CASTELLANOS Sobre o Conceito de Saúde Enfermidade

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Texto sobre a abordagem da epidemiologia crítica do processo saúde-doença

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329Curso de Especialização em Avaliação de Programas de Controle de Processos Endêmicos, com ênfase em DST/HIV/Aids • Dimensão Técnico-operacional – MLP

Sobre o Conceito de Saúde-doença. Descri-ção e Explicação da Situação de Saúde*Pedro L. Castellanosa

Organização Pan-americana de Saúde

Nos últimos dez anos, em alguns círculos latino-americanos, foi reavivada a controvérsia quanto ao conceito de saúde e doença. Para isto contribuíram, segundo nossa opinião, três fatos fundamentais:

a) A partir da Assembléia Mundial da Saúde de 1977 (Re-solução MAS 30.43)1, na qual os representantes dos gover-nos-membros acordaram que “a principal meta social dos governos e da OMS deveria ser alcançar para todos os cida-dãos do mundo, até o ano 2000, um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva” (Saúde Para Todos até o Ano 2000 – SPT 2000), e da pos-terior Declaração de Alma – Ata (1978), onde se enfatizou, com o compromisso dos governos de quase todos os países do mundo, que a atenção primária era o caminho para alcançar estes objetivos, como parte de um desenvolvimento geral com espírito de justiça social2, em 1980, os governos da América acordaram, no XXVII Conselho Diretor da OPS, as estratégias e os objetivos regionais3, estabelecendo metas precisas quanto à mortalidade geral e à expectativa de vida ao nascer, bem como metas de cobertura total de imunizações, água potável, esgotamento sanitário e serviços de atenção médica para to-dos os grupos de população. Ainda nessa oportunidade, fi cou decidido que a atenção primária deveria ser concebida como uma estratégia de transformação do modelo assistencial em função dos critérios de efi ciência, efi cácia e eqüidade e, ainda, como um conjunto de ações “intersetoriais” orientadas para a transformação das condições de vida, sobretudo dos grupos de população “socialmente excluídos”.

Este conjunto de defi nições e compromissos universalmente aceito como valores normativos revelou a todos os trabalha-dores da saúde as limitações dos fundamentos teórico-meto-dológicos tradicionalmente utilizados e abriu espaço para a necessidade de novas formas de desenvolvimento que permi-tam não somente assumir a problemática de saúde-doença como expressão das condições de vida dos diferentes grupos de população, como também compreender as articulações en-tre estas e os processos sociais mais gerais.4

b) A crise econômica e a dívida externa dos países latino-ame-ricanos trouxeram, como uma de suas conseqüências, uma deterioração das condições de vida da maioria dos grupos de população e, ao mesmo tempo, uma tendência à redução substancial do gasto per capita em saúde e em projetos so-ciais por parte do setor ofi cial5; com o conseguinte repasse progressivo, ao orçamento familiar, dos custos dos serviços e programas de saúde.

Neste contexto, tornou-se cada vez mais evidente que as metas do SPT 2000 e os objetivos das estratégias da APS difi cilmente serão alcançados pela maioria da população, na maioria de nossos países, a menos que ocorram mudanças substanciais nas políticas sociais gerais; acumulando-se assim uma dívida sanitária crescente que pesa, sobre a população e os governantes, como custo social do serviço da dívida fi nan-ceira6. Tudo isto contribuiu para debilitar o poder legitimador do modelo assistencial, forçando, nos estamentos técnicos, a necessidade de propostas de reestruturação e mudança nas políticas de saúde.

c) Nos contextos assinalados, tem crescido o questionamento do “planejamento normativo” em saúde, que fi cou reduzido a simples dimensões formais em muitos dos Ministérios de Saúde e Instituições de Seguridade Social e abriram-se espa-ços para os desenvolvimentos do “pensamento estratégico em saúde”7 e do “planejamento estratégico e situacional”8, antes restritos a espaços acadêmicos ou de oposição política, como ferramentas que prometem ser mais úteis para a gestão cotidiana de instituições e programas, em situações de poder compartilhado e de escassez de recursos de poder. Estes “no-vos” desenvolvimentos do planejamento e da gestão exigem conceitualizações sobre os fenômenos de saúde mais integrais e com maior potência explicativa.

A epidemiologia tem como objeto de estudo os problemas de saúde-doença, em nível coletivo, e de agrupamentos de popu-lação, em nível de grupos sociais.

O coletivo, grupal, social, não é o mero somatório de processos individuais; tem ao mesmo tempo sua expressão não apenas em nível de grupos como também em nível de indivíduos.

As concepções tradicionais de saúde e doença tiveram que abrir espaço para a confrontação com desenvolvimentos con-ceituais e metodológicos mais integrais, com maior capacida-de de apreender a complexidade real dos processos determi-

* Texto extraído de Boletim Epidemiológico, Organização Pan-americana de Saúde, v.10, n.4, p.25-32, 1990. Trabalho apresentado no IV Congresso Latino-americano e V Congresso Mundial de Medicina Social, Medellín, Colômbia, julho 1987. Tradução de Elena Pires Ferreira.a Coordenador do Programa Análise da Situação de Saúde e suas Tendências (HST/OPAS) Washington, D.C. – USA.1 Organização Mundial de Saúde. Resolução WHA 30.43. Assembléia Mundial de Saúde, Genebra, 1997.2 Organização Mundial de Saúde. Declaración de Alma-Ata. 1978: Atención Primaria de Salude. Genebra: Serie salud para todos nº 1, 1978.3 Organização Pan-americana de Saúde. Estratégias. Salud para todos en el año 2000. Washington, D.C.: Documento Ofi cial nº 173, 1980.4 Barrenechea, J. J. Catellanos, P. L., Matus, C., Mendes, E., Medici, A. e Sonis, A. Esquema tentativo de análisis de las implicaciones conceptuales y metodológicas de APS y SPT 2000. Washington, D. C.: Organização Pan-americana de Saúde, 1987.5 Organização Pan-americana de Saúde. Informe Anual Del Director, 1984. Washington, D. C.: Documento Ofi cial nº 201, 1985.6 Barrenechea, J. J. et alli. Opus cit.7 Testa, M. Estratégia, coherencia y poder em lãs propuestas de salud. Cuad Med Soc 38: 3-24, 1986.8 Matus, C. Estratégia y plan (3ª ed.) México, D. F.: Siglo XXI Editores, 1981.

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nantes, de superar a visão simples e unilateral, de descrever e explicar as relações entre os processos mais gerais da so-ciedade com a saúde dos indivíduos e dos grupos sociais. Ao mesmo tempo, isto representa o desafi o de demonstrar que estes desenvolvimentos realmente têm maior potencialidade para mobilizar recursos de poder em função de obter mudan-ças favoráveis nas condições de vida e nos perfi s de saúde de diferentes grupos de população e para articular-se com os desenvolvimentos do pensamento estratégico em saúde e do planejamento estratégico que permitiriam uma maior efi ciên-cia e efi cácia das ações de saúde.

A “situação de saúde”

A descrição e a explicação da situação de saúde-doença não são independentes de quem e a partir de que posição descreve e explica9. Desta maneira, toda descrição e toda explicação são as de um ator em uma determinada situação. Isto constitui um aspecto central para compreender por que determinadas concepções predominam e como se modifi cam. Embora a for-ma como os fenômenos são percebidos tenha uma potência mobilizadora de forças sociais, são as forças sociais, os atores, que as desenvolvem e promovem em função da efi cácia social das mesmas em relação a seus propósitos, sejam eles proje-tos sociais ou técnico-científi cos. A confrontação de conceitos, teorias, métodos e técnicas é um dos âmbitos de confl itos e consensos entre atores sociais. O predomínio de uma forma de pensamento não é somente em função de sua maior capacida-de explicativa em abstrato, mas também de sua maior capa-cidade explicativa do ponto de vista de quem tem o poder de fazer predominar seus projetos. Entretanto, dado o caráter he-terogêneo de nossas sociedades, sobretudo em circunstâncias de poder compartilhado, a hegemonia de tais idéias é também função de sua potencialidade de dar resposta aos fenômenos do ponto de vista de outros atores sociais e de “demonstrar” superioridade no plano tecnológico diante de outras formas de pensamento10. A legitimação de um corpo de pensamen-to exige, por um lado, o acúmulo de poder e, por outro, seu desenvolvimento não apenas metodológico, mas tecnológico; isto é, deve ter capacidade de assumir todo o desenvolvimento científi co-técnico prévio, redefi ni-lo e superá-lo em um nível de maior efi ciência e efi cácia. Ocupar espaços, acumular po-der, com um pensamento sobre saúde-doença mais avançado supõe, portanto, não somente a coerência e força teórica de tal pensamento, mas a capacidade técnica superior à do pen-samento que se aspira superar, uma maior capacidade de dar resposta aos problemas de saúde de todos os grupos sociais, não somente aqueles que nós consideramos como relevantes mas também aqueles que são considerados como relevantes

por outros atores sociais, sobretudo por aqueles cujo concurso de poder é necessário para o desenvolvimento dos projetos, gerais e de saúde, que valorizamos positivamente.

Uma situação de saúde-doença, do ponto de vista de um ator social, contém:

a) Uma seleção de problemas e fenômenos que afetam a gru-pos de população selecionados.

b) Uma enumeração de fatos, que em seu conteúdo e forma são assumidos como relevantes (sufi cientes e necessários) para descrever os problemas selecionados.

c) Uma explicitação, isto é, a identifi cação e a percepção do complexo de relações entre os múltiplos processos, em dife-rentes planos e espaços, que produzem os problemas.

A “situação de saúde” de um determinado grupo de popula-ção é, portanto, um conjunto de “problemas” de saúde “des-critos” e “explicados” a partir de uma perspectiva de um ator social, isto é, de “alguém” que decide uma conduta determi-nada em função de tal situação.

Defi nição, descrição e explicação de problemas de saúde-doença

Os fatos que percebemos como fenômenos de saúde e do-ença ocorrem em diferentes dimensões. Eles podem ser va-riações (movimentos, fl uxos de fatos) singulares, isto é, entre indivíduos ou entre agrupamentos de população por atributos individuais, ou particulares, isto é, variações entre grupos so-ciais em uma mesma sociedade e em um mesmo momento dado (grupos que diferem em suas condições objetivas de existência), ou como movimentos gerais, fl uxos de fatos que correspondem à sociedade em geral, global. Desta maneira, os problemas de saúde podem ser defi nidos como tal em algu-mas destas dimensões (ver diagrama 1).

Estas dimensões de problemas correspondem a diferentes “es-paços” de determinação e condicionamento, isto é, os proble-mas não somente são defi nidos em diferentes espaços como também são explicados em espaços diferentes. A forma como se defi ne um problema delimita o espaço de explicação utili-zado pelo ator. Assim, quando um ator defi ne um problema no espaço singular, estará utilizando como explicação as formas de acumulação (organização) e as leis e princípios próprios do nível do singular, dos “juízos singulares”11. Sua potência explicativa limita-se à singularidade dos fenômenos e sua potência de ação transformadora sobre os problemas limita-se às possibilidades tecnológicas que ela havia desenvolvido dentro desses limites. Quando um problema é defi nido no es-

9 a) Mitrov, I. e Bonoma. Psychological assumption, experimentation and old world problems: A critique and alternative approach to evaluation. Evaluation Quarterly: (2) 235-260, 1978. b) Mitrov, I. E Killman. Methodological approach to social sciences. San Francisco: Jossey-Buss, 1978.10 Gramsci, A. Notas sobre Maquiavelo. México D. F.: Juan Pablo Editor, 1975.11 Hegel, G. Lógica. Madrid: Ed. Ricardo Aguilera, 1971.

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paço particular, como perfi l de um grupo de população, o ator tem a sua disposição a potência explicativa das acumulações, leis e princípios que explicam o processo de reprodução so-cial das condições objetivas de existência de diferentes grupos de população e sua capacidade tecnológica. Além daquelas desenvolvidas no espaço singular, incorporará todo o arsenal que possibilita a modifi cação de tais condições objetivas de existência. Comentário similar pode ser feito com respeito a problemas defi nidos no espaço geral, onde se amplia a potên-cia explicativa e de transformação. Muitas vezes um proble-ma defi nido no espaço singular deixa de ser relevante quan-do defi nido no espaço particular ou no geral. Pensemos, por exemplo, que para um determinado ator constitui um proble-ma relevante o acesso da população a uma complementação nutricional capaz de modifi car a freqüência da desnutrição; se o ator tem possibilidades de redefi nir o problema desnutrição em termos de melhoria das condições objetivas de existência e qualidade de vida dos grupos de população que apresentam a desnutrição como problema, deixará de ser relevante o acesso à alimentação complementar ou terá um caráter transitório, de emergência. Entretanto, é importante destacar que quanto mais amplo é o espaço de defi nição e de explicação dos pro-blemas, maior é a necessidade de recursos de poder (técnicos, administrativos e políticos) para atuar.

Por outro lado, é importante destacar que os espaços assina-lados não são excludentes, pelo contrário, devemos entendê-los como sendo um parte do outro. O espaço do geral inclui o do particular e este o do singular. Daí que todo ator, em saúde, está chamado pelos fatos a dar respostas ao singular,

embora tenha capacidade de identifi car e explicar problemas em nível geral.

Os processos correspondentes a espaços superiores têm uma relação de “determinação” sobre os processos que correspon-dem a espaços de menor hierarquia. Esta relação não deve ser assumida como “causal”, mas como a capacidade de delimi-tar o “espaço de variedade possível” dos processos e fenô-menos (ver diagrama 2). A situação “A” delimita as variações possíveis de “B” e exclui a possibilidade de “C”. Dentro desse

Diagrama 2 – Dinâmica dos processos.

Diagrama 1 – Explicação de problemas de saúde.

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espaço de variedade possível operam os processos de determi-nação correspondentes ao nível “B” e às leis do acaso.

Entretanto, a forma como se desenvolvem os fatos em um de-terminado nível se traduz em organização, acumulações bio-lógicas e sociais que afetam os níveis superiores de determi-nação. Assim, por exemplo, os perfi s de saúde-doença de um determinado grupo de população estão determinados pelos processos de reprodução social de suas condições objetivas de existência (nível particular), os quais estão determinados pelos processos que regem a reprodução geral dessa sociedade e que estabelecem a forma particular de inserção neste grupo em tais processos gerais. Entretanto, e precisamente porque a reprodução das relações gerais da sociedade supõe a repro-dução dos diferentes grupos que a compõem, qualquer modi-fi cação em nível das condições objetivas de existência de um grupo se expressará de uma forma ou de outra nos processos gerais de reprodução12. Isto signifi ca que entre os processo de níveis superiores e inferiores há uma relação de “determina-ção”, e no sentido contrário há uma relação de “condiciona-mento” (ver diagramas 1 e 2).

No interior de cada espaço ou nível existe também uma dinâ-mica de determinação e condicionamento, isto é, uma relação de determinação das leis e princípios sobre as acumulações (formas organizativas) e destas sobre os fl uxos de fatos (fe-nômenos) que produzem e, ao mesmo tempo, uma relação de condicionamento entre os fl uxos de fatos, os quais produzem acumulações biológicas e sociais e podem forçar as “regras do sistema13“.

Diante deste complexo processo de determinação, são assu-midas, com muita freqüência, posições unilaterais que enfati-zam algum de seus níveis e componentes, incorrendo-se em erros de reducionismo – quando problemas correspondentes a espaços superiores defi nem-se ou explicam-se em espaços inferiores – ou de mecanismo – quando problemas facilmente defi níveis, explicáveis e modifi cáveis em espaços inferiores são abordados somente em níveis superiores. Obviamente, isto está relacionado não apenas ou não tanto com limitações de conhe-cimento, mas com o ponto de vista e os interesses do ator.

A descrição, explicação e ação transformadora no es-paço do singular

Este é o espaço do que poderíamos chamar a “epidemiolo-gia do que”. Os “problemas” de saúde-doença neste espa-ço aparecem como variações entre indivíduos ou atributos individuais e a forma habitual de defi nição dos mesmos é a freqüência e a gravidade de uma patologia ou acidente em particular entre pessoas com determinados atributos de tem-po, espaço ou caracteres biológicos e sociais individuais. As formas de organização, as acumulações que estes fatos produ-zem costumam ser formas de vida e condutas individuais, que ultimamente vêm sendo denominadas “estilos de vida14“, ou a exposição individual a fatores ou processos de risco que em sua expressão organizativa constituem os chamados “grupos de risco15“. As leis e princípios mais genéricos defi nidos pela epidemiologia a este nível são as leis de variação de agentes, do hóspede e dos riscos, embora se tenha defi nido também um conjunto de outras leis e princípios mais específi cos para cada tipo de patologia ou problema16. Segundo o nosso ponto de vista, este é o espaço onde se encontra a maior parte dos desenvolvimentos teórico-metodológicos e técnicos da epide-miologia para estudar epidemias, para avaliar fatores de risco, para a vigilância epidemiológica de problemas específi cos e, mais recentemente, para a avaliação de tecnologias.

Assumir os problemas a este nível é, defi nitivamente, recorrer a forma como os processos sociais e biológicos de determi-nação e condicionamento articulam-se para produzir as ma-nifestações singulares dos fenômenos de saúde-doença, e não tão-somente assumir a expressão biológica individual dos processos sociais. Estas expressões singulares não são apenas expressões biológicas, são expressões singulares de proces-sos biológicos e sociais. O tipo de ações que se derivam desta forma de defi nição e de explicação dos problemas de saúde-doença costuma ter o caráter de controle de danos e riscos específi cos de um problema ou grupos deles e, portanto, a organização do modelo assistencial que deriva dessas ações costuma ser a de programas ou serviços de dirigidos a patolo-gias específi cas, muitas vezes verticalistas e centralizadoras.

12 A noção de processos de determinação, vinculada ao pensamento explicativo, não deve fi car restrita ao “pensamento causal” positivista, no sentido de Hume nem de Stuart Mills. Tampouco deve ser confundida com noções meramente probabilísticas como as de Suppes, nem neopositivistas, estruturalistas e pragmáticas como as de Collingwood. Embora não caiba aqui uma discussão sistemática do pensamento causal em epidemiologia, convém destacar a relevância que, no processo prático de conhecimento, têm as teorias que utilizam o ator como objeto conhecedor, tal como foi resgatado e enfatizado no pensamento de Pepper. Convém destacar também a diferença neste último autor: a hierarquizada e dinâmica complexidade dos processos de determinação, a relevância que forma como os diferentes atores sociais percebem os objetos de conhecimento e sua transformação para a praxis de tais atores sociais, e o caráter socialmente determinado destas formas de percepção. Para uma maior discussão dos processos de determinação em saúde, sugerimos: a) Castellanos, P. L. La investigación epidemiológica, in: Usos y perspectivas de la epidemiologia. Washington, D. C.: Organização Pan-americana de Saúde, PNSP 84-47, 1984. b) Castellanos, P. L. Las ciencias sociales en la investigación em salud. In: Salud y sociedad. Memorias del Seminario Ciencias Sociales y Salud. Quito, 1983. Washington, D. C. Organização Pan-americana de Saúde. 1986.13 Sobre a relação entre fl uxos de fatos, acumulações e regras ver: Matus, C. Política y plan. Caracas: Publicaciones IVEPLAN, 1984.14 a) Gladunov, I. et allii. An integrated program for the prevention and control non-communicable diseases. J. Chronic Dis 26: 419-426, 1983. b) Klos, D. M. e Rosenstock, I. M. Some lessons from the North Karelia projects. Am J Pub Health 72: 53-54, 1982.15 a) Mac Mahon, B. e Pugh. Principios y métodos de la epidemiologia (2ª ed.) México, D. F.: La Prensa Médica Mexicana, 1975. b) Lilienfeld, A. Foundations of epidemiology. Nova York: Oxford University Press, 1976.16 Susser, M. Causal thinking in the health sciences. Nova York: Oxford University Press, 1973.

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O extenso arsenal metodológico e técnico disponível para a abordagem a este nível tem que ser dominado por aqueles que desejam dar respostas aos problemas de saúde a partir dos serviços de saúde ou em condições de limitação de recursos de poder. A gestão a este nível é básica não apenas para ganhar legitimidade, mas também para evidenciar as limitações do mesmo, a necessidade de redefi nir os problemas em espaços superiores e de acumular poder para atuar nos mesmos.

A defi nição, explicação e ação transformadora no es-paço do particular

Este é o espaço do que poderíamos chamar a “epidemiologia do quem”. Os “problemas” aparecem defi nidos como varia-ções de perfi l de saúde-doença em níveis de grupos de po-pulação17, 18. A explicação dá ênfase tanto aos processos de reprodução social das condições objetivas de existência (qua-lidade de vida) de cada grupo quanto às leis e aos princípios que regem as acumulações, isto é, às formas como se organi-zam os diferentes “momentos” de tal processo.

A existência e a reprodução dos homens, suas condições ob-jetivas de existência, requerem, como condição primordial à existência como espécie, a replicação e a reprodução dos ca-racteres morfológicos e funcionais da espécie humana. Para efeitos de saúde-doença devemos destacar os processos de gestação, crescimento e desenvolvimento e sua expressão nas capacidades genéticas e padrões de resposta imunológica. Daí que um “momento” principal do processo de reprodução social das condições objetivas de existência de indivíduos e grupo é o momento de reprodução biológica.

A existência dos homens e dos grupos sociais, assim como de outros seres vivos, ocorre imersa em múltiplos sistemas ecoló-gicos nos quais interativa com muitos outros grupos humanos e outras espécies em determinadas condições naturais. Assim, outro momento principal da reprodução social destas condi-ções de existência é o momento de reprodução das relações ecológicas.

As relações entre os homens e entre eles e a natureza estão mediadas pela consciência e pelas formas de conduta que de-las se derivam. Reproduzir um grupo humano implica a repro-dução de suas formas de perceber-se a si mesmo e o resto dos grupos de população, e de perceber o mundo social e natural diante do qual defi nem suas condutas (consciência individual de grupo, de nação, de classe, de nível e de formas de co-nhecimento dos processos naturais e sociais, etc). O terceiro momento principal é o momento de reprodução das formas de consciência e de conduta.

As relações entre os homens e entre eles e a natureza estão ba-sicamente mediadas pela capacidade de trabalhar, de produzir

e de distribuir bens e serviços para satisfazer suas necessida-des. Reproduzir a existência de um grupo de população requer reproduzir suas relações econômicas19, suas formas de inserção no processo produtivo, na distribuição e consumo de bens e serviços. O quarto momento principal a ser identifi cado é, por-tanto, o momento de reprodução das relações econômicas.

O processo de reprodução social compreende, assim, pelo menos quatro momentos principais: o momento de repro-dução dos processos biológicos, o das relações e processos ecológicos, o das formas de consciência e de conduta e o das relações econômicas19. Cada um destes processos está regido por princípios e leis que as disciplinas científi cas específi cas se encarregaram de averiguar. As diferentes disciplinas da biolo-gia, da ecologia, das ciências da consciência e conduta (psico-logia, antropologia, educação, etc.) e as diferentes disciplinas econômicas nos aportam, a cada dia, elementos conceituais, metodológicos e técnicos para conhecer os fl uxos de fatos e as formas de organização (acumulação) correspondentes a cada momento. Entretanto, é necessário assinalar que as condições objetivas de existência de um grupo social e por conseguin-te seu perfi l de saúde-doença não são o somatório mais ou menos aleatório dos fatos e acumulações em cada momento reprodutivo, como processos independentes. A noção de mo-mento pretende, justamente, superar o conceito de etapa e a visão de “estruturas” ou processos independentes. Cada mo-mento envolve em seu processo o conjunto de outros momen-tos e é, ao mesmo tempo, afetado por eles. Entrando por cada momento, nos encontramos com todos os momentos.

As leis e os princípios que regem em particular cada momen-to reprodutivo são específi cos para ele, mas articulam-se, no complexo processo biológico e social de reprodução das con-dições objetivas de existência de cada grupo social, de uma forma diferente. Esta forma de articulação é a expressão do processo geral de reprodução da sociedade e da forma de in-serção deste grupo social.

Abordar os problemas de saúde neste nível permite identifi car as acumulações que produzem o perfi l de saúde-doença de cada grupo e identifi car as ações que em nível da reprodução biológica (gestação, crescimento, desenvolvimento, genética, imunologia, etc.) são tecnicamente factíveis de realizar para modifi cá-las. Igualmente, permite identifi car as acumulações em nível do ecológico (condições naturais, exposição a ciclos epidemiológicos de doenças, saneamento ambiental, condi-ções ambientais de trabalho, etc.); em nível das formas de consciência e conduta (organização, participação, educação, mobilização, etc.), e em nível das relações econômicas (pro-cesso de trabalho, participação na distribuição e no consumo, acesso a serviços assistenciais, etc.) que temos possibilidades

17 Breith, J. Epidemiologia, economia, medicina y política. Quito: Ediciones Universidad Central, 1979.18 Laurell, A. C. Work process and health process in Mexico. Int J. Health Serv 9: 543-568, 1979.19 Para uma maior discussão sobre reprodução social e saúde ver: Sarnaja, J. Lógica, biologia y sociologia médicas. Rev. Centro Americana de Salud, nº 6 a 12, 1976-79.

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de modifi car. Permite também identifi car o tipo de fatos que é necessário produzir para acumular possibilidades de trans-formá-las; isto é, tanto o tipo de fatos que devemos produzir para que a organização econômica, política, cultural e os fatos que elas produzem tenham impacto no nível do geral, como a necessidade de mudar as regras gerais do sistema.

O tipo de ações de saúde que se derivam desta abordagem particular tende a organizar-se em planos e programas de saúde por grupos de população, abrindo maiores possibilida-des para a descentralização e a participação das organizações da população. Esta abordagem permite redefi nir muitas das ações que poderiam defi nir-se em uma abordagem singular ou potenciá-las como parte do esforço para modifi car as con-dições de existência de um grupo. Permite, também, aventar a possibilidade de defi nir um conjunto de indicadores sobre pe-ríodos mais precoces do processo de determinação e ao mes-mo tempo redefi nir o pensamento preventivo e de promoção de saúde, ampliando as conceitualizações mais avançadas da “estratégia de atenção primária”, entendida não como “um programa marginal para populações marginalizadas”, mas como o conjunto de ações sociais dirigidas para a promoção da transformação da qualidade de vida de todos os setores da população20.

Quisemos insistir neste espaço do particular porque, na nossa opinião, muitas das limitações e difi culdades teórico-meto-dológicas dos que trabalham nos serviços de saúde residem nas limitações para defi nir os problemas e avaliar suas ações neste âmbito. Do mesmo modo, acreditamos que muitas das difi culdades para a incorporação do pensamento social mais avançado nos espaços técnicos de saúde derivam da pouca ênfase nestes processos de mediação e, muitas vezes, da limi-tação à abordagem no espaço do geral. Recuperar o espaço do particular é recuperar os processos que se interpõem entre aqueles mais gerais e suas manifestações em nível singular. É assumir toda a potencialidade explicativa das ciências bio-lógicas e sociais, mas a partir da defi nição e “problemas” de saúde-doença e da busca de ações que potenciem nossa efi -ciência e efi cácia.

Defi nição, explicação e ação transformadora no espa-ço do geral

Este é o âmbito das políticas e planos de saúde. Os problemas aparecem, basicamente, como a necessidade de decidir entre prioridades, entre elas os planos de saúde; como a necessida-de de priorizar entre diferentes grupos de população; como

a forma de inserção dos perfi s de saúde da população e do modelo assistencial com os processo econômicos, políticos, demográfi cos e as condições naturais do lugar. Este é o âmbi-to onde costumam ser defi nidas as características básicas do modelo assistencial.

A abordagem dos problemas de saúde-doença a este nível permite identifi car as relações entre eles e os modelos eco-nômicos, as mudanças históricas nos processos políticos, o impacto de grandes catástrofes bélicas ou naturais.

As considerações sobre este espaço não são ampliadas devido às nossas próprias limitações, às limitações de espaço e por ser o âmbito mais extensamente admitido pelos pesquisadores sociais em saúde. Entretanto, queremos destacar a necessida-de de aprofundar o desenvolvimento de ferramentas concei-tuais, metodológicas e técnicas para a valorização prospectiva dos problemas de saúde-doença. Em circunstâncias como as da América Latina atualmente, aumentou a necessidade de instrumentos para avaliar o impacto a médio prazo das deci-sões de hoje, a fi m de orientar os juízos sobre elas com bases mais sólidas e fundamentadas. A prospectiva em outros cam-pos alcançou desenvolvimentos consideráveis que contrastam com o estado ainda primitivo da utilização em saúde21, 22, 23. Isto é indispensável também pelo fato de que muitas decisões produzem efeito depois de muitos anos e são afetadas pelo impacto e muitos outros processos.

20 Organização Pan-americana de Saúde. Desarrollo de la política general de cooperación técnica de la OPS en el cuadrienio 1987-90. Tema 5. Comitê Executivo do Conselho Diretor. Washington, D. C., abril 1987.21 Mckeown, T. La enfermedad desde la perspectiva del desarrollo humano. Foro Mundial de la Salud, 6 (1): 82-88, 1985.22 Murtomaa, M. E Kankaanpaa, J. Scenarios approach in fi nninsh health strategy development. European Conference on Planning and Management for Health, setembro 1984.23 Brenner, H. Estimating the effects of economic change on national health and social well bring. Estudo preparado para uso do Joint Economic Committee. Washington, D. C.: U. S. Government Printing Offi ce, junho 1984.

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