Categorias.pdf

download Categorias.pdf

of 20

Transcript of Categorias.pdf

  • ARTIGO ARTICLE

    Resumo Este artigo centra-se na anlise de umacooperativa da construo civil orientada por prin-cpios da economia solidria. Buscou-se compreen-der em que medida essa experincia associativa,alm de constituir uma estratgia de sobrevivnciae de resistncia diante do desemprego e subem-prego, pode contribuir para a inveno de novasformas de trabalho e vida produtoras de sade.Realizou-se um estudo qualitativo voltado ao co-nhecimento das principais questes que atravessamo processo produtivo cooperativo, sua viabilidadeeconmica e tcnica e as relaes estabelecidasentre os associados. Encontrou-se que o empreen-dimento rompe com a lgica habitual de trabalhoimplantada nos canteiros de obra, investe na qua-lificao de trabalhadores e expande um novosentido formativo, de partilha, de sentimento asso-ciativo e de compromisso social com a comunidadelocal. Apesar das limitaes decorrentes da faltade financiamento compatvel com a especificidadede iniciativas dessa natureza, constitui uma refe-rncia exemplar de sucesso sob premissas da econo-mia solidria.Palavras-chave cooperativismo; subjetividade; tra-balhador da construo; economia solidria.

    CONSTRUTORES DE CASA E ARTFICES DE CIDADANIA: MODOS COOPERATIVOS DE

    TRABALHAR E VIVER

    CONSTRUCTORS OF HOUSES AND ARTIFICES OF CITIZENSHIP: COOPERATIVE WAYS TO WORK

    AND LIVE

    Silvana Mendes Lima1

    Carlos Minayo Gomez2

    Abstract This article focuses on the analysis of a ci-vil construction cooperative guided by the principlesof solidary economy. The goal was to understand towhat extent this associative experience, in additionto building a strategy of survival and of resistanceto unemployment and underemployment, can contri-bute to the invention of new forms of work and oflife that can produce health. A qualitative study wascarried out to get to know the main issues involved inthe cooperative productive process, its economic andtechnical viability, and the relationships establishedamong the members. It was found that the projectbreaks away from the habitual logic of work thatis deployed at construction sites, that it invests inworker qualification, and expands a new qualifica-tion sense, one of sharing, of associated feeling, andof social commitment to the local community. In spiteof the limitations derived from the lack of fundingcompatible with the specificity of initiatives of thisnature, it is an exemplary reference of success underthe premises of the solidary economy.Keywords cooperativism; subjectivity; constructionworker; solidary economy.

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    321

  • Introduo

    Neste artigo centramo-nos na anlise de uma experincia orientada porprincpios do que se nomeia, atualmente, como economia solidria. Propo-mo-nos a apontar em que medida essa experincia associativa e cooperati-va, alm de se constituir em estratgia de sobrevivncia e de resistnciadiante do desemprego e subemprego, pode contribuir para a inveno denovas formas de trabalho e vida que sejam produtoras de sade.

    Os empreendimentos econmicos solidrios abarcam um amplo leque deagrupamentos, sob a forma de empresas autogeridas pelos trabalhadores,pequenas e mdias associaes ou cooperativas de produo, comerciali-zao e dos mais variados servios; projetos comunitrios e cooperativasagropecurias. Essas experincias organizacionais, freqentemente desen-volvidas com a intermediao e o incentivo de instncias pblicas, ONGs,sindicatos, organizaes religiosas, universidades e agncias internacionais,inscrevem-se hoje em torno da dinmica das novas formas de solidariedadee compem o campo da economia solidria (Frana, 2001).

    As bases da economia solidria encontram-se j presentes na IdadeMdia, nas guildas, confrarias e corporaes de ofcio e compagnonnages(associaes de solidariedade entre trabalhadores). No movimento associa-tivista operrio da primeira metade do sculo XIX, na Europa, emergiram,tambm, um grande nmero de experincias solidrias largamente influen-ciadas pelo iderio da ajuda mtua (o mutualismo), da cooperao e daassociao. Representavam formas de resistncia e proteo social, no con-texto do nascimento do capitalismo, frente situao de pobreza de amplasparcelas da populao, da explorao do trabalho e do desemprego, enquan-to iniciativas oriundas dos setores populares combinavam, ao mesmo tem-po, na sua ao organizacional, dimenses sociais e econmicas sob um fun-do de luta poltica.

    Ao longo da histria, no entanto, essas experincias, conhecidas comode economia social, foram mudando de fisionomia e acabaram transforman-do-se em unidades de produo ou de servios nos moldes da economia demercado.

    No Brasil, emigrantes europeus fomentaram, no comeo do sculoXX, a criao de cooperativas, principalmente de consumo, na cidade,e agrcolas, no campo. As de consumo eram, em geral, formadas por em-presas com a finalidade de reduzir despesas dos trabalhadores comprodutos bsicos para o sustento familiar. Com a expanso das grandesredes de supermercados, a maioria dessas iniciativas refluiu. As coopera-tivas agrcolas foram se desenvolvendo, a ponto de algumas se trans-formarem em grandes empreendimentos agroindustriais ou comerciais(Singer, 2002).

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    322 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • Foi a partir da dcada de 1980 que, com o crescimento do desempregoe da excluso social aliado limitada capacidade reguladora de um Esta-do que nunca foi caracterizado como de bem-estar social a economiasolidria adquiriu impulso. Assumiu a forma de cooperativas ou associaesprodutivas autogestionrias, de diferentes modalidades, que vm se articu-lando e recebendo o apoio de diversas instituies. Tomando como valorescentrais o trabalho entendido como fonte de vida e no como mera mer-cadoria o saber e a criatividade dos trabalhadores, a economia solidriaorienta-se na busca da satisfao das necessidades bsicas de quem traba-lha por meio de relaes sociais apoiadas na cooperao, reciprocidade,comunicao, no respeito diversidade e na solidariedade (Lopes, 2001;Minayo-Gomez e Thedim-Costa, 2005; Barbosa, 2007). Tais so os traos quedistinguem os empreendimentos solidrios da empresa capitalista, assimcomo de algumas das iniciativas que compem o leque de atividades daeconomia popular.

    A grande relevncia que tais formas de gerao de trabalho e renda no restritas dimenso econmica vm adquirindo no pas evidencia-sepelo elevado nmero de redes e fruns articuladores desses empreendi-mentos, constitudos por representantes das instncias governamen-tais e de organizaes da sociedade civil, com diferentes finalidades enveis de abrangncia. A conformao do Frum Brasileiro de EconomiaSolidria, com vistas a consolidar os princpios norteadores que caracte-rizam o setor, e a formular estratgias de ao frente s necessidades coleti-vas, reflete o alto grau de articulao atingido por esse novo sujeito social.Cabe destacar o papel crucial que o Frum vem desempenhando comolegtimo interlocutor com diversas instncias pblicas e, em particular,com o da Secretaria Nacional de Economia Solidria do Ministrio doTrabalho e Emprego.

    Nesse diversificado e heterogneo universo de empreendimentos,contemplamos como objeto de investigao uma experincia que serege pelos princpios norteadores do cooperativismo (Schneider, 1994),alm de estar superando entraves econmicos, tcnicos e de gesto que,freqentemente, ameaam ou inviabilizam a continuidade de iniciativasdessa natureza.

    O estudo tem tambm como referncia os pressupostos do campodenominado sade do trabalhador (Mendes e Dias, 1991; Lacaz, 1996;Minayo-Gomez e Thedim-Costa, 1997), em que a anlise da interseo dasrelaes sociais e tcnicas que configuram os processos de trabalho consti-tui a premissa fundamental na avaliao do quadro de sade de um coletivode trabalhadores. Diferentemente das empresas convencionais, no interiordas unidades de produo associada, o controle das situaes geradoras deagravos sade depende em grande medida da deciso dos prprios

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    323Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • trabalhadores, em funo das condies favorveis objetivas e subjetivas presentes no andamento dos empreendimentos.

    Sabemos que a produo de um processo de cooperao e autogestonas formas de trabalho e vida tem sido, historicamente, um desafio. Na con-temporaneidade, esse processo ganha novas nuances em virtude da tendn-cia dominante de transformar o trabalho e a vida em uma sobrevida, con-duzindo a existncia ao eixo consumidor/mercadoria. Um eixo em quetudo pode ser comprado, tudo investimento financeiro e em que temosque fazer render nosso corpo, nossa comida, nosso tempo (Pelbart, 2000,p. 25). Como o prprio autor aponta se, por um lado, nos encontramos sem-pre de sobressalto diante das formas de trabalho e vida que vm sendo pro-postos, como, afinal, irmos alm do susto e sondarmos gestos e atitudes dereinveno da vida? Temos que estar atentos para os riscos e ofertas que ocontexto atual tem nos lanado, posto que o capitalismo tomou de assalto asubjetividade em uma dimenso nunca vista enquanto uma matria-prima essencial das relaes de produo.

    Vale ressaltar que, nesta pesquisa, a subjetividade concebida comoproduo, sendo composta de diversos elementos, seja de natureza inter-na e/ou externa (afetivos, familiares, do corpo, da mdia, da linguagem,do desejo, entre outros). Essa heterogeneidade de elementos, em constanteprocessualidade, faz da subjetividade uma instncia mltipla indissocivelde prticas sociais concretas (Caiafa, 2000).

    Mas, se a nossa subjetividade est diretamente conectada com amquina do capital, estamos sempre diante de um embate incessante entrecriar formas de resistir ao modo de produo dominante ou, de maneirainversa, nos encontrarmos mais contaminados por ele. nesse sentido queFoucault (2000) assinala a importncia atual em reinventar a subjetividademais do que decifr-la. Isso implica em uma postura diferenciada, ou seja, oobjetivo no seria descobrir o que somos, mas recus-lo. a partir dessaperspectiva que analisamos, dentre as experincias cooperativas, uma doramo da construo civil que se destaca quando cria alternativas valiosasaos embates vividos por trabalhadores frente aos modos de vida vigentes.Na ultrapassagem de diversos dilemas, encontramos nela uma multiplici-dade de vnculos, variaes e peculiaridades estabelecidas por uma pers-pectiva laboral guiada nos fundamentos da economia solidria.

    Trata-se, ento, de um estudo de caso com uma abordagem eminente-mente qualitativa que objetivou compreender, a partir do discurso doscooperados e da observao e anlise do processo de trabalho nas suasdimenses sociais e tcnicas, os fatores que influram na construo histri-ca, espacial e subjetiva dessa iniciativa e que novos sentidos so engendra-dos nas formas de trabalho e vida dos cooperados. Buscamos, ainda, anali-sar em que medida essa experincia vem conseguindo efetivar nveis de

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    324 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • participao que ultrapassem a cultura do assalariamento e da submisso,de modo a fundar uma horizontalidade nas relaes institudas no processode trabalho.

    Iniciamos a investigao entrevistando a equipe de gesto do em-preendimento para conhecer, entre outros aspectos, o contexto de criao econstruo da cooperativa, sua estrutura organizacional, as estratgias deformao, as decises que influram na sua configurao atual, as principaisquestes que atravessam o processo de gesto do trabalho, tanto do pontode vista de sua viabilidade econmica e tcnica, como das relaes com eentre os cooperativados.

    Em seguida, empreendemos junto aos cooperados uma convivnciadiria a partir de visitas aos canteiros de obras. Uma convivncia pautada,basicamente, em observaes e dilogos informais com vistas a nos familia-rizar com os diversos modos de trabalhar, inaugurados por eles. Posterior-mente, realizamos entrevistas semi-estruturadas individuais e coletivas coma maior parte dos trabalhadores, a fim de detectar suas percepes sobre es-sa prtica cooperativa e as possveis mudanas ocorridas na maneira de ser,pensar e agir. Nessas entrevistas abordamos os seguintes assuntos: histriaocupacional; antecedentes sociais; motivaes para aderir cooperativa edescrio de sua experincia como trabalhador associado (vantagens e in-convenientes, assim como os avanos profissionais e pessoais); participaoanterior e atual em movimentos sociais, polticos, culturais, religiosos e or-ganizaes de classe. Para interpretao do sentido dessas prticas discursi-vas, recorremos anlise temtica (Bardin, 1979), vinculando as falas nassuas regularidades e diversidades ao contexto em que foram produzidas.

    Os resultados dessa investigao foram sendo restitudos equipe degesto do empreendimento ao final do processo de realizao da pesquisa.No que diz respeito ao marco referencial, recorremos a um conjunto de au-tores que vem se dedicando temtica da economia solidria. Tendo-oscomo interlocutores de nossa discusso, pudemos acessar as bases conceitu-ais dessa forma singular de gerao de trabalho e renda, assim como osdesafios que a economia solidria suscita. Esses desafios dizem respeito,especialmente, viabilidade econmica e tcnica que permita garantir avida desses empreendimentos sobre as premissas que o fundamentam.

    Sobre a cooperativa

    Contar a histria da cooperativa e seu momento inaugural implica, antes detudo, remeter a um personagem que deu identidade institucional peculiarao empreendimento. Algo que passa pela experincia e pela formao deuma pessoa que vem apostando na inveno de formas dignas e saudveis

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    325Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • de vida e trabalho. Com competncia profissional e carisma, encontrou, naeconomia solidria, algumas respostas questo: como organizar trabalhosocial numa perspectiva que no seja da ordem do precrio?

    Trata-se de Abel, um nordestino que, como tantos outros, em funo desua situao de pobreza, migrou para a cidade grande procura de formasde sobrevivncia. Seu sonho, como ele mesmo o descreve, era trabalhar, teruma profisso e seu prprio negcio. Foi servente, meio oficial de carpin-teiro, carpinteiro e mestre-de-obra. Nessa trajetria, conseguiu abrir seuprprio negcio, tornando-se proprietrio de uma empreiteira no ramo daconstruo civil que conquista credibilidade no mercado local. No entanto,em determinado perodo da sua vida, se v impossibilitado de trabalhar emfuno de problemas familiares que mudaram significativamente a maneirade conceber a forma de vida que at ento exercitara.

    Como ele mesmo nos refere, viveu um momento muito especial queo levou a refletir sobre o sentido de sua existncia. Essa reflexo promo-ve, para si, uma viso que problematiza um modo de ser capitalista que,segundo ele, personificara at ento enquanto empreiteiro. A partir dessaproblematizao, firma a idia de criar uma cooperativa de trabalhono ramo da construo civil, com base no seu conhecimento desse mer-cado, mesmo sem ter uma noo mais precisa do que essa perspectiva detrabalho representava.

    Na ocasio, ele participava de experincias tecidas pela igreja catlicae, especialmente, da Ao da Cidadania contra a misria e pela vida criadaem 1993, uma campanha que contava como um de seus expoentes o soci-logo Herbet de Sousa, o Betinho. No mbito dessa campanha, Abel partici-pa de uma noite de comemorao natalina e, em meio a uma reflexo sobreo sentido dessa data, os participantes expressam seu maior desejo acerca doque gostariam de ganhar de presente na noite de Natal. A resposta imediatae unnime surpreendeu Abel e lhe atingiu profundamente: a grande maio-ria disse que queria uma casa. A expresso desse desejo coletivo de teruma casa prpria correspondia s situaes habitacionais precrias depessoas que residiam em uma das reas mais pobres daquela localidade,tendo, inclusive, que pagar aluguel por barracos miserveis.

    A partir desse momento, iniciou-se uma grande mobilizao quecontou at com apoios externos de instituies religiosas internacionais.Conseguiu-se arrecadar fundos suficientes para a compra de terrenos e ma-terial para a construo de casas para essas famlias. Em pouco tempo, coma participao de moradores e voluntrios em mutires estava constru-da a cooperativa habitacional Shangri-la que materializava o sonho da casaprpria da populao daquela rea. Hoje o conhecimento acumulado aolongo dessa experincia transmitido a vrios grupos populares quepretendem formar cooperativas habitacionais.

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    326 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • Paralelo questo da moradia para essas famlias, em situao deextrema pobreza, Abel trazia como preocupao a necessidade prementede propiciar-lhes meios adequados de subsistncia. Dada sua vocao debotar as coisas em prtica, como ele mesmo diz, e com o apoio de umaONG, se tornou precursor e idealizador dessa cooperativa no ramo da cons-truo civil, situada no bairro de Jacarepagu, zona oeste da cidade doRio de Janeiro.

    A cooperativa foi constituda, inicialmente, por quatro trabalhadores.Com o paulatino crescimento do ramo, o nmero de associados foi aumen-tando e agregou, por um perodo, uma mdia de 38 cooperados, sendo queno ano de 2003 contava com 54 membros. A maioria se incorporou, semnenhuma experincia prvia de trabalho, nesse setor, desempregados ecom baixo nvel de escolaridade. Alguns deles eram analfabetos e, inclu-sive, se encontravam em situaes muito especficas, entre as quais a do usoabusivo de lcool e de drogas, que os colocavam segregados das formas detrabalho vigentes.

    A cooperativa cresceu e solicitada para assessorar outras iniciativasde trabalhadores com vistas criao de cooperativas dentro e fora do setorda construo civil. Apia tambm projetos de natureza diversa como, porexemplo, o Casa & Cidadania, para a construo de casas em regime demutiro para os seus associados e outras pessoas que no possuem suasprprias habitaes.

    De acordo com o regimento interno do empreendimento, encontra-seestabelecida, como uma de suas normas, que o conjunto de atividadesprprias cooperativa deve ser realizado por trs comisses: de obras e se-gurana; de formao e mobilizao e de finanas, sendo obrigatria a par-ticipao dos associados em pelo menos um desse grupos de trabalho. Umregimento que, de certo modo, retrata um modo cooperativo de desenvolverum projeto de trabalho comum, ou seja, conta com instncias de adminis-trao e de gesto regularmente eleitas pelos prprios cooperativados.

    Cabe comisso de obras e segurana encontrar terrenos passveis deconstruo, elaborar projetos de obra e aprov-los. Na procura dos terrenose na criao do projeto de construo, Abel ocupa um papel central, devido sua larga experincia no ramo, contando tambm com o apoio de umarquiteto que, voluntariamente, assina e registra os projetos, dando-lhe osuporte legal. tambm o prprio Abel quem localiza o investidor entre umcrculo de pessoas sabedoras de que no tero aborrecimentos. Garantidaa infra-estrutura e a remunerao da mo-de-obra por contrato verbal,rene-se a comisso de obras para fazer a seleo dos trabalhadores queparticiparo na nova frente de trabalho.

    O investidor, por sua vez, se compromete a comprar o terreno e o mate-rial de construo, alm de pagar a parte correspondente mo-de-obra dos

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    327Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • cooperados. Surpreendentemente, para os tempos atuais, o contrato como investidor se d, at hoje, de forma verbal: olho no olho, na base daconfiana. Como o prprio Abel diz: se no confiar em mim e eu emvoc, nada feito. Esse tipo de contrato social baseado nas relaesprimrias de confiana, no valor da palavra, nos remete s sociedadesde tradio oral, regidas por formas de solidariedade mecnica (Durkheim,1995). Formas de atuao tpicas das sociedades pr-capitalistas, ondeos indivduos se identificam atravs da famlia, da religio, da tradi-o, dos costumes. Pertencem a uma coletividade que reconhece os mes-mos valores, os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados. Essecomportamento reflete a multiplicidade de modos de convivncia quesempre existiram entre formas primitivas e modernas mais impessoais decontrato. Em virtude dessa prtica fundada tambm na credibilidadeconquistada ao longo da sua trajetria profissional e da qualidade dosservios oferecidos, a cooperativa adquiriu um slido reconhecimentono mercado.

    Alm de projetar a obra e estabelecer o contrato verbal, essa mesmacomisso se responsabiliza por questes ligadas segurana no trabalho,orientando os cooperados para que tomem medidas de proteo, indicandoa compra de equipamentos de segurana e fiscalizando as obras.

    A comisso de mobilizao e formao representa a cooperativa nosfruns de economia solidria e em outros eventos. Enquanto responsvelpela formao de seus associados, essa comisso organiza grupos de traba-lho de capacitao tcnica e de formao sobre cooperativismo. Promove,igualmente, aes de solidariedade e incentiva projetos para melhoria daqualidade de vida dos cooperados e de outros grupos populares locais.

    O processo de qualificao dos cooperados combina a oportunidade doaprendizado do que seria uma espcie de treinamento em servio, baseadona transmisso de conhecimentos dos mais experientes com o estmulo participao em cursos, quando necessrio. Em certa medida, essa estra-tgia se aproxima da que regia as antigas corporaes de ofcio, em evi-dente contraste com a prtica habitual observada nos canteiros de obra deempresas da construo civil, onde as probabilidades de qualificao soextremamente limitadas.

    Na cooperativa, um ajudante de pedreiro pode, gradativamente, galgara funo de coordenador de obra. Nesse processo de capacitao respeita-da a disposio individual de tornar-se ou no um profissional da cons-truo. H o caso particular do cooperado que se recusa a ser promovido einsiste: me deixem em paz, pra mim est bom, o que eu quero ser ser-vente. Curiosamente, trata-se de um trabalhador que demonstra ter umanotvel capacidade intelectual e reuniria todas as condies para ascenderprofissionalmente, mas prefere ser servente eterno.

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    328 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • Constata-se tambm o fato de alguns cooperados, uma vez qualificados,se destacam tanto que conseguem bom lugar no mercado de trabalho for-mal. Uma opo no questionada pelos coordenadores: no pretendemossegurar ningum, o que ns desejamos a promoo das pessoas, seja ondefor. Essa preocupao com o crescimento pessoal dos cooperados a tni-ca dominante desse empreendimento e que efeito, paradoxalmente de umsentido de pertena coletivo produzido nas relaes de trabalho prprias Cooperativa. Isso visvel nos casos em que os trabalhadores saram evoltaram com outra mentalidade, com maior responsabilidade, com maiorcompromisso com a produo, caracterizando, desse modo, que qualquermudana seja de que natureza for, passa pelos indivduos e seus processossingulares. Assistimos criao de um espao de liberdade, a uma inces-sante aposta no processo de emancipao do outro, sem condicionar o pro-gresso individual ao compromisso de permanncia na cooperativa.

    Por fim, a comisso de finanas auxilia o tesoureiro na organizao dacontabilidade, na prestao de contas dos saldos da cooperativa e na pre-viso de despesas a serem aprovadas nas assemblias. As decises de rotinaso tomadas por um conselho deliberativo, devendo ser convocada a assem-blia geral em casos de aprovao do oramento geral, de integrao denovos cooperados, de desligamento de membros, e em outras situaes queo conselho considerar necessrio.

    Essa experincia tomada como dispositivo de anlise recheada deelementos significativos que permeiam a organizao do trabalho e a cons-truo de um processo de autogesto. Entretanto, do mesmo modo queoutros empreendimentos dessa natureza, a Cooperativa enfrenta uma s-rie de descontinuidades. Assim, entre linhas contnuas e descontnuas,assistimos efetivao de modos cooperativos que engendram processosautnomos possveis.

    Modos cooperativos e processos autnomos

    Entendemos que, sob o ponto de vista de uma economia que se pretendecooperativa e solidria, de fundamental importncia problematizar a lgi-ca de encaixe das formas de trabalho e vida aos ditames do mercado.Tal problematizao um aspecto essencial nessa experincia, na medidaem que ela fomenta um embate incessante entre fazer da existncia diria,unicamente, um expediente para o mercado e gerar um processo contnuode produo de novas relaes sociais, capazes de interferir nos valoresdominantes prprios da sociedade capitalista.

    No caso dessa experincia em particular, trata-se de uma categoriade trabalhadores cuja fora de trabalho historicamente desqualificada e

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    329Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • extremamente desvalorizada do ponto de vista salarial. Contrariamentea essa lgica de explorao, a cooperativa conforme expressa Abel vempara fortalecer o trabalhador e a sua fora de trabalho. Alm do empe-nho em qualificar os trabalhadores, promove-se um reconhecimento deordem econmica:

    (...) h uma pregao a de que cooperativa para trabalhar baratinho. Ns

    somos contra isso. A cooperativa organizada de trabalhadores tem que se ca-

    pacitar e entrar no mercado para mexer na distribuio de renda. O nosso

    preo no mercado talvez seja um dos mais caros. Ns nos capacitamos para

    isso (Abel).

    Um bom sinal do sucesso dessa estratgia de qualificao est no fatode que freqentemente as casas so vendidas antes que a obra tenha sidofinalizada, dado o prestgio conquistado no mercado imobilirio localem virtude da qualidade das obras construdas, como pudemos verificarem contato com a principal corretora que intermedeia as vendas com osproprietrios. Contam, inclusive, com uma pequena rede de clientes fixossempre dispostos a estabelecer novos contratos. Um outro aspecto singular que, findada a obra, oferecem, ainda, cinco anos de garantia.

    Essa forma de trabalho, diferena de muitas outras iniciativas, portaviabilidade econmica, tcnica e de mercado. No entanto, devido falta definanciamento, a maior parcela dos ganhos fica nas mos dos investidores.Da que Abel conceba a situao do empreendimento como uma busca deequilbrio entre o capital e a fora de trabalho.

    Vislumbra-se tambm, nessa experincia, o exerccio de uma liderana,de uma autoridade, reconhecida por todos que no imposta, mas intensi-ficada por seu carisma e sua experincia. Embora Abel insista em sairdo lugar de liderana que lhe destinam, a maior parte dos cooperadosacaba se espelhando nele. Sua prtica entra em dissonncia com a idia dedirigente que estabelece ou faz cumprir normas, entendendo-se o podercomo domnio, como mera relao de mando e obedincia. uma auto-ridade cujo poder construdo pelo fortalecimento do prprio grupo,pelo agir em concerto (Arendt, 2001), numa busca da autonomizao dooutro, a partir do espao de trabalho.

    Esse processo de autonomizao diante das formas de trabalho e vidaatuais dirige-se tambm ao acolhimento de novos cooperados que, como jmencionado, se encontram em situao de vulnerabilidade social extrema.Acolhimento que se traduz em uma poltica diria e que se ocupa no ape-nas em inserir tais trabalhadores na cooperativa, mas integr-los a redes eformas de apoio social (tratamentos, medicamentos, local para morar), comoafirma um dos cooperados:

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    330 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • Temos grande preocupao com o trabalhador. A gente cria normas para isso,

    como o projeto Casa & Cidadania, e se ocupa tambm com a questo da sade,

    mas a questo da segurana no trabalho um problema. Todos tm botas para

    trabalhar, mas as levam para o shopping e aqui vm de chinelos (Cooperado a).

    Tambm se observa a preocupao em ajudar outras entidades e orga-nizaes; inclusive, existe um pequeno fundo no s para apoiar o coopera-do, mas, tambm, para ajudar quem precisa.

    H histrias emblemticas sobre esse processo concomitante de inseroe integrao de vidas que andam na corda bamba e de sombrinha, comoconta o prprio Abel ao referir-se histria de insero de um associado,que ele conheceu quando estava envolvido com projetos sociais ligados igreja. Esse associado morava numa ocupao num cmodo de 3x3, cobertode plstico preto, com a mulher e os dez filhos. Sensibilizados com a si-tuao precria de moradia daquela famlia, acionou-se um mutiro e cri-aram um fundo para a construo de uma casa de trs cmodos e convi-daram-no para trabalhar no empreendimento. O processo de adaptao sedeu de forma lenta e descontnua, j que ele era alcolatra mesmo. Eramfreqentes as faltas, os atrasos, sempre com desculpas, todo dia bba-do, o que exigiu da cooperativa, como descreve Abel, muita pacincia.

    Assim, passados trs meses desde a construo da casa, ele comunicaque sua esposa havia vendido a casa por uma mixaria e com a metadedo dinheiro compra doces para todas as crianas do bairro. Essa situaodeixa a todos indignados, mas acabaram levando a famlia para uma dascasas de Shangri-la. Como relata e insiste Abel: olha s o grau de disponi-bilidade que a gente tem que ter nesses projetos, pois hoje um coopera-tivado responsvel a ponto de ser o encarregado do condomnio maior queestamos construindo.

    Um grau de disponibilidade e de aposta no outro que acata as situaescaticas no como uma distoro, mas como efeitos possveis que emergemno confronto com as adversidades prprias de uma ordem social que nocomporta essas vidas e nem pretende inclu-las. A cooperativa vai con-tramo desse processo de excluso dominante.

    Um empreendimento que acolhe os desviantes3, os que extrapolam, osque se encontram desnorteados e em situaes limites, demonstrando umacapacidade mpar de se colocar no lugar do outro, ou seja, a disponibilidadeem promover continuamente a experincia da alteridade. Do mesmo modo,essa forma de acolhimento compreende que seus associados no tm lugarno mercado. o povo do ofcio que, historicamente, sempre portou umacondio servil (Arendt, 1981).

    No caso da Constri Fcil, observa-se uma tentativa de ultrapassar essacondio servil a partir de uma perspectiva de criarem o prprio mercado,

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    331Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • de modo a garantir, na medida do possvel, um trabalho digno no setor daconstruo civil.

    Para tanto, preservam as dimenses de ofcio, a partir de uma srie deprocedimentos e tcnicas operados nas formas de trabalho que colocam emanlise aquilo que tecnicamente foi apropriado de forma normatizadora eque produz rupturas com os processos que se tornaram dominantes nasrelaes de trabalho nesse setor.

    Assistimos a diferentes modos de se relacionarem com o tempo, com aforma de produzir, criando um conjunto de regras prprias de um coletivoorientado pelos diferentes ofcios exercidos na construo civil, como apon-ta um de seus cooperados ao afirmar que (...) na empreiteira o mesmoritmo, direto. Aqui de acordo com voc. Se est cansado, faz um serviomais leve. L no pode faltar porque mandam embora. Aqui posso ficar emcasa. O encarregado no pega no p, no d esporro. L eles querem tirar oseu sangue. Alm dessa relao diferenciada com o tempo para realizar asatividades de um setor que se caracteriza, predominantemente, por um tipode trabalho pesado e de baixa remunerao, outros elementos, ligados liberdade e segurana de permanecer no emprego, so ressaltados:

    A gente tem mais liberdade (...) O salrio maior do que se estivesse numa

    empresa. (...) Outro lado bom a segurana. Numa empresa de construo civil,

    chega um certo tempo que eles mandam todo mundo embora. Aqui na cooperati-

    va diferente. Aqui o patro voc mesmo. A voc experimenta a sua norma.

    Fora que a gente ganha bem mais aqui do que l fora. Profissional nenhum a

    consegue tirar l fora mais do que tira aqui, com certeza (Cooperado b).

    Percebe-se que na forma de trabalho instaurada na cooperativa no hsanes, as regras no foram feitas para punir. No entanto, como afirma essecooperado: voc experimenta a sua norma. essa experimentao, viabi-lizada por um coletivo de trabalho, que parece permitir a cada um percebera si prprio, inclusive de conceder-se uma espcie de direito preguia,desde que no abuse, conforme nos comentava um coordenador de obra aover um trabalhador descansando num canteiro em pleno horrio de traba-lho. Uma norma fundada na eqidade que produz, ao mesmo tempo, umespao de liberdade entre escolher o tempo dedicado ao trabalho e assumiras conseqncias de tal opo.

    Esse espao de liberdade e de inveno das prprias regras acaba reper-cutindo, tambm, em algumas mudanas de comportamento operadas comrelao aos filhos e a outros familiares: a convivncia l em casa ficou maiscoletiva. Eu no tinha a liberdade de conviver com eles (filhos) como eutenho hoje. A gente pode se aproximar mais deles porque pode tirar umtempo se precisar. Tambm se observa uma insero mais ativa na vida

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    332 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • comunitria local, nas associaes religiosas, culturais e de lazer e nos par-tidos polticos, como aponta um cooperado: antes eu aproveitava a folgapara fazer a minha casa. Agora, aproveito para participar das reunies daigreja e tambm descanso. Se a folga maior, saio e vou praia.

    Tal exerccio pautado na liberdade em que se criam e recriam as relaesde trabalho requer uma mobilizao coletiva. Assumir a liberdade e o sensode responsabilidade que acompanha tal direo quando se enseja produzirprocessos autnomos possveis um grande desafio, posto que comorecorda um cooperado: (...) difcil conscientizar o pessoal. Ningum estacostumado a decidir e a ter responsabilidade. Estamos frente a umaquesto que transcende o espao dessa experincia. A prtica de delegarresponsabilidades aos outros um problema civilizatrio de construoda democracia que perpassa toda a vida social (Mills, 1972).

    Essa dificuldade varia, em certa medida, de acordo com as diferenasexistentes entre os cooperados nas suas trajetrias de vida. Assim, aquelesque j participaram de movimentos sociais de base, de associaes ligadas Igreja ou de partidos polticos se envolvem com maior empenho na cons-truo de todo o processo autogestionrio. Neles se percebe a vontade deconstruir uma democracia da vida cotidiana que se convm inventar comtodas as dificuldades e os impasses que isso representa.

    Entre esses, um dos impasses, que lembrado por todos, se deu nummomento muito especial da cooperativa em que conseguiram juntar umareserva de recursos que permitiria conquistar a autonomia de trabalhar parasi, sem depender de investidores. Como de praxe nesses empreendimen-tos, a deciso sobre o destino desse fundo se deu na assemblia de fim deano quando se delibera sobre a utilizao das denominadas sobras, quecorrespondem ao saldo existente, uma vez cobertas todas as despesas,inclusive as retiradas semanais. Nesse empreendimento, os valores dasretiradas variam de acordo com a funo desempenhada e o nmero dehoras trabalhadas4. Entretanto, para a diviso das sobras de fim de ano, onico critrio seguido o nmero de horas. A adoo desse critrio foi umaforma de valorizar e reconhecer a dedicao de todos, embora, inicialmente,encontrou-se forte reao de cooperados mais antigos e experientes que seconsideravam injustiados.

    As propostas apresentadas na assemblia apontavam, de um lado, paraque as sobras fossem integralmente divididas no grupo, sendo que cadaassociado decidiria sobre o destino que daria sua parte e, de outro, haviaaqueles que desejavam manter as retiradas habituais e aplicar o valorrestante na compra de outro terreno, de modo a se tornarem mais indepen-dentes com relao aos investidores. No havendo consenso, acionou-se umprocesso de votao, sendo decidido, por maioria dos votos, que o montantetotal seria dividido entre as partes, conforme as horas trabalhadas.

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    333Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver

  • Esse acontecimento descrito, por alguns de seus associados, como aperda da possibilidade de conquistarem uma maior autonomia da coopera-tiva e um indicativo da dificuldade dos trabalhadores em aderirem a umainiciativa de carter coletivo. No entanto, para a grande maioria dos coope-rados, que, naquele momento, optou pela retirada total do saldo acumula-do, suas prioridades se dirigiram para outros tipos de interesses como o deviajar para o norte do pas, regio de onde advm grande parte dos coope-rados, ou de montar seu prprio negcio. Podemos traduzir tal tomada dedeciso, sob certo ngulo, dentro de uma perspectiva mais individualistaem contraponto com a lgica solidria. No entanto, passvel de ser produzi-da num modo de ser dominante que apregoa tais valores e que, tambm,atravessa as formas de vida e de trabalho dos cooperados.

    Tais impasses trazem a tenso vivida por um lder democrtico comoAbel, que oscila entre dois extremos. De um lado, compreender os limites ea realidade da maioria das pessoas que compunham a cooperativa, paraos que a necessidade fala mais alto e no adianta ter dinheiro no fundose em casa no tem geladeira; de outro, acatar uma deciso que compro-metia a expectativa de avanar na consolidao da autonomia econmicado empreendimento.

    Os efeitos dessa precipitao se fazem presentes na atualidade quandose deparam com a dificuldade de retomar essa via da autonomia do em-preendimento e, do mesmo modo, tais efeitos do visibilidade ao desconhe-cimento dos riscos que tal deciso portava, a respeito de uma liderana paracom uma deciso de natureza coletiva e fragilidade de uma experinciacom pouco tempo de gestao.

    Nesse sentido, a produo da autogesto desses empreendimentoseconmicos solidrios tem se deparado com determinados entraves, entreesses, a carncia de recursos materiais que os impedem de promover ino-vaes tecnolgicas e de efetuar um controle mais efetivo dos riscos e,sobretudo, a dificuldade de acesso a crditos e a financiamentos, cuja supe-rao possibilitaria atingir objetivos satisfatrios.

    Apesar desse episdio e de todos os entraves, encontram-se, nos rela-tos dos cooperados, algumas tentativas em definirem o significado de umaexperincia que busca incorporar uma perspectiva autonomista compa-rando-a com outras formas de insero ao trabalho mais tradicional em queapontam suas vantagens e desvantagens, a saber:

    (...) como empregado, voc est sempre enriquecendo cada vez mais o outro.

    Ele vai crescendo. Por mais que voc produza algo de valor, voc fica na mesma e

    s o patro que enriquece. A voc praticamente est sendo um escravo dele.

    Quando chega ao final do ano voc recebe o 13, o mesmo salrio que voc

    ganha. No vejo vantagem (Cooperado c).

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    334 Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez

  • Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver 335

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    Essas diferenas ganham visibilidade quando o tema liberdade:no tem dinheiro que pague essa liberdade que a gente tem de trabalhar.No tem que aturar patro. Na empresa, se voc faz alguma coisa errada,voc est ferrado. Aqui a gente tem direito de errar e consertar o erro.No entanto, um aspecto apontado como desvantajoso aquilo (...) que temem algumas empresas e que no tem na cooperativa um plano de sade.

    Embora muitos que participam hoje do empreendimento tenham sidoinseridos sem compreenderem nada sobre cooperativismo, atualmenteentendem o termo (...) como algo que nosso, onde no tem patro; traba-lha-se para si mesmo; tudo o que se faz trar benefcio ou prejuzo para ogrupo. Por isso no pode desperdiar e tem que dividir. Nessa diviso, asobra final de todos. Na firma tudo do patro. Seu trabalho vai de mobeijada para os outros (...). Aqui, se eu chegar atrasado, o pessoal no criti-ca. Na firma cheio de regrinhas. No pode falar o que quer. Seguindo amesma lgica, um outro associado afirma que (...) cooperativa um grupoem que cada um trabalha para ajudar o outro. Cada um faz a sua parteajudando. Tem tambm a diviso no final do ano. Muitos no entendem oque isso.

    compreensvel essa dificuldade de entender um modo cooperativode trabalho, pois contrasta com a sujeio prpria da cultura do assala-riamento, e no propicia determinados direitos sociais, como expressaum associado:

    (...) existe muita diferena. A carteira assinada d muitas coisas que aqui no

    tem... No tem direito a um PIS, um fundo de garantia, uma fria. No tem nada.

    Aqui a gente ganha at mais. Aqui tem mais liberdade. A gente trabalha para a

    gente mesmo. O ganho depende da produo de cada um (Cooperado d).

    Porm, percebemos uma incorporao gradativa da proposta autoges-tionria onde se cria um espao de trabalho satisfatrio, tornando-se pre-ponderante um bom convvio com as diferenas existentes entre eles.Diferenas prprias a um coletivo formado, predominantemente, de pessoasque vivem abaixo da linha da pobreza, alijadas dos servios bsicos comosade e educao e que no logram insero no mercado de trabalho. Nestesentido, a importncia de uma liderana, tal qual exercida por Abel, juntoa uma populao que sofre todas essas adversidades, que traz de formaemblemtica a singularidade de um empreendedor cujas aes se voltampara a inveno de novas formas de vida e trabalho. Suas aes parecemcomportar e compreender que:

    Existem virtualidades presentes num estado de oferecimento, enganches, atua-

    lizaes, proliferaes de onde cada um, indivduo ou parte de um indivduo em

  • Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez336

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    conexo com parte de um outro, extrai e constri a sua terra natal, por mais

    imaterial que ela seja, a partir da qual certos processos de subjetivao podem

    desdobrar-se e ganhar consistncia (Pelbart, 1993, p. 53).

    Construir essa terra natal, considerando esse campo de virtualidades,onde o tempo vivido como uma abertura, uma indeterminao: eis o exer-ccio prprio a uma experincia que acata o carter processual inerente prpria vida, abrindo todo um campo de possveis. Esse campo de possveis expresso por Abel quando se refere a projetos futuros com relao cooperativa e quais as perspectivas de mudana que ele vislumbra:

    Muitas coisas. A gente nunca aprende tudo. Tem uma coisa que eu gostaria

    muito de fazer com a cooperativa que desenvolver um projeto que beneficia

    a ecologia, que preserve a sade. Queria tambm que a gente pudesse usar a

    tecnologia; mas uma tecnologia que beneficia o homem, uma tecnologia que no

    tire o trabalho do homem; que sirva para melhorar a retirada, a sade, para

    o bem-estar das pessoas. Mas com as finanas da cooperativa ainda no d

    (Cooperado e).

    Nessa direo, a cooperativa extrapola uma acepo de trabalho apenascomo meio de sobrevivncia e, embora historicamente as atividadesque desenvolvem portem, na sua natureza, uma condio servil, imprimee expande um novo sentido formativo, de partilha, de sentimento associa-tivo, de convivncia social e comunitria.

    Consideraes finais

    Tratar a composio sade, trabalho e economia solidria implica uma tare-fa complexa. Tal complexidade advm, primeiramente, quando se pretendeproduzir uma alternativa econmica mais solidria, autnoma, justa e par-ticipativa dentro de uma lgica neoliberal, que elege o mercado como regu-lador exclusivo das necessidades sociais.

    Formulada essa questo, no podemos desconhecer alguns embates quese situam entre duas posies extremas. De um lado, aqueles que se colocamde forma mais crtica frente economia solidria, apontando que as expe-rincias promovidas nessa rea enquanto formas de gerao de empregoe renda se limitam a administrar os estragos produzidos pelo capital,substituindo, inclusive, um papel que seria atribuio do Estado; de outro,os que a consideram uma economia alternativa, orientada por valores nomercantis e mesmo avessa ao capitalismo, portadora de princpios capazesde mudar e transformar o sistema de produo dominante.

  • Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver 337

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    Assim, na contestao ao modo de produo capitalista, alguns de seusarautos incorrem, por vezes, no equvoco de pretender substituir o modeloliberal centrado na universalizao do mercado pela utopia solidria basea-da no antimercado (Coraggio, 2001; Catani, 2003). Ou, segundo questionaAntunes (1999), como uma alternativa real para a transformao da lgicado capital e do seu mercado. Embora caibam inmeras indagaes sobre ofuturo desse universo complexo e heterogneo, as experincias atuais jcolocam desafios suficientes para se materializar um projeto comum capazde fortalecer e ampliar as iniciativas do setor.

    Num momento histrico em que a maior parte da fora de trabalhositua-se fora do mercado formal, o movimento da economia solidria poderepresentar no apenas um fenmeno passageiro frente excluso social, talqual vivido em pocas anteriores. Se considerarmos o que vem acontecen-do em diversas experincias internacionais, ele apresenta claros indcios deum novo estilo de vida, com grande potencial de melhorar, significativa-mente, o padro de vida dos participantes nos empreendimentos e de lhesproporcionar uma insero social mais justa e igualitria, que entendemoscomo produtora de sade. Uma produo da sade, que comporta umiderio de ajuda mtua, de cooperao e de associao e que resiste tendncia dominante de reduzir a existncia lgica do mercado e do con-sumo, excluindo, por meios diversos, aqueles que no se encaixam nosmoldes ps-capitalistas em curso.

    Assim, o estudo dessa experincia, em particular, se configurou numaoportunidade nica para reunir elementos elucidativos sobre as possibi-lidades de incorporao das premissas do campo da sade do trabalha-dor, quando se interfere nas condies e relaes de trabalho sem asmediaes intrnsecas valorizao do capital. Sua anlise pode ofereceralguns marcos de referncia para subsidiar negociaes que visem melhoria dos processos laborais nas empresas em que a ingerncia dos tra-balhadores decorre, fundamentalmente, da correlao de foras vigenteentre capital e trabalho.

    A experincia analisada neste estudo porta algumas caractersticasmpares dos empreendimentos cooperativos e solidrios. Alia-se a busca deeficincia e viabilidade econmica autonomia de gerir o prprio em-preendimento e uma atitude de responsabilidade e envolvimento social quetraz, como alguns de seus efeitos, a obteno de benefcios no plano da edu-cao, da qualificao profissional, das formas de sociabilidade, enfim, noplano da produo de novas subjetividades.

    Se considerarmos os desafios de empreendimentos dessa naturezadiante das formas atuais impressas pelo capital, compreenderemos que acooperativa, foco deste estudo, destaca-se como uma experincia singular,dada a forma de organizao de seu trabalho dirio, a sua perspectiva de

  • Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez338

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    incluso, de preocupao com o indivduo e com a comunidade em volta,como, por exemplo, na construo de moradias como o caso do ProjetoCasa & Cidadania. Nessa direo a experincia, do nosso ponto de vista,ganha relevncia se comparada com estudos que ns mesmos vimos rea-lizando com outras iniciativas de economia solidria e, sobretudo, comempresas tradicionais de construo civil.

    Embora a cooperativa busque exercitar todas as dimenses de um cole-tivo pautado por um processo de autogesto e constitua uma experincia desucesso, as dificuldades de acesso a linhas de crdito, compatveis com arealidade econmica do empreendimento, colocam em risco sua prpriacontinuidade nos moldes atuais. Nesse sentido, h necessidade comoaponta Singer (2004) da criao de um outro sistema financeiro solidrio,popular e comunitrio, voltado para os diferentes empreendimentosda economia solidria que esto sendo desenvolvidos em vrias partesdo Brasil.

    Considerando esses moldes atuais, constatamos que o capital tem-seapropriado da subjetividade de forma inusitada, mas, como contrapartida,a subjetividade ela prpria, um capital que cada um dispe com conse-qncias polticas a determinar (Pelbart, 2000, p. 42). Nesse sentido,percebemos que no decurso seguido pela cooperativa cria-se um movimen-to incessante de acreditar e desacreditar dessas verdades, produzidas pelocapital na sua forma atual, to fortemente estabelecidas. Nesse movimento,inverte-se o jogo proposto e, ao invs de pensar a vida como um mercado devariedades, esses trabalhadores tm se esforado em produzir um modocoletivo e solidrio de trabalho que aposta na variao das formas de vida.

    Notas

    1 Pesquisadora visitante da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, daFundao Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Cincias daSade pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, da Fundao Oswaldo Cruz(Ensp/Fiocruz). Correspondncia: Rua Desembargador Itabaiana de Oliveira, 24, apto. 402, Icara, Niteri,Rio de Janeiro, Brasil, CEP 24.230-135.

    2 Pesquisador titular da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, da FundaoOswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Cincias pela Universidadede Salamanca (US), Espanha.

  • Construtores de casa e artfices de cidadania: modos cooperativos de trabalhar e viver 339

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    3 A idia de desvio que buscamos referendar no texto compreend-lo como algo quefaz parte da vida, ou ainda, uma das expresses em que a vida se manifesta. Neste senti-do, os desvios no so concebidos como defeito de qualquer ordem, mas efeitos de umasituao poltica, econmica, social e subjetiva que produz, ela mesma, seus desviantes.Portanto, a cooperativa, foco desse estudo, por compreender essa ordem de questes acatae, por isso mesmo, produz um exerccio e uma experincia, cada vez mais rara nas formasde vida e trabalho atuais, nomeada experincia da alteridade.

    4 O regime de trabalho da cooperativa o que comumente existe na legislaobrasileira: 40 horas semanais. Mas qualquer mudana pode ser decidida em assemblia,posto que as pessoas podem, em circunstncias particulares do momento da obra, ou porvontade prpria, trabalhar mais ou menos horas. Ningum os obriga. J as sobras dosganhos, ao final do ano, so distribudas igualmente para todos de acordo com as horastrabalhadas, independentemente da funo. Acreditamos que nessa forma de distribuioeqitativa e justa est uma forma de solidariedade.

    Referncias

    ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do traba-lho: ensaio sobre a afirmao e a negao dotrabalho. So Paulo: Boitempo, 1999.

    ARENDT, Hanna. A condio humana. Riode Janeiro: Forense Universitria, 1981.

    ______. Poder e violncia. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 2001.

    BARBOSA, Rosangela N. C. Economia soli-dria como poltica pblica: tendncia degerao de renda e ressignificao do traba-lho. So Paulo: Cortez, 2007.

    BARDIN, Laurence. Anlise de contedo.Lisboa: Ed. 70, 1979.

    CAIAFA, Janice. Nosso sculo XXI: notassobre arte, tcnica e poderes. Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 2000.

    CATTANI, Antnio D. (Org.). A outra econo-mia. Porto Alegre: Veraz, 2003.

    CORAGGIO, Jos L. Problematizando laeconoma solidaria y la globalizacin alterna-tiva. II Encontro Internacional sobre globa-

    lizao da solidariedade, Qubec. 2001.Disponvel em: . Acesso em: 11 mar.2008.

    DELEUZE, Gilles. Conversaes. So Paulo:Editora 34, 2000, p. 34.

    DURKHEIM, Emille. Da diviso do trabalhosocial. So Paulo: Martins Fontes, 1995

    FOUCAULT, Michel. Resumo de cursos doCollge de France (1970-1982). Rio deJaneiro: Zahar, 2000.

    FRANA, Genauto. Novos arranjos organi-zacionais possveis?: o fenmeno da econo-mia solidria em questo. Organizaes eSociedade, Salvador, n. 8, v. 20, p. 63-70,2001.

    LACAZ, Francisco A. C. Sade do traba-lhador: um estudo sobre as formaesdiscursivas da academia, dos servios edo movimento sindical. Tese de doutora-do. Campinas: Faculdade de Cincias Mdi-cas, Universidade Estadual de Campinas,1996.

  • Silvana Mendes Lima e Carlos Minayo Gomez340

    Trab. Educ. Sade, v. 6 n. 2, p. 321-340, jul./out.2008

    LOPES, Jos R. et al. Iniciativas Autoges-tionrias no Rio Grande do Sul. So Paulo:Ibase, Anteag, 2001.

    MENDES, Rene; DIAS, Elizabeth C.Da medicina do trabalho sade do traba-lhador. Revista de Sade Pblica, n. 25, v. 5,p. 341-349, 1991.

    MILLS, C. W. A imaginao sociolgica. Riode Janeiro: Zahar, 1972.

    MINAYO-GOMEZ, Carlos; THEDIM-COSTA,Snia M. Empreendimentos econmicossolidrios: uma via saudvel na recuperaodo sentido do trabalho. In: MINAYO, MariaC. S. e COIMBRA JR., Carlos E. A. (Orgs.).Crticas e atuantes: cincias sociais e hu-manas em sade na Amrica Latina. Rio deJaneiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 519-530.

    ______; ______. A construo do campo dasade do trabalhador: percurso e dilemas.Cadernos de Sade Pblica, n. 13, spl. 2,p. 21-32, 1997.

    MINAYO, Maria C. S. O desafio do conheci-mento: pesquisa qualitativa em sade.So Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco,1992.

    PELBART, Peter P. A vertigem por um fio:polticas da subjetividade contempornea.So Paulo: Iluminuras, 2000.

    ______. A nau do tempo rei: 7 ensaios sobreo tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago,1993.

    RAZETO, Luis. Economia da solidariedade eorganizao popular. In: GADOTTI, Moacir;GUTIRRES, Francisco. Educao comu-nitria e economia popular. So Paulo:Cortez, 1993. p. 23-33.

    SCHNEIDER, Jos O. A doutrina do co-operativismo nos tempos atuais. CadernosCedope, Srie Cooperativismo, n. 12, 1994,p. 7-23.

    SINGER, Paul. Introduo economiasolidria. So Paulo: Fundao PerseuAbramo, 2002.

    ______. A economia solidria no governofederal. Boletim de mercado de questespara a construo do documentrio, 2004.

    Recebido em 27/03/2008Aprovado em 18/06/2008