum projecto, de um objectivo, de valores comuns, ou de uma tradição ou de qualquer outrolaço cultural, emocional ou biológico, que na acção entre si, interdependente e interrelacional,conseguem atingir resultados impossíveis de obter individualmente. Estadefinição encerra em si própria uma outra extensão da noção de grupo. Pela interacção einterdependência e/ou pelo seu objectivo final – conseguido ou não de uma forma mais oumenos eficaz –, um qualquer acontecimento que afecte um indivíduo irá afectar igualmenteos outros elementos do grupo, de onde se conclui que existe sempre no grupo um qualquer75tipo de interacção entre os seus membros. Se tal não acontecer não existe grupo.

Efectivamente, os critérios em que se baseiam os investigadores para definir um grupo, talcomo a sua dimensão por exemplo, não são pacíficos e inclusivamente discute-se a questãoda interacção como elemento necessário para tal efeito. No entanto, adoptando umaperspectiva de pensamento complexo julga-se não ser possível retirar do conceito de grupoa interacção entre os seus membros. Tanto mais forte se coloca o argumento quanto mais ocolocarmos no campo do tipo de grupo que é uma equipa de futebol – o objecto da nossainvestigação. É neste sentido, de uma interacção fundamental entre os elementos do grupo,que podemos falar de grupo como um organismo e não apenas como um aglomerado deindivíduos.4.2. A Cultura do GrupoAqui chegados – à noção de grupo como organismo – é importante introduzirmos oconceito de cultura organizacional. A cultura de um grupo é determinante no seufuncionamento interno, enquanto organismo, enquanto ser vivo e aberto ao exterior.Segundo Edgar Schein (2004), a cultura é um conjunto tácito de pressupostos básicos sobrecomo o mundo é e como deve ser, o qual é partilhado por uma comunidade de pessoas edetermina as suas percepções, pensamentos, emoções, e em grande parte o seucomportamento. A cultura de uma organização, de um grupo, de uma equipa de futebol, noseu nível mais profundo, é os seus valores básicos, a sua ideologia, a razão de ser de quemestá ali, da forma como está e como é. A cultura organizacional, seja de uma organizaçãoformal – como, por exemplo, uma empresa ou uma equipa de futebol –, seja de umaorganização informal – como, por exemplo, um grupo de amigos –, constitui-se nospressupostos que guiam e modelam os comportamentos dos indivíduos e do grupo. Tratasecomo que de um filtro, através do qual tudo é percepcionado e imediatamentevalorizado num sentido ou noutro. O mundo, a totalidade do que nos surge, surge já noâmbito de um paradigma cultural (Johnson 1992). A cultura não é assim algo que vemdepois daquilo que já experimentámos para nos ajudar a decifrá-lo, a valorizá-lo e acompreendê-lo. A cultura vem antes de tudo isso. A cultura é como tudo surge. Trata-se devalores evidentes em aspectos tangíveis, como por exemplo nas histórias que se contam eque se não contam, nos rituais, na linguagem, na decoração dos escritórios, no layout, na76forma de vestir (Rosenfeld e Wilson 1999). A cultura é assim a forma usual e tradicionalde se pensar e fazer as coisas numa dada organização ou em dado grupo; essa forma oumaneira de fazer as coisas por aqui é partilhada em maior ou menor grau por todos os seusmembros, e os novos elementos devem aprendê-la, e apreendê-la, e pelo menosparcialmente aceitá-la, para serem tidos como membros da organização (Elliot Jacques inRosenfeld e Wilson 1999). Quando um novo elemento integra uma organização ele éconfrontado com uma nova realidade, e daí a importância do conhecimento dessa mesmarealidade. É nela que se irá mover, produzir e conviver e, portanto, é nessa contingênciaque poderá – e pressupõe-se que deverá – trazer algo de novo, adiantar algo à organização,a si próprio e aos outros e só o fará se enquadrado e contextualizado na nova cultura. Osseus superiores poderão, no primeiro dia, apresentar-lhe a estrutura formal da organizaçãoe essa passará então a conhecida. Contudo, essa estrutura formal não abarca a realidadetotal da organização, já que a descrição formal não conseguirá nunca captar a essência davida organizacional. Por outras palavras só a vivência do dia a dia poderá entender quemsão os outros elementos, o que eles sentem, quais as histórias que contam e até quais asregras informais que estão instituídas e pelas quais se pauta a vida na organização. É estetodo que se chama cultura organizacional e que extravasa em larga medida tanto as normasformais como a própria ideia que temos da organização. Podemos conhecer – de umaforma mais ou menos profunda – uma organização por fora mas só a conhecemos pordentro quando conhecemos também a sua cultura organizacional. É desta forma que, nonosso dia a dia, quando alguém nos pergunta como é a empresa onde trabalhamos,raramente começamos a resposta com a descrição das normas que fazem a sua estruturaformal (Rosenfeld e Wilson 1999; Tosi e Mero 2003).

“If a friend asks you to describe the new organization you have joined, it is highlylikely that you will begin to describe the culture of the organization. You might saythat the office appears friendly, your peers are approachable, no-one is pressurizing forcompletion of your work, so long as the job gets done you can fill your work hours asyou like, and the new firm as a pleasant feel to it. People laugh and have a joke and thework gets done just the same” (Rosenfeld e Wilson 1999: 269).São estes aspectos intangíveis, conjugados com os tangíveis, que nos dão a noção dacultura organizacional. No fundo cultura é uma palavra-âncora que resume a actuação deuma maneira geral, o clima que se sente e até as próprias noções gerais de como os77membros se sentem, se movem e como interagem numa organização. É desta forma que acultura organizacional acaba por influenciar os padrões de comportamento dos indivíduos.Detalhando a análise da cultura organizacional, Cohen e Fink (2003) consideram queexistem cinco elementos importantes: (i) o ambiente empresarial, que determina o lugarda empresa no mundo onde se move e que é definido pela concorrência, pelos clientes,pela sua tecnologia, entre outros; (ii) os valores, que se traduzem nos conceitos e crençasda organização; (iii) os heróis, que simbolizam os valores culturais e se destacam comomodelos neste ou naquele sector; (iv) os ritos e rituais, que são as rotinas da empresa; e(v) a rede cultural, que perpetua os valores e a história da organização.No desenvolvimento da cultura organizacional é importante o papel individual dosmembros do grupo ou da organização, não só quando interagem entre si mas tambémquando se juntam à organização novos elementos. Falamos daquilo a que Cohen e Fink(2003) chamam sistemas pessoais, isto é, toda a complexa teia de valores e de sentimentosbem como a história que qualquer pessoa leva consigo mesma quando se integra numaqualquer organização e assim entra num novo mundo de processos complexos em quetodos participam e todos interagem.“[A] pessoa chega ao grupo com um conjunto de atitudes que ao combinar-se com osdemais participantes contribui para criar o que emerge. (…) O indivíduo no grupo étambém o portador da cultura mais ampla, na medida em que trás normas valores epercepções que são introduzidas no grupo por meio dos seus participantes” (Cohen eFink 2003: 70).Desta forma nota-se a influência que uma cultura mais abrangente tem sobre uma menosabrangente – cultura organizacional – e, portanto, é importante pensar-se em termos deevolução dessa mesma cultura. Com a actual diversificação da força de trabalho, com aintegração na sociedade globalizada de pessoas de diferentes continentes, países,subgrupos étnicos ou raciais, de situações económicas diferentes, etc., os grupos, enquantosistemas abertos e complexos, estão em permanente evolução ou mudança, nunca podendofechar-se sobre si próprios, já que eles são em si mesmos uma importante componente daprodução e da sobrevivência de qualquer sociedade.784.3. Tipos de GruposRevista a noção de cultura organizacional, passamos agora à apresentação de tipologias degrupos. Destacamos as propostas de Rabbie e Lodewijkx (1994), que nos apresentam umcritério contínuo que vai da categoria social, entendida como um grupo de dois ou maiselementos que têm entre si pelo menos um elemento de ligação que os distingue dosmembros de outras categorias, à organização social, que se pode caracterizar como umsistema social hierárquico de grupos organizados e que interagem quanto aos objectivos ouà repartição de recursos.Outra proposta interessante é a de MacGrath (1984), que apresenta uma distinção entregrupos naturais, grupos artificiais e quase-grupos. Os grupos naturais, segundo MacGrath(1984) são relativamente pouco investigados. Encaixam nesta categoria a maioria dosgrupos organizados que integram as organizações, como por ex., secções e departamentos,grupos de trabalho e comissões e até mesmo as comissões de trabalhadores. Os gruposartificiais, pelo contrário, são constituídos pelo investigador para fins de observação ou de

manipulação de varáveis. Desta definição emergem os quase-grupos, pela necessidade doinvestigador muitas vezes ser obrigado a limitar a interacção entre os elementos do gruposob estudo – por exemplo, determinando que só podem comunicar entre si através decanais pré-estabelecidos, ou fixando a realização de tarefas sob a forma de sequências ouesquemas previamente definidos, não deixando assim margem para a interacção einterligação espontâneas.Outra tese, a que à partida possivelmente mais se aproxima do fenómeno “equipa defutebol”, é a apresentada por Goldstein (1983). Enquanto características da dinâmicagrupal referem-se quatro vertentes: dimensão, formalização, composição e intimidade.Vejamos então de que forma podemos enquadrar neste contexto teórico um grupo deprofissionais de alta competição.Quanto à dimensão considera-se que os grupos podem ser grandes ou pequenos, nãoexistindo um limite para o seu tamanho. No entanto, quanto maior for o grupo, menor é apossibilidade de interacção entre os seus membros, logo, mais se dilui o conceito de grupoentre os seus membros. Goldstein (1983) considera como limite máximo para um grupopequeno trinta elementos. Numa equipa de futebol é hoje tendência generalizada a escolhade 23 jogadores, sendo que três serão guarda-redes e os restantes dois para cada posição79em campo. O padrão de enquadramento da interacção reside na promoção de concorrênciapara cada um dos lugares da equipa (a norma é de dois jogadores para cada posição,podendo apenas jogar um), bem como na prevenção de eventuais lesões, havendo por issosempre outro jogador com as mesmas características para ocupar o mesmo lugar. Uma dasquestões que se coloca quanto à dimensão do grupo refere-se à sua influência nosprocessos de interacção e às consequências que daí advêm para a obtenção de resultados.Quanto maior for o número de elementos num grupo, maior o número possível deinteracções, por um lado, e maior o número de interacções diferenciadas, por outro lado.Este facto favorece a emergência de um subgrupo dominador, de uma sub-cultura, o quepor simpatia leva a que se criem condições para a emergência de um ou mais líderes. Nestesentido, a complexidade crescente da organização – pelo número de elementos que leva aum maior número de interacções – não nos conduz, necessariamente, ao aparecimento demais ideias e debate que possam gerar uma maior eficácia no desempenho das tarefas.Segundo Gibb (1961) a produtividade das ideias decresce à medida que o número deelementos aumenta. Este facto fica a dever-se às deficiências de comunicação que se criamentre os elementos à medida que vai aumentando o número de interacções, ou seja, quantomais se estende a rede maior se torna a distância entre os elementos e menos directa setorna a comunicação.No que diz respeito à característica formalização, conforme a Goldstein (1983), os grupospodem ser formais ou informais. Como o nome indica, os grupos formais regem-se pornormas e procedimentos estabelecidos. Nos grupos informais o relacionamento entre osseus membros é muito próximo do relacionamento familiar (Goldstein, 1983), nãoadmirando pois vermos frequentemente os jogadores de futebol referirem o ambiente dobalneário como o de uma família. Desta proximidade entre os elementos resulta que apartilha de informação, facilitada pela natureza informal do grupo, permite a fácilintrodução de novas ideias, permitindo também ajustamentos com vista à melhoria dofuncionamento do grupo (Rosenfeld e Wilson 1999).Têm vindo a levantar-se dúvidas sobre a predisposição deste tipo de grupos para amudança, uma vez que a sua natureza pode fazer com que eles se tendam a fechar sobre sipróprios. A sua coerência natural, tal como a solidariedade psicológica característica deuma estrutura quase familiar, não poderão deixar de ser consideradas neste aspecto. Éainda importante referir que nos grupos informais existe uma menor tendência para a80formação de sub-grupos do que nos grupos formais; o que é facilmente compreensíveldada a base voluntária em que os primeiros assentam.

Na dimensão da composição tenta perceber-se o grau de semelhança entre os elementos dogrupo tanto no que se refere a características demográficas, sociológicas ou psicológicas.Distinguem-se os grupos homogéneos e os heterogéneos. Quanto aos primeiros,caracterizados pelos seus membros serem semelhantes e compatíveis no que toca àsnecessidades e características pessoais, eles tendem a desenvolver melhor a funcionalidadedo grupo não gastando tantas energias na sua manutenção, pelo que também os seusobjectivos tendem a ser mais facilmente atingidos do que nos grupos heterogéneos. Assimse entende uma das razões pelo qual Mourinho, na construção de uma equipa como o FCPorto, pretendeu contratar jogadores jovens, ambiciosos e pobres (Lourenço 2004). Quantoaos grupos heterogéneos é justamente a individualidade de cada um que tende a sobressair.Por exemplo, Hoffman (1959), concluiu que num grupo heterogéneo as tarefas intelectuaisque envolvem resolução de problemas são mais facilmente e mais frequentementeresolvidas. Os grupos heterogéneos tendem, em geral, a obter melhores resultados do queos homogéneos.Por fim, a intimidade dos membros do grupo, a última das vertentes analisadas porGoldstein (1983). Nesta dimensão, o autor propõe uma divisão entre intimidade primária eintimidade secundária. Numa situação de intimidade primária, aceita-se e promove-se ocontacto directo entre os elementos do grupo, desenvolvendo-se dessa forma valores eatitudes dentro do colectivo. Na intimidade secundária o contacto é distante, não pessoal eportanto fundamentado em papéis bem definidos. Também aqui se percebe como oconceito de grupo primário se cruza com o que se passa numa equipa de futebol;lembramo-nos dos constantes estágios para promover a ligação, a união e a amizade entreos jogadores da equipa.4.4. Formação e Desenvolvimento do GrupoSejam os grupos de que natureza forem, enquanto organismos vivos estão sempreconfrontados com um processo natural de desenvolvimento. Disso depende a sua eficáciajá que o aperfeiçoamento das suas tarefas e do seu próprio funcionamento se desenvolvecom o tempo (Cohen e Fink 2003). Assim, aceitando que nenhum grupo pode ter eficácia81imediata ou eficácia absoluta, ele confrontar-se-á com vários estádios de desenvolvimento,os quais uma vez identificados e ultrapassados ao longo do tempo, contribuirão para oaperfeiçoar do seu funcionamento. Neste campo Tuckman (1965) apresenta-nos talvez amais clássica e aceite teoria das fases de desenvolvimento do grupo. Para o autor devemosfazer a divisão em quatro fases: formação, turbulência, normalização e desempenho. Aformação refere-se à constituição do grupo, onde se inicia o conhecimento interpessoal e secomeça a incrementar as bases de afiliação e de aceitação; a turbulência é o período dasinfluências que levam, inúmeras vezes, ao conflito, já que a luta se desenrola no campo docontrolo e do papel de cada um dentro do grupo; a normalização surge na sequência e emconsequência do desenvolvimento das relações interpessoais que geram regras e normas deconvivência – os elementos já se conhecem melhor e tendem a resolver os conflitos da faseanterior; o desempenho, a fase em que pode dizer-se que o grupo se encontra finalmenteem velocidade de cruzeiro, surge como a fase de estabilização e de desenvolvimento dogrupo, entendendo-se e aceitando-se as diferenças, dividindo-se os papéis de liderança,trabalhando-se em prol dos objectivos e, desta forma, conseguindo-se o comprometimentode cada um e a interdependência operacional para que os fins do grupo sejam atingidos.Embora esta teoria, como foi referido, seja talvez a mais aceite e divulgada, Obert (1979)propõe uma outra aproximação, na qual sugere cinco fases de desenvolvimento do grupo,desde o seu início até à fase da sua estabilização. Embora consideremos que, no seu todo,não existem grandes diferenças entre as propostas de Tuckman e de Obert, julgamos que osegundo autor vai um pouco mais longe ao propor-nos uma categoria adicional, o que naprática nos remete para uma divisão mais detalhada, a qual nos parece mais consistente eminuciosa face à dinâmica do desenvolvimento dos grupos. Assim, a primeira fase, a quechamou Obert citado em Cohen e Fink (2003) chamou de filiação, reporta-se à fase inicial

do grupo. É a fase dos primeiros contactos com os outros elementos do grupo e com astarefas e os seus objectivos. Nesta fase “os participantes tendem a preocupar-se com aprópria segurança e com o seu lugar no grupo mais do que com os esforços colectivos comvista às tarefas” (Obert in Cohen e Fink 2003: 134), pelo que o ambiente tem tendênciapara a tensão entre os elementos e as interacções são conduzidas com cuidado,sobressaindo a cordialidade e a superficialidade. Daqui resultam deficiências de eficácia naexecução das tarefas já que os executantes se dedicam a elas com muita energia mas, aomesmo tempo, estão pouco coordenados entre si, dadas as dificuldades de comunicação82que uma a distância emocional existente gera. Natural, pois, a necessidade de um maiorconhecimento entre os elementos, ao mesmo tempo que se torna imperativo criarexpectativas fundadas sobre as metas e os objectivos a atingir. Cabe aqui uma palavrasobre a liderança do grupo, vital para facilitar e promover o conhecimento entre os seuselementos, bem como para clarificar os objectivos de todos enquanto grupo.Numa fase posterior surge o sub-agrupamento. Com o tempo vão criando-se laços entre oselementos integrantes do grupo. Por diversos motivos os elementos do grupo tendem aidentificar-se mais com este(s) ou aquele(s) membro(s). São as chamadas “alianças emtorno de problemas de trabalho” que conferem um papel central às relações interpessoais.As pessoas tendem a juntar-se àquelas com quem sentem mais afinidades e tendem aafastar-se das outras, vistas como potencialmente perigosas. São assim criados os subgruposque levam a um maior desanuviamento do ambiente de trabalho, embora nestecontexto não possa afirmar-se que a informação se transmita de uma forma muitoconsistente. De qualquer maneira existe a tendência para a cooperação entre os elementosdo grupo, porque “[n]esta fase os grupos às vezes desenvolvem um sentimento deunanimidade de propósitos e uma coesão que na verdade podem ser falsos, pois estãoalicerçados numa tendência para evitar conflitos e inibir avaliações” (Cohen e Fink 2003:135).A terceira fase do desenvolvimento do grupo é a confrontação. Neste estádio dedesenvolvimento emergem as relações entre os subgrupos bem como as lideranças a elessubjacentes. Trata-se de uma fase em que se podem descortinar lutas pelo poder e“questionamentos em torno do papel dos participantes e da divisão do trabalho, bem comodúvidas relativas à contribuição e à avaliação dos participantes” (Cohen e Fink 2003: 135).Por este motivo a aparente coexistência pacífica entre os membros começa a desaparecerpara dar lugar a visíveis afastamentos. Neste ponto vários perigos se colocam ao grupo,como são por exemplo os casos de confrontos, resolvidos por meio de autoridade e de onderesultam vencedores e vencidos, o que pode, por sua vez, gerar saídas de cena ou novosconflitos. Neste último caso é seguramente a organização que sai a perder já que nosconflitos as energias são concentradas no ataque ou na defesa de um aspecto geralmentemarginal aos interesses da organização em detrimento da produtividade do todo. Noentanto, o inverso da medalha também é verdadeiro, ou seja, na fase da confrontaçãopodem surgir oportunidades para a organização, como por exemplo o sucesso na resolução83de conflitos – esclarecimento de mal-entendidos, etc.– o que pode conduzir a uma maiorcoesão do que a observada inicialmente.Em seguida temos a diferenciação individual, uma fase mais estável e onde a tendência dainteracção entre os membros vai para questões como a divisão do trabalho e a avaliaçãodos participantes. A receptividade às diferenças entre cada um já é aceitável e as relaçõesinterpessoais são mais autênticas. Cada um começa a assumir o seu lugar no grupo, o qualpassa a ser visto como um todo que é preciso desenvolver e melhorar. “Este estádio podeser marcado por uma espécie de euforia, já que os filiados começam a perceber que épossível participar no grupo sem ter de lutar até à morte ou ter de desistir totalmente damaioria dos desejos” (Cohen e Fink 2003: 136), por isso o ambiente do grupo vaitornando-se coeso e forte, vivendo-se um sentimento de confiança e de progresso, também

muito por via das dificuldades vencidas nas fases anteriores.Por fim a fase da colaboração. Para Obert (1979) são poucos os grupos que aquiconseguem chegar. Entramos assim num momento do desenvolvimento do grupo onde asrelações entre os seus membros são autênticas e, desta forma, a critica – positiva e negativa– é feita num espírito construtivo e sem qualquer intenção que não seja a de promover aeficácia geral do grupo. “O grupo aprende a equilibrar esforços individuais e grupais nassuas tarefas (…), trabalhando cooperativamente quando o que se requer são muitasopiniões e pontos de vista” (Cohen e Fink 2003: 136). Nesta fase salienta-se o olhar para opassado no sentido de se aprender para o futuro. É uma fase de introspecção permanente,de reexame de processos face à apresentação de novos problemas. As questões deixadas delado nas fases anteriores são recuperadas e recicladas já que não existem maisdesconfianças. Estamos, pois, na fase de plena maturação do grupo, em que os seuselementos “crescem e desenvolvem-se individualmente” (Cohen e Fink 2003: 136).Pode, pois, parecer que nesta última fase se encontre o estádio de maior perfeição nofuncionamento do grupo. Contudo não é assim; é justamente neste último estádio dedesenvolvimento que encontramos dinâmicas de grupo que podem levar a errosdramáticos. É claro que na colaboração encontramos o mais elevado nível de coesão dogrupo; também é claro que a coesão do grupo leve à eficácia do mesmo; o que já não éclaro é que coesão leve sempre à eficácia. Introduzimos, pois, um novo elemento, opensamento grupal, que decorre directamente dessa coesão e que muitas vezes concorre84para a tomada de más decisões que podem conduzir a estados de catástrofe. A coesão podede facto levar os elementos do grupo a tornarem-se vítimas da sua própria solidariedade.Em ambiente de grande coesão – ou unidade – os comportamentos tendem a serconsensuais e, muitas vezes, o essencial é esquecido. Coloca-se de parte a análise e adiscussão e tende a aceitar-se o que é proposto em nome dessa mesma coesão. Este tipo decomportamento apresenta-se com maior intensidade se o grupo estiver envolvido numambiente extraordinário, ou seja, se estiver submetido a stress, se tiver necessidade deapresentar resultados imediatos. Se o grupo sentir a pressão do tempo, entre outrosaspectos, então terá maior tendência para que os seus elementos aceitem as opiniões e assugestões uns dos outros sem as discutirem genuinamente e sem necessitarem de asfundamentar. A decisão é de facto alvo de uma aceitação/aprovação consensual por partede todos os elementos do grupo. No entanto nenhum deles, individualmente, assumeverdadeiramente aquela decisão como sua; a desresponsabilização é geral, porqueninguém individualmente tomaria a decisão. O grupo perde, desta forma, eficiência mentalo que leva a uma menor – e em muitos casos errada – capacidade decisória. Aqui chegados– justamente em alturas que exigem uma mais competente capacidade de decisão – asconsequências podem ser desastrosas e mesmo irremediáveis, já que, pelo menos em parte,o que parece concorrer para as fracas decisões é a confluência de vários factores quetornam o grupo incapaz de ponderar as hipóteses em jogo bem como de considerar asconsequências de cada uma delas (Rego e Cunha 2004).Talvez um dos exemplos mais conhecidos de pensamento grupal – até pelas suasdramáticas consequências – seja o caso do Vaivém Challenger. Vejamos os factos, emborade uma forma sucinta: a nave espacial norte-americana, com sete astronautas a bordo, foilançada para o espaço a 28 de Janeiro de 1986. Decorridos 76 segundos depois do seulançamento o engenho explodiu matando todos os tripulantes, constituindo-se no maissério revés – económico e científico – de toda a história do programa espacial norteamericano.Sabe-se hoje que o acidente se ficou a dever a um problema em determinadotipo de juntas/ligações que não apresentavam em condições suficientes para suportar osbaixos níveis de temperatura a que seriam sujeitas. Sabe-se igualmente que os responsáveisda NASA foram atempadamente avisados – cerca de um ano antes do lançamento – para osperigos que a missão corria. Sabe-se, ainda, que duas empresas subsidiárias da NASA (a

Rockwell e a Morton-Thiokol), ligadas à construção das referidas juntas manifestaram85dúvidas – e disso avisaram a NASA através de pareceres – quanto à exequibilidade de todoo processo se fosse mantido aquele tipo de juntas. Sabe-se, por fim, que “entalados entre aspressões da NASA e a renitência da restante equipa de engenheiros, os próprios executivosde topo da Morton-Thiokol (4 vice-presidentes, também eles engenheiros) acabariam portomar uma «decisão de gestão» favorável ao lançamento – contrariando, pois, a suaanterior decisão” (Rego e Cunha 2004: 274). O grupo de decisores da NASA manteve-seentão irredutível na sua posição de não adiar o lançamento. Porquê? Maier (cit. em Rego eCunha 2004: 275) sintetizou as causas do desastre em dois blocos, que levaram aopensamento grupal, o que por sua vez originou uma péssima decisão que custou a vida asete pessoas: “a) a excessiva crença nos sistemas protocolos e políticas estabelecidos; b)preocupações de curto prazo e interesses próprios míopes prosseguidos a expensas daviabilidade a longo prazo e de uma orientação mais holística.” Desta análise resultam duasconclusões: que a administração da NASA – ainda que de uma forma inconsciente – seauto-convenceu que a instituição era à prova de erro; e que as pressões económicas epolíticas eram muitas e bastante eficazes. Mais, ninguém quis assumir o papel de advogadodo diabo com receio de prejudicar objectivamente não só a sua carreira como a própriaposição no grupo. As três constatações levaram a um autismo que resultou em pensamentogrupal: sem discussão, sem uma adequada avaliação dos factos, sem fundamentação dadecisão, tomou-se a pior decisão que se poderia ter tomado e sete pessoas morreram emconsequência disso mesmo (Rego e Cunha 2004). A tragédia do Vaivém Challenger pode,pois, dizer-se que resultou de um esquema de pensamento grupal, só possível precisamenteem grupos coesos e unidos. Fica assim ilustrada a necessidade de permanente atenção aofuncionamento dos grupos, entidades abertas e dinâmicas, organismos vivos, já que,mesmo no seu estádio de maior desenvolvimento, os riscos que se colocam ao seufuncionamento estão sempre presentes, em permanente mudança, podendo mesmo revestirsede maior gravidade quanto mais perfeito for precisamente o funcionamento grupal. Estaquestão lembra-nos a dúvida de Mourinho, depois da vitória na Taça UEFA, Taça dePortugal e Liga Portuguesa, em 2003: “será que o sucesso fez mal aos jogadores do FCPorto, agora profissionais famosos com muitos títulos e também muito dinheiro?”(Lourenço 2004); mais adiante voltaremos a este assunto.864.5. Os Papéis no GrupoUm outro aspecto importante no grupo é o papel que cada um dos seus elementosdesempenha. Trata-se de um factor de relevo no funcionamento e na eficácia do grupo.Nos comportamentos reconhecidos quer como racionais quer como habituais ou normais,em qualquer campo das nossas vidas, lidamos com a previsibilidade. De facto algumacoerência de atitudes e de acções relaciona-se com a nossa personalidade. Conheceralguém é, assim, em boa parte, ser capaz de antecipar os seus comportamentos. Oconhecimento, bem como Heidegger (1962) escreveu, assenta num elemento primordial daontologia humana: o futuro. Compreender é prever, é antecipar. Quanto mais previsíveisformos aos olhos de alguém maior é o conhecimento desse alguém sobre nós mesmos.Assim, no funcionamento de um grupo, é através da interacção que as pessoas se vãoconhecendo, que vão aprendendo a lidar umas com as outras, através da percepção dosseus pontos fracos e dos seus pontos fortes, das suas preferências e aversões, das suasnecessidades, etc. Vão, pois, através do conhecimento, identificando as possíveis reacçõesaos diversos estímulos e dessa forma acabam por se ajustar uns aos outros no convívio dodia a dia. Todos esperam de todos reacções e comportamentos expectáveis, passe opleonasmo. Como todos são diferentes também os seus comportamentos o são, e destaforma cada um vai-se ajustando e cimentando o seu lugar no grupo através de padrõesrepetitivos de comportamento.

“Você não se comportará necessariamente sempre da mesma maneira, mas é possívelque repita um comportamento sempre que estiver dado grupo de pessoas ou numasituação específica. Este tipo de comportamento «especializado» é outra forma dediferenciar os integrantes do grupo” (Cohen e Fink 2003: 108).É, pois, com base neste comportamento especializado que os integrantes de um grupo,mais tarde ou mais cedo, adquirem papéis dentro do mesmo. Fazem-no acentuando o seupróprio carácter ou por atribuição do papel por parte dos outros. Os papéis de cada umresultam sempre de um estilo próprio, particular, que tem que ver com o modo como cadaum experimenta a vida enquanto ser que reage às ameaças e oportunidades que se lhecolocam. Pode, por isso, acontecer que sejam os outros a atribuir-nos um papel, o qualderivará das expectativas criadas pelos elementos do grupo. Quando tal acontece, de umaforma geral, a pessoa tem tendência, mais tarde ou mais cedo, a agir conforme ao padrão87esperado, não só pela crença numa aceitação rápida dos seus comportamentos por parte dogrupo como também porque, na maior parte das vezes, os papéis propostos acabam pornão contrariar frontalmente a maneira como as pessoas se vêem a si próprias (Cohen eFink 2003). No entanto, o inverso também pode acontecer, ou seja, alguém não estardisposto a aceitar o papel que o grupo lhe atribui. Nestes casos é necessário ser-se muitodeterminado para recusar o comportamento que os outros esperam de nós; essadeterminação, no entanto, é rara (Cohen e Fink 2003). Contudo, seja o papel escolhido ouimposto, de uma forma geral ele tende a reflectir a personalidade e as necessidades doelemento do grupo. Do ponto de vista dos restantes elementos do grupo, cada indivíduoserá tanto mais apreciado quanto mais se identificar com as próprias necessidades dogrupo.Cohen e Fink (2003) catalogam assim os papéis nos grupos conforme às suas finalidades.Os autores consideram que existem papéis que se direccionam para a execução das tarefasdo grupo (papéis orientados para as tarefas); papéis que contribuem para odesenvolvimento das relações inter-grupais (papéis socialmente orientados); e papéis quetomam forma através das necessidades ou objectivos pessoais e que não são relevantespara o grupo (papéis auto-orientados). É com base nesta divisão e num estudo feito porBenne e Sheats (1948), que Cohen e Fink (2003) desenvolvem uma caracterização emmais pormenor dos papéis no grupo.Nos papéis orientados para as tarefas distingue-se o lançador de ideias, orientado para asquestões pragmáticas do grupo como, por exemplo, a proposta de tarefas ou de objectivos,a identificação de problemas, etc.; o colector de informações que, como o nome indica,reúne informação ao questionar o grupo sobre procedimentos, números, factos, sugestõesou ideias; o fornecedor de informações, pelo contrário, vai bem preparado para asreuniões, transmite ao grupo as informações disponíveis, dá sugestões e ideias; oesclarecedor de problemas é muito importante no decurso das reuniões já que analisa asideias e sugestões que estão na mesa de trabalho ao mesmo tempo que esclarece dúvidas,ameniza conflitos e apresenta alternativas; o resumidor, que faz uma espécie de acta nãooficial já que sistematiza as ideias ou sugestões apresentadas e fornece decisões ouconclusões para que possam ser ponderadas pelo grupo; o sonda de consensos, quequestiona constantemente o grupo, no sentido de saber se se está seguro das decisões quese vão tomando.88Quanto aos papéis socialmente orientados, identifica-se o harmonizador, em geral o demais apurado sentido de humor, que orienta esta sua faceta no sentido de aliviar tensõesentre os elementos e fazê-los aceitar as diferenças existentes; o vigia, que tende apromover o equilíbrio do grupo, ajudando a manter aberta a comunicação entre oselementos de modo a os levar a pronunciarem-se sempre que necessário sobre problemasmais ou menos sensíveis para o grupo; o protector, que se preocupa com os outros,cimentando relações de amizade, sabendo ouvir, incentivando e apoiando; o transigente,

que procura compromissos, aceitando que tudo possa ser discutido e analisado e atémodificado, independentemente de quem lança a proposta ou a ideia, já que ele faz tudoem função do bom funcionamento do grupo e do bom relacionamento entre os seuselementos; o monitor padrão, que se preocupa com os caminhos que o grupo segue echama a atenção para as normas estabelecidas no sentido de tentar saber se eles estão emconformidade com os desejos da maioria.Quanto aos papéis auto-orientados pode dizer-se que eles são muitos e quase não têm fim.Em geral são tolerados ou, em alternativa, ignorados e podem levar ao prejuízo do grupo,embora a tendência seja para que eles tenham um peso menor relativamente aos outrostipos de papéis. Neste campo podemos falar de papéis como o queixoso, o palhaço, oplayboy, o dominador ou o intriguista. São papéis que podem ser disfuncionais para ogrupo. Veja-se, por exemplo, o papel do palhaço que com as suas constantes piadas pode,efectivamente, levar o grupo a alhear-se das suas tarefas (Cohen e Fink 2003).Como em todas as temática do grupo, também os papéis são alvo de estudos que nosoferecem uma infinidade de propostas. Optou-se por destacar a acima apresentadaespecialmente pela sua divisão quanto às finalidades das tarefas. No entanto, outras sepoderiam aqui citar que no seu conteúdo acabariam por não divergir muito da propostaapresentada. Rosenfeld e Wilson (1999) referem que tal como os grupos podem serformais ou informais também os papéis o podem ser. Assim, os papéis formais são osatribuídos em função do trabalho ou das tarefas tal como elas são identificadas nadescrição do posto de trabalho. São papéis puramente profissionais, existindo antes dapessoa concreta integrar a organização, já que esta mesma acaba por ser um sistema demúltiplos papéis. Os papéis informais decorrem dos papéis formais porque no desempenhodas actividades profissionais surgem comportamentos individuais não especificados,89expectáveis ou não pelos demais, e que distinguem os profissionais uns dos outros, deresto tal como acontece na vida social extra-profissional.4.6. O Conflito no GrupoSão muitos os papéis num grupo e deles dependem em grande parte as relaçõesinterpessoais. É desta forma que se sustentam as relações de trabalho, tornando-se, assim,os papéis numa importante fonte de estabilidade não só para a vida profissional comotambém para a vida pessoal dos membros de uma organização. Estar bem em todos oscampos da nossa vida é algo que buscamos permanentemente. Este equilíbrio não pode serconseguido de uma forma isolada mas, antes, de uma maneira global. Esta ideia entendeseporque dificuldades numa determinada dimensão acabam por afectar as outras, ou nãofosse o ser humano um todo complexo, sistema aberto para fora e para dentro de si mesmo(Morin 2003). Ao assumirmos um papel num grupo, padronizamos comportamentos, osquais uma vez desenvolvidos se tornam difíceis de alterar, não só por nós próprios comopelos outros que, como se disse, esperam de nós um comportamento empático e ditadopelo nosso papel. E se é verdade que a manutenção do nosso papel nos trás, na grandemaioria das vezes, relações cordiais, de simpatia, até mesmo de amizade com os outros,por vezes, o inverso também é verdade e como resultado disso mesmo podem gerar-seconsequências graves para a produtividade, satisfação e desenvolvimento do grupo.“[U]ma vez estabelecidas, as relações entre papéis tornam-se muito difíceis de seralteradas mesmo quando não mais atendem seus objectivos ou impedem o crescimentoe a mudança necessários (…). Papéis padronizados bem desenvolvidos são muitodifíceis de alterar. Tendem a determinar e a moldar grande parte do nossocomportamento e, quando se tornam obsoletos, eles funcionam como umconstrangimento a possibilidades muito mais satisfatórias na relação” (Cohen e Fink2003: 244).Neste contexto parece-nos importante apresentar a definição de conflito em grupo,proposta por Sherif (1906-1988) no âmbito do campo da psicologia social:“A revisão da investigação empírica e experimental mais recente conclui sem margem

para dúvidas, que a agressão, o conflito (e a cooperação) não são fenómenos geradosinternamente, ou intrapsíquicos. São estados de relacionamento que emergem como90consequência de transacções entre as pessoas, em situações que promovem oubloqueiam os objectivos que perseguem” (Sherif in Vala e Monteiro 2004: 431).Daqui resulta que um conflito, geralmente, nasce do desentendimento entre duas ou maispessoas, logo, ele terá de ser resolvido pelo diálogo entre essas duas ou mais pessoas. Naresolução de conflitos não se perspectiva outra forma de resposta que não a do diálogo.Existem, no entanto, algumas premissas para que tal aconteça. Em primeiro lugar, aaceitação de que efectivamente o conflito existe; depois, a abertura ao diálogo com aconvicção de que ninguém está totalmente errado ou totalmente certo, logo, terá de haver apredisposição para a auto-análise e para a aceitação de erros próprios; terá igualmente deexistir disponibilidade para a mudança, já que a resolução terá de passar pela modificaçãode comportamentos; por último, a intervenção de um mediador aceite por ambas as partespode revelar-se extremamente útil nos casos em que os litigantes extremem as suasposições. Uma outra forma de terminar o conflito será a de uma das partes pura esimplesmente abandonar o grupo. É algo que acontece inúmeras vezes, no entanto talopção não se aceita como a resolução de conflito; trata-se antes de capitulação. Aresolução do conflito terá que passar pelo entendimento e pela continuidade das partes narelação existente.Neste capítulo apresentámos uma revisão das teorias sobre o fenómeno dos grupos. Ficouexplicado, de acordo com os critérios escolhidos e apresentados no início do capítulo, adefinição de grupo, a sua constituição, evolução e manutenção, bem como a interacçãoentre os seus elementos, entre outras aspectos. Nesta abordagem tentámos não perder devista a perspectiva em que nos inserimos: a complexidade. Assim, ao longo do capítuloutilizámos noções da perspectiva da complexidade que nos pareceram pertinentes paraexplicar o funcionamento do fenómeno do grupo, precisamente enquanto entidadecolectiva, global – como um todo complexo composto por partes.91

CAPÍTULO 5TEORIAS SOBRE LIDERANÇA92O tema da liderança é um assunto apaixonante e sempre presente. Não deve haver umúnico dia das nossas vidas em que não pronunciemos, ouçamos ou leiamos as palavraslíder ou liderança. É assim quando olhamos para um jornal, quando vemos televisão ouquando comentamos com um amigo um qualquer assunto político, desportivo ou até social.O conceito de liderança e toda a sua envolvente entraram há relativamente pouco temponas nossas vidas e a sua profusão linguística – pelo menos em Portugal e no mundo maisdesenvolvido – tem sido notória. De facto a palavra foi algo banalizada, de tal forma que éduvidoso que ela seja sempre bem empregue e no seu contexto adequado. Mas o conceitoem si mesmo também levanta dúvidas, até pelas inúmeras abordagens teóricas muitasvezes discrepantes. Não admira pois a dificuldade em definir ou até em traçar um perfil deliderança. Vejamos a seguinte passagem:“Which criteria really matter? Let’s say it’s time to elect a new world leader. Here aresome facts about the three leading candidates:Candidate A associates with crooked politicians and consults with astrologers. He’shad two mistresses. He chain-smokes and drinks eight to 10 martinis a day.Candidate B was kicked out of the college twice, used opium as an undergraduate,now sleeps until noon, and drinks a quart of whiskey every evening.Candidate C is a decorated war hero. He’s vegetarian, doesn’t smoke, drinks only anoccasional beer, and hasn’t had any extra-matrimonial affairs.Whom did you chose? If you opted for C, you may be surprised at what you get:Candidate A is Franklin D. RooseveltCandidate B is Winston Churchill

Candidate C is Adolf Hitler” (Kets de Vries 2001: 280).A história ensina-nos que têm sido muitos os erros na escolha da liderança; ainda assim,cada vez mais, precisamos de líderes, sejam eles de cariz político, cultural, económico ousocial. Porquê? Porque vivemos num mundo em mudança e a nossa primeira reacção àmudança é a ansiedade e perante esta o primeiro reflexo é o de procurar alguém que nospossa guiar no sentido de conter essa mesma ansiedade. Assim, quando a mudança e aansiedade invadem o nosso mundo estão criadas as condições para a emergência daliderança (Kets de Vries 2001). E a mudança parece ter vindo para ficar. Basta lembrarmonosda vida que levavam os nossos avós por comparação com a vida que levamos hoje. Há9360 anos ainda nos deslocávamos numa carroça puxada por burros. Há 30 anos o homempisou a Lua. Hoje estamos em Marte. Pensemos neste exemplo: uma edição do jornalPúblico, hoje, contém mais informação do que aquela que uma pessoa na Idade Médiaestaria exposta durante toda a sua vida. Há, então, dúvidas sobre a constante mudança queatravessa as nossas vidas? Daí a necessidade em encontrar líderes na nossa vida. Trata-sede uma resposta natural face aos nossos medos, receios e inseguranças. E curiosamente oslíderes tendem a emergir na mudança e ao mesmo tempo tendem a produzir e conduziressa mesma mudança. Eles estão à nossa frente, paradoxalmente entre o presente e ofuturo, porque vêem o que a maioria ainda não viu, conduzindo-nos precisamente para essavisão de futuro. Daí que seja consensual que o fenómeno liderança implique acaracterística influência. Trata-se de um fio comum na investigação sobre o tema:“Definimos liderança como a capacidade de influenciar um grupo em direcção aoalcance de objectivos” (Robbins 2002: 304).“Os líderes precisam de ter a habilidade de influenciar o comportamento de outraspessoas” (Cohen e Fink 2004: 252).“[A liderança é] um processo de influencia social em que o líder busca a participaçãovoluntária de subordinados num esforço de atingir os objectivos organizacionais”(Schriesheim et al (1978) in Kinicki e Kreitner 2006: 347).15

Fica pois claro que sem influência não há liderança, embora aquela não esgote esta última.Adoptando a definição de influência proposta por Cohen e Fink (2004) ao afirmarem queinfluência é qualquer acto ou acto potencial que afecte o comportamento de outra(s)pessoa(s), somos levados a pensar no papel que têm os seguidores no fenómeno daliderança. Trata-se de outra noção a reter: não há liderança sem plural, ou seja, não há lídersem seguidores. Liderança pressupõe relação e relação pressupõe comunicação. E porquede relações falamos, torna-se fácil perceber que é impossível a influência ser apenas numsentido. O líder influencia mais ou menos os seguidores mas também é certo que osseguidores influenciam mais ou menos o líder. Neste processo de influência mútua comodiferenciar então tecnicamente o líder dos seguidores? Consideremos o conceito deinfluência líquida (Cohen e Fink 2004). Só quando a influência é líquida é que a podemosconotar com liderança, ou seja, quando a influência que A exerce sobre B é maior, por15 Para um conjunto mais alargado de definições consultar Cunha e Rego (2005: 21).94comparação, à que B exerce sobre A. É desta forma, tendo influência líquida, que o líderconsegue levar os seguidores na direcção por ele desejada.A influência pode também ser formal ou informal. Falamos em influência formal quandoela se escuda numa prerrogativa de posição, por outras palavras, quando ela advém de umcargo ou de uma posição em determinado sistema social. Falamos de influência informalquando ela não decorre de qualquer cargo mas sim das características de alguém, as quaissobressaem num determinado contexto e fazem com que a liderança dessa pessoa sejaaceite de uma forma natural pelos outros (Cohen e Fink 2004). Por fim, para que oconceito de influência – em contexto de liderança – fique esclarecido é necessário que seclarifiquem dois conceitos adicionais: influência legítima e influência ilegítima. Oprimeiro tipo de influência acontece quando esta não é imposta, tal como os resultados que

produz. Os seguidores aceitam essa influência com naturalidade porque atribuem ao lídercapacidades e competências para tal. A segunda forma de influência, a ilegítima, acontecequando esta não é aceite naturalmente, é contestada pelos seguidores, mas ainda assimvigora por imposição (Cohen e Fink 2004). Esta última classificação sugere queconsideremos uma outra noção, a qual está fora das definições de liderança acimareferidas, e que é considerada por alguns autores como uma perspectiva moral (Kinicki eKreitner 2006). Para estes autores “a liderança não é um conceito moral” (Kinicki eKreitner 2006: 347) e a história, com líderes como Pol Pot, Adolf Hitler, Estaline,Pinochet ou Castro, mostra-nos e ensina-nos isso mesmo. Os autores citam BarbaraKellerman para defenderem que os “ líderes são como nós: dignos de confiança efraudulentos, cobardes e corajosos, gananciosos e generosos. Supor que todos os bonslíderes sejam boas pessoas é querer ser cego à realidade da condição humana” (Kellermanin Kinicki e Kreitner 2004: 347). Neste quadro os autores sustentam que o líderdesenvolve substanciais doses de autocrítica e de auto-conhecimento, identificando as suasfraquezas e as suas forças. A partir daqui o líder desenvolve e aplica, no acto contínuo deliderança, todos ou grande parte dos seus atributos positivos.Também a questão do poder se prende com a influência. Embora as duas noções sejamcom frequência usadas de forma indistinta, o facto é que existe entre elas uma diferençasubstancial. Poder não é mais do que a capacidade de exercer influência, logo, quantomaior for a influência líquida maior é o poder.95Tendo já como base para uma aproximação à liderança termos como influência, poder eseguidores, introduzimos agora um novo elemento, que faz uma ponte directa entre líder eseguidores, e sem o qual dificilmente a liderança seria reconhecida e aceite: a confiança(Robbins 2002). Confiança pode ser definida como “uma expectativa positiva de que aoutra pessoa não irá agir de maneira oportunista – seja por palavras, acções ou decisões”(Robbins 2002: 326). A confiança não é um sentimento imediato mas algo que se vaiconstruindo – também – com o tempo. À medida que se conhece alguém, a relação vaiamadurecendo e começamos a acreditar, ou não, que essa relação nos vai trazer, ou não,sentimentos positivos de um em relação ao outro e vice-versa. A confiança envolve risco,de desapontamento ou abuso, porque existe vulnerabilidade. Assim, só passo a confiar emalguém quando acredito, por diversos motivos, que o outro não tirará vantagem dasminhas vulnerabilidades. E quando confio, sigo… um líder para o caso que estamos ainvestigar.É claro que os pressupostos da liderança, quando a entendemos no seio de uma relaçãointerpessoal, não se confinam por aqui. Eles serão, de resto, abordados com maiorprofundidade mais à frente neste capítulo quando apresentarmos os estudos que foram econtinuam a ser efectuados sobre o fenómeno da liderança desde os primórdios do séculopassado. Cremos, no entanto, que sem os pressupostos acima referidos não existeliderança. A partir daqui, deste conjunto de pressupostos, as conjugações são muitas,também variando em função das características do próprio líder. De resto, a maioria daactividade de investigação sobre o fenómeno da liderança tem tentando encontrar na figurado líder a essência da liderança. Por isso é importante referir a etimologia da palavra líder(portuguesa) que encontra a sua origem no inglês leader.“Leader first appears in English in about 1300 as ledere, which is formed from MiddleEnglish leden `to lead' and -er, a suffix added to a verb to designate a person or thingwho does the something described by the verb. Leden, first appearing in around 1125,comes from Old English laeden ‘cause to go with one’, which itself comes from Proto-Germanic laidijanan. The Proto-Germanic is also the source of Old Frisian leda andOld Saxon ledian, as well as Middle and modern Dutch leiden, Old High and modernGerman leiten, and Old Icelandic leidha. The meaning `person in front' is firstrecorded in 1570.”16

16 http://www.takeourword.com, 15 de Outubro de 2006.96

Como podemos observar a expressão líder decorre de um estado físico: aquele que vai àfrente. Trata-se de uma ideia que ainda hoje se mantém e é por isso que para existir umlíder terão de existir seguidores – por definição, aqueles que o seguem, os que vão atrás. Aquestão deve então colocar-se também noutros termos: como se chega à frente? Queatributos ou características serão necessários par se estar à frente dos que estão atrás?Afinal o que é um líder para além de ser aquele que ocupa o topo de uma pirâmide?Geralmente a palavra líder é associada à noção de poder, ou seja, quem detém o podereconómico, político, social, etc., é vulgarmente considerado líder. A título de exemplo érelevante que Adolf Hitler tivesse o título de Der Führer – o líder, ou Benito Mussolini IlDuce, ou Fidel Castro El Commandante. Palavras diferentes, mas que envolvem a mesmanoção: o que vai à frente, o que conduz, o que comanda.Mas será mesmo este, ou apenas este, o conceito de líder e da acção – liderança – que lheestá subjacente? Qual a essência do conceito liderança? Qual a sua tradução prática emtermos de desempenho? Um líder é sempre líder ou só o é em determinadas situações? E seassim for em quais? E qual o papel dos líderes num mundo em constante mudança? Estassão apenas algumas das questões às quais, através de uma revisão das principais teoriassobre liderança, procuraremos dar resposta nas páginas seguintes. Contudo, queremossublinhar que a clarificação do tema não se afigura fácil e muito menos consensual: “não épossível encontrar uma definição que concite consenso – havendo mesmo quem considereque há quase tantas definições de liderança quantas as pessoas que se dedicaram ao tema”(Cunha e Rego 2005: 20). No entanto, como escreveu Jesuíno, existe uma suficientesobreposição entre as diferentes posições que nos permite, senão uma definiçãouniversalmente aceite, pelo menos uma caracterização mínima do conceito (Jesuíno 2005).Vamos assim em seguida tentar dar respostas àquelas questões através de uma revisão àsteorias propostas por diversos autores a partir da terceira década do século XX. Teorias quetentam encontrar nos traços do líder, nos seus comportamentos e nas diversas situações emque a liderança surge a resposta à pergunta “o que é um líder?” As teorias mais recentestentam caminhos novos, como o estudo da relevância do papel dos seguidores ou até umaconjugação das conclusões de diversos estudos anteriores. Optou-se, no caminho seguido,por descortinar na bibliografia revista os estudos com sobreposição de conclusões bemcomo aqueles reconhecidos pela comunidade científica – até por aquele critério – como os97mais relevantes. Daí que muitos estudos e investigações tenham ficado de fora.Acreditamos no entanto que focámos todos os de maior peso. Assim, as investigações quea seguir descrevemos pareceram-nos suficientes para atingir os objectivos que nospropomos neste capítulo: proporcionar uma ideia geral, mas rigorosa e profunda, sobre ofenómeno liderança, levantando pistas para o entendimento do papel e da essência do lídere por simpatia da liderança no contexto organizacional.5.1. Teoria do Grande HomemO estudo sistemático sobre a liderança só se iniciou a seguir à Segunda Guerra Mundial.Até aí a liderança era em grande parte um assunto quase mítico, que se relacionava apenascom questões de classe e de posição social (Hooper e Potter 2005). Natural, pois – etambém devido ao desempenho de muitos militares e políticos no conflito acima referido –,que o tema tenha suscitado a atenção dos académicos a partir da segunda metade da décadade 40 do século passado. Na tentativa de definir o conceito em causa, a primeiraabordagem ao tema, influenciada naturalmente pela estrutura militar, visou definir o líderatravés dos seus atributos pessoais e dos seus traços de personalidade. Com esta ligação dainvestigação à ideia de que os líderes seriam detentores de capacidades especiais e homenssuperiores, o qual os diferenciava dos seus subordinados, nasceu a teoria do grande homemou, dito de uma forma menos enfática, a teoria dos traços de liderança (Robbins 2002).Esta proposta visava estudar os traços de personalidade que um líder deveria possuir para,enquanto líder, ser eficaz e determinante em qualquer situação. Olhava-se o líder,atribuindo-lhe uma eficácia de carácter universal decorrente das suas características inatas.

Desta forma a essência da liderança não dependeria da aprendizagem mas sim da aptidãonatural de cada um (Rego e Cunha 2004). Esta teoria favorece a visão romântica daliderança, na qual o líder é apresentado como o herói ou o cavaleiro branco, enviado parasalvar a organização das suas dificuldades (Cunha e Rego 2005), parecendo ser consensualque os grandes líderes exercem um poderoso fascínio sobre os seus seguidores. O serhumano gosta de se sentir confortável, acreditando em alguém que controle osacontecimentos. Quem melhor, então, que alguém dotado de um dom superior capaz deapaziguar as angustias e hesitações trazidas pelos ventos de crise ou mudança? No entanto,como alertam Cunha e Rego (2005), este seguidismo é uma moeda com duas faces. Por um98lado, os líderes são capazes de aglutinar multidões à sua roda e levam a altos índicesmotivacionais e de esperança entre os seus seguidores e, por consequência, a resultadospositivos; por outro lado, o seguidismo fervoroso pode levar à cegueira dos seguidores epor consequência à perda de discernimento, o que pode levar a resultados catastróficos. Éclaro que temos aqui uma visão com enfoque não no líder mas naqueles que em siacreditam. No entanto, se transferirmos o objecto de estudo para o líder tambémencontramos insuficiências nesta visão do grande homem. Segundo Kirkpatrick e Locke(1991), os seis traços que diferenciam os líderes são: (i) a ambição e energia, (ii) o desejode liderar, (iii) a honestidade e a integridade, (iv) a autoconfiança, (v) a inteligência, e (vi)os conhecimentos relevantes para o trabalho. Este estudo constitui apenas um exemplo dainvestigação realizada neste tópico. São muitas e variadas as qualidades atribuídas aoslíderes, sendo que as atrás citadas se sobrepõem, senão todas pelo menos algumas, emmuitas das teorias. Estes traços, embora importantes, não esgotam nem definem ascapacidades do líder, pelo que nenhum deles por si só ou conjuntamente é garantia de boaliderança. De resto, face ao estudo referido, pode com alguma segurança apontar-se quatrolimitações à teoria do grande homem.“Primeiro não existe nenhum traço universal que possa prever a liderança em qualquersituação. Na verdade os traços parecem prever a liderança em situações selectivas.Segundo, os traços prevêem melhor o comportamento em situações «fracas» do queem situações «fortes». As situações fortes são aquelas em que existem rígidas normascomportamentais, fortes incentivos e tipos específicos de comportamento e clarasexpectativas em relação a quais comportamentos são recompensados ou punidos.Essas situações criam menos oportunidades para que os líderes expressem as suastendências inerentes. (…) Terceiro, as evidencias são pouco claras quanto à separaçãoda causa e efeito. (…) Finalmente os traços funcionam melhor para prever osurgimento da liderança do que para distinguir os líderes eficazes dos ineficazes”(Robbins 2002: 305).Ou seja, e em suma, partindo da teoria do grande homem, um líder seria sempre e emqualquer situação um líder, no entanto, nada nos garante que assim seja, até porque elepode não manter as suas características intactas ao longo da sua vida já que, a mudançados seus quadros mentais, psicológicos, emocionais, das suas capacidades físicas, etc.,poderá muito bem acontecer. A experiência provou que a combinação de traços nãoproduz necessariamente uma liderança eficaz. Provou também que dois líderes com traços99de personalidade diferentes podem ser igualmente eficazes. Parece ser, contudo,consensual a ideia de que determinados traços podem facilitar a boa liderança sem que tallhe confira, sublinhe-se, êxito só por si, ou automático.5.2. Teorias ComportamentaisDa teoria do grande homem partiram os estudiosos, ainda na década 40 do século passado,para um novo enfoque da questão da liderança. As teorias comportamentais queapresentamos nesta secção tentaram saber se é ou não possível formar um líder (Bilhim2004). Optou-se por estudar os comportamentos do líder, tentando encontrar indicadorescomuns da emergência da liderança. Nasceram então as teorias comportamentais deliderança, com a proposta de que comportamentos específicos determinavam os líderes,

distinguindo-os dos não-líderes ou seguidores. Pelo que ficou dito – e antes de passarmosàs teorias comportamentais que consideramos mais relevantes – julga-se pertinentedebruçarmo-nos sobre as implicações que os novos estudos comportamentais tiveramrelativamente à teoria do grande homem. Ao fazê-lo vamos colocar o acento tónico no queé essencial à liderança, tal como as teorias revistas o fizeram. Ao se aceitar a teoria dogrande homem, concluir-se-ia que as características do líder seriam inatas, logo ou senasceria líder ou não se nasceria líder. Quanto às teorias comportamentais, a questão écolocada de forma inversa, ou seja, sendo os actos que fazem os líderes, esses actos, essescomportamentos específicos, poderiam ser aprendidos, aperfeiçoados e corrigidos. Assim,enquanto segundo a teoria do grande homem, ser-se líder não seria passível deaprendizagem, segundo as teorias comportamentais ser-se líder seria uma questão deaprendizagem. Em termos práticos, na perspectiva das teorias comportamentais a liderançapoderia ser produzida na quantidade e até na qualidade que desejássemos. Já o mesmo nãose pode dizer da teoria dos traços do líder, que deixaria ao acaso ou aos desígnios de algodesconhecido o facto de em cada momento existirem mais ou menos líderes ou, atémesmo, em última análise, de nenhum de nós ser líder ou de todos sermos líderes. Estasduas hipóteses apresentam-se-nos, pelo registo da própria história, pouco ou nadaprováveis.Vamos debruçar-nos em seguida sobre os dois estudos comportamentais que nos parecem,depois da pesquisa efectuada, serem consensuais entre os investigadores, em termos da sua100relevância para o desenvolvimento do estudo dos comportamentos do líder. Referimo-nosaos estudos das escolas de Ohio e de Michigan, cujo quadro de abordagem incide sobre aidentificação do estilo universal ou ideal de liderança (Jesuíno 2005). Estes estudostentaram “ identificar estilos comportamentais de liderança eficaz a partir da observaçãodirecta e sem pressupostos teóricos” (Jesuíno 2005: 63).5.2.1. Os Estudos de Ohio. Os estudos da Universidade Estadual de Ohio (EUA)iniciaram-se em 1945 e orientaram-se para a análise dos factos com o intuito de verificaras dimensões independentes dos comportamentos dos líderes (Jesuíno 2005; Robbins2002). Para se ter uma ideia do trabalho realizado deve sublinhar-se que os investigadorescomeçaram a sua triagem em inquéritos onde tentaram identificar mais de mil dimensõesdiferentes (Robbins 2002), as quais foram apresentadas a instituições militares eorganizações industriais (Jesuíno 2005). Em resultado da análise feita aos questionáriosrespondidos, em consequência do natural afunilamento proveniente de respostas similares(83%), foram identificados dois factores que, segundo os estudos, explicavam efundamentavam o comportamento dos líderes: estruturação (initiating structure) econsideração (consideration).O factor estruturação reflecte-se na forma como o líder é capaz de definir, estruturar eorientar não só o seu próprio papel e competências como igualmente os dos seussubordinados com vista a atingir determinados objectivos (Jesuíno 2005; Robbins 2002).O líder com um alto nível de estruturação deveria, tendencialmente, delegar poderes etarefas, esperando que os subordinados consigam atingir os padrões de desempenhopretendidos, já que estes desenvolveriam um papel mais activo nas funções deplaneamento, comunicação, concretização de prazos, investigação de novas ideias, etc. Dealguma forma considera-se que esta noção de estruturação é a semente para as modernasteorias de coaching, em que o desenvolvimento da liderança é entendida no âmbito de uma“relação «adulto-adulto». Já não é ao líder que compete descobrir o que é melhor para ossubordinados – isso é algo que compete a cada um deles. Cabe-lhe ajudar cadacolaborador a descobrir a forma de expressar melhor os seus talentos” (Cunha e Rego2005: 33).101Quanto à consideração o enfoque está na capacidade do líder em manter relações deconfiança mútua, de respeito pelas ideias e pelo carácter dos funcionários, bem como uma

atenção permanente aos sentimentos e bem-estar (Robbins 2002) daqueles últimos. Umlíder com um alto grau de consideração tende a debruçar-se e a ajudar os seussubordinados a um nível puramente pessoal; a sua relação é de amizade e dedisponibilidade, tratando todos os seus subordinados como iguais (Robbins 2002).Em termos conclusivos, as pesquisas efectuadas com base nas duas definições atrásreferidas apontavam os líderes com grau elevado nas duas dimensões como capazes de“obter altos níveis de desempenho e satisfação dos funcionários com maior frequência doque aqueles com baixa pontuação numa dessas dimensões ou em ambas” (Robbins 2002:306). Contudo existem excepções a esta regra. No que concerne à estruturação, os estudosprovaram que uma alta pontuação do líder nesta dimensão levou a um maior número dereclamações e a absentismo e índices mais baixos de produtividade por parte dossubordinados que executavam trabalhos repetitivos e rotineiros. Quanto à consideração,são os próprios líderes que se colocam em xeque já que os estudos provaram existir maiordesconfiança relativamente ao seu desempenho por parte dos seus subordinados (Robbins2002). Em suma os estudos de Ohio acabaram por concluir que existe uma tendência paraa obtenção de melhores resultados gerais por parte dos líderes com alta pontuação nasduas dimensões, no entanto, as excepções apontam para a existência de algumas lacunasno próprio estudo, que esquece, como se viu, os factores ambientais ou situacionais daliderança. Por outro lado o one best way, suposto resultado da optimização daqueles doisfactores, parece mais um mito do que realidade, já que escasseiam tanto argumentosteóricos como evidência empírica que inequivocamente o confirmem (Jesuíno 2005). Noentanto, deve também prestar-se atenção ao reverso da medalha, pois algo de positivopode retirar-se dos estudos de Ohio:“The Ohio State studies had a profound impact on leadership thinking and research.Perhaps their major impact is that wide use has been made of the Leader BehaviourDescription Questionnaire (LBDQ), for measuring consideration and initiatingstructure. These concepts have become part of the conventional wisdom aboutleadership and are the basis of many programs to train leaders” (Neal e Mero 2003:252).1025.2.2. Os Estudos de Michigan. Na mesma altura dos estudos da Universidade de Ohio,também na Universidade de Michigan (EUA), a partir do Survey Research Center, sedesenvolveram estudos sobre o comportamento dos líderes. Aliás ambas as aproximaçõesforam algo semelhantes (Bilhim 2004; Jesuíno 2005). Tanto os estudos de Ohio como osde Michigan cruzavam as características comportamentais do líder com a sua eficácia naliderança. Os autores dos estudos de Michigan entrevistaram uma série de líderes de váriostipos de organizações (industrias, escritórios, etc.) com alta e com baixa produtividade.Também em Michigan se concluiu por duas dimensões de comportamento, a quechamaram orientação para o funcionário e orientação para a produção. Constatou-se queos líderes mais voltados para os seus subordinados privilegiavam as relações interpessoais,interessavam-se pela situação dos seus funcionários e aceitavam as diferenças entre osmembros do grupo (Robbins 2002). Por sua vez, os líderes que privilegiavam a produçãotendiam a preocupar-se mais com a execução das tarefas, olhando o indivíduo apenas comoum meio para atingir o fim em vista; eram líderes que valorizavam essencialmente asquestões técnicas e práticas do trabalho (Robbins 2002). Destas constatações resultaramalgumas conclusões, nomeadamente a de que os melhores resultados eram obtidos peloslíderes orientados para o funcionário já que estes “exerciam um controlo mais geral edistante, procuravam exercer funções distintas das funções desempenhadas pelosfuncionários, delegavam em maior grau, davam ordens com menos frequência e concediammaior liberdade aos funcionários para eles executarem as suas tarefas específicas” (Jesuíno2005: 60).Estes estudos acabaram no entanto com as mesmas críticas que haviam sido feitas àpesquisa de Ohio, as de que eles não resolviam o problema essencial, ou seja, que não

comprovavam uma relação directa entre o comportamento do líder e a sua eficácia etambém que ao não abordar factores situacionais a lacuna se tornava evidente: “[p]orquenão são, em última análise, os princípios que são validados ou invalidados mas antes assituações que os tornam específicos que permitem que se proceda a essa validação”(Jesuíno 2005: 63).1035.3. Teorias ContingenciaisConstatada a relativa insuficiência das teorias comportamentais tornou-se claro para osinvestigadores do fenómeno da liderança que se estava perante um processo bem maiscomplexo do que porventura de inicio eles terão imaginado.“Assim, o fracasso na obtenção de resultados sólidos e a insatisfação crescente, tantoda parte dos especialistas como da parte dos utilizadores, quanto à robustez dosmodelos [anteriores] e ao seu interesse prático, conduziu à investigação dos factoressituacionais” (Bilhim 2004: 345).Desta forma optou-se pelo caminho da contextualização do líder no seu ambiente, ou seja,estudou-se o tema da liderança efectiva inserido na complexa teia relacional que seestabelece entre os traços de personalidade, os comportamentos e – e aqui reside o passoseguinte – os factores situacionais. Parte-se assim para a abordagem do problema emcontextos reais, justamente para se tentar identificar as diversas condições situacionais:“A relação entre estilo de liderança e eficácia sugere que, sob a condição a, o estilo xpode ser adequado, enquanto o estilo y é mais indicado para a situação b, e o estilo zmais apropriado para a situação c. Mas o que seriam essas situações a, b e c?”(Robbins 2002: 309).Foi na procura deste tipo de entendimento que nasceram as teorias contingenciais, quevamos abordar de seguida. Vamos considerar cinco delas em virtude de termos constatadoque são as mais citadas entre os investigadores do fenómeno em causa.5.3.1. Modelo de Fiedler. Talvez o estudo que maior projecção alcançou tenha sido o doModelo de Fiedler, proposto por Fred Fiedler. Este modelo sugere-nos que não existe umestilo ideal de liderança e, como tal, o objecto do estudo da liderança deve recair sobre asua eficácia em determinada situação. Daqui decorre que “ a eficácia dos grupos dependeda adequação da relação entre o estilo de interacção do líder com os subordinados, e dograu em que a situação permite o seu controlo e influência” (Bilhim 2004: 346).O primeiro passo deste estudo tentou identificar o estilo básico de liderança de umindivíduo – no sentido de saber se ele é orientado para a tarefa ou para o relacionamento– e com esse propósito Fiedler elaborou o questionário do colega menos preferido104(LPC)17. O questionário apresenta-nos um grupo de 16 adjectivos que contrastam entre si(aberto–reservado; intolerante-tolerante; prestável-indiferente; comunicativo-inacessível,etc.), pedindo-se aos inquiridos que classifiquem, numa escala de um a oito, o colega comquem menos tenham gostado de trabalhar. Com base nas respostas Fiedler acreditavaconseguir determinar o estilo básico de liderança de cada pessoa (Robbins 2002). Se apontuação for alta, ou seja, se a pessoa com quem menos se gostaria de trabalhar fordescrita em termos favoráveis, o inquirido estará voltado para o relacionamento. Asituação inversa – uma pontuação baixa – significará que as preocupações incidem sobre aprodutividade, logo o indivíduo está voltado para a tarefa. Aqueles cuja pontuação forintermédia ficam de fora da previsão teórica sobre o seu estilo de liderança. Uma vezobtido o resultado final, Fiedler assume que o estilo de liderança é fixo (Robbins 2002), oque significa, por exemplo, que se nos depararmos com uma situação em que o líder sejaorientado para o relacionamento e ela requerer um líder orientado para a tarefa, os doisaspectos não poderão coexistir e, portanto, devido à inflexibilidade do estilo de liderança,ou se muda a situação ou se muda o líder.Depois de encontrado o estilo básico de liderança através do questionário LPC, Fiedlerdebruça-se sobre a situação propriamente dita, introduzindo três variáveis que determinam

se uma situação é favorável ou desfavorável ao líder (Bilhim 2004). São elas a relaçãoentre líder e liderados, que se traduz na confiança, credibilidade e respeito que ossubordinados nutrem pelo líder; a estrutura de tarefa, ou seja, a forma como estãoestabelecidos os procedimentos no trabalho; e o poder de posição, que determina aautoridade para contratar, despedir, agir disciplinarmente, promover, etc. os seussubordinados. O passo seguinte no modelo de Fiedler é avaliar a situação em relaçãoaquelas três variáveis contingenciais. “A relação entre líder e liderados é boa ou má, aestrutura de tarefa é alta ou baixa e o poder da posição é forte ou fraco” (Robbins 2002:310). Estas variáveis foram integradas numa escala, que parte do positivo para o negativo,registando diversas situações intermédias (seis) ao longo deste percurso. Segundo Fiedler(Robbins 2002), quanto mais alta for a pontuação nas três dimensões acima referidasmaior controlo ou influência o líder consegue na estrutura, o que lhe proporcionará umalto grau de conforto na sua liderança.17 LPC – Least Preferred Co-worker.105Por fim a adequação do líder às situações. Partindo dos resultados do questionário LPC eda avaliação das variáveis situacionais – ou contingenciais –, a teoria de Fiedler tentaadequar o estilo básico de liderança à situação concreta, para que se possa obter o máximode eficácia na liderança. Fiedler concluiu, então, que os líderes orientados para a tarefaconseguem uma maior eficácia tanto em situações favoráveis como desfavoráveis, aopasso que os líderes orientados para o relacionamento são mais eficazes em situaçõesintermédias, ou seja, em situações nem favoráveis nem desfavoráveis.5.3.2. Teoria Situacional de Hersey e Blanchard. Um outro estudo, de alguma forma namesma linha, foi levado a cabo por Paul Hersey e Ken Blanchard, sob o nome de teoriados ciclos de vida (Jesuíno, 2005), ou teoria da liderança situacional (Robbins, 2002). Anovidade é aqui a inserção dos seguidores e do seu comportamento no estudo da eficácialiderança. Pela primeira vez nos estudos sobre liderança tem-se em conta directamente nãoapenas o líder mas também os que o seguem. “Esta é uma teoria contingencial que centraseu foco sobre os liderados. A liderança bem sucedida é alcançada pela escolha do estiloadequado que Hersey e Blanchard argumentam ser contingente ao nível de prontidão18 dosliderados” (Robbins 2002: 312). Desta forma, estamos perante uma nova abordagem queanalisa a eficácia da liderança pela aceitação ou não dos líderes por parte dos liderados, ouseja, independentemente do que o líder faça ou diga o seu sucesso encontra-se, de algumaforma, dependente das acções de quem ele lidera. Por isso esta teoria também se socorredas “duas dimensões de Fiedler: a tarefa e a relação” (Bilhim 2004: 348), mas vai maislonge ao conjugar o estilo básico de liderança com a maturidade dos liderados, entendidaesta como “a capacidade e a disposição das pessoas assumirem a responsabilidade dedirigir o seu próprio comportamento” (Bilhim 2004: 347), para que “à medida que amaturidade dos colaboradores aumenta o líder [deva] começar a reduzir o comportamentode tarefa e a aumentar o comportamento de relacionamento” (Jesuíno 2005: 133). Estamosassim perante um modelo que conjuga as dimensões da liderança com a maturidade dosliderados, estabelecendo assim uma correlação entre a actuação do líder e a maturidadedos liderados (Jesuíno 2005). Assim, como observa Robbins (2002), esta teoria acaba por18 A tradução desta obra que estamos a seguir é brasileira. Na pesquisa que efectuámos constatámos que asversões portuguesas deste estudo traduzem “prontidão” por “maturidade”. Entende-se que esta últimatradução para portuiguês é mais fiel ao original pelo que, salvo quando se trate de transcrições literais, seadoptará o termo maturidade.106encontrar alguma analogia com a relação entre pais e filhos. À medida em que estes se vãotornando mais responsáveis e mais experientes na vida – situação que podemos definir,grosso modo, por maturidade –, menor tende a ser o controlo exercido sobre eles por partedos seus pais.Assim, no âmbito deste modelo, como se operacionaliza e de que forma a liderança? Desdelogo Hersey e Blanchard tipificaram quatro estilos comportamentais de liderança –

determinar, persuadir, compartilhar, delegar. Cada um destes estilos resulta dacombinação entre o comportamento de tarefa e o comportamento de relacionamento(Bilhim 2004). O comportamento de tarefa pode ser entendido como a medida em que olíder orienta o liderado para a tarefa: como, quando e onde realizá-la; o comportamento derelacionamento é a forma como o líder se relaciona bilateralmente com os seus liderados: oapoio que lhes dá, a forma como os ouve e como apoia os seus esforços, etc.Nesta teoria definem-se quatro graus de maturidade dos liderados, gradualmente da baixapara a alta maturidade. No primeiro nível, de maturidade baixa, os subordinados nãorevelam capacidade e disposição, ou então, são pessoas inseguras; no segundo nível, quesitua a maturidade entre baixa e moderada, as pessoas não têm uma capacidade especialmas revelam disposição ou confiança; no terceiro nível, onde a maturidade é moderada aalta, existe capacidade mas não existe disposição, ou então, as pessoas são inseguras;finalmente, no quarto nível, de maturidade alta, existe competição e segurança (Bilhim2004). Bilhim (2004) conjuga todos estes factores da seguinte forma:“Determinar (tarefa elevada e baixo relacionamento) – O líder define os papeis eindica o que, quando e onde, as diversas tarefas são feitas. Salienta um comportamentodirectivo;Persuadir (tarefa elevada e elevado relacionamento) – O líder dá a maior parte dasorientações e convence os liderados a adoptarem os comportamentos desejados;Compartilhar (tarefa baixa e relacionamento elevado) – Há partilha de decisão entre olíder e os subordinados, em que o papel daquele é o de facilitar a comunicação;Delegar (tarefa baixa e baixo relacionamento) – O líder dá pouca direcção e apoio,mas identifica o problema, deixando aos liderados a responsabilidade de execução”(Bilhim 2004: 348).107Definidos os parâmetros desta teoria chega-se à fórmula proposta por Hersey e Blanchard.Assim, porque a eficácia da liderança depende da capacidade e da segurança (motivação) –que se traduzem no grau de maturidade dos liderados –, esta teoria situacional defende quepara se atingir os melhores resultados e a melhor eficácia da liderança, o líder terá deadoptar a atitude correspondente a cada grau de maturidade dos seus liderados. Destaforma se o(s) seu(s) subordinado(s) se encontrarem no primeiro grau de motivação paraexecutar uma tarefa o líder deverá fornecer orientações claras e específicas (determinar);se a situação envolver o grau dois de motivação, o líder deverá envolver-se nas orientaçõespara a tarefa e também envolver-se com os liderados – comportamento de relacionamento– para os conquistar” (persuadir); se a envolvente for de grau três, de motivação, o líderterá de comunicar, apoiar e participar no processo (compartilhar); finalmente, numasituação de quarto nível, o líder não necessitará de fazer grande coisa (Robbins 2002). Poraqui podemos ver que esta teoria para além de reconhecer o papel dos seguidores, atribuiao líder espaço de manobra nas suas acções para adequar os procedimentos àsnecessidades e lacunas dos liderados. Dependendo da situação, os líderes adoptarãocomportamentos diferentes, no entanto, a situação nesta teoria tem aqui como sujeito osliderados e não a tarefa ou o ambiente.5.3.3. Teoria da Troca Líder-Membro. Até esta fase dos estudos sobre liderançapressupôs-se que os líderes tratam de forma igual todos os seus subordinados. No entanto,qualquer um de nós, no nosso dia a dia, nas organizações onde trabalhamos, percebemoscom facilidade que não é bem assim. As empatias, os interesses, até mesmo os gostospessoais variam de pessoa para pessoa e este facto traduz-se naquilo que para nós se tornaem algo indesmentível: não há dois relacionamentos iguais. A teoria da troca lídermembrovem, justamente, ao encontro desta análise e argumenta que por “pressão dotempo” (Robbins 2002; Bilhim 2004) o líder acaba sempre por estabelecer umrelacionamento diferente – talvez mesmo especial (Robbins 2002) – com um pequenogrupo dos seus liderados. Formam-se desta maneira dois grupos – o in group e o out group– cujas relações com o líder, sendo diferentes, se vão mantendo estáveis ao longo do

tempo. A diferenciação é sempre realizada pelo líder, embora os seus critérios não sejamapresentados de uma forma clara nesta teoria. Existe, no entanto, alguma evidênciaempírica que sugere que nos in group se incluem pessoas “em função da similaridade de108atitudes e características de personalidade ou por possuírem um nível de competênciasuperior ao dos demais membros” (Robbins 2002: 313) e que, embora elas sejam sempreescolha do líder, é com base nessas mesmas características pessoais que elas sãoescolhidas. Este grupo recebe, naturalmente, mais atenção por parte do líder e é mesmoprovável que essa atenção se estenda a privilégios vários (Bilhim 2004), enquanto que oout group é tratado com uma autoridade mais formal. A teoria da troca líder-membrodefende que os elementos do in group mostram “maiores taxas de realização, menossaídas e maior satisfação com o seu superior” (Bilhim 2004: 349).5.3.4. Teoria do Caminho-Objectivo. Esta teoria foi apresentada por Robert House(1971) e retira dos estudos da universidade de Ohio alguns dos seus principais elementos(estrutura de iniciação e consideração) (Bilhim 2004; Robbins, 2002). Assenta na ideia deque os subordinados aceitam o comportamento do líder no pressuposto de que este osconduzirá, de forma imediata ou futura, à satisfação das suas necessidades e à resoluçãodas suas ansiedades. O comportamento do líder é, pois, de natureza motivacional uma vezque o liderado busca satisfação através da qualidade das suas realizações, sendo a funçãodo líder apoiar, conduzir e ensinar nesse sentido. Assim, esta teoria defende que a funçãoda liderança é uma função condutora, já que ela define as metas a atingir e terá deassegurar o apoio e a orientação para esse objectivo. “Os termos meta e caminho derivamda convicção de que os líderes eficazes abrem os caminhos para ajudar os seus liderados aatingirem os seus objectivos, tornando a jornada mais fácil ao reduzir os seus obstáculos”(Robbins 2002: 314).House (1971) fala-nos em quatro comportamentos de liderança. O líder directivo dá aconhecer as expectativas que sobre os seus subordinados, define e calendariza as tarefas eorienta o percurso dos seus executores até ao objectivo estar concluído; o líder apoiante éamigável e preocupa-se com as necessidades e com o bem-estar dos seus subordinados; olíder participativo ouve e consulta os subordinados, aceitando as suas ideias para oprocesso de tomada de decisão; e o líder orientado para a realização determina metasambiciosas e espera dos seus subordinados a sua realização ao mais alto nível.Ao contrário do modelo de Fiedler, House (1971) defende a flexibilidade do líder,afirmando que os quatro comportamentos de liderança podem ser usados isoladamente ou109em conjunto, dependendo para isso da situação e das opções que o próprio líder quisertomar.Na situação, factor situacional ou factor contingencial, House (1971) distingue duasvariáveis: as ambientais, na esfera de intervenção dos liderados (estrutura de tarefa,sistema formal de autoridade e grupo de trabalho); e as que fazem parte das característicaspessoais do funcionário (centro de controlo, experiência e capacidade adquirida).“Os factores ambientais determinam o tipo de comportamento requerido do líder comoum complemento para que os resultados atingidos pelos subordinados sejammaximizados, enquanto as características pessoais do funcionário determinam como oambiente e o comportamento do líder são interpretados” (Robbins 2002: 314).Com base nesta interpretação, a teoria caminho-objectivo conclui que a liderança se tornaineficaz quando for redundante em relação às variáveis ambientais ou incongruente face àscaracterísticas do funcionário (Robbins 2002). Abaixo revemos algumas previsões deeficácia da liderança baseadas na teoria de House (1971):(i) A liderança directiva conduz a mais satisfação quando existe pressão ou quandoas tarefas não estão bem definidas, do que quando aquelas são altamenteestruturadas e planeadas.(ii) A liderança apoiante conduz a um maior desempenho e a uma maior satisfação

dos subordinados quando a tarefa é estruturada e bem definida.(iii) A liderança directiva pode ser entendida como redundante se os subordinadosforem muitos competentes e/ou forem muito experientes.(iv) A liderança orientada para a realização serve as expectativas e as ansiedadesdos subordinados, na medida em que, quando as tarefas forem estruturadas de umaforma ambígua, aqueles acreditem que os seus esforços venham a levar adesempenhos superiores.5.3.5. Modelo do Líder-Participação. Trata-se do mais recente contributo da abordagemcontingencial e foi proposto por Victor Vroom e Philip Yetton em 1973. O modelo líderparticipaçãoapresenta um conjunto de regras sobre a forma e a intensidade doenvolvimento do líder no processo decisório perante as diferentes situações. Os autores110reconhecem que a estrutura de tarefa pode ser mais ou menos rotineira e desta formadefende-se nesta teoria que perante situações diferentes os líderes deverão ajustar os seuscomportamentos no sentido de conseguirem atingir a maior eficácia possível. Este é, pois,um modelo normativo que nos fornece uma espécie de árvore de decisão (Bilhim 2004),com um conjunto de regras que deverão ser seguidas sequencialmente consoante asituação ou situações. A metodologia assenta em sete situações contingenciais para asquais deverão ser adoptados um de entre cinco estilos de liderança. São eles: (i)Autocrático I (AI); Autocrático II (AII); Consultivo I (CI); Consultivo II (CII); e Grupo II(GII).Na sua definição podemos entender o estilo de liderança AI como aquele em que o líderpensa, resolve e decide com base na informação que dispõe na altura; em AII tentarecolher primeiro informação junto dos subordinados e só então decide; em CI o líderdiscute o problema com algum ou alguns dos seus subordinados de maior confiança sem,no entanto, o fazer em grupo. A decisão não está no entanto vinculada à opinião dosinquiridos; em CII a partilha é feita em grupo e a decisão continua a ser individual; em GIIa partilha é total e a decisão passa pela aceitação do grupo. O líder poderá adoptarqualquer um destes comportamentos, cabendo-lhe a ele decidir que posição de liderançadeverá seguir perante as sete variáveis contingenciais apresentadas pelo modelo: 1)Importância da decisão; 2) Grau de importância da aceitação de uma decisão por parte dossubordinados; 3) Existe ou não informação que chegue para tomar a decisão; 4) Em quegrau de boa ou má estruturação se coloca o problema; 5) Se a decisão do líder forunilateral ela será aceite – e em que grau – pelos subordinados; 6) Os subordinados estãoou não envolvidos – “vestem a camisola” – com os objectivos da empresa; 7) A decisãopode produzir conflitos posteriores entre os subordinados.Esta foi a grelha contingencial apresentada, como se disse, em 1973, por Vroom e Yetton.Mais recentemente estes autores adicionaram-lhe cinco variáveis tentando assim prever omaior número possível de situações diferenciadas. São elas: 8) Se os subordinados quandochamados ao processo decisório reúnem ou não informação suficiente; 9) Até que ponto apressão do tempo pode limitar o envolvimento dos subordinados; 10) Se são razoáveis oscustos para reunir subordinados geograficamente separados; 11) Qual a importânciaatribuída à celeridade da tomada de decisão; 12) Importância do modelo participado comoferramenta para o desenvolvimento das capacidades de decisão dos subordinados.1115.4. Teorias Neocarismáticas19

A partir dos anos 80 a investigação voltou, de alguma forma, a centrar-se na pessoa dolíder e nos seus traços. Foi como que o revisitar da teoria do grande homem tentandoaprofundá-la à luz de novos conceitos. De entre as novas vertentes da investigaçãodestacam-se aqui três delas, comuns aos diversos planos de estudo entretanto surgidos:“Primeiro enfatizam os comportamentos simbólicos e emocionalmente apelativos dolíder. Segundo, tentam explicar como certos líderes são capazes de conseguir níveis

extraordinários de comportamento por parte dos seus liderados. E terceiro, esvaziam acomplexidade teórica e procuram ver a liderança de maneira próxima àquela de umapessoa comum” (Robbins 2002: 317).Também neste campo os estudos são muito diversos, quer a nível conceptual quer mesmoa nível de terminologia. Optámos por incluir neste estudo três teorias que nos pareceram asmais coerentes e abrangentes nesta problemática. Coerentes a nível de percurso eabrangentes a nível temático.5.4.1. Teoria da Atribuição de Liderança. Esta Teoria, proposta por McElroy (1982)centra-se na actuação do líder. Assim, defende-se que a liderança é um conceito atribuídopelos seguidores a determinado indivíduo ao reconhecerem nele certos traços, tais como ainteligência, a personalidade ousada, a aptidão verbal forte, a agressividade, acompreensão e o engenho (Bilhim 2004). Sob outro prisma é-lhe ainda reconhecidoespírito e capacidade de iniciativa e consideração elevada, o que faz da pessoa em causaalguém capaz de ser reconhecido como líder.5.4.2. Teoria da Liderança Carismática. Como resultado, de alguma forma, da evoluçãoda teoria anterior surgiu a teoria da liderança carismática (Bilhim 2004). Esta teoriaconstitui-se, segundo Rego e Cunha (2004), como “um dos temas mais discutidos (econtroversos) em torno da liderança”. No entanto, parece consensual a ideia de que existeliderança carismática quando os seguidores atribuem ao líder capacidades heróicas ouextraordinárias de liderança com base no seu comportamento (Robbins 2002; Bilhim19 O conjunto de teorias que agora se apresenta sob o nome de neocarismáticas tem sido referido tambémsobre outras designações; por exemplo, Bilhim (2004) adopta o termo teorias implícitas da liderança.1122004; Rego e Cunha 2004). A etimologia de carisma é grega e significa “dom dainspiração divina”, o que acaba por reforçar esse carácter transcendental, de alguma forma,ligado ao heroísmo. Porque este é um tipo de liderança atribuída, ou seja, ela existe peloreconhecimento dos seguidores, em grande medida os estudos têm como objectivo aidentificação dos factores de tal atribuição. Questionou-se se ela derivaria dos atributosparticulares do indivíduo, se proviria da situação ou se acabaria por ser uma conjugaçãodas duas. Parece ser hoje consensual a ideia da interacção (Rego e Cunha 2004). Klein eHouse (1995), citados por Rego e Cunha, problematizam metaforicamente a questão aoconsiderarem três elementos que concorrem para o surgir da liderança carismática: a faísca(o líder a quem são atribuídos comportamentos e características carismáticos); a matériainflamável (os seguidores receptivos ao carisma); o oxigénio (o ambiente carismático,usualmente caracterizado pelo ambiente ou percepção de crise, daí decorrendo umambiente de desânimo e pouca motivação gerado pela situação).Mas quais serão, então, as características do líder carismático? Robbins (2002) e Bilhim(2004) citam Conger e Kanungo (1998) na proposta de cinco características-tipo inerentesaos líderes carismáticos, e que diferenciam estes últimos dos líderes não carismáticos. Sãoelas:1) Visão e Articulação (têm uma visão, que se traduz na meta proposta, e quepromete um futuro melhor - a sua aptidão permite-lhes um esclarecimento cabal eclaro da sua visão);2) Risco pessoal (assumem os riscos e estão prontos para o insucesso que lhespoderá trazer mesmo o auto-sacrificio; tudo em prol da visão);3) Sensibilidade ao ambiente (avaliam e preocupam-se com as questõescontextuais, adaptando os recursos para a mudança necessária);4) Sensibilidade para as necessidades dos liderados (estão atentos e entendem ascapacidades dos subordinados e são sensíveis face às suas necessidades esentimentos);5) Comportamentos não convencionais (adoptam comportamentos novos, poucoconvencionais e que não estão de acordo com as regras pré-estabelecidas).(Robbins 2004).

113De acordo com estas características é natural que a influência exercida seja igualmenteespecífica. Daí a proposta de Shamir et al (1993), citados por Robbins (2002) e por Rego eCunha (2004), que nos traça um percurso de influência do líder carismático: ele inicia-secom uma visão que promete a continuidade fixando o trajecto que parte do presente emdirecção a um futuro melhor; o líder informa os seguidores sobre as suas expectativas (dealto desempenho) e manifesta a sua convicção de que os subordinados conseguirãoalcançar os objectivos propostos; esta atitude desencadeia o instinto de auto-estima e deauto-confiança dos liderados; o líder apresenta, assim, um novo sistema de valores aomesmo tempo que exemplifica para os seguidores o comportamento a ser adoptado portodos; por fim, o líder carismático submete-se a auto-sacrifícios e adopta comportamentosnão convencionais, provando o seu envolvimento, coragem e convicção em relação à visãopor si proposta.Neste quadro a liderança carismática provoca efeitos directos nos seguidores. SegundoRobbins – que se fundamenta nos estudos de House (1971), Conger e Kanungo (1998),Kirkpatrick e Locke (1991), entre mais alguns outros –, existem estudos suficientes quenos permitam concluir pela positiva sobre uma ligação directa causa/efeito entre aliderança carismática e os altos índices de desempenho e de satisfação dos liderados. “Aspessoas que trabalham para líderes carismáticos são motivadas a realizar esforços extrasno trabalho. Como gostam do seu líder e o respeitam, expressam maior satisfação”(Robbins 2002: 318).Uma outra questão investigada no âmbito da liderança carismática é a seguinte: nasce-secarismático ou aprende-se a sê-lo? A maioria dos estudos indica-nos que o carisma podeser aprendido e a esta ideia não é alheio o facto de muitos estudos neste sentido terem sidofeitos com base experimental em estudantes universitários. A título de exemplo,recuperamos brevemente os estudos efectuados por Howel e Frost, na década de 80.Foram identificadas e posteriormente ensinadas a vários alunos universitários “etapas deliderança carismática”, as quais eles deveriam colocar em prática com os seus colegas.Cumpridas essas etapas os resultados foram inequívocos:“Os pesquisadores descobriram que foram capazes de aprender a projectar carisma.Além disso, os liderados desses estudantes exibiram desempenho mais alto nas tarefas,melhor adequação ao trabalho e melhor ajuste ao líder e ao grupo, se comparados comoutros indivíduos liderados por líderes não carismáticos” (Robbins 2002: 318).114A terminar, de referir ainda que a liderança carismática pode não ser útil em todas assituações em que se pretenda altos níveis de desempenho. Ela parece estar mais talhadapara tarefas que impliquem questões ideológicas, com maior relevância quando asorganizações se encontram na sua fase inicial ou quando necessitam de mudança, ouquando o ambiente é incerto e tenso (Robbins 2022; Bilhim 2004).5.5. Liderança Transaccional e Liderança TransformacionalNo âmbito da escola neo-carismática passamos agora a uma das mais recentes abordagens:a liderança transaccional e a liderança transformacional. Daí que o assunto se preste amuitas dúvidas e a algumas confusões: desde logo muitos autores ao referirem-se ao tematitulam: “Liderança Transaccional versus Liderança Transformacional” (Ferreira et al,2001) como se de uma oposição se tratasse; depois, pela confusão que se pode estabelecerentre estes dois tipos de liderança e as definições – e diferenças – de gestão e liderança;por fim porque alguns autores tendem a não clarificar a diferença conceptual entreliderança transformacional e liderança carismática.Bernard Bass iniciou os estudos sobre as lideranças transaccional e transformacional nadécada de 80 e é hoje visto como o “pai” desta teoria. Definiu os conceitos e é citado emtodos os manuais dedicados ao tema. A liderança transaccional incide no esclarecimentodo papel e dos requisitos das tarefas dos funcionários bem como em atribuir-lhesrecompensas ou castigos pelo seu desempenho efectivo (Kinicki e Kreitner 2006). Daí que

este tipo de líder conduza, induza e motive os seus seguidores através do processo detroca, de transacção (recompensa/desempenho). Este modelo de liderança procuraigualmente que os objectivos dos liderados sejam compatíveis entre si e que se enquadremno objectivo global da empresa pelo que não se poderá dizer que há objectivos distintos ouantagónicos. Esta ideia tem por base uma permanente coordenação de interesses enegociação de conflitos (Ferreira et al 2001).A liderança transformacional, ao contrário da transaccional que envolve a atribuiçãopenalidades e de recompensas aos seguidores, é definida em termos de efeitos sobre osseguidores. Ela fundamenta-se no processo através do qual os líderes incutem confiança,tentam desenvolver a liderança nos outros, revelam postura de auto-sacrifício e revelam-setambém como patrocinadores de uma moralidade que induz os seguidores, por acreditarem115e admirarem o líder, a que se transcendam na prossecução das suas tarefas em prol doobjectivo último do grupo (Kinicki e Kreitner 2006). Em suma, o líder transformacionalfocaliza os interesses da organização e leva os subordinados a ultrapassar os seusinteresses, em torno do objectivo final, conseguindo assim um óptimo empenho dosseguidores o que leva à geração de grandes mudanças e de elevados desempenhos.A liderança transaccional e a transformacional são dois modelos que se complementam:“[a] liderança transformacional é construída em cima da liderança transaccional – produz,nos liderados, níveis de esforço e de desempenho que vão além daqueles obtidos apenas naabordagem transaccional” (Robbins 2002: 319). Bass admite, no entanto, que ambos osestilos podem ser eficazes em situações distintas: “o transformacional em períodos defundação organizacional e de mudança, e o transaccional em períodos de evolução lenta eambientes relativamente estáveis” (in Rego e Cunha 2004: 235).Por outro lado, não se pode confundir liderança carismática com liderançatransformacional. É certo que para se ser líder transformacional tem de se ser tambémcarismático, no entanto, este estilo não esgota aquele.“O líder puramente carismático pode querer que os seus liderados adoptem a visão demundo carismática, e param por aí. O líder transformacional tenta inculcar em seusseguidores a capacidade de questionar não apenas as visões já estabelecidas, mas atéaquelas colocadas pelo próprio líder” (Avolio e Bass in Robbins 2002: 319).Para além desta argumentação importa referir ainda outras questões não menosimportantes para o esclarecimento desta problemática. Assim, temos exemplos de líderescarismáticos (estrelas do desporto, do cinema, etc.) que nada têm de transformacional;também é de realçar, pelo acima exposto, que os líderes transformacionais procuramfortalecer, em diversos sentidos, os seus seguidores, ao passo que os líderes carismáticos,tantas e tantas vezes, pretendem apenas ser seguidos, tornando fracos e dependentes osseus liderados.Os líderes carismáticos geram inúmeras vezes relações amor/ódio, enquanto nas liderançastransformacionais é mais difícil encontrar sentimentos tão extremados. Por fim, os líderestransformacionais podem encontrar-se em diversos níveis das organizações enquanto oscarismáticos tendem a posicionar-se no topo (Cunha e Rego 2004).116Em suma, a liderança transformacional transforma os liderados no sentido de estespassarem a perseguir os objectivos da empresa deixando os seus próprios interesses parasegundo plano. Se esta é a conclusão, devemos então questionar de que forma consegue olíder produzir essa modificação nos seus subordinados?Sendo certo que as alterações fundamentais passam pelos valores, crenças, objectivos,necessidades e motivações, que outros factores podem concorrer para essa mudança?Segundo um estudo de Kark et al (2003), citado por Kinicki e Kreitner (2006), os líderestransformacionais tendem a seguir quatro princípios de liderança, que produzem resultadosdirectos nos seus funcionários:a) a motivação inspiracional, que estabelece uma visão sedutora do futuro, usando

argumentação emocional e exibindo optimismo e entusiasmo, factores quetransmitem esperança no futuro e um objectivo comum;b) a influência idealizada, que oferece um padrão de comportamentos que serve deexemplo, tais como, o auto-sacrificio em prol do grupo ou a exibição de elevadospadrões éticos;c) a consideração individualizada, que visa a motivação, a valorização, o ensino ea transferência de poder para os funcionários;d) por fim, a estimulação intelectual, que tem como finalidade levar osfuncionários a questionar-se, não só a si mesmos, como também ao status quoestabelecido, incentivando-os assim a serem inovadores e criativos na resoluçãoconjunta dos problemas da organização (Kinicki e Kreitner 2006).Este quadro resume-se apenas ao campo teórico, pelo que não se pode pensar ou adivinhara liderança transformacional – de resto como qualquer outra – como um mundo “cor-derosa”.Por este motivo, e dentro de uma lógica realista, deixa-se aqui um excerto de umartigo de John Huey, publicado pela revista Fortune, a 21 de Fevereiro de 1994:“Os poucos chefes que vislumbraram a ocorrência de tudo isto [o crescimentoexponencial da mudança] declararam-se transformacionais e adoptaram conceitoscomo empowerment, workout, qualidade e excelência. O que eles não fizeram – bemno fundo – foi abandonar o controlo ou as suas convicções fundamentais sobre aliderança. Como diz James O’Toole, um professor e especialista em liderança: noventa117e cinco por cento dos líderes americanos dos nossos dias falam as coisas certas.Apenas 5% as fazem”.5.6. Liderança de Nível 5A Liderança Nível 5 já não nos aparece inserida no quadro conceptual das liderançasneocarismáticas. Em abono da verdade, devemos salientar que ela não se enquadra emqualquer modelo de liderança pré-estabelecido. Vamos, pois, até novos desenvolvimentosconsiderá-la como uma perspectiva adicional ou complementar ao anterior modelo, umavez que estamos perante um desenvolvimento polvilhado de noções e conceitos queencontram a sua génese nas teorias neocarismáticas.A palavra-chave deste conceito apresentado pelo antigo professor universitário JimCollins, no best-seller intitulado Good to Great (2001), é a humildade. Parte-se doprincípio que sem humildade nunca um líder poderá chegar ao nível 5 de liderança. Oaparecimento e desenvolvimento desta teoria encontra o seu fundamento na questão: Umaboa empresa pode tornar-se numa excelente empresa? E em caso afirmativo, como?Collins desenvolveu a partir de meados da década de 80 uma pesquisa onde procurouidentificar empresas que tivessem conseguido a evolução do bom para o excelente ecomparou-as com outras que não atingiram o nível excelente de desempenho. Numuniverso de 1435 empresas estudadas, Collins identificou 11 empresas no topo dapirâmide do desempenho e a sua comparação com as restantes permitiu-lhe concluir queexistem algumas alavancas que transformam as empresas de boas em excelentes. Umadessas alavancas foi apelidada de liderança nível 5, ou seja, essas empresasprotagonizavam um conjunto de características próprias que evidenciavam umdeterminado estilo de liderança. A envolvente deste estilo baseia-se na integridade e naética do líder e encontra muitos dos seus valores na liderança transformacional. Anovidade desta teoria tem que ver com a humildade e com a modéstia, as quais fazem comque os líderes nível 5 se afastem dos holofotes mediáticos.“Por conseguinte, este novo perfil é o de um líder servidor da organização, dedicado ecompetente. Já não é o salvador tocado por alguma graça divina inacessível ao comumdos mortais. Também já não é alguém cujo fim é exclusivamente de natureza118económico-financeira, mesmo que isso implique o sacrifício pelos valores do respeitoe da dignidade das pessoas” (Cunha e Rego 2005: 33).

Desta forma, podemos encontrar alguns traços deste tipo de liderança: modéstia, vincadadeterminação, esforços e ambição canalizados para a organização, introspecção semdificuldade em assumir o confronto com os próprios erros e a determinação em manter portempo indeterminado e duradouro um desempenho organizacional altamente eficaz.Assim, podemos considerar os líderes de nível 5 líderes autênticos, que se envolvemdirectamente na organização enquanto um todo e que buscam uma relação próxima edirecta com os seus subordinados. Embora estas sejam noções que, de alguma forma, sesobrepõem a algumas das teorias de liderança anteriormente analisadas, nomeadamente atransformacional, é importante salientar que: “[o] comportamento novo e inesperado destateoria gira em torno da conclusão que os líderes bons a excelentes não são apenastransaccionais e transformacionais, mas, o mais importante, são humildes e fortementedeterminados” (Kinicki e Kreitner 2006: 369). Como exemplo atentemos no seguinte caso,referido por Kets de Vries. Num seminário sobre liderança, que incidia sobre casos reais,de Vries ouviu o seguinte exemplo da plateia:“I’m a very good manipulator. Sometimes I have a good idea and manage to present itin such a way that others think it’s really their idea. Then they run with it and the ideais implemented. If it turns out to be successful, I’m delighted, of course. So I go home,open the liquor cabinet in my study, and pour myself a shot of the best whiskey. I raisemy glass in a toast. But a toast to whom? To myself? Is there no more to it? I guess Ihave to do without the applause” (Kets de Vries 2001: 316).Trata-se apenas de um exemplo, com alguns traços de maquiavelismo, mas que não deixade apontar a capacidade do líder para ser humilde, ao não querer nem sentir a necessidadede ‘colher os louros’.Neste capítulo apresentámos uma revisão das principais teorias sobre liderança, as quaisutilizaremos para a análise que faremos mais à frente do trabalho de José Mourinho.Caberia também aqui uma referência à teoria da inteligência emocional, a qual, no entanto,não é feita porque a temática, constituindo uma base teórica importante nesta investigação,mereceu um capítulo inteiro nesta dissertação. No capítulo seguinte completamos estetrabalho de revisão das teorias sobre liderança. Apresentaremos uma revisão dainvestigação em curso sobre liderança, tendo como critério em temáticas a relevância119directa para este estudo. Assim focaremos os temas liderança e complexidade e asemoções na liderança.120

CAPÍTULO 6INVESTIGAÇÃO EM CURSO EM COMPLEXIDADE E LIDERANÇA E

EMOÇÕES E LIDERANÇA121Traçámos acima o panorama histórico e conceptual dos temas que ajudam a compreender aproblemática da liderança num contexto profissional contemporâneo. Esses temas foramapresentados de uma forma sistémica e enquadrados numa sequência de teoriasestabelecidas que adiante utilizaremos para compreender o estilo e os princípios daliderança de José Mourinho.Nesta investigação sugerimos que a base teórica primeira, a partir da qual José Mourinhodesenvolve a sua liderança e o seu trabalho, são as teorias da complexidade, com umacentuado apelo à inteligência emocional. É no pensamento complexo, cujos estudos sãoprotagonizados por Edgar Morin entre outros, que José Mourinho assenta o seu trabalho,sendo o primeiro, pelo menos na gestão desportiva, a operacionalizar aquela perspectivaparadigmática numa área concreta da actividade humana.Neste capítulo apresentamos uma revisão sobre a investigação mais recente no que respeitaà temática da liderança, no âmbito da perspectiva que seguimos na dissertação. Centrámosa investigação revista e apresentada neste capítulo em dois aspectos fundamentais:a) a liderança assente nas, ou influenciada pelas, teorias da complexidade, e a sua

consequente operacionalização; tentámos saber se o fenómeno da liderança temsido alvo de estudos que a investiguem numa perspectiva complexa ou, dito deoutra forma, se o desenvolvimento desses eventuais estudos tem sido no sentido daidentificação de uma liderança ‘complexa’ e operacionalizada;b) o papel e desenvolvimento das emoções na liderança, em especial se estivermosa falar de liderança assente em princípios da complexidade; neste campo, osestudos são recentes, mas a sua difusão no mundo organizacional tem sidoacelerada. A questão que nos preocupa de momento, alvo da nossa pesquisa,respeita à interligação e interacção entre emoção e liderança.A investigação que efectuámos, em parte com recurso à Internet, nomeadamente através daBiblioteca do Conhecimento Online, centrou-se nos journals académicos mais relevantespara a temática em causa, bem como na identificação de livros recentes, com credibilidadeaceite no meio académico, que abordassem alguma das temáticas acima identificadas.Daqui resultou uma primeira conclusão: trabalhos que relacionem liderança ecomplexidade não abundam. A aproximação que se faz à problemática que observámos é122não só reduzida como está dispersa ao nível do seu tratamento. O enfoque que se dá aotema, em geral, não parte da área da liderança em si mesma ou da complexidade, mas antesparte de outras áreas de estudo, como por exemplo a psicologia, a educação, ou asociologia, e por isso as investigações em causa trazem consigo agendas diversas da quenós aqui seguimos.Já no que diz respeito à inteligência emocional, como conceito que dá forma a um estilo deliderança, só através do seu enquadramento, precisamente como uma forma de liderança,se poderá fazer a passagem à complexidade. Assim, procurar na inteligência emocional –sem qualquer contextualização de liderança – ligações, por si só, à perspectiva dacomplexidade pareceu-nos desajustado. Desta forma o que se procurou foi descortinarcomo a investigação tem vindo a evoluir na problemática emocional e nas suas ligaçõescom a temática da liderança.Quanto à literatura científica publicada em livro, existem alguns autores com trabalhos queaplicam, directa ou indirectamente, a perspectiva da complexidade à temática da liderança.Entre eles, destacamos as obras de Ralph Stacey, inglês, que toca na temática da liderançano âmbito da sua investigação do fenómeno da estratégia, e a de Margaret Wheatley, norteamericana,focada mais claramente na temática da liderança. Trata-se de dois autores cujasobras têm tido um impacto interessante no mercado mundial. O livro de Wheatley,Leadership and the New Sciences, publicado em 1999, é um best seller mundial. Alémdisso, as ideias apresentadas por Wheatley e por Stacey podem também ser utilizadas parao estudo do trabalho e da liderança de José Mourinho.6.1. Panorama da Investigação ActualA aproximação da complexidade à liderança não pode, em virtude da própria perspectivada complexidade, ser entendida de uma forma isolada ou descontextualizada da realidadeorganizacional em que o líder se apresenta como o topo do ou dos vários contextosorganizacionais. Muitos elementos concorrem, cruzam-se e interagem entre si parapodermos compreender o contexto organizacional no seu todo e como um todo. Aliderança é um desses contextos e, também aqui, são vários e variados os elementos nadinâmica da complexidade. Não será de estranhar, por isso, que entendidas as organizaçõescomo sistemas vivos – para aqueles que partem de pressupostos que se relacionam com a123complexidade –, que as organizações espelhem os valores, as crenças e as culturas,podendo desta forma dizer-se “tell me what your organizations are like, and I shall tell youwho you are” (Schwaninger 2000).6.1.2. Emoções e LiderançaAlguns dos estudos mais recentes, como referimos no capítulo anterior, apontam a

liderança carismática como uma das abordagens que mais se tem evidenciado nos últimostempos. O líder carismático arrasta multidões e contagia-as – basta observarmos o caso deJosé Mourinho. É sobre este tópico que Bono e Ilies (2006) publicaram este ano o paper“Charisma, positive emotions and mood contagion”. O título identifica de imediato aproblemática em questão, fazendo a ligação entre o carisma do líder emocionalmentepositivo e o envolvimento dos seguidores mediante emoções positivas que contagiam assuas disposições. Aqueles investigadores estudaram o papel das emoções positivas naliderança carismática, bem como as reacções emocionais e os estados de espírito que olíder emocional positivo provoca nos seus seguidores e ainda de que forma tudo isto afectao desempenho do grupo. Em termos de investigação no terreno, Bono e Ilies (2006)basearam-se em análises laboratoriais, criando condições num grupo de estudantes para aemergência de liderança entre eles. “Our purpose in this series of studies was to examinethe effects of leaders’ positive emotional expressions on follower mood and perceptions”(Bono e Ilies 2006: 330). Desta forma pretendeu-se estudar três vectores: os efeitos dasexpressões e atitudes do líder emocional positivo sobre os seus seguidores; os efeitos dasexpressões e atitudes do líder emocional positivo sobre as disposições dos seguidores; aforma como os dois anteriores efeitos se cruzam com a eficácia da liderança. Quanto aconclusões elas não andaram longe daquilo que seria de esperar:“Results of our studies clearly indicate that leaders’ emotional expressions play animportant role in the formation of followers’ perceptions of leader effectiveness,attraction to leaders, and follower mood. Our results also suggest that charismaticleadership is linked to organizational success, at least in part, because charismaticleaders enable their followers to experience positive emotions. More importantly, ourresults indicate that the behaviour of leaders and managers can make a difference inthe happiness and well-being of the followers by influencing their emotional lives”(Bono e Ilies 2006: 331).124Não pode, contudo, existir liderança carismática sem que exista, entre líder e seguidores,empatia entendida esta como a capacidade de compartilhar os sentimentos de outrem, denos colocarmos na «pele» do outro (Cunha e Rego 2004). Desta forma compreende-se opapel que a empatia desempenha nas relações emocionais entre líder e seguidores. Este é otema dos estudos de Kellett et al (2006), que visam entender o papel da empatia naeficácia e na relação do líder com os liderados. Uma primeira conclusão deste estudoindica que a empatia é um factor que favorece o reconhecimento da liderança ou, sequisermos, que facilita a emergência da liderança efectiva. Assim a empatia surge como oprincipal factor de mediação entre as emoções dos seguidores e as do próprio líder; e isto,tanto na liderança orientada para as tarefas como na liderança orientada para orelacionamento. No entanto, “because perceptions of relations leadership require feelingsof being understood and valued, it is important for a leader to accurately detect emotionsand to experience and express empathy” (Kellett et al 2006: 157). Os autores fazem notarque estas ideias só se aplicam quando falamos de emoções positivas, como a empatia, jáque as emoções negativas, como a zanga, dificultam todo o reconhecimento de liderançapor parte dos seguidores.Esta relação, entre líder e seguidores, também foi estudada por Wong e Law (2002), já nãona perspectiva da empatia mas na da inteligência emocional em geral. Os autores fazem aponte entre a inteligência emocional dos líderes e a dos seguidores, correlacionando-ascom a produtividade e a satisfação no trabalho. Concluem que existe uma ligação directaentre inteligência emocional e performance laboral, já que a inteligência emocional leva amaiores índices de envolvimento. No entanto, este caso só é observável em tarefas queenvolvam altos e médios níveis de inteligência emocional. Esta generalidade de líderes ede seguidores emocionalmente inteligentes leva aquela pesquisa para fora do mundoempresarial, vindo a concluir que, uma vez observados altos níveis de inteligênciaemocional, as pessoas conseguem atingir uma melhor life satisfaction.

O papel das emoções na liderança, especificamente o ser emotivo (emotionallity), é umdos cinco aspectos mais importantes, referidos como super-traços de personalidade porDigman (1990), e utilizados em estudo recente (Andersen 2006). Recuperando o estudosobre os traços de personalidade do líder, Andersen (2006) introduz o que nos parece umainovação nos estudos de liderança, a ideia de representação: “[m]anagement andleadership in formal organizations are not about possessing special traits. It is about125acting” (Andersen 2006). Esta análise sugere que a representação não pode estardissociada da personalidade de cada um. Assim, o que o estudo pretende saber é o peso dapersonalidade na liderança, já que esta não se esgota naquela. Aliás, “the personalityapproach to leadership is only one approach to leadership. The instrumental approach(what leaders do) and the symbolic approach (how leaders and leadership are perceived)are dominating the field today” (Anderson, 2006: 1). Neste estudo tenta-se igualmenteperceber o impacto da liderança e do comportamento do líder para a eficácia dasorganizações. As respostas não são conclusivas, ou pelo menos, não adiantam muito aoque já se sabia. Anderson (2006) conclui que não existem, de facto, traços depersonalidade universais relacionados com a liderança e também que os traços de umlíder, por si só, não conseguem explicar os resultados gerados ao nível da eficácia da suaorganização. No entanto, o estudo conclui pela existência de relação entre ocomportamento do líder e a sua personalidade, sendo que a validade desta conclusão ésugerida para qualquer pessoa em qualquer profissão. Em tese geral, contudo, Andersen(2006) propõe que a liderança talvez não tenha tanto impacto na eficácia organizacionalcomo se tem pensado até aqui... é algo que fica no ar. Para aquele investigador,concluindo, liderar ou gerir não assenta em quem és (who you are), mas antes assenta narepresentação daquilo que és (acting) e do que fazes para atingir os objectivos a que tepropões.6.1.3. Complexidade e LiderançaOs papers acima referidas foram identificados devido à abordagem que fazem ao papeldas emoções no fenómeno da liderança. O outro eixo da nossa pesquisa, como acima foireferido, incidiu na temática da complexidade e liderança. Este é o nosso critério de fundo,porque é sob a perspectiva da complexidade, apresentada no capítulo 2 e sobre a qualassenta o trabalho de José Mourinho, que toda a nossa análise e utilização de teoria sebaseará e baseia.Nesta temática, complexidade e liderança, queremos chamar a atenção para o númeroespecial sobre “Complexity and Leadership” da revista académica Leadership Quaterly(LQ), uma das mais influentes na área, que deverá ser publicado em inícios de 2007. Valea pena destacar uma passagem do call for papers divulgado por este journal:126“Complexity is the study of the dynamics of interaction. It is not so much concernedwith what individuals do as it is about the mechanisms by which things happen.Complexity examines the clustering of ideas and people, and what happens whenthese clusters interact. This dynamic approach conceptualizes organizations not as aset of formalized roles, but rather as a set of processes and mechanisms that generateemergent, typically unexpected, outcomes. Complexity science covers such topics asneural network activities, interaction, interdependency, adaptive tensions, catalysts,knowledge production, and bottom-up decision-making. In this special edition, theeditors pose the question, What role does leadership play in complex interactivedynamics? This broader question suggests more specific questions, such as: What isleadership? How are complex dynamics coordinated and motivated? Whatimplications do emergence and adaptive tension have for organizations andleadership? How are traditional top-down leadership styles and emergent bottom-upprocesses coordinated in complex adaptive systems? How do leadership processesunfold over time? How can dynamic leadership processes be studied?”Trata-se sem dúvida de questões pertinentes sobre o fenómeno da liderança, sobre as quais

a epistemologia da complexidade poderá vir a proporcionar avanços interessantes.Enquanto aguardamos pelo resultado deste call for papers, pela revisão de literaturaefectuada destacamos três artigos entretanto publicados: Schneider e Sonner (2006) comOrganizations as Complex Adaptive Systems: Implications of Complexity Theory forLeadership Research; Schwaninger (1999) com Managing Complexity – The Path TowardIntelligent Organizations; e Knowles (2001) com Self-Organizing Leadership: A Way ofSeeing What is Happening in Organizations and a Pathway to Coherence.Uma liderança enquadrada e adaptada às teorias da complexidade é o que nos propõemSchneider e Somers (2006). Os dois investigadores contrastam os princípios da teoria geralde sistemas com os da teoria da complexidade, no sentido de abrir pistas para oestabelecimento e investigação de uma liderança operacionalizada nos princípios dacomplexidade. Os autores concluem que a teoria da complexidade está especialmentevocacionada para compreender e responder aos tempos de mudança contínua e por vezesdramática que as organizações vivem no mundo contemporâneo. No entanto, essa teorianão explica e muito provavelmente não resolve tudo, especialmente em casos de mudançaque tendam para a catástrofe, como, de acordo com os autores, é exemplo a recente guerrana ex-Jugoslávia. É desta forma que os autores apontam um “lado negro” da teoria da127complexidade no que toca à conceptualização da liderança. Em primeiro lugar, nãoexistem garantias de que uma liderança potencialmente complexa consiga prosseguir oscritérios de interesse (visão, missão, papel na sociedade, etc. da organização), porque “ashas been demonstrated, unforseen consequences are a defining characteristic of a CAS[Complex Adaptive System] framework” (Schneider e Somers 2006: 362). Assim, osautores sugerem que a liderança deve encorajar o desenvolvimento de uma identidadeorganizacional que reflicta variação bem como auto-semelhança, e desta forma essaidentidade poderá, potencialmente, servir de contra-poder às forças que poderãoeventualmente levar à destruição do sistema. Estes autores manifestam preocupaçãoquanto aos processos de auto-organização e/ou emergência organizacional. Isto porque,embora esses processos estejam validados nos campos da física e da biologia, o mesmonão acontece no campo dos sistemas sociais. Esta posição serve para os autores sugerirema necessidade de se prosseguir investigação sobre a validade dos conceitos da teoria dacomplexidade para os sistemas sociais; validade essa que, em princípio, estesinvestigadores aceitam. Shneider e Sommers (2006) admitem, por exemplo, que aliderança possa ser crucial para o processo de auto-organização, como aliás sugeretambém Knowles (2001). Este último investigador, na linha de Stacey e de Wheatley,autores que abordaremos de seguida, cruza a auto-organização com o fenómeno daliderança, bem como noções de complexidade com conceitos sobre os sistemas vivos.Knowles (2001) apresenta-nos o conceito de liderança auto-organizada e define-a como osuporte da liderança operacional e da liderança estratégica. Para Knowles (2001), oslíderes eficazes necessitam de se mover consciente e tranquilamente entre estes doispapéis à medida que as situações assim o exijam; o autor chama-lhe a “dança daliderança.” Neste processo, Knowles (2001) considera existirem nove variáveis padrão:identity, intention, issues, relationships, principles, the work, information, learning, estructure/context. É sobre estas variáveis que incide o papel específico de liderança. Olíder deve manter a organização atenta ao que aquelas nove variáveis significam, na dupladimensão do que a organização é hoje e do que ela quer ser no futuro. Knowles (2001)sugere que é desta forma que a organização, enquanto sistema, ganha a sua coerência:“In some organizations the people are working coherently, energetically, andeffectively. Information flows freely and the parts are well connected. Theseorganizations are self-organizing and have many of the characteristics of living128systems. In other organizations, the people struggle with mixed messages andincoherence. The information flow is blocked and the parts are disconnected.

Confusion, cynicism, and burnout hamper the organization's effectiveness. Theseorganizations are treated by their leaders as if they are machines to control andmanipulate; these are command-and-control organizations. In my experience, mostpeople in organizations are hard working, intelligent, and well-intentioned. Very fewpeople get up in the morning with the express intent of messing up their organization.So why is it that in some organizations people blossom, while in others they wither?”Numa outra perspectiva, Schwaninger (2000) focando igualmente a dimensão interna daorganização, e fazendo uso da lei da variedade necessária de Ashby (1956), sugere que avariedade organizacional deve ser determinada pela variedade do contexto da organização.Constatando a turbulência e dinamismo das sociedades actuais, Schwaninger (2000)propõe que a resposta a esta complexidade é o que é fundamental para a gestão e liderançacontemporâneas. Face a esta comprovada complexidade, o investigador não propõe ummas a junção de três modelos. A partir de um meta-modelo, que não é mais que umaglobalidade tripartida, logo, embora sofisticada, essencialmente reducionista, Schwaninger(2000) conclui que o seu meta-modelo é uma ferramenta de trabalho relevante para seestudar e responder aos desafios que as novas situações complexas colocam. Oinvestigador defende ainda que o seu meta-modelo facilita o conhecimento dasnecessidades das organizações emergentes na sociedade do conhecimento, bem comoproporciona a conectividade entre estudiosos em diferentes domínios do saber –económico, sociológico, etc.No campo dos livros, recentemente publicados e com credibilidade estabelecida, aabordagem da liderança sob a perspectiva ou no âmbito das teorias da complexidade étambém algo relativamente novo. No entanto, alguns autores merecem referência, comoWheatley e Stacey. Margaret Wheatley publicou em 1990 o livro Leadership and the NewScience – Discovering Order in a Chaotic World. Nesta obra a investigadora propõe-nosuma forma de olhar as organizações assente em princípios complexos que regem anatureza. Para Wheatley, as organizações são encaradas como sistemas vivos que se autoorganizama partir do caos. Neste contexto de caos e de auto-organização surgem oslíderes, entendidos por Wheatley como os mais eficazes. Mas de que forma avaliar então129essa eficácia? Para a investigadora a eficácia do líder advém da sua capacidade deconjugar os princípios de evolução da natureza com as especificações das organizações.“You think because you understand one you must understand two, because one and one istwo. But you must also understand and” (Meadows in Wheatley 1999: 10). É neste campode ligações complexas que Wheatley desenvolve o seu raciocínio, que olha para a naturezapara entender o ser humano, considerando assim estes dois elementos como um todoinseparável e conexo. Na sua obra, que visa desenvolver um novo modelo organizacional,Wheatley socorre-se, essencialmente, de três áreas da ciência: física quântica, sistemasauto-organizados e teoria do caos. À primeira vai buscar o que chama um novo modelo depensar, observar e percepcionar o mundo que nos rodeia; à segunda área, a dos sistemasvivos auto-organizados, vai procurar caminhos de entendimento para noções comodesequilíbrio e mudança, bem como para qual o papel da desordem como fonte decrescimento; é também com base nesta segunda área que Wheatley apresenta um novomodelo de relacionamento entre autonomia e controlo; por fim com o auxílio da terceiraárea, a teoria do caos, Wheatley tenta demonstrar a necessidade do caos como processoque conduz à criação de uma nova ordem, num mundo onde caos e ordem coexistem, eonde a estabilidade nunca está garantida mas também nunca é inteiramente desejada.Numa linha não muito distante da de Wheatley encontramos a obra de Ralph Stacey,Douglas Griffin e Patrícia Shaw, entre outros investigadores, baseados em Inglaterra. Estegrupo de académicos tem publicado trabalhos individuais e em conjunto, assentes na teoriada complexidade, focando essencialmente a estratégia organizacional. Nas suas últimasobras estes autores tentam demonstrar a necessidade de olhar as organizações além dos

limites do pensamento sistémico, de modo a poder obter-se um envolvimento efectivo daprópria vida, enquanto todo, no todo das organizações; a criatividade da vida humana teráde ser a criatividade da vida organizacional. Estes autores têm feito um apelo crescente àfilosofia e à teoria social como estratégia de ajustamento da perspectiva da complexidade,e das suas teorias da física e da biologia, à actividade social dos homens. Entre os autoresutilizadas por Stacey e colegas, contam-se Immanuel Kant, Edmund Husserl e GeorgeHerbert Mead, como referimos no capítulo 2.130

CAPÍTULO 7DISCUSSÃO EXPLORATÓRIA: ENTREVISTA A JOSÉ MOURINHO131Este é o primeiro de dois capítulos que discutem de forma exploratória, com JoséMourinho e com Rui Faria, o seu principal adjunto, as principais temáticas destainvestigação, sobre as quais recairá a nossa análise, a apresentar no Capítulo 9. Nestecapítulo apresentamos a entrevista que realizámos a José Mourinho. No capítulo seguinteapresentamos a entrevista realizada a Rui Faria.Ambas as entrevistas foram efectuadas no mês de Junho de 2006, separadamente, emmomentos e em locais diferentes. Nas duas discussões tentou abordar-se, ainda que porvezes de forma indirecta, as bases do trabalho de José Mourinho, como líder de um grupode profissionais. Desta forma colocámos o actual treinador do Chelsea e o seu adjuntoperante questões relacionadas com (i) a perspectiva da complexidade, (ii) com a liderança ecom o funcionamento dos grupos, com a cultura organizacional, (iv) com as emoções, aauto-consciência, e (iv) com o treino e a aprendizagem e interacção inter e intra-grupal. Arazão da escolha destas temáticas prende-se com a relevância de cada uma delas napresente investigação. A complexidade é a nossa perspectiva paradigmática de fundo. Aliderança num contexto grupal e organizacional é o próprio terreno da investigação. Ainteligência emocional é um dos principais blocos teóricos que escolhemos para assentareste estudo. Dada a actividade concreta que estamos a analisar, o treino é onde o trabalhoconcreto de José Mourinho é mais visível e mais se manifesta.As entrevistas que a seguir se apresentam – a José Mourinho neste capítulo e a Rui Fariano capítulo seguinte – constituem, quanto a nós e aos próprios entrevistados, como nos foireferido, um interessante exercício de clarificação conceptual do trabalho prático de JoséMourinho.A entrevista semi-estruturada que realizámos a José Mourinho, tal como a que decorreualguns dias depois com Rui Faria, assentou então nos seguintes tópicos: a complexidadecomo perspectiva de fundo; o exercício concreto da liderança de José Mourinho; o grupo ea sua cultura; e a aprendizagem e o treino.7.1. Complexidade/TodoA introdução da nossa conversa com o treinador do Chelsea prendeu-se com a clarificaçãoda aproximação da complexidade como suporte teórico do trabalho desenvolvido, como132treinador de futebol, por José Mourinho. Para Mourinho, esta sua opção ficou a dever-se auma conjugação de factores.“Quando entrei para o Instituto Superior de Educação Física (ISEF), para melicenciar, precisamente, em educação física, houve um livro que me marcou pelanegativa – mas que fui obrigado a estudá-lo – e que é visto como uma “bíblia” dametodologia da educação física e do desporto. É uma obra de um tal Matveiyev quefoi – e ainda é – um marco no ensino relativamente aos desportos individuais.Porém, em meu entender, uma coisa é um desporto individual com um homem a serpreparado para um determinado objectivo e outra é um desporto colectivo onde umhomem por si só nada vale. As qualidades que se podem trabalhar num desportoindividual com um só atleta não têm nada a ver com as qualidades que se trabalhamnum desporto colectivo, ainda por cima num desporto como o futebol, com 11

futebolistas – para não dizer vinte e tal. Ora, eu revelei-me completamentediscordante, como estudante minimamente atento e talvez até facilitista – já que eusó pretendia acabar o curso porque sabia que a minha pesquisa posterior iria serbem mais importante que aqueles cinco anos de licenciatura. Fui obrigado, emsimultâneo, a debitar a minha sabedoria sobre algo com que não concordava e atentar desenvolver ideias sobre as quais estava em completo desacordo. OMatveyev é de facto uma bíblia para os desportos individuais mas de pouco valepara os colectivos. Acredito, hoje, que vai haver – e já está a haver – um corte comaquele passado porque o homem é um ser complexo e no caso concreto da minhaprofissão, no futebol, temos de perceber que onze homens à procura de umobjectivo é completamente diferente de um homem à procura de um objectivo.Assim, a minha metodologia foi toda virada nesse sentido. Depois recebiinfluências diversas baseadas na minha própria experiência. Manuel Sérgio,filósofo e meu professor no antigo ISEF, também foi fundamental na minhaaprendizagem porque não me apresentou caminhos rígidos que eu teria de trilharnem verdades feitas às quais eu me deveria agarrar e sim pistas para novosentendimentos. Mas, para responder directamente à pergunta, depois de tudo o queme começaram a ensinar tive a necessidade interior de escolher outro caminho eescolhi o da complexidade.”133Ficaram, então, ainda enquanto estudante universitário, definidos os contornos dopensamento e das escolhas de José Mourinho. As ideias convencionais não o convencerame ainda no ISEF iniciou-se a sua contestação ao pensamento reinante. A vida e a profissãotrouxeram-lhe o resto.“Tudo isto foi acelerado quando eu me tornei treinador principal. Já tinha pensadosobre isto, porque enquanto treinador adjunto ou preparador físico tentava nãoperder a minha identidade, uma vez que estava a ser comandado, enquantotreinador adjunto, por um treinador principal que tinha ideias e filosofia deliderança com as quais eu não me identificava. Portanto aí a minha evolução foi,necessariamente, por força da minha posição secundária, algo lenta. Mas quando defacto me senti senhor do meu trabalho, do meu grupo, do meu destino foi quandocomecei a sentir necessidades de trabalhar neste sentido”.José Mourinho é um homem pragmático e mais do que com ideias ou conceitos exprime-secom exemplos práticos. Voltemos, então à pergunta: Porquê a complexidade?“Qual é o homem mais rápido do mundo? Vamos supor que é o Francis Obikwuelu,que faz menos de 10 segundos em 100 metros. É muito rápido e não conheçonenhum jogador de futebol que o consiga igualar numa corrida de 100 metros. Noentanto, numa partida de futebol, 11 contra 11, penso eu, o Obikwuelu seria o maislento! Dou ainda outro exemplo: um caso paradigmático de um jogador actual lentoé Deco20. Se o colocássemos numa corrida de 100 metros com os homens doatletismo ele faria uma figura ridícula. É descoordenado a correr, não temvelocidade terminal, muscularmente de certeza que está carregado de fibras decontracção lenta e nada de fibras de contracção rápida. No entanto, num campo defutebol, é um jogador dos mais rápidos que conheço porque velocidade pura nãotem nada a ver com a velocidade no futebol. A velocidade no futebol tem a ver comanálise da situação, de reacção ao estímulo e capacidade de o identificar. Nofutebol o que é o estímulo? É a posição no campo, a posição da bola, é o que oadversário vai fazer, é a capacidade de antecipar a acção, é a percepção daquilo queo adversário vai fazer, é a capacidade de perceber que espaço é que o adversário vai20 Internacional português actualmente ao serviço do Barcelona FC, de Espanha. Deco já conta no seucurrículo com vitórias nas ligas espanhola e portuguesa, para além de ter conquistado duas Ligas Europeiaspelo FC Porto e pelo Barcelona FC.134

ocupar para receber a bola sozinho, etc. Daí que, por exemplo, se um jogador meuestiver a marcar o Obikwuelu, que tem, comparado com os jogadores de futebol,um arranque de grande explosão, isso obrigará o meu jogador a arrancar sempremais tarde numa desmarcação. Contudo, porque o futebol não é a sua área dedesempenho, Obikwuelu vai, com grande probabilidade, deslocar-se para onde nãodeve, logo, o meu jogador vai conseguir estar ao pé dele no momento em que eletem condições para receber a bola. Nesta forma de analisar a velocidade umjogador lento do ponto de vista tradicional é, afinal, um jogador rápido numaperspectiva complexa porque se vai deslocar numa altura em que os outros nãoesperam, num momento correcto, num momento em que o companheiro com bolaprecisa que ele se desloque. Desta forma, tudo isto é complexidade e o homem éum todo complexo no seu contexto, por isso trabalhar qualidades individualizadase/ou descontextualizadas da complexidade do jogo é, para mim, um erro grave”.É por este motivo que Mourinho afirma que, numa perspectiva reducionista, aodescontextualizar-se o homem de uma realidade complexa muitos pensam que estão areduzir o grau de complexidade do contexto, logo que estão a tornar o trabalho mais fácil.Para Mourinho este raciocínio é um erro já que a descontextualização esquece ofundamental, que é o jogo.“Ainda se pensa que ao reduzir-se a complexidade se está a tornar as coisas maisfáceis. Quanto a mim estamos apenas a criar condições de sucesso ao jogadorsomente em treino. É que ao fazê-lo depois não se encontra qualquertransferibilidade para o jogo. Por exemplo, há 10 anos atrás o Eusébio era treinadorde guarda-redes do Silvino, no Benfica. O Eusébio colocava a bola à entrada daárea e rematava com o intuito de treinar o guarda-redes. O problema é que o Silvinonão conseguia treinar porque as bolas entravam todas na baliza. Ele, assim,simplesmente não treinava porque os remates eram descontextualizados daquiloque naturalmente é o jogo, onde um jogador não aparece 100 vezes, isolado frenteao guarda-redes e em condições óptimas de remate. Trata-se de uma situaçãodescontextualizada da realidade e da complexidade do jogo. No entanto, existemmuitos treinadores que fazem isto como treino de finalização. Não concordo, emabsoluto, porque a situação é fictícia e, repito, descontextualizada da realidade dojogo onde os jogadores têm de contar sempre com a oposição do adversário. Por135isso, eu não faço finalização descontextualizada. Tenho, isso sim, de criarcondições de treino integrado onde estou a trabalhar a complexidade do jogoatravés de situações o mais próximo possíveis do real, daquilo que se espera quevenha a ser o jogo. Por isso, quando trabalho a finalização dos meus jogadorescoloco-lhes oposição porque é isso que acontece no jogo, ou seja, antes de finalizaro meu jogador tem o adversário pela frente e tem de ultrapassá-lo para só entãoefectuar o remate. Assim, ao fazer o treino de finalização desta forma estou a fazerdo treino o próprio todo do jogo, onde não estou apenas a treinar a finalização e osmeus avançados, mas também os meus defesas, que terão nos seus jogos,avançados pela frente, os meus médios e o meu guarda-redes. Por isso eu nãocoloco o meu treinador de guarda-redes a rematar sozinho para a baliza para treinaro meu guarda-redes, porque essa situação é de estímulos repetitivos e o jogo nadatem de estímulos repetitivos”.Pelas palavras de José Mourinho ficou clara a importância que a noção de todo tem no seutrabalho. Mas será esta a única forma de funcionar de uma equipa? Para Mourinho sim,essa noção é fundamental para a obtenção do sucesso. O todo terá de estar sempre no topodas prioridades. O que muda, no entanto, porque evolui, porque se transforma, porque seadapta é o próprio todo mas isso em nada muda a questão: seja qual for o patamar em quese encontre, o todo será sempre primordial.“Talvez com um exemplo isto se entenda melhor. Este ano trouxe para o Chelsea

jogadores com um perfil totalmente diferente daqueles que trouxe há dois anosatrás quando aqui cheguei. Porquê? Porque é que contratei “estrelas” como umSchevshenko ou Ballack? Porque para mim a questão é a seguinte: nada pode serconstruído tendo como centro dessa construção alguém especial. Especial é sim oque se quer construir e quando temos um grupo todos têm de ser iguais na e para aobtenção do fim a que todos se propõem. Objectivamente o Shevshenko é umcampeão e o Ballack também. Têm qualidade, estatuto, fama, são ricos e jáganharam muitos troféus. Tudo isto é um facto indesmentível mas uma coisa é elesserem o centro, o núcleo da construção de uma equipa que se quer fazer porqueestão rodeados por vinte zés-ninguém e outra coisa é estes dois jogadores chegarema um grupo onde os outros já são campeões, famosos, ricos e que neste momentoestão preparados como equipa, como grupo, como individualidades para receberem136jogadores que neste momento são da mesma dimensão do que eles. Quem eramLampard, Terry, Drogba há dois anos atrás? Não eram estrelas mundiais,seguramente. E neste momento quem são? São iguais ao Shevshenko ou aoBallack. E mesmo estes vão dar mais de si porque o seu estatuto não é superior emrelação aos outros e assim vão ter de se superar para não ficarem abaixo dos outros.Portanto é tudo uma questão de equilíbrio. A minha filosofia de manter o equilíbriomantém-se, o que subiu foi um patamar no enquadramento dos jogadores”.Para José Mourinho o todo, o grupo, vem primeiro do que as partes. O grupo vem primeirodo que o indivíduo – não só conceptual mas culturalmente. Mas como se mantém umequilíbrio em grupos constituídos por homens, cada um com a sua personalidade,expectativas e forma de pensar? Ainda para mais homens mediáticos, talvez dos maismediáticos do mundo. No todo que constitui o seu grupo onde está, afinal, o individual eonde está o todo, ou o colectivo?“Eu sacrifico o individual pelo colectivo. Um jogador de grande importância noChelsea disse-me uma vez que determinado colega de equipa não podia trabalharcomigo. Perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me que o colega era demasiadofrágil para trabalhar comigo. Das duas uma, ou eu considerava esse colega um casoespecial e modificava a minha forma de actuação relativamente a ele ou ele nãoteria hipótese de trabalhar comigo. A este nível, e penso que a nível empresarial,para uma empresa com grandes objectivos, com uma visão bem definida, entendoque o todo jamais pode ser sacrificado porque o todo, neste caso, é mais que ogrupo humano que trabalha. Muito mais que isso. Quando eu trabalho com umgrupo de vinte e tal homens, não existimos só nós. Somos nós, mas é também opatrão, os investidores, os adeptos e por aí fora. A estrutura é gigante e nós somos omicro sistema integrado no macro. Por isso, o todo nunca pode ser sacrificado.Tenho por exemplo um jogador que me diz: “mas porque é que eu saí da equipa sesó cometi um erro? Só um e nada mais?”. Simples. Porque o erro que ele cometeucustou ao grupo três pontos. Depois, esquece-se que tem um colega há seis mesesno banco de suplentes a fazer pressão porque também quer jogar. Ora se elecometeu o erro o outro, que espera a oportunidade, também pode dizer: “entãoestou a trabalhar à espera da oportunidade, estou a trabalhar em altos níveis e nãotenho possibilidade de dar o meu contributo directo? Se o outro erra e não sai, então137quando é que vou jogar? Nunca?” Eu penso que da parte de um profissionalambicioso esta questão tem toda a pertinência e até legitimidade, portanto, quandotal acontece, eu tenho de colocar o jogador suplente em campo, não só por umaquestão de justiça mas também para tornar eficaz a pressão que eu quero que o meugrupo internamente sinta. Ora, ao fazer isto, considero que o todo está a serbeneficiado porque sai o que cometeu o erro e estou a colocar outro no pressupostoque não vai cometer erro e com níveis de motivação elevadíssimos”.

Ficaram, então, traçadas a ideias chave de José Mourinho relativamente aos princípiosmais marcantes do seu trabalho. A perspectiva da complexidade é a aproximação certa naforma como encara, organiza e projecta o seu trabalho: o todo no centro das partes, queinteressam enquanto viradas para o todo e ao serviço do todo.7.2. Cultura/GrupoCultura, equipa, grupo são tudo noções às quais José Mourinho dá grande importância.Existe uma ‘cultura José Mourinho’? Traduz-se em quê? Como é a sua relação com ogrupo, com as “estrelas”? Mourinho começou por falar da cultura de grupo, e comoteremos oportunidade de comprovar mais à frente, a sua opinião não difere da de Rui Faria.“Acho que há [uma cultura José Mourinho]. De tal forma que mesmo quem nãoestá dentro a sente. Por exemplo, li hoje afirmações do Schevchenko21 a um jornalitaliano onde ele disse: «tenho um sistema táctico preferido e uma posição preferidapara jogar, mas eu sei que este treinador conseguiu tudo o que conseguiu porque aequipa está à frente de tudo, logo, nesta equipa estou disponível para aquilo que elequiser». É bom que tenhamos em conta que quem proferiu esta afirmação é um dosmelhores jogadores do mundo que foi bola de ouro há três anos atrás. Ele quenunca trabalhou comigo, conhecemo-nos no campo de futebol “bom dia, boa tarde,boa sorte e até amanhã” e consegue transmitir uma mensagem que expressa amaneira como nós jogamos, a maneira como eu falo, como os jogadores falam demim e de nós. É uma cultura porque extravasou a própria família e os de fora já se21 Schevshenko havia sido contratado por Mourinho pouco antes da realização desta entrevista, no entanto,ainda não tinha trabalhado no Chelsea sob as ordens de Mourinho já que estava no gozo das suas férias, deresto, tal como Mourinho.138aperceberam. Mais que uma cultura José Mourinho é uma cultura das equipastreinadas por José Mourinho. É uma coisa de equipa, que parte de mim mas que vaisendo progressivamente aceite por todos que a vão cultivando e defendendo. Edepois tens sempre no grupo jogadores que pelo seu estatuto são muito importantesno funcionamento do mesmo. Ora, se conseguirmos que eles defendam os mesmosvalores, é muito mais fácil implementar uma cultura, neste caso a minha. Quandocomecei a lidar com grandes estrelas, enquanto treinador adjunto no Sporting, Portoou Barcelona, eu tinha mais ou menos a idade dos jogadores (cerca de 30 anos).Essa proximidade de idade ajudou-me muito a saber o que é importante para eles eo que é difícil para eles aceitarem… Um dos segredos é conseguir sistematizar bemaquilo que é fundamental. Aconteceram-me coisas enquanto adjunto que nãoesqueci. Por exemplo: Tinha treinadores que proibiam falar ao telefone noautocarro. Eu ia lá atrás buscar uma água ao frigorífico e tinha jogadores sentadosno chão a falar ao telefone. Comecei a pensar: quando for treinador principal, sedisser que é proibido falar ao telefone, das três uma: ou vou andar para a frente epara trás durante uma viagem de três horas para apanhar os que estão no chão afalar ao telefone ou fico sentadinho no meu banco cá à frente e eles estão a gozarcomigo ou, então, vou dizer que é permitido falar ao telefone com uma condição:com o telefone no modo silêncio para quem quiser dormir a sesta poder estardescansado. Como muitos deles estavam habituados a andar escondidos e tinhammedo do treinador, ficaram encantados da vida. Consegue-se os objectivosanalisando bem a situação, tendo bom senso e criando um clima favorável. Assimque cheguei ao Chelsea e falei com eles sobre isto, eles andavam no autocarro atelefonar uns para os outros para ver se “entalavam” algum que se tivesseesquecido de tirar o som e não me lembro de uma vez o telefone ter tocado noautocarro. É uma coisa básica, que se tornou automática. Para haver liderança temde haver disciplina, para haver disciplina tem de haver regras, e as regras têm de serdefinidas com bom-senso. Quando estabelecemos regras que não são cumpridas acem por cento estamos a perder poder. Por isso entendo ser preferível regras

cumpridas a cem por cento e que lhes deixam um pouco de espaço à capacidade dedecisão e de comunicação entre eles. É fundamental. Dou ainda outro exemplomas, agora, num campo algo diferente. Nas minhas equipas, por questões139fisiológicas e de recuperação, é proibido beber álcool depois dos jogos. Adeterminada altura, no Porto, tivemos um jogo que ganhámos e os jogadores vierampedir-me para, ao jantar, beberem uma cerveja ou vinho. Fui peremptório e disselhesque não. A seguir expliquei-lhes a razão da minha resposta negativa: porquedaqui a três dias há jogo e o álcool atrasa a hidratação, a reposição dos minerais,etc. Eles ainda tentaram argumentar que jogaram bem e que golearam o adversáriomas a minha resposta foi sempre negativa. Um par de semanas mais tarde, a seguira um mau resultado, ninguém me veio pedir para beber coisa nenhuma. Tínhamosperdido com o Gil Vicente. A seguir ao jogo, já na sala de jantar do restaurante, eudisse-lhes: “Bebam vinho e cerveja, se quiserem”. Eles ficaram espantados comaquela súbita generosidade da minha parte, em especial, depois de uma derrota.Expliquei-lhes, então, que aquilo não tinha que ver com ganhar ou perder. Sótínhamos jogo daí a uma semana e uma cerveja ou um copo de vinho não trariaquaisquer consequências. Logo, as razões que nos levam a dizer “sim” ou “não”não têm que ver com ganhar ou perder, mas sim com razões lógicas. É a cultura dobom-senso.”Na ‘cultura José Mourinho’ não têm sido poucas as manifestações do grupo em torno doseu líder. Nos clubes por onde tem passado, José Mourinho tem sido um líder admirado,não discutido, e, acima de tudo, seguido pelos seus jogadores. A frase de Jorge Costa –antigo capitão do FC Porto, em recente entrevista a um canal português de televisão, fazprova disso: “por Mourinho morreríamos em campo se fosse preciso.” Porquê, então, osjogadores sempre com o seu líder? Terá alguma coisa que ver com a cultura do grupo?“Acho que sim. A questão passa muito pelos momentos maus em termos deresultados – não em termos de comportamentos, porque aí nunca facilito. Possoganhar um jogo que me deixa satisfeito pelo resultado mas insatisfeito pelodesempenho, e pode haver jogos que se perdem e em que se sente que os jogadoresperderam porque o futebol é um jogo e porque se pode perder, mas em que não hárazões para penalizar, antes pelo contrário. A cultura do futebol, em termoscomportamentais e de grupo, é uma cultura resultadista. Ganhas eu dou-te, perdeseu tiro-te, ganhas eu beijo-te, perdes eu castigo-te. Comigo não é assim.”140Solicitámos então a José Mourinho que concretizasse a sua argumentação no caso concretode uma equipa de profissionais, como as que ele lidera, em que os seus elementos sãounanimemente considerados ‘estrelas’.“Até agora, as minhas estrelas foram estrelas que cresceram comigo. Crescemos aomesmo tempo. Quando treinei o Porto ninguém era estrela e todos acabámos porcrescer juntos e afirmarmo-nos a nível nacional. Quando fui para o Chelsea osjogadores que lá estavam não eram estrelas de dimensão mundial e tambémacabámos por crescer nessa direcção. Ganhámos juntos. Foi um crescimentogrande. É por isso que em Inglaterra, e voltando ao exemplo que falei há pouco,dizem que eu modifiquei o meu conceito de compra, porque comprei oSchevchenko e o Ballak. Eu não modifiquei o meu conceito de compra. Compreiestrelas para o meio de estrelas. Nunca teria comprado Schevchenko e Ballak parauma equipa sem estrelas, para uma equipa que nada ganhou, para uma equipa dejogadores sem títulos, para uma equipa que iria ser construída à volta daquelas duasfiguras. Neste momento eles são estrelas mas eu também tenho o Frank Lampardque foi bola de prata, o segundo melhor jogador do mundo na época passada, tenhoo Terry que foi o melhor jogador do futebol inglês, tenho titulares das diferentesselecções, enfim, bicampeões. Não mudei o meu conceito. Acho é que o meu

grupo, os meus jogadores, estão num patamar e num estatuto em que os outros vêmpara uma realidade que é a deles. A mim surpreendeu-me, pela positiva, ainteligência do Schevchenko nessa abordagem. “Eu venho para ser útil, venho paramelhorar, estou contente por vir jogar nesta realidade”, e não aquilo que eleeventualmente teria dito há dois anos atrás, que seria “eu venho tentar ajudar estaequipa a ser campeã”. Eu não mudei o meu conceito por isso posso afirmar que aolongo da minha carreira nunca fui confrontado com uma estrela num plano, numagaláxia diferente, e que tivesse que ter um tratamento diferente.”José Mourinho programa ao pormenor. Desde a questão técnica, à táctica, passando pelagestão do dia a dia, nada é deixado ao acaso. Neste aspecto assume uma importânciarelevante as relações no seio do próprio grupo em que o treinador tem de gerir homens dediversos países, de diversos continentes, de diversas culturas.1417.3 Aprendizagem/TreinoO trabalho das debilidades do sistema de jogo concreto é uma das ideias que emerge dapressão constante que José Mourinho coloca sobre si mesmo para sistematizar, isto é, paracruzar a prática com a teoria. Para Mourinho, os homens têm tendência a revelar o melhorque existe em si mesmos. Dessa forma, potenciar o melhor que há nos outros é sempre omais fácil, porque é o que é mais exposto. Ao ser exposto torna-se uma evidência paratodos. Mas é pelas debilidades, que qualquer um tenta esconder, que se pode surpreender,afirma Mourinho.“Na minha liderança dou muita importância às debilidades – minhas ou doadversário. Seja qual for a estratégia que se trabalhe em futebol, temos sempre denos confrontar com um lado negativo. E da mesma maneira que trabalho algo e quetento potenciar o que de bom o exercício tem e o que vamos conseguir retirardaquele trabalho, normalmente procuro também encontrar o lado negativo quesempre existe. Por exemplo, o sistema 4x4x2 com que fui campeão no Porto, foimuito mais trabalhado e ponderado nos aspectos que considerei serem asdebilidades desse sistema do que propriamente nas suas virtudes porque fuipercebendo e acreditando que o bom do sistema ia ser fluído, quase que intuitivo,por isso o lado negativo tinha mais necessidade de trabalho – é por aqui quepodemos perder, é por aqui que este sistema pode perder eficácia, portanto é nestecampo negativo do sistema que vamos trabalhar porque no campo psicológico épositivo ter um bom domínio da situação. Por isso, quando em jogo nos deparámoscom situações típicas que conduziam ao fracasso do sistema, aquilo estava tãopresente em nós e havia tanta confiança na resolução do problema que quando elesurgia acabava por ser de fácil resolução. É quase a mesma coisa que pessoas aviver numa cidade em guerra. Quando vem um míssil já se reage automaticamente,até as crianças, percebem os sinais e sabem como reagir. É um caso específico emque a minha liderança se traduz: isto tem um problema, portanto, vamos resolvê-lo.Logo, quando as situações desfavoráveis acontecem em jogo, os jogadores estãocómodos e tranquilos na resolução do problema e não são apanhados de surpresa.Portanto o trabalho não é só no sentido positivo, tal como o jogo também não o é.No jogo tu vais à procura das limitações do adversário mas também tens de estaratento e preparado para as tuas próprias limitações”.142No que ao adversário diz respeito, a questão da imprevisibilidade também ocupa um lugarimportante. Aqui a lógica de pensamento de Mourinho assenta na ideia de diminuir aomáximo o imprevisto, num contexto de aprendizagem e de interacção.“Eu acho que não há sistemas perfeitos, mas o nosso sistema é tanto mais perfeitoquanto mais estivermos preparados para as suas debilidades naturais, logo temos detrabalhar as imperfeições do nosso sistema. Ora eu trabalho muito a parte negativado meu sistema e rotinamos tanto esse trabalho que essa parte negativa acaba por

ser encarada com naturalidade e isso reflecte-se em confiança. Eu acho que aquiloque se torna mais difícil no jogo é sermos confrontados com situações quedesconhecemos porque o desconhecido é sempre desconfortável. Colocando isto deoutra forma, tudo se resume a comodidade e ela acontece quando não somosapanhados desprevenidos. Ora, a imprevisibilidade tem que ver com aquilo que tufazes e estás preparado para fazer e com aquilo que os outros fazem e que tupresumes que eles possam fazer. É isto o mais difícil e é necessário inteligência daparte de todos os meus jogadores. No fundo tentamos reduzir ao máximo aimprevisibilidade que o jogo tem”.Um tema importante, que se relaciona com a confiança, é o método que José Mourinhoutiliza para treinar, obtendo dos seus jogadores os comportamentos que pretende. Trata-seda já famosa no mundo do futebol “descoberta guiada.”“A minha descoberta guiada não tem tanto que ver com o perceber mas sim com osentir, ou seja, com o que eles sentem em determinado tipo de situação ou demovimentação. Eu pergunto-lhes o que eles sentem a nível de experimentação…vamos experimentar e sentir a nível posicional que estou apoiado… a nível mentalnão tenho medo de errar porque isto está coberto… É daqui que partimos,executamos em treino e recebo o feedback que me permite mudar de acordo comisso. Tenho essa elasticidade, que é ter a capacidade de promover alterações dentrodo próprio exercício por aquilo que me dizem. Se entender, pelo que me dizem, queo exercício não está adequado à situação, logo na altura altero-o. Às vezes, ao fimde três minutos, já introduzi uma nova regra no exercício de forma a adaptá-loaquilo que os jogadores estão a sentir. No fundo é também a operacionalizaçãodirectamente ligada à descoberta guiada.”1437.4. Líder/LiderançaCom base no que acima ficou dito sobre a perspectiva que informa o trabalho de JoséMourinho, não admira que o treinador português do Chelsea defina o seu estilo deliderança como um “sempre presente”, em especial nos pequenos detalhes do trabalho dodia a dia. José Mourinho considera a presença física do líder – de qualquer líder –fundamental para o funcionamento eficaz do grupo. Um olhar apenas, por vezes, faz voltarde novo o grupo ao rumo certo.“Eu penso que liderança tem de estar sempre presente. Ela sente-se nas maispequenas coisas, nos mais pequenos detalhes com um olhar ou com a presença dolíder por si só. Eu tenho jogadores que me dizem que na realização de um exercíciomesmo em que eu não tenha parte activa – porque é um exercício já com algumarotina – que a minha ausência faz toda a diferença. Eu próprio fiz a experiência noChelsea. Durante algum tempo, premeditadamente, deixei de exercer liderança epensei «vamos lá ver no que isto vai dar». Cheguei à conclusão que não haviahipótese de me afastar. Mesmo que o estádio de maturação de um grupo seja forte,fruto de um trabalho de dois, três, quatro anos, a liderança não pode deixar de serexercida todos os dias. Eu realizei esta experiência, que considerei fundamental,porque era a primeira vez que ia treinar uma equipa três anos seguidos e queriaperceber – e senti que naquele momento podia fazê-lo – se a minha actividadeenquanto líder se podia diluir precisamente pelo estado de maturação do grupo.Como líder daquele grupo, por um lado pensava que não, mas por outro ladopensava que talvez isso fosse possível. Estamos a falar de homens, de homens deprimeiro nível, de jogadores de grande capacidade… De repente percebeu-se quesem disciplina se perdiam qualidades enquanto grupo. Outra característica daminha liderança é o funcionamento pela parte negativa. Por vezes provoco, nostreinos, situações de insucesso que me possam dar a possibilidade de exercerliderança directa, na verdadeira acepção da palavra. Quando preparo um treinoestou a preparar uma actividade global e nunca o faço sem perceber quais são as

implicações aos diferentes níveis. Por isso digo que cada exercício tem umadominante, porque nunca treino um factor isolado – por exemplo em determinadoexercício a dominante é o aspecto táctico porque é aquele que está a ser maispotenciado. Assim, falo em dominante para caracterizar o principal objectivo do144exercício, aquele que tem maior preponderância. Por exemplo tenho exercícios dedominante psicológica, quando os exercícios que se apresentam sãopremeditadamente muito fáceis de realizar para que, sem que eles se apercebam,consigam fazer tudo bem. Isto acontece se eu no final da semana chegar àconclusão que os objectivos, por qualquer motivo, não foram cumpridos. Comoestamos a um ou dois dias antes do jogo, eu sei que já não tenho tempo de rectificarnada, logo, o trabalho, bem ou mal, está feito. Aí eu modifico os dois últimostreinos, em relação àquilo que estava a pensar fazer quando programei a semana detrabalho, e faço exercícios fáceis no sentido de atingir outros objectivos, neste caso,conseguir subir os níveis de confiança e motivação que ficaram algo abalados pelasemana menos conseguida. Portanto aqui não há qualquer objectivo táctico, que secomprova pela facilidade dos exercícios e sim um objectivo psicológico que setraduz no facto de eu ir à procura de subir os níveis de confiança da equipa. Portudo isto devo referir que uma unidade de treino – um treino na linguagem comum– é dinâmica. Muitas vezes temos de ter a capacidade de análise para que ela nãoseja exactamente aquilo que se planificou. A planificação deve ser flexível,portanto, face àquilo que planeei posso, por diversos motivos, concluir que oexercício que seria o próximo não o vai ser. Quando vou para um treino sei, aonível psicológico, quais são os itens que eu pretendo realçar, as tais dominantes. Seio que vou provocar ou para onde o exercício nos vai levar. Estou preparado paraperante um novo exercício de dominante táctica difícil não conseguir atingir osobjectivos que pretendo. Assim, já sei que naquele dia vou ter de estarparticularmente atento e virado para reacções positivas ou negativas e tentarmodificar o exercício para que ele seja mais eficaz”.Procurámos que José Mourinho fosse o mais concreto possível sobre a forma comodesempenha a liderança nos seus grupos. Questionámo-lo, nomeadamente, se era um líderdistante ou um líder que consegue ser família dos seus seguidores?“Sou tudo. Sou distante, sou perto, sou muito perto e sou longínquo. Consigo sertudo, dependendo do momento, da situação, da análise que faço e daquilo quepenso que é importante. Analiso caso a caso, momento a momento, personalidade apersonalidade, e a minha forma de actuação é perfeitamente individualizada e deacordo com o momento e a análise que dele faço. Não tenho um comportamento e145uma forma de actuação estereotipada. Se calhar há jogadores que nunca abracei navida, porque sinto que eles não sentem necessidade. São jogadores que nãoprecisam de um instinto paternalista. Ou porque apesar de precisarem ou poderemprecisar eu acho que o conflito ou a inexistência de intimidade pode contribuir, deacordo com as suas características de personalidade, para uma maior motivação erendimento. No fundo vai tudo desembocar no mesmo: é a procura de rendimento.O meu tipo de relação não tem como fim a relação em si, ser amigo ou não seramigo, o jogador gostar de mim ou não. O único objectivo é o rendimento dogrupo, em primeiro lugar, e, indirectamente, os rendimentos individuais, porque sãoeles que vão contribuir para o rendimento do grupo.”Sobre este assunto, lembrámo-nos então de uma situação concreta. No final do campeonatoinglês, em Maio de 2005, quando festejava a conquista do título, Mourinho abraçou-se auns jogadores e não a outros; perguntámos-lhe se sabia exactamente quem estava aabraçar?“Sabia, sabia. Sabia exactamente quem estava a abraçar. Três dias antes tinha

perdido a meia-final da Liga dos Campeões e sabia exactamente quem é que estavamais abalado. Quem estava pior não eram os jogadores que no ano anterior tinhamsido campeões europeus no Porto nem aqueles que estavam no Chelsea pelaprimeira vez e tinham perdido uma meia-final a primeira vez nas suas vidas. Quemestava pior eram os que, pelo segundo ano consecutivo, tinham perdido uma meiafinalda Liga dos Campeões. O Chelsea perdeu no ano em que eu fui campeãoeuropeu e depois perdeu no meu primeiro ano. Quando acaba o jogo do Liverpooleu sei perfeitamente que o Gallas, o Terry, o Lampard e outros que perderam duasvezes seguidas são os que, naquele momento, precisam de mim. Naquele dia nãocumprimentei, por isso o Paulo Ferreira ou o Ricardo Carvalho. Estavam tristescomo eu estava mas não tinham tido a decepção da vida deles, porque a vida tinhalhessorrido ao mais alto nível dez meses antes.Mourinho é, pois, um líder que tudo tenta prever. Não só as reacções dos seus adversários,como também as dos seus próprios jogadores. E também não apenas as reacções positivas,mas também as negativas, de uns e de outros. De resto, é precisamente sobre os aspectosnegativos que José Mourinho, como já foi descrito, prefere trabalhar.146Em seguida centrámos a nossa conversa na problemática do envolvimento e do controloemocional. Focámos então a relevância da auto-consciência na gestão do todo.“[A minha confiança] vem da consciência que tenho das minhas capacidades atodos os níveis. A nível de operacionalização do treino, que é um aspecto marcanteda nossa profissão, porque todos os dias se treina, percebi desde muito cedo que eramuito forte nesse aspecto, porque trabalhei com gente do mais alto nível e euoperacionalizava com uma facilidade grande. Tinha ideias claras, tinha ideiasdiscordantes e tinha ideias que não se podiam operacionalizar pelo estudo dosmanuais tradicionais. Se formos procurar exercícios de treino em futebol, numaperspectiva mais mecanicista ou cartesiana, chegamos a uma biblioteca qualquer esaímos carregados de material. Se formos à procura de uma perspectiva integradade treino, vamos à melhor livraria do mundo e não encontramos nada. Eu tinhaideias diferentes daquilo que estava estabelecido mas isso não me chegava. Temosde ter a capacidade para desenvolver e operacionalizar. Eu consegui ser discordantee ao mesmo tempo encontrar as soluções para a minha discordância. Por outro lado,é muito difícil ser o líder principal, mas, para mim, é mais fácil, neste momento, sero líder principal com o estatuto que consegui. O estatuto pode ajudar na liderança,até porque há muita gente que, por norma, é obediente à hierarquia. Sinto isso emInglaterra, é mais fácil liderar porque o jogador inglês é obediente à hierarquia. Ojogador latino não é especialmente obediente à hierarquia. É obediente àcompetência. Não sou obediente porque tu és treinador; sou obediente porque sabesmais disto que eu, porque és bom, porque treinas bem, porque tens razão. Fuiadjunto em diferentes realidades latinas – Barcelona e Porto – e senti que podialiderar, que me respeitavam, que tinha uma capacidade natural para treinar, paraexplicar, para liderar”.José Mourinho sempre foi alguém com uma confiança grande na vitória (aceitem estetestemunho de alguém que o conhece há 40 anos…). Perguntámos-lhe: “isso é totalmenteteu, acreditas sempre na vitória. Porquê? Onde vais buscar essa crença?“O optimismo, a crença, tem que ver com a noção da realidade. Relaciona-sedirectamente com a maneira como preparas a equipa e te preparas a ti próprio,como sentes o estado emocional dos jogadores, como sentes o teu domínio sobre147eles. Tem que ver com a competência de todos. Cada vez penso mais que eu sougestor de muitas áreas dentro de um clube, e que todas elas vão convergir para umacoisa que é o rendimento durante 90 minutos. Por isso é importante ter um bomdepartamento médico, um bom departamento de observação e todos os outros que

giram em torno de uma equipa de futebol. Uma coisa é teres um departamentomédico preparado para o tratamento e outra é teres um departamento preparadopara o tratamento e para a prevenção. Quanto melhor preparadas estiveram asestruturas mais fácil é conseguires vencer. Consegui sempre criar boas estruturas aomeu redor”.José Mourinho está atento às emoções, dos profissionais do seu grupo e até dos seusadversários. A forma como comunica, e entra nas “guerras” com outros treinadores,nomeadamente antes dos jogos, é pensada.“Estou atento. Por exemplo: houve um técnico que foi embora do Chelsea este ano– preparador físico da equipa B – porque eu abri o caminho para ele se ir embora.Num dia em que jogávamos em casa, o Geremy estava convocado. Convoquei 17,só se equipavam 16, e o Geremy ficou de fora. Estava no balneário, triste, masestava lá sentado no seu sítio. O tal treinador chegou, nessa altura, junto do Geremye disse (eu estava na casa de banho e ouvi): “Outra vez? Outra vez de fora?” OGeremy explicou que era assim, que só se equipavam 16 e que tinha ficado de fora.E o outro continuou a gozar. Foi despedido! Porquê? Porque tenho de combatertodos os comportamentos que quebrem, ou tentem abrir, uma brecha no conceito degrupo e de equipa. Sempre tentei que a equipa B se sentisse como parte integranteda equipa A, os métodos de trabalho são os mesmos, a maneira de jogar e de treinaré a mesma e assim tento incutir um conceito de abertura para todos eles se sentiremparte integrante.”Nesta entrevista a José Mourinho tentámos ilustrar, num testemunho na primeira pessoa, ostraços principais do seu trabalho, da sua prática e do seu estilo. As respostas de JoséMourinho servir-nos-ão, bem como o material apresentado no primeiro capítulo e, ainda, abibliografia já disponível sobre o treinador do Chelsea, como base para a análise da sualiderança num grupo de alto rendimento. Essa análise será feita no Capítulo 9. No entanto148não queremos deixar de destacar já, na sequência da apresentação desta entrevista, algumasdas ideias centrais que Mourinho protagoniza enquanto líder.José Mourinho rejeita o reducionismo positivista e adopta um modelo complexo deactuação, suportado na ideia de um todo integrado, no âmbito do qual as partes têm o seusentido. O indivíduo surge-nos aqui, também ele como um todo complexo, mas como partede um todo ainda mais complexo que é o grupo, e para o qual as partes têmobrigatoriamente que convergir. Também no campo técnico/táctico o todo – o jogo –aparece como a primeira determinante, a partir da qual tudo é feito. A própria liderança deMourinho parte do todo e acaba no todo, sendo uma liderança integrada que começa eacaba no próprio jogo e na sua preparação. Os actos de liderança de Mourinho sãoconcretizados muitas vezes com a bola, o elemento sem o qual o jogo não existiria. Acultura do seu grupo, integral e integradora, começa no líder mas fundamenta-se edesenvolve-se nos seus seguidores, eles também elementos com sub-culturas epersonalidades diversas. Finalmente, a gestão da emoções é feita do geral para o particular,sendo Mourinho simultaneamente o líder próximo e o líder distante, o líder que detecta eque age, que pune e premeia, mas, sobretudo, o líder sempre presente, sempre próximo esempre em função do todo.149

CAPÍTULO 8DISCUSSÃO EXPLORATÓRIA: ENTREVISTA A RUI FARIA150A entrevista que realizámos em Junho de 2006 a Rui Faria abordou os mesmos temas queos da entrevista a José Mourinho, apresentada no capítulo anterior: a complexidade comoperspectiva de fundo; o exercício concreto da liderança de José Mourinho; o grupo e a suacultura; e a aprendizagem e o treino. Porque trabalham juntos e partilham as mesmasideias, esta conversa com Rui Faria pretende ser um complemento da anterior, mas

segundo uma visão diferente, a visão do liderado. Pretendeu-se também recolher o pontode vista de Rui Faria por se tratar de alguém que trabalha com José Mourinho há cerca deseis anos sendo, como tal, um observador privilegiado dos métodos de trabalho de JoséMourinho e da sua evolução.8.1. Complexidade/TodoSeguindo, então, a mesma técnica, isto é, uma entrevista semi-estruturada, iniciámos adiscussão exploratória com Rui Faria em torno da problemática da complexidade,relacionando-a com o trabalho dos grupos liderados por José Mourinho.“Julgo que, observando aquilo que é a nossa realidade, o sucesso é fruto de muitosfactores: a globalidade das coisas, desde o processo de liderança à sua organização, auma análise concreta do que se pretende, à definição clara de objectivos, àorganização das estruturas para atingir esses objectivos. Toda esta estruturação e todoeste processo, que naturalmente surge da figura principal, que é o José Mourinho,permite criar uma organização e um processo que, pela forma como ele sedesenvolve, cria condições para atingir os objectivos. Basicamente, julgo que é umfenómeno de liderança e de organização e sequênciação de um processo. Muitasvezes perguntam-me se somos melhores que os outros ou, simplesmente, diferentes.Eu diria que somos a conjugação dos dois factores. Trabalhamos de uma formadiferente, porque cada processo tem uma identidade muito própria, à imagem dequem o cria. Independentemente das pessoas poderem ter concepções idênticas, narealidade quando se trata de chegar ao terreno e de operacionalizar, o processo énaturalmente diferente. É preciso combinar isso tudo. Somos diferentes e somosmelhores pela forma como as coisas são operacionalizadas, tornando-as diferentes donormal justamente porque partimos de pressupostos diferentes, de concepçõesdiferentes. Somos diferentes pelo processo natural de quem lidera, pelas suas151características e pela forma como se organiza todo o processo e se estabelece umainteracção natural na procura dos objectivos. Quer pela forma como se treina querpela forma como se interage com as pessoas envolvidas no processo, tudo se tornamuito próprio e muito à imagem de quem lidera.”Sobre esta interacção com o cunho pessoal do líder, Rui Faria comenta que José Mourinhoage, reage e interage de uma forma muito própria. Daí que, em seu entender, se possa falarcom segurança num padrão de trabalho fundamentado na perspectiva da complexidade.“Julgo que, pela abordagem que fazemos do processo, complexidade é a palavrachavede toda a nossa actuação à frente de uma equipa de futebol. Entendemos quesendo esse processo complexo, pela relação que existe, olhando para o produto finalque é a equipa e o que se pretende como equipa no seu todo, estabelecemos umalinguagem comum que seja inteligível para todos e que seja a identidade dessaequipa. A equipa em si, como estrutura, é importante mas todas as estruturasenvolventes também são importantes. E quando falo nas outras estruturas, falo nosdiferentes departamentos – o departamento médico, de futebol, de rouparias, deobservação… Tudo isto são estruturas que interagem e que não podem ser vistascomo algo isolado. Elas são uma necessidade que nós temos e que fazem parte detoda a organização. Só a perfeita interacção e o perfeito rendimento de cada umadestas estruturas permite que o produto final, que é o jogo em termos de equipa,possa funcionar da melhor forma e sem embaraços. O entendimento do fenómenoenquanto complexo é perceber que ele necessita de viver nessa perspectiva, com umainteracção globalizada entre todas as estruturas da organização. No entanto, acomplexidade não se restringe aqui aos processos e aos próprios departamentos. Aoutro nível, ela passa, também e obviamente, pelo homem enquanto um todocomplexo.”Rui Faria mantém a mesma linha de raciocínio, ao tomar cada entidade, seja ela o clube, aequipa de futebol, ou o próprio jogador individual, como um todo; como um todo

complexo. Sob esta perspectiva, chama a atenção para o facto de, ao contrário do quemuitas vezes é comentado e do que possa parecer à maioria de nós, o futebol não ser umjogo físico.152“O jogo joga-se fundamentalmente com a cabeça. A mente tem de estar semprepresente em relação a tudo, e o jogo tem de começar por ser um fenómeno pensado.O cérebro não está isolado dos pés; as coisas não acontecem dessa forma. Os pésfuncionam num processo que passa pela mente. Tudo passa pelo modelo quepretendemos. Modelo é, no fundo, o entendimento da complexidade que é o jogo e aidentidade do treinador em função desse jogo. É olhar para o jogo, modelá-lo naperspectiva do treinador, e trabalhá-lo depois em função disso. Sendo o jogoresultado de interacção entre indivíduos pensantes, o que se pretende é que essalinguagem seja comum. Isto só se consegue se todo o processo de treino e de jogo forconcebido numa perspectiva de organizar comportamentos que criem essa linguagemcomum. Tem de se pensar o jogo a cada minuto e a cada segundo.”8.2. Cultura/GrupoEm seguida abordámos o funcionamento da equipa de futebol como um grupo. Unidade ediversidade, o todo e as partes, como se conjugam estes aspectos numa equipa liderada porJosé Mourinho?“Os jogadores são todos diferentes, pela sua natureza e personalidades próprias. Mas,porque são membros do mesmo grupo, pretendemos que eles pensem a mesma coisasobre o jogo. Naturalmente que as suas características são diferentes. Posiçõesdiferentes exigem jogadores diferentes e características individuais diferentes. Daí ofacto de se querer os melhores sob o ponto de vista da execução. Mas sob o ponto devista do pensamento do processo, queremos unicidade, queremos que os jogadoresfuncionem dentro do mesmo guia, do mesmo plano de pensamento. Quanto maisconseguirmos que as coisas aconteçam com os jogadores todos a pensar exactamentea mesma coisa no mesmo segundo, melhor o processo organizado irá surgir. Serdesorganizado é a coisa mais fácil do mundo. Por isso, nos treinos, insistimos muitona habituação. O treino cria hábito e depois, no jogo, em vez do acto ser pensado, elesurge de forma subconsciente e natural. No entanto, durante o jogo, também existeespaço para o raciocínio devido à imprevisibilidade que obriga a que se tenha quedecidir num determinado momento. Mas tentamos pensar o máximo nos treinos deforma a tentar reduzir a imprevisibilidade, para que no jogo não se tenha que153encontrar novas respostas ou, pelo menos, que tenhamos que o fazer o mínimo devezes possível…”Quer na entrevista de José Mourinho, quer na de Rui Faria, fica claro que a eliminação daimprevisibilidade – embora ambos obviamente assumam que essa eliminação nunca podeser completamente atingida devido à complexidade do jogo e da acção humana – é um dosesforços fundamentais na preparação da equipa.“Exactamente: treinar para o jogo, por natureza diminui a imprevisibilidade. O treinodesta forma vai ao encontro das necessidades do jogo. É muito mais específico edireccionado, e nesse sentido encontram-se respostas em treino para um conjunto desituações que depois surgem no jogo. Mas também há o lado estratégico que tem quever com as características de cada equipa, com os fenómenos modelizados por outrosindivíduos, que nos obrigam a ter de os estudar para diminuir a imprevisibilidade.Temos de tentar diminuir ao máximo, quer pelo treino quer pelo estudo doadversário, a imprevisibilidade de um fenómeno que será sempre imprevisível. Masquanto mais munidos de respostas a essa imprevisibilidade estivermos, menor seráessa imprevisibilidade. Uma das formas de conseguirmos isso é trabalhando sobreum modelo mental geral em função do que se pretende. Quando se diz que a equipa émais importante que o indivíduo, no fundo pretende-se isso: que todos eles se

centrem na equipa e, por consequência, que todos sejam interdependentes uns dosoutros. Se um estiver mal isso vai atrapalhar o trabalho do outro e por consequência otrabalho do grupo.”Poderá questionar-se, nesta filosofia de pensamento, até que ponto o todo não estrangula aspartes. Porque tudo continua a ser desempenhado por homens, que entram em campo e sãoobrigados a decidir, como encontramos então, mantendo a coerência do todo, o espaço doindividual? Rui Faria defende e justifica o individual em função do todo.“O individual existe. Mesmo na filosofia de jogo ninguém corta a individualidade decada um. Quando eu falei numa mentalidade, numa linguagem comum como equipa,ela tem de surgir no jogo mas sem inibir o como fazer para que isso aconteça. O queé importante é que o jogador utilize as suas capacidades individuais e as suascaracterísticas em função do grupo. Porém, o indivíduo com as suas característicaspróprias tem de continuar a existir senão não fazia sentido a escolha, o querer um154indivíduo com determinadas características, se depois fosse para as aniquilar. Ascaracterísticas que cada um tem são para nós importantes, logo não queremos queelas desapareçam, ao invés, queremos é que elas se evidenciem, queremospotencializá-las no todo. Em termos comportamentais trata-se exactamente domesmo. Cada um tem a sua personalidade só que ela tem de viver segundo as regrasque são comuns a todos. Mas isso acontece em todo o sítio, é a própria vida. Quandoa individualidade se quer sobrepor ao conceito de equipa aí as coisas não estão aacontecer da forma que nós queremos, que consiste em trabalhar no sentido daestabilidade, e nesse sentido quanto maior for a coerência – entendida aqui como acapacidade de perceber que um indivíduo está a ter um comportamento negativo paraessa estabilidade – melhor se atingirão os resultados que se pretendem. Posso dar oexemplo do Ricardo Carvalho quando disse não perceber as decisões do treinador.Ora quando um jogador coloca em causa as decisões do líder, automaticamente está acolocar em causa a própria liderança perante o resto da equipa. Logo, outro pode virdizer: «se ele falou eu também posso falar» e depois o mais fácil é instalar-se adesorganização. Isso seria viver no clima de desorganização quando o que sepretende é o clima de estabilidade, ordem e organização. Portanto, não podemospermitir que sentimentos negativos surjam na equipa. Quando vamos na estrada equebramos as regras temos sanções… São sanções que servem de exemplo para otodo e para o fortalecimento do todo. A sanção pretende a reorganização do todo enão a punição em si mesma. Por isso não interessa se, quando temos de punir,punimos este ou aquele jogador. Trata-se de um elemento de uma estrutura que temde funcionar em estabilidade, porque a desorganização acaba por ser aindividualidade de cada um. Daí que esses comportamentos individuais tenham deser dirigidos para o colectivo. É desta forma que entendemos a grande importânciadas sanções para o grupo perceber que as coisas não andam nem podem andar àderiva.”Tanto José Mourinho como Rui Faria defendem existir uma cultura específica dos gruposliderados pelo treinador português. Aliás, para Rui Faria, trata-se claramente de umacultura desenvolvida à imagem do líder do grupo.“Existe uma ‘cultura José Mourinho’ nos grupos que ele lidera. Trata-se de umacultura à sua imagem. Perante a sua personalidade, ideias e forma de estar no futebol,155o modelo de jogo transmite exactamente isso. É ele que define o todo que somos, quedefine os objectivos e tudo o resto, e portanto o processo de liderança é a identidadede quem o concebe. No entanto, a cultura também tem que ver com a cultura dequem a recebe. Dou um exemplo. Quando jogámos com o Barcelona o Mourinho foipara a guerra, entrou em polémicas e deu o corpo às balas. Depois vimos osjogadores do Chelsea a dar abraços aos do Barcelona, a tirar fotografias com adeptos,

etc. Ora isto no FC Porto não aconteceria. Eu estou a ver um jogador ou adepto doBarcelona ir dar um abraço ao Jorge Costa22 e este a responder logo com um pontapéou uma cabeçada. No Porto era todos por um e um por todos, logo, se o treinadorestava em “guerra” toda a gente estava em “guerra”. No Chelsea isso passou ao ladodos jogadores.”8.3. Aprendizagem/TreinoNo que respeita ao treino e à aprendizagem, mais uma vez, e à semelhança de JoséMourinho, Rui Faria colocou o acento tónico na imprevisibilidade como arma para atacar oadversário. Também aqui noções como interacção, mensagem, todo e globalidadeencontraram eco. A partir destas noções, Rui Faria começou a sua análise sobre qualidadede trabalho versus quantidade de trabalho.“Sou um bocado avesso à quantidade. Prefiro a qualidade do trabalho. Setrabalharmos com qualidade precisamos de trabalhar menos. A qualidade é aselecção do que treinar concretamente e também nesta perspectiva nós somosdiferentes. A selecção exacta do que é necessário em detrimento do que é extra éfundamental já que o tempo para treinar é muito pouco devido à sobrecarga de jogosnuma equipa como o Chelsea, que disputa quatro troféus por temporada. Tem de seseleccionar o que é mesmo importante treinar em cada um dos dias, e depoisencontrar, em função da nossa necessidade, o melhor treino. Muitas vezes, quandoestamos em processos de recuperação e temos que treinar também sob o ponto devista estratégico para diminuir a imprevisibilidade do jogo, temos de encontrarformas de treinar atendendo a que estamos a trabalhar, essencialmente, esse aspectoporque ele pode definir o sucesso dos objectivos. A este nível, a densidade22 Antigo capitão do FC Porto, quando Mourinho era o treinador.156competitiva só nos dá tempo para recuperar fisicamente e não melhorar fisicamente.Não é preciso treinar muito para treinar bem.”Não é, no entanto, por esta premissa que o tempo de duração dos treinos é deixado aoacaso. No Chelsea, sob o comando de José Mourinho os treinos têm, tendencialmente, amesma duração dos jogos. Não se pense, contudo, que esta opção encontra o seufundamento principal na componente física dos atletas.“Tudo tem que ver com um estímulo que vai ao encontro do tempo de exercício e deconcentração. Isto leva-nos para um aspecto que é um fenómeno mais mental queoutra coisa. A concentração é um fenómeno treinável. Pretendemos ter o rendimentoe concentração máximos numa hora e meia de treino – que é exactamente o tempo dejogo – procurando desta forma que o jogador consiga estar concentrado os 90minutos. Um segundo de desconcentração no jogo é o suficiente para “morrer”.Queremos que durante essa hora e meia não haja muitas pausas, para adaptar o tempode esforço ao tempo do treino. Um indivíduo que não está habituado a ler, lê asprimeiras quatro ou cinco páginas e à sexta ou sétima já tem a cabeça noutro sítio.Com a regularidade de leitura adquire-se a capacidade para ler vinte, trinta ouquarenta páginas seguidas. Isto é concentração e por isso é um fenómeno treinável.Sob o ponto de vista mental direccionado para o jogo, como aquilo que se faz éadquirir formação mental e comportamental, os jogadores tem de pensar e serinteligentes para observar. Daí o José Mourinho dizer que só quer jogadoresinteligentes nas suas equipas, portanto, eles têm de perceber e para isso têm depensar. Como pensar exige concentração e porque concentração máxima é o quepretendemos nessa hora e meia de jogo, o melhor é começar logo pelo treino.”Portanto, pode considerar-se que para Rui Faria o fundamento do treino é a preparaçãointeligente dos jogadores, no sentido de ele ter de ser pensado por todos. Esse raciocínio églobal, envolvente e complexo no todo que é o treino, enquanto ponto de partida para otodo que é o jogo.“Julgo que nada é separado. Eu apresento a questão como uma dimensão de

complexidade porque na realidade quando vamos para o terreno tem de lá estar tudo.Quando se transmite informação sobre um adversário transmitem-se característicasfundamentais sobre esse adversário, que são importantes para cada jogador perceber157como é a dinâmica de jogo da equipa e portanto exige-se-lhes que pensem. Resultadaqui que, automaticamente, o fenómeno tem de ser pensado e exige que osjogadores tenham de ter a percepção e capacidade para perceber o que se lhes está atransmitir. Daí a necessidade de se afirmar que eles têm de ser inteligentes para maisfacilmente conseguirem resolver os problemas que tenham pela frente. É a questãodo homem enquanto todo complexo, ou seja, é por isso que há jogadores que têmgrande capacidade técnica e no fundo sob o ponto de vista mental não a sabemutilizar. São aqueles jogadores que fazem uma ou duas fintas e depois no últimotoque – que é o mais importante porque tem que produzir sempre um qualquerresultado – é completamente disparatado, ou seja, o produto final, resultado daquelaacção, foi uma catástrofe que nada tem a ver com a eficácia que se exige no futebol.Assim, o momento da decisão final, do último toque, é um momento de inteligência,e que passa também pelo treino. Numa fracção de segundo tem de se decidir e decidirbem e isso também é treinado. Portanto, quando se treina temos de tentar chegar aosaspectos fundamentais na perspectiva do treino. Quando se treina sob o ponto devista do jogo está a treinar-se processos de decisão. Quantos e quantos não são osjogadores que mesmo sendo mais lentos que outros chegam primeiro à bola? Istoacontece porque no momento da analise da situação são mentalmente mais rápidosque os outros e nestes casos uma fracção de segundo é o suficiente para seanteciparem e chegarem primeiro. Assim, não importa ser-se mais rápido sob o pontode visto físico. O que verdadeiramente conta é ser-se mais rápido sob o ponto devista mental. Daí se explica que homens com 40 anos possam ainda jogar futebol.Eles têm limitações físicas que os leva a ser mais lentos mas ultrapassam essafragilidade sendo mais rápidos sob o ponto de vista mental, ao anteciparem assituações, ao anteciparem o que vai acontecer no jogo…”Portanto, a avaliar pelas palavras de Rui Faria, o treino em toda a sua complexidade, podeser entendido como uma representação do real, que é o jogo. Logo, o treino será aantecipação do jogo a todos os níveis: concentração, esforço, limite.“O jogador só pode jogar no limite se treinar no limite… e o jogo é o espelho dotreino. Quanto maior for a determinação no treino maior é a determinação no jogo.Temos de jogar e treinar no limite. Mas o treinar no limite exige a mentalidade detreino no limite, portanto a mentalidade está antes da acção. Por isso temos de nos158preocupar com as diferentes características mentais de cada jogador: se é maisnervoso, mais intimidável, se encara o jogo desta ou daquela maneira, etc. Porexemplo, temos de observar, em dia de jogo, antes ou durante o almoço, oscomportamentos que são e não são normais. É evidente que temos de conhecerprofundamente o carácter de todos os jogadores e isso vai acontecendo com o tempo,depois trata-se de descodificar as suas reacções. Se descortinamos algo anormal anível emocional com algum jogador, falamos com ele, e fazemos passar a mensagemque entendemos ser a melhor na altura, esperando que tudo corra bem e que elesupere o que está mal. Em treino estas questões não se colocam porque normalmenteo jogador cumpre aquilo que se pretende. Dois dias antes ninguém tem problemas.No dia anterior, ou no dia do jogo, no fundo na hora do exame é que as coisas podemter reflexos negativos. Aí é que percebemos o sentimento de cada um e vemos sealgo está mal. No momento é que decidimos qual a melhor resposta a dar a essasituação”.8.4. Líder/LiderançaAbordadas as temáticas da aprendizagem e da cultura de um grupo liderado por José

Mourinho, a conversa com Rui Faria mudou, necessariamente, de rumo: liderança. JoséMourinho motiva como poucos e induz nos seus grupos a convicção de que é semprepossível ganhar. Estamos agora no campo concreto da liderança.“Julgo que há um aspecto decisivo que é a imagem do treinador, o seu carisma, a suapersonalidade e fundamentalmente a sua empatia. Em todas as estruturas tem dehaver um líder e uma equipa de futebol não foge à regra. No entanto temos de olharpara esta questão em termos globais. A winning mentality não se cria apenas nosjogadores. Ela tem de emergir em toda a estrutura e quanto maior for a empatia maiorserá a qualidade do produto final. O estabelecimento de empatias entre as diversasestruturas vai criar um melhor produto final mas fundamentalmente, a primeiraimagem é aquela que é transmitida pelo líder, por quem tem poder de decisão. Nocaso concreto de José Mourinho, quando falo em globalidade refiro-me a todos osníveis. A confiança que ele apresenta em todo o processo até à concretização dotrabalho faz com que os jogadores comecem a absorver, logo de inicio essa159mentalidade vencedora. É o primeiro passo, que vai permitir que todos os outrosaconteçam de uma forma natural.”Nesta winning mentality onde entram, então, se é que entram, os afectos. Será o líder‘amado’ pelos seus seguidores? Poderá o líder ser odiado e, no entanto, continuar a ser olíder?“Embora o facto de ser amado pelos seguidores ajude, acho que é mais importanteque gostem da forma como se trabalha. Mas acima de tudo os jogadores gostam decoerência de quem lidera. É determinante para quem lidera ter sempre o mesmo tipode resposta para situações idênticas com as diferentes pessoas. Comportamentosdiferentes do líder para situações similares só levantam sentimentos negativos entreliderados. Julgo, pois, que a coerência se sobrepõe à necessidade dos jogadoresgostarem do líder. Até porque não acredito que toda a gente goste, por exemplo, deJosé Mourinho pela pessoa que é, pela sua frontalidade, pela forma como diz ascoisas, às vezes agressiva em determinadas situações. Para além disso ele não é otipo de líder que anda sempre aos beijos aos jogadores… Pelo contrário, ele muitasvezes assume até um carácter provocatório, o que lhe permite trabalhar muito com olado emocional de cada um dos indivíduos. Quem vive profissionalmente com eletem de saber viver com grande pressão e ao mesmo tempo tem de dar respostapositiva. A pressão que José Mourinho exerce sobre o seu grupo de trabalho é feitade um modo muito particular em função das diferentes situações e é sempre com oobjectivo de um rendimento superior e eficaz. A exigência é sempre grande paratodos os que trabalham com ele. Na execução do processo o rendimento de cada umtem de ser sempre ao mais alto nível. Todos temos de estar identificados com o queele quer e desempenhar as tarefas em função disso sempre ao mais alto nível. Porvezes é natural que haja reacções negativas a este nível superior e daí a necessidadede colocar pressão para que as pessoas acordem e voltem outra vez a render ao maisalto nível.”Rui Faria acentua a importância de ser consistente na liderança. Por várias vezes, Fariarefere a coerência da liderança de José Mourinho. A coerência é considerada fundamentalnão apenas na liderança de um grupo, mas na liderança de um projecto.160“Liderar é ser coerente; é ter a capacidade e a inteligência para definir um projecto econseguir empatia entre todos os liderados e responsáveis pelo processo. Liderar écoerência no sentido de ter um projecto e ideias que possam ser adaptáveis e postasem prática. A coerência passa por aí: objectivos atingíveis. Só assim se poderá fazeros outros acreditar que é possível alcançar algo, logo, para mim, sem coerência nãoexiste liderança efectiva. Como é que se pode levar os outros a acreditar em algo emque eu próprio não acredito?”

Já com a conversa a caminhar para o fim quisemos obter de Rui Faria a sua abordagem aalgumas questões que têm marcado a imagem de Mourinho e que podem ser relevantespara caracterizar a sua liderança. Falamos de uma certa linguagem “guerreira” queMourinho imprime no seu discurso e que tem reflexos no seu grupo; estamos também afalar da identidade do grupo de José Mourinho. Uma identidade que se percebe tambématravés da identificação da identidade do seu adversário. Ora esta constatação leva-nos àpergunta óbvia: quem é afinal o adversário? Somente adversário ou mais que isso,inimigo?“É inimigo porque é o adversário, mas também o inimigo no sentido de ser um alvo aabater porque queremos ganhar. Falo por mim: não cumprimento ninguém da outraequipa antes do jogo. Eu não estou ali para ser simpático, estou ali para ser antipáticoe se assim interpretarmos o termo inimigo então, na realidade, ele é meu inimigoporque eu quero ganhar e ele quer opor-se à minha necessidade de ganhar. Portanto,o objectivo é ganhar sempre, se puder ser por 4 ou 5 que seja, mas o objectivoprimeiro é ganhar, é por isso que, provavelmente, falamos em inimigo. Na minhaperspectiva eles são hostis. Por isso a única coisa que nós, treinadores, queremos queos nossos jogadores vejam são os três pontos resultantes da vitória, não interessandoquem é o adversário ou em que terreno estão. Quando os jogadores entram em camposó têm o pensamento na vitória e na forma como a vão conquistar. É por isso quedizemos que não nos interessa saber nem onde nem contra quem vamos jogar. O quetemos é de estar sempre preparados para o jogo com uma mentalidade agressiva eforte.”O material apresentado neste capítulo, a entrevista a Rui Faria, e a entrevista a JoséMourinho apresentada no capítulo anterior, constituem-se como duas peças importantes do161material empírico relevante para esta investigação. Assim, a informação apresentada nestesdois capítulos, bem como o material do capítulo 1 e, embora com menor relevância, asvárias obras já publicadas sobre o trabalho de José Mourinho, nomeadamente a suabiografia escrita pelo autor desta dissertação, constituem o objecto da análise queapresentamos no capítulo seguinte, o qual, sobre a perspectiva da complexidade,introduzida no capítulo 2, utilizará o corpus teórico por nós apresentado nos capítulos 3 a6.162

CAPÍTULO 9ANÁLISE163Neste capítulo iremos analisar a forma de trabalhar e a liderança de José Mourinho à luz daperspectiva da complexidade, apresentada no capítulo 2 desta dissertação, e no âmbito daaplicação das teorias e da investigação revistas nos capítulos 3, 4, 5 e 6. Assim, tentaremosexplicar Mourinho pela teoria – no sentido de que as suas acções encontrem eco eexplicação em formulações teóricas já estudadas – mas também pretendemos explicar ateoria por Mourinho – no sentido em que este treinador de futebol operacionaliza, pelaprimeira vez numa equipa de futebol, muitos dos conceitos e noções apresentados,nomeadamente os da perspectiva da complexidade.Vamos num primeiro momento olhar o trabalho de José Mourinho à luz da perspectivaparadigmática acima referida e tentar perceber como ele a operacionalizou no seu trabalho,nomeadamente na sua liderança, numa equipa de um clube de futebol; a seguir focaremos asua acção enquanto líder à luz da teoria da inteligência emocional, ou seja, analisaremos deque modo a acção de Mourinho pode ser descrita e analisada no âmbito desta teoria;seguidamente iremos olhar a investigação sobre grupos para tentar explicar não só o modode funcionamento de Mourinho enquanto líder de um grupo, como também a evoluçãodeste mesmo grupo, nomeadamente no que respeita à sua formação, desenvolvimento emanutenção; de seguida utilizaremos as várias teorias de liderança, anteriormente

apresentadas, para analisar e tentar enquadrar de um modo pragmático a acção efectiva deliderança de José Mourinho; finalmente concluirmos este capítulo com a apresentação deuma análise global à liderança da acção de José Mourinho, tentando ligar e integrar asanálises anteriormente apresentadas, e utilizando para isso metaforicamente os resultadosdo projecto do genoma humano, referidos por nós nesta dissertação no capítulo 2 – estasubsecção final dividir-se-á numa primeira parte que procurará destacar e recuperar asprincipais ideias fortes que saíram da nossa análise e numa segunda que apresentará umaanálise integrada da investigação levada a cabo por nós sobre a liderança de JoséMourinho.9.1. A Operacionalização da Complexidade por MourinhoTal como é explícito desde o capítulo 2 é na teoria da complexidade que Mourinhoencontra o mais forte suporte teórico do seu trabalho. Daí que, por definição, não possamosfalar na liderança de José Mourinho num contexto isolado. Porque o seu trabalho se traduz164numa acção complexa, integrada e relacional, ao falarmos de liderança fundamentada nacomplexidade estamos a falar – e teremos de falar – no próprio universo do seu trabalho,sendo que, por isso, seremos obrigados a fazer aqui uma teia de ligações, para explicar otrabalho e método de José Mourinho.Assim, como ponto de partida da análise do trabalho de José Mourinho à luz da perspectivada complexidade partimos de uma das noções de maior poder, a noção do “todo que estána parte que está no todo”, amplamente utilizada por Morin. Esta noção deve ser entendidasob perspectivas diversas: o todo é o resultado da interacção entre as partes; enquantoglobalidade, o todo é o que governa, o que modela as partes; é o todo, também, que dealguma forma está inscrito, gravado, em cada parte; e, finalmente, o todo é diferente dasoma das partes. Nos parágrafos seguintes utilizaremos estas variações da ideia centralacima referida para analisar a liderança e os processos de interacção e de trabalho de JoséMourinho.Relembrando o que atrás foi dito sobre a noção de paradigma, e o enquadramento enquantotal da perspectiva da complexidade, com a chegada de um novo paradigma “[w]hat wereducks in the scientist’s world before the revolution are rabbits afterwards” (Khun1996:111). O que antes era um atleta de alta competição, um jogador de futebol, entendidoem função das suas dimensões física, psicológica, técnica, táctica, disciplinar, etc., comMourinho mudou. Mudou o entendimento de fundo do jogador, da equipa, do jogo, dotreino, do clube, etc. Como abaixo analisamos, e como foi referido no Capitulo 7, nunscasos directa noutros indirectamente, José Mourinho encara o seu trabalho pelaglobalidade. Seja qual for o fenómeno que foque, Mourinho não o isola. No jogador nãosepara o físico do mental, do psicológico, do emocional, do técnico, do táctico. Aocontrário do que desde Max Weber (1930) é pacificamente aceite na sociologia e em áreasafins, no relacionamento que Mourinho tem com os seus jogadores ele não separa a vidaprofissional da vida pessoal de cada um deles – interessa-lhe o homem, o todo. Exemplodisto mesmo é o teor da carta que endereçou aos jogadores mal chegou ao Chelsea, noVerão de 2004: “A partir de agora, cada exercício, cada jogo, cada minuto da vossa vidasocial tem de centrar-se no objectivo de ser campeão”. Fica clara a ideia de globalidade deMourinho em torno de um objectivo. Sempre, quer na vida profissional quer na vida social– como se em Mourinho se pudesse fazer esta divisão, que não pode – o objectivo de sercampeão terá de estar presente.165A própria equipa de futebol não é entendida isoladamente, mas como uma entidade, umgrupo com uma identidade e um projecto próprios, inserido numa teia de relações e numahierarquia de estruturas. Rui Faria foi directo, no capítulo 8, ao chamar a atenção para estefacto. Não são apenas os jogadores que ganham ou perdem no final de um jogo. Eles nemlá estariam se não existissem outras estruturas a trabalhar, ao mesmo tempo e em profundaligação, para o mesmo objectivo. Essas estruturas – departamento médico, departamento de

futebol, departamento de observação, direcção, rouparias, etc. – são interactivas com aequipa e só também com elas a equipa pode funcionar no sentido literal do termo. Daí queRui Faria afirme que “[s]ó a perfeita interacção e o perfeito rendimento de cada uma destasestruturas permite que o produto final, que é o jogo em termos de equipa, possa funcionarda melhor forma e sem embaraços”.Mourinho também não divide a equipa em efectivos e suplentes, não distingue o que se fazno jogo do que se faz no treino, não separa claramente a comunicação no seio na equipa dacomunicação com os media. Lembremos o caso da conferência de imprensa de Mourinhoem Barcelona, descrito no primeiro capítulo desta dissertação. Na altura, ao dizerantecipadamente aos jornalistas não só a constituição da sua equipa inicial como também ado seu adversário, Mourinho não só enviou a mensagem para os seus jogadores de totalconhecimento do Barcelona, por isso, motivando-os e reforçando-lhes a confiança, comotambém enviou para o seu adversário a mensagem “vocês para mim não têm segredos.”Desde logo é o próprio Mourinho que assume o corte epistemológico em que assenta aglobalidade da sua acção: “Acredito hoje que vai haver – e já está a haver – um corte comaquele passado [a perspectiva reducionista tradicional aplicada ao futebol], porque ohomem é um ser complexo e no caso da minha profissão, no futebol, temos de perceberque onze homens à procura de um objectivo é completamente diferente de um homem àprocura de um objectivo.” À complexidade do homem individualmente considerado,Mourinho acrescenta a complexidade da interacção grupal. Ao olhar para onze homens quebuscam um objectivo, Mourinho vê-os como partes constitutivas da equipa e como umaequipa que se manifesta nas suas várias partes. Também a sua metodologia de treino nãocontempla divisões nos diversos sectores da equipa: não trabalha separadamente a defesa,o meio-campo ou o ataque; sobretudo não trabalha aspectos descontextualizados de um oude outro movimento ou fase de jogo.166O que existe no seu trabalho é a “dominante”, ou seja, o trabalho foca um aspecto semesquecer que é o todo que está em acção e que, por isso, devidamente enquadrados muitosoutros factores estão também a ser trabalhados. Foi justamente Mourinho, na entrevista queapresentámos no capítulo 7, que nos alertou para este facto: “Eu próprio quando preparoum treino estou a preparar uma actividade global e nunca o faço sem perceber quais são asimplicações aos diferentes níveis. Por isso digo que cada exercício tem uma dominante.”Assim, esta noção de dominante introduzida por Mourinho é um dos conceitos através dosquais ele operacionaliza a perspectiva da complexidade no seu trabalho concreto do dia-adia.É desta forma que Mourinho concretiza, por exemplo, num treino de dominante tácticaoutros objectivos secundários, como por exemplo a motivação. “Eu sabia que o Camacho –treinador benfiquista –, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora,quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra asinvestidas atacantes do Sokota” (Mourinho in Lourenço 2004). Com este exemplopretendemos ilustrar a abrangência do trabalho de Mourinho – Mourinho visa treinar otodo, simultânea e integradamente. No exemplo acima, em campo, a treinar tacticamente asua equipa, realizou também um acto claro de liderança de uma forma motivacional: elesabia que estava a passar uma mensagem de confiança na vitória ao treinar de formacondicionada, entendida esta, aqui, de uma forma positiva, já que, a sua condicionante erasaber que ia estar a ganhar, daí preparar os seus jogadores para defrontar o Sokota, o talque só entrava quando o Benfica estava a perder.Mourinho vê o homem, neste caso os profissionais da sua equipa como um todo complexo.Não separa a sua vida profissional da sua vida social ou, se quisermos, não vê em cada umdeles dois homens, um profissional e o outro social, conforme podemos concluir pelo quefoi descrito no capítulo 1 sobre a necessidade de disciplina na vida pessoal: “[A]cho quequem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir à procura dos aspectosdisciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes pelo rigor táctico, pela

procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu consigo uma disciplinaglobal” (Oliveira et al 2006:178). Um outro exemplo que aqui se pode dar tem que vercom a recusa de Mourinho em fazer marcações individuais aos jogadores adversários,mesmo que estes sejam os melhores do mundo. Para o técnico, se se pretende promover asolidariedade entre os jogadores, dentro e fora do campo, não pode, depois, ter aincoerência de mandar um jogador seu marcar individualmente um adversário. Se assim167acontecesse esse jogador só se preocuparia com o jogador adversário e não – e também –com os seus colegas de equipa, sendo que o inverso também é verdade porque a equipa sedeixaria de preocupar com esse seu colega bem como com o jogador adversário… Seriaintroduzir uma componente desajustada de individualismo na equipa, prejudicando acoerência e a ligação de grupo, justamente, aquilo que Mourinho combate e não aceita(Oliveira et al 2006). Leia-se, pois, as palavras de Morin que explicam bem a posição dopróprio José Mourinho: “O enfraquecimento de uma percepção global conduz aoenfraquecimento do sentido de responsabilidade, cada um tende apenas a ser responsávelpela sua tarefa especializada, assim como conduz ao enfraquecimento de solidariedade,cada um deixa de entender o seu laço orgânico (…)” (Morin 1999:19), com o grupo ondeestá inserido.Ainda neste contexto, a título de exemplo, vejamos a questão da concentração enquantodominante nos treinos de José Mourinho. Para Mourinho é na preparação dos jogos demenor importância que a questão se coloca com especial pertinência. Por saberem que vãoter um adversário mais fácil, os jogadores têm tendência a uma maior desconcentração napreparação do jogo. É no treino global e de uma forma integrada – e não numa qualqueriniciativa isolada – que Mourinho resolve o problema. Ao colocar-lhes exercícios deelevada dificuldade – e eventualmente de impossível resolução – durante os treinos,Mourinho obriga-os a errar, logo obriga-os a uma maior concentração para tentar evitar oserros sucessivos que o técnico – consciente e premeditadamente – lhes provoca (Oliveira etal 2006).Em Mourinho, como foi dito, o jogador tem uma dimensão global. É nesta globalidade,que é o resultado da aplicação da perspectiva da complexidade ao seu trabalho, queMourinho enquadra a acção dos seus profissionais. O seu jogador deve, pois, reflectirsocialmente aquilo que é profissionalmente, sendo o contrário também correcto. Ele só serádisciplinado em campo, inserido no seu grupo, se o for fora dele e vice-versa. É nestecontexto de globalidade que descortinamos o individual complexo que é o ser humano.Para Mourinho o jogador é um todo, parte de um outro todo que é a equipa, comcaracterísticas físicas, técnicas e psicológicas que terão de ser desenvolvidas enquantoglobalidade. É dessa forma que o treinador não separa o físico do psicológico, logo, nãotrabalha nem um nem outro aspecto descontextualizadamente. De resto nada no seutrabalho é descontextualizado. Relembremos a sua entrevista no capítulo 7, quando fala no168treino que Eusébio ministrava ao guarda-redes Silvino. Eusébio colocava a bola à entradada área e rematava para Silvino tentar defender, pressupondo que era desta forma quetreinava o jogador. O entendimento de Mourinho a este respeito é bem diferente. Osremates de Eusébio eram descontextualizados daquilo que é o jogo “onde um jogador nãoaparece cem vezes isolado frente ao guarda-redes e em condições óptimas de remate”. Essasituação de treino está descontextualizada da realidade e da complexidade do jogo. ParaMourinho é uma situação fictícia porque em jogo os jogadores têm de contar sempre com aoposição dos adversários. Por isso Mourinho procura criar condições de treino integrado,onde trabalhe a complexidade do jogo através de situações o mais próximo possíveis doreal, isto é, o mais próximo possível “daquilo que se espera que venha a ser o jogo”(Mourinho in Capítulo 7). Ainda um outro exemplo de não separação do físico dopsicológico, mas com um outro enfoque, é-nos dado por Mourinho numa resposta a umjornalista do jornal O Jogo, quando este lhe perguntou se a sua equipa – o FC Porto –

estava bem fisicamente. Mourinho respondeu: “Não consigo falar disso. Não sei ondeacaba o físico e começa o psicológico ou o táctico. Para mim, o futebol é a globalidade, talcomo o homem” (Mourinho in Oliveira et al 2006: 40).Os tradicionais factores treináveis surgem na totalidade que é o treino e enquadrados numtrabalho que tem que ver directamente com o jogo que se pretende jogar. É desta formaque se entende que Mourinho refira, como exemplo, que o velocista Francis Obikwuelunum campo de futebol seja um jogador lento. A sua massa muscular, rapidez e explosãonunca poderão colmatar a velocidade de raciocínio, posicionamento em campo eantecipação de jogadas, próprias de um jogador de futebol, simplesmente, porque o seutodo não está trabalhado nesse sentido, não está contextualizado nesse tipo de esforçoglobal, mental, físico, psicológico, emocional, etc., que o futebol exige e é.Alargando a análise que temos vindo a fazer, saindo do todo que o jogador de futebol épara o todo que é o grupo, a lógica de Mourinho permanece inalterável. Aqui também aparte – o jogador – só pode ser vista e contextualizada no/pelo grupo. O grupo é o maisimportante e a parte interessa enquanto ao serviço do todo. O global, aqui, assume o termocolectivo, pelo que a parte pode e deve ser sacrificada pelo todo já que não é concebível aevolução da parte sem ser ao mesmo nível e ao mesmo ritmo da evolução do todo. Noentanto, o todo deve ser também o contexto que proporcione a cada jogador individual, acada parte, a manifestação da sua singularidade plena. Desta forma o individual é também169muito importante. Não se trata de não ver a floresta (a equipa) por só se ver as árvores (osjogadores), mas de ver as-árvores-e-a-floresta. Pretende-se assim atingir uma coerência euma consistência organizacional de grupo elevadas. Compreende-se assim que “estrelas”como Ballack e Schevchenko só agora tenham chegado ao Chelsea: o grupo já era, elemesmo, constituído por estrelas.É com uma forte ideia de colectivo, de todo que governa as partes, que o grupo trabalhacom vista a um outro todo que é o jogo. Neste campo, o treino é encarado, não como umapreparação do jogo mas como uma parte desse todo que é o processo de jogo e de treino ede jogo. Aqui Mourinho introduz-nos a ideia de treino como projecção/representação doreal que é o jogo. Assim, por exemplo, a duração dos treinos é igual à dos jogos, comoreferiu Rui Faria: “Pretendemos ter o rendimento e concentração máximos numa hora emeia de treino – que é exactamente o tempo de jogo – procurando desta forma que ojogador consiga estar concentrado os 90 minutos”. Repare-se, mais uma vez, nacomplexidade de processos que esta noção de Rui Faria envolve: a ideia de um treino ter aduração de um jogo não passa essencialmente por uma adaptação de esforço físico mas simde esforço mental, ou melhor, de esforço humano global. A dominante que se pretendeprivilegiar é a da concentração, já que a resistência física acabará por acontecernaturalmente enquadrada num fenómeno mental, psicológico, emocional mais vasto. Nessefenómeno mais vasto, que faz do treino a projecção/antecipação do jogo, incluímos ainda otratamento da imprevisibilidade, que Mourinho pretende reduzir tanto quanto possível. Sóo treino enquanto perspectiva de jogo poderá proporcionar o surgir de situaçõesimprevisíveis, ou impossíveis ou difíceis de planear, e que, uma vez treinadas, possam sertransferidas para o real, trabalhando dessa forma essa mesma imprevisibilidade. Sendo otreino, afinal, como o jogo, o imprevisto em jogo é o imprevisto em treino, logo, quando sechega ao jogo, através desta ‘representação’ do real, o que era imprevisível no treinodeixou de o ser em jogo. Atente-se que não está aqui em causa a pretensão, de resto nãosecundada pela perspectiva da complexidade, de se chegar a uma situação deimprevisibilidade zero; tão só se pretende reduzir ao mínimo possível as situaçõesimprevistas que possam surgir já que, para Mourinho o que é mais difícil no jogo é o ser-seconfrontado com situações que se desconhece. Em suma, “porque o desconhecido é sempredesconfortável”, referiu-nos Mourinho continuando “ora, a imprevisibilidade tem a ver170com aquilo que tu fazes e estás preparado para fazer e com aquilo que os outros fazem e

que tu presumes que eles possam fazer.”O objectivo é tentar jogar antes – o treino – o que se pensa que se vai jogar a seguir – ojogo. Mas atenção, o treino, encarado globalmente como Mourinho o faz, é como o jogo.Mais, o treino é o jogo intensamente… É por esta razão que Mourinho não faz, porexemplo, treinos de conjunto, ou seja, um jogo normal de 11 contra 11, tal como numencontro de futebol. Os treinos são sectoriais, ou seja, focados na(s) situação(ões) queMourinho quer treinar. O que acontece a cada momento num jogo de futebol é uma dadasituação concreta, não o jogo todo ao mesmo tempo; ou seja, ou se está no meio-campo,em transição ou com as equipas tentando ganhar o controlo da bola; ou uma equipa ataca eoutra defende; ou um contra-ataque que se inicia, etc. São estas situações concretas queMourinho treina, enfatizando um dado aspecto em cada treino. Por exemplo se o aspecto aenfatizar for a defesa, Mourinho escolhe o sector do terreno de jogo onde a defesa actua e énessa zona que projecta a situação de jogo com avançados, médios e guarda-redes. Destaforma treina a defesa e também o resto dos sectores do jogo, no contexto dessa situaçãoespecífica. Esta aproximação tem várias vantagens sobre o próprio jogo. Para além demanter a aproximação global ao jogo, a simulação do jogo obtém maior intensidade já que,encolhendo o terreno de jogo e focando apenas uma dada situação, a bola passa muito maisvezes pelos jogadores do que em situação real e daqui também decorre um aumento dassituações imprevistas o que, ao acontecerem, irão diminuir a imprevisibilidade do própriojogo. Assim, o treino não só é o jogo, como é um jogo intenso. “O jogador só pode jogarno limite se treinar no limite… e o jogo é o espelho do treino. Quanto maior for adeterminação no treino, maior é a determinação no jogo”, referiu-nos Rui Faria. Mais umavez se aplica aqui a ideia de globalidade de Mourinho: é jogando o jogo através do treinoque se joga da mesma forma o jogo. Um jogador pode, assim, tornar-se um grande jogadorde futebol, precisamente jogando muito e bom futebol. Esta é uma ideia clara, nas palavrasdo próprio Mourinho. Em Israel, numa visita a convite de Shimon Peres, disse àassistência: “Um grande pianista não corre à volta do piano ou faz flexões com as pontasdos dedos. Para ser grande toca piano. Toca a vida inteira. E ser um grande jogador não écorrer, fazer flexões ou exercício físico em geral. A melhor maneira de se ser um grandejogador é a jogar futebol”.171Esta ideia de continuidade, no âmbito da aproximação heideggeriana, descrita no capítulo2, projecta-nos para o futuro, no sentido de que mais importante que entender o nos trouxeaté ao presente é a projecção que somos para o futuro. Para Heidegger (1962) o homem,Dasein, é o ser-aí imerso e envolto no mundo, interessado, já com um passado e sempreprojectando para o futuro e o seu futuro. Entendamos, agora, Mourinho na sua permanentenecessidade de projectar não apenas o seu futuro singular, como também, ou sobretudo, oda sua equipa. Voltemos então à sua afirmação (Capítulo 1): “tenho a certeza que para oano vamos ser campeões”. Enquadrado nesta temática, Mourinho ao prometer a vitóriamais não fez que projectar-se para o seu futuro envolvendo a sua equipa neste mesmoprojecto de futuro, que se traduz na vitória. É neste enquadramento que podemos entenderMourinho quando ele diz aos seu jogadores do Chelsea, Frank Lampard, John Terry , JoeCole e Wayne Bridge, no primeiro contacto que manteve com eles: “ I need to know thatyou are winners (…) [b]ecause I am a winner and now so are you. We will win thingstogether” (Lampard 2006: 315); ou ainda quando disse, alguns dias depois, a FrankLampard: “You are just as good as Zidane, Vieira or Deco and now all you have to do iswin things. You are the best player in the world but now you need to prove it and wintrophies” (Lampard 2006: 311). Ganhar é então o futuro, e o futuro é aqui a determinantedo presente. Com base no que escolhemos para nós próprios enquanto projecção de futuro,assim determinamos as nossas acções hoje. Em Mourinho concluímos, pois, que ofundamento do seu trabalho, das suas acções, em suma, do seu dia a dia, se encontra nofuturo que ele quer e projecta e que, por isso, é com olhos postos no futuro queencontramos as suas motivações e acções porque é por e para ele que Mourinho está

sempre virado. Mourinho, nós, fazemos o que fazemos pelo futuro, pelas possibilidadesque nos pode vir a dar, pelo que queremos que ele nos possibilite. Desta forma entendemosem Mourinho uma ambição de ganhar que se renova nas próprias vitórias já conseguidas.Ganhar, ganhar sempre é, afinal, o futuro que aí vem e pelo qual importa lutar.9.2. Emoções, Empatia e Inteligência na Liderança de MourinhoNessa constante luta pelo futuro José Mourinho é um líder emocional. Ele emociona-se eemociona os outros – seguidores ou não. Quem não se recorda de o ver, no final da vitóriada Taça UEFA, em Sevilha, a correr aos saltos à roda do campo a celebrar a vitória? Quem172não se recorda de o ver a celebrar efusivamente, muitas vezes com os seus própriosjogadores, quando a sua equipa marca um golo ou consegue uma vitória? Quem não serecorda de o ver e ouvir nas Conferências de Imprensa onde as suas frases, tantas e tantasvezes polémicas e desconcertantes, correm mundo pela forma e pelo conteúdo com que asprofere? E que dizer, igualmente, das reacções que provoca? Amor, ódio, admiração,desdém, respeito, despeito, mas nunca indiferença. Em José Mourinho é todo um mundode emoções que gira à sua roda, que o influenciam e lhe modelam os comportamentos. Talcomo ficou descrito no capítulo 3 “a grande liderança baseia-se nas emoções” (Goleman etal 2005) e pelo que temos afirmado ao longo desta dissertação Mourinho encaixa nestanoção. A sua relação emocional com os seus seguidores é poderosa e podemos comproválatanto no que respeita aos seus jogadores como aos seus adeptos. Quando perdeu em casafrente ao Panathinaikos (Capítulo 1) Mourinho gerou empatias e criou compromissos logono final do jogo. Aos adeptos portistas disse-lhes que nada ainda estava acabado e que nojogo da segunda mão, na Grécia, o FC Porto ainda tinha uma palavra a dizer. Aos seusjogadores disse-lhes que quem não acreditasse na vitória não iria com ele à Grécia, para ojogo da segunda mão. E tudo isto ele veio dizer depois aos jornalistas para que todosconhecessem a sua forma de pensar relativamente à eliminatória. A verdade é que, nas ruasdo Porto, todos lhe cobraram a ambição e Mourinho ouviu frases como: “Mister, não seesqueça que disse que isto ainda não está terminado. Temos de ir lá ganhar, nósacreditamos…” (Lourenço2004: 151). No balneário nem um jogador lhe disse que nãoacreditava e 15 dias depois o FC Porto ganhou 2-0 na Grécia e passou a eliminatória.Mourinho não só contagiou os portistas numa dinâmica de vitória levando-os a acreditarque tal era possível, como fez vir ao de cima toda a ambição dos adeptos e jogadores doFC Porto, tudo o que todos eles tinham de melhor para dar no sentido da vitória. Mourinhocriou ressonância e ao dizer aos jogadores que quem não acreditasse não jogava, Mourinhonão mais fez que consagrar a noção de liderança primal introduzida por Goleman. Comopudemos observar no capítulo 3 “uma das principais acções do líder passa por conduzir asemoções colectivas dos seus seguidores de forma a conseguir resultados e efeitossuperiores ao simples desempenho positivo das tarefas”. Ora Mourinho, mais que na tarefa,que seria o jogo da Grécia, estava interessado na ambição dos seus seguidores. Sem ela nãoseria possível ganhar. O seu primeiro acto de reabilitação da equipa depois da derrota foipois primal, logo emocional, empático e os seus jogadores encontraram nele o apoio173emocional que se pretende dos líderes nos momentos difíceis. É o tal sistema aberto,focado no capítulo 3, que permite o contágio das emoções. De resto, os mais recentesestudos no âmbito da inteligência emocional, conforme descrevemos no capítulo 6,apontam neste sentido. O paper “Charisma, positive emotions and mood contagion” deBono e Ilies (2006) sugere-nos que o líder emocionalmente positivo influencia de formamais eficaz os seus seguidores. Neste estudo destaca-se ainda a importância das expressõesna liderança eficaz e o modo como elas influenciam os seguidores.E como se é, como se consegue, então, ser emocionalmente inteligente? Goleman et al(2005), conforme apresentámos no capítulo 3, referem que existem quatro domínios dainteligência emocional face aos quais o líder tem de se confrontar. São eles aautoconsciência, a autogestão, a consciência social e a gestão das relações. Quanto maior

for a qualidade do líder nestes quatro domínios, mais qualificada será a sua influência, logoa sua ressonância sobre os liderados.Assim, relativamente à autoconsciência podemos afirmar que José Mourinho é um líderque se conhece a si próprio, logo, conhece-se enquanto ser emocional o que lhe facilita oconhecimento do outro e das emoções do outro. Mas vejamos, então, alguns exemplos quesuportam a ideia de que Mourinho, o líder, é possuidor de uma forte autoconsciência,enquanto domínio da inteligência emocional. Desde logo, quando escolheu o desempregoem Portugal para se tornar, definitivamente, treinador principal de futebol. Mourinho sabiabem o que queria, mas também sabia bem o que valia: “Não tenho medo nenhum dofuturo. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que possofazer a diferença e que posso vencer” (Mourinho in Lourenço 2004: 25). E porquê? Porqueé que Mourinho sabia que podia vencer? No capítulo 7 desta dissertação Mourinho refere:“[A minha confiança] vem da consciência que tenho das minhas capacidades a todos osníveis”. Num outro patamar, no do optimismo com que enfrenta os seus obstáculos,Mourinho continua a dar provas de uma autoconsciência vincada: “O optimismo, a crença,tem que ver com a noção da realidade. Relacionam-se directamente com a maneira comopreparas a equipa e te preparas a ti próprio”. É notória a relação de compromisso entre aautoconsciência de Mourinho e o projecto de futuro que traça para si e para os seusseguidores. Já antes abordámos a forma de Mourinho projectar e conseguir projectar osseus seguidores para o futuro. Mourinho projecta o seu futuro, da forma única que projecta,porque têm em si desenvolvida de uma forma fecunda e poderosa as suas capacidades de174autoconsciência. Em suma, é por acreditar, quase sem limites, em si e nas suas capacidadesque Mourinho promete, como prometeu no Porto, a vitória no ano seguinte.A autogestão é o segundo domínio da inteligência emocional e segundo Goleman et al(2005) deriva da autoconsciência. Aqui trata-se do líder gerir as suas emoções para podercom eficácia lidar com as emoções dos outros. Neste campo Mourinho tem, igualmente,provas dadas como se pode constatar nas palavras de Frank Lampard: “From the moment Isaw [Mourinho] handle the media on his first day at Chelsea I knew that there wassomething which set him apart from everyone else” (Lampard 2006: 313). Esta frasedemonstra a forma como Mourinho gere, entre outras coisas, a pressão e sabe-se bem comoa comunicação social inglesa é pressionante. Lampard ao ouvir o “boss”23 falar com osjornalistas ficou, pelas suas palavras, logo ali influenciado por Mourinho. Ele sabia queestava perante um homem diferente, logo, tinha ele próprio de corresponder e ser diferente.Durante toda a sua primeira temporada em Inglaterra as críticas ao Chelsea foram ferozes etambém aí Mourinho marcou a diferença ao geri-las até à vitória final: “Talvez as críticasnos tenham tornado mais fortes. Tínhamos de fechar a concha, depois de criarmos umacoisa forte lá dentro. Passámos esse período e depois veio um período bonito” (Mourinhoin Barclay 2005: 149). Ao gerir com eficácia as suas emoções, Mourinho projecta este tipode comportamento para os seus jogadores. Antes dos resultados práticos eles acontecem namente dos seus liderados: “[Q]uando temos um treinador que todos os dias repete que nóssomos os melhores, que não vai aparecer ninguém que seja melhor, isso entranha-se nosjogadores e nós vamos para o campo convencidos disso” (Terry in Barclay 2005: 153-4). Éà luz destes exemplos que se compreende, por fim, a autogestão de Mourinho: “Lampard[afirmou] que Mourinho tinha o jeito especial de conseguir transmitir a sua «confiançaespantosa» a cada um dos jogadores” (Barclay 2005: 154). E se há coisa que podemoscomprovar ao longo desta dissertação é que confiança é algo que não falta a Mourinho eaos seus seguidores. É nesta confiança que Mourinho assenta a sua autogestão.Abordámos de uma forma explicativa em José Mourinho – ou seja, com base na teoriaexplicámos a prática – os dois primeiros domínios da inteligência emocional. Estespertencem à esfera das competências pessoais do líder. Passamos agora aos dois últimos23 Expressão que Lampard usa com frequência e entre aspas de uma forma carinhosa no seu livro quando serefere a Mourinho.

175domínios que se inscrevem na esfera das competências sociais e, por consequência,determinam a gestão das relações.Na consciência social a sintonia entre líder e seguidores é fundamental. Em sintonia maisfacilmente se gerem conflitos, aplacam iras, resolvem problemas. Aqui a palavra-chave éempatia e a relação empática que Mourinho cultiva e mantém com o seu grupo é de toda arelevância conforme tem vindo a ser demonstrado. Daí que a sua relação com o grupo sejaaltamente personalizada conforme, por exemplo, podemos concluir das suas palavras,registadas no capítulo 7, depois de confrontado com questão da sua liderança, se ela erauma liderança próxima ou distante do seu grupo: “Analiso caso a caso, momento amomento, personalidade a personalidade, e a minha forma de actuação é perfeitamenteindividualizada e de acordo com o momento e a análise que dele faço”. É deste modo deagir personalizado – mas que não separa o individual do grupo – que Mourinho geraempatias que se traduzem depois em situações como as que resultam das palavras de JohnTerry: “Todos os resultados são para o treinador. Ele trabalha muito, ele e a sua equipa. Nocampo, lutamos uns pelos outros, mas, no fundo, é para ele. Ele é o maior, acreditamos queé o maior, e temos sorte por o termos connosco” (Terry in Barclay 2005: 152).Na gestão das relações importa-nos verificar de que forma Mourinho se relacionaglobalmente com os seus seguidores e como usa a sua inteligência emocional nesse mesmorelacionamento. Para Goleman et al (2005) a gestão das relações começa com aautenticidade – honestidade e frontalidade – e só a partir daqui se consegue ressonância aníveis como os da gestão de conflitos, colaboração e mudança, entre outros. Ora, nestecampo, a autenticidade de Mourinho começa na própria comunicação. Quando chegou aoChelsea, com um grupo de jogadores provenientes de diversos países a falarem diferenteslínguas, Mourinho, desde logo, instituiu o inglês como língua oficial do Chelsea: “Se vocês[os jogadores] estiverem na minha mesa ao pequeno-almoço e eu só falar português, vocêsviram as costas e dizem-me: «Que grande (…). Desculpa, mas nunca mais me volto asentar à tua mesa». A língua tem de ser o inglês. Quem não falar fluentemente quando vier,tem de estudar” (Mourinho in Barclay 2005: 152-3); portanto, a gestão das relaçõescomeça logo pelo factor fundamental da comunicação: a linguagem. Foi desta forma queMourinho atingiu outros objectivos que se prendem com a gestão das relações: “Se formosa alguns lugares, a um canto talvez encontremos ingleses, a outro canto franceses e, emalguns clubes, a outro canto os negros. Não gosto nada disso. Não pode dar certo”176(Mourinho in Barclay 2005: 152). É desta forma inclusiva e global que Mourinho gere asrelações com e entre os membros do seu grupo. É sendo frontal, honesto, em suma,autêntico que ele consegue imprimir o seu ritmo e a sua dinâmica. Para isso abre a porta doseu gabinete a qualquer hora, basta que alguém necessite falar com ele, olhos nos olhos eexpor-lhe o seu problema (Lourenço 2004). Por isso se lêem declarações de seguidoresseus, como por exemplo as de Didier Drogba, no jornal Record no dia 13 de Março de2006: “Mourinho mudou-nos de tal forma que ninguém fora do clube poderá imaginar.(…) Antes de o conhecermos éramos futebolistas normais, agora somos guerreiros quelutam uns pelos outros.” Também pelas mesmas razões o antigo internacional inglês IanWright declarou: [C]onsegue-se ver a camaradagem que existe entre ele e a equipa. Existeali um profundo respeito. Consegue-se ver que eles o adoram genuinamente” (Wright inBarclay 2005: 151). E no fundo é esta a globalidade que Mourinho pretende e conseguenos grupos por si dirigidos.Segundo Goleman et al (2005) para se ser líder tem de se ser emocionalmente inteligente equanto mais isso se conseguir mais qualificada será a liderança. Uma outra premissa deGoleman et al (2005) é a de que ser emocionalmente inteligente implica ser forte em todosos domínios da inteligência emocional. Já o mesmo não acontece para as competências decada um dos domínio – enunciadas no capítulo 3 – em que, segundo Goleman et al “[é]interessante notar que nunca encontrámos um líder, por mais destacado que fosse, com

domínio em todas as competências da IE. Mesmo líderes muito eficazes são apenas fortesem meia dúzia de competências de IE.” (Goleman et al 2005: 60). Pela conjugação destascompetências, Goleman et al (2005) identificaram um conjunto de estilos de liderança,cada uma com um leque de competências, onde as características de cada líder se podemenquadrar e entrecruzar com maior ou menor abrangência.Porque quando falamos num grupo, como se disse, falamos de um sistema aberto e estepressupõe relação importa agora virarmo-nos para essa relação inteligentemente emocionalque o líder José Mourinho mantém com os seus liderados. É através das suas acções quepoderemos enquadrá-lo nos estilos de liderança propostos por Goleman et al (2005) que,como sabemos, são seis e não se excluem uns aos outros, podendo o líder actuar mais deacordo com este ou com aquele em função das suas características e/ou do momento.177Assim, poderemos dizer que de uma forma geral o estilo visionário é o que mais pontostem em comum com o estilo de liderança de José Mourinho. Se fossemos obrigados aescolher apenas um como aquele que melhor o definisse seria, justamente, o visionário.Entronca aqui – e mais uma vez – a permanente projecção de Mourinho para o futuro e aofazê-lo ele é permanente fonte de inspiração para os seus seguidores. Mourinho não osobriga a seguir caminhos por si definidos, antes, apresenta-lhes propostas – relembremos oseu método da descoberta guiada – para atingir objectivos que podem e devem seratingidos – relembremos igualmente a sua promessa, quando chegou ao FC Porto eprometeu o título no ano seguinte. Mourinho é, pois, um líder sempre presente, empermanente mudança, que ouve e sabe ouvir e que traça objectivos passíveis de serematingidos, justamente os principais factores que definem o estilo de liderança visionário.O estilo conselheiro, que Goleman et al (2005) afirmam estar em desuso, não serápropriamente o estilo de José Mourinho. Este estilo privilegia bastante o individual e,como está amplamente descrito, Mourinho não abdica em circunstância alguma do grupoem favor do individual. Ainda assim, num raciocínio totalmente abrangente, poderemosafirmar que “porque cada ser humano é uno e diferente” e Mourinho tem algumas atençõesneste campo conforme está dito por Rui Faria, no capítulo 8, quando se refere àspreocupações individuais que a equipa técnica tem antes da realização de qualquer jogo ou,ainda, quando Mourinho afirma, também no capítulo 7 que, na hora da derrota, sabeexactamente quais os jogadores que necessitam mais – e têm – a sua atenção. De qualquerforma, repetimos, não é este o estilo que mais se enquadra na forma de liderança de JoséMourinho.O estilo relacional caracteriza-se essencialmente pela partilha de emoções. O líder celebrae chora com os seus liderados. Aqui encontramos profundas raízes na forma de liderançade Mourinho. As suas celebrações já foram mencionadas ao longo desta dissertação.Avançamos agora com o lado inverso da questão. Mourinho esteve impedido pela UEFA,por castigo, de se sentar no banco em Roma frente à Lázio. Costinha, jogador portistaestava igualmente impedido de jogar, mas por lesão. O jogador ficou em Portugal eMourinho seguiu para a capital italiana. Vejamos o início da troca de SMS entre Mourinhoe Costinha quando o treinador se separou dos seus jogadores, ou seja, quando eles forampara o balneário e ele foi para a bancada do Estádio Olímpico de Roma: “Costa, estou asentir-me mal, muito frustrado. O pessoal a preparar-se lá em baixo e eu aqui longe deles178todos. Muito triste” (Mourinho in Lourenço 2004: 158). É ainda enquadrado neste estilorelacional que se entende a presença de Mourinho na sala de operações, em momentosdiferentes, junto dos seus jogadores César Peixoto e Derlei (Capítulo 1). Por isso eleafirmou que “é importante para um jogador saber que tem a seu lado, numa altura muitodifícil da sua vida, o treinador” (Mourinho in Lourenço 2004: 197). Em suma este estilorelacional liga-se intimamente a uma característica de Mourinho que temos vindo a colocarem relevo ao longo desta dissertação: a de Mourinho como líder sempre presente,acrescentamos agora, nos bons e nos maus momentos.

O estilo democrático é outro dos estilos que não se traduz no ponto forte de Mourinho.Embora escute as preocupações dos seus seguidores não o faz, contudo, ao nível dereuniões alargadas. Os contactos pessoais que Mourinho mantém com os seus jogadoressão sempre feitos ao nível de um enquadramento específico, fundando-se geralmente emquestões da esfera pessoal e portanto que carecem de alguma intimidade. Na esfera dogrupo a própria descoberta guiada, enquanto método, não contradiz a nossa afirmação deque Mourinho não se enquadra neste estilo. A descoberta guiada só acontece enquantométodo, porque Mourinho sabe bem para onde quer ir e para onde quer que o seu grupo vá.Trata-se assim de uma questão metodológica onde Mourinho mais do que tentar que osseus jogadores descubram o fim, quer que eles descubram os meios para lá chegar e,mesmo esses, são “guiados”, ou seja, Mourinho quer, afinal, que eles descubram ocaminho que ele já traçou. No entanto, aqui e ali, ouve e decide em função da opinião dogrupo. Esta ideia encontra fundamento na sua opção de chamar os dois capitães do Chelsea(Terry e Lampard) e perguntar-lhes se deveria contratar mais um jogador português(Ricardo Carvalho) uma vez que já tinha contratado dois (Lampard 2006).O estilo pressionador pode ou não ser identificável com a liderança de José Mourinho,consoante a perspectiva em que nos coloquemos. As palavras de Rui Faria, no capítulo 8,podem, se descontextualizadas, levar-nos a pensar que Mourinho é um líder pressionador:“Quem vive profissionalmente com ele tem de saber viver com grande pressão e ao mesmotempo tem de dar resposta positiva”. À luz deste raciocínio, como explicar, então, quesendo este um estilo que, segundo Goleman et al (2005), a médio/longo prazo conduz àdissonância, isso não aconteça no caso de José Mourinho, já que os resultados queapresenta são bem prova disso? Em primeiro lugar teremos de ter em conta aespecificidade do mundo que estamos a tratar – o futebol. Faz parte da própria essência do179futebol de alta competição, nos nossos dias, elevados e por vezes quase insuportáveisníveis de pressão sobre todos os seus intervenientes. Desde patrocinadores a adeptos,passando por empresários de futebol e presidentes de clubes, todos querem ganhar e, porisso, aqui o futuro de cada elemento joga-se quarta a quarta, domingo a domingo. Hoje nofutebol a manutenção do posto de trabalho está muitas vezes dependente da vitória ouderrota no “próximo jogo”. Estamos pois a falar de um mundo onde todos estão habituadosa viver sob constante pressão, o que desde logo, nos deixa a ideia de que a pressão a queGoleman et al (2005) se referem tem um impacto muito diferente numa organizaçãocomum ou numa organização desportiva de alta competição. Portanto, quando falamos em“Mourinho líder pressionador” julgamos dever enquadrá-lo num contexto diferente doslíderes de outras organizações que não aqueles em que Mourinho se move. Depois, existeainda um outro factor que nos ajuda a compreender a questão. Como foi dito, no trabalhode José Mourinho, não só o jogo como também os treinos são realizados nos limites decada um. Essa é uma fórmula vencedora de Mourinho e essa é, igualmente, uma outraforma de pressão. Mourinho pressiona neste sentido porque sabe que assim pode ganhar. Apressão, neste caso, é exercida de dentro para dentro, do treinador para os jogadores. Noentanto, enquanto líder, Mourinho poderia aproveitar a pressão exterior, aquela que éexercida pelos elementos exteriores ao jogo, para igualmente prosseguir os seus objectivosde vitória. Contudo, essa pressão não é aceitável em Mourinho e temos disso bonsexemplos. Recorde-se quando Mourinho entrou, premeditadamente, no Estádio da Luz,antes dos seus jogadores. Ele já sabia que os assobios e as vaias dos adeptos benfiquistasiriam ser muitos. Como está descrito no capítulo 1, Mourinho quis entrar primeiro para quea descarga emocional dos benfiquistas incidisse primeiro sobre si, numa tentativa depoupar os seus próprios jogadores e libertá-los de mais esse momento de pressão exterior.Um outro caso é-nos transmitido por Lampard (2006). Acabado de chegar a Inglaterra, noano de 2004, para treinar o Chelsea, Mourinho declarou aos jornalistas ingleses que oobjectivo, para essa temporada, não passaria pela vitória na liga inglesa já que essa épocairia ser de adaptação. No entanto não foi isso que disse aos seus jogadores: “You will read

in the press and hear in the media me saying that I don’t expect us to win the league in myfirst season. I want you to be very clear that I have said this only to keep the pressure of allout of us” (Mourinho in Lampard 2006: 322). Mourinho quis assim anular a pressãoexterior. O curioso é que, no seguimento das suas palavras acima descritas, foi logo de180seguida, o próprio Mourinho, a pressionar dessa mesma forma os seus jogadores: “I alsowant you to know that I do expect us to win the Premiershiep this season. I know that wewill. We are winners and winning is all that matters” (Mourinho in Lampard 2006: 322).Podemos assim concluir que inserido num contexto de alta pressão Mourinho é, em certamedida, um líder pressionador, no entanto, destacamos aqui duas singularidades: a pressãoé encarada quase como uma banalidade do dia-a-dia, logo, muito diferente da pressão nasoutras organizações em que ela acaba por ser algo esporádica, só em casos extremoscolocando em causa o posto de trabalho de alguém; em Mourinho a pressão só é aceite nocircuito fechado do grupo sendo que se tenta sempre anular a que vem do exterior. Daí aspalavras do capitão do Chelsea, John Terry: “He’s very clever at what he does and takesthe pressure out of the players” (Derbyshire 2006: 250). Consideramos, pois, Mourinho umlíder pressionador mas não no contexto descrito por Goleman et al (2005). É desta formaque a pressão que Mourinho exerce sobre o seu grupo não leva à dissonância.Por fim, o estilo dirigista, que preconiza a obediência cega, fruto de uma forma coerciva deestar na vida. Mourinho, em definitivo não encaixa aqui. A resposta está já dada, atravésdos muitos exemplos anteriores e que explicam os restantes estilos. Porém, gostaríamosaqui de fazer uma ressalva. Mourinho é, sem dúvida um disciplinador. Essa disciplinavêm-nos explicada por Rui Faria, no capítulo 8. Essa disciplina, assente em regras, éencarada como uma forma democrática de trabalhar em grupo visando permanentemente oequilíbrio do mesmo. Não se poderá confundir, pois, disciplina com dirigismo emMourinho, tal como não se poderá confundir democracia com ditadura só porque ambasproduzem leis e obrigam os seus cidadãos a cumpri-las.9.3. Cultura e Dinâmica de Grupo no Trabalho de MourinhoNão se pode falar de complexidade sem se falar de grupo, enquanto todo complexocomposto de partes, tal como não se pode falar do trabalho de José Mourinho sem nosdetermos na noção de grupo para o enquadrar, em termos epistemológicos, nodesenvolvimento do seu trabalho. É evidente que em todos os quadrantes profissionais davida existem grupos e são eles que desenvolvem as respectivas tarefas. No entanto, amaneira como para eles olhamos e os enquadramos no dia a dia pode assumir diferentesformas. Em Mourinho, a noção de grupo é vista à luz da complexidade daí resultando que181o grupo não é apenas o somatório das partes que o compõem. Ele é mais do que isso mas,essencialmente, não é isso (a soma das partes). O grupo (o todo) existe em si mesmo comoentidade e não é a soma ou a junção de outras entidades mais pequenas (partes).Imaginemos, então, um grupo de 20 pessoas a produzir calçado numa linha de montagem;imaginemos esse mesmo grupo, com exactamente o mesmo número e as mesmas pessoas aproduzir o mesmo calçado mas sem estarem organizados numa linha de montagem, comcada um dos elementos a produzir de uma forma individual, do princípio ao fim, osdiferentes pares de sapatos. É fácil entender que o produto final será necessariamentediferente. Porquê? Porque embora as pessoas sejam exactamente as mesmas o grupo, esse,já é diferente. E porque? Porque as conexões, as relações – profissionais e pessoais – entreelas mudaram, logo o todo surgiu diferente, com outra interacção, logo, com outraidentidade. Olhando apenas as partes o grupo manteve-se inalterável, no entanto, aoolharmos o todo podemos constatar que ele mudou substancialmente. Esta noção entroncano que ficou descrito no capítulo 2, quando nos referimos ao projecto do genoma humano.Tal como o ser humano, também o grupo se distingue, se materializa e se compreende peloseu todo complexo e não pelas partes divididas e separadas. Serve esta introdução parasituarmos a análise do grupo de Mourinho, como ele o vê e como ele o constrói,

necessariamente diferente da análise de outrem que olhe para o grupo através de um ânguloreducionista. Assim se entende, igualmente, a perspectiva com que Mourinho olha o seugrupo: ele é, tal como o próprio o afirma no capítulo 7, mais importante que qualquer partee, por isso, sacrifica qualquer parte pelo grupo. É, pois, por este motivo que a “estrela” é ogrupo e não um qualquer jogador ou, dito de outra forma, todos os seus jogadores sãoiguais perante o grupo e o grupo que é, é muito mais e diferente que a soma das partes, eesse sim, é a verdadeira estrela, é ele que atinge – ou não – os objectivos. Com estapremissa global Mourinho pretende, no interior do seu grupo, nas partes, umahomogeneidade global: de valores, de métodos, de princípios, de pensamento…Essahomogeneidade está bem espelhada na sua filosofia quando, pela primeira vez na sua vidaprofissional, na época 2002/2003, ele escolheu a equipa – o FC Porto – de raiz: Mourinhofoi à procura de jogadores ambiciosos, pobres e sem títulos ganhos (Lourenço 2003). E foiem torno desta ideia central que construiu o FC Porto que viria a ganhar todos os títulosnas provas em que participou – à excepção de uma taça de Portugal e de uma supertaçaeuropeia – nos dois anos seguintes. Para o que agora nos interessa focar é perfeitamente182secundário o tipo de jogador que Mourinho pretendia; o que importa neste momento érealçar que Mourinho queria um jogador tipo, para conseguir criar um grupo de iguaisentre iguais, onde não houvesse quaisquer discrepâncias, fossem elas económicas,pessoais, técnicas, ou outras. É que para Mourinho só nesta uniformidade global se poderiaconstruir o grupo e assim, só no e pelo grupo, cada um dos jogadores poderia ver as suascapacidades técnicas, físicas, económicas, etc., melhoradas. Foi o que aconteceu e “esse”FC Porto acabou por evoluir a ponto de, dois anos depois, ter conseguido o título decampeão europeu. Alguns anos mais tarde, em Junho de 2006, Mourinho, já ao serviço doChelsea, contratou para a sua equipa nomes sonantes, ricos e com títulos ganhos, comoforam os casos de Schevchenko e Ballack. Logo aí Mourinho foi acusado de trair as suasconvicções. A este propósito impõem-se aqui um esclarecimento. Quando Mourinhochegou ao Chelsea, os jogadores que já lá estavam e os que contratou eram profissionaisque em termos económicos estavam basicamente todos ao mesmo nível, que ainda nãotinham ganho títulos, mas ambiciosos – e Mourinho certificou-se disse conforme podemoscomprovar no início deste capítulo. Portanto a homogeneidade do grupo era evidente. Doisanos depois, estes mesmos jogadores, ou a sua esmagadora maioria, eram já “estrelas” denível mundial fruto de dois campeonatos seguidos conquistados em Inglaterra e de terematingidos duas meias-finais na liga dos campeões europeus. O que aconteceu foi que essesjogadores subiram de patamar, passaram de relativamente desconhecidos a mundialmentefamosos, logo, como está dito no capítulo 7, pelo próprio Mourinho, havia que adaptar ascontratações à nova realidade. Assim, se Mourinho mantivesse a sua filosofia, aí sim,levaria a desequilíbrios no plantel, já que iria contratar jogadores que não estariam em péde igualdade com os restantes. Desta forma, as contratações de Schevchenko e Ballackmais não foram que permitir a continuidade de um grupo homogéneo, agora constituídopor jogadores vencedores e famosos. Mais uma vez descortinamos, aqui, numa perspectivacomplexa, a essência da questão: o que define a realidade não são as partes divididas eseparadas mas, antes, as suas conexões, as suas relações. Percebe-se agora a principalfinalidade de Mourinho quando constrói e mantém um grupo: homogeneidade entre aspartes, sempre num campo relacional.É a partir desta homogeneidade que Mourinho introduz a sua cultura de grupo ou, comoficou descrito no capítulo 7, a ‘cultura José Mourinho’. Ficou dito, no capítulo 4, com basena teoria de Schein (2004) a importância de que se reveste a cultura organizacional. Para183Shein (2004) a cultura de uma organização, ou de um grupo, constitui-se pelos seus valoresbásicos, a sua ideologia, a razão de ser de quem está ali, da forma como está e como é. Oraem Mourinho o primeiro traço dessa cultura, que é igualmente entendida fora do seu grupo,é justamente a supremacia do grupo perante o individual. Relembremos as palavras de

Schevchenko, citado por Mourinho, a um jornal italiano, antes de começar a trabalhar noChelsea: “Nesta equipa estou disponível para aquilo que [Mourinho] quiser” (Capítulo 7).Entendemos aqui a aceitação tácita de Schevchenko, estrela mundial, da ideologia dogrupo de Mourinho, ou seja, a sua disponibilidade para realizar o trabalho que o treinadorquiser em prol do grupo e do sucesso colectivo. É este fim, o sucesso do grupo e não doindividual, a “razão de ser de quem está ali, da forma como está e como é”. Trata-se, pois,de uma cultura assente no sucesso do grupo e não uma cultura assente no sucesso da“estrela”, como por exemplo, no Real Madrid onde os seus jogadores eram apelidados de“galácticos”. Em Mourinho, galáctico é o grupo e as partes sabem bem disso.Com esta cultura Mourinho ajuda a fomentar e a manter um factor que considera (Capítulo7) fundamental para o bom desempenho do grupo: a união, ou coesão do grupo. Comotodo complexo que é, o seu grupo é um todo coeso, unido e solidário. Utilizando alinguagem técnica heideggeriana, introduzida no capítulo 2, os jogadores estão à-mão unsdos outros, isto é, cada um deles, instintiva e intutivamente, assenta transparentemente oseu comportamento no comportamentos de todos os outros. Mesmo fora dos campos defutebol o grupo tem de continuar a ser grupo, assente nos seus valores que nãodesaparecem ou fazem um intervalo quando não desempenha a sua actividade profissional.Como já foi explicado no início deste capítulo, a solidificação, o desempenho, amanutenção dos valores vão-se construindo em todos os actos da vida de cada uma daspartes, não havendo diferenças entre a vida profissional e a vida social. Foi assim quepudemos ver, através da televisão, a equipa inteira do Chelsea deslocar-se ao hospital paravisitar o seu guarda-redes Petr Cech, após este ter sofrido uma grave lesão na cabeçadurante um jogo da liga inglesa e que chegou a colocar em causa o futuro profissional dojogador. É também desta forma que se explica a solidariedade que Mourinho preconizaentre os membros do seu grupo, ao serviço da coesão e união do mesmo. Se Mourinho querjogadores solidários não pode adoptar uma táctica de marcação homem-a-homem que emnada promove a entreajuda, logo, a solidariedade. A propósito das normas que Mourinhoimplantou assim que chegou ao Chelsea, escreveu Barclay (2005:183): “Insistiu que os184jogadores tinham de se comportar como uma unidade dentro e fora do campo”. Porém,além do grupo como um todo, Mourinho promove também nos seus grupos um outrofactor determinante para o sucesso. É aquilo a que usualmente se refere como winningmentality, a que podemos chamar uma “cultura de vitória”. Para a nossa análise resultaclaro que é a vitória, em cada jogo e em todos os jogos, em termos da consistência culturaldos grupos de Mourinho, que os pode equilibrar. O todo e as suas partes, cada uma daspartes como partes desse todo, ou seja, a equipa do Chelsea como grupo, entidadecolectiva, e os seus jogadores individualmente considerados como jogadores do Chelsea,só estão equilibrados, balanceados, vencendo. Recordemos alguns exemplos jáanteriormente citados ao longo desta dissertação. Um deles está patente quando falou aosseus jogadores – do FC Porto – a seguir à derrota, em casa, com o Panathinaikos. Aopassar-lhes a mensagem de que quem não acreditasse na vitória não iria jogar o encontroda segunda mão, na Grécia, Mourinho mais que reequilibrar o todo pretendeu no imediatoreequilibrar as partes que estavam a reagir mal em termos psicológicos à derrota (Lourenço2003). Os jogadores entenderam a mensagem: só se ganha acreditando que é possívelganhar. Os jogadores acreditaram e ao reequilíbrio das partes seguiu-se o reequilíbrio dotodo coroado com a vitória na Grécia. Um outro exemplo prende-se com Frank Lampard.Quando Mourinho lhe disse que ele era o melhor jogador do mundo mas que para ter essereconhecimento teria de ganhar troféus, mostrou-lhe claramente que uma coisa não podeestar dissociada da outra, logo, havia em Lampard um desequilíbrio que tem que ver comqualidade e eficácia. Esse equilíbrio só se atinge quando uma acompanha a outra. ParaLampard ficar na história não lhe bastava o reconhecimento teórico do seu valor, teria deter o reconhecimento prático, consubstanciado na vitória. Esta cultura de vitória, o “só avitória interessa” ou “o segundo é o primeiro dos últimos” é um outro factor reconhecido

em Mourinho e que explica o alto nível motivacional que existe em todos os seus grupos.Porém, um grupo não nasce feito. Desde a sua formação até ao estádio de maturação plena,várias são as etapas a percorrer e cabe ao líder um olhar atento sobre essedesenvolvimento. Descrevemos no capítulo 4 as várias fases pelas quais um grupo passa.Interessa-nos, agora, saber como Mourinho desenvolve o seu grupo e o mantém na sua fasemais madura, justamente, tendo em vista o permanente equilíbrio. Coloca-se, então, apergunta: também aqui será Mourinho diferente? A resposta não é fácil, até porque a nossaanálise não é comparativa, contudo, a liderança de Mourinho neste campo sugere-nos185algumas ideias, sobretudo na primeira fase de desenvolvimento do grupo (filiação) e naúltima (colaboração). Focamos em especial estas duas por dois motivos: porque asconsideramos de fundamental importância já que, quer num caso quer noutro, ou seefectivam os seus pressupostos ou não existirá grupo já que a fase inicial pressupõe acriação do grupo, logo, se ela não se realizar não existirá grupo e na sua fase final se elanão consolidar o grupo, este desmantelar-se-á. As fases intermédias visam essencialmenteas relações, logo, as conexões entre os elementos do grupo, que podem correr melhor oupior, desta ou daquela maneira, mas que, geralmente, não fazem depender de si amanutenção e a continuidade do grupo.Em Mourinho é notória a atenção à fase inicial do grupo. Quando escolheu e desenvolveuo seu primeiro grupo (equipa do FC Porto, na época 2002/2003), Mourinho foi para estágioassim que os jogadores se juntaram pela primeira vez: “Ao fim de três dias de trabalhocomecei a ter o feedback dos [jogadores] mais antigos: «Mister, há aqui na rapaziada novamuita qualidade. Mais, a ‘criançada’ é muito boa gente…»” (Mourinho in Lourenço 2004:123). Não foi por acaso que Mourinho fez questão de deixar esta passagem registada nasua biografia. Ela reflecte a preocupação do treinador na integração dos novos elementosdo seu grupo, tal como a sua preocupação nesta fase de formação do grupo. É por estemotivo que Mourinho descreve pormenorizadamente o primeiro dia de folga, nesse mesmoestágio, do FC Porto. Os jogadores, por opção própria, saíram juntos do estágio, jantaramjuntos e chegaram ao hotel juntos. À chegada Mourinho e esperava-os e ouviu Jorge Costa,o capitão portista, dizer-lhe: “Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo”(Lourenço 2004: 123). Esta situação mereceu de Mourinho o seguinte comentário: “Édifícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e tal homensque estavam juntos apenas há cinco dias, na sua primeira folga optaram por continuarjuntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer”(Mourinho in Lourenço 2004: 123). Relacione-se, agora, esta situação com a teoria dodesenvolvimento do grupo preconizada por Obert (1979). Segundo o autor, esta primeirafase, filiação, caracteriza-se pelos primeiros contactos, em, que os elementos tendem apreocupar-se mais consigo do que com o grupo, pelo que o ambiente pode gerar tensõesvárias. Nesta fase, segundo Obert, o papel do líder é fundamental já que lhe cabe a tarefade facilitar e promover o conhecimento entre as pessoas. Pelo exposto fica claro o papeldesenvolvido por Mourinho: o seu grupo, que ali estava a nascer, não se manteve unido e186coeso apenas nos primeiros cinco dias de trabalho. Ele continuou desta forma na primeirafolga dos seus elementos, fora da actividade profissional.Cabe aqui ainda uma nota à selecção que Mourinho fez para a criação do seu grupo.Digamos que esta é uma fase anterior à criação do grupo, logo, uma fase em que ainda nãoexiste grupo portanto a questão do seu desenvolvimento não se coloca, mas queconsideramos fundamental para a sua posterior criação. Quais os critérios, então, deMourinho, para a escolha dos elementos do seu grupo? Podemos encontrar a resposta nasua biografia. Continuamos situados na equipa do FC Porto, da época 2002/2003: “ComJosé Mourinho optou-se por fazer também uma análise cuidada às qualidades morais doshomens. Tanto quanto bons jogadores procurou-se bons homens porque, sendo o futebolum desporto colectivo, é do grupo, como um todo, que tem de emergir a qualidade”

(Lourenço 2004: 123-4).A atenção de Mourinho às questões atinentes ao grupo, como se disse, não se fica pela suafase inicial. Passemos agora à fase final proposta por Obert (1979), a colaboração, à qual,segundo o investigador, muito poucos grupos conseguem chegar. Trata-se da fase dematuridade plena de um grupo, altura em que todas as outras fases foram plenamenteultrapassadas. O grupo vive, assim, um período estável. Ora é nesta estabilidade que osperigos podem acontecer. No capítulo 4 referimos o desastre do vaivém Challenger, umaconsequência de pensamento grupal dos mais altos quadros da NASA. Vamos agora a umexemplo que se passou com José Mourinho e que nos dá uma ilustração cabal da suaatenção especial aos momentos em que todo o seu grupo está a funcionar com grandeeficácia.A época de 2002/2003 terminou com o FC Porto vitorioso em todas as frentes: vitórias nocampeonato português, na Taça de Portugal e na Taça UEFA. Mourinho manteve aestrutura deste grupo na época seguinte pelo que as alterações foram apenas de pormenor.A “máquina” estava afinada, todos se conheciam, todos jogavam “quase de olhosfechados”. Só que à partida para a nova temporada uma dúvida assaltou Mourinho: seráque o sucesso nos fez mal? (Lourenço 2004). Mourinho longe de viver as vitórias dopassado recente estava já concentrado nas vitórias que projectava para o futuro e não sedeixou levar pelo ambiente de euforia. Temendo uma reacção negativa ao sucesso, porparte dos seus jogadores, o treinador tomou medidas, a nível táctico como se relata no187capítulo 1, “obrigando” os seus jogadores a “descer à terra” e a concentrarem-se apenas noque estava para vir e não no que tinha passado. Desta forma se compreende comoMourinho manteve um grupo vencedor e o resultado ficou à vista: no final da temporadaMourinho e a sua equipa venceram a liga portuguesa e a liga dos campeões.Não queremos terminar esta sub-secção sem fazer uma reflexão sobre o conflito em grupo,uma temática que consideramos de importância capital para o funcionamento do grupo eno qual o comportamento do líder, perante o conflito, assume papel de fundamentalimportância. No Capítulo 4 focámos esta questão através dos estudos de Sherif (1967). Oconflito como fenómeno emergente num grupo, resultante do desentendimento entre duasou mais pessoas, é entendido como prejudicial ao bom funcionamento do mesmo e, comotal, a tendência natural, enquanto acto de liderança, é a sua extinção. O estudo apresentadoenquadrava-se numa perspectiva sociológica do grupo, pelo que não se consideravaespecificamente o papel do líder como mediador ou mesmo como parte do conflito. Nestecapítulo de natureza prática interessa-nos saber, uma vez feito o enquadramento datemática, de que forma Mourinho é líder na gestão de conflitos dentro do seu grupo.Importa, desde já, destacar a forma como Mourinho encara o grupo em relação às partes: ogrupo está acima das partes e, como o próprio referiu, não existe qualquer dúvida emsacrificar a parte pelo todo, o indivíduo pelo grupo. Esta premissa leva-nos a uma primeiraconclusão. Em Mourinho qualquer parte que contribua – e aqui se inclui o conflito – para omau funcionamento do grupo, será sacrificada. Não temos registo, no nosso estudo, dequalquer conflito entre partes – jogadores – de qualquer grupo liderado por Mourinho quetivessem levado a uma atitude extrema por parte do líder – Mourinho. No entanto, este“sacrifício” já aconteceu nos grupos comandados por José Mourinho. Convém aquidistinguir-se duas formas de conflito. O conflito entre pessoas e o conflito entre pessoas e osistema. Em ambos os casos Mourinho já tomou atitudes radicais. Relembremos doiscasos. Mourinho, entrou em conflito com o jogador Vítor Baía do FC Porto, depois de umadiscussão entre ambos no balneário, logo no início da época 2002/2003 (Lourenço 2004).Mourinho entendeu suspender Vítor Baía e mandar instaurar um processo disciplinar. Noentanto, logo na altura, Mourinho fez questão de “[dar a Baía] a garantia de que quando eleregressasse estaria em pé de igualdade com todos os outros para poder lutar pelatitularidade” (Mourinho in Lourenço 2004: 129). Acima de tudo Mourinho garantiu justiçae clareza de processos no desempenho das tarefas do dia a dia. Baía iria ser julgado pelo

188clube e depois disso estaria em condições de ambicionar, no seu grupo, o mesmo que osseus colegas. A verdade é que, concluído o processo disciplinar com todas as implicaçõesque teve em termos de sanções impostas pela justiça do clube, Baía voltou à baliza do FCPorto, tendo sido um dos pilares das conquistas da Taça UEFA, nesse mesmo ano e daLiga dos Campeões no ano seguinte. O segundo caso tem que ver com o romeno AdrianMuttu. Mourinho estava há poucos meses no Chelsea e numa análise anti-doping Muttuacusou elevados níveis de cocaína no sangue. Claramente este foi um conflito não entrepessoas mas entre uma pessoa e o normal funcionamento do grupo, ou seja, um conflitoentre a pessoa e o sistema. Não eram – e não são – admitidos no grupo comportamentossociais que aos mais diversos níveis fragilizem o funcionamento do mesmo. Também não éadmitido qualquer comportamento que fragilize, igualmente, o comportamento da própriaparte. Mourinho, neste caso, afastou Muttu do grupo, o que levou ao seu despedimento.Por este exemplo se entende a primazia do grupo sobre o individual. Repare-se que noprimeiro caso, Baía não colocou em causa o normal funcionamento do grupo, questionandoapenas, pela discussão criada, a autoridade do líder. Neste caso Mourinho não se excluiudo grupo como elemento do mesmo e resolveu o conflito internamente numa óptica, comonos referiu Rui Faria (capítulo 8), de “reorganização do todo e não [d]a punição em simesma”. No segundo caso Muttu colocou em causa princípios do grupo e do seufuncionamento, portanto, Mourinho considerou que não havia espaço para a puniçãoindividual como reorganização do todo. Aqui Mourinho foi implacável e, neste sentido,deixou bem vincada a sua liderança e a autoridade daí decorrente. É pois nesta lógica de“reorganização do todo” que devemos entender a actuação de Mourinho na resolução deconflitos no seu grupo. Esta lógica reorganizadora deve obedecer a um princípio: o dacoerência – não em absoluto, em termos de princípios abstractos; mas relativamente àaplicação concreta de princípios éticos, morais e de equidade a uns e a outros. É por issoque Rui Faria afirma (capítulo 8) que “não interessa se, quando temos de punir, punimoseste ou aquele jogador” já que o importante é, quando necessário, punir – ou premiar,dizemos nós – seja quem for não importando quem, com critérios de justiça e de bomsenso iguais.A problemática do conflito no seio do grupo, que acabámos de analisar introduziu já oestudo da liderança de Mourinho. Vimos como Mourinho enfrenta no terreno, enquantolíder, algumas situações e conflitos com que se depara no dia a dia. A contextualização da189sua liderança foi, contudo, a dinâmica de grupo. Na sub-secção seguinte vamos analisar aactuação de José Mourinho à luz das diversas teorias sobre liderança introduzidas noscapítulos acima.9.4. Teorias sobre Liderança Aplicadas ao Trabalho de MourinhoNesta secção apresentaremos a análise do trabalho de José Mourinho à luz das teoriassobre a liderança anteriormente expostas. Começámos este capítulo de análise peloenquadramento do trabalho de Mourinho na perspectiva da complexidade. Sob estaperspectiva paradigmática, fizemos em seguida uma leitura do seu trabalho no âmbito dateoria da inteligência emocional, exposta no capítulo 3, bem como no contexto de váriasteorias sobre grupos, apresentadas no capítulo 4. Analisaremos em seguida a liderança deMourinho na sua acção enquanto treinador de futebol profissional. Porque a liderança sópode ser vista como uma parte do todo que se constitui no resultado final do seu trabalho,iremos repescar alguns exemplos anteriormente apresentados e fazer ligações a teoriastambém já expostas noutros capítulos além das que apresentámos sobre o fenómeno daliderança propriamente dito. Sob a perspectiva da complexidade, a liderança de Mourinhopode e deve ser entendida através das suas diversas e múltiplas relações com os outrosaspectos do seu trabalho. Se quisermos, utilizando a própria terminologia de Mourinho,vamos olhar agora a liderança como uma dominante desta dissertação sem, contudo, adescontextualizar, de modo a nunca se perder de vista o todo.

A liderança de Mourinho tem sido um dos aspectos do seu trabalho mais discutido por todoo mundo. O consenso é quase unânime: Mourinho é um líder de eleição. As explicaçõespara o facto têm sido muitas, diversas e por vezes contraditórias. À excepção do livroMourinho: Porquê Tantas Vitórias? (Oliveira et al 2006), que relaciona – embora de formapouco aprofundada porque não era esse o seu propósito – a liderança de Mourinho com ateoria da complexidade, em nenhum outro estudo sobre a temática conseguimosdescortinar a mais leve aproximação ao que colocamos em causa nesta investigação: aprática e o estudo da liderança de Mourinho sob a perspectiva da complexidade. Daí que,quanto a nós, na sua generalidade, as análises comuns sobre a liderança de José Mourinhoresultem erradas. Elas separam o que não pode ser separado, adoptando uma visãoreducionista e analisando o tema, de uma forma tradicional, através do isolamento dos seus190vários aspectos, separando-os de um todo que, quanto a nós e conforme ao que temosvindo a defender, não pode ser dividido.Como foi dito acima, a palavra líder está associada a poder e, conforme a sua etimologia,significa aquele que vai à frente. Trata-se de um poder formal – o poder de dar ordens, dedecidir, de exigir, etc. –, mas trata-se também de um poder informal, não substantivo, quese traduz na capacidade natural que alguém tem de influenciar os outros. A liderança deMourinho fundamenta-se também nesta segunda forma de poder. Aliás, e face ao quetemos vindo a apresentar, parece podermos afirmar que o seu poder informal é a base doseu poder formal.José Mourinho é o Special One. Sem qualquer conotação política ou cultural, lembramosaqui os epítetos de líderes que referimos no capítulo 5: Commandante, Führer, Duce. Estasnoções, e muitas outras existem a este nível, tentam captar o líder na sua totalidade, na suaglobalidade, em todos os seus aspectos. José Mourinho é o Special One, uma noção quenada de concreto quer dizer, que não traduz em nada palpável a forma como actua, masque marca qualitativamente a sua forma de ser. O Special One é, desta forma, a maneiracomo as pessoas o olham na sua globalidade, uma globalidade que extravasa o campoprofissional. Acreditamos que é assim que José Mourinho é visto pela generalidade daspessoas, embora de uma forma possivelmente mais intuitiva e instintiva do que analítica oureflectida: quando o criticam, quando o apoiam, quando dele falam, as pessoas não sereferem apenas ao treinador, ao comunicador, ou ao líder. Referem-se a José Mourinho, àsua globalidade, para o bem ou para o mal referem-se ao Special One, referem-se a umtodo e ao todo que faz dele o que ele é. Não perguntámos a José Mourinho, ao longo dasconversas que com ele mantivemos durante a realização desta dissertação, se é desta formaque ele se vê a si próprio, como o Special One. Preferimos contribuir para uma respostacabal através da realização deste estudo.Conforme ao apresentado no capítulo 5, podemos constatar que a investigação actual tendea recuperar as visões mais antigas da liderança, enquadrando-as nas novas realidades. Ateoria do grande homem, da segunda metade dos anos 40 do século passado, é assim, dealguma maneira, recuperada na perspectiva dos traços característicos de personalidade. Nofundo, falamos no culto da personalidade de que um qualquer líder pode ser alvo. No casode José Mourinho este aspecto liga-se também à forma como empresas, como a Samsung191ou a American Express, entre outras, usam a sua imagem para promover os seus produtos.O anúncio da Samsung é elucidativo. Mourinho atira-se um pára-quedas de umhelicóptero, lança-se em rappel de um edifício, salta de um telhado para outro – Mourinhoé um autêntico James Bond, um super-homem, um grande homem. Tal como o agentebritânico 007, Mourinho faz sonhar o comum dos mortais porque todos nós gostaríamos deser um pouco James Bond ou um pouco Mourinho. Esse foi possivelmente o raciocínio dodepartamento de marketing da Samsung. E o que têm em comum José Mourinho, JamesBond, os grandes homens, para nos fazer sonhar? São corajosos, determinados, arrojados,são competentes naquilo que fazem, enfrentam os perigos e têm boa figura, entre outras

qualidades. Seria impossível traçar aqui todos os traços de personalidade de José Mourinhoque concorrem para a sua imagem. Vamos deter-nos em alguns deles que surgem commais evidência no anúncio da Samsung, para posteriormente os enquadrarmos na teoriados traços de personalidade.Quais os traços da sua personalidade mais marcantes, segundo o anúncio que estamos aexplorar? Mourinho é corajoso, basta lembrarmo-nos da forma como se impôs naprofissão, enfrentando e rompendo com cânones estabelecidos, facto que muitas guerras,inimizades e ódios lhe custaram; Mourinho é também determinado e exemplo disso mesmoé a forma como nunca se desviou do caminho por si traçado ao longo destes anos deprofissão; Mourinho é arrojado, já que arrisca e por isso se expõe como poucos – imagineseo incómodo que seria se ele tivesse falhado na previsão que fez sobre a constituição daequipa do Barcelona... (ver capítulo 1); Mourinho é competente e os resultados que obteveprovam-no bem; e Mourinho tem boa figura, tal como Roger Moore, Sean Connery ouPierce Brosnnan, alguns dos actores que interpretam o personagem James Bond. Estesatributos projectam uma imagem global de Mourinho para o exterior. No interior daorganização onde trabalha são-lhe reconhecidos ainda outros atributos, tais como aambição (o querer ganhar sempre), a honestidade e a integridade (olhos nos olhos, o quediz faz e o que faz diz) e a inteligência (está sempre um passo à frente dos outros). E comestes três últimos atributos, juntando-os aos anteriormente focados, confrontámosMourinho com os seis traços de personalidade que segundo Kirkpatrick e Locke (1991)diferenciam os líderes, tal como o descrevemos no capítulo 5: (i) a ambição e energia, (ii) odesejo de liderar, (III) a honestidade e a integridade, (iv) a autoconfiança, (v) a inteligênciae (vi) os conhecimentos relevantes para o trabalho –, concluindo que ele pontua192positivamente em todos eles. Mas será que a personalidade de Mourinho explica natotalidade o estilo e a eficácia da sua liderança? Os argumentos apresentados no capítulo 5sugerem que não.Passemos agora em revista as teorias comportamentais e vejamos se o comportamento deJosé Mourinho, à luz destas teorias, nos fornece pistas para um melhor entendimento dasua liderança. Que Mourinho tem um comportamento específico, disso não temos dúvidas.Mas será que esse comportamento específico justifica a eficácia da sua liderança?De acordo com os estudos das universidades de Ohio e Michigan, revistos no capítulo 5,Mourinho é um líder orientado para as tarefas já que determina objectivos e exige sempre omáximo dos que com ele trabalham: “[N]os treinos, parece que estamos a jogar, tal é aintensidade e a concentração. Parece que estamos mesmo no jogo. Temos de estarverdadeiramente acordados para o treino”, referiu Tiago, jogador profissional de futebol,em entrevista concedida ao jornal A Bola, no dia 27 de Dezembro de 2005.Mas também conforme ao entendimento dos estudos das universidades de Ohio e MichiganMourinho é igualmente um líder orientado para o relacionamento. O antigo jogadorinternacional inglês Ian Wright traçou-lhe este perfil depois de ter visto Mourinho celebraruma vitória com os jogadores do Chelsea: “[s]e outro treinador abraçasse os seusjogadores, eles poderiam ficar imóveis ou encolher-se instintivamente pela surpresa oupelo embaraço[, mas com Mourinho] consegue-se ver a camaradagem que existe entre elee a equipa” (Ian Wright in Barclay 2005: 151). Esta camaradagem foi também patente nofinal da eliminatória com o Barcelona, na época 2004/2005, em que o Chelsea saiuvencedor. Mourinho entrou em campo a festejar e lançou-se sobre as costas de John Terry,uma atitude que mereceu de Desmond Morris, o seguinte comentário, relatado por Barclay(2006:150-1): “Foi esse grande observador da raça humana (e adepto inveterado defutebol) Desmond Morris que chamou a minha atenção para isso. «Não consigo pensarnoutro treinador que tivesse podido fazer aquilo», acrescentou (...). Ambas as pernas deMourinho ficaram no ar. Foi uma expressão de linguagem corporal que eu nunca tinhavisto no futebol. Significa que ele é um dos jogadores.” Noutra ocasião Morris havia járeferido: “I disagree slightly with the portrayal of Mourinho as a father figure to his

players. He is more like an elder brother. Or the leader of the gang” (Morris in Batty2006:150).193Os estudos das universidades de Ohio e de Michigan, base das teorias comportamentaissobre a liderança, mostram-nos o cruzamento da liderança orientada para a tarefa com aliderança orientada para o relacionamento como algo determinante da eficácia da liderança.Embora obviamente aceitando a relevância destas investigações, neste nosso trabalhodefendemos que elas ajudam a entender o fenómeno da liderança, são mais peças dopuzzle, mas que a liderança em geral – e a liderança de José Mourinho, em particular – nãose esgota nem se explica naqueles dois tipos de comportamento. Ainda na linhacomportamental, queremos recuperar a investigação de Andersen (2006), apresentada nocapítulo 6, porque cremos que ela vêm acrescentar, ou talvez acentuar, algo de pertinentepara o reconhecimento de um comportamento de líder, com aplicação no caso de estudoque estamos a trabalhar. Andersen (2006) observa o comportamento do líder sob umângulo global, introduzindo-nos a ideia de acting do líder, que traduzimos aqui porrepresentação. Refere Andersen (2006) que em termos de liderança, não importa tantoquem o líder é (who you are), mas sim como ele representa aquilo que pretende ser, o líder;isto é, o seu acting específico, a sua representação da liderança, é determinante para a sualiderança efectiva. É desta forma, através do acting, que a liderança tem impacto nosliderados – neste ponto do nosso argumento, é importante alertar para o facto de oentendimento do conceito de acting, proposto por Andersen (2006), e aqui utilizado pornós, poder eventualmente extravasar em alguns aspectos o referido por aqueleinvestigador. Entenda-se que o acting, na sua substância, não está ligado a falsidade ou aqualquer outra adjectivação que nos possa levar a pensar que enquanto líder, porque se estáa representar, um indivíduo não estaria a ser ele próprio, não estaria a ser genuíno. Pelocontrário, ser um líder eficaz, submetemos nós na linha da argumentação que estamos aapresentar, implica ser capaz de genuinamente actuar à líder, de representar genuinamentea actuação típica de liderança. A expressão à líder, por nós sugerida, quer precisamenteindicar esta representação genuína dos comportamentos gestuais, vocais, expressivos, etc.,típicos de uma liderança efectiva.Andersen (2006) é claro quando afirma que a representação do líder não está dissociada dasua personalidade. O acting é algo que decorre da essência da liderança e a liderançadecorre do ser que se é, por outras palavras, do ser que o líder é. A representação em causatem que ver directamente com a essência da acção na liderança, com um agir em função dasituação que traduz de uma forma directa aquilo que se é, o líder. O líder para o ser,194enquanto tal, entre outros aspectos referidos de diversas formas e em diversos contextospela investigação, deve também actuar à líder. O acting é desempenhar actos de liderança,é dar ordens, é fazer análises e estabelecer conclusões, é comparar propostas e escolher, éarticular sugestões e visões, é ser capaz de se impor, é falar mais alto quanto tal énecessário, é saber manter o controlo quando todos à sua volta se descontrolam, é umadisponibilidade permanente para arriscar e mudar, é um querer ser o primeiro, é ir à frente,é ganhar – protagonizar este tipo de comportamentos sistematicamente é actuar à líder. Aeficácia deste tipo de comportamentos será tanto maior quanto mais genuína, embora,obviamente, esta dimensão não seja suficiente para fazer um líder efectivo; a competência,a coerência e a equidade, os resultados obtidos, e outros factores, como vimos em teoriasacima revistas, devem igualmente ser tidos em consideração. Actuar à líder por isso não écondição suficiente para se liderar, para se ser líder; mas, quanto a nós, face ao exposto,tende a ser uma condição necessária.Assim, o acting de Mourinho traduz-se na forma como ele diz o que diz e faz o que faz. Olíder tem de actuar à líder. Entendemos esta expressão como a forma de posicionamentodo líder perante os seus seguidores: Mourinho dirige, dá ordens, sugere articulações evisões, usa da palavra com eloquência, impõe a sua posição pela sua competência e

autoridade, questiona os outros e questiona-se a ele mesmo muitas vezes, etc. Mourinho éum líder à líder, com uma actuação e uma representação que fazem dele o elemento deprincipal influência nos seus seguidores. O líder não é só o que é mas também eessencialmente o que mostra e o que – e como – o transmite. É esta imagem global que olíder mostra e apresenta aos seus seguidores, a qual os influencia e faz com que estes osigam. Assim, o conceito à líder aqui proposto mais que um conceito agregador e teórico, éuma noção que visa indicar a experiência de empenho, de dedicação efectivamente sentida,de envolvimento dos seguidores naquilo que é determinado pelo próprio envolvimento dolíder. Assim se compreende o acting de Andersen (2006). Esta noção é importante para acompreensão da liderança de Mourinho. Aliás este acting, e alguns dos papéis a que estáassociado, encontram expressão prática noutros personagens que Mourinho representa; osdas campanhas publicitárias, como por exemplo, a da Samsung, onde se comparaMourinho a James Bond.Passamos agora às teorias contingenciais, as quais vêm acrescentar um outro elemento aoestudo da liderança: o ambiente. O ambiente, o contexto, passa assim a ser alvo de195conjugação com os traços de personalidade e com o tipo de comportamento do líder. Omeio em que o líder se move e exerce a sua liderança é agora o aspecto a investigar. Tentaseperceber que estilo de liderança será por isso o adequado para cada e determinadasituação.Antes de avançarmos para a análise propriamente dita, impõe-se-nos uma nota prévia.Acreditamos ser importante referir que num aspecto importante a situação não surgesimplesmente perante Mourinho, mas antes é ele que a procura e que a provoca. Esta ideiaassenta num princípio de trabalho de Mourinho, o que visa reduzir a imprevisibilidade dojogo, como forma de atingir os objectivos pretendidos. Provocando a situação concreta,Mourinho diminui obviamente a imprevisibilidade, já que condiciona o que podeacontecer, preparando-se antecipadamente para isso. Em termos mais gerais, quandoMourinho decidiu aceitar o convite para treinar o Chelsea questionámo-lo sobre as razõesda sua escolha. Respondeu que queria treinar em Inglaterra porque, na sua opinião, sendo aInglaterra um país de topo do futebol mundial havia, no entanto, muito trabalho adesenvolver ao nível táctico, situação que não era tão visível, por exemplo, em Itália ou emEspanha. Este exemplo mostra-nos como Mourinho projectou a situação que pretendia, dealgum modo escolheu um contexto que lhe pareceu mais favorável ao seu trabalho; esteexemplo ilustra o esforço que Mourinho coloca na construção da previsibilidade dasituação. No entanto, qualquer situação é, evidentemente, imensamente vasta e complexa,não se confinando a alguns aspectos táctico-estratégicos. Como foi referido no capítulo 5,na investigação desenvolvida por Hersey e Blanchard (1974), o estudo dos seguidoressurgiu como um dado novo na problemática da liderança. Defendiam aquelesinvestigadores – pelo menos na análise de Robbins (2002) - que a tendência natural dolíder era conjugar a sua liderança com a maturidade dos seus subordinados, fazendo umaanalogia com a relação entre pais e filhos: à medida que estes vão crescendo, a tendêncianatural daqueles é a de exercer menos controlo nas suas vidas. A presente investigaçãosobre o trabalho de José Mourinho, contudo, sugere que, ao nível da liderança, as coisasnão se passam desta forma. Desde logo se constata que Mourinho é um líder semprepresente. Conforme à etimologia da palavra, apresentada no capítulo 5, Mourinho é o queestá lá na situação, onde as coisas acontecem, à frente. “Eu penso que um líder tem de estarsempre presente. [A liderança] sente-se nas mais pequenas coisas, nos mais pequenosdetalhes, com um olhar ou com a presença do líder por si só”. Esta afirmação de Mourinho196não é apenas uma intuição sua. Ele fez questão, como afirmou na entrevista queapresentámos no capítulo 7, de fazer a experiência. Mourinho premeditadamente deixou deexercer a liderança na equipa de futebol do Chelsea durante algum tempo: “queria perceber– e senti que naquele momento podia fazê-lo – se a minha actividade enquanto líder se

podia diluir exactamente pelo estado de maturação do grupo. (…) Estamos a falar dehomens, de homens de primeiro nível, de jogadores de grande capacidade… De repentepercebeu-se que sem disciplina se perdiam qualidades enquanto grupo”. Na perspectiva doliderado, as palavras de Mourinho também não deixam margem para dúvidas: “[e]u tenhojogadores que me dizem que na realização de um exercício, mesmo que eu não tenha parteactiva, (…) a minha presença faz toda a diferença”. Atente-se nas palavras de FrankLampard, um dos jogadores-chave da actual equipa do Chelsea: “When we are on the pitchhe is always with us – in every move we make and every kick we take” (Lampard 2006:331). Por aqui se percebe, quanto a nós, um dos factores fundamentais da liderança de JoséMourinho e que contraria, de alguma forma a tese de Hersey e Blanchard (1974). Aocontrário dos pais, que mesmo ausentes, nunca deixam de o ser, a liderança requer apresença constante e efectiva do líder. O líder só o é enquanto está lá, à frente, agindo àlíder, enquanto influencia, determina, motiva, caso contrário, deixará de o ser. É por estarazão que Mourinho está literalmente sempre presente, chega aos treinos antes de todos osjogadores e só sai depois de todos eles terem saído (Lourenço 2003). No modelo de Herseye Blanchard (1974), existem quatro estilos comportamentais de liderança: determinar,persuadir, compartilhar e delegar. Embora se possa identificar a liderança de Mourinhocom os três primeiros estilos, face àquilo que já foi apresentado neste trabalho, nãorevemos Mourinho no último estilo, no delegar, seja qual for o grau de maturidade dosseus liderados.Continuando no campo das teorias contingenciais sobre a liderança, podemos enquadrar deforma pertinente o estilo de José Mourinho na teoria do caminho-objectivo. Nesta teoria,House (1971), o seu autor, defende que os líderes eficazes abrem e indicam caminhos aosseus liderados, ajudando-os assim a atingir os objectivos pretendidos (Robbins 2002). Estateoria assenta do pressuposto de que os subordinados aceitam o comportamento do líder ecriam a expectativa de que este os conduzirá à satisfação das suas necessidades ouansiedades. Compreendem-se, à luz desta ideia, as palavras de Lampard: “All I can say isthat he has an intuitive understanding of the way people work, of their dreams and desires,197and how to harness that energy and convert it in a winning formula” (Lampard 2006: 312).House (1971) distingue quatro comportamentos de liderança: líder directivo, líder apoiante,líder participativo e líder orientado para a realização. É este último que pretendemosrealçar, já que nesta teoria é o estilo que mais se identifica com a liderança de Mourinho.Assim, o líder orientado para a realização é aquele que determina metas ambiciosas e queespera dos seus subordinados a sua realização ao mais alto nível (House 1971). Trata-se deum tipo de comportamento que reflecte bem o de José Mourinho. Quanto aos objectivos, jáfoi amplamente referido que Mourinho está focado na vitória, que quer sempre vencer eque quer que essa ambição seja natural, que se transforme na base da cultura da sua equipa.Não houve um único campeonato, uma única prova em que ele tenha participado, desdeque é treinador principal, em que os seus esforços e ambições não tenham sidoconcentrados na vitória final. Mas vencer, obviamente, todos o querem. O ponto crítico é ode querer e de conseguir levar a cabo, aos mais variados níveis, o que é necessário paraatingir aquele objectivo. Pode dizer-se que quem muito quer, estuda, trabalha, inova earrisca; quem apenas deseja, espera.Face a esta cultura de vitória e à pressão para os seus jogadores dêem sempre o melhordeles mesmos, referiu-nos Rui Faria (capítulo 8): “[q]uem vive profissionalmente com eletem de saber viver com grande pressão e ao mesmo tempo tem de dar resposta positiva.(…) A exigência é sempre grande para todos os que trabalham com ele”. Daqui resulta,ainda nas palavras de Rui Faria, que “[t]odos [têm] de estar identificados com o que elequer e desempenhar as tarefas em função disso, sempre ao mais alto nível”. Trata-se dedesafio puro, de o jogador se sentir pressionado, desafiado, e de isso o motivar paramelhorar o seu desempenho, para se esforçar para atingir resultados excepcionais.Com esta análise sobre a relevância das teorias contingenciais para a análise da liderança

de José Mourinho avançou-se já algo de relevante na investigação do objecto destadissertação. No entanto, é claro que este grupo de teorias não é ainda resposta suficientepara o caso que investigamos em toda a sua dimensão. Conforme veremos a seguir, atravésda aplicação à liderança de José Mourinho de teorias mais recentes, as teorias chamadasneocarismáticas, nas quais se inclui a inteligência emocional, acima já aplicada, são as quemelhor explicam o sucesso da liderança de José Mourinho, embora, quanto a nós, nãosejam também suficientes.198Em rigor, a perspectiva da complexidade, que modela tanto esta investigação como aprópria liderança de José Mourinho, traz-nos algo de novo à temática da liderança. No finaldeste capítulo procuraremos identificar, caracterizar e sistematizar, tanto quanto possívelnuma investigação deste género, o que há de substancialmente novo na liderança deMourinho e na teorização que aqui procurámos fazer.Como se disse no capítulo 5, as teorias neocarismáticas enfatizam os comportamentossimbólicos e emocionalmente apelativos do líder. Tentam explicar como os líderesconseguem levar os seus liderados a altos desempenhos, tendendo a esbater distânciasentre líder e liderados. A teoria da atribuição de liderança, neste sentido, vem dizer-nos quea liderança é um conceito atribuído e não conquistado. Assim, McElroy (1982) defendeque a liderança é atribuída pelo reconhecimento e a atribuição de capacidadesextraordinárias a alguém parte dos liderados. Repesca-se aqui, de alguma forma, a teoriados traços de personalidade, sendo atribuído e reconhecido ao líder por parte dos lideradoscaracterísticas como a inteligência, a personalidade ousada e vincada, a aptidão verbalforte, a agressividade, a compreensão, o espírito e a capacidade de iniciativa, entre outrostraços. A partir do desenvolvimento desta visão chega-se à liderança carismática. Aoolharem para o líder, com os traços distintivos de personalidade que nele vêem, osseguidores tendem a atribuir-lhe capacidades extraordinárias ou heróicas de liderança.Surge, então, como que uma auréola em volta do líder, tendendo os seguidores a considerálocomo alguém superior, capaz de feitos incríveis e de vir a realizar os sonhos doselementos da equipa. Em bom rigor, acredita-se cegamente, segue-se e espera-se que olíder guie os seguidores pelo caminho que leva à realização do sonho de todos e de cadaum. Neste campo assume particular destaque a empatia entre seguidores e líder, sem aqual, conforme defendemos no capítulo 6, não existe a liderança carismática. Comodefendem Kellett et al (2006), a empatia não só favorece o reconhecimento da liderançacomo também concorre como o principal factor de mediação entre as emoções dosseguidores e as do próprio líder. Esta relação empática de Mourinho com o seu grupopercebe-se pelas palavras do próprio Mourinho no seu texto sobre a final da Liga dosCampeões, em Gelsenkirchen. O jogo já tinha terminado, a festa no campo também, eMourinho esperava pelos jogadores. Escreveu ele: “[p]ela primeira vez esperei por eles naporta do balneário e beijei-os a todos. 26 de Maio de 2004, Gelsenkirchen: somos imortais”(Mourinho in Lourenço 2004: 224). Um outro exemplo surge-nos na sua visita a Israel,199quando, numa palestra perante cerca de 250 treinadores de futebol israelitas epalestinianos, Mourinho mostrou uma fotografia sua abraçado ao jogador do Chelsea FrankLampard e afirmou: “parece um abraço, mas é mais do que um abraço… é um abraço quemostra que confiamos um no outro. Sem uma palavra, ele está a dizer-me: «Obrigado». Éum abraço que repetimos, jogador após jogador, porque somos uma família” (Mourinho inBarclay 2006: 52).Como enquadramos, então, Mourinho na liderança carismática? Do ponto de vista dos seustraços de personalidade parecem-nos evidentes as ligações. Quanto à sua inteligência ecompetência cremos que elas são unanimemente reconhecidas. Destacamos, por exemplo,as palavras do jogador Deco, que com ele trabalhou dois anos e meio, ao serviço do FCPorto: “[u]m treinador com uma inteligência superior, muito ambicioso, que exige que os

jogadores também o sejam” (Deco in Alves 2003: 137). Mourinho tem, igualmente, umaforte personalidade, como procurámos mostrar no capítulo 1 e como é visível na entrevistaapresentada no capítulo 7. São muitos os exemplos que se podem apontar. Veja-se comorelatámos no capítulo 1 a formula do “tudo ou nada” com que ele saiu do Benfica, ou omodo como expulsou os seus “superiores” num treino de estágio no União de Leiria.Mourinho tem também uma aptidão verbal forte. As suas conferências de imprensa, aforma como fala e como reage às perguntas, tal como Lampard o viu assim que ele chegouao Chelsea e que nós já descrevemos acima, provam bem aquela sua característica.Mourinho é agressivo, marca a agenda. Esta faceta nota-se pela forma como ele entra nosmind games com os seus adversários – o jornal britânico The Times, em Novembro de2006, chamou-lhe the mind games master. Também a capacidade de iniciativa é um factordeterminante em Mourinho. Lembremo-nos, por exemplo, da forma como preparou aequipa para a final da liga dos campeões ao entregar, facto inédito, a cada um dos seusjogadores DVD’s individuais da equipa adversária. José Mourinho é, pois, desta forma,com estes traços de personalidade e alguns outros, um líder eficaz. No entanto, outroslíderes podem ser caracterizados de forma idêntica. Porém, apenas alguns deles seriamconsiderados líderes carismáticos. Analisemos então, de um ponto de vista técnico, porqueé José Mourinho um líder carismático.Relembremos Klein e House (1995) e a sua fórmula metafórica que nos explica oaparecimento de uma qualquer liderança carismática. Os três elementos que concorrempara o seu surgimento, conforme vimos no capítulo 5, são a faísca (o líder a quem são200atribuídos características e comportamentos carismáticos); a matéria inflamável (osseguidores receptivos ao carisma); e o oxigénio (o ambiente carismático, caracterizadopelo ambiente de crise que levava à pouca motivação).Quando José Mourinho (a faísca) chegou ao FC Porto, tal como foi dito no capítulo 1, aequipa (matéria inflamável) ocupava um modesto sexto lugar na liga portuguesa, já tinhasido afastada da Taça de Portugal e estava praticamente de fora da Liga dos Campeões.Para além disto ia para o terceiro ano consecutivo sem ganhar o campeonato português. Oambiente era, pois, de crise com jogadores e adeptos (matéria inflamável) descrentes, anecessitarem de um rumo, de alguém que os levasse a acreditar em algo (oxigénio).Mourinho chegou ao FC Porto e perante estes três elementos – e sendo parte de um deles –criou a combustão necessária ao surgimento da sua liderança carismática. Fez faísca,afirmando: “Para o ano vamos ser campeões.”. Com esta frase, premeditada, porque “aequipa do FC Porto estava moribunda por essa altura” (Mourinho in Lourenço 2004: 99),Mourinho “quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube paraganhar” (Lourenço 2004: 99). Depois, pretendeu também “motivar as hostes” (Lourenço2004) com uma mensagem globalizante, para o interior (todos no clube) e para o exterior(todos os adeptos portistas e até adversários).E motivou de tal forma que mais tarde, o presidente portista, Pinto da Costa, afirmaria que“naquela sua frase de apresentação aos jogadores – «Para o ano vamos ser campeões!» –[Mourinho] apresentou o seu melhor cartão de visita e o seu mais perfeito retracto.Confiança, determinação, vontade de transmitir a indómita vontade de vencer à sua gente,tudo estava sintetizado naquela frase” (Pinto da Costa in Lourenço 2004: 98). A partir daí,pode dizer-se que Mourinho conquistou a nação portista e as suas atitudes enquanto líderforam constantemente alimentando a chama da sua liderança carismática. Foi assimquando disse à massa associativa do FC Porto que a eliminatória com o Panathinaikos, quehavia ganho o primeiro jogo nas Antas, ainda não tinha terminado e foi assim quandoentrou mais cedo no relvado do estádio da Luz enfrentando um monumental coro deassobios e vaias dos adeptos do Benfica, dois episódios que descrevemos no capítulo 1.Como acontece com qualquer um de nós, as nossas atitudes estão directamente ligadas àsnossas características pessoais, aos nossos traços de personalidade. Conger e Kanungo(1998) propõem-nos, conforme ao apresentado no capítulo 5, cinco características-tipo

201inerentes ao líder carismático: o líder carismático protagoniza uma visão ambiciosa earticula-a com clareza; o risco pessoal é outra das características do líder carismático; asensibilidade ao ambiente é outro aspecto do seu comportamento; a sensibilidade para asnecessidades dos liderados também; e, por fim, tende a destacar-se algum tipo decomportamentos não convencionais no líder carismático.Vejamos então de que forma Mourinho, enquanto líder carismático, se posiciona peranteesta formulação proposta por Conger e Kanungo (1998). O líder carismático protagonizauma visão e articula-a explicitamente de forma a prometer, de uma maneira clara e bemdefinida, um futuro melhor para toda a equipa. Mourinho tem metas bem definidas e todaselas passam pela vitória, por vencer sempre. Esta é uma característica já identificada eanalisada. No entanto, queremos sublinhar a exequibilidade das metas propostas porMourinho, essencialmente por dois motivos: em primeiro lugar, esta exequibilidade édecorrente da própria forma de estar de Mourinho que passa pela coerência global entre oque se faz e o que se diz, entre o tratamento de uns e o de outros, entre o que pretendemose o tipo de trabalho que fazemos para o conseguir. A este propósito referiu-nos Rui Faria(capítulo 8): “A coerência passa por aí, [por] objectivos atingíveis. (…) Como é que sepode levar os outros a acreditar em algo em que eu próprio não acredito?” Depois, essacoerência assenta na própria evidência dos factos, ou seja, até hoje, Mourinho ganhousempre em todos os campeonatos que disputou do princípio ao fim. Pela promessa devitória passa também a promessa de um futuro melhor, mais competente, melhor emtermos colectivos e em termos individuais. Foi assim quando Mourinho chegou ao Benfica.Sobre o que disse aos jogadores da equipa no seu primeiro contacto, Mourinho refere:“[p]rometi-lhes duas coisas: primeiro a garantia de ‘qualidade de trabalho’. Com isso elespróprios iriam melhorar individual e colectivamente. A outra promessa foi «frontalidade»”(Mourinho in Lourenço 2004: 39).Esta noção de coerência organizacional como um dos fundamentos da liderança édestacada por Knowles (2001), em paper referido no capítulo 6, precisamente a propósitode aspectos centrais da liderança acima referidos por Mourinho e Rui Faria. Para Knowles(2001) é através do que a organização é hoje e de como ela se projecta para o futuro queela ganha coerência. Esta dupla dimensão da empresa – o que ela é hoje e o que ela querser no futuro – é algo que se constrói em processos comunicacionais francos e consistentes,precisamente o que Mourinho e Faria referem. Para Knwoles (2001) quando a202“[i]nformation flows freely (…), the parts are well connected”; é por esse motivo queMourinho promete frontalidade e Rui Faria nos fala em objectivos atingíveis, o quesignifica que o futuro e o presente estão bem ligados, ou seja, the information flows freelyand the the parts are well connected. Atente-se que as partes são mais do que apenas osjogadores: as partes são o líder e os liderados, a equipa técnica e os jogadores, os jogadoresuns com os outros, a equipa, os adeptos e o clube, e, acima de tudo, o futuro e o presente.A coerência, por isso e como acima referimos, passa por objectivos atingíveis. Osobjectivos têm que ser atingíveis mas ambiciosos. É tarefa do líder desenvolver a ambiçãopara que no futuro se venha a ser melhor do que o que hoje já se é, e que aquilo que hoje sefaz esteja ligado, consistente e coerentemente, mas também com plausibilidade, àquilo quese quer para o futuro.O risco pessoal é outra das características do líder carismático, na concepção de Conger eKanungo (1998). Os líderes assumem os riscos, estando preparados para o insucesso queos poderá levar ao auto-sacrificio; isto em nome da visão. Mourinho, quando chegou ao FCPorto, em Janeiro de 2002, não gostou de muitos dos vícios instalados na equipa. Sentiuque necessitava de mudar porque havia, entre o plantel, gente instalada pouco disposta àmudança (Lourenço 2004). O treinador assumiu riscos e enfrentou os jogadores no final deum jogo, em Belém, em que a sua equipa havia sido copiosamente derrotada peloBelenenses: “[disse-lhes que] se tivesse de ficar para a história do clube como o treinador

que ao fim de tantos anos falhara o apuramento para as competições europeias, ficaria. Noentanto, ou as coisas mudavam muito rapidamente ou, se fosse preciso, até com os junioresjogaria” (Mourinho in Lourenço 2004: 109). Esta passagem revela também um outroaspecto do trabalho e da liderança de José Mourinho: a sua competência técnica, a suacapacidade de diagnosticar o que se passa num grupo, de extrair disso consequências, de asassumir e agir em função disso mesmo.A sensibilidade ao ambiente é outra das características de Mourinho, enquanto lídercarismático. Revisitemos, a propósito, as palavras de Rui Faria (capítulo 8): “A equipa emsi, como estrutura, é importante mas todas as estruturas envolventes também sãoimportantes. E quando falo nas outras estruturas, falo nos diferentes departamentos – odepartamento médico, de futebol, a rouparia, a observação… Tudo isto são estruturas queinteragem e que não podem ser vistas como algo isolado”. Por isso, Mourinho afirma(capítulo 7): “não somos só nós [a equipa de futebol]. Somos nós, mas é também o patrão,203os investidores, os adeptos e por aí fora”. É com este olhar atento ao exterior da sua equipa,ao ambiente que a rodeia, que se entende o exemplo, descrito no capítulo 1, em queMourinho ofereceu o troféu conquistado pelo Chelsea, nos Estados Unidos, ao tratador darelva de Stamford Bridge. E com um olhar mais abrangente, respeitante ao contexto detodos nós, pode ainda referir-se que Mourinho se dedica também a causas humanitárias;por exemplo, no dia em que escrevemos esta página, 9 de Dezembro de 2006, JoséMourinho aceitou ser o patrono de uma instituição londrina de apoio a crianças vítimas decancro, a CLIC Sargent. De resto, as causas humanitárias são um objectivo que Mourinhoinsiste em prolongar para além da sua própria carreira como treinador de futebol: “quando,dentro de treze anos, eu tiver acabado a minha actividade no futebol, consigo ver-meenvolvido a cem por cento em acções humanitárias. Sempre pensei em problemas noMédio Oriente e em África, e não exclusivamente no futebol” (Mourinho in Barclay 2006:200-1).Nas características do líder carismático, sugeridas por Conger e Kanungo (1998), inclui-seainda a sensibilidade para as necessidades dos liderados. Também neste campo Mourinho éum líder forte. Recordem-se as suas palavras, relatando a sua atitude em relação aos seusjogadores, depois de estes terem perdido as meias-finais da Liga dos Campeões para oLiverpool (capítulo 7). Mourinho abraçou alguns deles em sinal de conforto. Aqueles queMourinho reconfortou com mais atenção foram escolhidos intencionalmente: “[q]uemestava pior [psicologicamente] eram os que, pelo segundo ano consecutivo, tinham perdidouma meia-final da Liga dos Campeões. (…) Quando acab[ou] o jogo de Liverpool eu[sabia] perfeitamente que o Gallas, o Terry, o Lampard e outros que perderam duas vezesseguidas [eram] os que, naquele momento, [precisavam] de mim”. Como exemplo destaatenção e cuidado de José Mourinho podemos referir o que aconteceu na parte final de umjogo da liga inglesa, contra o Blackburn, quando Tiago foi substituído e não tinha no bancodo Chelsea o necessário material de apoio para um jogador que acaba de despenderconsideráveis energias físicas e psicológicas – água, casaco, vitaminas, cobertores, etc.José Mourinho reagiu de imediato na defesa do seu jogador: “Mourinho explodiu e, emsegundos, o fisioterapeuta, Mike Banks, corria pelo túnel até ao balneário para ir buscaraquilo que faltava” (Barclay 2006: 171-2). Outros exemplos se poderiam descrever, comoaqueles que têm que ver com a constante acção de Mourinho para aliviar a pressão exteriorsobre os seus jogadores, conforme ao que foi descrito neste capítulo e em anteriores.204Cremos que o que foi dito atesta bem a constante atenção que José Mourinho dedica aosseus liderados.Por fim, o líder carismático é também caracterizado por algum tipo de comportamentosnão convencionais. Ele adopta muitas vezes comportamentos novos, pouco comuns, quenão se adaptam às regras pré-estabelecidas. Lembrando-nos do início de carreira de JoséMourinho, concluímos que foi desta forma que Mourinho marcou a sua entrada no futebol.

Mourinho entrou com um discurso diferente do habitual e com métodos diferentes doshabituais, o que causou as mais diversas reacções. Houve logo quem o odiasse e quem oamasse. Relembremos as palavras do treinador de futebol Manuel José, quando soube queMourinho o iria substituir na União de Leiria: “se Mourinho pensa que isto é uma selva eele o Tarzan está muito enganado” (Lourenço 2004: 77). É certo que esta frase foiproferida num contexto em que Manuel José achava que Mourinho lhe deveria ter ditopessoalmente – o que não é norma no futebol, pelo menos em Portugal – que seria ele oseu substituto, no entanto, ela não deixa de espelhar todo um ambiente menos favorávelque estava cimentado em relação a Mourinho. Manuel José não foi o único e desdetreinadores a anónimos, passando por jornalistas e comentadores, muitos foram os quecriticaram duramente o então jovem treinador – e muitos são os que ainda hoje o criticam.Arrogante, egoísta e insensível foram apenas algumas das palavras com que muitos oadjectivaram. Mourinho era visto como uma ameaça, como alguém que estava a rompercom os cânones tradicionais. Mourinho tinha consciência disso. Antes mesmo de iniciar asua carreira como treinador profissional de futebol, quando saiu de Barcelona, já estavaciente desse facto: “[s]ei que vou para uma luta, para um meio onde se calhar não me ireisentir muito cómodo porque a mentalidade é um pouco diferente. Para além deste factor,também tenho a consciência que não pertenço ao clã, àqueles que dão as cartas, aos quedistribuem o jogo” (Mourinho in Lourenço 2004: 24). Mourinho já sabia, assim, que iriaenfrentar os poderes instalados, já sabia que era diferente, que iria ser diferente e já haviadecidido que o seu percurso estava traçado e dele não se iria desviar. É por isso quedesencadeou ódios, mas também paixões.“José Mourinho [não é só] um bom treinador ao jeito tradicional. Ele é mais do que isso: éum treinador novo, para um futebol novo!” (Sérgio in Lourenço 2003: prefácio), e é isso,nas palavras de Amhurst (2005:75), que “verdadeiramente assusta (…) [os] outros”. JoséMourinho “ousou contrariar princípios que durante anos fizeram doutrina em gerações de205treinadores mal preparados, pouco conhecedores e prisioneiros de uma inaceitávelsubserviência a dirigentes igualmente limitados (…)” (Fernando Guerra in jornal A Bola, 2de Março de 2004). A maneira de actuar de Mourinho, o seu polémico estilo “nalinguagem e nos actos, irreverente, desafiador, estimulante, aguerrido, emocional e frio,inteligente também nas estratégias fora do campo, acutilante, às vezes mesmo feroz naagressividade – e, caramba!, a qualidade técnica deste jovem treinador são um caso muitosério, quiçá nunca antes visto, pelo menos em Portugal” (Santos Neves in jornal A Bola, 3de Outubro de 2003). Desmond Morris referiu o que muitos já constataram vezessuficientes: “[nós] ficamos suspensos das palavras dele. Ele diz coisas que são relevantes eque fazem pensar. Evita lugares-comuns. Não se deixou apanhar pela mentalidade dodesmazelo de «o futebol é mesmo assim»” (Morris in Barclay 2006: 188). São palavras dejornalistas, escritores, treinadores, professores universitários, que espelham a maneiracomo José Mourinho é encarado por muitos: um líder novo, um homem carismático, queveio romper com o pensamento instalado. Mas esse rompimento é mais fundo do que umamera mudança de estilo ou de cultura. Como defendemos nesta investigação, trata-se depropor a acção numa actividade concreta, bem como o seu entendimento, à luz daperspectiva da complexidade, rompendo com uma tradição de séculos que todos nós,consciente ou inconscientemente recebemos como herança.Constate-se, pois, o que temos vindo a defender, ainda que por vezes de forma implícita,nesta dissertação: José Mourinho é o primeiro profissional no mundo a operacionalizar aperspectiva da complexidade à profissão de treinador de futebol. Será possivelmente umdos primeiros a operacionalizar plenamente, isto é, a concretizar até aos mais pequenospormenores da acção quotidiana, aquela mesma perspectiva paradigmática a um qualquerdomínio concreto da acção humana. Um dos desafios que se segue, evidentemente fora doobjecto e das possibilidades desta investigação, é o de estudar e conceber atransferibilidade plena do trabalho de José Mourinho para o mundo das organizações em

geral. No que respeita à liderança, um tópico importante no mundo organizacionalcontemporâneo, tentámos dar um primeiro passo com esta investigação.Um líder carismático afirma-se, mas tem de manter a chama acesa. Shamir et al (1993)propõem um trajecto do líder carismático. Para o líder carismático o presente deve ser oexperimentar a possibilidade e a exequibilidade de um futuro melhor. Mourinho temprotagonizado esta aproximação nos clubes por onde tem passado, prometendo títulos e206vitórias – e conseguindo-os. O líder carismático informa sobre as suas perspectivas eambições de alto rendimento bem como sobre a sua convicção de que esses mesmosobjectivos serão alcançados. Mourinho promete a evolução qualitativa das competênciasde cada um dos seus liderados, fazendo-os acreditar, conforme referimos acima, que elessão capazes de ganhar, que são até os melhores do mundo. Esta atitude desencadeiasentimentos novos, intensifica a auto-estima e a auto-confiança nos jogadores e osresultados são visíveis, conforme o mostrámos e continuaremos a referir através dedeclarações de jogadores como Drogba, Lampard, Jorge Costa e outros. Na trajectória dolíder carismático, conforme a Shamir et al (1993), destaca-se ainda o comportamento dolíder, o qual deve ser um exemplo a seguir pelos seus liderados. Ao mesmo tempo que lhesapresenta um novo sistema de valores, o que em Mourinho se traduz também na insistentemensagem de que o trabalho de um grupo de futebol não termina quando se abandona oestágio ou o estádio, o líder está sempre presente, exibindo a cada momento o código deconduta que a todos deve guiar, em todas as facetas da sua vida, quer profissional quersocial. Por fim o líder carismático tende a submeter-se a auto-sacrifícios em prol do grupo.A entrada de Mourinho no estádio da Luz à frente dos seus jogadores, para os poupar àsvaias dos adeptos do Benfica, como foi descrito no capítulo 1, é uma prova disto mesmo.A liderança carismática, conforme se defende no capítulo 5 na apresentação dos diversosestudos, provoca efeitos directos nos seguidores, ou seja, constata-se uma relaçãocausa/efeito entre a liderança carismática e o alto rendimento, por um lado, e a satisfaçãodos liderados, por outro lado. O alto rendimento dos atletas de Mourinho é provado atravésdos êxitos que consegue nos seus grupos. Quanto à satisfação dos que consigo trabalham,atente-se nas palavras de Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, citado por Miguel SousaTavares: “[ele é] o melhor treinador que já tive. Com ele não há treinos para entreter nemcorridinhas inúteis à volta do campo. Tudo é feito em função do jogo seguinte e treinamossó a forma de o vencer” (Baía cit. por Sousa Tavares in Lourenço 2004: prefácio); e Baiaproferiu estas palavras numa altura em que estava suspenso por Mourinho… ; ou ainda aspalavras de Pedro Mendes, antigo jogador de Mourinho no FC Porto e actualmente a jogarem Inglaterra: “[é] um treinador com uma metodologia de treino fantástica. Grande partedos jogadores do Chelsea estão completamente fascinados com o tipo de trabalho queMourinho está a praticar” (Mendes in Jornal de Notícias, 26 de Fevereiro de 2005).207Pelo que ficou dito pode concluir-se que José Mourinho é um líder carismático na plenaacepção técnica desta classificação. Devemos então questionar: conjugada com os outrostipos de liderança, anteriormente apresentados, ficará desta forma inteiramente explicada aliderança de José Mourinho? Cremos que ainda não. Mourinho é tudo aquilo que temosvindo a referir e a suportar teoricamente, mas não só, como adiante defenderemos.Vamos, por fim, entrar num dos últimos desenvolvimentos das teorias neocarismáticas: aliderança transaccional e a liderança transformacional, propostas por Bernard Bass, nadécada de 80 do século passado. Como afirmámos, no capítulo 5, estas duas teoriascomplementam-se, uma vez que o líder pode socorrer-se de ambas. Conforme afirmaRobbins (2002), a liderança transformacional é construída “em cima” da transaccional.Bass detalha esta ideia ao afirmar que em períodos de fundação ou mudançaorganizacional a liderança transformacional é a mais eficaz e que em períodos deestabilidade organizacional ou de evolução da instituição lenta se aplica com maior grau deeficácia a liderança transaccional. De uma forma ou de outra, repita-se, as duas podem

complementar-se, completar-se e o mesmo líder pode fazer uso de ambos os estilos deliderança.Recordemos, pois, que a liderança transaccional, precisamente pela sua essência deestabilidade, tende a ser usada no dia a dia. O líder foca a sua acção no esclarecimento, nosrequisitos e no desenvolvimento das tarefas dos liderados, socorrendo-se de recompensasou de castigos para a sua realização. Aplicando esta noção ao trabalho diário de JoséMourinho, conjugando-a com a sua noção de grupo, relembremos as palavras do jogadorFrank Lampard: “Mourinho gives you the option: you can take the right route or the wrongroute – but if you take the wrong route, he will know about it and there will berepercussions” (Lampard 2006: 317); ou então fixemos as palavras de Rui Faria (capítulo8), que aborda o mesmo tema, mas já numa perspectiva complexa: “[a] sanção pretende areorganização do todo e não a punição em si. Por isso não interessa se, quando temos depunir, punimos este ou aquele jogador. Trata-se de um elemento de uma estrutura que temde funcionar em estabilidade, porque a desorganização acaba por vir da individualidade decada um”. Vimos como Mourinho lida com o castigo. Vejamos agora como lida com arecompensa. Na final da Liga dos Campeões o “[g]rande Pedro Emanuel, homem da minhaconfiança, apto para todo o serviço” (Mourinho in Lourenço 2004: 177) – foi assim queMourinho se referiu a Pedro Emanuel, jogador do FC Porto, na sua biografia, no capítulo208em que ele próprio relata a final da Taça UEFA, em Sevilha – estava no banco, sentado aolado de José Mourinho. Pedro Emanuel, por quem, como se viu, Mourinho nutria granderespeito e admiração, como qualquer outro jogador ansiava por participar na final; noentanto, estava “tapado” já que no seu lugar estava a jogar o capitão Jorge Costa. A cincominutos do fim da partida o FC Porto vencia o Mónaco por 3-0 e, portanto, a vitória estavaassegurada. Na biografia de Jorge Costa relata-se como Mourinho lidou com o problema –moral – de colocar em campo Pedro Emanuel: “[Mourinho chamou Jorge Costa] à linhalateral e perguntou-lhe se concordava com a entrada de Pedro Emanuel. Não por sentir queo resultado estava em risco mas por uma questão de justiça para com um dos líderes dobalneário. (…) Com os cinco minutos que esteve em campo, Pedro Emanuel garantiu oprémio de jogo, que era só pago a quem jogasse, nem que fosse só um minuto” (Santos eCerqueira 2005: 118). É claro que, neste caso concreto, a verdadeira recompensa de PedroEmanuel, aquela que Mourinho lhe quis dar, foi poder participar de facto no jogo, poderdizer que foi campeão europeu, muito mais que a recompensa monetária referida nabiografia de Jorge Costa, embora esta, obviamente, também tenha de ser equacionada.A liderança directa de Mourinho é exercida sobre um grupo de tamanho médio, cerca de 33pessoas, pelo que Mourinho é, simultaneamente, um gestor do dia a dia e um líder comvisão de futuro, logo, ele é um líder transaccional, conforme acabámos de ver e um lídertransformacional, conforme veremos de seguida. Trata-se, pois, da ideia de Robbins (2002)quando afirma que a liderança transformacional é construída em cima da transaccional.Porém, antes de passarmos à análise da liderança transformacional em Mourinho, impõe-seum esclarecimento. Em grande parte a liderança transformacional confunde-se com aliderança carismática. Ambas têm efeitos directos e bastante positivos sobre os seguidores,levando-os a conseguir resultados extraordinários. Ambas as lideranças incutem altosníveis de confiança e motivação. Ambas se revelam patrocinadoras de uma moral que deveser seguida pelos seguidores. Também ambas revelam postura de auto-sacrifício. Emconclusão, quer a liderança transformacional quer a liderança carismática foca os interessesda organização, levando os subordinados a contornar os seus interesses pessoais em nomedo objectivo final do grupo. O que as distingue, então? Desde logo a noção de que aliderança transformacional está, de alguma forma, associada à liderança transaccional.Existe o pressuposto de que o líder, virado também para o dia a dia e não apenas para umavisão de futuro, com uma perspectiva de mudança, está mais perto dos seguidores e tem209com eles uma relação mais íntima. O segundo elemento distintivo da liderança

transformacional face à carismática reside no facto de que o comportamento do lídercarismático tende a levar a que os seguidores o sigam, a que adoptem a sua visão, mas aque fiquem por aí; o líder transformacional, por seu lado, tenta desenvolver nos seusseguidores instintos de liderança, tendendo a torná-los mais autónomos do que o lídercarismático. Assim se compreendem as palavras de Avolio e Bass: “O líder puramentecarismático pode querer que os seus liderados adoptem a visão de mundo carismática eficam por aí. O líder transformacional tenta inculcar em seus seguidores a capacidade dequestionar não apenas as visões já estabelecidas, mas até aquelas colocadas pelo própriolíder” (Avolio e Bass in Robbins 2002: 319).Mourinho, como vimos anteriormente, reúne características de líder carismático, pelo quenão nos vamos agora deter nas características que são comuns a esta e à liderançatransformacional. Abordaremos apenas as características que extravasam a liderançacarismática encontrando apenas fundamento na liderança transformacional. Nãoperderemos de vista que este tipo de liderança assenta na liderança transaccional, olhandopor isso para esta temática transaccional/transformacional na sua globalidade.Segundo o estudo de Kark et al (2003), citado no capítulo 5, são quatro os princípiosadoptados pelos líderes transformacionais e que produzem resultados directos nos seussubordinados. Os dois primeiros – motivação inspiracional e influência idealizada – têmrelação directa com a liderança carismática, e embora com outra terminologia eles foramanalisados acima, precisamente no contexto de liderança carismática de José Mourinho.Conclui-se então que o comportamento de José Mourinho é caracterizado por aqueles doisaspectos. Quanto à terceira característica – a consideração individualizada –, consideramosque apenas em parte ela é inserida nos princípios da liderança carismática, estando por issomais directamente ligada à liderança transformacional, cuja teoria abaixo aplicaremos àliderança de José Mourinho. A última característica do líder transformacional – aestimulação intelectual – sai da esfera da liderança carismática, pelo que a vamos tambémabordar no contexto da liderança de José Mourinho.A consideração individualizada visa a motivação, a valorização, o ensino e a transferênciade poder para os subordinados. Só este último aspecto se desvia dos princípios da liderançacarismática, pelo que é, apenas, sobre ele que nos iremos deter. Dividamos, em primeiro210lugar, os liderados por Mourinho em dois grupos: a equipa técnica, que é simultaneamentelíder (dos jogadores) e liderada (por José Mourinho), e os jogadores, apenas liderados,embora aqui possamos considerar os capitães de equipa também como líderes – no entanto,não considerámos este facto relevante para o momento da análise. Assim, neste últimogrupo, nos jogadores, não há delegação de poderes por definição; a delegação de poderespara o capitão de equipa durante o jogo não é uma opção do treinador, é uma regra dopróprio jogo, pelo que não pode ser considerada como integrante de qualquer tipo deliderança. A essência do trabalho dos jogadores não encontra por isso qualquer justificaçãopara que exista delegação de poderes, ou seja, os jogadores como operacionais de um jogonão encontram na sua esfera de acção qualquer tarefa que se relacione com a liderança daorganização quer no sentido organizacional quer no sentido operacional. No entanto,conforme foi referido, eles contribuem para a composição do todo, emitindo opiniões etransmitindo ideias que poderão ser aproveitadas, sem que no entanto se possa entenderesta acção como delegação de poderes. Quanto ao primeiro grupo, constituído pela equipatécnica, aí sim, já podemos afirmar que Mourinho delega poderes, sem, contudo, perder devista a globalidade da situação. Esta ideia tem de ser assumida, desde logo, quandopartimos da premissa, defendida ao longo desta dissertação, de que a perspectiva dacomplexidade serve de base ao trabalho de Mourinho. Assim, como entender a sua basecomplexa de trabalho num contexto de uma liderança centrada numa pessoa, em JoséMourinho? Da seguinte forma: Mourinho tem, globalmente, na sua liderança a dominanteda liderança do seu grupo, sem que isso signifique que, em determinado contexto, um seuqualquer adjunto não possa assumir funções claras de liderança. Esta ideia está

subentendida nas próprias palavras de Mourinho: “O Rui [Faria] é o meu complemento.Aliás, nem o chamo de preparador físico, porque é muito mais que isso e esse conceito nãoexiste no nosso modelo de trabalho, já que, no fundo, ele executa e coordena uma grandeparte da nossa metodologia de treino” (Mourinho in Oliveira et al (2006: 45-6). Ao deixarpara Rui Faria uma parte da execução e coordenação do trabalho de comando da equipa,Mourinho está a delegar poderes, não se assumindo como centralizador de competênciasou de poder. É assim com Rui Faria e é assim com a restante equipa técnica já que nãofaria sentido, numa perspectiva complexa, que Mourinho – com ou sem Rui Faria – fosse aparte separada do todo, o elemento diferente e diferenciado – na sua orgânica e na sua211operacionalidade – de um todo composto por partes que compõem e recompõemconstantemente esse mesmo todo.Por fim, a característica da estimulação intelectual, a qual tem como objectivo levar a queos subordinados se questionem a si próprios e ao status quo estabelecido. Pretende tambémincentivar-se a inovação e a criatividade para uma resolução conjunta dos problemas daorganização. Neste campo importa salientar que Mourinho, por princípio, quer nas suasequipas jogadores inteligentes o que, de alguma forma, deixa antever a relevância queassume a capacidade de reflexão individual. Seria, pois, um contra-senso que Mourinhodesse relevância à inteligência dos seus liderados para depois não a utilizar. Sublinha RuiFaria (capítulo 8): “[s]ob o ponto de vista mental, direccionado para o jogo, como aquiloque se faz é adquirir formação mental e comportamental, os jogadores têm de pensar e serinteligentes para observar. Daí o José Mourinho dizer que só quer jogadores inteligentesnas suas equipas”. No entanto, não é menos certo que não se pode ser apenas inteligentenaquilo que o líder pretende e deixar de se ser inteligente nas situações imprevisíveis quese encontre. Desta forma a inteligência pretendida por Mourinho só pode ser entendida naglobalidade do trabalho e na globalidade daquilo que ele espera, no jogo e fora do jogo, decada um dos seus liderados. É assim que Mourinho introduz os seus liderados nadescoberta guiada, um método que pretende levar o jogador a descobrir por ele próprio ocaminho, sob a orientação e as pistas do líder. O caminho, por isso, e como escreveuMiguel Unamuno (1864-1931), faz-se caminhando, faz-se sentindo, aprendendo eapreendendo, com cada um a pensar e a sentir numa perspectiva complexa. Mourinhoaceita, pois, o questionamento e o lançamento de ideias para o terreno por parte dos seussubordinados sem, no entanto, se desviar, pelo menos de uma forma substancial, dotrajecto já traçado. É por isso que ele necessita da inteligência individual ao serviço doquestionar, do interrogar e do duvidar. É também, através da descoberta guiada queMourinho incentiva a inovação e a criatividade individuais, ao serviço da resolução dosproblemas do grupo e da organização como um todo.9.5. ConclusõesAs diversas teorias sobre liderança anteriormente apresentadas ajudam a enquadrar JoséMourinho enquanto líder. Para a eficácia da sua liderança e para os resultados que tem212conseguido, elas ajudaram-nos a entender a relevância de muitos dos seus traços depersonalidade, de muitos dos seus comportamentos, da forma como reage a determinadassituações, de como se posiciona perante os seus liderados e como estes o vêem. Cremosque a analise acima apresentada, assente na teoria previamente introduzida, nos ofereceuma ideia com algum detalhe da forma como Mourinho exerce a sua liderança e influenciaos seus seguidores, sejam eles os que directamente consigo trabalham, sejam mesmoaqueles que Mourinho nem conhece mas que por si são influenciados.Esta secção final divide-se em duas partes. Primeiro destacaremos as principais ideiasfortes resultantes desta investigação, enfatizando no entanto a sua interdependência bemcomo o facto de a sua pertinência plena só poder ser captada no âmbito paradigmático dacomplexidade. Concluindo o capítulo, apresentamos uma análise global, integrando sob aperspectiva da complexidade todas as teorias, noções e conceitos que utilizámos para a

análise da liderança e do trabalho de José Mourinho.9.5.1. Ideias FortesAntes de concluirmos este capítulo, apresentando a nossa análise como um todo, queremosdestacar as ideias fortes que, quanto a nós e no âmbito da investigação levada a cabo, maismarcam e mais se distinguem, dada a sua originalidade e poder, no trabalho de JoséMourinho, especificamente na sua liderança. Abaixo referimos, necessariamente de umaforma sintética, as noções de globalidade, treino do todo, dominante, emocionalidade,descoberta guiada, supremacia do grupo, coerência da liderança, líder carismático,actuação à líder, e líder sempre presente.Queremos enfatizar a interdependência dos corolários, resultados, ou ideias fortesapresentadas, bem como o facto de a sua pertinência plena só poder ser captada no âmbitoparadigmático da complexidade. Não suspeitamos apenas, estamos seguros que quem leresta secção isoladamente, consciente ou inconscientemente sob uma perspectivaparadigmática reducionista, não retirará do que abaixo se apresenta os seus significadosplenos e, possivelmente, aqui ou ali poderá mesmo entender o que se escreve de umaforma menos correcta.213Globalidade. A aproximação pela globalidade é, por ventura, o principal resultadoconceptual da aplicação da perspectiva da complexidade por José Mourinho ao seutrabalho de líder e de treinador de uma equipa de futebol. Seja qual for o fenómeno quefoque, Mourinho não o isola, foca-o na sua globalidade. No jogador não separa o físico, domental, do psicológico, do emocional, do técnico, do táctico, e é por isso que, norelacionamento que Mourinho tem com os seus jogadores ele não separa a vidaprofissional da vida pessoal e social de cada um deles – interessa-lhe o homem, o todo.Mesmo as separações acima referidas não devem ser vistas como dicotomias totalizadoras,nas quais o todo se esgota.Treino do Todo. O treino é encarado como uma parte do processo de jogo e de treino e dejogo. É uma projecção/representação do real que é o jogo. Mourinho realiza treinos com amesma duração dos jogos (90 minutos), tentando simular da forma mais perfeita possível oesforço humano global que constitui um jogo. Pretende-se privilegiar a concentração, jáque a resistência física acabará por acontecer naturalmente enquadrada num fenómenomental, psicológico, emocional mais vasto. O jogador deve jogar no limite porque treina nolimite. Tal como um grande pianista não corre à volta do piano ou faz flexões com aspontas dos dedos para ser um grande pianista, também um jogador de futebol para sergrande não deve correr, fazer flexões ou exercícios físicos em geral, mas sim a jogarfutebol, jogar muito e bom futebol.Dominante. A noção de dominante é um dos conceitos através dos quais Mourinhooperacionaliza a perspectiva da complexidade no seu trabalho. Mourinho não trabalhaaspectos descontextualizados de um ou de outro movimento ou fase de jogo. Ele foca otodo na sua globalidade. No entanto, por motivos diversos, ele pode trabalhar mais este ouaquele aspecto. O seu trabalho focará então um aspecto mas sem esquecer que é o todo queestá em acção e que por isso, devidamente enquadrados, muitos outros factores estãotambém a ser trabalhados. A actividade de um profissional é uma acção global e o foconuma dimensão específica tem sempre implicações noutras dimensões; por exemplo, numtreino de dominante táctica Mourinho pode pretender também atingir outros objectivossecundários, como a motivação, a força mental, etc.214Emocionalidade. A grande liderança baseia-se nas emoções (Goleman et al 2005). Comose constatou a relação emocional de Mourinho com os seus seguidores é poderosa epudémos comprová-la tanto no que respeita aos seus jogadores como aos seus adeptos. Nosdomínios da inteligência emocional José Mourinho é um líder que se conhece a si próprio,logo, conhece-se enquanto ser emocional o que lhe facilita o conhecimento dos outros edas suas emoções. É notória a relação de compromisso entre o projecto de futuro que traça

para si e para os seus seguidores; Mourinho é um líder com elevada autoconfiança,confiando igualmente nos seus seguidores; ele está em sintonia com os seus liderados,situação que advém da empatia que consegue criar no seio do seu grupo; Mourinho geretodas estas relações de uma forma inclusiva e global com e entre os membros do seugrupo, sendo um líder frontal, honesto, em suma, autêntico. Quanto aos estilos da liderançaemocional poderemos dizer que de uma forma geral o estilo visionário é o que melhortraduz o estilo de liderança de José Mourinho. Entronca aqui – e mais uma vez – apermanente projecção de Mourinho para o futuro e ao fazê-lo ele é constante fonte deinspiração para os seus seguidores.Descoberta Guiada. Os jogadores têm de pensar e ser inteligentes. Essa inteligência deveser entendida na globalidade do trabalho e na globalidade daquilo que ele espera, no jogo efora do jogo, de cada um dos seus liderados. É assim que Mourinho introduz os seusliderados na descoberta guiada, um método que pretende levar o jogador a descobrir porele próprio o caminho concreto em cada exercício e em cada situação, sob a orientação e aspistas do líder. No entanto, o caminho já está previamente traçado, por Mourinho. O que sepretende é, então, que sejam os jogadores, por eles, a descobrir que caminho é esse, a sentilo,e assim com ideias e sugestões, a empenharem-se na realização desse trajecto. É destaforma que em Mourinho todos participam, todos são responsáveis e todos sãoresponsabilizados. O jogador aprende por ele mesmo, aprende o que descobriu, o quesentiu, aquilo por que passou; desta forma Mourinho quer garantir a eficácia daaprendizagem.215Supremacia do Grupo. Não se pode falar de complexidade em Mourinho sem se falar degrupo, enquanto todo complexo composto de partes. Decorre desta ideia que em Mourinhoa “estrela” só pode ser o grupo, já que o grupo é mais e é fundamentalmente diferente dasoma das partes. Com esta premissa global Mourinho pretende, no interior do seu grupo,nas partes, uma homogeneidade global: de valores, de métodos, de princípios, depensamento e só nesta uniformidade global se poder construir, desenvolver e manter ogrupo. Como todo complexo que é, o seu grupo é um todo coeso, unido e solidário. Mesmofora dos campos de futebol o grupo tem de continuar a ser grupo, assente nos seus valoresque não desaparecem ou fazem um intervalo quando não desempenha a sua actividadeprofissional. Também se entende, assim, porque é que em Mourinho a parte pode e deveser sacrificada pelo todo: não é concebível a evolução da parte sem ser ao mesmo nível eao mesmo ritmo da evolução do todo.Coerência da Liderança. A coerência foi outra noção que destacámos em Mourinho. Essacoerência, enquanto fenómeno que leva o líder a fazer acreditar os seguidores que podematingir os seus objectivos, assenta em Mourinho na própria evidência dos factos, ou seja,em Mourinho as vitórias são uma constante. Os objectivos ambiciosos são genuinamenteassumidos por Mourinho. A coerência assenta em objectivos atingíveis. Só assim se poderáfazer os seguidores acreditar que é possível atingi-los. Um líder que não acreditegenuinamente no que propõe não pode esperar que os seus seguidores o façam. Acoerência, por isso, passa por objectivos atingíveis e ambiciosos. É tarefa do líderdesenvolver a ambição para que no futuro se venha a ser melhor do que o que hoje se é, eque aquilo que hoje se faz esteja ligado, consistente e coerentemente, mas também complausibilidade, aquilo que se quer para o futuro. Esta dupla dimensão aplicada àorganização – o que ela é hoje e o que ela quer ser no futuro – é algo que se constrói, comoreferimos, em processos comunicacionais francos e consistentes. Outra faceta importanteda coerência em Mourinho respeita ao relacionamento intra-grupal. Os seguidoresvalorizam, apreciam e no seu subconsciente exigem, coerência por parte de quem lidera. Édeterminante para a eficácia da liderança que o líder tenha sempre o mesmo tipo deresposta para situações idênticas com diferentes pessoas. Comportamentos diferentes dolíder para situações similares levam à emergência de sentimentos negativos entre os

liderados.216Líder Carismático. Mourinho é claramente um líder carismático. Sempre presente, é umlíder orientado para a realização. Ele determina metas ambiciosas, mas exequíveis e esperados seus subordinados a sua realização ao mais alto nível. Por isso os seguidoresidentificam-se com ele e desempenham as suas tarefas empenhadamente. Mourinhodesafia, pressiona e motiva conseguindo desta forma, como os resultados ao longo da suacarreira o demonstram, atingir resultados excepcionais. Na sua acção, a sensibilidade aoambiente e às necessidades dos liderados são também suas características enquanto lídercarismático. O líder carismático é também caracterizado por comportamentos nãoconvencionais, como acima referimos; Mourinho adopta muitas vezes comportamentosnovos, pouco comuns, que não se adaptam às regras pré-estabelecidas. Por fim Mourinho éo exemplo no seu grupo. Apresenta aos seus seguidores um novo sistema de valores, quese traduz na insistente mensagem de que o trabalho de um grupo de futebol não terminaquando se abandona o estágio. Mourinho, o líder, exibe a cada momento o código deconduta que a todos deve guiar, em todas as facetas da sua vida, quer profissional quersocial.Actuação à Líder. O líder para o ser, enquanto tal, entre outros aspectos referidos dediversas formas e em diversos contextos pela investigação, deve também actuar à líder e arealização deste tipo de comportamentos será tanto mais eficaz quanto mais genuína.Actuar à líder por isso não é condição suficiente para se liderar, para se ser líder; mas,quanto a nós, tende a ser uma condição necessária. Este conceito encontrou fundamento nopaper de Andersen (2006) e no seu conceito de acting. Assim, o acting de Mourinhotraduz-se na forma como ele diz o que diz e faz o que faz. Mourinho dirige, dá ordens,sugere articulações e visões, usa da palavra com eloquência, impõe a sua posição pela suacompetência e autoridade, questiona os outros e questiona-se a ele, etc. Mourinho é umlíder à líder, com uma actuação e uma representação que fazem dele o elemento deprincipal influência nos seus seguidores. O líder não é só o que é mas também eessencialmente o que mostra e o que – e como – transmite (o acting). É esta imagem globalque o líder mostra e apresenta aos seus seguidores, a qual os influencia e faz com que esteso sigam. O conceito à líder, proposto por nós no capítulo 6, mais que um conceito217agregador e teórico, é uma noção que visa indicar a experiência de empenho, de dedicaçãoefectivamente sentida, de envolvimento dos seguidores naquilo que é determinado pelopróprio envolvimento do líder.Líder Sempre Presente. A palavra líder está associada a poder e, conforme a suaetimologia, significa aquele que está no local, na situação, “aquele que vai à frente”. Aliderança é um poder formal – o poder de dar ordens, de decidir, de exigir, etc. –, mas étambém de um poder informal, não substantivo, que se traduz na capacidade que alguémtem de influenciar os outros. A liderança de Mourinho fundamenta-se também e comênfase substancial nesta segunda forma de poder. Aliás, e face ao que temos vindo aapresentar, parece podermos afirmar que o seu poder informal é a base do seu poderformal. Mourinho é um líder “sempre presente”. Conforme à etimologia da palavra,Mourinho é o que está lá, onde as coisas acontecem, à frente. Um líder tem de estar semprepresente, referiu-nos Mourinho. A liderança sente-se nas mais pequenas coisas, nos maispequenos detalhes, com um olhar ou com a presença do líder por si só. Sem a presençaconstante do líder arrisca-se a perca de qualidades, de desempenho, de eficácia do grupo. Aliderança é algo que tem que estar sempre presente. O líder só o é enquanto está lá, àfrente, agindo à líder, enquanto influencia, determina, motiva, caso contrário, deixará de oser.9.5.2. A Análise como Um TodoA perspectiva de fundo que modela esta investigação, como referimos no seu início e adetalhámos no capítulo 2, é a da complexidade. Trata-se de uma perspectiva paradigmática

e que, por isso, tudo influencia e modela no decorrer deste trabalho. Dito isto, queremos nofinal deste capítulo – e desta dissertação – acentuar o que procurámos fazer e tentar levaralgo mais longe o nosso esforço de análise. Relembramos que a perspectiva dacomplexidade não só não exclui o paradigma reducionista como só pode inteiramente serentendida como um desenvolvimento contemporâneo que surge face aos êxitos e àsimpossibilidades do próprio reducionismo, que nos últimos quatro séculos tem dominado opensamento científico. Sobre o assunto, escreve Weathley (1999):218“Scientists in many different disciplines are questioning whether we can adequatelyexplain how the world works by using the machine imagery emphasized in theseventeenth century by such great geniuses as Sir Isaac Newton and René Descartes.This machine imagery leads to the belief that studying the parts is the key tounderstanding the whole. Things are taken apart, dissected literally or figuratively (aswe have done with business functions, academic disciplines, areas of specialization,human body parts), and then put back together without any significant loss. Theassumption is that the more we know about the workings of each piece, the more wewill learn about the whole. Newtonian science is also materialistic – it seeks tocomprehend the world by focusing on what can be known through our physical senses.Anything real has visible and tangible physical form. In the history of physics andeven to this day, many scientists keep searching for the basic «building blocks» ofmatter, the physical forms from which everything originates. One of the firstdifferences between new science and Newtonianism is a focus on holism rather thanparts. Systems are understood as whole systems, and attention is given to relationshipswithin those networks. Donella Meadows, an ecologist and author, quotes an ancientSufi teaching that captures this shift in focus: « You think because you understand oneyou must understand two, because one and one makes two. But you must alsounderstand and»” (Wheatley 1999: 10).Nesta investigação analisámos a liderança de José Mourinho sob a perspectivaparadigmática da complexidade, que na linha de Morin, de Prigogine e outros, foca o todosem esquecer as partes e foca as partes sem esquecer o todo. Deste ponto de vista a análiseque efectuámos apelou a teorias estabelecidas em diversos aspectos do fenómeno queinvestigámos, nomeadamente as emoções, a dinâmica de grupo, a liderança. Ao longo dadissertação procurámos fazer referências e apresentar ilustrações várias da relevância daperspectiva da complexidade no trabalho de José Mourinho. Por exemplo, quandoabordámos a inteligência emocional referimos a forma global e abrangente comoMourinho gere as relações no seio do seu grupo de trabalho e dele, enquanto líder, comesse mesmo grupo. Essa relação é marcada pela globalidade, a qual começa logo na próprialíngua. Para que as relações sejam facilitadas, para que todos estejam em pé de igualdade, eem rigor – e de um ponto de vista comunicacional –, para que todos participem no mesmomundo, para que as conexões do grupo possam emergir natural e vincadamente, conformedescrevemos, Mourinho decretou que o inglês era a língua oficial do Chelsea: “Se vocês[os jogadores] estiverem na minha mesa ao pequeno-almoço e eu só falar português, vocês219viram as costas e dizem-me: «Que grande (...)! Desculpa, mas nunca mais me volto asentar à tua mesa». A língua tem de ser o inglês. Quem não falar fluentemente quando vier,tem de estudar” (Mourinho in Barclay 2005: 152-3). É, portanto, logo na língua quecomeçam as preocupações de Mourinho relativamente às relações, complexas, interactivas,interrelacionais, que pretende para o seu grupo.Noutro domínio, no funcionamento do grupo, foquemos por exemplo a questão dascontratações, em 2006, de Ballack e Schevchenko, duas estrelas do futebol mundial. Acontratação destas duas estrelas, só aconteceu porque, entretanto, depois de duasconquistas do campeonato inglês, o Chelsea já era, ele mesmo, constituído por estrelas.Numa perspectiva complexa o que define a realidade não são as partes, separadas mas,antes as conexões entre elas, as suas relações. Em 2006, ao contrário do Chelsea de 2005 e

de 2004, os jogadores da equipa já tinham adquirido o estatuto de estrelas. Dai que aintegração das partes no todo se faça nessa perspectiva: o Chelsea foi dois anos seguidoscampeão de Inglaterra, chegou às meias-finais da Liga dos Campeões, é um clube de topomundial. Como? Numa perspectiva complexa, através dos jogadores, da equipa técnica, doseu líder, da estrutura do clube, que fazem do Chelsea a equipa que ele é e que fazem dosjogadores as partes que fazem o todo que os faz a ele serem o que são. Percebe-se, então, aprincipal finalidade de Mourinho quando constrói e mantém um grupo: a homogeneidadedas partes, a coerência orgânica, a consistência técnica, cultural, profissional, social,económica, etc. Ou seja, do nosso ponto de vista, as relações entre os elementos, a maneiracomo as coisas se fazem, não apenas no plano profissional, mas também social, deexigência e de ambição, são o alvo de uma liderança sob a perspectiva da complexidade.Bem como Weathley (1999) refere, num mundo complexo o que existe são processos,mudanças e relacionamentos; também como Heidegger (1962) intuiu, as relações que ascoisas têm é o que elas em rigor são.Quando aplicámos ao trabalho de José Mourinho as teorias sobre liderança queapresentámos no capítulo 5 ficou claro que Mourinho não separa as várias dinâmicas eobjectivos no trabalho da sua equipa. Trabalha sob um princípio de “dominantes” e não deunicidades, ou seja, tem sempre em vista as-àrvores-e-a-floresta. Desta forma secompreende, por exemplo, que num exercício de dominante táctica exerça ao mesmotempo actos puros de liderança. O exemplo que a seguir referimos já foi apresentado noinício deste capítulo e comprova bem o que acabámos de afirmar: “Eu sabia que o220Camacho – treinador benfiquista –, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic peloSokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minhaequipa contra as investidas atacantes do Sokota”. São palavras de Mourinho que explicamcomo motivou a sua equipa para um jogo contra o Benfica. A motivação é um acto deliderança, no entanto, Mourinho não a tratou num departamento isolado, indiferente aotodo do seu trabalho. Foi na relva, com os jogadores à roda da bola, que Mourinhopreparou a técnica, a táctica, o físico e a mente da sua equipa. Esta é em definitivo aperspectiva da complexidade no trabalho de José Mourinho. Todo o seu trabalho estáinterligado de uma forma complexa e consegue, assim, conectar, relacionar sem separar aspartes do todo. No exemplo acima apontado o que faria, então, um treinador que olhasse oseu todo sob uma perspectiva reducionista? Sob a perspectiva tradicional, sob a perspectivaque todos nós, por defeito, assumimos? Certamente trabalharia nos treinos no campo osaspectos físico-tácticos da equipa e num departamento diferente trabalharia os aspectosmentais, como a motivação. No campo trabalharia com a bola, depois, se calhar numginásio enfatizaria a preparação física e numa qualquer sala trabalharia os aspectosmentais. É importante, no entanto, referirmos que mesmos que esse hipotético treinadortrabalhasse todos aqueles aspectos mentais e físicos no treino, ao mesmo tempo quepreparava os aspectos tácticos, isso, em si mesmo, nada de substancial alteraria.Simplesmente, essa realização de tudo ao mesmo tempo não seria, nem se aproximaria, deum trabalho assente na perspectiva da complexidade. Tratar-se-ia apenas de uma questãode simultaneidade, tudo estaria a ser feito ao mesmo tempo, mas não de uma formacomplexa, isto é, naturalmente integrada. Assim, um treino daquele género, fazendo aomesmo tempo o que o paradigma reducionista previamente separou, não resulta num treinocomplexo. O ponto decisivo, a verdadeira e profunda diferença entre uma e outraaproximação, é que os exercícios que se fazem, o que concretamente acontece no grupo eem cada jogador num e noutro tipo de treinos é radicalmente diferente. Os exercíciosassentes na perspectiva da complexidade visam e treinam o todo; acentuam esta ou aqueladimensão – dominante, como Mourinho lhes chama – mas não esquecem nunca que nadahá de puramente táctico, físico, mental ou psicológico; tudo são aspectos da globalidadeque é o homem, tudo é simultaneamente treinado, na sua globalidade e complexidade.Obviamente, esta aproximação, como o seu nome indica não é fácil, mas complexa...

Trata-se de uma aproximação à aprendizagem, à acção, ao conhecimento, a um fenómeno221concreto da acção humana feita pela sua totalidade, na sua globalidade – e isto é algo deprofundamente inovador, mas, como cremos mostrar nesta dissertação, é também algopleno de potencialidades. Nesta perspectiva pode pois ver-se que colocar no mesmomomento o que antes foi separado não equivale a reconstituir – ou mesmo construir – otodo complexo, tratando-se apenas de fazer ao mesmo tempo algo que previamente foidividido. Assim, desta forma, descontextualizada, as conexões, os padrões de actuação, oshábitos e as rotinas que daí podem advir são necessariamente diferentes dos que resultarãode uma actuação sob a perspectiva da complexidade. Queremos no entanto deixar claro queesta nossa análise não se arroga – nunca o faríamos, nem a perspectiva paradigmática queseguimos o sugere – que o treino ou a aprendizagem de uma forma está correcto e de umaoutra está errado.Este olhar global e globalizante permite-nos repescar outros exemplos referidos acimaneste capítulo. Mourinho pretende a solidariedade entre os seus jogadores. Numaperspectiva complexa entende que essa solidariedade tem de ser global, dentro e fora docampo, no profissional e no social. É assim que Mourinho não aceita, estrategicamente nasua equipa, que em jogo se façam marcações homem-a-homem. Um jogador seu tem de teruma perspectiva global sobre o jogo e sobre a sua equipa e não estar apenas preocupadocom um jogador do adversário. O jogo é assim jogado pelo todo e não pela parte. Nesteprincípio de jogo as relações são diferentes obrigatoriamente e as conexões também. Éneste contexto que Mourinho é líder e exerce a sua liderança numa teia de conexões emque nada está separado e tudo está interligado e se correlaciona.Nestes exemplos, bem como noutros apresentados atrás neste capítulo ou pontualmentereferidos em capítulos precedentes, procurámos colocar a análise do aspecto em causa soba perspectiva da complexidade, embora sem forçar demasiado o relacionamento mais oumenos indirecto desse mesmo aspecto com outros. Tratou-se, quase sempre, de analisaruma ou mais partes à luz do todo em que elas se integram. O todo em si mesmo é para nósevidente: a liderança de José Mourinho, o seu percurso notável de sucesso. O desafio épois o de como o compreender sem o fragmentar, sem o dividir, sem o decompor emcaracterísticas mensuráveis, sem o descontextualizar da globalidade que ele é. Assim, emtermos analíticos, pode dizer-se que a análise apresentada nesta dissertação, por um lado,aplica a perspectiva da complexidade para descrever e compreender o trabalho,especificamente a liderança, de José Mourinho, nomeadamente nas práticas, nos222comportamentos, e nos processos em que ele mesmo, Mourinho, desenvolve de uma formaditada ou influenciada por aquela mesma aproximação paradigmática – nesse contextodeve entender-se noções e conceitos utilizados por José Mourinho, como por exemplo,globalidade, dominante, descoberta guiada, que foram nesta investigação detalhados eenquadrados teoricamente na perspectiva da complexidade. Por outro lado, no entanto,também a nossa análise, independentemente do fenómeno sobre a qual recai, assume umaepistemologia da complexidade – como pode ser constatado desde o capítulo 2 – o quesignifica que o trabalho que aqui fazemos segue uma aproximação complexa, nãopositivista e não reducionista. Quer isto dizer que tem sido também um desafio investigar otrabalho e a liderança aqui em causa sob esta perspectiva, isto é, não desligando as partesdo todo e não descontextualizando, tentando para esse fim utilizar conceitos, noções eideias novas. É neste quadro que fizemos apelo ao projecto do mapeamento do genomahumano (capítulo 2), e ao qual em seguida recorremos de novo numa tentativa de levarmais longe a análise complexa e contextualizada do fenómeno que estamos a investigar: aeficácia da liderança de José Mourinho.Recuperemos então o projecto do genoma humano. Na procura do que é o ser humano, oprojecto do genoma dividiu o homem no mínimo que a ciência, actualmente, conseguedividir. Assim, dividindo até onde a tecnologia actual o permite, separaram-se as partes

umas das outras, descontextualizando-as. Inspirados no paradigma reducionista positivista,o modelo matriz da generalidade das ciências exactas, os cientistas chegaram a conclusõesque nos surpreenderam a todos. Esta surpresa é em boa parte um resultado da nossatradição cultural científica. Uma tradição que tem sugerido que o conhecimento das partesleva ao conhecimento do todo; assim, no projecto do genoma humano, a sugestão implícitaera a de que um conhecimento exaustivo das partes constitutivas do ser humano, dos seusgenes, conduziria ao conhecimento do homem como todo. Ora, sem contestar o imensoavanço científico e cultural que o projecto do genoma humano e os seus resultadosrepresentam para a nossa civilização, nomeadamente no campo da prevenção e detratamento de doenças e de problemas vários de saúde, o mapeamento dos genes, por si só,não nos habilita a uma descrição cabal do tipo de ser que somos, e isto, porque fora daidentificação e descrição das partes que fazem o todo, está ainda um número inimaginávelde relações e de conexões entre essas mesmas partes. Isto, obviamente, em nada pretendemenorizar ou minimizar o projecto do genoma humano; antes pelo contrário. O ponto que223queremos enfatizar coloca-se a um nível paradigmático. Quanto a nós, e conforme ao queVenter et al (2001) sugerem, o projecto do genoma levou o mais longe possível a estratégiareducionista das ciências exactas. Esse paradigma, que tantos mundos e horizontes abriutem, no entanto, os seus limites. Daí, que os resultados do genoma humano nos possambeneficiar, e muito possivelmente, em diversas áreas da medicina e da saúde, mas, poroutro lado, esses mesmos resultados não podem endereçar a questão mais fundo do que éhomem; ou seja, do porquê de os mesmos genes gerarem seres humanos tão diferentes e depraticamente os mesmos genes gerarem um ser humano nuns casos, um macaco noutros, eainda um ratinho noutros. Para este tipo de perguntas, a perspectiva de fundo para aprocura de uma resposta, como propõe Venter et al (2001), parece ser a da complexidade.Nesta perspectiva paradigmática, o todo assenta não só nas suas partes mas também nasrelações entre essas mesmas partes. Na complexidade as funções que cada elementodesempenha no todo a que pertence depende da posição, das interacções, e da história quefaz esse mesmo todo ser como se encontra em cada momento; ou seja, as interacções sãodependentes do contexto histórico, espacial e temporal específico. O todo comanda aspartes que agem conforme ao que esse todo veio a ser ao longo do seu desenvolvimentohistórico-contextual.Ao olhar as partes, os nossos genes, ficámos a saber que somos iguais entre nós, humanos,em 99,9 por cento; isto é, qualquer ser humano é 99,9 por cento idêntico a qualquer outroser humano. O que é que isto pode querer dizer num mundo onde o que há demais evidentepara todos nós é que cada homem é único, singular e irrepetível? O que isto significa,obviamente, é que o que é igual é a sequência genética não a pessoa. A pessoa, cada um denós, é algo de muito mais complexo do que a sua mera sequência genética. Aliás, as coisassão literalmente complexas: a diferença genética do ser humano para o rato é de apenas umpor cento, e para o macaco de dois por cento. Porque é que os mesmos genes dão origem aser vivos tão distintos? E se olharmos para o arroz, então, a surpresa é ainda maior: o arroztem quase o dobro dos nossos genes. Porque é que a quantidade dos genes surge tãodesligada da complexidade comportamental do ser humano e do... arroz? Em conclusão,geneticamente, somos praticamente iguais, no entanto, as diferenças são bem visíveis aolho nu. As mais sofisticadas tecnologias praticamente não nos distinguem, no entanto, umqualquer bebé de um mês já o faz. Porquê? Porque de alguma forma pode dizer-se que oprojecto genoma tira fotografias ao ser humano, esquecendo-se que cada fotografia é parte224de um filme; o projecto genoma olhou-nos as nossas partes e enquanto partes, esquecendoseque somos um todo. O que nos distingue, então, uns dos outros? Um homem de outrohomem? O ser humano do macaco? O homem do arroz?! A resposta, com a devidamodéstia da ciência e dos investigadores, está na perspectiva paradigmática dacomplexidade, como aliás o paper de Venter et al (2001) admite explicitamente.

O que conta não são apenas os genes, ou antes, o que é determinante não são só os genes.O que conta, muito e de uma forma complexa, são as relações entre esses mesmos genes –são as ligações, as relações entre um e outro gene e um e outro agregado, são as conexõesentre redes de elementos, são os padrões de comportamento biológico, físico,comportamental, cultural, que fez de cada ser vivo aquilo que ele hoje é. Assim, os nossosgenes não determinam quem somos. O que nos torna diferentes são as ligações entre osnossos genes, a forma como se relacionam entre si; e essa sim, bastante diferente da dorato, do macaco, ou do arroz.Esta observação é global e aponta para a complexidade do comportamento do ser humano.O paradigma da complexidade olha as partes e vê o todo ao mesmo tempo que olha o todoe vê as partes. Teremos, pois, de olhar o fenómeno e ver “o todo que está na parte que estáno todo”; ou seja, entre genes ou entre homens são determinantes as ligações, as relações,as conexões, os padrões de comportamento.

Aqui chegados, devemos então questionar: o que é que faz da liderança de Mourinho aliderança que ela é? Que relações, ligações, padrões são aqueles sobre os quais ela sefunda? Porque é que o conjunto dos 23 jogadores do Chelsea não seriam sempre, e sob aorientação de outro treinador ou noutras circunstâncias, a equipa que eles hoje são? Comoentender uma equipa de futebol composta por um número determinado de jogadores,treinadores, médicos, massagistas, dirigentes, etc.? Na nossa perspectiva, olhando o todo enão perdendo de vista as partes enquanto elementos constitutivos desse mesmo todo. Destaforma entendemos que uma equipa de futebol não são só os seus jogadores, mas também aforma como eles estão e são juntos: as suas ligações, comportamentos, relacionamentos,padrões de actuação, etc. Se olharmos apenas as partes chegamos à conclusão que, hoje,especialmente se nos enquadrarmos na alta competição, a matéria de que é feita uma equipa de futebol não é muito diferente de um para outro clube.

Os clubes estão em pé de igualdade a nível económico, estão estruturados basicamente da mesma forma, têm acesso à mesma informação e os seus profissionais são de topo, no entanto, elas são muito diferentes entre si. É por isso que, frequentemente, ouvimos ou lemos análises sobre equipas de futebol, que comparam os seus jogadores entre si e concluem que uns não são melhores do que outros, logo, que as equipas são basicamente de valor igual. Como explicar, então, que equipas como o Real Madrid, constituídas por jogadores “galácticos” expressão adoptada para referir que são os melhores do mundo, de “outra galáxia” – pouco ou nada consigam ganhar em termos de competição? Onde está então o valor das partes? A mais-valia encontra-se no todo que é superior e diferente da soma das partes. Porquê?

Porque como afirmou Wheatley (1999), citando Meadows, “[y]ou think because you understand one you must understand two because one and one makes two” (Meadows cit. Wheatley 1999: 10), no entanto, sob o prisma da complexidade “you must also understand and” (Meadows cit. Wheatley 1999: 10). Assim, as partes, em rigor, são também as conexões que se constituem, e aqui traduzidas pelo and. Esta perspectiva complexa obriganos a olhar as partes e o and como as suas relações e conexões, e é através destas que se compreende a mais valia do grupo relativamente às partes, ou seja, dependendo das conexões entre os seus elementos poderemos construir vários grupos essencialmente diferentes, mesmo que as partes sejam exactamente as mesmas.

São, pois, as conexões que fazem o todo ser aquilo que ele é, que lhe dão identidade e que o distingue dos demais. E onde se vai encontrar o valor do grupo, o que é a equipa? Justamente aos processos e aos padrões de trabalho, às ligações, às interacções, ao relacionamento entre os seus elementos, a todos os níveis. Por exemplo, Mourinho treina da forma mais aproximada ao jogo possível.

Ele treina o próprio comportamento colectivo dos jogadores como tal – isto é, os

relacionamentos, as ligações, o padrão global de actuação. Mourinho pretende desta formacriar automatismos, hábitos, repetições que se traduzam no campo; mas não só, aliás comojá vimos acima com o exemplo da não marcação individual para fortalecer a solidariedadedo grupo. Na nossa análise, numa perspectiva complexa, o que distingue a liderança deJosé Mourinho, o que faz hoje da sua equipa aquilo que ela é, tal como num ser vivo o sãoas relações entre os seus genes e não apenas os seus genes, também no Chelsea são também essas mesmas relações entre José Mourinho, a sua equipa técnica, os seus 23 jogadores e as várias estruturas do Chelsea FC. Essas relações podem ser analisadas a diversos níveis.

Parece-nos difícil e mesmo desapropriado qualquer tentativa de listar essas mesmas relações, conexões ou ligações como se de partes ou elementos se tratassem. Tal aproximação não se coaduna de facto com a perspectiva paradigmática que seguimos. Podemos, contudo, conforme à investigação que apresentámos até aqui, sugerir pelo menos duas vias, que temos utilizado, para analisar o todo que é a eficácia da liderança de José Mourinho.

Numa perspectiva de análise complexa do trabalho de José Mourinho, ou de qualquer outro comportamento humano, não se deve separar os seus diversos aspectos, isto é, não se deve entendê-lo através da sua divisão em partes e do estudo isolado destas. Antes pelo contrário, as partes, os aspectos, as dominantes devem ser estudadas e investigadas enquanto elementos ligados, relacionados e conectados com o todo que faz delas aquilo que elas são. Do nosso ponto de vista, mesmo as separações que acima referimos que José Mourinho não faz – entre o individual e o grupal, a vida profissional e a vida social dos jogadores, o físico e o mental, o emocional e o técnico, o técnico e o táctico, o jogo e o treino, etc. –, não devem ser vistas como dicotomias totalizadoras, nas quais o todo se esgota.

Cada uma dessas dicotomias é uma ‘parte’ que se relacionam com cada uma e todas as outras dicotomias também elas como ‘partes’ de um todo complexo. Por exemplo, o que se passa em campo relaciona-se com a vida social de cada um dos jogadores: a disciplina táctica fortalece uma disciplina global, por isso, também individual e relativa à vida social de cada um dos jogadores. No início da época de 2003/04 Mourinho desconfiou das consequências do sucesso atingido pelo FC Porto com a vitória na final da Taça UEFA.

Na época seguinte, com o mesmo grupo, sentiu a necessidade de incutir uma maior disciplina social nos seus jogadores, ou se quisermos, sentiu que os tinha de controlar mais fora do campo profissional (Lourenço 2004). A resolução do problema encontrou-a no campo de futebol. Conforme já descrevemos, nomeadamente no capítulo 1, Mourinho mudou o seu sistema de jogo de 4x3x3 para 4x4x2, uma forma de jogar que considera mais desequilibrada, embora igualmente eficiente, e que como tal necessita de maior concentração: “[a]cho que quem sentir necessidade de disciplina na sua equipa, em vez de ir à procura dos aspectos disciplinares nus e crus (a pontualidade, o rigor, etc.) deve ir antes pelo rigor táctico, pela procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu consigo uma disciplina global. Lá está, a partir da minha ideia de jogo e da sua operacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todas as minhas preocupações” (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).

O que faz do ser humano o tipo de ser que ele é, além da sua base genética estável, é a sua complexidade, são as relações entre os seus genes, entre os seus componentes. Assim, também numa equipa de profissionais, conforme à argumentação que vimos a apresentar, o que a faz a equipa que ela é, é o conjunto de relações, de ligações, de conexões entre os elementos que a compõem. Face à análise que desenvolvemos e ao material que apresentámos nos capítulos anteriores podemos identificar esses relacionamentos no plano da actividade grupal, da constituição, do funcionamento e desenvolvimento do grupo; no domínio das emoções, da empatia e das relações humanas entre os elementos da equipa; no domínio da cultura, isto é do tipo de padrões mentais, psicológicos, físicos, comportamentais; no plano da aprendizagem do jogo propriamente dito, em que se procura estabelecer padrões corporizados, fisico-mentais,

intuitivos e instintivos de actuação; e no domínio da liderança de Mourinho. Outros domínios poderiam ser referidos. No entanto os que citámos, conforme à investigação desenvolvida sobre fenómenos do género, constituem as principais dimensões de análise.

Vejamos então para cada uma dessas dimensões exemplos da criação, do estabelecimento edo acentuar de um relacionamento comportamental, de actuação, que faz das equipas deMourinho aquilo que elas são e, consequentemente, de cada um dos seus elementos oelemento que ele é enquanto parte desse mesmo todo.

Assim, no domínio da actividade grupal, veja-se a lógica de formação dos grupos liderados por José Mourinho sempre que inicia uma nova temporada. No FC Porto criou um grupo de raiz com uma determinada filosofia: pretendeu jogadores ambiciosos, ‘pobres’ e sem títulos ganhos. Chegou ao Chelsea e no seu terceiro ano já tinha jogadores ricos, ambiciosos e com títulos ganhos – tinha estrelas; então, para essa situação, contratou jogadores do mesmo plano. Mourinho pretendeu, quer num caso quer noutro, a homogeneidade para o seu grupo, a igualdade das partes, o equilíbrio do todo não permitindo, desta forma, o surgir de relações desequilibradas, já que todos estavam no mesmo plano.

No domínio das emoções recorde-se o encontro da Taça UEFA, no estádio das Antas, quando perdeu com o Panathinaikos, na primeira-mão da eliminatória. No final apelou emocionalmente aos seu jogadores, afirmando-lhes que a eliminatória ainda não estava perdida. Depois quis fazer uma demonstração global de confiança e disse-lhes que quem não acreditasse na vitória não iria jogar o encontro da segunda mão. Logo ali Mourinho criou laços, empatias, comprometimentos entre todos. Tratou-se de muito mais do que motivação; tratou-se de criar compromissos comuns, de genuinamente criar uma realidade nova, que eles e só eles, jogadores, poderiam fazer acontecer.

No domínio da cultura, por isso, da forma como tudo o que se pensa e se faz naturalmente nos surge, devemos realçar a possível existência de uma ‘cultura José Mourinho’, aliás espelhada de alguma forma nas palavras de Schevchenko, antes de chegar ao Chelsea (capítulo 7): “tenho um sistema táctico preferido e uma posição preferida para jogar, mas eu sei que este treinador [Mourinho] conseguiu tudo o que conseguiu porque a equipa está à frente de tudo, logo, nesta equipa estou disponível para aquilo que ele quiser”. Desta forma Schevchenko não só caracterizou a cultura José Mourinho como, com aquelas palavras, ele já estava a integrar-se no grupo, já estava a criar ligações, comprometimentos e a aceitar as regras e os entendimentos que existiam e que fazem daquele grupo o grupo que ele é.

No plano da aprendizagem individual e colectiva do jogo, do tipo de jogar que se projecta, Mourinho pretende igualmente criar laços fortes e conexões complexas. Para Mourinho, o treino é parte do jogo. No treino tenta-se recriar as condições do jogo real, criando contextos e situações para a concentração intensa, para o treinar nos limites de cada um e durante o mesmo tempo de um jogo. O treino não incide sobre aspectos separados do jogo: corrida, resistência, passe, remate, etc. O treino não treina as partes mas antes treina o todo. Treinando o jogo jogando, como um pianista treina o piano tocando piano, Mourinho visa preparar a equipa para o jogo, fazendo surgir condições de treino tão semelhantes quanto possíveis às condições reais, diminuindo assim a imprevisibilidade do jogo. Tudo é feito de forma integrada, complexa, porque como afirma Rui Faria (capítulo 8) “[no treino] nada é separado. Eu apresent[o] a questão como uma dimensão de complexidade porque na realidade quando vamos para o terreno tem de lá estar tudo”.

O método da descoberta guiada assenta obviamente numa epistemologia de complexidade. Não se trata apenas de fazer com que os jogadores façam o que Mourinho quer que eles façam porque o descobriram por eles próprios, e assim de algum modo se sintam comprometidos com aquilo em que participam, mas trata-se também, e de uma forma

fundamental, do facto de que para nós, seres humanos, o real é aquilo que criamos, é aquilo que fazemos acontecer e em que participamos (Weathley 1999).

Finalmente, no domínio da liderança a perspectiva da complexidade, ou se quisermos da liderança complexa, está bem patente através de noções como globalidade ou dominantes. Por exemplo, se num exercício a dominante for de concentração, situação que tende a colocar-se com maior acuidade antes dos jogos com equipas mais fracas, em que os jogadores têm por isso tendência a “facilitar”, Mourinho coloca-os então, em treino, perante exercícios de maior dificuldade e até de impossível resolução. Ao obrigar os jogadores a falhar, obriga-os a maiores índices de concentração, deixando-os menos confiantes. É assim que num treino tecnico-táctico Mourinho contextualiza actos de liderança como a motivação, a transmissão de confiança, a concentração dos seus jogadores.

Neste capítulo final da dissertação analisámos a liderança de José Mourinho, sob a perspectiva paradigmática da complexidade e à luz das teorias introduzidas nos capítulos anteriores. Tentando manter a coerência e a ligação constante entre os vários aspectos que aqui fomos tratando, iniciámos este capítulo com a complexidade; passámos em seguida à problemática das emoções, da empatia e da liderança; depois analisámos o trabalho e Mourinho à luz da investigação sobre o funcionamento dos grupos; e, por fim focámos a aplicação das teorias sobre liderança ao trabalho de Mourinho, para virmos agora a concluir este capítulo com uma final aplicação da perspectiva da complexidade, fazendo um apelo ao projecto do genoma humano. Cremos que esta investigação contribui, com a devida modéstia, para uma melhor compreensão do trabalho e da liderança de José Mourinho. Manuel Sérgio afirmou (Lourenço 2003) que “Mourinho é um treinador novo para um futebol novo” (Lourenço 2003: prefácio) e que ficaria à espera que o tempo lhe desse razão (Lourenço 2003). Nos últimos cinco anos, Mourinho já conquistou uma Taça UEFA, uma Liga dos Campeões, dois campeonatos portugueses, e dois campeonatos ingleses, para além de inúmeros prémios pessoais. O tempo tem vindo a dar razão a Manuel Sérgio.

Por nós, afirmamos agora nesta dissertação que Mourinho é diferente e que essa diferença, paradigmática e metodológica, se relaciona, em parte pelo menos, com o sucesso que tem atingido. Pela primeira vez um treinador de futebol operacionaliza a perspectiva da complexidade na sua actividade profissional. Trata-se de um desenvolvimento que rotulamos de muito importante porque o que aqui está em causa não diz respeito apenas ao futebol. Respeita à liderança de equipas de profissionais, como nesta investigação procurámos defender. Mas diz também respeito a muito mais; diz respeito ao Homem, ao que o homem é e ao que o homem faz no mundo, na sua vida profissional, na sua vida social.

O trabalho de José Mourinho, demonstrando um equilíbrio notável entre a teorização e a aplicação prática, focando e desenvolvendo-se sobre um vaivém constante entre a teoria e a prática, aquilo que o actual treinador do Chelsea chama sistematização, quanto a nós constitui-se já como um marco do percurso do paradigma da complexidade nas ciências sociais e humanas. Trata-se da perspectiva paradigmática que modelou esta investigação, e que, para mais do que entender o futebol, a liderança, ou o funcionamento de uma qualquer empresa ou organização, deve também servir-nos, a nós homens para, vendo a parte que está no todo que está na parte, olharmos o Homem que está nos homens que estão no Mundo.

CONCLUSÃO

A investigação que apresentámos sobre a liderança no trabalho de José Mourinho, cuja análise e conclusões substantivas foram apresentadas no Capítulo 9, foi efectuada sob a perspectiva da complexidade. Neste âmbito ao longo desta dissertação aplicámos ao nosso objecto de investigação desenvolvimentos teóricos que nos pareceram relevantes, e que nessa qualidade foram justificados, para o estudo do caso José Mourinho. Seguindo este princípio referimos, então, além de noções várias da área da complexidade e de algumas aproximações ou

desenvolvimentos que nos pareceram importantes, como o projecto do genoma humano e teorias de Heidegger, de Prigogine e de Manuel Sérgio, entre outros, diversas outras teorias sobre os fenómenos da liderança e da dinâmica de grupos, bem como sobre a inteligência emocional. Para além disto, e porque esta investigação incide sobre um case study concreto, entrevistámos José Mourinho e o seu principal adjunto, Rui Faria.

No Capítulo 9 desta dissertação apresentámos a nossa análise, em detalhe, ou seja avaliámos o caso de estudo em causa à luz do corpus teórico introduzido previamente, e articulámos as conclusões que resultaram da investigação. A liderança de José Mourinho foi analisada de dois modos diferentes. Primeiro, e utilizando a terminologia do próprio José Mourinho, focámos dominantes na sua liderança, ou seja, analisámos e confrontamos o seu trabalho com cada um dos blocos teóricos apresentados anteriormente: aplicámos a perspectiva da complexidade à acção de Mourinho; justificámos na prática porque é que Mourinho é um líder emocionalmente inteligente; fizemos também a ponte entre teorias sobre a dinâmica de grupos e a importância que estes assumem no trabalho conceptual e prático de José Mourinho; finalmente relacionámos a liderança de Mourinho com diversas das mais relevantes teorias apresentadas sobre o fenómeno em causa ao longo das últimas seis décadas.

Concluímos o capítulo com uma análise global da liderança de Mourinho e com uma indicação das principais ideias fortes que resultam desta investigação. Quanto à análise global tentámos integrar, através de exemplos práticos, os vários aspectos que anteriormente referimos – a liderança, os grupos, as emoções – enfatizando as ligações e relações entre eles. Mais do que não separar procurámos unir e contextualizar toda a nossa análise.

Quisemos olhar a floresta e ver as árvores e ao mesmo tempo que vimos as árvores e quisemos olhar a floresta. Desta forma apelámos de novo ao projecto do genoma humano, enquanto exemplo ilustrativo das insuficiências que podem resultar do pensamento reducionista e, por esta via, dos caminhos que se podem abrir no âmbito de um pensamento complexo. Finalizámos o Capítulo 9 apresentando os resultados desta investigação que não só nos parecem ser mais ilustrativos como nos parecem ser também passíveis de ser apresentados, cada corolário, sinteticamente em poucas linhas. Trata-se, possivelmente, de ideias que marcam esta investigação, algumas delas são originais de José Mourinho outras são sugestões nossas, outras ainda são noções consagradas que se aplicam a este caso com especial pertinência.

A análise do Capítulo 9 assenta em boa parte na aplicação de teoria às entrevistas, apresentadas nos capítulos 7 e 8, a José Mourinho e a Rui Faria. Quisemos confrontar um conjunto de tópicos importantes para a investigação com dois pontos de vista diferentes: a perspectiva do líder (José Mourinho) e a perspectiva do liderado (Rui Faria). Seguimos a mesma metodologia em ambas as entrevistas. Tratou-se de duas entrevistas semiestruturadas com a mesma sequência temática e os mesmos ângulos de abordagem.

Confrontámos Rui Faria e José Mourinho com questões sobre as teorias da complexidade, com a liderança e com o funcionamento dos grupos, com a cultura organizacional, com as emoções, a auto-consciência, a aprendizagem e a interacção inter e intra-grupal. Estas duas entrevistas devem ser entendidas como discussões exploratórias, que resultaram em parte do material apresentado nos capítulos teóricos anteriores, visando contextualizar a análise apresentada no capítulo 9. Esta análise assenta assim, fundamentalmente, em material apresentado nas entrevistas acima referidas, bem como na informação do capítulo 1, onde demos a conhecer, em traços gerais, José Mourinho. Nesse capítulo apresentamos Mourinho numa perspectiva global, através de exemplos marcantes da sua vida profissional e que espelham, tanto quanto possível, a sua personalidade e modo de actuação. Procurámos, igualmente através de exemplos, caracterizar a imagem pública de Mourinho bem como o seu trajecto profissional que o guindou do quase anonimato até à fama a nível mundial.

Esta análise apresentada no Capítulo 9, focando essencialmente o material apresentado nos capítulos 1, 7 e 8, é cientificamente suportada pela teoria apresentada nos capítulos 2, 3, 4, 5 e 6, respectivamente sobre complexidade, inteligência emocional, dinâmica de grupos, e liderança. No capítulo 6, e revendo a nossa base teórica do mais especifico para o mais geral, procurámos saber o que de mais relevante estava a ser investigado na actualidade sobre temáticas directamente relevantes para o nosso objecto de estudo: a complexidade e a liderança, e a complexidade e a inteligência emocional.

No Capítulo 5 fizemos a revisão das teorias sobre liderança. Na nossa exposição considerámos a relevância para o nosso objecto de investigação bem como a evolução cronológica dos estudos sobre liderança. Este capítulo culmina com as teorias neocarismáticas, precedidas pela apresentação das teorias contingenciais, das teorias comportamentais, e das teorias sobre os traços de personalidade do líder. Tentámos, desta forma, apresentar uma panorâmica geral da evolução dos estudos sobre liderança desde a década de 40 até aos nossos dias, ao mesmo tempo que procurámos também aprofundar noções importantes para o nosso estudo.

No Capítulo 4 focámos a temática dos grupos. Nunca perdendo de vista a perspectiva da complexidade e as suas relações com a temática em causa, aprofundámos a noção de grupo, a sua formação, evolução e manutenção. Estes conceitos, à luz de uma perspectiva complexa, foram integrados e relacionados com outros conceitos da esfera individual, como o de elemento de um grupo, o de papel num grupo, o de tarefa, entre outros. Para isto socorremo-nos de diversas teorias apresentadas nas últimas décadas em diversas áreas do conhecimento como a sociologia ou a teoria organizacional.

No Capítulo 3 estudámos a inteligência emocional. Através dos estudos de Goleman e também dos de Damásio, referimos que nós, homens, não decidimos, não optamos, não vivemos sem emoções. Considerámos que esta constatação é altamente pertinente para o estudo da liderança. Os líderes têm que ser os primeiros a lidar com as emoções, suas e dos outros. Introduzimos a noção de liderança primal e o conceito de domínio da inteligência emocional e de estilos de liderança emocional. Iniciámos o capítulo com um caso prático apresentado por Damásio, o qual ilustra bem a forma como as emoções são essenciais na nossa vida em sociedade, não podendo levar uma vida normal sem vivermos emocionalmente. Foi desta forma que, sem esquecer a perspectiva da complexidade que enquadra toda a investigação, abordámos e cruzámos a teoria com a prática, ou seja, a teoria da inteligência emocional com a actuação de José Mourinho enquanto líder.

O Capítulo 2 forneceu-nos a base teórica primeira e fundacional de toda a investigação. A acção profissional de José Mourinho aponta de uma forma muito vincada para as teorias da complexidade. Terminámos este capítulo referindo Manuel Sérgio e a sua teoria da motricidade humana, fazendo a ligação daquela ao trabalho de José Mourinho enquanto líder de uma organização desportiva. Aqui e ali, quando nos pareceu pertinente e acrescentar valor, socorremo-nos de Heidegger (1962), cuja obra, quanto a nós, pode ser encarada como uma semente daquilo que mais tarde viria a ser a perspectiva da complexidade na acção humana. Focámos o projecto do mapeamento do genoma humano visando compreender melhor não só os limites do reducionismo positivista como também o alcance da complexidade.

No capítulo citamos sobretudo Edgar Morin, e marginalmente pensadores que ajudaram à fundamentação directa das ideias de Morin, como por exemplo, Prigogine e a sua teoria sobre os sistemas dissipativos, e Bertalanffy e o pensamento sistémico, entre outros.

Foi desta maneira, complexa, diríamos nós com a devida modéstia, que de uma forma global e relacional realizámos a investigação que agora apresentamos. Temos esperança que se trate de um contributo interessante tanto para a compreensão da liderança, um fenómeno tão relevante para a sociedade de hoje, como para o entendimento em profundidade de um caso que

se constituiu numa das maiores histórias de sucesso da actualidade mundial, a do português José Mourinho.