Case Study_Café_Thais Buarque

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SLOW COFFEE O perfil dos consumidores da terceira onda do café Preparado por Thais Manoela Buarque Corrêa, da ESPM-RJ. 1 Recomendado para as disciplinas de: comportamento de consumo, antropologia do consumo e pesquisa qualitativa. Resumo O mercado de cafés está passando por transformações em meio a movimentos de consumo responsável e à valorização do prazer gastronômico. Recentemente, uma nova forma de apreciação do produto, que passa pela origem e processo de produção do mesmo tem atraído um número crescente de adeptos à chamada “terceira onda” do café. O presente estudo visa investigar quem são os consumidores desse nicho e quais valores orientam suas escolhas de consumo. Palavras-chave Cafés especiais, terceira onda, slow food, comportamento de consumo, sustentabilidade. Julho/2016 1 Este caso foi escrito inteiramente a partir de informações cedidas pela indústria pesquisada e outras fontes mencionadas no tópico "Referências". Não é intenção do autor avaliar ou julgar o movimento estratégico da indústria em questão. Este texto é destinado exclusivamente ao estudo e à discussão acadêmica, sendo vedada a sua utilização ou reprodução em qualquer outra forma. A violação aos direitos autorais sujeitará o infrator às penalidades da Lei. Direitos Reservados ESPM.

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SLOW COFFEE

O perfil dos consumidores da terceira onda do café

Preparado por Thais Manoela Buarque Corrêa, da ESPM-RJ.1

Recomendado para as disciplinas de: comportamento de consumo, antropologia do

consumo e pesquisa qualitativa.

Resumo

O mercado de cafés está passando por transformações em meio a movimentos de consumo

responsável e à valorização do prazer gastronômico. Recentemente, uma nova forma

de apreciação do produto, que passa pela origem e processo de produção do mesmo tem

atraído um número crescente de adeptos à chamada “terceira onda” do café. O presente

estudo visa investigar quem são os consumidores desse nicho e quais valores orientam

suas escolhas de consumo.

Palavras-chave

Cafés especiais, terceira onda, slow food, comportamento de consumo, sustentabilidade.

Julho/2016

1 Este caso foi escrito inteiramente a partir de informações cedidas pela indústria pesquisada e outras fontes mencionadas no tópico "Referências". Não é intenção do autor avaliar ou julgar o movimento

estratégico da indústria em questão. Este texto é destinado exclusivamente ao estudo e à discussão

acadêmica, sendo vedada a sua utilização ou reprodução em qualquer outra forma. A violação aos

direitos autorais sujeitará o infrator às penalidades da Lei. Direitos Reservados ESPM.

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APRESENTAÇÃO

O café está presente nos lares brasileiros há quatro séculos. Além de abastecer o mercado

nacional, a exportação para diversos países fez com que a indústria recebesse um alto

investimento, o que se traduziu em reconhecimento internacional. O café brasileiro é

considerado um dos melhores do mundo. No entanto, o que poucos sabem é que o café

que é exportado não é igual ao que fica. Os grãos selecionados para exportação são

geralmente superiores, e o brasileiro se acostumou com um café que ainda não está no

seu melhor.

A história do café como bem de consumo é categorizada em três fases, ou “ondas”. Na

primeira onda, após a segunda guerra mundial, o café ganhou mais distribuição e tornou-

se um produto massificado. Em seguida, o período conhecido como a segunda onda se

deu com a chegada das cafeterias “premium”, principalmente a Starbucks, explorando

novos sabores, misturas e formatos, como as cápsulas. A característica mais marcante

dessa “onda” é a experiência social de se tomar café e os valores a ela agregados.

Atualmente, prolifera-se lentamente a terceira onda do café: na qual valoriza-se a

sustentabilidade do processo de produção, o comércio justo e transparente e a qualidade

do produto final. A terceira onda caminha lado a lado com o movimento Slow Food e as

tendências apontadas pelo Marketing 3.0, sendo a junção de uma preocupação com o

meio ambiente, com o bem-estar social e a desaceleração do consumo: descartando o que

é excesso e valorizando a produção local.

Este estudo de caso se propõe a investigar o perfil dos consumidores de cafés especiais:

comportamento, desejos e hábitos de consumo, bem como os valores que os levam a

investir em produtos mais caros e conscientes. A partir de um estudo com inspiração

etnográfica online e off-line e pesquisa qualitativa com consumidores e peritos, será

possível diagnosticar comportamentos em comum entre o público de terceira onda e traçar

o seu perfil. O estudo almeja, ainda, descobrir se a terceira onda seria um “mindset” de

consumo, indicando que o comportamento seja replicado para outros segmentos, tais

como moda e turismo, à medida que o consumo responsável continue seu crescimento.

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ELEMENTOS CONTEXTUAIS

O Mercado Brasileiro de Café

A indústria do café no Brasil movimenta bilhões de reais. Além do tradicional moído, a

Associação Brasileira da Indústria de Café afirma que o consumo de café em cápsulas

está em forte ascensão, contabilizando uma alta de 34,61% entre 2014 e 2015. Nos

últimos dez anos, o crescimento foi de 19 milhões para R$1,4 bilhão, segundo o Bureau

de Inteligência Competitiva do Café. A previsão é de que o setor movimente mais de

R$20 bilhões até 2019. O desenvolvimento intenso se dá pela quebra de patente da

Nespresso, abrindo espaço para novos players na produção de cápsulas. No entanto, a

Abic lembra que a cápsula ainda é pouco consumida nos lares brasileiros, nos quais a

preferência é pelo café torrado e moído, representando 81% do consumo2. Atualmente, a

3 Corações SA domina o mercado com 20,5% de participação, seguida pela Sara Lee

Cafés do Brasil com 17%, detentora da marca Pilão, e Nestlé com 10,5%

(EUROMONITOR, 2016).

O Movimento Slow

O movimento Slow Food surgiu na Itália em 1986, quando Carlo Petrini se opôs à

inauguração de um restaurante fast-food no centro histórico de Roma. Na época, o italiano

iniciou o movimento que valoriza a comida artesanal, a degustação com calma e a

responsabilidade no processo de produção3. De acordo com o movimento, o alimento

deve ser bom, limpo e justo: de boa qualidade, produzido de forma legal e sem prejudicar

o ambiente, e de modo que os produtores recebam um valor equitativo pelo seu trabalho.

Apesar de existir há décadas, a filosofia slow começou a ganhar mais força nos últimos

anos, devido aos avanços da tecnologia e consequente aceleração do cotidiano, na qual o

tempo se tornou escassez. O movimento slow hoje vai além da comida, abrindo vertentes

como slow travel, slow cities, slow fashion, slow school e, dentro do guarda-chuva de

slow food: slow coffee. A filosofia slow é concomitante à crescente conscientização da

sociedade em relação ao excesso que produzimos, seja de lixo, de informação, de desejos

ou necessidades. Hoje, observamos uma tendência à condenação do superficial, do rápido

2 Disponível em: http://www.icafebr.com.br/publicacao2/84030Relatorio%20v5%20n1.pdf; acesso em

jun. 2016. 3 Disponível em: www.slowfoodbrasil.com/slowfood/filosofia; acesso em jun. 2016.

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e efêmero. O valor da experiência está na sua profundidade, na imersão no momento, na

lenta degustação de uma xícara de café.

As Ondas do Café

O consumo de café é categorizado por ondas, segundo o Bureau de Inteligência

Competitiva do Café. A primeira onda foi impulsionada pelo investimento na produção

em massa após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o Bureau, o café virou commodity

graças à energia que proporcionava. Nesse período, a distribuição em escala mundial era

o foco, e o produto era “mais consumido do que apreciado” (2012, p.3)4. O café de

primeira onda era de baixa qualidade, o que não fazia diferença na época pois o produto

era valorizado pelo seu efeito, e não o sabor. O café começou a fazer parte de um ritual

diário de consumo nos lares e locais de trabalho.

Na segunda onda, começou-se a explorar diferentes formas de cultivar, colher e torrar o

grão. A chegada das cafeterias de “specialty coffee” como a Starbucks iniciou o processo

de descomoditização do café, introduzindo novos blends de Arábica aos consumidores

que antes eram acostumados com o grão Robusta (Conillon), que costuma ser mais

amargo e barato. Espresso, latté, machiatto e capuccino foram termos que ganharam

espaço no mercado de cafés, em decorrência do preparo em máquina popularizado pela

segunda onda. Cafeterias como a Starbucks mudaram a forma de se consumir café. Se

antes existia apenas a casa e o trabalho, a cafeteria surgiu como um espaço alternativo

para socialização e experiência de café.

Enquanto a primeira onda foi marcada pela disponibilidade do café e a segunda pela

descoberta de novas experiências de consumo, a terceira onda abre um leque totalmente

novo de possibilidades. Trata-se da “vinificação do café”, na qual o processo de cultivo,

o terroir (características do clima e solo), a origem do grão e os métodos de torra,

moagem e extração são elementos cruciais para o resultado final.

Os vinhos se distinguem uns dos outros e são mais valorizados de acordo

com a variedade da uva, a região produtora e especificidades do

processamento. É exatamente isso o que querem as indústrias de torrefação

e produtores com o mercado de cafés especiais: revelar aos consumidores

que a bebida café vai muito além do aroma e da cor, pois oferece, no sabor,

graus diferenciados de acidez, doçura, amargor e corpo. Como se os cafés

brasileiros variassem numa escala similar à que vai de um vinho branco leve

a um tinto mais encorpado. (TEIXEIRA apud MARTINS, 2015, p. 5)

4 Disponível em: https://issuu.com/educesar/docs/terceira_onda; acesso em jun. 2016

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O café então, começa a ser apreciado pelo seu sabor e método de produção. Na terceira

onda, valoriza-se a sustentabilidade do cultivo e o comércio justo, sendo então um

movimento que faz o caminho inverso da massificação. Para esse nicho de consumidores,

diversos aspectos afetam o resultado do café que consomem, e, consequentemente,

influenciam a valorização que eles dão a determinadas torras ou grãos. Nas embalagens

de café terceira onda, é comum encontrar a descrição do processo utilizado, em que

fazenda o grão é plantado e às vezes até o nome do produtor. A origem torna-se uma

espécie de pedigree do café especial. O mesmo grão pode ser preparado de diversas

formas, moído mais fino ou mais grosso, preparado na cafeteira italiana, coado no filtro

Hario, feito na prensa francesa ou aeropress. Os diferentes métodos de extração, a espera

pela temperatura perfeita para não queimar o pó – tudo isso requer bastante conhecimento

e cuidado, desde à plantação até chegar na xícara.

Barista: o sommelier do café

Atualmente, cursos de barista (especialista do café) multiplicam-se pelas grandes cidades,

assim como eventos de competição para premiar a melhor xícara. Esses cursos são

procurados não só pelos que pretendem trabalhar com a bebida, mas também por

apreciadores que gostariam de saber preparar o seu café de formas diferentes e

experimentar sensações diversas.

O interesse pela pluralidade do café também se vê refletido na existência dos clubes

especializados. Com o advento da tecnologia, a distribuição do café especial cresce e se

diversifica, assim como a disseminação do conhecimento sobre o tema. No Brasil,

existem assinaturas de clubes de café, possibilitando ao assinante receber em casa

diferentes cafés especiais mensalmente, e, assim, aventurar o paladar.

Figura 1: Banner para e-commerce de café

Fonte: www.haveacoffee.com.br

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Mais do que uma paixão, o café hoje também é um hobby. A bebida carrega uma gama

de significados subjetivos, os quais ajudam a criar uma diferenciação em grupos sociais.

É importante frisar que uma “onda” não acaba quando a outra começa, as três convivem

simultaneamente e atendem a consumidores diferentes. Neste estudo, exploraremos o

terroir do nicho terceira onda para descobrir quem é o “geek do café”: quais são os seus

valores, influências e hábitos de consumo.

FATOS

Com o objetivo de colher insumos a serem aprofundados no estudo, foi feita uma pesquisa

exploratória com inspiração netnográfica acerca do mundo do café, antes mesmo de se

iniciar uma leitura teórica sobre o tema. Em seguida, dados secundários sobre o consumo

de café foram obtidos através de artigos e pesquisas de consumo da categoria. Após essa

fase, a pesquisadora frequentou eventos de café e cafeterias que utilizam métodos

“terceira onda” de extração no Rio de Janeiro. Essa observação-participante fez com que

a pesquisadora levantasse hipóteses sobre o perfil de consumidores de café terceira onda,

fundamentados sob a perspectiva de Carl Honoré (Movimento Slow) e Pierre Bourdieu.

Por fim, as hipóteses foram testadas através de entrevistas com consumidores e peritos.

A fase exploratória do estudo, na qual utilizou-se o método inspirado em netnografia,

permitiu uma observação do discurso utilizado por amantes do café e principalmente a

forma como eles costumam expor seus momentos de consumo na internet. Essa técnica

foi escolhida para evitar um olhar enviesado já informado sobre o tema, viabilizando uma

diagnóstico prévio sobre os hábitos de consumo do público em questão. Já que, de início,

este estudo não contemplou um grupo de participantes específico, foram considerados a

priori os amantes de café no Instagram; os quais se declaram através da hashtag

“#coffeelover”.

A hashtag foi utilizada como ponto de partida para detectar comportamentos em comum

entre consumidores de terceira onda e analisar como eles se diferem ou se assemelham

aos de segunda onda. A pesquisadora já possuía a informação de que, dentro do conceito

das ondas, os consumidores da segunda costumam tomar café de sabores diferentes, sendo

frequentadores de cafeterias como a Starbucks, e consumindo cafés em cápsulas dentro

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ou fora de casa. A terceira onda, por sua vez, seria um público atraído por grãos especiais

de café e detentor de conhecimento sobre diversos métodos de extração.

A observação do contexto utilizado nas fotos do Instagram que continham a hashtag fez

com que a pesquisadora pudesse descobrir os locais onde o café era consumido por quem

postou, sendo por vezes cafeterias especializadas ou até mesmo em casa. A partir dessa

informação, a conta de Instagram da cafeteria também foi explorada, permitindo uma

análise do discurso que atrai o consumidor, bem como da estética visual que compõe as

fotos. Assim, foi feita uma separação dos elementos relacionados a cada grupo,

culminando em duas descrições.

O consumidor de segunda onda

Hiper-conectado, esse consumidor valoriza experiências de consumo memoraveis,

personalizadas e principalmente fotografaveis. Mais importante do que o produto são os

significados agregados. Legendas como “faça para o ‘gram’” e comentarios como “as

coisas que fazemos pelo ‘gram’” indicam uma preocupação com a produção estética da

foto, o que aparenta afetar diretamente as escolhas de consumo.

Figuras 2 e 3: Imagens de momentos de consumo “apple and coffee”

Fonte: Instagram @appleandcoffee

Para esse consumidor, ir a um café é uma experiência social, mesmo quando está sozinho.

Apesar de se interessar pelos diferentes sabores de café, a praticidade da cápsula ou de

comprar o café pronto e customizado parece ser um forte atrativo. Esse consumidor

aparenta dar bastante valor a experiências gastronômicas, e mais ainda quando elas são

esteticamente agradáveis.

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O consumidor de terceira onda

Simpatizante do movimento Slow Food, o consumidor de terceira onda leva a importancia

da personalização da experiência um passo adiante. O processo de produção do seu café

importa, desde o cultivo do grão até chegar à xícara. Esse consumidor gosta de explorar

diferentes métodos e sabores e exige que o comércio seja justo. Mais do que espectador,

ele se sente co-produtor do seu café e abriria mão da praticidade em nome do frescor e

naturalidade do produto final.

Figura 3: Posts sobre a importância do grão e de acompanhar o processo

Fonte: Instagram: @citygirlcoffee

A página @citygirlcoffee ressalta em sua comunicação a importância de se saber a origem

do café, de se ter um processo sustentável e um propósito. A marca comunica seu

compromisso com produtoras mulheres, configurando um café que defende uma causa

social: o empoderamento das mulheres.

Figura 4: Post sobre a origem e propósito do “City Girl Coffee”

Fonte: Instagram: @citygirlcoffee

O “café com propósito” é reflexo de uma forte tendência de comportamento: a de

consumo responsável e sustentável. Ao discutir tendências do consumo alimentar, a

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antropóloga Lívia Barbosa ressalta o teor político que rege as escolhas e influencia as

definições de gosto.

A alimentação e o comer transformaram-se nas últimas décadas. Passaram de

um ato concebido pelas pessoas como sendo da esfera das preferências

individuais e privadas – do “meu” gosto e do “meu” direito de escolha – a um

comportamento com conseqüências diretas na esfera pública. Desse modo,

suscitaram reações das mais diversas e virulentas e, também, provocaram a

organização de pessoas em torno de temas relacionados à alimentação, como

é o caso do slow food e do comércio justo, entre outros (BARBOSA apud

Poggio; Marins de Sá, 2006; Silva, 2005; Wilkinson, 2006).

O gosto, então, é muito mais complexo do que parece. Além de ser um ato político, é

uma construção cultural, social e econômica. Ao realizar uma observação participante

durante o estudo, percebi que isso também se aplica aos cafés especiais.

A Distinção – um relato pessoal

Quando soube que haveria um evento sobre cafés em uma cafeteria “terceira onda” do

Rio de Janeiro, não hesitei. Essa era uma ótima oportunidade para descobrir um pouco

mais sobre esse assunto e observar as pessoas que se interessam pelo produto e seus

valores agregados.

O evento ocorreu através de dois ciclos. No primeiro, havia uma mesa com grãos

distintos. O barista explicava a diferença entre eles, os fatores que influenciam no cultivo

e características como a durabilidade e doçura natural. Ele explicou que os cafés mais

conhecidos geralmente são feitos de uma mistura dos grãos, contendo uma proporção

maior do grão inferior (conilon), que é mais amargo e mais barato do que o arábica e

possui mais cafeína. No segundo ciclo, tivemos a oportunidade de provar as diferenças

entre o café Pilão, o Melitta tradicional e o café próprio da cafeteria – em ordem de

“grandeza”. Os cafés eram coados ao mesmo tempo na nossa frente, e o choque começou

pelo aroma. Eu pensava que gostava do cheiro do café normal, mas descobri que não é

nada comparado ao café especial, 100% arábica e recém-moído. Ao provar o Pilão

primeiro, sem açúcar, a rejeição já era esperada, pois costumo tomar o meu café bem

doce. No entanto, pude perceber a diferença no sabor entre os três cafés e como eles iam

ficando gradualmente mais adocicados a cada degustação. O café superior poderia ser

tomado sem açúcar, o que para mim era impensável. Após algumas xícaras, percebi que

era questão de treinar o paladar.

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À medida que eu degustava os cafés, observava as reações dos outros consumidores:

“ainda tenho meio quilo de Pilão em casa! E agora? Não vou conseguir mais! ”, exclamou

um deles. Pensei o mesmo: agora vai ser difícil tomar café “normal” (e tem sido). Voltei

para e primeira mesa e observei outro grupo passando pela “aula” sobre os grãos. O

barista, dessa vez, comentava sobre as diferenças nas nuances do sabor. “Quando

cultivado com mais elevação, esse aqui pode produzir ácido málico, o que faz com que

ele tenha uma nota de maçã verde. ” O rapaz que estava ao meu lado entendia

perfeitamente essas relações com a música, as “notas” e “acordes” que descrevem o sabor,

e inclusive dialogava através de associações com o vinho. Eu, que nunca tinha ouvido

esse tipo de comparação e não sabia sobre vinhos, perguntei: “mas como assim fica com

gosto de maçã? ” O outro rapaz explicava que era uma analogia sobre a reação do nosso

paladar, e não do sabor. Que o sabor produz uma memória sensorial, assim como o aroma,

e nos remete a outras sensações. Foi nesse momento que eu me lembrei de Pierre

Bourdieu. Eu, que já viajei bastante e que há muito tempo me interesso por arte,

simbolismos e analogias, me senti desprovida do capital cultural necessário para entender

aquele mundo; assim como Bourdieu descreve em sua obra maestra “A Distinção” (2007).

Percebi, então, que a riqueza cultural que possuo em relação a outros temas não me

ajudava muito nesse quesito. Concluí que um conhecimento prévio sobre vinhos, cervejas

e afins poderia me servir como ferramenta para navegar mais facilmente na terceira onda

do café – o que eu viria a investigar na fase seguinte, através de entrevistas com seis

consumidores e três especialistas.

A Força do Habitus

Atualmente, a classe social ainda é erroneamente utilizada para prever gosto e estilos de

vida de determinados públicos-alvo. Consumidores são encaixotados com base em dados

principalmente demográficos e econômicos, o que é bastante limitado. À luz de Pierre

Bourdieu, podemos perceber que diversos fatores influenciam o gosto e estilo de vida.

Neste estudo, focaremos na integração entre o capital econômico, social, cultural e

simbólico, que juntos formam o habitus: “sistema de disposições duraveis e transponíveis

que, integrando experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de

percepções, apreciações e ações” (BRUBAKER apud BOURDIEU, 1985. p. 760).

Resumidamente, o autor propõe que as nossas vivências e experiências obtidas no berço

familiar e através das relações sociais, juntamente com o nosso poder aquisitivo e o

prestígio dado a certos conhecimentos, influenciam os nossos interesses e ajudam a

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compor o gosto. Neste estudo, usaremos esse conceito para entender o habitus como força

motriz no avanço dentro da terceira onda do café.

[...] os poderes sociais fundamentais são: em primeiro lugar o capital

econômico, em suas diversas formas; em segundo lugar o capital cultural, ou

melhor, o capital informacional também em suas diversas formas; em terceiro

lugar, duas formas de capital que estão altamente correlacionadas: o capital

social, que consiste nos recursos baseados em contatos e participação em

grupos e o capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital

toma uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos. (SILVA apud

BOURDIEU, p. 25, 1995)

Para Bourdieu, o capital cultural pode ser incorporado ou institucionalizado. O

incorporado é o conhecimento adquirido através da família, incentivado por ela ou

suscitado pelas vivências e oportunidades obtidas. O institucionalizado é o capital cultural

aprendido em instituições oficiais, como a escola. Esse conhecimento prévio faz com que

seu detentor possa caminhar a passos mais largos em comparação com quem não possui

essa vantagem.

Capital cultural indica acesso a conhecimento e informações ligadas a uma

cultura específica; aquela que é considerada mais legítima ou superior pela

sociedade como um todo [...] A esse tipo de cultura só terão acesso indivíduos

que desenvolverem um esquema de apreciação necessário para tal. (SILVA

apud BOURDIEU, p. 27)

Em relação ao café, temos como exemplo o capital incorporado de Maria Teresa, dentista

e também produtora de café em Minas Gerais. Apesar de nunca ter recebido instrução

oficializada sobre o cultivo e preparo do café, ela herdou esse conhecimento de forma

natural através da sua família, que já está no ramo há cerca de sessenta anos.

Quando eu nasci, eu morava nessa fazenda (onde cultiva café). A minha casa

devia ter uns cinco cômodos. Um deles era para guardar café. Então eu brinco

que já nasci cheirando a café. A minha mãe, quando estava grávida de mim, já

comprava café e negociava.... Então faz parte da minha vida desde que eu

estava no útero. Meu avô foi pioneiro na região. (Entrevista, Maria Teresa

Mendes, 2016)

“Maitê” disse que sabe reconhecer um bom café pelo sabor, mas que precisaria de um

curso para entender bem as especificações. Ela sabe diferenciar se um café está mais

amargo ou mais suave, por exemplo, e consegue identificar se o grão é do cerrado mineiro

ou das montanhas do Espírito Santo, mas não saberia explicar como. Caso decida fazer

um curso para se especializar, Maitê terá uma grande vantagem em comparação com

quem não tenha capital cultural incorporado acerca da produção e cultivo do café.

Ricardo, barista do Espírito Santo, descobriu o café especial em 2013 e desde então não

parou de se especializar. Ele adquiriu seu capital cultural (institucionalizado) sobre café

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através de um curso de barista e de pesquisas que realiza para aprimorar o conhecimento.

Ao discutir as similaridades entre café e vinho, Ricardo demonstra seu capital cultural

institucionalizado através de termos mais técnicos:

Assim como o vinho, o café especial é muito complexo e conseguimos

identificar várias notas sensoriais diferentes em grãos cultivados em diferentes

lugares do mundo. Podemos inclusive diferenciar grãos plantados na África

(Etiópia e Kenya por exemplo) de grãos plantados na América Central. Isso

por causa de vários fatores como terroir, clima, altitude, umidade, etc. Todos

esses fatores podem diferenciar as uvas utilizadas na produção do vinho. Já

temos inclusive projetos para fazer selos de indicação geográfica para cafés

plantados no Espirito Santo, que têm uma complexidade única não encontrada

em outros lugares no Brasil, da mesma forma que é feita com selos de

indicação geográfica para vinhos de uvas de Bordeaux, por exemplo.

(Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)

A partir do conceito de capital cultural, podemos traçar um paralelo com o público que

se interessaria pelas especificações do café. Alguém que já fez um curso de sommelier de

vinhos, por exemplo, teria mais facilidade e provavelmente interesse em entender o café

especial quando descobrir que ele existe. Paula Oliveira, de São Paulo, afirmou em sua

entrevista que fez o curso por conta da sua profissão (professora de gastronomia) e por

interesse pessoal, e depois disso começou a estudar informalmente o café e a cachaça.

O capital social não deixa de ser relevante, visto que o café é culturalmente repleto de

associações afetivas de momentos sociais, seja em família, entre amigos ou no trabalho.

Na terceira onda, conhecer especialistas ou amantes de café é um meio de obter

conhecimento, discutir modos de preparo e preferências. Israel, consumidor do Rio de

Janeiro, descreve o café como “uma desculpa gostosa para bons relacionamentos. ” Ele

descobriu o café especial através de amigos em uma cafeteria: “aprendi a apreciar a

bebida frequentando o Curto Café. Eu diria que as pessoas e interações de lá foram

definidoras do meu interesse, não era mais uma relação de consumo, era um

relacionamento transparente com o café como coadjuvante. ”

Para o barista Ricardo, o capital econômico é bastante importante nesse meio. O café

especial é mais caro e o conhecimento sobre seus diversos métodos de extração faz com

que o consumidor se torne mais exigente, o que resulta em um alto investimento:

Eu acredito que a condição financeira seja uma barreira, sim. O café especial

é em média dez vezes mais caro que um café tradicional comprado no

supermercado. Não é todo mundo que pode gastar de R$20,00 a R$50 em

média em um pacotinho de 250 gramas, sem falar nos equipamentos como

moedor, balança, prensa francesa... O que muita gente está fazendo é tornando

isso um ritual de preparo muito meticuloso. Com isso o consumo diário de café

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diminui, tanto por causa do preço quanto por causa do processo de preparo da

bebida que requer um cuidado muito maior e mais tempo. Enquanto em um

café tradicional moído nós fazemos uma garrafa de café e tomamos algumas

xícaras, no café especial nós fazemos somente o que iremos tomar, sem

desperdício e tudo meticulosamente pesado e dosado. Normalmente eu tomo

somente duas xícaras de café por dia (uma de manhã e outra à tarde).

(Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)

Maitê comenta que o prazer que encontra em cafés especiais, vinhos, queijos e cervejas a

faz abrir mão de outros tipos de entretenimento, como viagens. Ela afirma que essa

sofisticação do paladar é algo que o brasileiro está descobrindo agora, e diz que às vezes

prefere priorizar essas escolhas de consumo para conseguir suprir suas vontades

gastronômicas. O pensamento de Carl Honoré sobre o movimento slow corrobora com o

de Maitê e Ricardo. Segundo o autor, a tendência é que cada vez mais seja valorizada a

qualidade em detrimento da quantidade (p. 26, 2005).

Renne, consumidor residente do Rio de Janeiro, concorda que apreciar o café especial

custa caro. Ele conta que adquiriu uma cafeteira italiana, e que apesar de também gostar

de café filtrado ainda não conseguiu comprar um filtro Hario (considerado o melhor). No

entanto, já encomendou uma prensa francesa, e diz que o próximo passo será um moedor.

As barreiras econômicas e o conhecimento necessário sobre métodos de preparo sugerem

que dentro da própria terceira onda existam “sub-ondas”. Utilizando o conceito de habitus

como metáfora, podemos inferir que os tipos de capital apontados por Bourdieu podem

servir como ferramentas que ajudam a navegar mais rápido. Enquanto alguns

consumidores precisam atravessar nadando, outros podem possuir uma prancha de surf

ou ter amigos que emprestem um barco. A velocidade com que se avança é diretamente

influenciada pela predisposição cultural, social e econômica do consumidor.

Terceira onda: um “mindset” de consumo?

Ricardo Aguirre descreveu o consumidor de cafés especiais como “um público mais

‘seleto’ que gosta de uma bebida diferente e não se preocupa em pagar mais por isso. Eles

gostam de saber sobre a história do café, origem, se preocupam muito com a questão da

sustentabilidade e gostam muito de grãos organicos. ”

Essa percepção está intimamente relacionada com a que foi levantada sobre o perfil desse

público na fase netnográfica. A partir das entrevistas com os consumidores, nuances do

que seria um “mindset” de consumo terceira onda foram identificadas. Renne afirmou

que para ele a ideia de que haja um caminho mais curto entre o produtor e o consumidor

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é muito importante, e que não concorda com a “filosofia” da Starbucks. Gaia, de São

Paulo, afirmou que sempre lê os rótulos para saber de onde o café veio, e que também

possui essa relação ao preferir comida orgânica, de produtores locais. Ela revelou que

normalmente compra roupas usadas, o que indica que o consumo responsável é muito

presente nas suas escolhas. Elis, também de São Paulo, conta que costuma comprar

comida orgânica e que é muito seletiva na hora de comprar roupas. “Pesquiso bem sobre

marcas, material que utilizam, tipo de mão de obra, onde a peça foi fabricada, etc.”

Apesar de essa tendência estar se fortalecendo, vale ressaltar que nem todos os que se

interessam pelo café especial seriam atraídos apenas pelo “ato político” de apoiar

produtos sustentáveis, mais saudáveis e que praticam o comércio justo. O prazer do sabor

e as descobertas no modo de preparo são fortes atrativos para esse mercado, podendo

abranger diversos públicos que – dependendo do seu interesse e habitus, não precisariam

avançar tanto dentro da terceira onda do café. Não é necessário se tornar barista e comprar

um moedor para apreciar uma boa xícara.

Perspectivas sobre esse mercado

O mercado de cafés especiais está em expansão e tem atraído novos players, no entanto,

o conhecimento sobre essa categoria ainda é pouco difundido no Brasil. Para Ricardo,

isso acontece porque há um bloqueio das importações de café verde pelo governo federal,

com a intenção de proteger o mercado nacional.

Se essa importação fosse permitida, teríamos muito mais cafés especiais no

Brasil de diversos lugares do mundo. Isso iria movimentar muito mais o

mercado de cafés especiais, fazendo com que nossos profissionais se

especializassem cada vez mais para concorrer em igualdade com esses grãos

especiais de outros lugares do mundo. (Entrevista, Ricardo Aguirre, 2016)

O barista acredita que dentro de cinco anos já haja algum tipo de liberação, o que permitirá

que o mercado cresça ainda mais. Para Gustavo, sócio e diretor comercial da Moccato,

produtora de café fresco em cápsulas, a principal responsável pela falta de conhecimento

sobre a qualidade do café é a publicidade.

Acredito que parte desta desinformação seja causada pela indústria tradicional

de cafés, que passou grande boa parte do tempo, propagandeando atributos

como "força" e "tradição" que na verdade representavam cafés de baixa

qualidade, torrados em excesso. Do outro lado, havia também os grandes

produtores que não se interessavam pelo café especial em função da baixa

produtividade e da necessidade de ocupar e produzir em grandes áreas sem a

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garantia de venda de captura no preço de venda (quando comparado ao preço

da commodity). (Entrevista, Gustavo Henrique Silva, 2016)

Atualmente, a maioria dos brasileiros acredita que um com café tem que ser forte, e o

amargor seria um atributo relacionado a essa força. À medida que mais pessoas provem

o café especial, é possível que essa perspectiva mude com o tempo, mas dificilmente o

café tradicional irá perder o seu lugar por conta do seu preço e penetração de mercado.

Pode ser que com o aumento da concorrência essas marcas populares se forcem a

melhorar a sua qualidade, o que no fim das contas irá beneficiar a todos nós amantes do

café.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO

1. O estudo aponta características sobre os consumidores de segunda onda do café.

Que estratégia você usaria para atraí-los para a terceira onda?

2. A partir das descrições levantadas neste estudo, como você acha que o consumidor

de terceira onda viaja? Que tipo de experiência seria interessante para ele?

3. Que estratégia você utilizaria para atrair um consumidor de primeira onda direto

para a terceira? O que seria importante para um consumidor que não consome café

de máquinas e não é atraído por blends de cafeterias premium?

4. O que as empresas produtoras de café em cápsulas devem fazer para se precaver

de críticas relacionadas ao lixo que geram? Como evitar perder consumidores

cada vez mais conscientes?

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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