Casos Clinicos Em Psiquiatria

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Casos Clnicos em

Psiquiatria

SumrioEditorial ..................................................................................................1 Auto-relatoQuinze delrios ..........................................................................................2

UMA PUBLICAO DO Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina - UFMG e da Residncia de Psiquiatria do Hospital das Clnicas - UFMGEditor Geral Maurcio Viotti Daker Diretor Executivo Geraldo Brasileiro Filho Comisso Editorial Alfred Kraus Antnio Mrcio Ribeiro Teixeira Betty Liseta de Castro Pires Carlos Roberto Hojaij Carol Sonenreich Cassio Machado de Campos Bottino Cleto Brasileiro Pontes Erikson Felipe Furtado Irismar Reis de Oliveira Delcir Antnio da Costa Eduardo Antnio de Queiroz Eduardo Iacoponi Fbio Lopes Rocha Flvio Kapczinski Francisco Baptista Assumpo Jr. Francisco Lotufo Neto Hlio Dures de Alkmin Helio Elkis Henrique Schtzer Del Nero Jarbas Moacir Portela Jerson Laks John Christian Gillin Jorge Paprocki Jos Alberto Del Porto Jos Raimundo da Silva Lippi Luis Guilherme Streb Michael SchmidtDegenhard Marco Antnio Marcolin Maria Elizabeth Ucha Demichelli Mrio Rodrigues Louz Neto Miguel Chalub Miguel Roberto Jorge Osvaldo Pereira de Almeida Othon Coelho Bastos Filho Paulo Dalgalarrondo Paulo Mattos Pedro Antnio Schmidt do Prado Lima Pedro Gabriel Delgado Ricardo Alberto Moreno Roberto Piedade Ronaldo Simes Coelho Srgio Paulo Rigonatti Saulo Castel Sylvio de Magalhes Velloso Talvane Martins de Moraes Tatiana Tcherbakowsky Nunes de Mouro Editora Cooperativa Editora e de Cultura Mdica Ltda (Coopmed) Capa, projeto grfico, composio eletrnica e produo Folium Comunicao Ltda Periodicidade: semestral Tiragem: 5.000 exemplares Assinatura e Publicidade Coopmed 0800 315936 Correspondncia e artigos Coopmed Casos Clnicos em Psiquiatria Av. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil Fone: (31) 3273 1955 Fax: (31) 3226 7955 E-mail: [email protected] Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp

Artigos OriginaisSndrome de Kleine-Levin: consideraciones diagnsticas y teraputicas................................................................................................10Pilar Sierra San Miguel, Lorenzo Livianos Aldana, Luis Rojo Moreno

Discinesia tardia com predomnio de distonia ........................................13Guilherme Assumpo Dias

Ataxia prolongada associada intoxicao por ltio ...............................18Yara Azevedo, Cntia de Azevedo Marques, Eduardo Iacoponi

Cortical atrophy during treatment with lithium in therapeutic levels, perphenazine, and paroxetine: case report and literature review...........21Luiz Renato Gazzola

Caso LiterrioMachado de Assis

Sales ...........................................................................................................29

PatografiaAndrs Heerlein

Patografia de Vincent van Gogh ..............................................................32

Caso HistricoJos Antnio Zago

Freud e o uso de cocana: histria e verdade...........................................42

Descrio Clssica/HomenagemMichael Schmidt-Degenhard

Heinroth e a melancolia: descrio, ordenao e conceito .....................48

Seguimento ...........................................................................................53 Index CCP ............................................................................................54 Normas de Publicao ................................................................55

Capa: Montagem de auto-retrato de Vincent van Gogh com retrato de seu psiquatra Dr. Gachet.

Casos Clin Psiquiatria 2000; 2(1):1-55

EditorialPublicar uma revista de Casos Clnicos em Psiquiatria uma iniciativa inspirada. Achamos que devemos nos empenhar para seu xito. O estudo do caso constituiu sempre a base, o ponto de partida e o campo de desenvolvimento da atividade mdica: conhecimento dos fatos, formulao da nosologia, elaborao das teorias, etiologias, desenvolvimento dos tratamentos, ensino profissional. Na Introduo Psiquiatria Clnica (1990) Kraepelin explica sua inteno: oferece sob forma de aulas escritas as apresentaes de casos clnicos realizados com seus alunos. O caso observado, descrito, sendo selecionados os aspectos significativos para conceber um quadro clnico, um diagnstico. na medida em que analisa os casos que Kraepelin formula e classifica as doenas. Podemos seguir, com a leitura destas aulas, o nascimento das entidades psiquitricas, conforme Kraepelin. Para identificar as alteraes, lanar hipteses etiolgicas, tentativas de entender, explicar, a apresentao do caso clnico procedimento clssico e, devido a sua importncia, publicar em livros e revistas os casos tambm era procedimento clssico. Indagaes, pesquisas de laboratrio, hipteses foram sugeridas e debatidas em torno do caso clnico. Sem falar do seu uso para exemplificar, classificar, argumentar a favor de teorias, de propostas teraputicas. Nomes de certos casos tornaramse emblemticos: Ellen West, Suzan Urban. O caso Elliot (retomado por Damasio em 1994, para ilustrar suas teses) aparece em vrios estudos neurolgicos, neurocirrgicos. O ensino da medicina interna usou muitas vezes a publicao de casos em revistas e mesmo em tratados de muitos tomos. Como exemplo, argumento, o caso clnico continua instrumento precioso. Muitas revistas lhe dedicam sees especiais. Na psiquiatria o espao que lhe dedicado evidentemente pequeno. No se trata aqui de uma "pesquisa", mas examinando alguns nmeros de revistas psiquitricas recentes, bvio: nos cinco primeiros nmeros do ano 2000, o British Journal of Psychiatry no inclui nenhum artigo dedicado a "caso clnico". Nem o nmero de abril de 2000 dos Archives of General Psychiatry. O American Journal of Psychiatry, em cada um dos nmeros 7 e 8 deste ano, inclui um artigo de "clinical case conference", um relacionado com terapia cognitivo-comportamental, outro observando caractersticas de duas irms gmeas. A valiosa revista Arquivos de Neuropsiquiatria (SP) dedica s apresentaes de caso uma seo de propores pouco comuns: no nmero de junho de 2000, 60 do total de 200 pginas, e no nmero de setembro 70 entre o total de 200 pginas. Trata-se de casos neurolgicos. Nas revistas psiquitricas predominam (ou so exclusivos) artigos dedicados epidemiologia e pesquisas bsicas, com amplo uso de estatsticas, quantificao. No podemos afirmar que isto represente o interesse dos estudiosos, mas claro que as revistas exigem tal orientao, e para os autores publicar se tornou quase uma questo de sobrevivncia na carreira. A quantificao, considerada critrio de cientificidade, parece pouco aplicvel no "caso particular", embora o "caso nico" seja recomendado como abordagem alternativa (Hersen M, p. 73-105) entre os mtodos de Pesquisa em Psiquiatria (LKG Hsu, Research in Psychiatry, New York: Plenum Medical Book Company, 1992). Os mdulos, o isolamento de elementos mnimos, (molculas, neurotransmissores, receptores) so parte importante das pesquisas atuais. Claro que a apresentao do caso leva a um nvel complexo de estudo, pouco compatvel com a abstratizao estatstica que os elementos ou as funes isoladas constituem. O relacionamento com os outros, as condutas da pessoa, objetos da psiquiatria, no podem ser limitadas a registros quantitativos. Para pesquis-los precisamos de conceitos e mtodos que no so os praticados na maioria dos estudos publicados. No consideramos que uma revista de casos clnicos pretenda corrigir as omisses de outras publicaes. Mas com certeza, ela nos evoca a "complementaridade", da qual as cincias humanas e as da natureza tanto falam.Carol Sonenreich Diretor do Servio de Psiquiatria e Psicologia Mdica do Hospital do Servidor Pblico Estadual - So Paulo

Publishing a magazine for Clinical Cases in Pschiatry is an inspired enterprise. We think that we should strive for its success. The case study is the basis, starting point and the development field of medical work: knowledge of facts, formulation of nosology, theory elaboration, etiology, treatment development and technical teaching. In his Introduo Psiquiatria Clnica (1990) Kraepelin tells us his intention: offer the presentation of clinical cases carried on with his students as written lessons. The cases are observed, described and the main aspects are selected to form a clinical nosological picture, a diagnosis. While Kraepelin analyzes the cases, he formulates and classifies the diseases. The reading of those lessons has allowed us to follow the birth of psychiatric entities as Kraepelin. Its a classical procedure the understanding trials and explanations of clinical cases, to identify their alterations and to start etiological hypothesis. Due to its importance, publishing books and magazines with cases was also a classical procedure. Questions, laboratorial researches, hypothesis were suggested and argued based upon clinical cases, besides its uses to exemplify, classify and argument in favor of theory and of therapeutical proposals. The names of some cases become emblematic: Ellen West, Susan Urban. The Elliots case (as described by Damasio in 1994 to enrich his thesis) appears in many neurological and neurosurgery studies. The internal medicine took advantage of published cases in magazines and even in tome books many times. As an exemplification, as an argument the clinical case is still a precious instrument. Many magazines have special section dedicated to them. In psychiatry the space dedicated to them is evidently small. This is not a "research" but if we observe few recent editions of psychiatric magazines, we will find that in the year 2000 the first five editions of British Journal of Psychiatry have no clinical case. It happens even in the April 2000 edition of Archives of General Psychiatry. The 7th and 8th editions of the American Journal of Psychiatry of this year include one clinical case conference related with cognitive behavioral therapy and another showing the characteristics of twin sisters. The very important magazine Arquivos de Neuropsiquiatria (SP) dedicates an unusual large section to the presentation of cases: in the June edition, 60 out of a total of 200 pages, and in the September edition, 70 out of a total of 200 pages. They are neurological cases. In psychiatric magazines, articles about epidemiology and basic research predominate (or are exclusive), creating a wide use of statistical and quantifications methods. We cannot affirm that this represents the interest of the scholars but it is clear that magazines have such orientation, and for the authors, publishing is almost a survival problem in their career. The quantification as a scientific standard is not applicable in the "particular case although the "single case" is recommended as alternative approach among methods from research in Psychiatry (LKG Hsu, Research in Psychiatry, New York, Plenum Medical Book Company, 1992) The modules, the isolation of minimum elements (molecules, neurotransmitters, receptors) are important part of nowadays research. It is known that the explanation of the case leads to a complex level of study that is not compatible with the abstractive statistical data formed by elements or the single functions. The relationship, the behavior of people, subject of psychiatry cannot be limited as quantitative records. To research them, we need to have concepts and methods that are not used in the majority of the published studies. We do not assume that a magazine for clinical cases will fulfill all the omissions of other publications. But certainly we can call the idea of "complementary", which is now widely spread by social and natural sciences.Carol Sonenreich Director of the Servio de Psiquiatria e Psicologia Mdica do Hospital do Servidor Pblico Estadual - So Paulo

Auto-relatoQUINZE DELRIOSFIFTEEN DELUSIONS

Luiz Ferri Barros

Na verdade no sou um bom contador de delrios. Isto porque segue-se s minhas crises manacas uma amnsia a respeito das crises que vivi. Apenas com muita concentrao e muito esforo de memria, fui capaz de reunir aqui lampejos de lembranas para relatar alguns momentos esparsos das grandes fantasias delirantes e alucinatrias que j vivi. Antes de relat-los, no entanto, acho importante dizer como o delrio se estabelece. Ele no chega sem avisos. As crises so precedidas por uma grande inquietao. Ocorre intensa agitao motora e insnia durante dois ou trs dias. No sei onde ficar, nenhuma posio me acomoda. Depois, vem aos poucos de incio e em seguida velozmente, tomando conta de tudo, uma incontrolvel euforia. A euforia uma sensao de bem estar, de poder, de plenitude. De fora perante o mundo. A euforia faz com que no meio de toda a desgraa e sofrimento que a loucura, ainda assim o mundo se apresente com inigualvel grandiosidade e beleza. Com a euforia, o pensamento dispara e fica fora de controle. quando se perde o nexo e idias disparatadas comeam a nos ocorrer. Mantm-se concentrao absoluta num assunto ou disperso total de pensamentos com a mente correndo solta entre os mais variados contextos. Ocorre o que Schreber muito bem definiu como coao a pensar. A essncia da coao a pensar consiste no fato de que o homem forado a pensar ininterruptamente e em grande velocidade. Da o pensamento comea cada vez mais a afastar-se da realidade, criando uma nova realidade delirante em que se acredita firmemente. s vezes, esta realidade delirante no nos atinge por completo, justapondo-se realidade de fato. Ento, algumas coisas so interpretadas pela parte sadia de nosso crebro, outras pela parte que est em delrio. s vezes o delrio nos domina por completo. quando perdemos a noo de nossos atos. Quando se entra em delrio, encasquetando-se que uma determinada coisa irreal est acontecendo, no possvel compreender que os outros no percebam a mesma realidade. O mesmo ocorre quando se alucina, ouvindo vozes ou enxergandose coisas inexistentes.

-1De repente, uma manh, achei que iria ser preso imediatamente. Mas eu no achava que era s a polcia que estava atrs de mim e nem que eu seria apenas preso.

Delirei que o prprio governador do Estado estava me perseguindo por minhas idias polticas e que eu seria metralhado, minha famlia tambm seria morta a tiros e minha casa seria destruda por bombas. Ento, alucinado, telefonei para o amigo com quem eu havia comprado maconha em sociedade e disse para ele: _ O governador est atrs de mim. Eu vou embora daqui para ele no matar minha famlia. Meu amigo falou-me para eu ficar em casa porque ele ia me levar um mdico. Eu disse que no, de jeito nenhum, porque todos seramos mortos. Desliguei o telefone, corri at a cmoda onde guardava a maconha, peguei o pacote, joguei na privada e dei descarga. Depois sa correndo, descendo a escada na embalada, fugindo de casa. Mnica tentou me segurar, eu no deixei. Eu achava que se sasse sozinho eu seria metralhado na rua e desta forma pouparia Mnica e as crianas. Mnica tentou segurar-me de todo o jeito e quando sa correndo pelo quintal e fui para a rua, ela saiu atrs de mim. Eu gritava: _ Vai pra dentro. Fique em casa. E ela: _ O que foi? O que est acontecendo? _ Fique em casa. Vai para dentro. Para mim era uma questo de vida ou morte. Se ela viesse atrs de mim, seria metralhada tambm. Isto no podia acontecer. Ela no podia morrer. O problema era apenas meu. Ento eu gritei de novo pra ela, na frente dos vizinhos que j tinham sado rua, para saber o que estava acontecendo: _ No venha atrs de mim. Eu no gosto de voc. Deixe-me em paz. Eu tenho outra mulher. Eu tenho outra mulher, voc no entende? Ela chocou-se e se paralisou. Imediatamente uma vizinha abraou-a e ela acabou ficando parada, estupefata. Eu corri dez, quinze quarteires, ou mais. Quando minha fora acabou, fiquei andando ao lu, sem saber mais onde estava. Da Mnica chegou de carro com meu cunhado, desesperada, e eles me puseram dentro do carro. Eu gritava alucinado: _ Deixem-me descer. Eu vou me matar. Eu quero morrer sozinho. Eles vo me pegar. Voc no pode morrer comigo Mnica, voc precisa cuidar das crianas. Mnica tinha chamado meu pai e ao chegarmos em casa ele j estava me esperando para levar-me ao mdico da famlia -

Mestre e doutorando em Filosofia da Educao pela USP Presidente do Projeto Fnix - Associao Nacional Pr-Sade MentalExtrato do livro Anjo Carteiro - A Correspondncia da Psicose. Editora Imago, Rio de Janeiro, 1996, ps.297/324 (edio esgotada; no prelo segunda edio pelo Projeto Fnix - Associao Nacional Pr-Sade Mental; reproduzido com autorizao do autor)

Endereo para correspondncia: Projeto Fnix Travessa Dornelas Frana, 59 - Pompia 05023-000 - So Paulo- SP 0800 10 9636 E-mail: [email protected]

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Quinze delrios

naquele tempo eu no tinha psiquiatra. Levei dez dias para sair do delrio. Naquele tempo eu e Mnica nos amvamos muito e ela, logo depois do choque, percebeu rpido que eu apenas dissera Eu tenho outra mulher para impedir que ela me seguisse. Ento, desvencilhando-se da vizinha, tomou providncias para me acudir. Com o passar do tempo o nosso amor sucumbiu s asperezas da vida, at mesmo por causa das constantes situaes de xequemate em que eu a colocava nos meus delrios e depresses. Um dia, muitos anos depois, ela chegou-se a mim e perguntou: _ Luiz, daquela vez que voc saiu correndo de casa, lembra-se, era mesmo verdade que voc tinha outra mulher? No era verdade e ela sempre soube disto, mas ao relatar o caso sua me, esta a manteve em eterna dvida.

Bebi mais de um litro de leite enquanto meu irmo dizia: Isto, Luiz: leite, leite, leite. (Ele havia encontrado uma forma de me alimentar).

-4Em meu trabalho eu usava uma calculadora HP 38C, considerada na poca a melhor calculadora financeira existente e s vezes eu costumava carreg-la na cintura. Um dia cismei que minha calculadora era capaz de fazer tudo. No ela sozinha, naturalmente. Julguei que ela estivesse acoplada por radiotransmisso a uma central de computao mundial, de espionagem estatal. Ela era um elo do Grande Irmo de Orwell em 1984. Primeiro falei com minha chefe, no alto escalo de uma Secretaria de Estado: _ Sabe, eu tenho participado de reunies sigilosas e se alguma informao importante vazar, a culpa no minha, de minha calculadora. Ela era psicloga, por coincidncia, e logo percebeu que eu estava delirando. Telefonou para minha mulher e ela veio me buscar no escritrio, tendo j marcado hora no meu psiquiatra. Eu fui com ela ao mdico e chegando l, mostrei-lhe a calculadora. Que ele cuidasse dela porque ela que era perigosa, estava desajustada; no eu. Depois samos do mdico e enquanto Mnica dirigia, na Avenida Paulista, eu encaixei a calculadora no lugar do cinzeiro do carro e lhe disse: _ Pode largar do volante, de tudo isto de controle mecnico do carro que obsoleto e desnecessrio. J programei a calculadora e em conexo com as centrais eletrnicas ela vai levar nosso carro at em casa.

-2Na praia, tive um delrio mstico, religioso, em que eu me julgava um profeta. Eu estava em estado de beatitude e julgava que todas as coisas aconteciam porque eu as fazia acontecer. Se uma folha de rvore casse ao vento era porque eu estava olhando para ela e ordenando-lhe que casse. Se uma pessoa andasse era porque eu queria que andasse e assim por diante... Logo depois entrei a estrebuchar. Pensei ter tido uma convulso. Muitos anos depois, meu irmo mdico, que estava comigo na ocasio, disse que na verdade tive uma crise histrica. Eu balbuciava sons ininteligveis e para mim, dentro de mim, eu estava falando com Deus em uma linguagem arcaica. Durante muito tempo eu julguei ter tido um contato com Deus, at que o tempo passou e essa impresso se dissipou. Acredito, no entanto, que muitas das experincias msticas, sobrenaturais, possam ser fruto de delrios e alucinaes doentias. Assim como acredito que as religies todas nada mais so do que uma resposta que o homem criou para sua maior dor psicolgica: a solido perante o destino e o universo.

-5Um delrio que me perseguia sempre, em vrias crises subseqentes, era o delrio da espionagem eletrnica. Para mim todos os aparelhos eletrnicos, em especial os rdios e as televises, estavam conectados entre si mandando informaes para uma central nacional, s vezes mundial, de computao. L eu era observado pelos senhores do mundo, como se eu fosse espionado pelo Grande Irmo de Orwell. Quando eu estava na rua, ou s vezes janela de minha casa, onde no havia aparelhos eletrnicos, eu estava sendo filmado a grandes altitudes por avies ou satlites espies que eu no via, mas tinha certeza que estavam l. Nas televises eu sempre via um boto qualquer ou uma luz que me filmavam. Ento, a central de televiso podia me ver e escutar, da mesma forma que eu via e escutava o programa que estavam passando. Assim, durante dias, eu falava com o rdio ou a televiso, conversando ou com a emissora ou com os participantes do programa. J fiquei conversando, por este mtodo delirante, com as grandes estrelas nacionais e internacionais de TV e tambm com Tatcher, Bush, Gorbatchov...

-3Houve uma ocasio em que passei dias brigando com um computador inexistente. Eu me alimentava muito mal. O computador se comunicava comigo em linguagem binria e eu assim respondia a ele dentro de meu crebro. A uma determinada altura, a briga se tornou uma livre associao de palavras. As palavras me ocorriam em duplas, uma seguindo-se outra em uma velocidade impressionante. Eu estava em Barra do Una e um dia meu irmo mdico levou-me at o outro irmo, psiclogo, em Guaec. Eu me alimentava muito mal. No sei como foi, comecei o jogo de livre associao de palavras com meu irmo psiclogo. Eu dizia uma palavra, ele dizia outra. Para mim, cada palavra devia vencer a anterior, ser mais forte, domin-la. E assim ficamos longo tempo. A uma determinada altura cheguei palavra leite e ele, sem me propor outra palavra, fixou-se na palavra leite. Eu propunha outras palavras e ele repetia: leite. Acabei tambm por me fixar na palavra leite e dizia: leite, leite, leite. Ele me dizia: Isto, Luiz: leite. Levantei-me da praia e, com ele ao meu lado, fui at dentro de casa na cozinha, onde encontrei leite.

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Naqueles momentos, ento, que o entrevistado, ou o ator, olha para a cmera e fala para os telespectadores, ah, eles estavam falando diretamente para mim... Eles me olhavam no olho. Ento, eu tambm olhava no olho deles e respondia. De noite, em meu quarto, eu achava que havia cmaras de filmagem escondidas, filmando o meu sexo com Mnica.

-6De tarde, na praia, apareceu-me um relgio em viso. A viso me acompanhou o tempo todo. No importa o que eu fizesse, para onde olhasse, o relgio _ sempre com a hora certa _ aparecia no fundo. Ento, noite, no apartamento de praia que meu irmo alugava, veio-me a explicao da viso: Vou morrer meia-noite. E fiquei com a idia fixa de que ia morrer meia noite. Mas no disse para ningum. s dez horas, por a, Mnica, eu e as crianas samos do apartamento e fomos para o rancho que tnhamos em Barra do Una antes de construir nossa casa. Arrumamos as camas e nos deitamos para dormir. A viso do relgio e a certeza de morrer meianoite no me abandonavam, no entanto. Da pensei: _ Eu sou como Matraga, chegou minha hora e minha vez. Como ele, no vou esperar meu destino passivamente: vou enfrent-lo. Sa do rancho e fui para a rua onde fiquei andando, pronto para brigar pela vida com quem viesse me desafiar. A rua estava vazia e eu no sabia de onde viria o inimigo. Eram onze e meia em meu relgio-viso quando pensei diferente: _ Se querem me matar, vo ter de vir minha toca. Me pegar no meu lugar. Voltei para o rancho, afastei a cama das crianas e a da Mnica e deitei-me num acolchoado bem em frente da porta. Antes de deitar, no entanto, peguei um faco de cozinha e segurei-o na mo direita, firme, pronto para dar o golpe se algum invadisse o lar de minha famlia. De manh cedo, Mnica encontrou-me dormindo no cho com a faca do lado. Enquanto eu esperava a meia-noite, dormi... E no morri.

-7Fui a um churrasco no interior, na casa de um tio meu. Eu estava de bermuda curta, camiseta leve e um par de chinelos. Chegando l havia aquela festa toda, todo mundo animado, festeiros mesmo, e eu me senti muito mal porque todos estavam vestidos muito bem, traje esporte fino e s eu de bermudas e chinelo. Como acontecia em outras crises, eu havia emagrecido em poucos dias mais de dez quilos. Percebi que as pessoas me evitavam na festa e s vezes olhavam para mim de soslaio. claro que me olhavam de soslaio e evitavam vir falar comigo porque eu estava em delrio. Devia estar muito estranho. Mas eu achei que estavam me evitando porque eu estava com AIDS. Percebendo minha magreza, olhando

minhas pernas finas, logo conclu que de fato eu estava com AIDS. Chamei a Mnica para irmos embora. Enquanto ela e as crianas almoavam rapidamente fui para fora da casa, esper-los na rua. Minha tia quis me levar de volta para a festa, me dar comida e tal e eu nada. Queria ir embora pra casa, deitar na minha cama. Quando Mnica veio com as crianas, pegamos o carro e fomos embora. Havamos andado uns vinte quilmetros talvez, sem falarmos nada um ao outro, quando cheguei-me ao ouvido dela e falei baixinho: _ Eu estou com AIDS. Ela me respondeu: _ Fique quieto. No fale uma palavra! Dirigiu at um retorno que havia na pista, onde pode parar o carro num lugar seguro. Mandou as crianas brincarem num canto da praa e sentou-se comigo no meio de um gramado. Disse-me, ento: _ Fala Luiz. O que est acontecendo? _ Eu estou com AIDS, Mnica. Peguei AIDS. _ Voc fez alguma coisa para achar que tenha pego AIDS? Voc saiu com algum, fez alguma coisa assim? _ No. Eu juro que no fiz nada. Mas veja minha magreza. Veja como as pessoas me evitaram na festa... _ Voc est magro porque est em crise, isto sempre acontece. Quanto s pessoas, foi voc quem as evitou. Voc quis vir embora, no quis falar com ningum. _ Eu estou com AIDS! _ E como voc pegou? _ Pelos mosquitos, voc sabe. Pela picada dos pernilongos. _ Luiz, AIDS no se pega assim, voc sabe disso. Agora, vou lhe falar uma coisa e voc preste muita ateno seno eu vou ficar muito brava com voc. Ns estamos no meio da estrada. Faltam duas horas pra chegar em casa. Ns vamos entrar no carro e ir embora pra casa. L ns conversaremos com calma. Mas, por favor, oua o que estou lhe dizendo; isto uma coisa muito sria: voc no vai falar mais neste assunto at chegarmos em casa. Ns temos dois filhos pequenos que no podem ficar pensando que o pai deles est com AIDS apenas porque voc est delirando. Entendeu? _ Entendi. _ Ento vamos embora. Vou chamar as crianas. Viemos para So Paulo sem conversar uma palavra sequer durante a viagem. Passei quase uma semana obcecado pela idia de AIDS e pernilongos. s noites, eu ficava acordado com uma toalha de rosto na mo matando pernilongos no quarto das crianas. Minha obsesso era evitar o contgio das crianas e para mim, em meu delrio, as formas de contgio foram se multiplicando. Ao fim de alguns dias eu tinha separado para meu uso exclusivo copos, louas e talheres e no deixava ningum us-los alm de mim. Estranhamente, o sexo, a prpria forma de contgio da AIDS, no me incomodava. Eu no achava que a Mnica, minha parceira sexual, estivesse com AIDS. Apenas eu estava. Tinha pego dos pernilongos.

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Quinze delrios

Da ela teve de pegar os livros que tnhamos em casa sobre AIDS e me fazer reler, explicando-me como se pegava a doena, como se eu nunca tivesse sabido. Depois me disse: _ Se voc est to preocupado, v fazer um exame de sangue. Mas eu lhe proponho outro teste. Voc sabe que eu no estou com AIDS. E que sou uma pessoa consciente, lcida, que no quero pegar AIDS. Pois voc tambm no tem, e para voc ter certeza disso eu lhe ofereo o meu corpo. Venha deitar comigo.

-8De uma das vezes em que estive internado, lembro-me de estar amarrado na cama num dos quartos do Bezerra de Menezes e pensar que estava enterrado vivo numa espcie de catacumba que eu imaginava ser vizinha do cemitrio do Ara. Neste dia eu fiquei, talvez, amarrado das dez horas da manh at quatro da tarde. O delrio evoluiu. Aps algum tempo eu no estava mais enterrado vivo. Eu era um morto sem condies de ser enterrado. A catacumba onde eu estava era uma espcie de purgatrio com objetivos de purificao. Era um lugar intermedirio entre o Hospital das Clnicas e o Cemitrio do Ara para onde eram mandados os mortos de graves doenas infecciosas. Havia um pessoal burocrata que decidia quem podia ser enterrado, e quem podia subia pelo elevador at o cemitrio. Quem no podia, continuava amarrado. (No havia elevador no local). Meu corpo estava numa estranha transmutao e de repente eu no era mais eu. Perdi todas as esperanas de ser solto pois eu era, afinal, o vrus da AIDS que tinha sido isolado naquele estranho lugar para ser estudado pelos mdicos. Eu era um vrus e tinha sido capturado. Meu corpo todo tinha sido envolto por uma pelcula plstica para que no contaminasse ningum. Aps um tempo, perdi as esperanas de ser solto e parei de gritar. Foi quando, um tempo depois, fui solto da cama. Andei at a sala de televiso sem ver ningum e fiquei sentado num dos bancos de madeira que havia no local. Os bancos estavam postos em L, como devem estar at hoje, e assim pareciam delimitar um espao mximo de ao de cerca de dez metros quadrados. Da eu vi ao meu lado, sentado, assistindo televiso, um companheiro paciente. Era um preto gordo, j um senhor, bonacheiro, com um gorro enfiado na cabea. Eu no sabia que ele estava vendo televiso. Nem sabia que ali havia televiso - eu no a via, pendurada alta na parede. Para mim, eu continuava preso para toda a eternidade naquele quadrado delimitado pelos bancos e o preto era o meu vigia.

Neste delrio, aps ser medicado em So Paulo, fui para a praia com Mnica e as crianas e tambm com meu irmo mdico e sua famlia. Desta vez tive a maior impregnao de haldol de todas as minhas crises. Alis, mesmo em minhas internaes, nunca vi ningum to impregnado quanto eu fiquei. O akineton no foi suficiente para deter a impregnao. Primeiro meu corpo ficou todo rgido e eu s me movimentava muito lentamente, com o andar estranho dos robs. Depois, uma tarde, fui acometido por um repuxamento muscular na nuca e no pescoo e eu ficava com o rosto de lado, com a musculatura toda estirada. Meu maxilar se travou e o trismo no permitia que eu abrisse a boca. Minha cunhada deitou-me numa esteira de taboa e me fez massagens. Assim fiquei sabendo que massagens no adiantam nada para isto. Meu irmo me pegou pelo brao, ps-me no carro e levoume at a farmcia em Boissucanga. No caminho, havia enormes mquinas de terraplanagem que abriam naquele tempo o novo leito da Rio-Santos. Durante todo o percurso, eu achava que seramos esmagados por aquelas mquinas imensas. Estava certo que elas estavam ali apenas para nos perseguir, triturando-nos entre suas ps e esteiras. Os barreiros que havia no caminho tinham sido feitos de propsito pelas mquinas para nos fazer atolar. Depois elas viriam e nos esmagariam enquanto estivssemos atolados. Em Boissucanga, na farmcia, na calada do lado de fora, lembro-me de uma mulher ndia com um faco na mo que olhava para mim desconfiada. Eu tinha medo que ela me atacasse com o faco. De fato, como eu estava, com a cabea estirada de lado, o maxilar teso, repuxando msculos faciais e andando feito rob acho que ela estava me estranhando. Lembro-me at hoje de seu olhar fixo e seu faco enorme seguro pelo brao direito, em posio de alerta. Na realidade, ela estava mesmo preparada para me atacar, tanto que meu irmo me puxou para dentro da farmcia, dizendo-me: _ Cuidado com a ndia. Voc no v o faco dela e que ela est pronta para atacar? Ela est com medo de voc. Fique comigo. No v mais l. Da meu irmo me fez beber meio vidrinho de Fenergan e poucos minutos depois, como por milagre, toda minha musculatura se relaxou e eu me livrei da impregnao. O delrio com as mquinas de terraplanagem, no entanto, continuou e eu vivi na volta at Barra do Una o mesmo terror de que elas iriam nos triturar.

-9- 10 O haldol, assim como outros neurolpticos, causa efeitos colaterais, comumente chamados de impregnao e que consistem basicamente numa crescente robotizao dos movimentos por uma rigidez muscular que se espalha pelo corpo todo. Para deter a impregnao usam-se outros remdios junto com os neurolpticos. Uma noite, na praia, fiquei de meia noite at sete horas da manh condicionando um bagre num balde de gua. Eu estava certo de estar progredindo em meu intento que era o seguinte: cada vez que eu batesse no balde trs vezes toc, toc, toc, o bagre viria at a superfcie falar comigo. Ento eu batia

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com um pau no balde toc, toc, toc e em seguida jogava comida de peixe na gua. De manh cedo, vendo-me na faina com o balde, depois de eu explicar o que estava fazendo, meu irmo me disse: Agora hora de escovar os dentes, olha a pasta para o bagre. E eu, acreditando mesmo no que fazia, peguei um pouco de pasta de dente e toc, toc, toc, joguei ngua para ele. Nesta manh meu irmo me trouxe para So Paulo para medicar-me e eu s concordei em vir depois que ensinei o pedreiro de minha obra a tomar conta do bagre. Foi assim: eu fui com ele at o rio, soltei o bagre na margem e ele logo sumiu na gua funda. Eu disse para o Armando: _ Voc no se preocupe. Ele est logo num buraco ali. De tarde voc vem at aqui e bate com este pauzinho na beira. Vai fazer toc, toc, toc. Da ele vem e voc d comida pra ele. V se cuida bem do meu bagre enquanto eu estiver em So Paulo.

- 11 Estava em transcurso uma revoluo separatista. So Paulo novamente lutava contra o Brasil. (Hoje acho engraada esta verso, pois, como paulista, nunca aceitei a expresso revoluo separatista e sim revoluo constitucionalista). Sou paulista ferrenho. Desci a serra, com Mnica e as crianas, para Barra do Una. Minha misso era no litoral. noite, antes de deitar, angustiado, eu disse Mnica sentado na cama, dentro do rancho: _ Se eu morrer, voc diz ao Governador que eu morri por So Paulo? Ela disse que sim. Eu insisti: _ Voc promete? Ela prometeu. Dormi. Acordei com Mnica vestindo o biquini. Ela estava defronte janela aberta, de costas para a cama, amarrando o suti do biquini. Eu comecei a chorar. Eu era um covarde. Minha mulher precisava ficar mostrando os peitos para o inimigo, pela janela, para que no bombardeassem o meu rancho. (A praia era deserta e entre o rancho e a praia havia uma touceira de bambu; Mnica no estava se exibindo, apenas estava vontade, como o local permitia). Sa para levar meus filhos para a praia. Grudei o menor deles para atravessar o rio. (Entre meu terreno e a praia existe o Rio Una. Havia chovido muito e o rio estava com grande correnteza). Logo percebi que o inimigo, para me capturar, havia lanado mo de um interessante ardil: ele baixara o nvel do mar para o rio correr ligeiro e eu me atrapalhar na correnteza. Vocs acham que isto impossvel porque no conhecem a astcia e os recursos de meu inimigo: ele fazia isto com gigantescas bombas hidrulicas na barra do rio, onde o rio encontra o mar, escondido por trs da restinga de areia. Pus o menino no barquinho e sa remando em diagonal correnteza. Dei risada. Era a fora bruta deles contra a minha habilidade. Deixei o menino na praia e vim buscar o outro, do lado de c do rio. (O barco era pequeno; o rio estava forte: no dava pra levar os dois ao mesmo tempo). No meio do rio o barco comeou a afundar. Logo percebi o que houve. O ini-

migo tirara a tampa do barco com sensores remotos. Percebi a tempo que o barco estava destampado e voltei a tamp-lo. Sorri comigo mesmo. Eram os sensores remotos deles contra minha percepo e rapidez. Mudei de lugar no barco e controlei o nvel dgua. Remei com vigor e cheguei margem de casa, muito abaixo de meu terreno, devido correnteza. Meu filho chorava, gritando do lado de l do rio, na praia: _ Pai, Pai, vem me buscar... _ J vai, meu filho. No sai da. No tenha medo, eu j vou voltar. (Entre ns havia um rio de 40 m de largura, correndo em grande correnteza). Os vizinhos vieram me ajudar a esvaziar o barco. Eles estavam de culos escuros: eram inimigos. Deixei-os fazer fora sozinhos para esvaziar o barco, no sou besta, vou deix-los cansados. Eles esvaziaram o barco e levaram-no at em frente a minha casa, no lugar de atravessar de novo. (Perderam a tampa do barco mas eu sabia que era espionagem, roubaram a minha tampa). _ Pai, Pai, me tira daqui... _ Espera, espera. No saia do lugar! Corri at o rancho. Encontrei uma tampa de lata de spray e peguei a faca. Cortei um pedao do plstico para ajustar no local, arranquei o pedao com o dente - meu inimigo me olhando, vendo onde eu ia falhar para ele atacar - tapei o buraco do barco e atravessei de novo o rio. Peguei meu filho e voltei para casa. Falei para a Mnica: _ No d pra ir praia hoje. Os inimigos esto todos por a. Fizeram uma correnteza no rio que voc precisa ver. Quase me pegaram.

- 12 Logo aps a publicao de Memrias do Delrio, de minha autoria, uma srie de artigos e resenhas sobre o livro foram publicados pela imprensa. Para a resenha da revista Veja eu fui entrevistado. A reportagem que a revista publicou, com uma foto minha, ainda que de costas, deu-me uma sensao incrvel de desconforto pela grande exposio a que eu me submetia e principalmente pelo fato de que considerei a matria muito crua e dura, ainda que desse grande destaque ao livro. Logo comecei a desestabilizar-me. E em poucos dias eu estava em delrio. Semanas antes havia sido publicada uma resenha em Curitiba. Por um erro de composio do jornal, a matria que saiu sob o ttulo da resenha e ao lado de uma reproduo da capa do livro era uma notcia sobre o Cartel de Medellin. No dia seguinte que o jornal publicou corretamente a resenha. Mas fiquei com este fato na cabea e quando a reportagem da Veja me desestabilizou passei a achar que o jornal de Curitiba estava me mandando uma mensagem cifrada. Que como eu falava mal da maconha no livro eu seria alvo dos traficantes do Cartel. Passei uns quinze dias sendo perseguido pelo Cartel de Medellin. Para cada instante eu esperava um ataque. Minha famlia, como de hbito, de incio lutou contra minha convico delirante, mas, a partir do momento em que ficou claro que eu estava com o delrio estabelecido, em seguida entrou no jogo. No me contrariavam e apenas diziam que para que os traficantes pudes-

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sem me pegar teriam de pegar todo mundo. Em que pese o ligeiro alvio em termos de segurana que eu sentia, passei a ficar muito preocupado com todos da famlia e a sentir-me culpado pela insegurana em que agora todos viviam. Apenas ao final de meu delrio, quando comecei a duvidar de minhas certezas, que meus pais e irmos fizeram fora para me convencer de que ningum me perseguia. H sabedoria no ditado que diz que no se deve contrariar os loucos. D conforto ter gente a seu lado que acredite nas percepes desvairadas. Negar, fazer fora contra na hora errada, alm de nos tornar mais isolados, s vezes faz com que pensemos que quem est contrariando a evidncia do delrio est do outro lado, faz parte dos inimigos.

- 13 Em 1993, minha instabilidade era to grande, eu entrando e saindo sucessivamente de crises alternadas de depresso e euforia que meu mdico sugeriu-me e acabou por convencer-me e minha famlia de que seria interessante tentar uma nova medicao. Havia tambm a convenincia de se tentar um novo neurolptico, pois o uso a longo prazo que eu fazia do haldol estava dando sinais de estabelecimento da discinesia tardia. (A discinesia um sintoma colateral da medicao e que se caracteriza por aqueles esgares de lbio to marcantes da loucura. Em grande parte dos casos, efeito de remdio e no sintoma da doena). Eu concordei, esperanoso, e entrei na aventura de ser sujeito experimental de um medicamento que estava em teste no Brasil, antes de ser lanado no mercado. Era a risperidona. O experimento foi conduzido na USP e na UNICAMP, entre outros centros de pesquisa, e eu fui inscrito no grupo piloto do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicas. Quando iniciei com a medicao eu estava em leve crise, mas logo a seguir entrei em forte delrio. Um tipo novo de delrio que eu ainda no conhecia. Tive meu primeiro delrio cenestsico, que se caracterizava por fortes dores e sensaes musculares e corporais. O que eu sentia era uma tremenda e insuportvel dor torxica e nas costas. Era uma dor aguda e lancinante que me atravessa em diagonal desde o peito at a base da coluna, verticalmente. Eu tinha certeza de que havia uma espada enorme, do tipo das que os cruzados usavam, afiadssima, atravessada em minhas costas e em meu peito, fincada de baixo para cima. E eu no podia me mexer, pois a cada movimento a espada cortava mais. Ficava horas sentado, parado numa mesma posio retorcida para tentar evitar a dor. Neste mesmo delrio eu quase explodi. Literalmente. Mexendo, um dia, com minha binga (aquele tipo de isqueiro antigo), eu, ao abastec-la de fluido, derramei grande quantidade de lquido na mesa e sem me aperceber inalei todo o gs que se volatilizava. Quando me dei conta do sucedido, passei a ficar apavorado, achei que eu iria explodir. Principalmente porque, fumante inveterado, mesmo diante da minha absoluta convico do risco de exploso, eu no deixava de acender um cigarro atrs do outro. Mas eu fumava com uma tremenda preocupao em no peidar, porque estava certo de que se eu peidasse ocorreria uma

exploso. Eu me sentia uma bomba ambulante. O nico cigarro que fumei tranqilo, neste dia, foi no consultrio de meu mdico, que me garantiu que eu podia fumar e peidar o quanto quisesse que no explodiria. Lembro-me at hoje da esdrxula conversa que tivemos, ele divertido e srio a me explicar que eu no corria o risco de explodir. A experincia com a risperidona no deu certo para mim; pelo contrrio, foi aterradora por deflagrar minha fase de delrios cenestsicos. Tive notcias, no entanto, de que o uso do remdio foi aprovado e de que alguns doentes tm-se dado bem com ele. Mesmo sem questionar a competncia e a tica dos mdicos que conduziram este experimento, duvido, entretanto, que o protocolo final deste teste discorra sobre a possvel interferncia desta droga na instalao de delrios cenestsicos. Possivelmente, porque sou uma irrelevncia estatstica.

- 14 O uso da risperidona, ainda que por pouco tempo, deixoume de herana os delrios cenestsicos que voltei a ter mesmo sem estar mais usando esta droga. Sei l o que aconteceu, ela deve ter aberto algum novo tipo de sinapse patolgica no meu repertrio neurolgico. Sei que um dia eu precisava ir a um cartrio no centro da cidade para passar a escritura definitiva de um imvel que eu havia vendido muitos anos antes. Peguei meu carro e fui. Ou, antes, tentei ir. No pude l chegar porque a meio caminho envolvi-me no centro de uma revoluo. Era, para repetir o enredo, alguma coisa de confuso de So Paulo com o resto do pas. Mas, de repente, a revoluo virou uma guerra e eu de paulista virei brasileiro e tudo se tratava de defender o solo ptrio. S que as foras armadas no se entendiam e o exrcito no se dava com a marinha e nem os dois com a aeronutica. Eu era um agente de informaes e espionagem da marinha. E quando estava passando pela Rua Santo Antnio, no Bexiga, em frente a um posto de gasolina, levei um tiro na perna, certamente desferido pelas foras da aeronutica. A dor foi lancinante e tive uma tremenda contrao. Sorte que o trnsito estava parado e ento eu coloquei o p sobre o painel do carro e ento pude massagear a perna. O frentista do posto de gasolina me olhava com estranheza e o mesmo fazia um motoqueiro parado a meu lado e assim, logo que o farol abriu, eu sa dirigindo com dificuldade porque eles eram inimigos e eu no podia me expor mais, ainda mais agora que estava ferido. Desisti de ir ao cartrio e resolvi dirigir-me de volta ao Pacaembu, para voltar para casa e buscar socorro. Minha perna direita doa violentamente e pesava uns quinze quilos. Eu tinha de fazer uma fora enorme para no deixar meu p afundar no acelerador. Observei que no havia sangue no lugar do tiro, mas isso no me surpreendeu, pois estava claro que eu havia sido atingido por uma arma nova que me introduzira na barriga da perna um projtil de chumbo lquido, razo pela qual eu tambm no localizava a bala quando nas paradas do trnsito voltava a massagear a perna.

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Na Rua Maria Antnia havia um pedgio de calouros do Mackenzie. Perto da Rua Sergipe, com um trnsito novamente parado, chegou minha janela um estudante em trote e pediu-me um trocado para o chope dos veteranos. Eu, sem querer e sem poder evitar, talvez passei-lhe o grande trote de sua entrada na faculdade. Eu precisava de socorro. No achava que agentaria chegar ao Pacaembu e, desesperado de dor, contei-lhe do tiro que eu levara, pedi socorro, que ele providenciasse um mdico. Meu sofrimento e minha dor eram to autnticos que ele, mesmo sem entender nada e mesmo sem o sangue que seria a evidncia do tiro, parece de fato ter acreditado na histria toda. Ao mesmo tempo que as manifestaes cenestsicas se intensificavam, minha cabea no parava e eu via naquilo tudo, de o calouro de engenharia do Mackenzie tentando me ajudar, a mim, um ex-estudante de Filosofia da USP, uma amostra de como o destino d voltas e de como os inimigos de ontem podem ser os aliados de hoje na histria das verdadeiras guerras. Tudo foi, afinal, to rpido que sequer deu tempo de o rapazola sair da estupefao em que o coloquei, posto que em seguida achei que o melhor mesmo era eu ir at em casa e num ato reflexo, para despist-lo, apontei com vivacidade para a esquina da frente e disse-lhe que visse... se ele no tinha visto aquele carro assim-assim atropelar a moa que atravessava a rua e ele, ao se virar para mais esta insuspeita ocorrncia, distraiu-se de mim e sa quase cantando pneu em direo minha casa. Por rpido que tudo fosse, o tempo ainda foi suficiente para eu coloc-lo a par de importante mensagem, de cujo teor no lembro, que ele deveria por questo de vida ou morte fazer chegar a um alto lder nacional, depois de eu ter-lhe declinado minha patente, para o caso de eu ser morto no caminho. Sei dizer que pelo espelho vi o rapaz sair correndo para um grupinho de estudantes, to logo meu carro se afastava. O que ele contou aos outros e o que pensou de mim e desta estranha guerra que eu travava eu no sei. Mas naquele momento eu dava de mim o melhor para minha causa e minha causa era o meu pas. Ao chegar em casa, vi que eu estava isolado. Em casa no havia ningum, e trabalhando ao longo dos fios telefnicos de minha rua, bem em frente de onde eu moro, havia muitos homens fazendo reparos nos postes, erguidos por aquelas caambas automticas dos caminhes de servio. Tudo aquilo nada mais era do que uma operao para interferir com minha linha telefnica de tal forma que eu estava incomunicvel. Tanto isto era verdade que todos os nmeros para os quais eu tentava ligar davam ocupado ou eram ligaes para o nmero errado. S conseguia falar com gente estranha que me desligava o telefone na cara. Um lampejo de lucidez alucinada me conduziu a procurar meu mdico. Mas no sem antes render-me dor e deitar-me na cama para no exaurir minhas foras. Minhas preocupaes eram trs, entre outras, durante os minutos em que descansei em meu quarto. Preocupava-me sobretudo a morte que adviria de duas formas certas. A primeira, inexorvel se eu no conseguisse socorro mdico imediato e no tivesse minha perna amputada, era que o chumbo lquido se solidificaria e causaria uma gangrena que se estenderia pelo meu corpo todo. A segunda preocupa-

o com a morte era que eu poderia a qualquer momento ser atingido por um tiro de longa distncia, disparado pelo vo da janela de meu quarto, razo porque eu precisava ficar deitado sem travesseiro para no deixar minha cabea mostra, na linha de tiro. A terceira grande preocupao era com meu seguro de vida para garantir a educao de meus filhos depois que eu morresse. Acabei, afinal, localizando meu psiquiatra por telefone, justamente para que ele me providenciasse a urgente remoo que eu necessitava para um centro cirrgico, a fim de amputar minha perna. Ele acabou por convencer-me de que meu problema estava na cabea e no na perna e de que eu precisava era de uma consulta e uma medicao com urgncia. E a nica alternativa rpida que havia para isto era eu ir at o seu consultrio na Vila Mariana, pois de l ele no tinha condies de sair naquela hora. Andei mancando o quarteiro que me separa da avenida e tomei um taxi. Para meu azar o motorista era inimigo. Pois a guerra continuava e durante dias ainda se estendeu. Mas eu sabia como lidar com este inimigo que estava no volante. Para no deix-lo raciocinar resolvi contar-lhe piadas e assim fui durante a meia hora do trajeto. No sei de onde minha memria foi sacar tanta piada, eu que no sou de contar piada. E as piadas se sucediam sem cessar, todas com duplo sentido e, ainda, por requinte, tenho a lembrana de que a maioria delas era de poltica e de caserna. S que o cara no ria. E eu gargalhava sozinho, mas isso no importava porque cada piada que eu conseguia terminar representava uma vitria minha. Cheguei salvo ao consultrio. E de l sa, noitinha j, com minhas receitas e a recomendao expressa de meu mdico de ir direto para a farmcia e para casa, sem parar em lugar nenhum, sem conversar com pessoa qualquer a respeito de assunto nenhum e principalmente sem contar piadas. O taxi que eu tomei na volta para casa era dirigido por um velho veterano da defesa civil, que tambm participava do esforo de guerra. Com ele no falei nada durante o trajeto, seguindo a orientao de meu mdico, mas fiquei alarmado com as mutaes que seu rosto assumiu durante a corrida, fruto de alucinaes visuais que comecei a ter naquele instante. Era particularmente desagradvel o fato de durante todo o caminho o velho vir pondo e tirando o cu da boca, enquanto dirigia. Para meu conforto, ao chegar em casa meus pais ali estavam e com eles e meus remdios reiniciei minha verdadeira e permanente guerra que a luta contra a loucura. Ao cartrio fui no dia seguinte, de Metr, amparado por minha me que me guiou pelos labirintos das escadarias das estaes e atravs das multides do centro de So Paulo, porque compromisso de negcio no pode esperar a guerra acabar e eu mesmo, no fundo, sabia que honrar minha palavra numa transao comercial era mais importante do que continuar guerreando. H anos atrs a venda daquele terreno ajudara a pagar meus remdios. Estes mesmos remdios de que depende a manuteno de minha sanidade, mas que at hoje no conheo nenhum sem algum tipo de efeitozinho colateral. O efeito colateral que a risperidona me deu foi este de me instalar na fase dos delrios cenestsicos. Justo ela, cuja vantagem alardeada era a de no ter efeito colateral algum. Hoje faz tempo que no tenho delrios e alucinaes cenestsicos, mas justo no lugar em que levei o tiro de chum-

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bo lquido, na barriga da perna direita, costumo ter, agora, de vez em vez, uma cibra feroz. Quando ouo falar de remdio psiquitrico sem efeito colateral, hoje em dia, tenho um medo que me plo. Penso que sejam efeitos desconhecidos ou no relatados na literatura mdica.

- 15 Ocorre-me que talvez mais til seja eu encerrar este texto no com o relato de mais um delrio qualquer, mas com a reafirmao de que sou amnsico a respeito de meus delrios depois que eles se desfazem. Imagino que algum possa achar estranha essa afirmao aps ter lido vrias pginas de relatos variados de delrios recentes e at bem antigos, alguns com diversos detalhes. Mas o fato que o relatado corresponde minha memria mais significativa em cada caso e os detalhes so mnimos comparados multiplicidade dos episdios que se desenvolvem em cada momento do delrio e complexidade das sensaes e emoes que vivo numa crise. Principalmente no que se refere intensidade das vivncias. Relatar um delrio dando destaque ao lado humorstico das situaes, como fiz em alguns casos, importante para realar o surrealismo das experincias e para tentar tornar a leitura mais agradvel, mas pode levar falsa impresso de que tudo no passa de uma grande curtio. Nada mais enganoso. A tnica onipresente em cada uma dessas situaes a de um medo tenebroso. Um pavor e uma angstia inenarrveis. Nada vivido pelo lado engraado, exceto nas pequenas trguas de conversaes com pessoas que me conhecem muito bem e sabem me acompanhar no desvario. A fase de bem estar nas crises corresponde, para mim, ao incio do descontrole eufrico. Seria, como se diz, a fase pr-manaca. Quando o delrio se estabelece em plenitude, a vivncia aterrorizante. O sofrimento superlativo. Cada delrio destes, de que relatei passagens, durou muitos dias, s vezes at duas ou trs semanas, e cada minuto desses dias foi um momento de pnico, de urgncia, de situao emergencial, onde alguma ameaa fatal me assolava de forma acachapante. O medo de vir a morrer numa exploso causada por um peido de gases inflamveis no menor do que o de vir a ser esmagado por uma motoniveladora no canteiro de obras de uma estrada em construo. Nem a angstia menor. Diante das situaes intensa e ininterruptamente vividas ao longo de vrios dias e noites, aquilo que minha memria retm no passa de fragmentos. De dezenas ou mesmo centenas de delrios no guardo a menor recordao. E de muitas das crises cujos fragmentos eu relatei, minha ex-mulher ou meus pais e irmos talvez tenham melhor memria do que eu. Por isso no sou um bom contador de delrios. O que deles me lembro e o que consigo transmitir numa narrativa nem de longe se assemelham reconstituio das situaes que vivi.

A nica forma de saber o que um delrio ou uma alucinao passando pela prpria experincia. No desejo isso a ningum, e que ningum pense que esta uma experincia que vale a pena. No vale. O surrealismo vivido a pior das realidades existentes. Conheo pessoas, no entanto, que admiram minha vivncia. Creio que imaginam que me enriqueci espiritual ou existencialmente com ela. ao contrrio. Esse enriquecimento a que se referem, algum tipo de crescimento, s se d ao nvel da expanso da conscincia, no com o contato patolgico com o inconsciente. Se algum crescimento a doena me trouxe, este referente a ela mesma e se constitui no desenvolvimento da conscincia de minha fragilidade e no reforo de meu lado sadio para dar conta de suportar e conviver com as crises, tentando no destruir minha vida a cada novo episdio delirante. O contato com o sublime e com o tenebroso que existe no inconsciente , de fato, uma fonte de crescimento e energia, e tanto mais quando nos apropriamos conscientemente de seus contedos. Mas com limites. Qualquer um pode fazer isso intensa e proficuamente se souber curtir seus sonhos. O lado tenebroso do inconsciente solta na vida, dominando em delrio todas as aes e sensaes, literalmente uma loucura. patolgico e em qualquer instante, sem mais aviso, pode levar morte num ato qualquer desvairado durante uma crise. Por isso nenhum delrio engraado, a despeito das situaes hilariantes que possa criar. Quem quiser se aproximar da compreenso do que vem a ser um delrio, tome contato profundo com os seus prprios sonhos. Principalmente com os pesadelos. Experimente imaginar o que viria a ser o seu pior pesadelo e imagine o que seria de voc vivendo este pesadelo ininterruptamente durante duas ou trs semanas, acordado, enquanto tenta continuar dando conta da sua vida, trabalhando, cuidando dos filhos, se relacionando com as pessoas e com os fatos do mundo real. Misture as vicissitudes de seu cotidiano com o lado mais tenebroso de seu inconsciente e depois me diga que minha experincia ou a de qualquer outro psictico enriquecedora. Verdade que, em momentos meus de desalento e desesperana perante o mundo e as pessoas, eu s vezes j fantasiei que seria muito instrutivo para alguns experimentar uma crisezinha psiquitrica para largar mo de tanta onipotncia ou de tanto chorar de barriga cheia. Mas isso no passa de meus rancores. Na verdade, volto a dizer que no desejo a experincia a ningum, nem mesmo a meus desafetos. Quanto a meu prprio destino, acalanta-me a esperana de que Deus seja sbio. Talvez ele d o frio conforme o cobertor.

Comentrios deste e de outro auto-relato de delrios por Othon Bastos no prximo nmero de CPP.

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Artigos OriginaisSNDROME DE KLEINE-LEVIN: CONSIDERACIONES DIAGNSTICAS Y TERAPUTICASKLEINE-LEVIN SYNDROME: DIAGNOSTIC AND THERAPEUTIC CONSIDERATIONS

Pilar Sierra San Miguel* Lorenzo Livianos Aldana** Luis Rojo Moreno**

ResumenEl sndrome de Kleine-Levin es un sndrome caracterizado por la triada clsica de hipersomnia peridica, trastornos de la alimentacin en forma de megafagia y diversos sntomas neuropsiquitricos. Se trata de un trastorno de difcil diagnstico, que puede iniciarse con sintomatologa muy inespecfica. Hasta el momento, se han descrito unos 100 casos. El presente artculo expone el caso de un hombre de 22 aos inicialmente diagnosticado de trastorno de somatizacin y que finalmente lo fue de sndrome de Kleine-Levin, tras perfilarse la sintomaloga clsica de somnolencia excesiva, hiperfagia e hipersexualidad. En este trabajo, los autores exponen el cuadro clnico insistiendo en los tratamientos utilizados y resultados obtenidos.Palabras-claves: Sndrome de Kleine-Levin; Hipersomno-lencia; Hiperfagia; Sexualidad

polifagia e hiperfagia. Orlosky9 en una revisin de 33 casos, encontr como alteracin ms frecuente la confusin (73%), irritabilidad (58%), amnesia (39%), ilusiones (30%), letargia (24%), depresin (21%) y desinhibicin sexual (18%).10 La diversidad etiolgica es notable. Por una parte, se ha postulado un trastorno funcional del sistema mesencfalo-hipotlamo-lmbico, al encontrar diferentes altera-ciones hormonales hipotlamo-hipofisarias y de neurotransmisores. Ademas, con frecuencia existen antecedentes de infecciones vricas o gripales los das previos al primer episodio, encontrando infiltrados de linfocitos que evocaran una encefalitis viral localizada.11 Incluso se han descrito casos en los que los sntomas aparecieron despues de experiencias psicolgicas estresantes o traumatismos craneoenceflicos.12 Por otra parte, anomalas neuroendocrinolgicas comunes podran explicar la coexistencia entre el sndrome de Kleine-Levin y la enfermedad de Parkinson en algunos pacientes.13

Caso clnicoPaciente varn de 22 aos que acude al Centro de Salud Mental, derivado por su mdico de familia refiriendo somnolencia excesiva y estado de nimo depresivo. Embarazo, parto y desarrollo psico-motor normal. Sin antecedentes mdicos, ni psiquitricos propios o familiares. En cuanto a su biografa, segundo de tres hermanos, soltero, convive con sus padres. Obtuvo el Graduado Escolar y actualmente trabaja como taxista. Personalidad dependiente con tendencia a la introversin y retraimiento social. En el momento de la primera consulta, se mostraba emptico y con conciencia de enfermedad. Segn relataba, la enfermedad actual se haba iniciado haca dos aos. En un principio, defina unos sntomas vagos consistentes en sensacin de mareo, inestabilidad y parestesias en zona frontal y temporal derecha, de presentacin matutina. La inespecificidad de estos sntomas, motiv un diagnstico inicial de trastorno de somatizacin. Progresivamente el cuadro se fue agravando, llegando a interferir notablemente en su vida diaria, especialmente en el plano laboral, dada la imposibilidad de acudir a su trabajo como taxista en los turnos matutinos. El paciente refera episodios de hipersomnia matutina, despertndose solo mediante estmulos intensos, con amnesia posterior y sensacin de extraeza. La

Satterley describi por primera vez en 1815 un caso con un perfil similar a lo que actualmente denominamos sndrome de Kleine-Levin. Posteriormente, Dana (1884), Anfimot (1898), Kleine (1925)1 y Levin2 (1929) aportaron casos con una sintomatologa coincidente. El trmino de sndrome de Kleine-Levin, se debe a Critchley y Hoffmann3,4 quienes lo propusieron en 1942. Aparece de forma ms frecuente en varones, en la ltima etapa de la adolescencia y a partir de la segunda dcada de la vida, posteriormente se observa una disminucin gradual tanto en la frecuencia como en la duracin de los episodios.5 Tambin existen casos descritos con una clnica muy similar en mujeres, en relacin con el periodo menstrual pudiendo ejercer un importante papel etiopatognico la progesterona.6 En cuanto a la hipersomnia, puede instaurarse de forma brusca o gradualmente, tiene un carcter recurrente y una duracin variable, desde un da hasta seis semanas como caso extremo.7 Billiar,8 uno de los autores que ms ha publicado en torno a este tema, escogi el trmino sobrealimentacin, a la hora de describir los trastornos alimentarios, ya que incluyen megafagia,

* Mdico Interno Residente de Psiquiatra, Hospital La Fe. ** Prof. Titular de Psiquiatra, Universidad de Valencia y Hospital La Fe.

Endereo para correspondncia: Lorenzo Livianos Aldana Dpto. Medicina, U.D. Psiquiatra Avd. Blasco Ibaez, 17 E-46010 Valencia Espaa

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Sndrome de Kleine-Levin: consideraciones diagnsticas y teraputicas

evolucin segua un curso cclico, pero sin relacin con el periodo estacional. Al mismo tiempo, presentaba aumento del apetito con accesos compulsivos de hiperfagia, aumento de la lbido e hipersexualidad (traducidos en episodios de masturbacin muy frecuentes) Segn sus familiares, las fases en las que se reagudizaba la clnica se acompaaban de sintomatologa afectiva, consistente en nimo triste, pobre control emocional y apata. En ningn momento se evidenciaron alteraciones psicopatolgicas de otra ndole. Exploraciones complementarias: hemograma y bioqumica sin hallazgos patolgicos; funcin tiroidea dentro de valores normales; electroencefalograma anodino; registro poligrfico del sueo: Ha sido imposible su realizacin por la dificultad del paciente en acudir al hospital en los horarios previstos.

TratamientoAnte la inespecificidad inicial del cuadro, instauramos tratamiento con antidepresivos inhibidores de la recaptacin de serotonina, junto con sulpiride. Posteriormente, aadimos un antidepresivo dopaminrgico con marcado efecto estimulante como el amineptino. En ambos casos, no obtuvimos respuesta positiva. Una vez perfilado el diagnstico, utilizamos carbonato de litio hasta llegar a niveles terapeticos. Sin embargo, pese a considerarse el tratamiento de primera eleccin en la actualidad, en nuestro caso seguimos sin obtener el efecto previsto. Posteriormente, aadimos un psicoestimulante como el metilfenidato, los resultados fueron esperanzadores en un principio, mejorando el conjunto de la sintomatologa de forma global y ms especficamente la somnolencia matutina y la hiperfagia. No obstante, tras un periodo de cuatro meses, la clnica se reinstaur con las mismas caractersticas del principio. Por ltimo, se aadi reboxetina a dosis de 4 mg al da, logrando una sustancial mejora del cuadro clnico con una notable disminucin del nmero de episodios hipersomnes, si bien no se ha logrado el blanqueo absoluto. Por medio de los registros diarios que lleva a cabo el paciente, observamos que la frecuencia de los episodios se ha reducido a un 10% de la original, no as la intensidad que permanece inalterable. Esta mejora se mantiene desde hace unos seis meses, lo que permite abrigar unas ciertas esperanzas.

vasculares, traumatismos craneoenceflicos, tumores de afectacin supraselar,16 sndromes de apnea-sueo, frmacos sedantes o anticomiciales, pueden estar presentes. Es decir, la etiologa multifactorial puede retrasar un diagnstico certero. Por lo que respecta al tratamiento, Hart17,18 en 1985 destac el papel del carbonato de litio debido a su accin sobre el metabolismo de la serotonina, que se encuentra aumentada en el lquido cefalorraqudeo de estos pacientes, con una renovacin aumentada, al igual que la dopamina. Desde entonces, numerosos autores hecho notar su efecto beneficioso,19 de modo que en la actualidad, el litio se considera la mejor opcin terapetica pudiendo resultar efectivo en la fase aguda y especialmente en la prevencin de recadas. Las dosis recomendadas son de 800 mg/d, hasta llegar a litemias estables de 0,4 mEq/l. Tras un periodo asintomtico no concreto y con la normalizacin en el estudio polisomnogrfico, la medicacin puede ser retirada para evitar efectos secundarios, aunque con frecuencia se ha de reinstaurar. Se ha defencido el uso de eutimizantes del tipo de la carbamacepina20 o el cido valprico. Otra posibilidad terapetica la constituyen los psicoestimulantes del tipo de la efedrina, anfetaminas o metilfenidato, que actan sobre la hipersomnolencia, pero no sobre el resto de la sintomatologa y que en ocasiones pueden servir para prevenir la recurrencia. Pese a que el acento se ha marcado, como hemos visto, en la participacin de la serotonina y dopamina, los frmacos activos en estos sistemas no lograron efecto alguno en nuestro paciente. La respuesta ha aparecido nica y exclusivamente con psicofrmacos activos en la va noradrenrgica. As pues, conviene considerar esta va como una alternativa terapetica.

SummaryKleine-Levins syndrome is characterised by the classic triad of periodic hypersomnia, hyperphagia and hypersexuality along with other neuropsychiatric symptoms. The diagnosis is often difficult as it can begin with very vague simptomatology. About a hundred cases have been described worldwide.The present work exposes the case of a 22 year-old man initially diagnosed of somatization dysfunction and, after the classic triad of excessive drowsiness, hyperphagia and hypersexuality has been profiled, finally received the diagnose of Kleine-Levin syndrome. In this work, the authors expose the clinical picture stressing the treatments used and the results obtained.Key-words: Kleine-Levin Syndrome; Hypersomnia; Hyperphagia; Sex Behavior

DiscursinEl diagnstico del sndrome de Kleine-Levin puede verse oscurecido debido a la presencia de cambios comportamentales y psicolgicos.14 Con gran frecuencia, dada la gran variedad de alteraciones neuropsiquitricas posibles, los pacientes consultan por sintomatologa afectiva, letargia, amnesia e incluso por trastornos psicticos. Consecuentemente, los diagnsticos iniciales pueden ser trastorno de somatizacin, depresin, histeria, esquizofrenia15 lo que nos puede conducir a un tratamiento inadecuado. Ademas no debemos olvidar, que antecedentes de infecciones respiratorias de vas altas, encefalitis, accidentes cerebro-

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DISCINESIA TARDIA COM PREDOMNIO DE DISTONIATARDIVE DYSKINESIA WITH PREDOMINANT DYSTONIA

Guilherme Assumpo Dias

ResumoA discinesia tardia uma complicao do uso de antipsicticos que ainda desafia os especialistas. apresentado, aps breve introduo ao tema, o caso de um paciente de 42 anos, sexo masculino, que depois de oito anos de uso de antipsicticos desenvolveu forma grave de discinesia tardia com predomnio de sintomatologia distnica. Analisa-se a conduta teraputica adotada e as diretrizes atuais para o tratamento da discinesia tardia, bem como as principais hipteses fisiopatolgicas.Palavras-chaves: Discinesia Tardia; Distonia Tardia; Patologia, Teraputica; Agentes Antipsicticos

A discinesia tardia (DT) um efeito colateral decorrente do uso prolongado de drogas bloqueadoras de receptores dopaminrgicos centrais, como os antipsicticos e a metoclopramida. A sndrome caracteriza-se por movimentos repetitivos, involuntrios, hipercinticos, mais comumente afetando a regio orofacial, manifestos como protuso da lngua, movimento de beijar, mastigar, franzir. Esses movimentos so usualmente denominados de coreiformes na psiquiatria1 e de estereotipias na neurologia.2 Alm de movimentos propriamente coricos e de estereotipias, so descritos distonia, acatisia, mioclonias, tremores e tics. Embora freqentemente coexistam, vrios autores separam a DT em subformas correspondentes a esses movimentos, avaliando para cada uma delas os fatores de risco, a epidemiologia e a resposta a tratamentos. O termo geral discinesia tardia pode ser substitudo pelos termos estereotipia tardia, distonia tardia, coria tardia, etc. Conforme os critrios diagnsticos do DSM-IV, necessrio que os sinais e os sintomas se desenvolvam dentro de quatro semanas aps a abstinncia de um neurolptico oral (oito semanas no caso de medicaes de depsito) e que haja um perodo de exposio ao medicamento de pelo menos trs meses (um ms se o indivduo tem 60 anos ou mais).3 Na populao psiquitrica que usa antipsicticos tpicos, a prevalncia mdia gira em torno de 15% a 25% para a DT clssica; 1,5% a 13,4% para a distonia tardia. A acatisia tardia4 possui a maior prevalncia, de at 48%.1 Em idosos, a prevalncia

pode chegar a 50%.3 Em geral, a DT instala-se lentamente, seu curso bastante variado e freqentemente estabiliza-se ao longo dos anos. Pode, em alguns casos, melhorar gradualmente, mesmo com o uso continuado de antipsicticos.5 Quando o antipsictico descontinuado, estima-se que 5% a 40% dos casos em geral, e 50% a 90% dos casos leves, regridam, 30% deles em trs meses e mais de 50% em 12 a 18 meses.3 Devido presena de sintomas semelhantes em populaes esquizofrnicas no tratadas,6 e muitas vezes com taxa de incidncia semelhante dos pacientes que receberam antipsicticos, alguns autores sugerem que a DT possa ser mais um sintoma tardio da esquizofrenia ao invs de um efeito de drogas.7 Essas discinesias espontneas, na verdade, assim como outros distrbios de movimento, constituem importante diagnstico diferencial da DT. Discinesias orais leves, por exemplo, podem ser observadas em idosos com prteses dentrias mal fixadas, que nunca receberam antipsicticos.5 O DSM-IV cita como principais diagnsticos diferenciais as seguintes condies: doena de Huntington, doena de Wilson, coria de Sydenham, lupus eritematoso sistmico, tireotoxicose, envenenamento por metais pesados, prteses dentrias mal fixadas, discinesias devidas a outros medicamentos, tais como L-dopa, bromocriptina ou amantadina, discinesias espontneas e outros transtornos de movimento induzidos por neurolpticos (p.ex. distonia aguda e acatisia aguda).3 So fatores de risco para DT: a idade,8 o sexo feminino quando acima de 65 anos,9 fatores genticos possivelmente ligados ao metabolismo de drogas,1 o uso de lcool, de drogas ilcitas e de fumo,10 o diabetes mellitus,11 os transtornos de humor,12 os transtornos mentais orgnicos, a presena de alteraes neurolgicas ou estruturais13 e, dentre os quadros esquizofrnicos, aqueles com predomnio de sintomas negativos.14 O risco aumenta com a durao e gravidade da doena1 e com a dose acumulada de antipsicticos,15 embora faltem mais dados empricos elucidativos.9 A presena de sintomas extrapiramidais agudos forte fator preditor de risco.9 O tratamento intermitente parece aumentar o risco de DT.9 O emprego de eletroconvulsoterapia no predispe DT, ao contrrio do que alguns estudos da dcada de 60 indicam.1 Embora alguns autores tenham sugerido um papel para os anticolinrgicos como fator de risco para DT, a maioria dos estudos encontrou ausncia de relao causal.1 Ghandirian et al (1996) mostraram que o uso de ltio com antipsicticos aumenta o risco de DT.13

Residente do segundo ano da Residncia de Psiquiatria do HC-UFMG

Endereo para correspondncia: Residncia de Psiquiatria Hospital das Clnicas - UFMG Av. Prof. Alfredo Balena, 110 30130-100 - Belo Horizonte - MG

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Caso Clnico IdentificaoP.P.M., sexo masculino, 42 anos, leucoderma, solteiro, natural e procedente da grande Belo Horizonte, MG. Reside com a me. H 10 anos afastado do trabalho (trabalhava com pintura de equipamentos).

antipsicticos:

Histria da Molstia AtualO paciente foi atendido pela primeira vez no Ambulatrio Bias Fortes do Hospital das Clnicas da UFMG (HC-UFMG) em 14/06/99, onde chegou acompanhado do irmo, com a queixa principal de agitao. Referia-se a uma srie de movimentos involuntrios que apresentava na cabea, no tronco e nos membros, e que j sabia serem decorrentes do uso prvio de certos medicamentos. Tais movimentos se iniciaram h sete meses e eram generalizados e contnuos, embora de intensidade varivel, apresentando diminuio com o decbito. Interferiam com o sono e com a habilidade para execuo de tarefas corriqueiras, posto que predominavam no membro superior dominante (direito). Produziam grande sofrimento, alm de cansao fsico, pois lhe consumiam muita energia. Na poca estava em uso de olanzapina (5 mg/d), clonazepam (2 mg noite), flurazepam (30 mg noite), biperideno (4 mg/d), prometazina e vitamina E (800 mg/d). A olanzapina fora introduzida h quatro meses, sem melhora do quadro. Sua histria psiquitrica se iniciou em 1990. Segundo o irmo, comeou a apresentar tendncia ao isolamento, dificuldade para dormir e absentesmo ao emprego. Sempre fora trabalhador, responsvel e tinha bom relacionamento, tanto em casa quanto no trabalho, apesar de mais reservado. Na poca, foi lhe prescrito bromazepam para dormir. Em pouco tempo (algumas semanas), passou a cismar com as pessoas. Dizia que colegas de trabalho o estavam perseguindo, pegando no seu p, zombando dele. Tinha medo de que os prprios familiares estivessem colocando veneno em sua comida. Ouvia vozes que identificava como de vizinhos ou de familiares, as quais falavam mal dele. Era comum baixar a cabea, angustiado, tampando os ouvidos com as mos. Mostrava-se extremamente incomodado com sons externos. Tornou-se recluso, relapso com cuidados pessoais, no se barbeava. Comia apenas arroz puro. De 1990 a 1997 fez controle ambulatorial, com o diagnstico de esquizofrenia paranide, apresentando perodos de exacerbao dos sintomas psicticos (duas vezes por ano, em mdia) e perodos de melhora, nos quais chamava a ateno dos familiares sua falta de iniciativa e hipoatividade (conseguia ter cuidados bsicos de higiene, apresentava boa interao com familiares, mas passava a maior parte do dia ocioso). Em nenhum momento conseguiu retornar ao trabalho. Nunca foi internado em hospitais psiquitricos, pois possui bom suporte familiar e em suas crises no se tornava fisicamente agressivo. Seu ltimo surto psictico ocorreu em 1997. Desde ento seu quadro psiquitrico se encontra bem controlado. No perodo de 1990 a 1997 fez uso de diversas medicaes psiquitricas, conforme pde ser observado em receitas antigas trazidas consulta:

1990 tioridazina, depois haloperidol (5 mg/d); 1991 haloperidol + clorpromazina (50 a 100 mg/d); 1992 propericiazina (10 gotas/d), pimozida; 1993 propericiazina (10 gotas/d), depois trifluoperazina (5 mg/d); 1994 trifluorperazina (5 mg) + flufenazina IM, depois haloperidol (10 mg/d); 1995 tioridazina, depois risperidona (3 mg/d); 1996-1997 risperidona (3 mg/d), haloperidol; antidepressivos: 1990 fluoxetina (20 mg/d); 1991 amineptina, clormipramina (150 mg/d); 1992 nortriptilina, clormipramina (150 mg/d); 1993 maprotilina, moclobemida (300 mg/d), clormipramina, imipramina; 1994-95 imipramina (150 mg/d); benzodiazepnicos: 1990 bromazepam; 1991 diazepam; 19921993 nitrazepam; 1994-1999 flurazepam; estabilizadores do humor: 1992-94 carbonato de ltio (900 mg/d); anticolinrgico: 1990-99 biperideno.

Histria PregressaNega outras doenas ou cirurgias prvias.

Histria FamiliarNegativa para doenas psiquitricas. Pai falecido com silicose pulmonar. Irmo coronariopata.

Exame PsquicoPaciente cooperativo, higienizado, bem vestido. Usava sua blusa aberta at a metade devido a intensa transpirao. Bom contato interpessoal. Apresentava postura distnica acentuada de tronco, pescoo e membros superiores e movimentos involuntrios coreiformes de membros superiores. Conscincia clara. Orientado no tempo, no espao e autopsiquicamente. Normovigil, normotenaz. Sem alterao da conscincia do eu. Memria preservada. Pensamento de curso normal, organizado. Sem alterao do juzo de realidade. Sem alterao da sensopercepo. Sem alterao do humor. Afeto sntone. Angustiado com seus movimentos anormais. Hipoblico. Inteligncia normal.

Hipteses DiagnsticasEsquizofrenia paranide remisso incompleta, CID10 F20.04. Discinesia tardia, com predomnio de distonia (distonia tardia), CID10 G24.8.

CondutaAvaliao conjunta com ambulatrio de movimentos anormais da neurologia (HC-UFMG), o que se realizou no dia seguin-

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Discinesia tardia com predomnio de distonia

te (15/06/99), sendo adotadas, em comum acordo, as seguintes estratgias: suspenso da olanzapina; introduo de clozapina (dose inicial de 12,5 mg, duas vezes ao dia); introduo de reserpina (dose inicial de 0,25 mg/d); aumento do biperideno para 6 mg/d; reduo lenta e progressiva do flurazepam; manuteno do clonazepam 2 mg/d e vitamina E 400 mg duas vezes/dia. Escala Fahn-Marsden de Avaliao de Distonia (Burke et al, 1985)16 15/06/99: I - escala de movimento (pontuao total de 0 a 120): olhos (0), boca (6), fala/deglutio (3), pescoo (6), MSD (12), MSE (8), tronco (8), MID (0), MIE (0), total (43); II escala de incapacidade (pontuao total de 0 a 28): fala (2), escrita (2), alimentao (1), engolir (0), higiene (1), vestirse (1), andar (1), total (8).

02/06/00: seu irmo tem observado melhora lenta mas progressiva desde o incio do tratamento.

DiscussoO paciente apresenta quadro grave de DT, manifesto por movimentos distnicos e coreiformes, mas com predomnio dos primeiros, podendo, assim, ser denominado distonia tardia. Esta caracterizao traz implicaes teraputicas e prognsticas, conforme se evidenciar adiante. Do ponto de vista terminolgico, notamos a tendncia em psiquiatria de designar-se movimentos neurolgicos estereotipados de coreiformes. Estereotipia: is an involuntary, patterned, repetitive, continuous, coordinated, purposeless, or ritualistic movement, posture, or utterance. Stereotypy may be simple, as exemplified by a repetitive tongue protusion or body-rocking movements, or complex, such as self-caressing, crossing and uncrossing of legs, marching in place, and pacing... Chorea consists of continuous, abrupt, brief, irregular movement that flow randomly from one body part to another.2 A estereotipia tardia seria o tipo mais comum 78% de discinesia tardia na clnica de movimentos anormais do HCUFMG, seguida de distonia, acatisia, tremor, coria apenas 3% com base na definio acima e mioclonos tardios.2 Parece que no caso da discinesia tardia os psiquiatras preferem o termo coreiforme em vez de estereotipia devido a sua conotao nitidamente neurolgica, enquanto que estereotipia nos remete a quadros endgenos ou funcionais e a descries clssicas como estereotipias posturais, estereotipias do movimento ou maneirismo, alm da estereotipia da fala (verbigerao), peculiares catatonia. No caso do nosso paciente, predomina a distonia: sustained and patterned contractions of muscles producing abnormal postures or repetitive twisting (eg, torticollis) or squeezing (eg, blepharospasm) movements.2 Durante um perodo de oito anos, P. fez uso de vrios tipos de antipsicticos tpicos, antes de desenvolver DT haloperidol, tioridazina, propericiazina, clorpromazina, trifluoperazina, pimozida, flufenazina alm da risperidona. Apresentou, segundo seus relatos, parkinsonismo farmacolgico com o uso de haloperidol, trifluoperazina e risperidona. At onde se pde observar pelas receitas trazidas, este efeito ocorreu com apenas 3 mg/d de risperidona, o que indicaria uma maior susceptibilidade individual a sintomas extrapiramidais e, portanto, maior risco para DT.9 Desenvolveu acatisia com pimozida. Tambm fez uso associado de carbonato de ltio durante alguns meses, o que considerado fator de risco para DT.13 P. foi diagnosticado como portador de esquizofrenia paranide. Alguns dados, no entanto, podem sugerir um componente de fundo afetivo, como a presena freqente de sintomas depressivos associados a retraimento social; o uso freqente de antidepressivos variados e de ltio; a certa ciclicidade de perodos de exacerbao e remisso de seus sintomas psicticos; a grande preservao da personalidade e da afetividade; e a ausncia atual de

Retornos 24/06/99: hemograma de base sem alteraes. 02/07/99: iniciada clozapina. 12/07/99: fazendo uso dirio de 50 mg clozapina, 1 mg dereserpina, 6 mg de biperideno, 2 mg de clonazepam, 15 mg de flurazepam, 800 mg de vitamina E. Relata certa reduo dos movimentos anormais (de 20% em sua avaliao subjetiva). Queixa desnimo e corpo ruim desde o incio do uso da reserpina. Ao exame observa-se certa diminuio dos movimentos coreiformes, mantendo-se postura distnica. Conduta: suspenso gradual da reserpina, aumento gradual da clozapina. Restante mantido. Leucograma semanal. 05/08/99: em uso de 75 mg/d de clozapina. 19/08/99: em uso de 150 mg/d de clozapina. Relata desnimo, apatia. 24/08/99: escala de Fahn-Marsden sem qualquer alterao com relao primeira consulta. 06/09/99: clozapina aumentada para 200 mg/d, divididos em duas tomadas dirias. 04/11/99: no houve melhora substancial aps o aumento para 200 mg/d. Sem sintomas psicticos positivos. Boa interao com familiares. Angustiado com a movimentao. Hipoblico, hipoativo. Sono preservado. Ao exame: postura distnica, poucos movimentos coreiformes. Conduta: dose mantida. Suspenso flurazepam. 04/01/00: escala de Fahn-Marsden, subescala de movimento 41. Aumentado clonazepam para 4 mg/d. 03/02/00 e 02/03/00: quadro mantido. 03/04/00: relata melhora da movimentao no superior a 20% a 30%, com relao ao incio do uso da clozapina. Passa grande parte do dia deitado, corpo cansado. Prescrito aumento de dose para 250 mg/d e, aps uma semana, 300 mg/d (100 mg s 8:00 + 200 mg s 20:00). 11/04/00: escala de Fahn-Marsden 37/8. 02/05/00: houve reduo da movimentao em decbito.

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sintomas psicticos. No apresentou sintomas de exaltao do humor, acelerao do pensamento, aumento da fluncia do discurso ou realizao excessiva de atividades. Este possvel componente afetivo poderia influenciar, por um lado, na evoluo menos deteriorante de sua esquizofrenia e, por outro, numa maior susceptibilidade para o desenvolvimento de DT.12 Durante discusso do caso em apresentao clnica na Residncia de Psiquiatria do HC-UFMG, aventou-se a hiptese de acometimento orgnico, por solvente ou metal pesado, decorrente de sua atividade como pintor, o que tambm o predisporia DT. A ausncia de histria familiar para transtornos mentais e seu quadro clnico at certo ponto incaracterstico falam a favor de tal acometimento. Esta hiptese est sendo avaliada (dados significativos, se existentes, sero comunicados nessa revista na seo Seguimento). Uma das estratgias para o manejo da DT grave a substituio dos neurolpticos tpicos por um atpico diferente da clozapina num primeiro momento e, posteriormente, em caso de resposta insatisfatria, pela prpria clozapina.9 Optou-se por substituir a olanzapina pela clozapina. Estudos tm mostrado que o desbalano das vias dopaminrgicas estriatais est relacionado gnese da DT. Os neurnios gabargicos estriatais de projeo se distribuem em duas vias. Na via direta, que desinibe o tlamo quando estimulada, predominam os receptores D1, enquanto na via indireta, que inibe o tlamo, predomina o tipo D2. Os movimentos discinticos se dariam pela predominncia da supersensibilidade de D1.9 Drogas como a clozapina, que bloqueiam de modo balanceado receptores D1 e D2, teriam menor propenso para causar DT. Outra vantagem farmacodinmica da clozapina seria o bloqueio de heterorreceptores pr-sinpticos 5-HT2 em neurnios dopaminrgicos nigrais, o que aumenta a liberao de dopamina na fenda sinptica por desinibio.17 Jeste e Wyatt (1982), revisando oito estudos publicados com clozapina, encontraram melhora estatisticamente significativa em 51% dos pacientes.18 Tem sido considerada melhora significativa a reduo de pelo menos 50% na intensidade dos movimentos involuntrios, medido por escalas apropriadas. Esta considerao imprescindvel posto que pode haver flutuao espontnea da intensidade dos sintomas de at 30% ao longo do tempo.18 Em estudo duplo-cego mais recente (1994), Tamminga et al encontraram melhora significativa em comparao com grupo-controle.9 As taxas de melhora com placebo podem alcanar 37,3% dos pacientes.19 Quando possvel a diminuio ou retirada do antipsictico verifica-se fase inicial de exacerbao da sintomatologia, aps a qual foram encontradas taxas de melhora de 37%18 e 55%20 dos casos. Por outro lado, com o aumento da dose do antipsictico tpico, encontrou-se melhora inicial em 66,9%18 e 44%20 dos pacientes, com o risco de agravamento subseqente do quadro por aumento adicional da populao de receptores dopaminrgicos. As teraputicas coadjuvantes institudas no presente caso foram a reserpina, a vitamina E, o clonazepam e o biperideno. A reserpina foi posteriormente suspensa em funo de efeitos colaterais, descritos por P. como desnimo, apatia, sensao de corpo ruim. A partir da hiptese da supersensibilidade dopaminrgica, os depletores de dopamina passaram a ser avaliados no tratamento da DT. Jeste e Wyatt, em reviso de 1982, observa-

ram melhora em 64% dos pacientes com a reserpina, 68% com a tetrabenazina, 55% com a metildopa e 59% com a oxpertina.18 Em estudo de 1992 da American Psychiatric Association encontrou-se menos de 40% de melhora.1 Evidncias tm apontado efeito neurotxico dos antipsicticos, que, atravs de vrios mecanismos, podem levar a aumento de radicais livres, o que estaria associado ao risco para DT. A vitamina E tem sido recomendada, pois, alm de seu efeito antioxidante, poderia reduzir a supersensibilidade de D221 ou alterar o metabolismo de monoaminas.9 geralmente segura e produz poucos efeitos colaterais.9 No h nos pacientes com DT nveis sricos baixos de vitamina E.22 As taxas de melhora em estudos controlados variaram de 18,5% a 43% dos pacientes, sendo mais efetiva em casos com menos de cinco anos de evoluo e com o emprego da dose de 1.600 mg/d, por um perodo de pelo menos oito semanas.9 uma promessa tambm na profilaxia da DT.23 O GABA o neurotransmissor mais encontrado nos ncleos da base e tem ntimas relaes com os sistemas dopaminrgicos. Foram encontradas evidncias de diminuio da atividade das vias gabargicas estriatais na DT. Em 19 estudos com benzodiazepnicos e valproato, encontrou-se melhora em 54% dos pacientes.18 Em 1988, outra reviso mostrou melhora em 35% e altas taxas de tolerncia farmacolgica.20 Soares, em metanlise, no encontrou utilidade para benzodiazepnicos e achou muitos efeitos colaterais com os demais agonistas.19 Sintomas distnicos podem responder mais ao clonazepam do que movimentos coreoateticos.24 O biperideno foi utilizado por estar indicado nos casos de distonia tardia. Nas demais formas de DT os anticolinrgicos tendem a piorar o quadro, pois o bloqueio colinrgico nos ncleos da base aumenta a liberao de dopamina.1,9 Para o manejo de casos com predomnio de distonia, Egan et