Caso Clínico Clinical Case - CORE · sua utilização no tratamento da bronquiolite obliterante no...

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REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA Vol XII N.º 6 Novembro/Dezembro 2006 715 Toxicidade pulmonar induzida pela rapamicina Lung toxicity induced by rapamycin Recebido para publicação/received for publication: 06.06.02 Aceite para publicação/accepted for publication: 06.07.11 C Damas 1 A Oliveira 2 A Morais 3 Caso Clínico Clinical Case 1 Interna complementar de Pneumologia 2 Interna complementar de Nefrologia 3 Assistente hospitalar de Pneumologia Hospital de São João, Serviço de Pneumologia, Porto (EPE) Director: Prof. Doutor J. Agostinho Marques Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Hospital de São João (EPE), Serviço de Pneumologia Alameda Hernâni Monteiro 4200 – Porto Resumo As doenças pulmonares induzidas por fármacos consti- tuem uma causa crescente de morbilidade, tendo sido des- critas diferentes formas de toxicidade associadas a inúme- ras substâncias. O sirolimus (rapamicina) é um fármaco imunossupressor usado de forma crescente no contexto do transplante de órgãos sólidos, nomeadamente no trans- plante renal. A toxicidade pulmonar tem sido descrita como um dos potenciais efeitos laterais, nomeadamente causan- do formas de pneumonite intersticial ou, mais raramente, hemorragia alveolar. Os autores descrevem os casos de quatro doentes (3 do sexo masculino, 1 do sexo feminino) com idades compreendidas entre os 46-71 anos, recipien- tes de transplante renal (rim cadáver) há 3 anos (1 doente) e 7 anos (3 doentes). A imunosupressão consistia em mi- cofenolato mofetil, prednisolona e rapamicina. Os quatro Abstract Drug induced lung diseases (DILD) are an increasin- gly cause of morbidity. Many drugs have been descri- bed, causing several patterns of injury. Sirolimus is an immunosuppressive agent increasingly used in renal and other solid organ transplantation. Pulmonary to- xicity has been recognised as a potential complication associated to this medication. Interstitial pneumonitis and more rarely alveolar haemorrhage have been des- cribed. The authors describe 4 cases (3 men and 1 woman) between 46-71 years, transplanted three ye- ars ago (1 patient) and 7 years ago (3 patients). All of them were medicated with micofenolato mofetil, pred- nisone and sirolimus. All patients had fever at admis- sion, 3 patients had dyspnoea and 2 productive cough. Diffuse pulmonary infiltrates with basal predominan-

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Toxicidade pulmonar induzida pela rapamicina

Lung toxicity induced by rapamycin

Recebido para publicação/received for publication: 06.06.02Aceite para publicação/accepted for publication: 06.07.11

C Damas1

A Oliveira2

A Morais3

Caso ClínicoClinical Case

1 Interna complementar de Pneumologia2 Interna complementar de Nefrologia3 Assistente hospitalar de Pneumologia

Hospital de São João, Serviço de Pneumologia, Porto (EPE)Director: Prof. Doutor J. Agostinho MarquesFaculdade de Medicina da Universidade do Porto

Hospital de São João (EPE), Serviço de PneumologiaAlameda Hernâni Monteiro4200 – Porto

ResumoAs doenças pulmonares induzidas por fármacos consti-tuem uma causa crescente de morbilidade, tendo sido des-critas diferentes formas de toxicidade associadas a inúme-ras substâncias. O sirolimus (rapamicina) é um fármacoimunossupressor usado de forma crescente no contextodo transplante de órgãos sólidos, nomeadamente no trans-plante renal. A toxicidade pulmonar tem sido descrita comoum dos potenciais efeitos laterais, nomeadamente causan-do formas de pneumonite intersticial ou, mais raramente,hemorragia alveolar. Os autores descrevem os casos dequatro doentes (3 do sexo masculino, 1 do sexo feminino)com idades compreendidas entre os 46-71 anos, recipien-tes de transplante renal (rim cadáver) há 3 anos (1 doente)e 7 anos (3 doentes). A imunosupressão consistia em mi-cofenolato mofetil, prednisolona e rapamicina. Os quatro

AbstractDrug induced lung diseases (DILD) are an increasin-gly cause of morbidity. Many drugs have been descri-bed, causing several patterns of injury. Sirolimus is animmunosuppressive agent increasingly used in renaland other solid organ transplantation. Pulmonary to-xicity has been recognised as a potential complicationassociated to this medication. Interstitial pneumonitisand more rarely alveolar haemorrhage have been des-cribed. The authors describe 4 cases (3 men and 1woman) between 46-71 years, transplanted three ye-ars ago (1 patient) and 7 years ago (3 patients). All ofthem were medicated with micofenolato mofetil, pred-nisone and sirolimus. All patients had fever at admis-sion, 3 patients had dyspnoea and 2 productive cough.Diffuse pulmonary infiltrates with basal predominan-

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doentes foram admitidos por febre, tosse produtiva (2) edispneia (3). Apresentavam imagem radiológica de infil-trados pulmonares bilaterais de predomínio basal. O LBAmostrou alveolite linfocítica em 3 doentes, tendo-se ob-servado no entanto diferentes relações CD4/CD8., paraalém de neutrofilia em 2 deles. No restante doente, obser-vou-se hemorragia alveolar grave. Não houve em nenhumdos casos qualquer isolamento de micro organismos pa-togénicos no LBA. As queixas apresentadas, bem comoas alterações radiológicas regrediram com a suspensão dofármaco. Estes quatro casos revelaram alguma variedade,quer na apresentação clínica, quer nos achados dos exa-mes subsidiários efectuados, nomeadamente no LBA. Estefacto pode ter como causa diferentes mecanismos fisiopa-tológicos a nível do pulmão induzidos pelo sirolimus.

Rev Port Pneumol 2006; XII (6): 715-724

Palavras-chave: Sirolimus, toxicidade pulmonar, la-vado broncoalveolar.

ce in HRCT scan were present in the four patients. BALshowed lymphocytic alveolitis in 3 cases, however witha different CD4/CD8 ratio. In additio to lymphocyto-sis, neutrophilia was observed in 2 patients. One patientshowed serious alveolar haemorrhage in BAL. Pulmo-nary infections were ruled out by specific BAL stainingand cultures. After drug suspension, all patients showeda clear improvement. These case studies show some di-versity in clinical presentation and in the features of someexams, namely in BAL. This may suggest different un-derlying pathophysiology entities induced by sirolimus.

Rev Port Pneumol 2006; XII (6): 715-724

Key-words: Sirolimus, lung toxicity, bronchoalveolarlavage.

IntroduçãoNas últimas décadas, o aumento do númerode órgãos transplantados levou a um incre-mento e aperfeiçoamento da terapêutica imu-nossupressora, com o objectivo da preser-vação do órgão transplantado com ummínimo de efeitos colaterais para o doente.Desde 1999 que a rapamicina (sirolimus) estáaprovada como fármaco imunossupressor,podendo ser uma opção terapêutica emtransplantes de órgão sólidos, nomeadamen-te no transplante renal 1. Faz parte do grupode antibióticos macrólidos, sendo produzi-do pelo Streptomyces hygroscopicus.

A rapamicina impede a divisão celular ao in-terferir na passagem da fase G1 para a fase S,interferindo pelo menos com duas proteínasintra-celulares, o que se traduz numa reduçãoda resposta às citocinas, enquanto moléculasreguladoras da proliferação cellular. Este as-pecto é traduzido pela inibição da prolifera-ção dos linfócitos T em resposta à IL2. Estemecanismo de acção difere dos inibidores dacalcineurina, tal como o tacrolimus ou a ci-closporina, o que o torna uma opção, nomea-damente quando é necessária a interrupçãoou redução da dose do grupo de fármacosreferidos. Apresenta uma biodisponibilidade

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de 15% quando administrada por via oral,com valores séricos máximos entre as 0,5 eas 2,3 horas, sendo a absorção influenciadapelo teor de gordura na dieta. Circula no in-terior dos eritrócitos, situação facilitada pelasua lipossolubilidade, tendo metabolizaçãohepática (sistema CYP3A4) e intestinal (gli-coproteína P). Da sua metabolização resul-tam sete metabolitos, os quais contribuempara menos de 10% da actividade imunos-supressora do fármaco. Ao ter uma semi vidade 57-62 horas, este fármaco permite tomasúnicas diárias, devendo no entanto fazer-seum controlo apertado dos seus níveis séri-cos, estando valores superiores ou iguais a15 ng/ml associados a uma maior incidênciade efeitos adversos. De entre os efeitos ad-versos (descritos de forma resumida no Qua-dro I), os que afectam o aparelho respirató-

rio, pela sua expressão clínica, tornam-se umadas principais preocupações a ter na utiliza-ção deste fármaco. Desses efeitos laterais des-tacam-se a deiscência da anastomose brôn-quica (situação que contra-indica de formarelativa a sua utlização no transplante pul-monar)2,3, microangiopatia trombótica (situ-ação mais frequente se existir associação comantagonistas da calcineurina)4, doença pul-monar intersticial e a hemorragia alveolar.Recentemente, foi descrito um caso de vas-culite linfoplasmocítica necrotizante numadoente transplantada renal5.Pouco ainda se sabe acerca da etiopatogeniados efeitos laterais induzidos pela rapamici-na. A resposta auto-imune associada à expo-sição a antigénios criptogénicos a nível pul-monar parece ser a hipótese mais provávelna indução da pneumonite intersticial6.

Quadro I – Efeitos laterais da rapamicina

Aparelhos ou sistemas

Cardiovascular

Sistema nervoso central

Dermatológicos

Gastrintestinal

Genito-urinário

Hematológicos

Músculo-esquelético

Endócrino/metabólico

Respiratórios

Efeitos laterais

HTA, fibrilhação auricular, insuficiência cardíaca

Insónia, cefaleias, algias, neuropatia periférica

Hirsutismo, prurido, acne, fotossensibilidade

Náuseas, vómitos, diarreia, obstipação, dispepsia, esofagite, íleos, dor abdominal,trombose da artéria hepática (em doentes transplantados hepáticos)

Infecções urinárias

Anemia, trombocitopenia*, sd hemolítico-urémico

Necrose óssea, parestesias, ↑CPK

Hipercolesterolemia, hipofosfatemia, hiperlipidemia*, hipocalemia

Dispneia, edema agudo do pulmão, faringite, broncospasmo, deiscência da anastomosebrônquica, doença pulmonar intersticial (BOOP, pneumonite, hemorragia alveolar)

*Efeitos laterais mais frequentesCPK – creatina fosfo-cinase; Sd – síndroma.

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Existem, no entanto, vários estudos sobre asua utilização no tratamento da bronquioliteobliterante no contexto de rejeição crónica7,bem como a sua utilização na prevenção daobstrução dos stents coronários, devido à suaactividade inibitória da proliferação da nus-culatura lisa8.Os autores descrevem quatro casos de doen-tes submetidos a transplante renal, medi-cados com rapamicina e que apresentaramdoença pulmonar difusa.

Casos clínicos

Caso 1Homem de 71 anos, submetido a transplanterenal (rim cadáver há sete anos), com etiolo-gia da insuficiência renal não esclarecida. Me-dicado habitualmente com rapamicina (2 mg//dia), micofenolato mofetil (1 g/dia) e predni-solona (5 mg/dia). Admitido por febre, tosseprodutiva (secreções hemoptóicas) e dispneia.Na admissão apresentava leucocitose, semneutrofilia, aumento do valor sérico da pro-teína C reactiva (PCR), níveis séricos de rapa-micina de 16,5 ng/ml e insuficiência respira-tória parcial (PaO2 – 67 mmHg em arambiente). Apresentava imagem radiológicade infiltrados pulmonares bilaterais heterogé-neos, com predomínio nos 1/3 inferiores, querna radiografia torácica (Fig. 1) quer na TACtorácica, com cortes de alta resolução (Fig 2).Apesar da medicação prescrita, nomeadamen-te antibioterapia, o doente manteve o quadroclínico referido, pelo que foi realizada bron-cofibroscopia (BFR) com lavado broncoal-veolar (LBA). Não foram observadas altera-ções da anatomia da árvore brônquica nemisolados agentes infecciosos patogénicos ouobservadas células malignas no LBA. Neste,foi observada em coloração de Pearls presen-

Fig. 2

Fig. 1

ça de hemossiderina na quase totalidade demacrófagos observados (score Golden-350), al-teração essa sugestiva de hemorragia grave(Fig. 3). O doseamento dos ANCA (citoplas-mático e perinuclear) e anticorpos antinuclea-res foi negativo. Por persistência das alteraçõesradiológicas, é realizada uma biópsia pulmo-nar cirúrgica, tendo sido a análise histológicacompatível com acute fibrotic and organizing pneu-monia (AFOP) (Fig. 4).

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Fig. 3

Fig. 5Figs. 4

Fig. 6

Após suspensão da rapamicina, o doenteapresentou regressão significativa do quadroclínico e radiológico. (Figs. 5 e 6).

Caso 2Homem de 56 anos, submetido a trans-plante renal (rim cadáver há três anos), cominsuficiência renal multifactorial (Diabetesmellitus e HTA). Medicado habitualmentecom rapamicina (3 mg/dia), micofenolatomofetil (1 g/dia) e prednisolona (5 mg//dia). Admitido por febre e dispneia. Anali-ticamente apresentava leucocitose, aumen-

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to dos valores da PCR, níveis de rapamici-na de 22,4 ng/dl e valores gasimétricosnormais.A radiografia do tórax (Fig. 7) mostrou in-filtrado heterogéneo bilateral, com predo-mínio nos campos pulmonares inferiores,alterações coincidentes com as observadasna TAC torácica com cortes de alta resolu-ção (Fig. 8), na qual se observavam opaci-dades dispersas em ambos os campos pul-monares (com predomínio esquerdo). Por

Fig. 10

Fig. 9Fig. 7

Fig. 8

não apresentar melhoria clínica, é realizadaBFR com LBA, no qual não foram isoladosmicrorganismos patogénicos ou observadascélulas malignas. O estudo celular do LBAmostrou linfocitose (Fig. 9), cujo estudo porcitometria de fluxo revelou uma relaçãoCD4/CD8 normal. Após modificação daterapêutica imunossupressora, com substi-tuição da rapamicina por tacrolimus, o doen-te apresentou melhoria clínica e radiológicaevidentes (Figs. 10 e 11).

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Caso 3Homem de 57 anos, submetido a transplan-te renal (rim cadáver há sete anos), com in-suficiência renal de etiologia desconhecida.Medicado habitualmente com rapamicina(2 mg/dia), micofenolato mofetil (1 g/dia) eprednisolona (5 mg/dia). Admitido por fe-bre, dispneia e tosse produtiva. Como altera-ções analíticas apresentava apenas níveis séri-cos de rapamicina aumentados (22,6 ng/dl).A radiografia torácica mostrou imagem deinfiltrado na base direita (Fig. 12), tendo no

entanto a TAC torácica (Fig. 13) evidencia-do áreas de condensação bibasais, sugesti-vas de processo infeccioso. Por manter quei-xas após início de antibioterapia de largoespectro, foi realizada BFR e LBA. Este últi-mo mostrou uma alveolite linfocítica inten-sa com uma relação CD4/CD8 normal, paraalém de uma neutrofilia e eosinofilia ligeiras.Após substituição da rapamicina pela ciclos-porina, o doente apresentou uma evoluçãofavorável (Fig. 14).

Fig. 11

Fig. 12

Fig. 14

Fig. 13

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Caso 4Mulher de 46 anos, com lúpus eritematososistémico (LES) e nefrite lúpica. Transplan-tada há sete anos (rim cadáver). Imunossu-primida com rapamicina (2 mg/dia), mico-fenolato mofetil (1 g/dia) e prednisolona (10mg/dia). Admitida por febre, sem foco apa-rente. Analiticamente, apresentava como al-teração apenas níveis séricos de rapamicinaaumentados (17,8 ng/dl). A radiografia to-rácica revelava uma acentuação do retículoperibroncovascular no pulmão direito, ten-do a TAC torácica revelado infiltrados in-tersticiais heterogéneos no lobo superior di-reito. Foi realizada BFR com LBA, o qualnão revelou alterações sugestivas de infec-ção ou malignidade. A contagem celular re-velou linfocitose e neutrofilia. O estudo dassubpopulações linfocitárias por citometria defluxo revelou um predomínio CD4+. Apóssuspensão do sirolimus, pôde observar-semelhorias clínica e radiológica.

DiscussãoDesde a 1.ª descrição, no ano 2000, encon-tram-se descritos na literatura médica inde-xada cerca de 70 casos de toxicidade pulmo-nar induzida pela rapamicina em doentessubmetidos a transplante de órgãos sólidos9.Destes, 52 eram transplantados renais, 4 pul-monares, 3 hepáticos, 3 cardíacos, 3 de cora-ção-pulmão e 1 de células de Langerhans.Foram reportados apenas três casos mortais,todos eles em doentes submetidos a trans-plante cardíaco9.Na maioria dos casos, os doentes apresen-tam dispneia, tosse (habitualmente seca) e/oufebre, a que se associam imagens radiológi-cas de infiltrados pulmonares, quadro que noseu início é habitualmente interpretado comoum processo infeccioso num doente imuno-

comprometido. O LBA é frequentementeutilizado quando o quadro clínico não res-ponde à terapêutica prescrita, nomeadamenteà antibioterapia, não só para a tentativa deisolamento de microrganismos, como na pes-quisa de outra etiologia diferencial, nomea-damente inflamatória/ imunológica ou neo-plásica. O estudo celular nos casos descritosde toxicidade pulmonar secundária à rapa-micina apresenta geralmente linfocitose, quepor vezes é intensa e, geralmente, de predo-mínio CD4+ 10,11. Por outro lado existemdescrições de presença de hemorragia alve-olar, através da observação de hemosiderinanos macrófagos, pelo que a utilização doLBA neste contexto pode ser sugestivo oumesmo esclarecedor da presença de toxici-dade pelo fármaco1. No Quadro II estão des-critas as principais alterações encontradas noLBA dos doentes.Caracteristicamente, estas alterações regri-dem com a suspensão do fármaco, habitual-mente num período de três meses6.Os quatro doentes descritos tiveram umaabordagem semelhante à referida, sendo ainfecção respiratória a 1.ª hipótese de diag-nóstico colocada, com prescrição terapêuti-ca em conformidade. Também, nestes casos,a manutenção ou agravamento do quadroclínico levou à realização de broncofibros-copia com realização de LBA quer para es-tudo microbiológico quer para estudo celu-lar. A ausência de isolamento de qualquermicrorganismo e a observação de linfocito-se sugeriam a presença de um quadro depneumonite. O facto de se observarem dife-renças na contagem celular total, na conta-gem celular diferencial com diferentes grausde linfocitose e presença de neutrofilia emalguns casos, para além da relação CD4//CD8, poderá ter como causa a presença de

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*doente com hemorragia alveolarBAL – lavado broncoalveolar

Quadro II – Características imunológicas do LBA

CaracterísticasDoente 1* Doente 2 Doente 3 Doente 4

celulares

Celularidade 0,8x105/ml 0,8x105/ml 6,8x105/ml 1,2x105/mlMacrófagos(%) 84,6 70,8 11,6 70Linfócitos (%) 8,4 27,4 82,5 21,2Neutrófilos (%) 2 0,2 4,2 6,2Eosinófilos (%) 0,4 0 1,6 1CD4 BAL (%) 57,5 50,8 62CD8 BAL (%) 38,3 43,2 32,9CD4/CD8 1,5 1,76 1,9

diferentes quadros fisiopatológicos associa-dos. Neste caso, a realização de biópsia pul-monar poderia levar à observação de dife-rentes entidades patológicas de pneumonite.Apesar de haver descrição de biópsias trans-brônquicas neste contexto5, é nossa opiniãoque para o esclarecimento rigoroso da enti-dade patológica associada seria necessária arealização de biópsia pulmonar cirúrgica.Este procedimento não foi realizado, dadoo quadro clínico associado aos resultados dosexames subsidiários efectuados em cada casoser sugestivo de toxicidade pulmonar in-duzida pela rapamicina. Por outro lado, ofacto de se ter verificado uma regressão dossintomas e das alterações radiológicas apósa interrupção do fármaco adicionou evidên-cia à hipótese colocada e questionou aindamais a indicação da biópsia pulmonar. Estefoi também o procedimento na maior par-te dos casos descritos na literatura por nósconsultada1,6.O doente descrito com hemorragia alveolarpertence a uma forma mais rara de toxicida-de pulmonar associada ao sirolimus, encon-trando-se na literatura indexada a descriçãode apenas 3 casos semelhantes1. A raridade

do quadro, adicionado à ponderação de ou-tros diagnósticos diferenciais, levou à deci-são de efectuar biópsia pulmonar cirúrgicapara melhor esclarecimento da situação. Aanálise patológica efectuada evidenciou alte-rações compatíveis com acute fibrotic organi-zing pneumonia (AFOP). Esta entidade foidescrita inicialmente por Beasley et al 12 em2002, como uma nova entidade anatomo-patológica associada a patologia pulmonarde início agudo ou subagudo e que tem comodiagnóstico diferencial os quadros patológi-cos que se apresentam de forma semelhantecomo o dano alveolar difuso ou a pneumo-nia organizativa. Como estes, pode surgir deforma idiopática, associada a infecção ouapós exposição a fármacos, como parece sero caso descrito, sendo esta a 1.ª descriçãodesta entidade patológica em associação aosirolimus.Todos os doentes por nós descritos toma-vam sirolimus há vários meses (período su-perior a seis meses) e apresentavam valoreselevados de concentração sérica do fárma-co. Não existe evidência sobre se o tempode exposição tem alguma influência na in-dução da toxicidade no pulmão por parte

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desta substância, mas esta parece dependen-te de dose13.A descrição destes quatro casos clínicos detoxicidade pulmonar induzida pelo sirolimuspretendeu adicionar mais informação acercados efeitos secundários sobre o pulmão quese podem associar a este imunossupressor deutilização crescente. É de realçar nomeada-mente alguma diversidade que se pode veri-ficar quer na apresentação clínica quer emalguns dos exames efectuados para esclareci-mento da situação. Apesar desta eventual di-versidade, após a suspensão do fármaco pa-rece haver uma boa evolução clínica, sem oaparente registo de sequelas posteriores.

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