Caso IntrodJurisp 2015 1

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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO Centro de Ciências Jurídicas e Políticas - CCJP Disciplina: Introdução à Jurisprudência Professor: Rodolfo Noronha Competição de julgamento simulado em Direito dos povos indígenas perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos CASO HIPOTÉTICO – Aldeias Indígenas de Macondo, Ítaca e Lilipute X República de La Mancha, representada por FUILM A) CONTEXTO 1- A República de La Mancha situa-se na América do Sul. Sofreu colonização espanhola no século XVI, porém, antes da chegada dos espanhóis, já era habitada por diversos grupos de etnias indígenas. Em 1822 tornou-se independente, estabelecendo a cidade de Santa Fé de La Mancha como sua capital. O país é o segundo mais populoso da América Sul, com 81 mil habitantes, dos quais apenas aproximadamente 3.000 são de origem indígena. Atualmente, são identificadas somente 10 aldeias espalhadas pelo país. La Mancha passou durante muitos anos vivendo diante da arbitrariedade de governos autoritários. Porém, a partir de 1988, La Mancha estabeleceu-se como uma república constitucional, fundada sobre regras, princípios e garantias fundamentais que servem de parâmetro de validade a todas as outras normas do ordenamento jurídico. Além disso, tal Carta Constitucional recebeu o apelido de Constituição Cidadã, pois resguardava garantias personalíssimas como a da Dignidade da Pessoa Humana. Nesse sentido, é importante saber que a República de La Mancha ratificou tratados internacionais de Direitos Humanos, bem como diversas convenções das Nações Unidas, incluindo a Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais e a Declaração das Nações Unidas Sobre Direitos dos Povos Indígenas. 2- A República de La Mancha é um país litorâneo e tropical, seu relevo é caracterizado como planalto. A capital, Santa Fé de La Mancha, é uma cidade costeira de clima tropical quente,

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CASO HIPOTÉTICO – Aldeias Indígenas de Macondo, Ítaca e Lilipute X República de LaMancha

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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

Centro de Ciências Jurídicas e Políticas - CCJP

Disciplina: Introdução à Jurisprudência

Professor: Rodolfo Noronha

Competição de julgamento simulado em Direito dos povos indígenas perante a Corte

Interamericana de Direitos Humanos

CASO HIPOTÉTICO – Aldeias Indígenas de Macondo, Ítaca e Lilipute X República de La

Mancha, representada por FUILM

A) CONTEXTO

1- A República de La Mancha situa-se na América do Sul. Sofreu colonização espanhola no

século XVI, porém, antes da chegada dos espanhóis, já era habitada por diversos grupos de

etnias indígenas. Em 1822 tornou-se independente, estabelecendo a cidade de Santa Fé de La

Mancha como sua capital. O país é o segundo mais populoso da América Sul, com 81 mil

habitantes, dos quais apenas aproximadamente 3.000 são de origem indígena. Atualmente,

são identificadas somente 10 aldeias espalhadas pelo país. La Mancha passou durante muitos

anos vivendo diante da arbitrariedade de governos autoritários. Porém, a partir de 1988, La

Mancha estabeleceu-se como uma república constitucional, fundada sobre regras, princípios

e garantias fundamentais que servem de parâmetro de validade a todas as outras normas do

ordenamento jurídico. Além disso, tal Carta Constitucional recebeu o apelido de Constituição

Cidadã, pois resguardava garantias personalíssimas como a da Dignidade da Pessoa Humana.

Nesse sentido, é importante saber que a República de La Mancha ratificou tratados

internacionais de Direitos Humanos, bem como diversas convenções das Nações Unidas,

incluindo a Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e

Tribais e a Declaração das Nações Unidas Sobre Direitos dos Povos Indígenas.

2- A República de La Mancha é um país litorâneo e tropical, seu relevo é caracterizado como

planalto. A capital, Santa Fé de La Mancha, é uma cidade costeira de clima tropical quente,

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com estiagem de dois meses por ano. Sua flora é predominantemente da floresta tropical,

com solo propício ao cultivo de aroeiras e pinhão. Devido à instalação de uma indústria de

celulose (Santa Fé Celulose), as plantações de eucalipto tornaram-se predominantes na

paisagem vegetativa da cidade, reduzindo em montes a vegetação tropical que existia. Além

disso, devido à capital estar localizada no litoral, ela abriga em sua costa regiões de

manguezal, um ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestre e marinho. O

interessante da cidade é que a população de Santa Fé de La Mancha inclui o maior

contingente indígena que restou no país.

3- A população indígena de Santa Fé divide-se em duas etnias diferente (tupiniquim e guarani) e

em três aldeias, denominadas Macondo, Ítaca e Lilipute. Suas terras foram homologadas

apenas em 2007, após 40 anos de disputas de terra com a empresa SF Celulose. Na década de

1960, a sociedade empresária nacional instalou-se nas terras indígenas e implantou extensas

monoculturas de eucalipto, destruindo aldeias e recursos naturais. Após intensos movimentos

sociais dos grupos indígenas para reaver suas terras, a Fundação Indígena de La Mancha

(FUILM), órgão nacional que estabelece e executa a política indigenista em La Mancha, fez

estudos para identificação do território indígena. A partir desses levantamentos geográficos, a

Justiça definiria os hectares pertinentes aos índios. Porém, a demarcação era sempre menor

do que a estudada, ou até mesmo que a reivindicada. Foram diversas negociações entre a SF

Celulose, os índios e a FUILM. Algumas, inclusive, descompassadas com as normas

constitucionais.

4- Por fim, os índios de Macondo, Ítaca e Lilipute tiveram suas terras demarcadas pela FUILM

devolvidas pela SF Celulose e homologadas pela presidenta de La Mancha. Dessa forma, foi

ajustado um acordo entre a empresa, os índios e o governo, representado pela FUILM,

denominado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com o intuito de estabelecer os

meios mais adequados para a devolução e recompensa do que não podia mais ser devolvido.

Após longos anos de lutas pelas próprias terras, as aldeias ainda travam difíceis relações com

outros macro-empreendimentos da região; a mais recente é com a Sociedade Empresária

Porto Seguro.

B) DOS FATOS DO CASO

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5- A República de La Mancha passou nos últimos anos por grandes investimentos públicos e

incentivos ao capital privado em diversas áreas, tais como as de infraestrutura e habitação na

construção civil, e a revitalização de setores importantes da indústria naval. Houve, portanto,

um grande estímulo à construção de navios, principalmente, petroleiros e setores portuários.

A Cidade de Santa Fé de La Mancha foi incluída nestes investimentos, devido à sua extensa

faixa costeira e por não apresentar porto com infraestrutura adequada para acolher o

crescimento da indústria naval. Um dos maiores investimentos é o empreendimento da

empresa Porto Seguro. Esta é especializada em gestão portuária, comércio marítimo e

soluções logísticas integradas de grande porte e pretende fazer a instalação de um novo

terminal portuário no litoral da Cidade de Santa Fé.

6- Todavia, essa grande construção, prevista para ser concretizada na região norte costeira da

cidade, terá, de acordo com o layout das instalações portuárias da empresa, uma

infraestrutura projetada que avançará em um pedaço de terra pertencente aos povos indígenas

de Santa Fé. Esse é exatamente o imbróglio, entre a sociedade empresária e as populações

indígenas da cidade de Santa Fé, que foi intercedido pela FUILM.

7- De acordo com a Lei Nacional sobre Meio Ambiente, qualquer empreendimento que possa

causar degradação a recursos naturais precisa de licenciamento ambiental. O licenciamento

ambiental é um ato administrativo pelo qual o órgão federal responsável pelo meio ambiente

estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser

obedecidas pelo empreendedor. Porém, quando se trata de terra indígena, o procedimento de

licenciamento divide-se em duas faculdades. Primeiramente, o licenciamento ambiental, que

continua sob a análise e emissão de licença pelo órgão federal responsável pelo Meio

Ambiente. Em segundo lugar, surge a necessidade da licença cultural, responsável por

analisar os impactos sobre a vida sociocultural da população indígena em questão. Uma lei

complementar interna de La Mancha determinou que cabe à FUILM a faculdade de emiti-la

separadamente à licença ambiental, mas com a mesma importância para a viabilização do

empreendimento.

8- A licença seria emitida pela FUILM por meio de um procedimento administrativo. Para tanto,

é da responsabilidade do empreendedor formular um Estudo de Componente Indígena (ECI),

com o intuito de analisar os requisitos e aspectos essenciais relacionados à questão indígena

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para a identificação e análise dos impactos nos componentes sociais, culturais e ambientais,

decorrentes da interferência da atividade ou empreendimento.

9- Para a formulação do ECI, a empresa Porto Seguro contratou uma empresa de consultoria em

conjunto com antropólogos e estudiosos do Direito. A equipe teve como objetivo estabelecer

diretrizes de adequação e viabilidade do empreendimento, por meio de audiências com as

aldeias de Santa Fé. O estudo deve considerar o conjunto de medidas mitigatórias,

compensatórias e de participação devida, frente aos impactos socioambientais e culturais do

empreendimento.

10- De acordo com o relatório do ECI, foi constatado como impacto cultural a integridade das

Terras Indígenas, desconhecimento sobre a cultura Tupiniquim, afetação direta da Terra

Indígena de Macondo e a expectativa sobre a parceria com o empreendedor. Para tanto, será

estabelecido como medida mitigatória ou compensatória para os respectivos impactos os

seguintes projetos: cercamento das áreas expostas da TI Macondo e monitoramento da

integridade da TI, Programa de Comunicação Etnoambiental e Código de Conduta

Responsável, Grupo de Acompanhamento Lilipute – GAL – para acompanhamento da obra e

definição de procedimentos que assegurem segurança jurídica a todas as partes.

11- Haverá também impactos sobre o meio socioeconômico, tais como a interferência sobre as

atividades pesqueiras, o adensamento populacional e da demanda sobre a infraestrutura

pública, a pressão sobre o consumo local, aumento do volume de tráfego e do fluxo

migratório, alteração no uso e ocupação do solo e geração de emprego e renda. Para todas

essas afetações citadas, houve a negociação de um projeto ou programa de medida

compensatória. A proposição destes projetos fora realizada com o intuito de viabilizar o

empreendimento em conjunto com apreciação cultural. Esta, por sua vez, fora atestada pela

manifestação em conformidade, por escrito dos caciques e principais lideranças das Terras

Indígenas, com o empreendimento portuário.

12- Porém, mesmo com o sucesso das tratativas, a concessão da licença prévia cultural foi

negada pela FUILM, com a justificativa de que terra indígena é um bem indisponível e

inalienável, não podendo ser negociada. Com esta resposta, os índios de Macondo, Ítaca e

Lilipute sentiram-se violados. Para eles, a decisão da Fundação ignorou a autonomia indígena

sobre suas terras. Sendo assim, baseando-se na garantia fundamental de serem partes

legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, os índios das três

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aldeias ingressaram em conjunto com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos

Humanos.

C) DO DIREITO

13- A República de La Mancha tem uma longa história de políticas indigenistas, que, para o

presente estudo, tornam-se mais importantes os acontecimentos da década de 1970 em diante.

Em 1973, foi sancionada a Lei 6.001, mais conhecida como Estatuto do Índio. Tal lei

regulava a situação jurídica indígena e, seguindo preceitos da Lei Civilista em vigor da

época, considerava os índios relativamente capazes, e, por esse motivo, deveriam ser

tutelados por órgão estatal. Atualmente, essa tutela cabe à Fundação Indígena de La Mancha.

Além disso, o Estatuto prevê a integração harmoniosa e progressiva do índio e de sua cultura

à comunhão nacional. Com base nesse dispositivo, pode-se identificar uma gama de opiniões

e tratamento que o Estado conferia à população indígena completamente opostas aos

princípios atuais que versam sobre o assunto.

14- Em 1988, com a aprovação da nova Constituição, a população indígena recebeu outro

tratamento. Primeiramente, a multietnicidade e a pluralidade cultural são reconhecidas e,

posteriormente, a identidade propriamente indígena, o que inclui as organizações sociais,

línguas, costumes, tradições indígenas, devendo o Poder Público protegê-la e incentivá-la.

Dessa forma, é assegurado aos índios o direito à diferença, vale dizer, o direito de serem

diferentes e tratados como tais. Além disso, versando sobre a propriedade fundiária, a

Constituição garante o usufruto indígena das terras que ocupam, ou seja, os direitos

originários sobre as terras são reconhecidos. Dispõe ainda que suas “terras são inalienáveis e

indisponíveis, e seus direitos imprescritíveis, destinando-se à posse permanente dos índios

que tiveram garantido o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela

existentes”. Portanto, a tutela indígena deixa de ser uma tutela direcionada a pessoas e passa

a ser uma tutela de direitos, garantindo aos indígenas o uso de suas terras para fins de

subsistência e de reprodução física e cultural e, acima de tudo, o direito de ser índio.

15- Como analisado, o Estatuto de 73 está completamente destoante dos princípios e leis trazidos

pela Constituição de 1988, não obtento, pois, eficácia. No entanto, o novo projeto de Estatuto

não foi aprovado e ainda está em análise. Dessa forma, La Mancha apresenta apenas uma

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legislação que regula a situação indígena no país em conformidade com a Constituição. Esse

Enunciado, proveniente da ratificação, através de Decreto Legislativo, da Convenção nº 169

da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, vai de encontro à

política do integracionismo, defendendo o multiculturalismo. Portanto, o indígena, nos dias

atuais, possui direitos expressos em documentos legais que garantem a proteção de sua

cultura e a participação em atos ligados à sociedade La Mancha, se assim o desejarem.

16- Além de outras garantias essenciais para a autodeterminação dos povos indígenas, um

princípio bastante em voga atualmente no que tange aos Direitos desses povos é o dispositivo

da Convenção nº 169 da OIT referente ao “Direito de Livre Consentimento e

Conhecimento”. Este mecanismo jurídico reafirma a independência e autonomia do índio nos

conflitos referentes à suas terras, ao assumir a necessidade de haver o consentimento

informado dos povos indígenas para qualquer negociação pública ou particular que influencie

diretamente o direito de usufruto da terra. A presença deste Princípio tornou-se uma

constante influenciadora nas decisões do Poder Judiciário sobre os conflitos diante de terras

indígenas. Por isso, é possível analisar, juntamente com outros dispositivos legais e

tendências jurídicas, o novo formato que negociações entre índios e empresários públicos ou

privados têm desenvolvido.

D) DO PROCESSO PERANTE O SISTEMA INTERAMERICANO

17- Em fevereiro de 2013, as associações das tribos de Macondo, Ítaca e Lilipute ajuizaram uma

ação diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na inicial, consta a alegação

de que a decisão negativa da Fundação Indígena de La Mancha, representando a República

de La Mancha violara:

i. O reconhecimento efetivo ao direito de negociação

coletiva;

ii. O direito de autodeterminação, no que tange à

autonomia para o próprio desenvolvimento

sociocultural;

iii. O direito ao livre consentimento e conhecimento

indígena sobre suas terras, cultura e modo de vida,

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ao aceitar e firmar a implementação dos projetos de

medida compensatória, conjuntamente, à construção

do terminal portuário.

Ambas as alegações tinham fulcro no dispositivo legal da Convenção 169.

18- A Comissão, por sua vez, considerou admissível a petição das Associações, estabelecendo o

prazo de quatro meses para que a FUILM respondesse a alegação. Dois meses depois, a

Fundação manteve sua posição, sustentando que a negação da licença cultural se dava pela

proteção das terras indígenas, que não podiam ser objeto de venda, troca ou penhor de acordo

com lei nacional.

19- Para solucionar o caso, a Comissão propôs um acordo de mediação entre as partes, para que

ambos tivessem uma compreensão mais abrangente da situação e, com isso, uma possível

solução amistosa poderia surgir. No entanto, a Comissão não foi bem sucedida e, assim, o

caso foi apresentado à Corte Interamericana.

20- O caso ainda encontra-se tramitando no sistema interamericano, e no final será exposta uma

sentença definitiva e inapelável que irá resolver a situação das Aldeias de Macondo, Ítaca e

Lilipute.