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ANNE CAUQUELlN

TEORIAS DA ARTE

TraduçãoREJANE JANOWITZER

Revisão técnicaVICfORIA MURAT

, rnart.lns

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o ori);in.ll d~la <*'ra foi publicado em fr.lnC'Í"!; com () títuloI.os 1I,t'tmr.; dr l 'art

C(}pyril~ht 'I' I9'JII, I'n'S~'S Unin-r.;it.lin'S d l' rr,lIln'. I'Jri s.Copyri);hl O 211115, IJvrari.-J Martins Fonll'S Editllra I.tcJa.,

Solo J'ó1ulo, para a presente edíçâo,

l' edição

[ulhode 2005

surv1ÁRIo

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Tradução

Rcjanc Jallou·il:::rr

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Título original: Les théories de l'art .ISBN 85-99102·01·X

I. Arte - Filosofia 2. Arte mod erna - Século 20 - FilosofiaI. Título . 11. Série.

Dados Internaciona is de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Sr, Brasil)

Cau quelin, Ann eTeorias da arte / Anne Cauquelin ; traduç ão Rejane

)an owit zcr. - São Paulo : Martins, 2005. - (Todas .1S artes )

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I

II

I. Platão ou a origem do teórico para a arte 271. O duplo discurso 282. A tríade inseparávcl .. .... .. ........ ..... .. ...... ... .. ...... .. ... .... .. ... . 303. Uma traduç ão desconcertant e 32-l. A disseminação ambienta l 34

11. Tipologia de ações possíveis 171. Fundação.. ... .. ..... ..... ... .. ....... ......... ...... ... ...... .. .... .... ...... 172. Acompanhamenlo.... .. ...... ...... ...... ...... .... ....... ............... . 18

Introdução 9

I. O que entender por ' teorias da arte'? 91. Um cortejo ritual............ ....... ......... ..... ..... .... ......... ..... ... 112. Estética e teorias da arte 123. Uma definição pragm ática 15

PRIMEIRA PARTE

AS TEORIA S DE FUNDAÇÃO 23

CAPÍTULO 1 - As teorias ambientais 27

CDD-701

Revisão técnicaVicloria Mural

PreparaçãoEliane Sallloro

Revisão gráficaAnaMariaCortazzo

TerezaGoul'í'iaProdução gráfica

Geraldo AIr'í'SPaginaç~oIFotolitos

Studio 3 Drsrlll'Oll'imrnlo EditorialImpressão e acabamento

Yallgraf

05-4796

índices para catálogo sistemático:I. Arte : Filosofia 701

Todosos direitos drsla edição para o Brasil reservados à

Livraria Martin« Fontes Editora LIda. parao seloMartins .Rua Conecthcirc Ramalho,330 01325.{)()(} São Paulo SP Brasil

Trio(lI) 32413677 Fax(11) 3115.1072e-mail: info@lIIarlillsrdiloraocolllobrlltlp:llwu.Wolllarlillsrdiloraocom.br

11. A arte como sintoma: Hegel.. ................................... 361. Um horizonte para a arte.... .... .... ............ ............. ... ..... ... 362. Pcriodiza ção e finalidade 383. Uma teoria do sintoma 41

11I. O halo romântico 42

IV. A arte como vida: Nietzsche, Schopenhauer. .......... 46

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1. O começo absoluto.... ..... ......... ..... .... ........ ..... ........ ... ..... 472. A aparição da aparência 483. Uma metafísica sem metafísica 49-1. A tradição voa em pedaços 505. Na paisagem de Schopenhauer 51

Conclusão 53

CApiTULO 2 - As teorias injuntivas 55

I. Aristóteles ou as regras da arte 561. Um instrumento p<Jra a autonomia: a taxonomia 572. A arte da mimesis ou de uma teoria da ficção 613. O modelo e a injunção .. ........ .... ........ .... ............... .......... 68

lI. Kant e o sítio da estética 701. O conhecimento da arte como conhecimento aut ônomo: um

sítio para a estética .............. ............... .. ..... ........... ... ...... 712. Os quatro paradoxos fundadores 723. O julgamento constrói seu objeto: a idealidade kantiana. ..... 764. Uma vulgata estética..... .......... .. .. .. ...... .... . .. .......... ... .... ... 78

Ill. Adorno, a negação da crítica..... ................................ 791. Uma teoria critica. 802. A negatividade estética ..:... ..... .. ..... ........ .... ...... .. ..... . ...... 823. O efeito Adorno, a injunção vanguardista... .. ............... .. .. .. 83

é onclusão - A ação das teorias de fundação 87

SEGUNDA PARTE

AS TEORIAS DE ACOMPANHAMENTO 91

CApfTUlO 1 - As teorizações secundárias 93I. O eixo hermen êutico ~...... .... . ... . .... ........ . ... . ..... .. ..... .. . 94

1. A preocupação de compreend er........ ............ .. .. ..... ....... ... 952. O jogo da arte 98

3. A verdade da linguagem: a linguagem -mundo 101-l. Interpretações analíticas e historicistas............ .................. 105

11. O eixo semiológico 1131. A tentação semiológica 1142. Uma lógica do signo 1173. A última palavra.. ...... .. .. .... .... ...................... .. ................ 122

CAPiTULO 2 - As práticas teorizadas 129

I. Uma teorização prática: a crítica de arte 1341. Para novo objeto, nova crítica? 1362. O modelo do paradoxo crítico: Diderot 1413. Fortúnios e infortúnios do modelo.. ... 1454. Um caso de crítica muito influente: Greenberg 147

n. Uma prática que é pensada ou 'isto não é um livro'.. 154

Ill. O rumor teórico 1581. A doxa, nascimento e usos... .... ........ ..... .. ................... ..... 1602.Transmissão do elo e lugar-comum 1623. As proposições d óxícas sobre a arte e seus usos...... .... .. ...... 165

Bibliografia 173Apêndice 175

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ll\rrRODUÇÃO

I. o QUE ENTENDER POR 'TEORIAS DAARTE'?

De imediato, podemos nos perguntar a respeito do sen­

tido do título: 'Teorias da arte'. Trata-se defato de teorias no

sentido geralmente atribuído ao termo, ou seja, de teoria

científica? Ou, ainda, de teorias que manifestam uma coerên­

cia interna, desencadeando proposições que se deduzem

umas das outras para formar um conjunto dotado de valor

de construção para um objeto, cuj~ gênero típico é o das teo­

rias matemáticas. Existem teorias desse tipo para a atividade

artística e para o domínio da arte? A arte não é incompatí­

vel com um tratamento científico? E, afinal, podemos até

nos perguntar (e de fato é uma pergunta freqüente) se há

necessidade de saber alguma coisa sobre as teorias da arte,

ou se não é melhor ignorá-las para nos dedicarmos ao de­

leite, ao prazer que a teorização - cogita-se - irá por certo

destru ir ou pelo menos colocar a'distância.

I~I,

I'

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10 ANNE G\UQUELIN TEORIAS DA ARTE 11

:1

IJ

li

o plural 'teorias da arte', contudo, permite pensar na

existência de uma espécie de atividade contínua à qual diver­

sos autores se dedicaram e que foi, provavelmente, por algu­

ma razão, importante para eles. E que, portanto, de alguma

maneira, a arte invoca a teoria, seja por constituir o objeto

(o 'da' remetendo ao de latino: a respeito da arte), seja por­

que a teoria pertence àarte (o 'de' considerado como genitivo),

na qualidade de componente necessário.

Assim, existem diversas entradas, bem como existem di­

versas teorias. A questão é, por um lado, saber como distin­

gui-las entre si e, por outro, saber quais são suas funções, a

quem e para que elas servem, se são úteis e utilizadas ou se

permanecem nas nuvens das especulações abstratas sem ja­

mais baixarem à terra .

O objetivo desta obra é esclarecer esses pontos, pro­

pondo uma tipologia das teorias existentes, do ponto de vis­

ta de seus efeitos sobre o domínio artístico. Tal proposição já

contém em si uma resposta à segunda questão, a de sua uti­

lidade. Seu número e sua diversidade parecem de fato des ­

cartar a hipótese de que estejam aí 'sem nenhuma razão'.

Mas, ao mesmo tempo, essa diversidade torna necessário

distinguir os papéis diferentes que elas podem representar

- e continuam representando - tanto para os artistas e suas

obras quanto para o público.

Desse modo, em vez de encadear as filosofias da arte

em uma seqüência cronológica- tarefaque esta modesta apre­

sentação não conseguiria realizar a contento, e que, além de

! .

tudo, não poderia de forma alguma ser exaustiva -, o cami­

nho escolhido foi caracterizar os diversos gêneros de dis­

cursos teóricos c, do conjunto dessa classificação, destacar

alguns que pareçam ter tido mais impacto sobre a sensibi­

lidade estética, sobre o pensamento do que é a arte e sobre

a produção das obras.

Tal escolha significa que nem todas as 'teorias da arte' ­

ou o que se costuma chamar assim - estarão presentes aqui,

mas apenas algumas delas, que funcionarão como exemplos

do gênero de discurso que representam. Em contrapartida,

será mencionada uma grande quantidade de discursos que

em geral não são incluídos entre as teorias propriamente di­

tas, mas que apresentam elementos teóricos importantes e têm

efeito direto ou indireto sobre as práticas artísticas.

1. Um cortejo ritual

Um dos sentidos de .anastá ligado à etimologia

1l1I!1iiiãJ~~Dse:mJ].a15JJ~_ImIBêii;,queconvoca toda sorte de participantes para uma festa votiva.

Lá se vêem padres, tocadores de flauta, dançarinos e carpi­

de iras, carregadores de instrumentos do culto, desocupados

atraídos pelo evento, punguistas, gente nas janelas, em suma,

uma comitiva variada, da . . o é o insti adoro

Ao os embrarmos dessa origem, tentamos não ador­

nar o termo mais bruto de teoria em seu sentido habitual­

o de especulação abstrata - , mas sim indicar a proximidade

das duas acepções, proximidade sustentada por uma idéia de

,

iJi11'II

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12 ANNECAUQUELlN TI:ORIAS DA ARTE 13

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Empregad

eriod9,

Vê-se que a distinção entre o adjetivo 'estética', larga­

mente utilizado, e o substantivo que designa uma área de rc­

flexão específica não é tão fácil de detectar em todos os casos.

Quando se considera, contudo, que o próprio termo 'es­

tética' foi proposto no século XVIII para abarcar diferentes

pesquisas, ensaios, pensamentos, descrições de obras ou diá ­

logos filosóficos que tinham por objeto as noções de belo,

seqüência, de procissão organizada, e a de finalidade: a teo­

ria especulatíva, assim como a thcoria ritual, visam, ambas,

a um objeto que elas constroem ou sustentam. Ambas, em

seu rastro, vão concitando um grande número de participan­

tes que, mesmo não sendo necessariamente líderes, têm, ain­

da assim, uma ação determinante sobre o obie

2. Estética e teorias da arte

o emas, en ao, nos re em a essas duas acepções para

expor tanto as teorias especulativas, fundadoras, constituti­

vas da arte tal como ela se apresenta a nós, quanto as teorias

de acompanhamento, que formam em tomo da arte uma área

ativa de comentários e a envolvem com seus cuidados zelo­

sos, Nessa tentativa de envolvimento, chegaremos até mes­

mo a falar de 'rumor teórico', cujos autores, ao mesmo tem ­

po inumeráveis e anônimos, nem por isso deixarão de ser

auxiliares teóricos importantes, agindo especificamente no

domínio da arte.

Uma vez que, afinal, trata-se de ultrapassar em muito

o sentido estrito do termo 'teoria' para expor as diferentes

formas de tratamento especulativo da arte, por quê - é pos­

sível perguntar - não utilizar o termo 'estética'?

'Estética' é, de fato, o termo geralmente usado para de­

signar a área de significação que se desenvolve em torno da

arte, Com essa palavra, compreendemos a maior parte das

vezes um número grande de coisas bastante diversas quan­

to ao seu gênero, papel e sentido.

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----------------- - - - - - - - - -- - - - -_. _ . -- - - - --

15TEORIAS DA ARTE

Nessa topografia, que destaca os lugares onde se situa

a reflexão sobre a arte,

Peirce' .

s

a

"Considerar quais são os efeitos práticos que

achamos que podem ser produzidos pelo

objeto de nossa concepção..."

3. Uma d efin ição pragmática

Desse modo, poderíamos tomar as teorias da arte bem

formadas - aparentadas com as teorias científicas pelo fato

de procederem de um sistema - apenas como uma parte de

uma atividade teórica muito mais ampla. Esse ponto de vis­

ta permite abrir o campo a discursos de gêneros diferentes,

como o dos críticos de art e, dos historiadores da arte, do s

semióticos, dos fenomenólogos, dos psicanalistas, dos pró­

prios artistas, que com freqüência teorizam suas práticas.

Discursos que, aliás, nos são familiares (possivelmente mais do

3. C.S. ~ircc. "Cornrnent rendre nos idées claires",Texte:anti-cartésicns(trad. de J. Chenu, Aubier, 1984).

1

I!i

ANNE CAUQUELIN14

de estilo, de gênero, percebe-se que existe nesse fato uma

tentativa de junção, sob uma mesma marca (Iabel), de dis­

cursos que tratam mais ou menos do mesmo objeto. Mas

uma palavra comum não resolve a questão dos diversos ob ­

jetos heterogêneos. Mesmo que, no século XVIII, o em ­

preendimento de Baumgarten tenha tentado construir uma

espécie de ôrganon do pensamento sensível com sua Aeste­

tica (termo utilizado então pela primeira vez como 'ciência

do sensível')! e o de Kant com a Critique du juge111e1lt degoíi t

(uma teoria) tenha conferido uma base a esse conjunto flui­

do , o termo 'estética' mantém ainda um uso confuso.

Assim, Bened etto Croce, em um de seus textos reunidos

sob o título Essais d'ésthétiquc, define estética como a ciên ­

cia da art e, mas afirma de imediato não se tratar de 'ciência'

propriamente dita, mas de visão filosófica, interrogando-se

em segu ida para saber se a crítica de arte é ou não é est ética;

ass im como a história da arte'.

E"5a é a razão pela qual, em vez de ter de precisar a cada

momento em qual sentido estamos tomando 'es tética' - domí­

nio amplo de qualquer ação ou pensame nto que sejam ligados

â arte, ou corpusrestrito de especulações filosóficas -, escolhe­

mos falar aqui de ' teorias da arte', permiti ndo -nos determinar

de que espécie de teoria ou de discurso estamos tratando.

1. Alexandre Baumgartcn , AI~Ir1im, 2 v, (Francfort -sur-I'Odcr. 1750­1758).

2. Benedetto Croce, [SSiÚS 1f'," thhiqIU' (tradução. seleção e apresentaçãode C illes Ti berghien, C allimard, 1991).

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.,'"

16 ANNE CAUQUELlN ITORIA5 DA ARIT 17

. l

II

1. Fundação

tão a caracterizar - a 'tipologizar' - um leque de ações pos­

síveis, e de fato levadas a cabo, no que diz respeito à cons­

tituição e depois à manutenção ou à transformação do sítio

da arte, de seus princípios, até mesmo de suas regras. Em

suma, ela nos conduziria a analisar tipos de ação, em vez de

avaliaro conteúdo conceitual das especulações.A partir de um

inventário de ações possíveis, poderíamos então determinar

um lugar para cada teoria, bem como para cada tentativade teorização .

A ação de construir, de fundar um domínio de ativida­

des específico dentre todos os domínios de atividades é de­

certo o que importa mais que tudo. No que diz respeito à

arte, essa ação fundadora existe, pertence àquela atividade

de pensamento que reinou na Grécia antiga e deu o poder de

ação inicial à razão, à ciência, à sabedoria e à arte, e que se

chama filosofia. Contudo, é preciso não acreditar que a arte,

o que ela é ou o que ela deve ser, tenha saído pronta da ca­

beça dos pensadores - filósofos que a teriam desse modo

arrancado da indistinção e a colocado como atividade autô ­

noma. Bem longe de alcançar ou mesmo de objetivar esse re­

sultado, um filósofo como Platão menciona a arte apenas epi­

sodicamente, semeando por a~sim dizer grãos de teoria, de

-,

que as teorias espcculativas)e, portanto, têm muito mais im­

pacto sobre nossos julgamentos e sobre a atividade estética

em geral.

Em vista disso, &BEgmJbsBB1nalJi~;jg~~!i1a

n

Com efeito, não estaríamos dizendo nada sobre uma

teoria se nos contentássemos em expor seu conteúdo, ou

seja, em resumi-Ia em algumas páginas; sobretudo não iría­

mos assim tomá-Ia nem mais visível nem mais compreen­

sível, se nada disséssemos a respeito de sua importância, do

poder que ela tem ou não de construir seu objeto. c>_

. tênc

Essa articulação - que nem sempre é perceptível nas

ciências - é, no âmbito que nos diz respeito, mais facilmen­

te detectável, na medida em que as manifestações da arte

são visíveis, mostradas e mostráveis, e que seus comentá­

rios teóricos são de fácil acesso - as mídias se encarregam

de epigrafá-los.

e E, se acei-

tarmos essa definição absolutamente pragmática (as teorias

julgadas de acordo com seus efeitos), ela nos conduzirá en-

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----------------------- - - - - - - - - - - - ---- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -.. '<'

18 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 19

II

IJi

:1

II

I

tica, semiologia, psicanálise, hermenêutica, fenomenologia,

história vêm trazer sua contribuição teórica, mantendo as­

sim um movimento incessante do pensamento em tomo da

arte. Trata-se das ró-

pria prática. esp ape o, e com freqüência ao

en e, os artistas se dedicam também ao exercício de uma

trida com comentários oriundos de to­

dos esses horizontes.

om e CIto, os instrumentos teóricos que foram afiados

nos ateliês das diversas disciplinas - operações da linguagem,

figuras do discurso, modos da representação, estatuto da ima­

gem, intenção e intendonalidade, ser e tempo, negação e ne­

gatividade, construção e desconstrução -, tanto quanto, aliás,

as construções de universos políticos e sociais com suas pala­

vras de ordem, ou os universos filosóficos e seus conceitos­

chave, têm ressonâncias profundas sobre o mundo da arte.

Da mesma maneira, e provavelmente de forma invo­

luntária, os diversos públicos atraídos pelas obras de arte,

por sua vez, teorizam a respeito do que lhes é mostrado; eles

não chegam ingenuamente até a obra, como que despojados

de qualquer a priori, mas também são submetidos a preno­

ções, à idéia do que é ou deve ser a arte, e os julgamentos

que emitem contribuem para manter uma aura teórica di­

fusa. Ess FÍZmu não é negligenciável, na medida em

que limita as atividades artísticas e lhes atribui um lugar de ­

limitado no qual elas irão surgir e sem- o qual elas perma­

neceriam letra morta.

J '1,

II

~

erã ammção.

ar. noçoem~ro

compreensão - ingüís-

2. Acompanhamento

qua :.comoo U!:d~~~~~~di

idéias, ou, melhor diríamos, de tonalidades, uma ambiência

na qual a arte e seu conceitd'- o belo - vão se encontrar en­

volvidos. A idéia platônica do belo e da arte forma desde

então r~ro ria-"

dador em

p

,.l

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20 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DA ARTE 21

Então, restituir essa doxa a seu lugar, como rumor teó­

rico, parece-nos indispensável se quisermos compreender

como se produzem aceitações ou recusas, esquecimento ou

glorificação.

E, portanto, longe de considerar que as teorias sejam

'adendos' que podem muito bem ser dispensados, inúteis con­

versas na maioria das vezes obscuras, parece que elas são, ao

contrário, o meio indispensável para a vida das obras, dentro

do qual a arte se desenvolve e se consuma, bem como sua res­

piração, fora do qual a arte simplesmente sufocaria.

bx; ~em ' -orexist a

-I. Poderíamos op or a esse ponto de vista o caso da arte contempo­rânea, que parece de fato errar ' fora de sítio'. e por isso permanecer semcritérios. dando a impressão de assim escapar a qualquer julgam ento 'equi ­librado'... Mas é justamente essa luta entre um sítio que se tornou muit oest reito e a at ividade artística que permite a transformação do antigo sítioou a construção de um novo sítio . A esse respeito. cf.Arme Cauquclin, n'tittmit éd'art contemporain (Le Scuil, 1996).

~~~~-:CCfma:cOn(ltçaO: e!5e postâ

. Dsta!em'7 - ·"1SítiJiru~· !lEc~~d~..~Q]j:píE!Fá1mg

fCOnstD.lli'.ire:qll ·as;teorizaç~lXl@an!l~têmvN;g.E~· YJo~laiXl[ãQ;;ém~Y

São necessárias essas mediações, todo esse trabalho tecido

incansavelmente pelo comentário, para que seja reconheci-

da como obra. is nenhuma:-atividade ã

~~~di - . e>d

~~==

Se bem que, com efeito, a doxa, ou seja, a opinião consi­

derada enganosa, mutante, errante, sem nenhum fundamen­

to, um rumor composto de todas as apreciações emitidas

aqui e ali sobre a arte, sua função, seu papel, seu preço e seu

sentido - tanto nos meios eruditos quanto em todos os ou­

tros meios -, constitui uma tela de fundo surpreendente­

mente estável, que acolhe e recolhe as teorias di_ -­tipos s o tudo com ingenuidad . Esse verdadeiro

trabalho da doxa é para ser pensado não como um conjunto

desordenado e confuso de 'gostos e cores' sobre o qual seria

impossível discutir, de tanto que é subjetivo e sem impor­

tância em relação ao trabalho da obra, mas como um modo

de discurso de um certo gênero, que não é o inverso despre­

zível do lagos judicioso (maneira como, em geral, a opinião

é tratada), mas um modo específico que contém suas pró­

prias regras - funcionando, por exemplo, com a analogia, a

verossimilhança, a crença, a escolha, o implícito, as incoe ­

rências, características que, juntas, perfazem um método mui­

to sutilmente apropriado às obras de ficção. Sendo assim,

esse modo constitui de fato a parte mais secreta, o mundo

mais íntimo, ou ainda um pré-texto ao mesmo tempo que

um contexto, um acompanhamento permanente das mani­

festações artísticas; e não pelo fato de a doxa apenas reagir

às apresentações da arte, mas muito mais pelo fato de ela

ser, se não diretamente o motor, pelo menos o meio qUi

modela indiretamente, por suas expectativas, a maneir e

pensar e de produzir arte.

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f

II

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1

PRIMEIRA PARTE

AS TEORIAS DE FUNDAÇÃO....

Quando se atribui ao século XVIII o nascimento da esté­

tica como ciência da arte e da arte propriamente dita conside­

rada como autônoma em meio aos outros tipos de atividade,

está se enfatizando uma realidade 'moderna', resgatando o

domínio artístico da indistinção que até então tinha sido

seu destino, enfatizando uma espécie de objetivação dos

discursos e das práticas, e o nascimento, em suma, de um es­

tatuto específico.Mas, ao se fazer isso,esquece-se que o 'nas­

cimento' não é unicamente um ato de registro; ele vem de

longe, foi preparado, concebido, dispunha já de todos os ele­

mentos, decerto ainda pouco sólidos, que constituem seu fun­

do genético, antes de se apresentar em cena.

Esquece-se também que uma fundação, datada, que

estabelece de imediato uma construção, não é necessaria­

mente o único modo de fundação: existem outros mais dis­

cretos, porém de igual modo eficazes, por intermédio dos

IIiI!

I

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24 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 25

quais o território já foi balizado, a envoltura desenhada, o

horizonte assinalado. Enfim, esquece-se também de que uma

fundação nunca está de todo concluída, que ela exige rcfun­

dações incessantes, sustentações, reavaliações, em suma, um

trabalho de reconstrução permanente.

Ao expormos nesta Primeira Parte o que, a nossos olhos,

vale como fundação de uma 'esfera' artística, estaremos tra­

tando dos diversos tipos de atos fundadores. Uns projetam

valores, destacam noções, esboçam ou inscrevem formas de

pensamento valendo como elementos de um universo a con­

sumar. Em geral não apresentam uma teoria sistemática, e sim

uma visão de conjunto, como filosofia. E, justo por isso, seu

efeito é de disseminação, influindo duradouramente sobre as

maneiras de conceber e de sentir. Não são, no sentido estrito,

teorias da arte, mas são teorias para a arte.

Procurando demonstrar como e em quê elas são, espe­

cificamente, teorias para a arte, nós não nos detivemos no tí­

tulo que certos autores deram a suas obras (como a Estética

de Hegel, que parece ser ao primeiro contato uma teoria sis­

temática da arte, mas que se revela muito mais um esboço

de projeto para a arte (cf. Primeira Parte, Capítulo 1).

E, se, justamente, julgamos essas teorias para a arte pelo

efeito que têm sobre o pensamento e a prática da arte, no ­

taremos com freqüência que esse efeito é inversamente pro ­

porcionaI a suas estruturações teóricas. Nós as nomeamos

fundações ambientais.

Os outros se colocam diretamente como fundações teó ­

ricas da arte . Anunciam-se e assumem-se como tal.Também

nesse caso não devemos nos deixar iludir nem pela crono­

logia (o mais antigo não é necessariamente o mais funda­

dor) nem pela modéstia dos intitulados (a Poética de Aristó ­

teles não diz respeito apenas à poesia), mas observar mais

uma vez os efeitos.

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CAPflULO 1

AS TEORIAS AMBIENTAIS

I. PLATÃO OU A ORIGEM DO TEÓRICO PARA A ARTE

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche atribui a Sócra­

tes - via Platão - o começo do fim de uma arte que era, an­

tes da chegada dos filósofos, ao mesmo tempo ingênua e

que tinha uma vida própria, conforme ao gênio grego. A tra­

gédia era então a expressão, inexcedível, desse gênio, mis­

turando de maneira original a embriaguez dionisíaca e a or­

dem apolínea, num conjunto de harmonia e ilusão.

Lã, é-nos oferecido, no supremo simbolismo da arte, ao

mesmo tempo o mundo apolíneo da beleza e sua parte mais

profunda, a aterradora sabedoria de Sileno'.

1. Friedrich Nietzsche, La naissance dela tragédie (trad. de P. Lacoue­Labarthe, Callirnard, 1977).

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28 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE"

29

A chegada do' 'homem teórico', Sócrates, acaba com

essa expressão ao mesmo tempo simples e complexa e, de

alguma maneira, faz soar o dobre fúnebre da tragédia anti­

ga, com uma visão estética do mundo. A moral e a dialética

serão as substitutas, e a dupla Dionísio-Apolo fará não mais

do que breves retornos, praticamente às escondidas (inclu­

sive no Sócrates de Platão). Ocorreu, pois, de acordo com

Nietzsche, a oscilação da arte (a tragédia em sua forma con­

c�uída) na direção de uma ordem que ignora sua expressão

para se estabelecer no discurso, o logos, no qual se refletirá,

mantido a distância pela razão ou mesmo pelo raciocínio.

Assiste-se então à passagem da theoria dionisíaca, esse

cortejo cheio de barulho e de furor poético, à teoria no segun­

do sentido do termo, uma série de proposições encadeadas.

Para Platão, a partir daí, a ordem filosófica envolve a arte

como uma atividade dentre outras, para a qual é preciso en­

contrar um lugar no concurso das ciências e das técnicas, hie­

rarquizadas pelo Iogas. Trata-se, pois, de fato, de uma fundação,

de uma ordem de pensamento que situa a arte e os conceitos

a ela ligados no domínio da filosofia. Mas de que arte se trata

e quais são os princípios básicos que regem essa prática?

1. O duplo discurso

É preciso antes de mais nada observar que não há na

obra de Platão discurso especificamente dedicado à arte', Não

2. O Hipias Maior é o único diálogo dedicado à questão do belo, mas'0 que é o belo?' - pergunta que busca encontrar a unidade do conceito-

há teoria da arte propriamente dita, mas notações dispersas

a respeito, ora da prática de certas artes (tekllé), ora da idéia

de belo. Em outras palavras, a idéia de arte não é arte, é sepa­

rada dela, deixando a arte, sua prática, o 'fazer, muito longe

de poder realizar o belo, e até de aspirar a ele. Essadivisão de­

precia de modo claro tudo o que se refere à produção, pelo

homem, de seja qual for a obra. Temos com freqüência nos

surpreendido com o rigor com que Platão julgou a poesia, a

qual ele expulsou da cidade ); a música, que enlangucscia os

corpos; a pintura, afastada em dois graus da verdade; e so­

bretudo todas as artes manuais que não empregassem nem

o cálculo nem o raciocínio, a régua e a medida, podendo ser

feitas de maneira improvisada. (Assim como o tocador de

flauta que não tivesse estudado o intervalo entre os sons, o

arquiteto amador que construísse sua casa sem ter aprendido

a regra das proporções matemáticas ou até o arquiteto ardi­

loso que burlasse a geometria com a ilusão perspectivista")

não pode encontrar resposta em uma amostragem de coisas particulares, comosão as obras de arte. Não se trata, pois, de um diálogo sobre a arte.

3. Em A República, livroX 605 b,em que poesia e pintura são descritas"implantando na alma dos indivíduos a má conduta" e "criando fantas­mas a uma distância infinita da verdade" . A cama pintada pelo artista era,por exemplo, a cópia da cama feita pelo artesão, cópia que, por sua vez, eraa imitação da idéia de cama (596 b - 598 a). -

4.Filcbo, 56 a-e:"Aarte da flauta ( ) que ajusta suas harmonias não pormedida, mas por conjectura empírica ( ) embora contenha uma forte dosede imprecisão e pouca de certeza"; "Quanto à arte da construção, o fato deusar mais a medida e instrumentos confere-lhe bastante exatidão e mais ri­gor (...) Utiliza-se a régua do tomo, do cordel, do compasso e do engenhosoinstrumento que é o esquadro" (cf. também A República, 602 ti - 603).

Page 15: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

30 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 31

É que as atividades produtivas estão desde logo com­

prometidas por determinações concretas e são de imediato

submetidas a numer~sas avaliações, de tipo diferente, como

as que dependem da utilidade, do sucesso (nós diríamos de

desempenho) ou do grau de rigor que conduziu seu exercí­

cio. Elas estão submetidas à aprovação ou desaprovação de

um público, que não julga necessariamente segundo o verda­

deiro e o bom, mas segundo critérios de prazer, forçosamente

variados, pois o prazer não tem em si mesmo nenhum con­

ceito unificador',

Assim, a questão da arte é remetida a seu nada, e po­

demos então nos perguntar como Platão e o platonismo

conseguiram 'fundar' a atividade artística - ao menos no Oci­

dente, é nisso que se acredita piamente - a partir dessas pre­

missas um tanto desencorajadoras.

É que esse discurso pejorativo é duplicado - ou melhor,

recoberto - por outro bem diferente, que parece contradi­

zê-lo em todos os pontos. O que diz respeito ao belo.

2. A tríade inseparável

O bdo, para Platão, é o rosto do bem e da verdade. São

três princípios intimamente ligados: nada pode ser consi­

derado belo se não for verdadeiro: nenhum bem pode exis-

. 5. Cf.Filroo, em que o prazc.'r está em quinto (e último) lugar na hie ­rarquia dos valores: de i:,com efeito, misturado, diverso, conjetural, freqüen ­

. tcmente ilimitado, e mesmo os prazeres puros, os da alma, estão aindamuito atrás da posse da sabedoria.

tir fora da verdade. Essa tríade é o princípio da ordem que

dá acesso à inteligibilidade e sem a qual o mundo seria

apenas caos. Esse princípio único (e de unicidade) que dá

aos seres sua consistência não pode ser encontrado no di­

verso, no heterogêneo, no misturado, no sensível, nos fe­

nômenos nem, evidentemente, na arte tal como é praticada.

Só o exercício do intelecto permite distingui-lo. A dianóia

é a via que pode, por meio dos degraus do conhecimento,

conduzir à iluminação suprema e fazer luzir, sobre quem se

dedica à sua procura, "a luz da sabedoria (phronesis) e da

inteligência (naus), com toda a intensidade que as forças

humanas são capazes de suportar:", Se a arte vale alguma

coisa, é talvez apenas na medida em que percorre a via da

dianóia (ou inteligência que atravessa) e permite desven­

dar nos seres e nas coisas uma ponta de inteligibilidade.

Um belo corpo, uma bela coisa, uma bela imagem podem

dar o impulso necessário à busca do princípio que governa

o universo. Mas em si esse genne nada é caso não seja se­

guido de urna 'busca' da verdade, do bem e do belo, as formas

ou Idéias que são a fonte e ao mesmo tempo o fim de toda

presença no mundo.

Dessas formas, imateriais, supraterrestres, não é possí­

vel separar o belo como entidade autônoma nem a verda­

de: sua união indissolúvel é o bem supremo. Portanto, só há

Idéia de arte no seio dessa tríade .

6. Platão, Carta VI/, 344 b.

Page 16: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

32 AN NE G\UQUELlN TEORIAS DA ARTE 33

Éapenas com a condição dessa 'busca' que a arte pode

ser convertida, voltada na direção da intelecção do Um, mas

geralmente a parte de ilusão que ela oculta é pouco reco­

mendável, e todo um sistema de defesa deve ser chamado

para ajudar na luta contra seu encanto enganador. (Pode­

mos decerto ter prazer com Homero, mas é preciso ter em

mente que se trata apenas de mentiras")

Assim, o belo se move junto com seus dois cúmplices, o

bem e o verdadeiro, em uma esfera superior, a dos princípios ou

formas, muito acima de todas as nossas mirradas tentativas.

3. Uma tradução desconcertante

Esse duplo discurso, que separa a prática da arte da vi­

são do belo por toda a distância de uma dianóia, de uma pas­

sagem por meio dos degraus do conhecimento até a intuição

do Um, vai se ver completamente reconstruído na interpre­

tação dos neoplatônicos. Reconstruído, transformado, in­

vertido. Em vez de ser mantida na submissão mais absoluta

à tríade das Idéias, a arte será alçada ao nível das formas; des­

ligada das atividades práticas inferiores, ela entrará no rei­

no das Idéias.

Como isso se faz? Justo pela separação da tríade de Pla­

tão: o Belo, mesmo continuando a ser o rosto do Bem, vai

7.A República, livro X. 608 11: "Também nós nutrimos pela poe sia umamor que a educação fez nascer em nossos corações, mas, enquanto ela forincapaz de se justificar, nós a ouviremos repetindo-nos as razõ es que aca­bamos de dar para nos proteger contra seus encantamentos" .

desempenhar sua parte inteiramente só; ele será dotado de

uma Idéia específica, Idéia cujo favorecedor, a manifestação

sobre a terra, será a arte. A arte estará assim diretamente liga­

da à sua Idéia, que é sua forma ideal, sem ter de passar pela

dianóia. Mais ainda, esse acesso ao reino das Idéias pela via da

arte será privilegiado: a arte é o meio mais direto de se unir ao

Um, ao princípio de todas as coisas. Nela, por ela, conjugam­

se com efeito o sensível e a idéia, um elo que, do mundo das

percepções, vai direto à alma do universo.A arte se abre sobre

uma visão do todo. A beleza é a chave da compreensão.

Panofsky mostrou magistralmente, em ldea", como essa

manobra pôde ser concretizada, desprezando por inteiro a

verossimilhança e a verdade do texto platônico. Cícero foi o

primeiro, disse ele, que, em seu discurso "O orador", fez o belo

voltar a um ponto mais baixo, no domínio da arte (ou erguer

a arte em direção ao belo, como seu instrumento mais apro­

priado). Ele libera a arte do domínio das aparências para fazer

dela o instrumento de uma visão da Natureza, até mesmo de

sua reforma ou de sua idealização. Depois disso, diversos ou ­

tros retoques foram realizados, sob os quais desaparecem por

completo as teses platônicas sobre a arte.

Duplo desconcerto, pois, com o primeiro - se nos re­

metemos a O nascimento da tragMia' ~, passa-se de uma arte

Ilaí've, que não se reflete no intelecto, a lima arte cheia de

medida, de proporção e de geometria, que desconfia da ins-

8. Erwin Panofsky, ldca (Gallimard, 1983).

Page 17: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

34 ANNE CAUQUELlNTEORIAS DAARTE 35

sobre o pouco valor da arte, ele criou, graças a seu duplo

discurso e ao desconcerto que seus sucessores o fizeram so­

frer, um meio, uma 'ambiência' na qual a espiritualidade, a

inteligibilidade e a beleza se encontram misturadas e leva­

das às nuvens, enquanto esse ideal se encarna na obra de

gênio, fazendo então resplandecer a luz da arte sobre o ê-

nero hurnano.,_----------

exao, nao

~~:::mmimmBi5õi:er:cmmlEeis que o mundo da arte se

vê envolvido por um halo de conceitos, noções e princípios,

consultados insistentemente pelos teóricos posteriores e so­

bretudo pelos próprios artistas, reservando-se o direito, en­

tretanto, de transformá-los. Basta ler os 'cadernos' de Leo­

nardo da Vinci, os poemas de Michelângelo ou as cartas de

Dürer. E, mais próximo de nós, qualquer declaração a res­

peito do ideal, do projeto ou da forma que o artista tem

dentro de si e que realiza, da transcendência da arte em re­

lação ao cotidiano, da unicidade da obra e da unicidade do

autor, ou ainda - tema freqüente entre os críticos de arte ­

do dom que o artista tem de ver (em deus ou no espírito) o

que o vulgo não vê, a verdadeira essência das coisas. O pintor

é um vidente: "Quando Deus enviou almas ao futuro, ele

colocou sobre seus rostos olhos que carregam luz" (Platina).

Esses vestígios, como a sombra provida de uma filoso­

fia fundadora, estão espalhados sobre .qualquer território

onde se exerça atividade artística. Eles demarcam a opinião

Mesmo que Platão não tenha fundado uma teoria po­

sitlva da arte nem da!' artes, mas, sim, expressado uma tese

4. A disseminação ambiental

q. Plotlno, [nt-ada~. Um'!1. 6: "Do belo" ,

píraçâo, exorciza o demônio do irracional e não pode ser

avaliada senão se comparada à verdade, tratando-se da in­

trodução do inteligível como princípio. Com o segundo, de­

vido, dessa vez, a uma tradução propriamente desconcer­

tante da tese platônica sobre a arte - arte um tanto malvista

pelo próprio Platão -, sofreu üma metamorfose e se vê pro­

movida a paradigma, não só de toda atividade espiritual, mas

ainda do cosmos.

Com efeito, as representações interiores do artista pas­

sam a se confundir com os princípios originários da nature­

za. Para Platina, o espírito engendra as idéias a partir dele,

e por uma espécie de prodigalidade as espalha pelo mundo

da especialidade: o universo é uma obra de beleza, no qual

resplandece a Idéia".

Para Platina, mas também para santo Agostinho e santo

Tomás, o belo se toma a forma ideal, manifesta na arte, e,

presente no espírito do artista que tenta lhe dar um corpo,

contribui para a elevação do espírito - argumento para a

existência de um Deus ele mesmo artista. A esfera da me­

tafísica passa a cercar as obras de arte, que nela se desen­

volvem e nela encontram sua definição.

Page 18: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

36 ANNE CAUQUELl N TEORIAS DAARTE

"37

comum tanto quanto as teorias mais elaboradas; quase nada

escapa de sua influência, mesmo que seja para fazer retoques

ou criticar seus elementos.

11. A ARTE COMO SINTOMA: HEGEL

Se uma teoria ambiental é exatamente a que dá perspec­

tivas, estabelece os marcos e envolve de forma abrangente

seu objeto, apresentando temas bem mais do que construin­

do o objeto em sua autonomia, então a estética hegeliana pa­

rece corresponder a essa descrição. Com efeito, embora seu

Cursos âe estética" seja uma teoria sistemática da arte - sis­

tematismo que poderia classificá -Ia sob a etiqueta 'ciência

da arte' -, seu conteúdo, longe de se impor como fundação de

um território autônomo, consiste em uma etapa da marcha

em direção ao saber absoluto, que justifica sua presença em

um momento determinado de sua história.

1. Um horizonte para a arte

No processo do desenvolvimento dialético do espírito,

a arte é atravessada por uma linha ascendente que não visa a

sua constituição em objeto autônomo, mas a algo bem di-

10. Friedrich Hegel, LcÇOIlS SI/r I'cstllétiql/c, publicado após sua mortesegundo as notas de seus discípulos. Essas aulas foram ministradas e~ Ber­lim, entre 1820 e 1829 (trad. de [ankélévitch, 4 V., Aubier, 1944; republicada spor Aubier em 8 V., 1964).

.:l

ferente . Sua inserção no processo espiritual vai, por abstra ­

ções sucessivas, conduzi-la à perda: ela é espreitada pela ..religião que deseja sua morte, definitivamente consumada

(na companhia, aliás, de todos os outros momentos) na fase

derradeira de fusão com o universal singular: o saber abso-.luto. Por um trançado laborioso submetido ao projeto geral

da fenomenologia, a arte se ajusta entre a moralidade sub­

jetiva -objetiva (desenvolvida como via pública e estrutura

do Estado) e a religião, em cuja direção ela segue e que a

coroa, religião por sua vez reintroduzida na filosofia ".

Primeiro degrau da filosofia do espírito - que, aqui,

triunfa da separação entre exterioridade e interioridade e se

coloca como reconciliação entre a natureza finita e a liber­

dade infinita do pensamento -, a arte é o cio intermedi ário

que apresenta essa conciliação sob um aspecto sensível. Esse

momento deverá, pois, ser ultrapassado também, na dire ­

ção de um pensamento que se pensará por si, sem ter ne ­

cessidade de se mostrar sob uma forma sensível: será o saber

absoluto, do qual a arte ainda está bem longe.

A arte é submetida à Idéia, e o ideal da arte está fora

dela. Uma teoria da arte não pode, portanto, encontrar-se

afastada do conjunto de uma filosofia, estando ligada a ela

por seu começo (o que a tomou pos_sívcl) e por seu fim (o

objetivo para o qual se dirige), e não pode ser compreendi-

11. Cf. Friedrich Hegel, Précis de l'cncuclop édic desSCit'IICl'S phiiosaphi­qucs (trad . de Gibelin, Vrin, 1967), em que o plano geral da filosofia do es­pírito está exposto.

Page 19: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

38 ANNE CAUQUELlN1Ij ., TEORIAS DA ARTE 39

.'

da fora do projeto global. A arte não é analisada por si pró­

pria, mas somente na qualidade de elo intermediário tomado

necessário devido à estrutura do conjunto.

Trata-se então de uma paisagem, de um horizonte, de

um grande invólucro, em meio ao qual se pode 'enquadrar'

e analisar um fragmento, como se faria com o detalhe de

um afresco - detalhe que não teria sentido senão em rela­

ção à totalidade.

Mas se, então, a arte é vista como momento, como deta­

lhe efêmero carregado pelo movimento de sua dissolução ne­

cessária, o que ela produz na passagem - as obras de arte ­

pode também ser detalhado, enquadrado e analisado numa

mesma perspectiva, como pressentimento de um desapareci­

mento, cada momento se apagando para dar lugar a outro.

2. Periodização e finalidade

Hegel se dedica, assim, a uma análise bastante deta­

lhada desses 'momentos da arte' apresentados pelos perío­

dos históricos e os distribui ao longo de uma linha contínua

desde a pré-história (ou quase) até o limite previsto para

seu desaparecimento. Do Egito ao século XIX, passando pela

Índia, Grécia, Holanda, Itália, França, a tal percurso corres­

pendem também diferentes artes: arquitetura, escultura,

pintura, música, poesia, nu,ma cadeia coincidente. Curiosa­

mente, a arte caminha no espaço geográfico e na temporali-

. dade com o mesmo passo, sempre com pressa, poder-se-ia

dizer, de extinguir a si mesma, enquanto brilham por um ins-

tante e desaparecem os diversos gêneros ou categorias das

Belas-Artes, a música e a poesia.

Nascimento e morte de cada um desses gêneros, corres­

pondentes a um período histórico, produzem-se e reprodu­

zem-se sem que tenham sido causados por uma atividade

específica dos sujeitos (os artistas), mas porque nascimentos

e mortes são ensejados pela determinação superior que rege

a história (a da arte assim como a do mundo): o espírito.

Desse modo, vemos a arquitetura - cujos berços são a

Pérsia, a Índia e o Egito - nascer de uma indistinção entre

fundo e forma, alma e corpo, conceito e realidade, depois pas­

sar por um período em que a diferenciação vem à tona e se

representa sob a forma de símbolo. Assim as pirâmides sim­

bolizam ·a luta entre exterior e interior (subterrâneos e câmaras

mortuárias). Na arquitetura, a representação da idéia perma­

nece exterior a seu conteúdo. Essa representação, bem como

seu momento na vida do espírito, é dita 'simbólica'",

Ela dará lugar à escultura - momento dito 'clássico', cujo

local é a Grécia antiga -, que libera a figura da massa indis­

tinta da arquitetura para afirmar a individualidade espiri­

tual encarnada em um corpo. Falta a ela, contudo, "a vida

da subjetividade interior, assim como a vida e o movimento

que, por seu conteúdo e seu modo de apresentação, é obri­

gada a negligenciar"!'.

12. Idem, 'L'art symboliquc', Esthétique (Aubier, 1964).13. Idem, 'La peinturc', 'La musique', ibid. (Aubier, 1964), p. 17.

Page 20: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

40 ANNE CAUQUELlN nORIAS DA ARTE 41

3. Urna teoria do sintoma

Éexatamente por isso que essa teorização só pode cau­

sar algum efeito sobre a arte a partir da ambiência onde a

coloca, do horizonte que ela expõe em seu entorno. Embo­

ra não possa fundar a arte, sua natureza e suas práticas, na

medida em que não leva em consideração sua existência

presente e seus traços positivos - o que é a condição para

falar do que se faz ou do que se deveria fazer -, nem por isso

deixa de ser fundadora de certo número de temas que se pro­

pagam através da cultura e marcam-na com o seu selo .

No que diz respeito a Hegel, sua Estética age dupla­

mente sobre o domínio da arte: por um lado renova e sus­

tenta as Idéias de Platão e do neoplatonismo; por outro,

propõe uma visão sintomática das manifestações da arte ao

fazer delas fenômenos (aparições sucessivas e efêmeras,

fantasmagóricas) ligados à história e que tornam visível seu

sentido. Cada período da arte com suas produções singula­

res é então visto como sintonia da vida contínua, obstinada,

do espírito que, expressando-se por meio delas, indica o es-

ta seu próprio desenvolvimento.

A visão egeliana" a mesma

que, no mundo contemporâneo; leva alguns a se interroga­

rem a respeito da morte da arte (tema caro aos contcmpto­

res da arte contemporânea) e a respeito do bom fundamento

do movimento de arte conceitual, inscrito no movimento de

frII

14. Idem, ibid., pp.157-8.

Vem então a pintura, na qual o princípio de subjetivida­

de triunfa, a representação se toma independente da espada­

lidade, chegando até a negá-Ia, servindo-se apenas da super­

fície e da tonalidade para expressar os sentimentos de uma

interioridade totalmente espiritual. É o momento ronuintico

da arte. Romantismo que alcançará seu ápice com a música e

a poesia: ambas suprimem, com efeito, o peso imóvel da fi­

gura pintada "ao recusar-lhe toda possibilidade de existência

permanente". Abandonando o visível e se submetendo à vi­

bração contínua dos sons, é um órgão de sentido muito mais

etéreo que é solicitado, o ouvido, um órgão desentido tcático".

À medida que a abstração avança, as fronteiras geográ­

ficas se alargam, a poesia não tem mais país, está pronta

para a viagem através do universal. Logo os fragmentos ­

de espaço e de tempo, de gêneros e de categorias - serão

reunidos para se fundir dentro da unidade do único sujeito

que tem valor, aquele que fez todo o trabalho: o sujeito uni­

versal absoluto.Periodizações e finalidade, as primeiras em direção à

segunda, ou seja, de um fim ao mesmo tempo programado

e ausente. A idéia, separada das manifestações concretas da

arte, que dela só podem se aproximar ao se tornarem invi­

síveis, ocupa o mesmo lugar que na obra de Platão: pratica­

mente ínalcançávcl, relegando o exercício concreto da arte

ao reino das aparências.

Page 21: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

m. O HALO ROMÂNTICO

43TEORIAS DAARTE

mo - personagem, comportamento e obra - forja-se assim,

incluindo o gênio, o sublime, a teatralização da arte como ópe­

ra total- todas as artes e todas as ciências fazem parte da obra

derradeira do espírito, que muda a face da ciência e a converte

em poesia. A arte acima da vida; o artista diferente dos outros

homens; a natureza, poder absoluto, falando por sua voz e se

revelando em sua obra. Todos esses temas podem efetivamen­

te ser extraídos de forma fragmentar dos Fragmenis (fragments

critiques, publicados por F. Schlegel em 1797, e Fmgments, pu­

blicados na revista EAthenaeum em 1798), depois encontrados

aqui e ali em Novalis, Hõderlin e nos irmãos Schlegel, mas fo­

ram sobretudo retomados e reinseridos em uma trama à qual

se atribui o nome de 'româ1UJ:·L.ã-'l_" ---~

O sucesso a Imagem que vai servir por muito tem-

o de modelo ao artista e que persiste ainda hoje como es­

tereótipo e lugar-comum deve-se provavelmente ao fato de

ela retomar e misturar traços antigos (certo platonismo: o

belo é o bem e o verdadeiro, e os três são indissociáveis ­

ou a poesia como filosofia e vice-versa), até mesmo vetustos(o modelo grego: a cultura grega, sua atmosfera, a tragédia

grega, os heróis, a natureza, tudo é grego, é o horizonte de

referência para os românticos; o filósofo -poeta deve neces­

sariamente ser grego), renascentistas (o homem ocupa o cen­

tro do mundo, a natureza é uma deusa pagã, o pintor é poeta

16. Sobre o romantismo alemão, cf. P. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy,Eabsolu litt éraire. Théorie de la litt érature du romantisme allemand (Le Seuil,1978).

II1,'

ir4."

·1i,

ANNE CAUQUELlN42

abstração progressiva, pelo qual a arte se move em direção

à filosofia.

Esse halo de sentido envolve artistas e críticos de arte,

que encontram, assim, uma maneira de se acomodar em

uma continuidade histórica, sem serem obrigados a indicar

eles mesmos as razões das escolhas que exerceram.

Além do mais, essa paisagem ambiental encontra ecos

em filosofias que são na verdade muito distantes, chegan­

do a ser radicalmente opostas à hipótese especulativa de

Hegel". Trata-se, no caso, de uma das características desse

tipo de fundação: invadir pouco a pouco as outras tentativas

de teorização.

Dentre essas teorias de fundação ambiental, cuja ação

difusa é ainda maior pelo fato de a teoria original ter sido

mal compreendida ou traída, é preciso incluir a teoria da

arte do romantismo alemão. O termo 'romântico' cobre, no

uso corrente, urna diversidade de traços díspares que repre­

sentam - no serem aplicados ao acaso - certas propriedades

que os idealistasatribuíam à arte. Uma figura do rornantis-

15. Assim ~ qUI.', r or exemplo, apt.'S<1r do horror que ela lhes inspi­ra, a filosofia de Hegel exerce uma atração so bre Schopenhauer e sobreNietzsche: o princípio ún ico que atravessa cegamente o tempo, arrastan­do os sujeitos da história em sua corrida, tem alguma ligação com a repeti­,Çãoeterna deste, a presl'nça da origem trágica ou a vontade tomando cons­ciência de si mesma .

.1~ '.:

Page 22: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

. ;

I ,I

45TEORIAS DAARTE

18. Programa cujo autor não se conhece e que foi descoberto, reco­piado à mão nos papéis de Hegel, datando de 1795.

projeto. Esse "mais antigo programa sistemático do idealismo

alemão? ", que não é nem programático, nem sistemático,

nem filosófico stricto seIlS11, é um processo completo, processo

em ato e portanto sistêmico mais do que sistemático, ou seja,

orgânico: ele alia a vida e o espírito ao mundo em evolução;

mais poiético do que poético ou filosófico, ele maneja em suma

o 'e' em vez do 'ou'.Está resumido no fragmento 115 do Liceu:

"Toda arte deve se tornar ciência, e toda ciência se tomar arte;

poesia e filosofia devem estar ~eunidas".

Entretanto, ao praticarem o witz e o fragmento, o para ­

doxo e o anti-sistema, os românticos ofereceram a seus suces ­

sores uma mina a ser explorada na maior desordem e de acor­

do com suas necessidades. Éassim que os artistas - chamados

de 'obras de arte da natureza' no fragmento 1 de Schlegel ­

são transportados às nuvens; a genialidade passa então a per­

tencer-lhes como uma característica permanente e completa,

bem ao contrário do que propunha a lógica do witz! O ano­

nimato e a escrita coletiva cederam lugar ao culto da perso­

nalidade; a alegria do witz ("nada é mais desprezível do que

um witz triste", fragmento 17), à triste profundeza do senti ­

mento; a sociabilidade, ao isolamento etc.

Essa disseminação dos temas e seu desarranjo produ­

ziram uma grande complicação na imagem do artista e na

da arte. Mas essa própria complicação é o signo da riqueza

"

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ANNE ú\UQUELlN

17. O untz, "genialidade fragmentária" (fragmento 9 dos Fmgmcntscriliqucs), ínfima, fugaz e quase informe, saber-ter imediato e absoluto, d~econtudo ser escrito, passar à obra, para ser verdadeiramente a automam­festaçâo do saber de si (mas involuntário) da Idéia.

Essa composição sutil alia os contrários mantendo-os

em equilíbrio e pode ser vista como exemplo/princípio na

filosofia do fragmento, que concede a primazia à criação de

si e do mundo (um todo único) por intermédio do espírito

(o witz) 17, flecha aguda que atravessa vigorosamente o peso,

a opacidade de um mundo envolto em trevas, rígido e sem

e arquiteto) e clássicos (é pelo pensamento que o homem

reinventa as leis do universo, pois há uma correspondência

tácita, um paralelismo entre as leis da inteligência e as da

matéria). Mistura na qual o romantismo faz introduzir as 'no­

vidades' filosóficas, rompendo com os traços que acabamos

de citar e que, de um lado, procedem de Kant, mas retor­

nando a ele (a imaginação transcendental à qual é confiada

a unidade, a individualização de um sujeito que se torna as­

sim a unidade de medida da obra do mundo, uma espécie

de eu absoluto), e, de outro, de pensadores-poetas como

Hôderlin, ou de filósofos como Schelling (a idéia de um

progresso do espírito, tema do idealismo especulativo, que,

ao contrário do que será para Hegel, é percebido como um

sistema total, mas mesmo assim aberto, ou seja, essencial­

mente inacabável), e, finalmente, de um espírito domundo

essencialmente anônimo, que seria, em sua forma acaba

da/inacabada, 'poesia de . ,

44

Page 23: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

46 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 47

do germe que os românticos depositaram no campo da arte.

Germe que de tempos em tempos desabrocha em boas flo­

rações, devolvendo ao witz o que lhe pertence, como, por

exemplo (fiel, neste caso, a uma de suas reivindicações), o

elogio contemporâneo desse 'por um triz', que Schlegella­

mentava não fazer parte das categorias kantianas, ou o elogio

da ironia constitutiva de qualquer obra, ou, passando além

das caricaturas grosseiras da imagem do artista romântico,

o elogio de seu desaparecimento programado que nos é ofe­

recido gratuitamente pela arte contemporânea.

N.A ARTE COMOVIDA: NIETZSCHE, SCHOPENHAUER

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche, como vimos,

destina à filosofia socrática o papel de guinada teórica. Essa

guinada é para ele uma completa catástrofe, o esquecimen­

to da origem, a relegação do que é a essência da arte, sua

separação da vida, o desconhecimento de sua originalidade

(entendida no sentido claro de originário: o que nasce e não

termina de nascer) . Mas essa 'origem' é a própria vida em

sua potência de surgimento, pouco preocupada em encon­

trar uma forma de se expressar (como se a potência fosse

distinta de sua manifestação e que um tempo de reflexão

devesse se interpor entre fundo e forma), e para a qual tudo

está ligado à embriaguez de seu desenvolvimento. A figura

de Dionísio, seu delírio,sua loucura mística,é a própria irrup­

ção da vida, o nascimento do mundo como tragédia . A essa

sombria violência, a esse sol negro, cruel, a figura de Apolo

traz a outra vertente mística: o sonho, que tinge de doçura

a paisagem dionisíaca. Ele põe em música o que é grito e

furor, toma audíveis as palavras proféticas e visível o que

não se pode olhar. A tragédia antiga é a mesma, a fusão da

dupla aparição da embriaguez da vida e da vida como sonho:

a arte. Fusão íntima que não esconde um em favor do outro

nem reúne, com um artifício teórico, o que teria sido separado,

pois Apolo é também o deus do raio, e Dionísio é o mestre

dos ritos bem orquestrados: a dupla figura é única.

1. O começo absoluto

o que significa, para uma teoria da arte, apresentar,

no começo (e é preciso não esquecer que O nascimento da

tragédia é também o primeiro livro do jovem Nietzsche), o

mito 'grego'? Primeiramente, que não se tratará de uma

"teoria especulativa" nem mesmo de uma teoria no espíri­

to de Nietzsche, mas de uma visão, de uma intuição dire­

tamente relacionada a uma experiência vivida, ao mesmo

tempo móvel e motor de uma concepção da arte. Essa vi­

são é intransponível, ela é o começo absoluto. Como tal,

ela é também o começo e o todo da filosofia entendida co­

mo arte.

Todo filósofo que rejeita ou omite esse começo é um

logógrafo, alguém que não entende nada de arte, que se

propõe em vão colocar lado a lado argumentos inconsis­

tentes, um homem esquemático, uma carcaça de homem

Page 24: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

48 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DA ARTE 49

3. Uma metafísica sem metafísica

intermédio de um artifício de pensamento que se lhe pode

atribuir um tempo particular dentro do tempo indivis ível.

Esse imediatismo na captura do tempo é exclusivo do

artista, pois apenas uma ação criadora pode trazer a origem

até o presente, e é devido a essa captura do mundo em um

único momento que o artista é verdadeiramente filósofo, é

devido a ela que ele conhece.

I~mp

Éela que ilumina a realidade do mundo, de modo que o mun­

do não é o ponto de partida de uma representação pela arte,

que o imitaria ou o copiaria (como era o caso para Platão),

mas sim o ponto de chegada, o que se tomou possível, o que

aparece por intermédio da arte. Esse ser, o mundo, não é, pois,

distinto daquilo que o artista fez aparecer. Como não há ne­

nhuma separação entre Dionísio e Apolo, também não há

nenhuma separação entre a aparência e um pretenso além.

A única separação é a que foi catastroficamente introduzida

pela chegada do homem tcórico. Pois o que o teórico realiza,

por intermédio do conceito, é a separação, a colocação do

imediato a distância; o conceito é cinza, sem cor e sem sabor,19. Friedrich Nietzsche, Lanaissanccdelaphilosopuic (Callimard, 1938).

"que jaz exangue como uma abstração e todo emaranhado

nas fórmulas"I".

2. A aparição da aparência

o profundo, o divino, a fonte é um horizonte, mas um

horizonte que pede que nos voltemos para ver o que está

atrás, o que exige que se seja 'inatual', 'intempestivo'. O filó­

sofo artista ou o artista filósofo precisa fazer o atual, do qual

deve se desprender, não para assegurar sua tranqüilidade e

a serenidade de sua alma à maneira dos estóicos - Dionísio

e Apolo reunidos o impediriam -, mas para escutar o baru­

lho do combate deles, participar da luta que dilacera e dila­

cera eternamente os homens, combater o que acontece (a

atualidade) em nome do inatual, da origem indiscutiocí.

Combate que implica, evidentemente, estar presente a essa

atualidade, mas presente de tal maneira que se possa revi­

rar o modo pelo qual a atualidade parece atual, não a des­

mascarando como aparência e opondo-lhe uma verdade

que estaria escondida atrás (é o que a filosofia transcenden­

tal faz), mas suscitando outra aparência, mãe de todas as

aparências, as quais, numa profundidade bastante longín­

qua, jorram do conflito dos deuses.

Nessa visão, o tempo não é dividido em si mesmo entre

antes e depois; ele é uno, pois a origem está presente em to­

das as coisas e em qualquer ação, ela é imediata. E é apenas por

"

.._- . -- - - - - - -- - - - - - - -_._- -- - - - --_ ... ...- --.

Page 25: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

------- - - - - - - -- -- - - --- - ---- -- -

50 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DA ARTE 51

ele é isolado, pobre; apesar de todos os esforços, o ser lhe es­

capa, e a metafísica tradicional está justamente aí para de­

signar o que, em vista disso, lhe escapa.

Em compensação, na arte, qualquer coisa é próxima,

contanto que se desvie das generalidades redundantes, que

renuncie às razões e que confie na linguagem da poesia ­

que fala não por conceito, mas por metáforas.

. A tradição vôa em pedaços

""'-As oposiço~e~s-tf"'a....dttionais.da...fil.Q""""'~_

aparência, ser e tempo, corpo e alma, ciência e arte, idéia e

mitação, forma e matéria, sabedoria e loucura, senso e não-

enso, verdade e erro, bem e mal - são abaladas pela visão

ietzschiana. É pouco dizer que ele toma um contrapé, na

erdade ele faz voar em pedaços essas próprias oposições:

• a forma da filosofia tradicional, seu método dialético, a

ianóia, que é atingida e em parte destruída (em parte ape­

nas, pois e não pode se manter por muito tempo

na linguagem poética, precisando também, apesar de tudo,

'discutir', encadear raciocínios. E com freqüência se vê sub­

r combater).

São os estilhaços de sua obra - diversos, freqüentemen­

te contraditórios (e não uma teoria, sistematizada, que ele

, desde logo recusa e contra a qual todo seu esforço se volta),

porções fragmentadas de uma experiência existencial, na

qual é a dor da separação e ao mesmo tempo a alegria e a

angústia do eterno retomo desse longínquo onde ele com-

preende'a vida emsi' - que são colocados como valores, que

vão conquistar os artistas e os pensadores pós-Nietzsche".

Mais do que traços, mais do que temas, é uma maneira de ver,

uma tonalidade de conjunto, uma maneira de usar a lingua­

gem, de acentuar a experiência, que vão modificar as relações

tradicionais de pensar e de agir 'como artista'.

5. Na paisagem de Schopenhauer

Como acontece na maior parte do tempo com as funda­

ções ambientais, o que elas disseminam na paisagem é não

somente sua própria visão do mundo, mas as visões que lhe

serviram de fonte, nas quais elas se inspiraram, quaisquer que

tenham sido as transformações que lhe fizeram sofrer em se­

guida. Assim, a estética de Schopenhauer está presente como

um pano de fundo na visão nietzschiana, e, por esse viés, ela

está também presente de algum modo no domínio da arte.

A admiração de Nietzsche por Schopenhauer é total;

por um lado, devido a sua crítica virulenta contra Hegel, seu

inimigo declarado; por outro, pelo princípio essencial de O

mundo como vontade e representação", o do querer-viver.

iorgio Colli,AprêsNietzsche (Éditions de l'éclat, 1987, para a tra­dução francesa). Esse pequeno texto utiliza aforismos, parásY:afos curto:,dispersão (estilhaços), retornos, ~ maneira de nume~osos escritos do pr~­prio Nietzsche. É provável que so se possa falar de Nlet~che dessa manei­ra. Os ensaios mais sistemáticos sobre a filosofia de Nietzsche traem seumais constante pensamento, o de um anti-sistematismo.

21. Arthur Schopenhauer, Le monde CO//lmc-V%nlé et repr ésentation(trad. de Burdcau, rUF, 1966). Schopenhauer desenvolve sua tese no ter­ceiro livro de O mundoe nos suplementos desse terceiro livro.

Page 26: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

TIORl-i5 DA ARTI 53

.:..

A recusa do mundo dos professores, do sisternatismo,

da filosofia abstrata, dos conceitos vãos, o conjunto sim­

bolizado pela figura execrada do "impudente Hegel, es ­

crevinhador e autor de inépcias'?', o estilo polêmico, bri­

lhante, a independência de pensamento, o distanciamento

para fora do mundo das universidades, tudo isso clara­

mente impressionara Nietzsche. Quanto àVontade - prin­

cípio da vida universal, cega, única, à qual ninguém escapa

a não ser se refugiando no Nirvana, na negação de um que­

rer-viver primitivo que sujeita o conhecimento aos seus

próprios fins -, ela vai ser encontrada, ou pelo menos seu

analogon, na origem inexcedível do homem trágico nietzs­

chiano. A Vontade schopenhaueriana é o princípio vital,

indiferente aos sujeitos que sofrem; ela é o mundo que se­

gue, deixando aos homens a ilusão de sua liberdade; sua

energia atravessa minerais, plantas e animais, se consuma

em sua negação. O conhecimento, a ciência, a inteligência

humana são apenas objetivações desse querer fundamen­

tal, e tudo o que elas podem fazer é levantar por um ins­

tante o véu da ilusão do conhecer, sendo, portanto, todas

negativas. Saber que o conhecimento é obtido de um fun ­

do de negatividade, que a sabedoria é aceitação e renún­

cia ao fantasma de uma liberdade individual, interromper

a ilusão para compreender que a vontade é a essência do

mundo, é essa sua tarefa.

22. Idem, Latxilont édanslaunhar, Prefácio (PUF, 1969).

Assim, justamente por ser a arte uma intuição direta des­

se querer-viver, e por ela permitir captá-lo, por assim dizer,

nele mesmo mas sem dor, exibindo-o, é ela a grande conso­

ladora. Pela contemplação da inelutável necessidade do que ­

rer, a arte enfraquece sua violência e permite o esquecimento.

Prefigurando o aspecto td'gico do conflito entre a em­

briaguez e o sonho (entre Apolo e Dionísio), a visão scho­

penhaueriana, ao transportar a arte para além da razão abs­

trata, ao fazer dela o modo privilegiado de conhecimento

da vida, é exatamente a paisagem onde vai se desenvolver

o pensamento trágico da arte. E o longínquo, esse lugar ori­

ginário que, a distância, se irradia sobre a arte presente, está

situado tanto para um quanto para o outro em um Oriente

imaginário: o de Nietzsche na Grécia asiática, o de Schope­

nhauer na Índia, os Upanishads servindo de referência à ne­

gação do querer-viver. O veículo da embriaguez e do sonho,

da energia, assim como da renúncia, é a música, que é sua

matéria imponderável.

Essas fundações, que chamamos de ambientais: as

Idéias e o ideal, o Espírito e seu advento, a origem e seu re­

torno, os modos estéticos de conhecimento, tudo isso deli­

neia uma área, que, por ser construída com elementos dís ­

pares, por vezes totalmente contraditórios, não deixa, ainda

assim, de formar um conjunto, um meio no qual a arte pode

Page 27: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

::;·1I .

~l' exercer e fora do qu al ela nã o exist iria . Mesmo assim, es­

~J~ íu nda çócs n ão ofe recem nenhum preceito co ncre to, ne ­

nh uma man eira de rea liza r ' li obra de arte', pois, de certa

maneira, elas permllnecem aqu ém ou além da obra, qu e, po r

sua vez , l' pre~ençll, produçã o, e exige qu e se jam levadas em

co n tu as condições de sua exist ência.

\

\

C \ PÍTULO :2

AS TEORIAS INJUNTIVAS

~Je.orias ·ambien tais traçaran ,Utl111 espécie d '. p'8·._. _ - ..~ ............... • J.. ~ ... ' • .... . " •

.g~J.l. .na-qual:aarte.tem.seuJug?J,;!1Jas.nem.por ~~o.~

.seramregras; o..:.trabaJtlo artístico, inclusiv~~J~ara sua co _

.p!:ccn~o;~Séu -Ju gan'ü:~nlo_olCs.\l-ª'.p~tcepçao. Côntffiio,.. - ..as .!.~gntsl_Q.u_s.eja,-ºs~limi.te_ ,_O~.pIo.c~ssos;espeo CO~,i5t c~

.osj !.l.sttumen to5.e:-operaçoes.prõ" rios.a.:essmatividade_qu

~ conferem::à.arte_a:espeêifidda_d~J~.JJ.u:rdam.suaiaenti

SàO.oUtI'OS$Qeros de~-ºAinteiramente diferentes.que

y-ª-º-juStamente~levàf" e confiLes~s requisitos teor ias

. que.élíá'marénos. -ºt{ iJ~;ti oiS:Vis~mi1Ültt\a;p..TÁti.!=a 9.u~",;" ~.....- .~

.~.,=-p~?~em_~_~l! ."' entando.de alg~ n~~eira

:condições ao:exerádo~da ar.te ~.d~9~~~ª;.()rdem:(nos dws

l sentidôS.ao.terin·o)"à.m!:1 1ºp4~i~~~~ (te:~x.P~~~~~,:º~·t~cni.­

têãsJ~:--dl!. intenções.

Estamos deixando. pois, o mundo da metafisica - se ja

q UJ I for J manei ra como J trnnsccnd ôncin te nha sido tratada

Page 28: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

56 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DAARTE 57

u~~~~~'~(!JI

I

1. Um instrumento para a autonomia:·~~~$2~9ll-,

dade, ou, ainda, que a ação deve apresentar personagens

maiores do que o natural. Redução que apenas leva em con ­

ta 'regras', injunções rígidas, privando o texto de sua riqueza,

de sua invenção, de sua liberdade. Ocorre nesse caso o mes­

mo fenômeno interpretativo que faz também da 'lógica' um

instrumento rígido, uma espécie de jugo institucional para o

raciocínio, esquecendo-se que ela é apenas uma parte de uma

teoria muito mais ampla da linguagem, articulada à retórica,

por um lado, e à poética, por outro'.

Mas há muitas outras coisas além de regras nesse tra­

balho fundador, como por exemplo tudo o que diz respeito

às noções de mimesis, de verdade e de verossimilhança, de

recepção estética - o limite para a ficção -, ou ainda a rela­

ção entre o narrativo e a imagem, a liberdade do autor con ­

frontada às exigências do gênero... todas essas são questões

que ainda hoje em dia nutrem as reflexões sobre a arte.

oBjeto,

fãmJimJ~1Ia[ÇQS!.Ç~~m'@·C;QI. Preocupação taxonômica e

pelas teorias ambientais - para voltar à terra, ao meio das

obras de arte, do público e das atividades que lhes são in­

dispensáveis para se afirmar como obras.

I. ARISTÓTELES OU AS REGRAS DAARTE

No momento em que Platão desenhava a vasta paisa­

gem do belo, onde, definitivamente, a arte tinha pouco es­

paço, Aristóteles atacava a questão de um modo bem dife­

rente. E, de fato, ele a atacava de forma concreta, em um

terreno delimitado. À sua maneira, franca, tomando uma si­

tuação existente e tentando dela extrair os princípios de

funcionamento, os conceitos constitutivos. A Poética situa a

tragédia em meio às outras artes do discurso e estabelece

seus fundamentos teóricos e práticos'.

Mas, ao fundar teoricamente essa arte particular, a Poé­

. tica trabalha também para todos os discursos de ficção e,

por extensão, para o domínio da arte em geral.

Contudo, durante muito tempo, a Poética só será conhe­

cida por meio de alguns trechos escolhidos utilizados pelos

clássicos, como a regra das três unidades, o preceito segundo

o qual a tragédia deve provocar no espectador temor e pie-

1. Pode-se ler a Poética nas Éditions dcs Bellcs Lettres (trad. de J.Hardy, 1965) ou na tradução acompanhada de notas bem elaboradas deR. Dupont-Roc e Jean Lallot (Le Seuil, 1980). A Poética é um tratado curto,composto de 26 capítulos, supostamente anotações de aulas redigidas pelopróprio Aristóteles.

2. Cf',~\nne Cauquelin, Aristotc, le lallgage (PUF, col, Philosophies,1989) . /~ Poetlca~ c~mo t~a a ?bra de Aristóteles, só pode ser compreendidase relacionada a biologia, assim como à lógica, à retórica, à moral e à física.

3. Dicotomia platônica contra a qual se insurge Aristóteles (cf. Daspartes dos animais, 642 b - 643 b).

Page 29: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

:\~~E G\L'QL"ELI:\TEORIAS DA ARTE 59

'.

equilibrada. Da mesma maneira que os gêneros e as espé­

cies biológicas têm seus traços próprios, que podem ser des­

critos, os gêneros ('\1'1105) e espécies (l'id(~) literários têm os

Sl'US, que permitem que sejam reconhecidos. O método de

classificação adotado na biologia pode aqui também servir

pJra distinguir dentro do gênero narrativo J espécie 'tragé­

dia'. Contudo, eSSJ espécie particular é o paradigma de to­

dJS JS outras espécies e, finalmente, do próprio gênero, que

C, (l da ficção .

s« ~rlC~tom;efcito~di~tinguern~se.entre si poru:l1,.

!lli!is ,ou;umfm~I!..ºsl...um.acréscímo.ou .uma privação dentro

~t:aterminado~Rêhero;dgênero.por.~~z: agn.tpa~ o~tra:-

.. :;,':oUluns à:>,esp~~s .

O que se passJ com J arte (gênero) e a tragédia (espécie)?

Por um movimento de retorno que lhe é habitual, Aris­

1I')tl'!cs vai analisar primeiro a espécie particular da trag édia,

antes dl' encontrar o gênero em que essa espécie está situa­

da . lclo princípio da l ógica. teoricamente. de fato o gênero

vem em primeiro lugar, mas, em termos pr áticos, é a espé ­

cie particular quc é mais íáci] de ser apreendida ' .

l~ pre ciso notar, antes de mais nada. que Aristóteles co­

loe;) como princípio o fato de i1 arte fazer parte das atividades

humanas, sem a submeter a um t1 priori desfavor ável . Como

ch-, n ós í arnbom nos debruçamos sobre o terreno da classi-

.1. J 'hl l~ i ' I /I" L I. 11'·1 1/: " I'.J1t ir diJ~ loi ~a~ men os clar as em si e m aiscl a l .l~ p.lla n , ', ~ , p .Jl.l ir vrn d ir!.'.;;i tl .1~ rtl i ~ iJ s mai s cla ras em si c mais rcco­nlll 'LÍ\'l'i s ~l'g ll n d o .l 1;1/ .i o " .

ficação 'natural ', do problema de definição lógica, de coinci­

dência de classes: não entra aí nenhuma prcocupaçâo com

hierarquização de ordem ética, nenhuma avaliação rclacio­

nada J um princípio superior (em biologia, um SJpO ou um

caranguejo. ou, ainda, o menor dos moluscos é tão interes ­

sante de ser estudado quanto um elefante).

-.J~('~CIT!\'i r eSSJ JtividJl e. e tomamos JS JtIV1-

f dades humanas como um 'gênero', J arte seria urna de

ISUJS espécies, e seria assim definida : urna espécie de ativi­

dade que produz com vista J um fim exterior, e eSSJ espécie

I iria distinguir-se dJS outras atividades cujo fim é inerente!'. a JçJO.

Assim, J ação de comer bem e J de dormir bem man ­

têm a sa úde do organismo de maneira imanente: não há

nelas arte propriamente dita. Em compensaç ão, o médico,

que ' produz' J cura do corpo com seus remédios, visa a um

fim exterior J ele: ele pratica urna arte .

A arte é, então, 'uma disposição de produzir (poit:sÍs)

acompanhada de regras' , Produzir é "trazer ~ existência urna

dJS coisas que são suscetíveis de ser ou de não ser e cujo

\ princípio de existência reside no artista'" ,\\ Nessa ótica, urna produção é julgada por SUJ conformi -

\ dade às regrJs 'verdadeiras' que foram seguidas. Caso tenha

l seguido as regras falsa s, a produção terá falhado. Nenhuma

S. Ética a NiClilllaco, VI, 2, 1139/', e VI, ·1, 11 ·10 a. i\ atividade po éticaou produt iva (poit'tiki') te rmina na cria ção de urna obra ex te rio r ao artista,ao pJSSO qUl' J atividad e pr ática (praxis) é UI11J a ção imanente ao agente.

Page 30: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

60 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 61

pretensão de se comparar a um ideal, de visar à transcendên­

cia, que não compete à atividade produtiva.

O que importa ao teórico da arte é, então, enunciar es­

sas regras verdadeiras e, diante isso, avaliar os meios e a

matéria da produção de acordo com os fins que ela se dis­

õe a alcançar. Daí o interesse em classificar os fins e ver

omo se articulam os gêneros e as espécies.

Percebe-se portanto que, dentro do gênero 'discurso',

espécie 'filosofia', por exemplo, tem como fim a tríade 'bem­

verdadeiro-belo'. A espécie 'retórica', por sua vez, visa de­

certo ao bem, mas já o verdadeiro está um tanto afastado de

eu objetivo: é o verossímil que ela procura na maioria das

ezes. Já a história tem em vista o verdadeiro, mas se preo­

upa pouco com o bem e o belo. A arte da mimcsis também

eve ter algum traço a mais ou a menos por intermédio do

ual seus fins se distingam das outras espécies e a definam.

Antecipando um pouco o que virá a seguir, diremos que

não se trata nem do bem nem do verdadeiro, mas do veros­

símil e do prazer, o que de fato a diferencia de tudo o mais.

Eis, portanto, um terreno cuidadosamente limpo, toma­

do autônomo, condição indispensável para seu tratamento

pelo teórico, tudo isso graças ao método taxonômico.

Mas a taxonomia prossegue: pode-se, com efeito, agora

que a arte foi definida como espécie de um gênero - a ati­

vidade de produção -, tomá -Ia por sua vez como gênero para

as espécies que ela engloba. Dentro da arte da mimesis, con­

siderada desse modo como gênero, encontram-se diversas

espécies, diferentes por acréscimos ou supressões: assim, a

arte da flauta, da cítara, da flauta de Pã utiliza melodia e.rit­

mo, mas a dança lança mão apenas do ritmo sem melodia;

"Quanto à arte da minicsis, que se serve apenas da lingua­

gem, ela continua sem denominação até o presente:" - o

que significa que é sem distinção, sem traço particular que

possa dividi-la. Um trabalho de definição continua, pois, pre ­

cisando ser feito, e é isso que ~ propõe a Poética.

2. A arte da mimesis ou de uma teoria da ficção

Nós manteremos o termo grego mimesis, que apresen­

ta a vantagem de não nos lançar sobre a falsa pista da imi­

tação (Illilllcsis/mimético) nem sobre a da representação,

que remeteria às representações de idéias.

Se temos em mente que tçda arte é produção acompa­

nhada de regras, compreendemos de imediato que a mime­

sis não é cópia de um modelo, pálido decalque da idéia,

afastada da verdade em muitos graus, como era o caso para

Platão. Ela é antes de tudo fabricadora, afirmativa, autôno­

ma. Se ela repete ou imita, o que repete não é um objeto,

mas um processo: a mimesis produz do mesmo modo como

a natureza produz, com meios análogos, com vista a dar exis­

tência a um objeto ou a um ser; a diferença se deve ao fato

de que esse objeto será um artefato, que esse ser será um

ser deficção.

6. Poética, 1, 1447 b.

Page 31: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

62 AJ'JNE CAUQUELIN TEORIAS DAARTE 63

",

'"

o produto de uma ficção é tão real quanto o gerado

pela natureza, apenas não pode ser avaliado de acordo com

os mesmos critérios. Para a natureza, os seres que ela pro­

duz são como eles são: ela sabe o que faz, e o faz bem, suas

regras de produção são imanentes (mesmo que aconteçam

vez por outra, muito raramente, erros de programação - por

exemplo, monstros por falta ou por excesso). Não acontece

a mesma coisa com os seres de ficção; o que é processo in­

terior na natureza está, no artefato, submetido à exteriori­

dade e, portanto, à contingência.

O afastamento. Há, pois, um afastamento necessário em

toda ficção, pois a produção não pode ser senão um ana/o­

g011 do processo natural. Como a natureza, a produção dis­

põe de elementos, de meios e de um objetivo ou fim: fa­

zer com que, de algum modo, os objetos ou seres que ela vai

produzir possam 'funcionar' no universo para o qual estão

destinados.

É nesse 'como', nesse afastamento, que se instala a fic­

ção. Assim, por exemplo, a história que procura permanecer

o mais fiel possível aos acontecimentos produzidos pela ne­

cessidade, e que são o que são, não manifesta esse afasta­

mento que constitui a essência da poesia. A história repete

o mais exatamente possível, é guiada pela preocupação com

a verdade. A ficção, por sua vez, não repete, ela compõe, e

sua preocupação é com o verossímil, não com a verdade.

Vemos aqui - e jamais o diremos o suficiente - que a

mimesis aristotélica em nada se assemelha à cópia de Pla-

tão: ela é ativa, tem sua própria natureza, e não pretende de

modo algum mudá-la para procurar o verdadeiro.

O afastamento, longe de ser um defeito, é,pois, uma qua­

lidade; melhor: ele é constitutivo de qualquer atividade artís­

tica.Assim, há afastamento na pintura ("Polygnote pintava os

homens mais bonitos; Pauson, os menos bonitos"...), mas

também quando se toca flauta, na prosa e no verso (por exem­

plo "Homero faz os homens superiores à realidade ..."7).

O que o afastamento anuncia é a possibilidade de as

coisas serem diferentes do que elas são. Em outras palavras,

é um universo do possível instaurado pela ficção (nós diría­

mos: o mundo do imaginário).

Aqui, mais uma vez, a história dá um contra-exemplo:

quer seja em verso, quer em prosa, ela só fala do que já

aconteceu, ao passo que a poesia (a ficção) fala do que vai

acontecer, do possível. Com isso, há mais filosofia na ficção

- pois esta trata do geral, de uma soma de ações possíveis ­

do que na história, a qual versa apenas sobre o singular, o

particular, e faz a descrição dos acontecimentos". O fato de

a história ou a ficção serem escritas em verso ou em prosa

em nada altera a questão, pois a distinção não passa pela

forma textual, mas pelo que está sendo dito.

O verossímil, a doxa. O espaço que se abre diante da mi­

mesis, o do possível, foi agora destacado, mas vai ser preciso

7. Ibid., 2, 1448 a.8. Ibid., 9, 1451 b.

Page 32: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

64 ANNE G\UQUELlN TEORIAS DA ARTE 65

.. .

u

m a

esm

9. Ibid., 21, 1457 b.10. Ibid., 21, 1457 b.

sem contudo fazer com que esse afastamento seja grande de ­

mais, o artista dispõe do recurso da metáfora. Essa figurade lin­

guagem, que se define como"o transporte a uma coisa de um

nome que designa uma outra:", tem a vantagem de utilizar

palavras conhecidas e, portanto, continuar a ter perfeita cla­

reza, ao mesmo tempo ornando o discurso e se afastando

da banalidade. Com efeito, se eu digo 'velhice' e se eu digo

'entardecer' e 'vida', estou usando termos correntes, e se en ­

tão eu digo 'a velhice é o entardecer da vida', continuo claro

para todo mundo, mas ao mesmo tempo me afasto do uso

habitual. Tal é a metáfora que une a linguagem banal à lin­

guagem elevada, que tece liames inesperados entre as coisas.

Ela é o principal instrumento do poeta.

a

especificar quais dentre todos os possíveis podem ser utiliza-

dos.Pois a

rosSími

A questão é: em que podemos acreditar, de que forma

uma ficção pode nos oferecer a aparência de verdade de tal

maneira que pensemos que 'aquilo' pode ter acontecido ou

poderá vir a acontecer?

verossími esta su metido ao conjunto de nossas cren ­

ças; os limites do acreditável são os limites dessas crenças. Mas

essas são as crenças da opinião comum: a doxa. É ela que ser­

ve de muralha contra o impossível (essa categoria do possível

que não é acreditável). Aristóteles dá então alguns preceitos: o

maravilhoso, os encontros e os reconhecimentos inesperados,

as peripécias excessivamente numerosas, tudo isso deve ser

evitado. A linguagem, da mesma maneira, deve ser compreen­

sível; rebuscada demais, escapará à compreensão; vulgar, não""'~ ~ " , c ' . c Iapresentara o arastarnento necessano para que se possa la ar

de ficção. O que provoca prazer é nos encontrarmos em um

meio conhecido, no qual um certo arranjo interior nos encan

ta por sua novidade, sem contudo nos excluir de sua intimid

de. A articulação entre trivial e ficção cativante é delicada;

lizmente temos diversas cartas na manga: os tropos ou fi

~

L~ ~.

,I Figuras delinguagem:a metáfora, a analogia. Para criar uma

~ distância entre a linguagem de ficção e a linguagem comum,

rI,- -J'~ ,

- - - --- - - - - - - - - - - -- -. -

Page 33: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

66 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 67

'v

12. Poética, 24, 1460 a.

à prazer, a catarse. Chegou a hora de examinar o fim úl­

timo dessa produção de ficção, a finalidade da arte: o pra­

zer que ela proporciona. Como uma atividade se define por

seu fim, é na definição da tragédia (livro 6) que esse fim é

evocado. E, como se não pairasse nenhuma dúvida de que

a arte da mimesis busca provocar o prazer, Aristóteles indi­

ca apenas de que maneira esse prazer advém.

Não vai se tratar nem da utilidade, que era um dos cri­

térios de avaliação da arte por Platão, nem de educação mo­

raI, nem sequer de um meio de se aproximar da verdade,

mesmo que de 10nge.ê;g~etrml!m!m1l1!=DJtaàaq:nw~,

elei

o acontecimento temido pelas pessoas e que se efetiva ou

não efetiva. É o que chamamos hoje em dia de suspense e

que constitui um elemento importante na ficção trágica.

O poeta pode tratar esses 'lugares' com liberdade, sem

deles se afastar até uma certa medida; introduzir o maravi­

lhoso, com a condição de respeitar a credibilidade. Éporque

não se trata, mais uma vez, de descrever fatos que realmente

aconteceram, pois, por serem extraordinários (e freqüente­

mente são), é impossível acreditar neles.

Antes de mais nada, trata-se de um prazer garantido de

ver adornada a natureza tal como ela nos é apresentada, pra-

r-I

II

I

on

Os lugares ou topoi. Mas não é essa a única maneira de

limitar a fantasia e de lhe fixar fronteiras além das quais ela

não obteria nenhum sucesso. Se a linguagem deve permane­

cer clara e ao mesmo tempo elevada, a intriga da tragédia

encontra também seus limites. Nesse caso, o que interfere é

a memória de um passado comum. As lendas, os grandes

acontecimentos das famílias fundadoras da civilização gre­

ga, é nesse solo fértil que será concebida a intriga. Ele é su­

ficientemente rico e suficientemente prestigioso para que

valha a pena falar dele. Além disso, tais histórias são conhe­

cidas de todos, elas são como um reservatório de fábulas

que se servem a diferentes arranjos. Inútil, pois, inventar ou­

tras situações: elas serão sempre menos cativantes do que

as já conhecidas, que podem ser descritas como muitos 'lu­

gares' possíveis. Lugares próprios à tragédia", como o reco­

nhecimento inesperado de um pai e de um filho, de dois

amigos, ou a desgraça que se abate de forrna imprevista, ou

11. Um lugar próprio, textualmente: um lugar onde se está em casa(101'0$ oikrion, de oikeia: 'casa'). Para Aristóteles, cada elemento tem seu lu­gar no universo, lugar que é o local natural, no qual o elemento é ele mes­mo. Assim acontece com a pedra, cujo lugar próprio é a terra, e é por issoque ela cai na terra quando é lançada para o ar; assim acontece com o fogo,cujo lugar próprio é o éter, e é por isso que ele se eleva. Da mesma manei­ra, há locais próprios para a argumentação retórica e lugares (ou situações)próprios para a tragédia .

..".

Page 34: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

69TEORIAS DAARTE

13. Northorp Frye faz justiça, de maneira veemente, à Po ética de Aris­tóteles, considerando-a a verdadeira e primeira teoria da arte (A1Iatomit'dela critique, Gallimard, 1957).

às atividades práticas. Pouco a pouco, é o próprio status da

arte que se vê trazido à baila. O ponto focal, a tragédia, con­

centra nela todos os atributos requeridos pela obra de ficção.

Esse ato fundador, que se opõe radicalmente ao tratamento

pejorativo da arte por Platão, constrói um modelo (no sen­

tido de maquete ou paradigma) que vale, como vimos, para

as artes plásticas, a música, a dança. Nesse modelo, os atores

estão no local: o artista e sua liberdade vis-à-vis à realidade

dos fatos; o público e suas expectativas; a doxa, que obriga a

ficção a respeitar o verossímil, o próprio verossímil e os meios

para seu exercício,enfim, a finalidade da mimesis, que é o pra­

zer ou a completação da obra para o deleite estético .

nnjfinti~orimde A"tIsrotéle cons rol u Óetl ~-

.do . .tado 'r;rE(5TffiíC1a~' ,~e~aFrrimt'f~mã~{plml=ó

~ .é.íon e.,4.c.in ptlSSf

A esfera da arte, assim instaurada, comporta todos os

elementos de sua vida futura: a idade clássica seguirá as re­

gras da tragédia stricto SeIlS11 (unidade, extensão), os séculos

modernos desenvolverão os aspectos ora psicológicos (a ca­

tarse, as paixões e emoções, a sublimação), ora literários (a fic­

ção, o afastamento), e até mesmo lingüísticos (a metáfora);

além, é claro, da sociologia da recepção, estimulada pela in­

trodução da opinião (doxa) sobre'a cena da arte. Em vista de

todos esses pontos, a invenção aristotélica é inigualável".

i

II

I

I~!I

[

t

I

ANNE CAUQUELIN68

3. O modelo e a injunção

zer que coroa qualquer atividade de produção artística.m~.

1 -

tI , É!sS8V1F

19a~re<')m as:sã

Em seguida, o prazer, próprio da arte da mintesis, da tra­

gédia, mais sutil para ser descrito, que consiste em interrom­

per porum momento as afecções da alma, das quais ela pa ­

dece a maior parte do tempo, tais como o assombro, o medo

ou a piedade, e de que somos cotidianamente acometidos

diante do espetáculo das desgraças do mundo. Experimen­

tar essas emoções ao mesmo tempo não as experimentando

verdadeiramente: tal é o efeito da ficção.As peripécias, os gol­

pes da sorte, as desgraças, os crimes e as lágrimas dos perso­

nagens da tragédia nos comovem, decerto, mas ao mesmo

tempo sabemos que são fictícios: o afastamento desejado

pela mimesis age nesse caso sobre nossos sentimentos como

se fosse um remédio, um alívio. - . U1l1

A Poética, antes do que se chamou de 'regras' para a

tragédia, teve de fundar teoricamente seu local de exercício,

ou seja, definir o lugar da tragédia em meio às artes da 11Ii­

mesis e, ainda mesmo antes, o lugar dessas artes em meio

__...... ._. ...__..._. ..._ .. _ 00 _._ . .

Page 35: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

------ --- - - - - - -- - . .•

11. KANT E O SÍTIO DA ESTÉTICA

j

.'

71TEORIAS DAARTE

1. O conhecimento da arte como conhecimento

autônomo: um sítio para a estética

para sua produção, mas, no século dito 'das luzes' - no qual

o esforço dos filósofos concentrou-se inteiramente nas ca­

pacidades da razão - , de interrogar-se a respeito do gêne­

ro de conhecimento que podemos ter delas. O tema cen ­

tral da reflexão não é mais a obra, mas o processo interior

que nos conduz a pensar que se está de fato diante de uma

obra de arte.

A exploração de nossos modos de conhecer já havia

conduzido Kant a limitar os poderes do entendimento aos

fenômenos naturais, reservando o númeno (o que pertence

ao mundo do 110U5, da essência) a outro tipo de conhecimen­

to; existe sempre a razão, mas ela é ou pura, ou prática. Dois

modos que dão acesso a dois mundos. Mas nem um nem ou­

tro são válidos para um terceiro mundo: o da arte, onde as

leis da natureza, assim como os preceitos da Razão (ou mo­

ral) não podem ser aplicados, donde a necessidade de defi­

nir um terceiro tipo de conhecimento, de limitar seu uso, ou

seja, de traçar suas fronteiras (crítica derivada de krinein: dis­

tinguir, separar). Somente uma crítica, uma linha divisória,

permite assegurar a validade dos julgamentos dentro do pe­

rímetro que ela delimita.

Aristóteles havia nos falado a respeito do afastamento

introduzido pela ficção entre o que é da natureza e a pro­

dução de artefatos. Esse afastamento deve encontrar uma

ffi

f

L

II!

tIlfI

ANNE CAUQUELlN70

Com a Critique du jugeme11t degoílt l 4, entramos em um

mundo completamente diferente. Para começar, esse mun­

do já está cheio de obras, reconhecidas e celebradas; a arte

já é uma questão à parte, suscitando uma grande eferves­

cência, o que nos coloca muito longe das exclusões platônicas

e até das injunções aristotélicas (que foram seguidas). No en­

tanto, tal efervescênciaabrange as noções de estilo,de belo, de

gênero e nos remete à Idéia do belo.

Esse movimento de comentários desordenados parece

ter se produzido ao sabor do capricho e dos humores, sem

a interveniência de nenhuma legislação dizendo como for-

mula 'ul amento que pudesse ter validade universal.

Então a questão á:'1'odentOS jnl ar e sem se

tennédio de nossos humores? Existe um tipo de julgamento

particular aplicável à atividade artística, e, nesse caso, quais

seriam suas características? É possível traçar a forma uni­

versal segundo a qual tal julgamento pode ser exercido, de

maneira que todos os julgamentos de gosto individuais refi­

ram-se a ela?

........-!...:.~.".. . ... que Kant atribui à estética será a de respon­

der a essa questão. Não se trata mais de encontrar um fun­

damento para as obras de arte, de pleitear um lugar para

elas nas atividades humanas, nem mesmo de ditar regras

14. lmrnanuel Kant, Critique du jugelllt'7lt de gOlit (trad, de J.Cibel in,Vrin, 1960).

Page 36: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

73ORlAS DA ARTE

• 15

oXlmoro~ . E~s~s quatro proposições correspondem às qua-

tro fun~oes lógicas segundo as quais um julgamento pode

s~r realIzado: a qualidade (satisfação ou desprazer), a quan­

": (universali.d~deou subjetividade), a relação com a fi­nalidade (determInIsmo ou liberdade), por fim a modalidade(necessidade ou possibilidade).

as ~s JU gam os o entendimento e os preceitos da

mo~al es~ao submetidos, em cada uma dessas funções, à

~bngatonedade do princípio de não-contradição: a neces­

sidads exclui a liberdade, a universalidade exclui a subjetivi ­

dade etc. Mas .a situação paradoxal do julgamento de gosto

leva a se reururern - sem preocupação com a contradição _

os dois pólos de cada uma dessas funções. A terceira crítica

para .uma t~r~eir~ espécie de conhecimento, é também a qu~admite e reivindirn o, terço não excluído.

Obtêm -s,~e~a~sisiiml;;;;:;:=~~li~e;sã~

·versa1~~dad~ . ~~i ~=..._.....:!!t~sfação desinteressa o sentimento produzido pela

stêncía de um objeto, não porque ele poderia ser útil ou

necessário à vida - quanto a isso o julgamento de gosto per­

manece indiferente -, mas pelo fato de apenas serem sentidos

~ prazer ou a insatisfação, sem consideração com qualquer

o de aprovação ou com alguma moralidade (o agradável, o

bOnIto traente, assim como o bom, estão excluídos) .

_ :5. O oximoro é a figura de discurso que reúne em uma mesma asser~ao dOIS termos c?ntraditÓrios. O exemplo mais conhecido está em Comdllc~essa escura claridade que cai das estrela s". .

i

II

tf

ANNE CAUQUELlN72

2. Os quatro paradoxos fundadores

correspondência no julgamento que fazemos a seu respeito.

O julgamento do afastamento deve, pois, ele também, ser

'afastado'; ele deve encontrar seu lugar dentro desse afas­

tamento, entre os dois grandes tipos de racionalidade que

são, por um lado, a procura de uma ordem de razão nos fe­

nômenos e, por outro, os imperativos categóricos de ordem

moral. Afastado não significa contrário ou fora da raciona­

lidade, mas, como se trata de um espaço entre dois territórios,

ligado a seus vizinhos por suas fronteiras e livre quanto a

seu princípio interno, ele deve receber uma dupla marca,

negativa e positiva: é no que ele não é, é em sua diferença

que ele encontra ri identidade.

Assim, a Critique du jugemellt de goíit insinua-se entre

as duas Críticas precedentes, tanto por sua data de produ­

ção (algumas vezes chamada de terceira crítica: e, necessa­

riamente, ela só pôde aparecer depois que as outras duas

foram constituídas) quanto por seu conteúdo: o julgamento

de gosto deve ficar 'suspenso' entre as duas outras, perten­

cendo-lhes e não lhes pertencendo - espaço a partir de en­

tão paradoxal, situado entre duas negações, sobre as quais

se apóia para se afirmar 'outro' e cujo tratamento deve ado­

tar a forma do paradoxo.

Para responder à exigência de ter e se afastar, ao mes­

mo tempo continuando a ser um julgamento da ordem do

universal, Kant enuncia quatro proposições em forma de

Page 37: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

74 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 75

mente sem conceito. Portanto, o que é solicitado no julga­

mento de gosto é a forma de uma finalidade, é a idéia de um

concurso natural das nossas representações e dos objetos

que contemplamos. Essa representação de uma finalidade

global do universo não pode estar ligada a um objeto parti­

cular, nem a um sujeito individual; ela 'vaga' acima e através

de uma infinidade de objetos e sujeitos, e, quando a capta­

mos por meio e a propósito de um objeto singular, entra

em contato com a forma do universal, sem a necessi e de

recorrer ao conceito de u . ersalidadezê-l

ecessidade livre aI julgamento é universalmente vá-

lido, é por ser tam e 'necessário'. Contudo, essa necessida­

de não pode ser im osta a todos como vinda de fora - seria

para nós o caso de uma necessidade fundada no conceito.

Mas ela também não pode ser fundada em um grande núme­

ro de exemplos de julgamentos que formam a unanimidade,

pois a ernpiria não funda de forma alguma uma necessida­

de, mas apenas uma generalidade. É preciso, pois, que a ne­

cessidade de um julgamento de gosto seja intimamente sen­

tida. Ela requer uma adesão mais do que uma obediência

cega, ela não chega por um decreto. Portanto, é preciso que

haja em cada um de nós um 'senso' que permita a adesão de

todos ao julgamento. Kant propõe a idéia de um senso com11m,

cuja norma permanece indeterminada, mas existe verdadei­

ramente e incita o consentimento universal.

Esse senso comum consiste em cada um sentir em si a

união da imaginação com o entendimento, cujo jogo 'livre'

o agradável e o bom têm, ambos, uma relação com a fa­

culdade de desejar e por isso se fazem acompanhar, o primeiro,

de uma satisfação de conexão patológica, o outro, de uma pura

satisfação prática determinada pela representação de uma co­

nexão do sujeito com a existência do objeto. É por essa razão

que o julgamento de gosto-é simpl nte conte lativo (§5).

. SlIb"etividadc 'versa . A universalidade do julgam

to 'isto é bonito' pode ser eduzida do primeiro momento:

se, de fato, nenhum interesse particular está em jogo e se o

desejo não vem ao caso, a universalidade do julgamento está

assegurada - o belo é belo para todos, mesmo que sua con ­

templação provoque uma satisfação subjetiva; essa satisfação,

desinteressada, é universalmente válida. "Tal universalidade

é representada apenas subjetivamente no julgamento de gos­

to." Isso significa que o prazer que experimentamos não é

de ordem intelectual, como o que nos proporcionaria o co­nhecimento de uma lei universal, como por exemplo a da

gravidade, mas de ordem sensível: é o puro jogo de nossas

faculdades de conhecer - imaginação e entendimento -,

jogo que sabemos ser compartido por todos, que nos dásse prazer (§ 9).

rJ~~~~~~92:cJjILijJtr~:l~dleedUção...dQ..princípicr1 o de-

sinteresse: não devemos julgar um objeto estético por seu

fim, ou seja, pelo fato de ele ter um objetivo determinado ou

obedecer a determinações previamente estabelecidas; se fi­

zéssemos isso, estaríamos necessariamente fazendo um jul­

gamento conceitual. Mas o belo é o que agrada universal-

Page 38: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

77TEORIAS DAARTE

taneamente, sujeito e objeto de sua representação, é suspen­são, contemplação.

Por esse viés, não é apenas o julgamento estético que

está sendo fundado, regulado, encerrado dentro de seus li­

mites e suas funções, mas é também a obra que recebe injun­

ções: ela deve manifestar uma certa disposição de se deixar

contemplar; assim, um objeto utilitário, uma demonstração

ou uma informação sobre o estado das questões do mundo

são dificilmente 'contempláveis'. O interesse nesse caso éexcessivamente urgente.

. W,av se a ficção era capaz de suspender

as paixões (o terror e a piedade suscitados nos espectado­

res pela tragédia), pois ela mesma se encontrava em sus­

pensão entre realidade e artifício, aqui, com Kant, não são

mais apenas as paixões da alm"a que relaxam por um mo ­

mento sua pressão, é o inteiro domínio da arte - obra e jul­

gamento, artistas e público - que forma uma esfera em sus­

pensão, um mundo à parte: um sítio.•â.fêB1Bé~~ma

a~

ANNE CAUQUELIN76

é a essência do julgamento de gosto. A universalidade desse

jogo é supostamente comum, e é com base nessa suposição

que a necessidade de tal julgamento vem à tona (§ 21).

era a~ -

bri a -

1

.. 'o terceiro ladrão': pessoa que se aproveita do conflito de do is ou­tros (alusão à fábula de La Fontaine, 'Os ladrões e o asno'). (N. de T.)

3. O julgamento constrói seu objeto:

a idealidade kantiana

Assim, a Critique dujuõ"t(?17lenf de goUt provoca um retomo,

uma conversão do olhar: não é mais a obra que apresenta

os traços característicos da arte, é a reflexão a seu respeito que

pode ser considerada estética. O julgamento, que visa em ge­

raI a um objeto exterior, também se converte, volta-se sobre

si mesmo e se olha julgar. Éum julgamento dito reflexivo, não

determinado (causado) por seu objeto, mas, ao contrário, que

o estabelece como obra. Essa estase, em que a representa­

ção toma consciência de si mesma, na qualidade de, simul-

Page 39: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

78 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 79

m. ADORNO, A NEGAÇÃO DA CRITICA

artistas - e em especial os artistas contemporâneos - amea­

cem uma ou outra dessas 'injunções', sempre sobram algu­

mas que continuam sendo reivindicadas: como o caso do

não-utilitário, experimentado e destruído por Duchamp, mas

que conservou ainda assim a assinatura, ou seja, a unicida­

de resgatada pelas séries e reproduções de Warhol, manten­

do contudo a idéia de uma comunicação universal etc.A arte

contemporânea atua com efeito nos limites do sítio, sem en­

tretanto abandoná-lo radicalmente". Quanto aos críticos,

eles se se tl en e . em tos para

lar as obras, inseri-las no sítio ou excluí-las.' ~' ih ,. , .

A última, em data, das fundações, a Teoria estética de

Adorno" talvez deva figurar aqui como uma injunção impor­

tante para a modernidade: essa teoria tem uma ação im­

portante sobre as práticas e contribui para formar o sítio es­

tético contemporâneo. Interpretada, desnaturada, criticada,

resumida ou amalgamada, nem por isso deixa de marcar a

16. Cf., a esse respeito, Anne Cauquelin, Petit trait d'artcontemporain(Le Seuil, 1996). .

17.Theodor Adorno, Théorieesth étique (trad. de Marc [imenez, Klinck­sieck, 1989).

4. Uma vulgata estética

Seja porque o estado dos comentários e das discussões

em tomo das obras exigia que se colocasse um pouco de or­

dem no debate, ou porque faltava uma teoria que retomasse

os temas dispersos, freqüentemente contraditórios, ou ain­

da porque o interesse pela arte se encontrava de novo con­

centrado em tomo dos enciclopedistas e seu esforço univer­

salista e vulgarizador, o fato é que a Critique dujugement de

goíit logo se tomou uma vulgata para a estética. Tomou-se

A Estética.

Como toda teoria de alguma importância, a vulgata apo ­

dera-se dela, fragmenta-a, a traduz segundo suas próprias

intenções (o fenômeno já havia se produzido com Platão).

Mas o que dela subsiste, por mais retalhado que seja, toma

a forma de imperativos categóricos. . t

~~~&l61S~~~~~~-~Q~u~b~.m~e.mtjl~.o"a>ttceitQl!~

en~~:am.t_Q)f'mm:~enm­

~~~~~~~~!li.W~·Vlm·d;rn1tTçtl ', ~~~

mii~:omamt:ám~:mri~cme~-Ni _. 'L' • ~orei1Tr~

"~~'â~ ~

odas essas proposlçoes tem cur o

ainda hoje em dia nos discursos, nos julgamentos ou nas

percepções da arte, por menores que sejam, sem que jamais

. tenham sido postas em dúvida todas juntas. Mesmo que os

Page 40: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

81

ntique é então avoca a e iversas maneiras:

TEORIAS DA ARTE

20. Ibid., p. 1.

1. Depuração: mostrando os vínculos da teoria preteri­

samente neutra com a situação sociopolítica e desco-

outro, sua dependência do estado da sociedade política no

momento em que ela se produz como teoria. Dessa ótica, uma

teoria da arte só pode, pois, ser crítica - ela deve examinar a

condição na qual intervém, situar-se vis-à-vis uma prática -,

e, por outro lado, seu objeto, a arte, é um objeto problemá­

tico: "Tudo o que diz respeito à arte, tanto em si mesma co­

mo em sua relação com a totalidade, deixou de ser evidente,

até mesmo seu direito à existência":').

Essa constatação - a não-evidência do estatuto da arte

- ataca diretamente a idéia comum de uma essência da arte in­

dependente de sua situação histórica, a idéia de uma arte uni ­

versalista sobre a qual é possível manter opiniões firmes e

definitivas, e que ensejará julgamentos condizentes com sua

essência presumida s nada é evidência em arte; muito

ao contrario, trata-se de um terreno minado por sua relação

ambígua com a sociedade - ela se coloca fora da realidade

social ou está ligada a ela por alguma articulação invisível?

Pertence a uma esfera autônoma ou está submetida às po­

sições ideológicas dominantes? E mais, essa dependência

conduz necessariamente à submissão ou pode se transformar

em transgressão, e por qual meio? São essas as questões que

uma teoria crítica deve resolver ou pelo menos dcsv

i

I

ANNE CAUQUELlN

concepção atual do que devem ser (ou não ser) a obra e sua

compreensão, o comentário crítico e a própria estética.

1. Urna teoria crítica

18. 'Escola de Frankfurt' designa, provavelmente de maneira falaciosa,um movimento de pen samento que nasce na Alemanha por volta de 1920,cuja orientação é marcada pelo ensaio Teoria tmdicionat e teoria crítica, deHorkheimer. Lá 'critica-se' a teoria tradicional pelo fato de ela esconder ascondições nas quais foi produzida. Falaciosamcnte, porque essa denomi­nação, que se tornou agora uma marca, foi publicada trinta anos mais tar­de para reunir os pensadore s (Adorn o, Marcusc, Habcrmas), cujas teor iascríticas haviam sido o programa de base, mas que se emancipam do para­digma de Horkheimer para adotar o ponto de vista de Adorno. Para este, ateoria crítica não pode jamais chegar a restabelecer o sujeito em sua verda­de, e a ncgatividade é a única maneira de compreender o trabalho da razão.

19.Th éorie cstllétiqllc, op. cil.

Revista pela Escola de Frankfurt", a teoria tradicional,

que tende a estabelecer princípios e verdades ao abrigo das

contingências e recaídas práticas, vem à cena e se torna 'crí­

tica'. Isso significa que vai tentar uma reaproximação com

essa prática que ela mantinha afastada até então: ao fazê-lo,

a teoria critica a si mesma na qualidade de pura teoria. A par­

tir de então preocupa-se com o terreno - as obras concretas

que lhe servem de matéria -, destacando-se dessa forma das

"últimas grandes estéticas (Hegel e Kant), escritas sem nada

compreender de arte"".Ela se 'denuncia' como pertencente não mais à pura

especulação abstrata, mas às condições de possibilidade nas

quais se produz. Essas condições são, por um lado, sua ar­

ticulação a uma teoria (subjacente) do conhecimento, e, por

80

Page 41: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

~----------------------- -- " - -- --- -"-- --

3. O efeito Adorno, a injunção vanguardista

83

21. Cf. Christoph Menke, Ln souoerainetéde l'art, l'expérience esth éti­qlle aprcs Adomo et Dcrrida (Armand Colin, 1993).

tude de recuo se vê ainda submetida à dominação de uma ra­

zão extra-estética: a que move as grandes forças dominantes

de uma sociedade e se beneficia mantendo a independência

de uma arte universal, que não seria mais atingida pelos con­

f�itos e mostraria assim a possibilidade de resolvê-los no seio

de uma entidade bem definida, limitada à sua própria esfera.

Portanto, é preciso que a essa autonomia venha se opor

um conceito capaz de combatê-Ia pelo interior e que faça dela

uma arma contra todos os sistemas de dominação que pre­

tendem reger a totalidade das atividades humanas.

Tal conceito é a da soberania da arte; é preciso enten­

dê-lo como a faculdade de que dispõe a arte de não apenas

romper com as outras espécies de discursos de razão (o que

a autonomia promete), como ainda tomar ineficaz o fun­

cionamento desses discursos.

Assim, a negatividade estética atua duplamente: do lado

da autonomia, nega a validade para a arte das duas instân­

cias da razão conceitual e prática, e, do lado da soberania,

assegura a subversão da razão, que se mostra com efeito nas

realizações da arte (sua pr ática)".

O paradigma adomiano da negatividade em ato na obra

de arte é lido como uma injunção para a arte moderna e, em

TEORIAS DAARTEANNE CAUQUELl N

2. A negatividade estética-

brindo suas intenções. É justamente o sentido mais

visível do esforço crítico no período p ós-Marx, em re­

lação a suas referências às atividades artísticas;

2. Injunção feita à teoria de ser uma praxis e à prática

de criticar o sistema em vigor;

3. 'Situação crítica': a crítica toma toda situação instável

e preconiza a discussão permanente de qualquer po­

sição: ela está sempre inacabada. A negativa pela qual

ela se opõe a qualquer posição é seu princípio motor.

A entrada - no erreno da ar - d socai, a política, o

dever de levar em conta as condições de sua existência comoli

arte, para não cair em um essencialismo que oculte os verda-

deiros objetivos e chegue até a confundir o papel e a finali­

dade da arte: tal é o novo paradigma com o qual a arte deve

agora atuar. Dizer isso é invocar o que sempre foi tido por

princípio: a autonomia da arte, da criação e dos 'criadores', em

relação ao que é extra-estético. O desafio adorniano será pre­

servar essa autonomia e ao mesmo tempo indicar de que ma

eira é possível articulá-Ia a suas próprias condi õ s:-"/

A autonomia da arte se sustenta na distinção (já críti­

ca) de Kant , fazendo do julgamento estético uma esfera de

conhecimento separada das outras espécies de conheci­

mento, conceitua l e moral.

É negand o seu pertencimento a esses dois pólos do pen­

samento que a arte ganha autonomia. Mesmo assim, essa ati-

':

...!",

Page 42: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

parte, para a arte contemporânea, que é ter de integrar a ação

imperativa da vanguarda.A arte é obrigada a ser crítica - tra­

duzamos: vanguarda-, e esse imperativo se acrescenta aos

já instituídos pelas fundações precedentes. E mesmo que,

em parte, ela o contradiga.

De fato, a ação crítica é na maior parte do tempo com­

preendida como crítica da sociedade e de seu regime (capita­

lista); a arte se vê então 'engajada' na luta contra um sistema

do qual ela é um dos elementos, ativo à sua maneira. Os ma­

nifestos e as manifestações das vanguardas se inspiraram na

negatividade assim compreendida ou foram incorporadas a

ela logo em seguida; uma vez dada a palavra de ordem, vale

para o presente mas também para o passado, ela é 'retro­

ditiva'", e as obras são reavaliadas à luz da noção de nega­

tividade crítica. Assim, no tribunal da história se encontram

eleitas as obras contestatánas, e repudiadas as que parecem

ter sido submetidas à dominação burguesa da arte pela arte.

É, evidentemente, uma torcedura aplicada ao paradig­

ma adorniano, muito mais sutil: a 'transgressão', ou seja, a

soberania da arte, tem mais a ver com um retorno da arte

sobre si mesma, com uma críticaou negação contínua de seus

próprios objetivos, de suas próprias realizações, negação da

qual a arte vive, e que, por um movimento crítico perma-

."....

85TEORIAS DA ARTE

nente, retoma para si, para os 'expor, os conflitos latentesda sacie de. .

Tal como é compreendida e. praticada, contudo, quer es­

teja assimilada a um engajamento político, quer traduzida em

'originalidade', ou seja, em transgressão das 'regras' internas

o sítio estético, a arte de vanguarda usufrui de um favor que

~ã~ ~ des_mentido: nenh~~a. o~ra pode hoje em dia ir além~ mjunçao de ter de ser crítica de alguma maneira.

I

I

ANNE CAUQUELIN.84

.. Retrodiç ão: o movimento do presente na direção do passado, as­sim chamado por Schaff (1977), isto é, a 'dedução' do passado a partir doconhecimento do presente, mediante os conceitos e as 'leis' que 'regem'certo domínio da realidade social. (N. deT.)

Page 43: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

CONCLUSÃO

A AÇÃO DAS TEORIAS DE FUNDAÇÃO

Até aqui tentamos elaborar um apanhado das diversas

fundações que presidem o exercício da arte, tanto teórico

quanto prático. O que é preciso notar é a constante torcedu ­

ra a que os teóricos foram submetidos, tanto nos comentá­

rios que lhes sucederam quanto na prática artística propria ­

mente dita, que se nutre da ambiência teórica na qual se

desenvolve. A ação teórica existe de fato, mas não funciona

de modo concomitante com os discursos que a movimentam.

Retraduzidas, retocadas, deslocadas, as teorias da arte jamais

estão presentes em seus aspectos originais.

Essa torcedura, algumas vezes verdadeiramente radical,

como foi o caso em relação a Platão, outras vezes apenas in­

terpretativa, como em relação a Adorno, não é a única con­

seqüência resultante das fundações; existe outra, que passa

na maioria das vezes despercebida, mas cuja ação é contu­

do bastante importante, que é a coexistência no seio de uma

Page 44: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

I"I

89TEORIAS DAARTE

obIeze1a.

citadas .~algamando os diferentes pontos de vista a partir

dos qUaIS a fundação teórica se constituiu, a vulgata acumu­

la as perspectivas e faz delas um todo, participando ativa­

mente, a partir de então, da manutenção do sítio da arte.u

' não li

\

ir, 'os

I

1

ANNECAUQUELIN88

es~

o -

opinião geral (uma doxa) de todos os discursos fundadores,

por mais afastados que estejam uns dos outros. .fiIIl2ll!l52!

••Fiil.;;.5!ãfõSli@mjiêi;rs~fiifW.AGrécia antiga

vizinha o século XVIII e o século XX, um preceito de Platão

vizinha o discurso contemporâneo a respeito da distinção en ­

tre arte e técnica, enquanto a contemplação, a meditação e

a transcendência penetram naopínião, que por sua vez tam ­

bém retém o imperativo crítico.

Essa amp a que se nutrem

os movimentos, as doutrinas, assim como as obras, as ava­

liações públicas e os julgamentos privados. Nem o princípio

.de contradição nem o rigor exegético valem aqui, dentro do

mundo da arte. Éque as teorias fundadoras agem à maneira

de um rumor teórico, que reina incontestável sobre a recep­

çào da arte, impondo-se de alguma maneira ao público (no

qual é preciso incluir tanto os críticos quanto os teóricos da

arte) e condicionando tanto a produção das obras quanto

sua compreensão. Esse rumor, que pode ser chamado de

'vulgata', age como as teorias que ele divulga, de forma ao

mesmo tempo ambiental e injuntiva, modelando a atividade

artística para que ela possa corresponder às expectativas sus-

Page 45: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

SEGUNDA PARTE

AS TEORIAS DE ACOMPANHAMENTO

. r

li

As diversas fundações da arte e o rumor que acerca fa­

zem desse domínio um lugar estranhamente obscuro, traba­

lhado por múltiplos movimentos, que intriga, retém a atenção

e permanece uma espécie de enigma. O que faz uma produ­

ção ser uma obra de arte? Como ela exerce essa atração, como

suscita o consenso, qual atividade preside sua produção? Quais

são seus elos com as outras atividades humanas e, por fim,

como apreender, decifrar o sentido de uma obra?

De todas as partes, disciplinas já constituídas, carrega­

das de teorizações, como que atraídas por esse espaço pa­

radoxal, vêm experimentar seus métodos e fazer suas ten ­

tativas, com maior ou menor sorte. Elas constituem teorizações

secundárias, que surgem em seguida para acompanhar a arte

em suas manifestações e propor explicações, seja para o fe­

nômeno artístico em geral, seja para esta ou aquela obra ou

movimento em particular.

Page 46: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

Movidas também pela preocupação de compreender e

de fazer compreender, existem teorizações práticas que comen­

tam o trabalho dos artistas - trata-se do domínio da crítica

de arte, bem como das práticas teorizadas: as dos próprios

artistas, que freqüentemente explicitam seus trabalhos e, em

suma, os teorizam.

Nas primeiras dessas teorizações, os autores dedicam­

se a justificar sua visão filosófica, que coloca a arte em pers­

pectiva, agindo de maneira global sobre a compreensão e ­

para retomar nossas distinções - de maneira ambiental. Jánas segundas dessas teorizações, reencontramos a forma ill­

juntiua, por nós já explicitadas para as teorias propriamente

ditas: tr~ta-se com efeito de avaliar as obras concretamente,

de .estabelecer classificações, de esboçar qual é o sentido, de/:;

tal sorte que o público possa se localizar dentro do labirinto

da arte, orientar-se e 'ver o que é para ser visto'.

Essas ações não são, pois, 'secundárias' no sentido de

. uma menor importância; muito ao contrário, elas têm um

efeito direto sobre nossos julgamentos e sobre o destino

das próprias obras. ~y;::ciso tomar aqui 'secundárias' como

'aquilo que secunda~:que intervem aposteri~ania açãõ

ãê socorro.

92

- •

ANNE CAUQUELlN

CAPíTULO 1

ASTEOmZAçÕESSECUNDÁillAS

'a,

1.A primeira 'virada' situa-se, com a Hennenêutica de Schleiermacherno começodo séculoXIX; nessa obra, o autor expõeas basesde uma análisedos textosliterários; de acordocom a compreensãode suas formasretóricasa he~enêutic~ se toma u~a arte,~ arte de compreender uma obra.Asegun~da.Vlrada, no scculoXX, atmge maisamplamente o conjuntoda filosofia, atri­buindo-lhe a tarefa de refletir sobre sua própria linguagem.

Page 47: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

------- - - - - -- _._--- -- -

94 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 95

o que é compreender uma obra? Como captar-lhe o sen­

tido do modo mais completo possível? A hermenêutica é a

ciência, ou a arte, que interpreta urna obra, que a revela e exi­

be seus sentidos possíveis, supondo-se que tais sentidos não

'. O sentido é produzi-a'dad .

1. A preocupação de compreender

2. Cf. Schleiermacher, Herméneutique (Éditions du Cerf, 1987).

a

sejam inteligíveis de imediato, mas que estejam ocultos em

seu interior e que seja preciso ir até lá recolhê-los. No come­

ço consagrada unicamente à interpretação dos textos sagra­

dos, a hermenêutica libertou-se desse limite e se colocou

como 'método geral? de interpretação de qualquer obra cuja

leitura e decifração pareçam particularmente complicadas.

Pretende, assim, fazer a mediação entre a obra e seus

espectadores, leitores e ouvintes virtuais, importando-lhe a

recepção da mensagem, e é sobre essa vertente do jogo es­

tético que ela se coloca. De suas origens, ligadas aos textos

sagrados (as 'Escrituras'), ela guarda a intenção, senão teo­

lógica, ao menos teleológica: c;a::aQlj_~f!Ê~t.1iá~i?8.l~

A preocupação hermenêutica sem dúvida nenhuma

está em primeiro lugar nos escritos sobre a arte. A questão

não é compreender da forma mais abrangente possível as

intenções de um autor e suas realizações (plásticas ou escri­

turais), seja a língua (para o escritor), seja a linguagem es­

pecífica da forma e da matéria (para os artistas)?

R1v1 ENEUfICO~.1.

a' C1

A divisão segundo esses dois eixos é, evidentemente,

muito sumária; existem numerosas passagens entre as teo­

rizações, todas fazendo empréstimos entre si, havendo uma

circulação não negligenciável de conceitos, instrumentos de

análise, até mesmo de orientações. A pesquisa de sentido

adota tanto a semiologia quanto os elementos da psicaná­

lise, e a história da arte está comprometida com as duas; já

a lógica do signo se esforça para seguir o trabalho artístico,

para corresponder a ele, a partir das amostras que são ofe­

recidas pela história da arte. Um ponto, contudo, reúne todas

essas áreas: a proliferação de sentidos da obra, que toma di­

fícil sua interpretação.

Essa abundância, essa dispersão das teorizações, junto

com sua singular impotência, atestam de alguma maneira a

necessidade que temos de recorrer a elas se quisermos com­

preender o trabalho da arte em geral e o de determinada obra

em particular.

i.:\

Page 48: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

96 ANNECAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 97

'..

do, ele não habita simplesmente a obra bruta, ele é cons­

truído pelo trabalho de quem procura estabelecê-lo, tor­

nando-o apreensível. Tal é a proposição principal que gera

a hermenêutica.

Subjacente, a idéia da obra é inesgotável e, se nos de­

tivermos na primeira evidência a seu respeito - no que cre­

mos compreender como fato óbvio -, correremos o risco de

passar ao largo de sua significação.A compreensão da lingua­

gem cotidiana não suscita interrogações especiais só porque

dispomos sem saber de uma verdadeira soma de pré-conhe­

cimentos que partilhamos com o locutor. A mesma língua,

o mesmo contexto cultural, o mesmo momento da história

c, finalmente, uma ação comum que une perguntas e respos­

tas em tomo de um mesmo objeto intencional. Contudo, essa

compreensão que nos parece espontânea pode se alargar, se

confirmar no exercício do diálogo, visando a um entendimen­

to mais completo.

Mas, se acontece o mesmo com urna obra que acredita­

mos 'compreender', uma vez que ela faz parte de urna heran­

ça comum, que estamos habituados a considerar como obra,

entretanto, o tempo, a história, o contexto sociopolítico e cul­

tural nos mantêm afastados mesmo sem sabermos. Devemos

então tentar rccolocá -la em cena; porém, mais do que um

simples ajuste metodológico (aparelho crítico,contexto histó­

rico, conhecimento do autor), temos de traduzi-la para a lin­

guagem de nosso tempo, no qual nós a apreendemos. Ternos

de fazê-la reviver, permitir sua completa exibiçãoem uma es-

"pécie de entendimento que nos transforma, a nós que a olha-

mos, escutamos ou lemos. Épara recompor um conjunto- o

contexto ao mesmo tempo que o texto, a obra ao mesmo tem­

po que nós mesmos - que a hermenêutica é empregada, com

o objetivo de restituir o 'sentido', indo além do simples fato da

obra como presença de objeto. Procura infinita, jamais com­

pletada, sempre a acontecer, mas único modo de compreen­

são possível. Vê-se que singular sedução pode exercer esse

'método' que colocaa obra na irradiação de suas múltiplas exi­

bições: a obra é então sacralízada, como a morada virtual de

uma verdade que não se revela e que representa, no imaginá­

rio, ao mesmo tempo o objeto inaJcançável e sua busca sem ­

pre e já fadada ao insucesso. Tema romântico por excelência.

O infinito apresentado na obra finita, a totalidade no fragmen­

to, o invisível no visível, a eternidade no temporal.

Mais ainda, '0 método' hermenêutico - por ser justa­

mente um método, ou seja, um conjunto de instrumentos

em boas condições de exercer a explicação de uma obra,

uma espécie de organon - ultrapassa a si mesmo e visa a um

projeto mais amplo, que é descrever as condições de possi­

bilidade de toda compreensão, sendo a compreensão o fe­

nômeno humano por excelência, aquele que é o fundo do

pensamento, o próprio pensamento. Uma llOCSC em ação,

ou o exercício exemplar do naus, do espírito. Compreender

como se compreende passa a ser o objetivo principal da her­

menêutica. Nessa ótica, a arte toma-se objeto de uma aten ­

ção particular, na medida em que escapa a qualquer explo-

"

, ,

Page 49: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

98 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DAARTE 99

em si); não há jogo sem jogadores, e jogadores e jogo se trans­

formam conforme o jogo que é jogado. É o mesmo que dizer

que o sujeito não é o jogador (o artista) apenas, mas sim o

próprio jogo, englobando a a - os'o ad

A metáfora o jogo convém à experiência da arte, já que

ela própria, escapando do lagos discursivo, dos conceitos apri­

sionados em uma sintaxe perfeita, evade-se sem 'jogos de

linguagem', em que figuras, trapos, sugerem mais que demons­

tram; mas, para além do aspecto lúdico da arte, as implicações

filosóficas desse jogo é que são evocadas, como por exemplo

a relação necessária que liga intimamente sujeito e objeto, fa­

zendo da prática artística uma totalidade em obra (in process,diriam os anglo -saxões) . A obra como 'jogo' só brota com a

condição de participação ativa, de interpenetração, de um diá­

logo no qual o que advém enquanto se dialoga é a verdade do

diálogo, o fato de ele ocorrer e que, ocorrendo, consegue re-,

presentar seu próprio ser dediálogo; o que se tem em vista não

é a verdade que resultaria de uma argumentação, nem a ver­

dade no sentido de uma correspondência entre real e ficção,

nem a verdade 'científica', mas um 'jogo como verdade', um

'0 o que só é verdade quando está sendo jogado.

A obra 'como ver asce como um mun o: o mun-

do onde há entendimento entre jogo e jogador, uma verdade

em representação, uma verdade que representa, ou seja, que

se põe em presença de um mundo, do mundo, cada vez que se

manifesta à obra. Pode-se dizer, com Friedrich Schlegel, que

se trata exatamente do jogo do mundo entendido como uni-

t

o que nos ensina esse jogo? Primeiramente que ele é jo­

gado, ou seja, que não existe jogo em si (como não existe obra

2

3. Hans-C eorg Gadamer, Vérité et m éthode, lesgrandes ligne» d'llIIeher­méneutique philosophique (Lc Seuil, 1976), p. 22.

4. Ibid., p. 28.5. Ibid., p. 17.

ração por um método científico e convoca, por causa disso,

o 'fundo' da questão: o fenômeno da compreensão se mos­

tra em sua pureza original. "A experiência da arte faz surgir

o fenômeno hermenêutico em toda a sua extensão (...) nele

se disceme uma experiência de verdade (...) que é uma for­

ma de atividade filosófica)." "A obra de arte encontra seu ser

verdadeiro quando tem acesso a uma experiência que trans­

forma aquele que a faz'."

Abordaremos a articulação da tradição hermenêutica e

da fenomenologia se, com Gadamer, "por hermenêutica en ­

tendermos a teoria da experiência efetiva que é o pensamen­

to'" e se "nos situarmos no movimento do diálogo no seio do

qual apenas a palavra ou o conceito se tomam o que são".

A hermenêutica passa então a englo ar a expenencia

estética e encontra legitimidade na experiência de consti­

tuição do sentido - constituição desenvolvida na confronta­

ção permanente de si e do outro, do ser e do tempo, reve ­

lada pelas análises fenomenológicas e ilustrada de maneira

-enQ~~~la~eji r,

'."

Page 50: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

,,.'

101

3. A verdade da linguagem: a linguagem-mundo

TEORIAS DAARTE

~ íngu

. É por essa razão que podemos fazê-lo surgir por

intermédio da linguagem. Vê-se.assjrn como a hermenêuti­

ca volta ao ponto de partida: 'á-

o mn m ra

s a a e-mun o n contam mMas o que é desvelado desse modo é a estrutura funda­

mentalmente metafórica da linguagem, que ultrapassa mui­

to a simples função de designação das coisas. Essa caracte­

rística mctafôrica nos permite captar os múltiplos aspectos

do mundo que nos cerca em sua diversidade e suas flutua­

ções e, ao captá-lo, nós o fazemos nascer. A faculdade de

nomear as coisas e deslocar os nomes - que é o trabalho do

processo metafórico - fornece aos humanos seu mundo, bem

diferente do mundo dos outros viventes. A metáfora, na vi­

são hermenêutica e poética de Paul RiCCEUr', por exemplo,

permite passar de uma primeira referência (o mundo tal como

parece nos cercar e que é denotado, fixado pelo uso co­

mum) a uma segunda referência: sua "abertura sobre outro

mundo. A metaforização produz então um choque entre es-

ANNE CAUQUELIN

Ou, ainda, a verdade do mundo grego, revelada pelo

templo e pela rocha sobre a qual ele está construído e à qual

pertence como sua verdade: é a obra-templo que dá seu 'ser'

à rocha e, manifestando-a em sua origem, a faz aparecer'.

(...) subitamente, a obra nos transportou para outro lu­

gar, diferente daquele onde costumamos estar; a obra de arte

fez com que soubéssemos o que é na verdade um par de sa­

patos (...) na obra, é a verdade que está trabalhando, e não so­

mente algo de verdade (...), o quadro que mostra os sapatos

de camponês não anuncia apenas o que é esse ser e=pecífico

em si, ele faz acontecer a eclosão como tal, em relação ao ser

em sua totalidade. O ser em sua totalidade ganha com eles (os

sapatos) mais 'ser".

verso natural: Todos os jogos sagrados da arte são apenas

ngínquas imitações do jogo sem fim do mundo, essa ob

de arte que eternamente se dá form 11

ISSO corre a insistência nesses mundos que se abrem

com a obra e que os fenomenólogos invocam sempre em suas

interpretações.Como é o caso do mundo camponês, que se abre dian-

te de Heidegger ao interpretar os famosos sapatos de Van

Gogh; o 'quadro como verdade' é o mundo aberto por ele e

não a simples representação de um par de botinas.

100

6.MartinHeidegger, Del'originede I'auored'art (trad.de E. Martineau,

Authentica, 1987).7.lbid.

8. Paul Ricceur, Lam étapnore vive (Le Scuil, 1975). Cf. também Tl'mpscf récit, Études phénoménologiques (n? 11, 1990).

Page 51: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

102 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 103

no meio lingüístico. Aquilo que, na língua, se oferece à vis­

ta e à compreensão. É, portanto, "0 ser tal qual se mostra que

alcança a lingua em".

A obra, como a linguagem, nessa visão hermenêutica,

nunca é fechada, 'está por terminar' permanentemente (ou

seja, ao infinito) na linguagem, sendo que a própria lingua­

gem ancora-se na obra. Pensamento, linguagem e coisas

estão ligados em uma imanência e uma presença fenome­

nológica que fazem do mundo, não um em si inalcançável

por natureza, mas um organismo vivo, aberto, em expansão,

cujo porvir-mundo depende de nós, de nossa leitura e de

nossa constante representação. Segundo essa ótica, cgmo

diz Mikel Dufrenne", a obra é um quase-sujeito e portanto

um quase-objeto, ao passo que seu vis-à-vis, da mesma ma­

neira, deixa-se invadir pela obra e se toma ele mesmo t

bérn, paralelamente, quase-su·eito.

Essa incursão bastante rápida no domínio da herme­

nêutica permite, contudo, ver até que ponto essa teorização

da experiência da arte fornece seus temas à literatura sobre

a arte e aos comentários contemporâneos. Abertura, acesso

ao sentido, maneira de 'fazer mundos', construção da reali-

12. Mikel Dufrenne, Phénom énologie de l'cxpéríence esthétique (PUF,1953).

9.[aakko Híntíkka, Eintentionnalit éet lcs mondes possible« (PUL,1983).10. Edmund Husserl, ld ée« directtices pOlir une phénoménologie pure,

ses dois mundos, que ela aproxima de maneira inédita; a

compossibilidade de mundos heterogêneos é aberta pela me­

táfora 'viva', que 'suspende' o mundo tal como cremos que

ele seja e o substitui por um regime infinito de outros mun­

dos paralelos. Estender todas as possibilidades da linguagem

é o mesmo que estender nosso mundo, que então se cons­

titui em inumeráveis perfis perspectivistas ou 'visões' sucessi­

vas e simultâneas. Com efeito, as línguas, em sua diversidade,

são o ato de comunidades diferentes, pertencem a essas co­

munidades e as estruturam. Elasconstroem 'linhas de mundo'

- cuja cumeada somos livres para seguir -, que seriam de

alguma maneira o envoltório lingüístico do universo em seu

conjunto", "0 universo é, em suma, como disse Husserl, ape­

nas a continuidade com a qual os perfis perspectivistas da

percepção das coisas passam de um a outro"."

d umlo;ég~ente"Ila~Uledida

§41.11. Hans-Ceorg Gadamer, op. cít., p. 295.

~~gpa

éI fato.\d~ ~te o

IllftUII~~~m~m§enllll." É necessário acrescentar que a

língua, por sua vez, só pode ser compreendida como algo

comparável àquilo que revela, em seu entendimento. Não

um entendimento programado, como um propósito que pu­

desse ser fixado, mas o entendimento natural do 'viver junto'

Page 52: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

13. Umbcrto Eco, Uaruore ouoerte (Le Seuil, 1965); Maurice Blanchot,te liorc à ocnir (Gallimard, 1959).

.~. ;

" ,

105TEORIAS DAARTE

mente teórico para se tentarem algumas incursões na dire - '

ção de obras concretas que se pretende analisar, explicar; ou

então se entra, com a história, em um diálogo contextual no

qual a arte teórica ou problemática se apaga freqüente-

nte diante da tentativa de~P" isão.

Mas mesmo assim, no conjunto, a questão continua sendo,

como semprc, desvelar sentido, sentido entendido como a

exigência hermenêutica e fenomenológica: suspensão (d

undo cotidiano) e abertura de outros mund

4. Interpretações analíticas e historicistas

.! intenção dessas interpretações faz parte da Iinhágem

da interpretaçao hermenêutica, que é dar sentido, sentiêlõ

que não a arece à rimelra VIS a e ue e preciso ir busca .

Porém, elas estão ligadas à exploração contextua, e

da a atravessar o invólucro de acontecimentos, tanto indivi­

duais quanto públicos, que cerca as obras de arte como um

mundo. Contudo, essas pesquisas se singularizam por seus

métodos, seus instrumentos e suas aplicações, assim como

pelo objeto no qual se concentra a pesquisa. Com efeito, se

a hermenêutica trata do problema da arte em geral como

um domínio especialmente eleito, pelo fato de ela ser espe­

cial e essencialmente (por natureza) difícilde decifrar, a psi­

canálise e a história, por sua vez, não privilegiam a arte co­

mo atividade especialmente prometida a seus trabalhos, mas,

sim, como um objeto de atenção entre outros, para os quais

se supõe que detenham métodos eficazes de exploração. Elas

.!

~jI

Ir

ANNE CAUQUELIN104

dade analógica, obra como foro universal das culturas, diálo­

go do 'observador que faz o quadro', corno queria Ducharnp,

e da obra que espera seu intérprete, são palavras-chave, fór­

rnulas-sésarno, nas quais vão pesquisar os teóricos de arte

(lembremo-nos de Obra aberta, de Umberto Eco,ou do Livre

à uenir, de Maurice Blanchot").

A hermenêutica e a fenomenologia ajustam e acionam

os conceitos que encontramos nas teorias de fundação. Com

essa intenção, elas mantêm, rearranjam, reinterpretam e tor­

nam explícitos, numa linguagem contemporânea, os princí­

pios constitutivos da esfera estética. Ao fazer isso, estão so­

bretudo acompanhando um movimento de pensamento a

propósito da arte, mais do que se encarregando das obras

concretas; os poucos exemplos de análises de obras, muito

pouco numerosos por sinal, representam como que garan­

tias: eles servem mais como ilustração às teses desenvolvi­

das, não sendo examinados por si mesmos (observe-se tam­

bém que algumas obras-garantia são em geral figurativas e

que a arte abstrata ou as instalações não parecem excitar a

veia hermenêutica) .

Contudo, a hermenêutica estende seu império para além

desses estilos de filosofia, alcançando outros territórios per­

tencentes a disciplinas constituídas, tais como a psicanálise

ou a história da arte. Lá onde se abandona o terreno pura-

Page 53: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

--- - - - - - ------- ---

106 AJ'JNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 107

representam, assim, propriamente, um gênero de interpreta­

ção ligado à espécie hermenêutica e, como todo gênero, dis­

tinguem-se por acréscimos e supressões.

As vias da análise. A psicanálise é interpretação, não mais

do escrito, dos textos sacros, nem diretamente das obras de

arte, mas de signos de diversos tipos, como gestos, palavras

ou sintomas. Em que o domínio da arte pode interessar ao

analista? Como enigma, será a resposta. Mas, para o analis­

ta, decifrar esse enigma não é apenas compreendê-lo como

leitor ou espectador de uma obra já produzida - nem sequer

dialogar com ele e fazê-lo advir a ser, como quer a hermenêu­

tica -, é ir às fontes de sua produção e compreender o ato

que o trouxe ao mundo. Em outras palavras, s 'êI~

c sa..ao na'fii&. Criação que pro­

cede de um sujeito, o qual se exprime por seu gesto. É, pois,

acima, que se dá o destaque, por uma retroversão, um retomo.

Indo do quadro da Sagrada [amilia até seu autor, Leo­nardo daVinci, Freud começa em certa singularidade da obrae vai até a auscultação da infância de Leonardo, depois voltaao quadro, que se iluminacomo pela luz de um novo dia.Parao Moisés de Michclângelo, o procedimento é diferente; dessavez é ao texto sagrado que ele recorre para mostrar que oMoisés revelado pela escultura do artista sofreu deslocamen­to, substituição e trabalho simbólico. Essesdois exemplos cé-

- lebres de investigaçãoanalítica de obras mostram ao mesmotempo as possibilidades de interpretação e os limites da psi­canáliseaplicadaàarte. Longede explicá-la, ou mesmo de co­mentá-Iaa partirde uma descrição precisa, a interpretação nes-

se caso é acrescentadaao enigma da visãodo que já é vistoco­mo muito complexo, a obscuridade de uma visão do que nãose vê. (Quem, antes e até depois de Freud, viu um passarinhoescondido na saia de santa Ana?")

Colocam-se a postos, prontos para a ação, os instrumen­

tos que servem à interpretação do sonho: deslocamento, con­

densação, contradição, figuração por analogia, elaboração se ­

cundária. Com seus corolários: a denegação, a sublimação, o

trabalho do negativo, a simbolização... O trabalho da obra re­

laciona-se com o da ficção onírica, e sua origem, desdobrável

em termos de genealogia, destaca o valor do sujeito e do pro­cesso de produção, passíveis ambos de uma análise.

Duas vias desenvolvem-se a partir desse ponto: uma con­

siste em procurar na vida do autor as forças conflituosas que

o levaram a realizar o que está ali diante de nós; a outra, em

decifrar a obra com os instrumentos teóricos de que se dis­

põe para a terapia analítica.

O sujeito produtor. A primeira pista é arriscada, pois o ma­

terial que o intérprete tem em mãos é sempre duvidoso e

não pode ser questionado de maneira aberta, dada a ausên­

cia do analisando. Contudo, seja qual for a segurança ou a

incerteza da análise, quer seja reconstrução arbitrária, quer não,

é preciso notar o efeito que esse tipo de pesquisa teve e ain -

14. Sígmund Freud, UIISOIIVI.'1Iir d'enfance ~e ~{OItard d~ Vi!lci (trad ..deMarie Bonaparte, 1952).Cf. também Meyer Shapiro, Deux .mepns~ de Le~­

nard de Vinci, su ivies d'une erreur de Freud', em Stylt·, Artlste, Soclélé (Calli­mard,1982).

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,"

15. J.-F. Lyotard, Discours figure (K1incksieck, 1971).

109TEORIAS DA ARTE

graças aos quais o percurso da criação é aprecnsível, Percurso

que não é feito sem descontinuidade, rupturas e irnprevis­

tos, os quais vêm irrigar lógicas não centradas no respeito

ao princípio do terceiro excluído (ou princípio de não-con­

tradição), as do não-sentido, do rizomático, desenvolvidas

por Cilles Deleuze", todo um trabalho subterrâneo de múl­

tiplas ramificações e que solicita a intervenção daquilo que

chamamos de acaso, por não sabermos como as conexões se

fazem e se desfazem.

Inversão do ponto de vista hermenêutica: não mais pr ­

curamos descobrir ou dar 'sentido' por meio de nossas in

terpretações abertas, mas, sim, ver como ele é produzido

pelo autor a partir do não-sentido; claro que procuramos abrir

um mundo, mas é um mundo de sombra, cujo trabalho pre­

tende fazer do sentido aparente o duplo atenuado do não­

sentido produtor". A verdadeira força da obra reside em suas

raízes sombrias que nenhuma análise em termos de signifi­

cação poderá captar. É preciso, em compensação, ver a obra

como o palco onde se apresenta um drama, ao qual a aná­

lise tem acesso, como diz André Creen: "0 analista, ao con­

templar uma obra, reagirá a ela de uma maneira comparável

à forma como ele escuta aquele que analisa'"'. Do mesmo

16. Gilles Dcleuze, Logique du seus (Ed. de Minuit, 1969).17. Cf. também Anton Ehrcnzwcig, Eordrc Cliché de l'art (Gallirnard,

1974).18. André Green, 'Une rencontro inattendue: Hem)' [ames et Sigmund

Freud contemplant le Moi:se de Michcl-Ange', Rcuue fra1lçaiS/: de psycJltI­IIalysc, 2 (1995).

-\

III

I

ANNE CAUQUELlN

proc uçao. A segunda via é mais promissora.

pois permite descrever os movimentos que animam as figuras,

fora da lógica do discurso, negado pelo processo de figura­

ção". O trabalho do sonho encobre a discursividade, e o con­

flito entre as duas instâncias dá lugar às obras de ficção: bas­

ta seguir de perto esse enfrentamento e será possível ter-se

uma idéia de como é o caminho da criação. Deixa-se então

o trabalho próprio do analista, que exige um sujeito para a

análise, e utilizam-se alguns dos instrumentos conceituais,

da tem sobre a prática do crítico e do teórico de arte: mono­

grafias, entrevistas com artistas são calcadas em seu modelo.

Sondar as raízes 'profundas' da obra resulta em desvelar a vida

afetiva de seu autor. O sucesso da psicanálise, a partir dos anos

1950,marcou fortemente as práticas correntes, e o público está

habituado a recorrer a elas em numerosas ocasiões. A vulga­

rização da teoria e da prática analítica toma, então, fácil a utili­

zação (a maior parte do tempo temerária, senão desnaturada)

do vocabulário e dos elementos de método para uma explo­

ração dos Isubterrâneos' da obra de arte.

A idéia de que o sujeito é causa principal de sua ação

fortalece a vulgata estética na certeza de que a questão, no

que diz respeito à arte, é, em primeiro lugar, a unicidade de

um sujeito individual.A exploração analítica atua, pois, no cerne de uma cren-

ça comum, que ela tende a reforçar. Daí a grande voga de

ses tipos de comentário.

108

Page 55: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

111

22. ErwinPanofsky, Eauure d'art 1'1 sessig71iftcatiolls (Gallimard, 1969).23. Idem. Essais â'iconotogie (Gall írnard, 1965).

rigor, ocupa-se apenas, em princípio, em acumular mate­

riais para uma inte retação racion . al interpretação segue

ou precede os dados recolhidos. e que maneira é forjada?

Parece que sua intenção é contradizer outras interpretações,

e o faz pelo modo da argumentação dentro de regras. Argu­

mentação que vem diretamente do método histórico.

Assim, Erwin Panofsky" 'restabeleceu' o sentido do fa­

moso quadro de Poussin: Et ego in Arcadia. Rivalizando na

erudição, comparando entre si as três obras sobre o mesmo

tema, ele destaca pouco a pouco a singularidade do quadro

de Poussin. Para isso, precisou seguramente combater as in­

terpretações anteriores, uma a uma.

Trata-se então de uma iconologia, que segue no longo

prazo o movimento de representações que têm um tema

comum - por exemplo: como o Tempo tem sido representa­

do desde a Antiguidade até a publicidade atual"? Ao centrar

a análise em uma série de figuras, o historiador escapa de ­

certo à história da arte entendida como sucessão de movi­

mentos artísticos e de nomes de artistas apresentados do

primeiro ao último; ele se aproxima das obras e de seus pro­

cessos de produção específicos, mas, ao mesmo tempo, ser­

ve-se deles como garantia de uma reconstituição das repre­

sentações coletivas seguindo as épocas. Em outras palavras,

a intenção aqui é perfeitamente histórica, no sentido clássi­

co, e não no estético. .

ANNE CAUQUELIN110

modo, Murielle Gagnebin volta-se para os movimentos, para

a organização, para as estruturas das formas, que 'represen­

tam', na obra, o conflito entre pulsão e defesas. O jogo plás­

tico seria então um jogo psíquico analisável em termos de

metapsicolo ·a19•

Contudo, inversão não é erradicação: a interpretação

continua todo-poderosa; dentro da ótica do processo de pro­

dução, ela se enriquece com os aportes da teoria analítica e

fornece à crítica e aos comentários um batalhão de concei-

tos o . os, de que tlla se se.rve..com.freqüênci"..,.. 20 """

m '-iR Quanto à interpretação histori-

cista, ela trabalha também após a obra, empenhando-se em

contextualizá-Ia. Como a interpretação analítica, é uma ge­

nealogia que é convocada, desta vez não subterrânea, mas,

muito pelo contrário, mostrada, exposta à vista . Se "a histó­

ria da arte acabou?" - história que traçaria uma continuida­

de sem interrupção entre as diversas manifestações da arte

ou proporia uma progressão em direção a não se sabe qual

ideal - , ainda assim continua sendo um socorro não des­

prezível ao recolher documentos, fazer buscas em arquivos,

autenticar ou discriminar; o método histórico, tomado com

; 9.Murie lle G~~ebjn. Pour uneesth étique 1-'5ycha/lalyliq/lc (PUF. 1994).zo.C:co rges Dldl -Hu!"'nnan, c-que /10/15 VOYO/lS, cequi /10/15 regarde,

ma~ tam bém Hubert Darn isch, que cita Lacan, Fenêtre jaune cadmium (LeSeul], 19R4!, ou .~uis Marin , cujas análises reportam à história, à sernânti ­ca ~o.nn~l, a rl"l O~Ca, m~s resultam n? maioria das vezes em termos psica­nal íticos. Cf. Louis Marin, Dela rcpréscntation (Le Seuil, 1994).

21.Hans Beltíng,Ehistoíre de l'artest-elle finie? (Ed. }acqueline Charn­bon, 1989).

--- - ---- - -- --_.- -_.-- --_......- -- - ------ - - _._ ._-

Page 56: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

24. Hubert Darnisch, Théorie du uuage. Pour uuehistoire de lapeinture(Le Scuil, 1972); L'origine de la pcrspective (Flarnrnarion, 1987).

25. Esse localismo pode vir acompanhado de uma preocupação empenetrar na intimidade do desejo do artista, detectado na obra graçasà no­ção de 'figurabilidade'; maneira de aliar conceitos freudianos e iconologia.Cf.a esse respeitoDanielArasse, Lc sujet dans letableau (Flammarion, 1997).

113TEORIAS DAARTE

plemento de um horizonte temporal que pretende ser global,

apesar de sua recente conversão a um certo localismo.

11. O EIXO SEMIOLÓGICO

A expressão 'virada lingüística' serviu bastante, e serve

ainda, para designar sob o mÇ?mo rótulo movimentos bas­

tante diversos. Desse modo, vimos aparecer o método herme­

nêutico de Schleiermacher como uma mudança no estudo

interpretativo dos textos, vimos a hermenêutica mais recen­

te se interessar pela estrutura da linguagem, pelo papel do

diálogo, pela palavra viva, assim como pelos tropos - e em

especial pela metáfora. Finalmente, não se pode ignorar o lu­

gar ocupado pela linguagem na psicanálise, que se move atra ­

vés das palavras que agem como sintomas, das quais, depois

do próprio Freud, alguns dos teóricos de maior prestígio se

servem com maestria. Tudo isso faz pensar que a reflexão lin­

güística - no sentido amplo - é a preocupação dominante de

todas as teorias, tanto das que tratam das obras de arte quan­

to das que têm por objeto o comportamento humano.

Assim, o recurso à expressão 'virada lingüística', para

designar a chegada das filosofias anglo-saxãs centradas em

torno de uma lógica do signo, p~:e~e_ um tanto exagerado:

essa famosa virada já ocorreu há muito tempo.Trata-se, pois,

de uma mudança de mudança, de uma mudança no seio de

um movimento filosófico que já havia manifestado mais do

que uma tendência a se separar da metafísica clássica. Con-

ras

ANNE CAUQUELlN112

__~-o.

Deixando a região das teorias de conjunto, a auscultação

de fontes e influências, a interpretação historicista pretende

atualmente ser 'local'. Dessa complexidade, o detalhe se tor­

na agora o reveladoro Temas (como a perspectiva), 'lugares­

comuns', ou seja, figuras que encontramos constantemente

(a porta, a janela, a moldura, a nuvem)", e que é preciso se­

guir de perto por se tratar de índices de uma particularidade

na qual transparecem determinações culturais: tal é a manei­

ra como a história se coloca no acompanhamento da arte".

Ela tece conexões, envolvendo as obras com um saber nume­

roso e que agrada, porque contribui para a conservação e o

desenvolvimento de uma idéia de arte como fruto de um con­

junto de parâmetros sociais, políticos e culturais. Ela traz para

a pesquisa do sentido empreendido pela hermenêutica o com-

Page 57: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

1. A tentação semiológica

tudo, manteremos a denominação que passou a ser usada

para descrever as teorizações que se referem a uma lógica

do signo, assim como a seus efeitos sobre a estética.

115TEORIAS DAARTE

corte, uma vez que, em todos os casos, as formas engendra­

das obedecem às regras de constituição de uma linguagem.

O modelo lingüístico. Se, com efeito, a língua pode ser

analisada em três estratos - as unidades fonológicas (ou fo­

nemas), as unidades morfológicas (as palavras ou morfe­

mas), compostas de diversos fonemas, e as unidades semân­

ticas (ou sernantemas), compostas de diversos morfemas e

que possuem, pois, uma significação -, poder-se-ia imagi­

nar que toda obra plástica seja analisávelda mesma maneira.

Essa tentativa muito cedo se viu limitada, na medida

em que a linguagem pictórica, mas também arquitetônica

ou gestual (com a dança), não pode se apoiar, corno é o caso

da língua, nas unidades de base sem significação que são os

fonemas: um som, com efeito, é desprovido de qualquer sen­

tido, o que permite aos morfemas, combinando-os entre si,

significar separado de uma relação interpretativa anterior.

Mas essas unidades de base não são encontráveis tanto na

pintura - a forma adquire de imediato uma significação, a

cor está ligada ao simbolismo em vigor dentro de determi­

nada cultura, formas e cor são logo interpretadas - quanto

na arquitetura ou no urbanismo". Além disso, essas unida-

26. Roland Barthes pretendeu submeter a cidade a uma serniologia,mas logo abandonou essa pista. Assim como publicou um Systertle de lamode (Le Seuil, 1967), que não deixa a desejar em relação aos estudos es­truturalistas, antes de entrar para a escola de interpretação subjetiva, comoescritor. Cf. também, mostrando essa hesitação, Umberto Eco, I:trl/vre OI/­

verte (Le Seuil, 1965) e Lastructure absente. lntroduction ti la recherche sémio­tique (Mercure de Franco, 1968).

ANNE CAUQUELlN114

Os avanços da lingüística, após a estréia de Saussure e

de Benveniste, transmitiram a idéia de que era possível apli­

car o modelo lingüístico às obras de arte. A arte não é tam­

bém uma linguagem? Mas aqui a linguagem - se de fato

existe arte como linguagem, será preciso demonstrá-lo - não

está sendo abordada pela ótica da palavra dialogante à qual

a interpretação é necessária para lhe dar sentido, mas pela

ótica de um sistema que precisa ser descrito aproximando­

o de seus elementos constitutivos mais simples.

Essa via de análise pretende permanecer rigorosamen­

te fora de qualquer interpretação, vista como uma pretensão

insustentável para um sentido que não pode se desprender

a não ser depois do exame minucioso de suas peças consti­

tutivas. Significa dizer que, aqui, estamos diante de uma vi­

são expressamente materialista, antimetafísica, que restringe

de maneira drástica o campo dJ'manobra. No lugar da aber-

~"" tura prometida pela hermenêutica, exige-se um fechamen­

to: o de um corpus limitado, fechado, que toma possível um

recorte em elementos devidamente compilados. Evitemos

as conversas e vejamos como se fabricam o vocabulário e a

1sintaxe próprios à obra: as artes plásticas, a arquitetura, o

urbanismo, o cinema, a dança serão submetidos a esse re-

Page 58: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

116 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 117

. ,F'

des existem em número ilimitado (pensemos, por exemplo,

na mancha de tinta, na diversidade de figuras possíveis e na

diversidade de cores); e o mesmo acontece com a arquite­

tura, na qual a menor elevação ou escavação é imediatamente

condenada a significar; quanto à gestualidade, a semiologia

do gesto refere-se com freqüência a um suposto fechamento.

Se o modelo lingüístico tem alguma possibilidade de

satisfazer a uma análise, não é, pois, em termos de língua,

e será necessário encontrar correspondências em outro ní­

vel de estudo: o da semântica. E particularmente - para evi­

tar distúrbios da interpretação do sentido ao mesmo tempo

infinita e subjetiva - no nível da semântica estrutural.

Uma scmiôtica10m/aI. O modelo lingüístico, em sua ver­

são ampla, vai se dedicar à estrutura da linguagem, de qual­

quer linguagem, seja a da literatura, da poesia ou da ima­

gem. A questão será elaborar o mais rigorosamente possível

os códigos de decifração que nos permitam compreender a

.língua nas conversações comuns e de transportá-los a ou-I

tros objetos. Encontrar um sistema de transformações, de

tal maneira que seja possível transcodificar uma mensagem

contando com um suporte determinado em outro conjunto,

é esse o objeto da pesquisa da semiótica geral.Tal pesquisa pre­

tende ser lógica, quase matemática: é preciso evitar a inter­

venção das interpretações subjetivas, manter distante o sujei­

to que analisa e suas próprias projeções intempestivas. Assim

como colocar-se fora do alcance da metafísica e dos valores

preestabelecidos, de maneira a considerar apenas a forma

em sua pureza. Uma vez cumprida essa etapa, poder-se-á . I

então interpretar. Observemos a estrutura de um conjunto

antes de escutar o que esse conjunto nos 'diz'. Ele tem um

sentido estrutural (a composição lógica de elementos segun­

do uma certa ordem) antes mesmo de ocorrer o advento de

um sentido 'significante'.

Dizer isso é se situar nos antípodas do discurso confuso

característico dos discursos sobre a arte, é deixar de lado tudo

o que se supõe encontrar dentro das profundezas abissaís do

'eu', a intencionalidade e as pulsões dos autores; é se limitar

ciosamente à superficie dos objetos de análise para explorar sua

construção: o 'como' e não o 'por quê'. O 'dito' das obras de­

pende de um certo número de posições dos elementos no seio

de um sistema geral que lhe oferece sua estrutura. Para a aná­

lise de um quadro, por exemplo, a descrição antecipada deve

levar em conta os eixos de orientação de base: o alto e o baixo,

a direita e a esquerda, as linhas de força de um espaço especí­

ficoonde se situam as figuras.Eladeve levar em conta também

o modo de constituição de um ícone gráfico a partir da percep­

ção - já bastante complexa - de um objeto visual",

2. Uma lógica do signo

Deliberadamente antírnetafísícas (os enunciados da me­

tafísica são símiles-enunciados, desprovidos de sentido se

. 27. O grupo Il dá uma primeira idéia dessa complexidade c da ma.neira pela qual um objeto é percebido como ícone (Tmittdusigl/t' oisucl.LeSeuil, 1992).

Page 59: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

28.Mmlifi'S/I' du Ca ril'de Vimlll' 1'1 autres écrits, organizado por Anto­nia Soulez (PUF, 1985).

119TEORIAS DA ARTE

considerar todas as possibilidades de mundos diferentes que

os jogos de linguagem fazem surgir. Em suma, a filosofia será

obrigada a ser reflexão sobre a linguagem e a começar pela re­

flexão a respeito de sua ró .

Essa ambiência, esse estilo de filosofia anglo-saxã cen­

trada na análise da linguagem, de sua lógica, de suas fun­

ções e de seu poder de criar mundos, desenvolveu-se de um

modo à parte das filosofias continentais - cuja progressão

contesta, cujo anfigurismo critica, criticando também a fal­

ta de clareza delas, suas generalidades e, é claro, sua meta­

física latente ou confessada. Ela recusa também, evidente­

mente, a filosofia da arte saída desses sistemas filosóficos e

propõe recomeçar a pesquisa partindo da estaca zero, A via

será a da análise lógico-perspectiva: em que medida e sob

qual condição um objeto pode ser dito 'de arte'?

Perceber é re-conhecer. Não se trata de fazer um julgamén­

to de valor de uma obra já constituída em obra, o que seria

colocar a carroça diante dos bois: tomar como realmente

existente um objeto sobre o qual ainda não se sabe se ele é

de fato oque se pressupõe que seja, a saber, 'de arte'. Épre­

ciso, em compensação, perguntar-se sobre o que faz com

que uma obra seja reconhecida como obra, quais são as ca­

racterísticas que podem nos conduzir em direção a essa afir­

mação. É, pois, de epistemologia que se trata: assim como,

para a língua, há proposição quando certas condições gra­

maticais são preenchidas, da mesma forma haverá obra de

arte quando certas condições tiverem sido satisfeitas.Ao con-

ANNE CAUQUELlN118

os passarmos pelo crivo da análise lógica), as análises que

acabamos de citar requerem o apoio do retorno ao rigor, à

elucidação da linguagem, seguindo os preceitos do Círculo

de Viena, iniciado por especialistas em lógica, cuja figura

principal é Ludwig Wittgenstein2H, no que diz respeito ao as-

sunto de que estamo tando.

o estudo da linguagem, aqui, não tem nem a mesma

função nem a mesma intenção que encontramos nas análi­

ses precedentes: não se trata de aplicar, em objetos mudos,

códigos que servem à palavra, nem de transportar estruturas

reproduzidas a partir da língua, em suportes não-lingüistas,

mas, sim, de ver como a própria língua é capaz de se refletir

e se dobrar para engendrar a realidade do mundo que ve­

mos ou, mais exatamente, que acreditamos ver. Pois só vemos

aquilo que podemos nomear para reconhecer. Assim, o que

podemos dizer do mundo é esse mundo, e o 'como' ele se apre­

senta a nós é o que ele é. Éentão uma revolução na manei­

ra de pensar a verdade das coisas, uma vez que não se trata

mais de fazer coincidir as palavras com uma realidade que lhes

seria exterior, mas de fazer nascer o mundo da realidade a par-

. . , tir de palavras que utilizamos, e a questão então é avaliar que

"espécie de mundo pode nascer, de que espécie de arranjo de

palavras . O caminho da filosofia está, pois, inteiramente tra- ~

çado: será preciso elucidar, desenredar o uso das palavras,

Page 60: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

121

aen

tiVo

m

TEORIAS DA ARTE

a en~ o. Nisso a filosofia .

analítica se distingue da semiologia, que, tomando as obras

na condição em que se encontram, contenta-se em aplicar­

lhes as grades de leitura ou submetê-las a elas. Ela é, pois ­

seja qual for a opinião a seu respeito -, menos concreta, me­

nos próxima das coisas, mais geral do que a semiologia em

seus exercícios, uma vez que suas exigências gramaticais afas­

tam -na das obras ou, mais especificamente, afastam a inves­

tigação das obras, em toda a sua extensão, das suposições

preliminares de existência que, ela é obrigada a assegurar. É

assim que um autor como Goodrnan", que representa bem

o movimento da lógica semiótica anglo-saxã, expõe as con­

dições necessárias para que um objeto seja reconhecido como

arte, afastando todo julgamento avaliador suscetível de trazer

junto com ele valores latentes, gostos psicológicos ou ainda

um conteúdo metafísico.

É, portanto, em te os e ropne ades lógicas (e na

de propriedades perceptivas) que as obras de arte serão dis­

tinguidas das outras obras que [lã_o seriam artísticas. Essas

propriedades se manifestam em tomo da fun ão simbólica

cuja exemplificação é fornecida pela obr

30. Nelson Goodrnan, Maniires de faire des mondes (Ed. ]acquclincCharnbon, 1992); Langages de l'art (Ed. [acqueline Charnbon, 1990).

ANNE CAUQUELIN120

junto dessas condições será necessário incluir os traços dis­

tintivos que devem separar o objeto em questão - dito 'de

arte' - de outros objetos do mundo físico que não são de arte".

Esses traços, entretanto, nada têm a ver com traços sensí­

veis, submetidos à percepção, pois o fato de ser ou não ob­

jeto de arte depende de fatores abstratos, de qualidades de

definição, tais como consistência, saturação, simbolização,

amostrabilidade ou exemplaridade. É, com efeito, por um

trabalho cognitivo que a arte é percebida como arte, traba­

lho que comporta bom número de analogias com aquele

que nos põe em condições de reconhecer o que se diz na

linguagem corrente. E, como é o caso nessa linguage

29. Para uma visão rdpida do aporte da filosofia analítica à questãoda arte: Philosophie analutioue et Esth étiquc (Klincksieck, 1988), onde se en­contram artigos importantes de Dante, de Goodrnan e de Margolis.

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- - . .. _. . ._ -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --

123

aen , co dCanaógt

TEORIAS DAARTE

~:~::::::===~~;,=. Tal fato, natu-

ralmente, redobra a dificuldade na medida em que, então,

não seria mais uma obra a ser apreendida o mais correta­

mente possível, mas toda uma série... proporcional ao nú­

mero de comentários.

Vê-se com isso a que espécie de críticas os semanticistas

e os especialistas em lógica estão expostos, quando se sabe

que, além do mais, a tradição hermen.êutica está muito mais

ancorada nos costumes filosóficos ocidentais do velho con­

tinente do que em uma lógica do signo (no entanto tão an­

tiga quanto, se pensarmos nos filósofos medievais) .

levados em conta, então o comentário vai ter grande dificul­

dade de descobrir uma via, e ele será, por assim dizer, ine­

xistente nesse tipo de teorização.

Trata-se - dirão os partidários de uma leitura interpre­

tativa e sensível da obra - de uma grave lacuna, que de ­

monstra a incapacidade radical de toda lógica científica de se

aproximar da arte com alguma possibilidade de sucesso

31.Trata-se de uma opinião ou mesmo uma exigência difundida en­tre literatos, da qual Barthes, entre outros, foi defensor e que está sendo re­tomada com vigor atualment e por Derrida .

ANNE CAUQUELIN

3, A última palavra

122

Jzaçã exempli caÇa saoSUfitientes

~D=mjf.tam1iiii:üL'm5iãimm~rud~(h~d~e~~t=(A exempli ­ficação é a interpretação metafórica de uma qualidade ex-

pressiva pertencente à obra; o trabalho conceitual que rea ­

lizamos para fazer a distinção entre uma obra que é e outra

que não é consiste em apresentar à vista a sirnbolização e co­

locá-la se exemplificando na obra.)

Essa teorização - que, com a voga da filosofia analítica,

tende a ocupar o terreno teórico atual- recusa-se a colocar

a questão da arte em termos de 'o que é a arte?' (essencialis­

mo) ou 'Qual o valor de tal obra?' (empirismo), ou ainda 'Qual

é o significado da palavra 'arte'?' (semantismo), mas pergun­

ta: '0 que faz a arte na linguagem? Qual é seu emprego

efetivo? Qual é o funcionamento efetivo desse conceito?'.

'1

A teorização de intenção epistemológica que se inte­

ressa, então, pela arte, cuidando de justificá-la logicamente

e se proibindo qualquer julgamento ou avaliação excessiva­

mente 'impressionista' (portanto ao mesmo tempo empírica,

. ,imprecisa e submetida a critérios não-fundados), recusa-se

também a se dedicar a interpretpções de obras concretas, ou

. 'm lesmente, a falar delas./L- - - _. -----Se, com efeito, utor e suas intenções, nem a

, presença de alguma determinação exterior, 'nem também

~' ~ualquer movimento inscrito na história, ou algum proces­

so crítico ao qual seria possível relacionar a obra, podem ser

Page 62: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

Essa visao um tanto derrotista funda-se na sacralização

da arte, do gênio, dos excessos extáticos, dos exageros de sen­

timentos e do que se costuma classificar como loucura. Mas,

curiosamente, ela também se sustenta - contra os lógicos ­

na palavra do mais dotado e do mais influente entre eles,

Wittgenstein: a última proposição do Tractatus deu-lhe, com

efeito, argumentos, de uma maneira bastante incongruente.

O célebre 'Sobre aquilo de que não se pode falar, deve­

se calar' pode com efeito ser interpretado como a flecha que

traspassa o rígido rigor da lógica e mostra sua vaidade ou no

mínimo seu limite: a arte, a se acreditar nessa interpretação,

seria justo aquilo que é preciso calar, pois não se pode falar

. ,I

125TEORIAS DAARTE

dela corretamente. A arte para além do discurso, a arte trans­

lógica, trans-gramatical. O que enche de alegria os adeptos

dessa arte e lhes parece a prova cabal de que nenhuma ló­

gica pode romper duradouramente a fortaleza estética é que

a proposição vem do próprio fundo da argumentação lógi­

co-pragmática. E de seu mais prestigioso defensor. A místi­

ca é essa esfera do inefável, do indizível,que é a da ética c da

estética: ela compreende o mundo todo, o próprio mundo,

cuja unidade não pode ser captada sob a forma dessas pro­

posições fragmentadas da linguagem, seja qual for o esforço

feito pela gramática para colocá-Ias juntas. O inefável da arte

limita, pois, a arte da linguagem, que não é exercida a não

ser com a condição de sua própria negação... Ede descobrir,

de maneira triunfal, no Wittgenstein lógico, um Wittgensteinmístico ou mesmo teológico.

Outra interpretação que permanece mais perto dos 'fa­

tos' (fatos que se constituem em quadro para a lógica) acaba­

ria por nos mostrar que, se algo deve ser calado - a unidade

do mundo ou o mundo como unidade -, é pela impossibi­

lidade de colocação de uma proposição dizendo o que é, e

ao mesmo tempo o que ela é. Existe aí uma limitação inter­

na ligada ao próprio fato de falar, o que deixa fora do cam­

po da palavra um mundo que se mostra e que se expressacomo inexprirnivel".

.32; ~f., par; uma ~iscuss~o a resp:ito dessas interpretações, o artigode Fredenc Nef, Que faire de I ineffable , em Acta (Colóquio WittgenstcinEd.TER. 1990). •

ANNE CAUQUELlN124

o que as teorias de caráter tradicional querem restabe­

lecer contra o rigor lógico é a idéia de uma inacessibilidade,

de um 'para 'além de toda estratégia verbal', semântica ou

analítica. A obra não pode ficar na dependência de nenhu­

ma forma preestabelecida; ela escapa às dominações con­

ceituais e pode no máximo sugerir ecos poéticos, 'ondas' de

sentido que o crítico de arte ou o teórico devem estar em

condições de perceber e retransmitir. O extremo dessa ati ­

tude (por assim dizer romântica) consiste então em ostentar

o silêncio completo: nenhuma teorização é possível, qual-

quer ensaio de compreensão motivada é demai teon

c e m aceitar o ato s esforços es-

tão, por definição, fadados ao fracasso. O único aporte pos­

sível da teoria à arte e às suas obras seria então o reconhe-

imento de sua incompetência absoluta...

Page 63: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

127

riadores; e os expressionistas, dos psicanalistas), os artistas,

por sua vez, adquirem o alimento teórico a seu bel-prazer,

de acordo com o humor e a ocasião, sem se preocupar com

a coerência; contudo, permanecem influenciados - com a

ajuda da midiatização da sociedade - por uma rede de dis­

ursos da qual não podem fugir, e, como veremos no próxi­

o capítulo, são sensíveis a expressões, a palavras de ordem,

onalidades de pensamento que lhes servem de implllsão~"""""11

zer, mais do que de sistema em cons

TEORIAS DA ARTE

"

• "I'ntsde g~nero: a pamt do s~-",--="T.:'::-:;::'':.::7~. reza-morta ou de animais. (N. de T.)

.'1..:".

Sejam quais forem os fundamentos do dizível e do in­

dizível (a saber, qual deles funda o outro), é preciso constatar

que tanto uma quanto a outra das vias adotadas pelas teo­

rizações sobre a arte - ã via hermenêutica ou a via semioló­

gica - fecham-se sobre si mesmas, fabricando em tomo das

questões da arte mundinhos fechados que com freqüência

perdem o contato com a questão com que supostamente

deveriam se ocupar: a arte, para se dedicar a toda sorte de dis­

cussões internas de suas disciplinas ou campo de pesquisas.

Mesmo assim, esse acompanhamento, em meio a seu bruaá

de teses contraditórias, desempenha um papel na elabora-

!'-.L'if'- o das obras de arte contem orâneas.

s ar IS as, com efeito, são, bem ou mal, levados a se

definir em relação a uma corrente de pensamento, devendo

responder às perguntas de seus críticos, que tanto os atra­

palham quanto os põem em evidência, ou, ao contrário, mos

1tram-se eloqüentes quanto a suas perspectivas e pontos de

vista. O exercício da escrita lhes é cada vez mais familiar

sendo, hoje em dia, incontável o número de publicações dtartistas: jornais, textos teóricos, entrevistas isoladas ou mJ­nifestos. Mas, enquanto os teóricos tendem a se interessàr

I . I . tâ L. .pe os movimentos que costumam ter a guma Impor an9a

em suas grades de leitura (como os impressionistas, benb-

. ficiando -se em particular dos hermeneutas e dos feno b­': nólogos; os pintores de gênero", beneficiando-se dos hist -

Page 64: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

CAPÍTULO 2

AS PRÁTICAS TEORIZADAS

"

Enquanto as teorizações secundárias intervinham nas

obras, e após elas, procurando elucidar seus enigmas, evi­

denciar suas estruturas ou acompanhar sua recepção com

instrumentos conceituais já prontos, precisando apenas ex­

perimentá-los ou ajustá-los a um novo terreno, o estilo das

práticas teorizadas de que iremos falar agora é bem diferen­

te. Elas nascem ao mesmo tempo em que as obras que sus­

tentam e estão tão ligadas ao objeto que as incita a existir

que não poderiam ter qualquer pretensão de autonomia, nem

sequer de alguma validade, sem esse suporte. Quase simul­

tâneos, obras e discursos são produzidos no palco da arte,

conjuntamente. Um carrega o outro, e vice-versa.

Essas teorizações se apresentam sob duas formas. Uma

constitui uma prática exterior à produção da obra pelo artis­

ta: é a crítica dearte, exercida por autores literários e que diz

respeito a uma obra em particular, às obras de um artista ou

Page 65: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

131TEORIAS DAARTE

Contudo, essa repartição de tarefas tende, no presente,

a se misturar consideravelmente. Com efeito, os grandes sis­

temas fundadores desapareceram do campo filosófico, le­

vando junto nesse desaparecimento as filosofias da arte, as

quais eram dele uma parte constituinte. Permanecem então

dois dispositivos que podem servir para preencher essa par­

te teórica: as práticas de acompanhamento que teorizam o

campo a partir de seu ponto de vista (acabamos de passá-las

em revista, no Capítulo 1 desta Segunda Parte) e a crítica de

arte, que, saindo de seu papel empírico, encarrega-se de uma

parte da carga teórica. Assim, a preocupação de 'fazer teoria'

é agora um bem comum e não mais resultado da ação de

uma fração apenas do campo estético, e essa 'partilha' que

retoma a herança da filosofiaestá mais próxima de uma com­

participação, na qual se opera uma espécie de hibrídação

entre as competências, os princípios e os métodos. Pode-se

dizer com certa pertinência que a crítica contemporânea (a

nova crítica) apresenta uma acentuada tendência a questio­

nar menos a obra específica do que as démarches, os proces­

sos de invenção, os problemas colocados pela prática da arte,

sua relação com a sociedade, com a política, com grandes

movimentos e mudanças tecnológicas, ou ainda a questão

do 'sentido' da arte; em suma, apresenta uma tendência

clara a filosofar.

Temos a prova disso por intermédio da simples leitura

das publicações de colóquios sobre a. arte: ao perpassarmos

uma série de intervenções, encontramos, por exemplo, as que

ANNE CAUQUELIN

.. .._-_•. ._- - --- - - - - -...,.- - - - - - - - - - - - --_.- -

130

li

ainda a todo um movimento artístico. A outra é uma práti­

ca interna, imersa na produção, da qual não se separa, re­

sultado da ação dos próprios artistas: diários de ateliê, notas

e reflexões, textos em forma de manifesto, ensaios, algumas

vezes até tratados, escritos que pontuam a pesquisa, por

meio dos quais os artistas se situam, analisam os elemen­

tos de seus trabalhos, expõem suas idéias, defendem suas

crenças, posicionam-se sobre o tabuleiro dos movimentos

artísticos, respondem às críticas e emitem opiniões sobre

seus congêneres.

Essas ' oriZê1Ção~ ~ternas

têm em comum, tradicionalmente, o fato de, em geral, não se

considerarem uma teoria específica, aplicando seus princí­

pios ao vivo, diretamente, raras vezes emitindo seus enun­

ciados de forma sistemática, mas reivindicando, contudo, o

contato com a obra em sua singularidade e o faro ou o gos­

to como princípio diretor', Essa disposição clássica da crítica

permite distinguir o que remete aos esteticistas (filósofos,

teóricos de arte, como os que mencionamos na primeira

parte), aos especialistas em uma disciplina específica, por

eles aplicada às questões artísticas, e aos próprios críticos

de arte, mais perto das obras, e, de alguma maneira, gente

'do ramo'.

1. O que em si, observemo s, já é sinal de fidelidade a uma teoria: àda espontaneidade da arte, da intuição direta das coisas, da recusa ou pelomenos da desconfiança com relação à especulação intelectual, abstrata .

Page 66: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

2. 'Pratiques abstraites', RueDescartes, n? 16, College Intemational dePhílosophie, 1997, sob direção de Cathcrine Perret.

lO Frac: Fonâs Rfgional d'ArtContemporain. (N. de T.)

133TEORIAS DA ARTE

tipo) são uma ação artística que se inscreve no movimento

de produções contemporâneas de não-objetos, desempe­

nhando assim o papel de acompanhamento ue sem re foi

. .RdicrrdOlJeta-altU:;l.-_ .J

Contudo - e é um ponto que desenvolveremos como

conclusão - essa imprecisão mesma, essa indistinção de for­

mas híbridas da crítica, concede a seus discursos uma 'di­

mensão" uma presença, uma 'influência'. É que a crítica de

arte permanece, apesar, ou até mesmo por causa, de seus

desvios 'intelectuais', bem mais próxima da realidade, que

ela segue e por vezes precede, e também dado que sua di­

fusão - sobretudo hoje em dia - é mais ampla do que a das

teorias filosóficas ou das análises especializadas de que te­

mos falado até agora. É o mesmo que dizer que o exercício

da crítica, a reflexão dos artistas a respeito de seu próprio

trabalho estariam privados de qualquer traço de teorização?

Por certo não: a teoria está presente na fala dos críticos in­

fluentes e na dos artistas cuja obra provocou efeitos no do­

mínio artístico. Ela está presente sob a forma de escolhas

coerentes, de partipris prolongados.

E se, como temos afirmado desde o começo,mJim1D

tâBeiib.f.le:nm.l ri: 011lÁW0f'Tático:q~d.!l ~l1Jib~ãíá1fõffiiãr;ip~~ t}fMMei~

~J: ~twao .

'"'Cfõg::no:cam .' 'lI'i

en e . " poi~'..-r"""1'l""q""'Ue"1~' ''~·n~·v!''!l!!el!!lsti~·'~~!''rnl'~",",,-_·..J

' ãl~rpe' . , ' 'Cél!d te.

ANNE CAUQUELIN132

falam da abstração pictórica contemporânea': dois esteticis­

tas, dois historiadores de arte, um psicanalista, dois críticos

de arte, nove artistas. Esse painel representa bem , .~-

çímlaaWiàllmÍJ)J05fiSSiõil5e-tjlaime.. Provavelmente seria

necessário acrescentar a ele, em uma perspectiva completa­

mente diferente - a de esboçar o quadro do meio artístico -,

os curadores de museus, os diretores de centros de arte, de

Casas de Cultura, de Fracs'; os membros de diretorias de

arte e de cultura, cada um - e todos - conjugando os papéis

de crítico e esterícista, na medida em que suas escolhas de­

terminam valores e linhas de conduta argumentadas. Con­

tudo, considerando que a reflexão sobre a arte, sua natureza,

seu futuro, o sentido ou o não-sentido de suas produções

são uma parte essencial do trabalho da obra, essas reuniões

que misturam os atores do campo artístico podem também

reivindicar para si próprias o status de obra de arte, e seus

organizadores, declarar-se artistas.

Esse es a o

nos meios artísticos, pode ser interpretado de duas manei­

ras: ou dizemos, como Arthur Dante, que a teoria, ou seja,

a especulação intelectual, precede a atividade 'propriamente'

artística - que consiste em produzir objetos denominados

obras - e a substitui, ou argumentamos que a produção e a

exposição de reflexões (em colóquios e reuniões de todo

Page 67: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

· _._._- --_.- ._ - --- - ------------- - - - - - - - - - - ""'!!"""- - - - - - - - -- - - --_._....

135TEORIAS DA ARTE

F.

. '1;

algumas descrições de Vitruve, de Plínio o Velho, de Lucia­

no ou de Pausânías'. Claro, a descrição continua sendo a pe­

dra de toque da critica - é de fato preciso falar das obras

plásticas, mudas por definição -, mas ela se abastece, a par ­

tir do século XVIII, de considerações éticas, até mesmo so­

ciais e políticas.

a se torna um exercício difícil, para não

dizer improvável: com efeito, a parte propriamente descri­

tiva das criticas encolhe hoje em dia, até desaparecer quan­

do se trata de arte contemporânea. Éque, se é relativamen­

te fácil narrar uma intriga (a istoria da Renascença), descrever

e designar objetos reconhecíveis (um jarro, um divã" uma

mulher, flores, um cachimbo ou a fuga do Egito) e glosar

através de interpretações possíveis, é menos fácil, conve­

nhamos, prolongar por mais de duas páginas a descrição de

um quadro abstrato ou, pior, de um monocromo, para não

falar de instalações cujos suportes são de naturezas diver-

cujo vazio, ai constitui a peça principal...

4. Para esses autores, ver a notável coletânea Millet,Texlesgrec«clla­tins re/atifs à l'histoire de la peinture andem/c (Mácula, 1985).

ANNECAUQUELINli134

I. UMA TEORIZAÇÃO PRÁTIO\: A CRfTICA DE ARTE

A ilustração e a defesa de obras escolhidas, a crítica e a

recusa de outras tantas; postas no índex, a avaliação,as com­

parações, os julgamentos, tais são as ações realizadas pelos

críticos de arte; de um lado, promoção, publicidade, celebri­

dade: os críticos lançam 'seus' artistas; de outro lado, silên­

cio ou descrédito espreitam o desafortunado que não soube

agradar. Mas essa avaliação não se dirige unicamente a in­

dividualidades - obras e autores; ela atinge também o gê­

nero, a forma, o estilo, privilegia certos movimentos em de­

trimento de outros, dá suas razões, cria de alguma maneira

a 'moda teórica'. Pois não se trata somente de humor, mas

de convicção; não somente de gosto, mas de parti pris. Ou,

se quisermos, de engajamento.

O ponto, por certo, é o seguinte: a posição teórica - ou

até o combate - que distingue a moderna critica de arte

dos textos da Antiguidade que descre~am obras, apresen­

tando-as na figura de linguagem - e por intermédio dela ­

que se convencionou chamar de ekfrasis. No caso, tratava-se

unicamente de igualar pela palavra as cores, os movimen­

tos e a harmonia do quadro. Os Quadros de Filostrato' são

um bom exemplo disso (mesmo que os quadros por ele

descritos dessa maneira sejam imaginários...), bem como

3. Filostrato, Lagalerie detabteaux (trad, de A. Bougot,Prefáciode Pier­re Hadot, Les Belles Lettres, 1991).

Page 68: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

136 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE 137

1. Para novo objeto, nova crítica?

Mas há ainda um local mais secreto, onde a descrição

do crítico, mesmo que a ele se dedique, fracassa de modo

estrondoso: esse local é o da arte tecnológica contemporâ­

nea. É preciso ter em mente, com efeito, que o crítico, ao

textualizar uma obra, faz dela de alguma maneira uma prá­

tica, assume ou imita a técnica do artista, torna-se seu clí­

nico. Ele conhece sua linguagem, os instrumentos, os mé­

todos - diz-se com freqüência, maldosamente, que o crítico

é um artista frustrado, mas também sem conhecimentos

sobre o ofício e, sendo assim, incapaz de descrever ou fazer

um julgamento. Mas os objetos artísticos produzidos pelas

novas tecnologias são impenetráveis à crítica na medida em

que obedecem a regras de produção ainda desprovidas de

valor legal até o momento na esfera da arte .

Não se trata de modulações de uma linguagem conhe­

cida,com suas inflexõesou variações semânticas, mas de uma

outra linguagem, de outros instrumentos, de novos méto­

dos; o conjunto resulta na formação de um objeto radical­

mente novo, a ponto de não se lhe poder aplicar nenhum

dos critérios que esteticistas e críticos de arte utilizam para

selecionar o que é 'objeto de arte' ou não é objeto de arte .

Trata-se, aliás, de objeto? Não, para dizer a verdade. As ima­

gens produzidas por computador não são imagens depen­

dentes de métodos diferentes, mas, mesmo mantendo suas

características de imagem (duas dimensões, planeidade, es-

tabilidade, imposição frontal ao olhar de um espectador

passivo), não têm mais tais características. Imagem é, p ois,

um termo pouco pertinente, tão pouco pertinente quanto

objeto ou quadro, e igualmente pouco pertinentes são os crité­

rios que se aplicam às imagens, aos objetos ou aos quadros,

bem como os instrumentos de avaliação e a linguagem uti­

lizada para dar conta de tudç isso. É que estamos tratando

agora de processos, oriundos de cálculos, e o que a crítica

deveria avaliar não são resultados em imagens, mas os al­

goritmos que os produziram e que são seus verdadeiros au ­

tores. Contudo, uma imagem evolutiva, freqüentemente em

progressão aleatória, e com a qual o espectador (e que não

é mais um só) interage, ou seja, a transforma, dificilmente

pode ser fechada no tecido narrativo que servia para des­

crever uma istoria, concluída:

Diante desse estado de coisas, provocado pela mudan­

ça tecnológica que afeta toda a sociedade e à qual a arte não

poderia escapar tanto quanto qualquer outro setor de ativi­

dades (por que e como escaparia?), a crítica não tem voz. E,

de fato, não é apenas a compreender ela mesma o manuseio

dessas máquinas de comunicar, que são os computadores e

seus programas, de maneira a poder descrevê -los correta­

mente e compará-los com outros dispositivos, que a crítica

deve se dedicar (descrição que teria aliás a forma de listas

de materiais empregados e de suas características técnicas,

espécies de fichas com algum ordenamento). Isso é apenas

uma tarefa preliminar. Mas outras tarefas aguardam -na, sen-

Page 69: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

138 A..'JNECAUQUELIN TEORIAS DAARTE139

t~ub

ioamet .

5. Bienal de novas tecnologias que se realiza desde 1990 em Saint ­Denis. Seu organizad or é J.-L. Boissier, auxiliado por sua equipe , que tam ­bém é exibida na Revue Yirtuclle do Centro Pompidou.

Ta vez; IaS, C mo pensa e pra ica ôissier,o 'novo

crítico' venha a ser o curador de exposição, o que escolhe,

seleciona, sustenta, orienta a produção a partir das vias que

lhe parecem fecundas. As quatro edições de Artífices', nes­

se sentido, já fazem parte de uma nova crítica, cuja dimensão

mostram na medida em que designam, sustentam e colo­

cam à disposição do público obras tecnológicas. E, no caso,

menos como exposição de artistas singulares do que como

de uma lista extensível a qualquer um que queira participar.

Uma 1UYVa crítica se indagara então sobre o bom fundamen­

to, a validade ou o uso possível de tal política de denúncia.

O mesmo vale para Ingo Günther e sua Répllbliqlle des réfu­giés na Internet, em que ele cria uma série de proposições

plásticas desenhando, entre outras coisas, um passaporte pa­

ra os membros de uma comunidade ao mesmo tempo real

e fictícia.Nada disso se destina a agradar a tradição crítica, que

prefere, pois, se abster, e trata essas obras tecnológicas com

zo sem limites.

I'

e nO)pro~

.~ uSop

granta1p - ­

nasi mecatUcaa<:n!

e

ça .•

do necessário abandonar alguns privilégios ou facilidades

que lhe eram concedidos por seu estatuto. O catálogo de ex­

posição que aliava gen~rosamente a história privada da vida

do artista, o resumo elogioso das obras expostas e a elegan­

te moral extraída do conjunto, tudo isso precisa agora ser

concebido de outra maneira para as 'tecnoimagens'. A vida

do autor é substituída pela composição de uma equipe; as

intenções e as escolhas do artista dão lugar ao projeto devi­

damente atualizado de utilizar este ou aquele equipamen­

to, este ou aquele suporte. 'Wlto, eva em

meiSEZDIrõl;!l. Serão vistos, pois, críticos - de fato muito

pouco numerosos, raríssimos, a bem da verdade - avaliar

CD-ROMs (de um artista, um museu, um movimento artís-

. tico) em função do uso que podem ter, à maneira de uma

.- . avaliação de qualidades e defeitos de um utensílio, de um

objeto de consumo corrente. O mesmo tipo de apreciação

.'. pode ser realizado sobre uma obra como a de Muntadas... '

171C filc roam, por exemplo, cujo trabalho consiste em abriri\ •

' ,::' I um servidor na Internet onde seja possível consignar os ca-

sos de censura à arte ou em outros domínios, tratando-se

Page 70: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

141TEORIAS DAARTE

2. O modelo do paradoxo crítico: Diderot

universalidade do saber (e do conhecimento de arte). Ela

permanece bastante longe das próprias coisas. Seus autores

são teóricos'generalistas', filósofos ou símile-aparentados,

cujas reflexões são solicitadas para preencher o vazio teóri ­

co da crítica de arte no que concerne à arte contemporânea. : . •

Eles expressam então seus pontos de vista sobre a evolução

do mundo, mais do que sua própria ligação com a realidade

da arte contemporânea.

Qual é, pois, o modelo implícito a que obedece essa críti­

ca de arte para se sentir verdadeiramente crítica e desempe­

nhar o papel que ela supõe ter de ser o seu? Modelo tão im­

positivo que a proibiria de transgredi-lo se ela se ocupasse

com as novas tecnologias de imagem? Ele tem suas origens

em um passado bastante longínquo para ser considerado fun­

dador e bastante próximo para não ser considerado arcaico.

O exercício e, podemos dizer, o ofício de crítico surgem,

com o papel e a postura que lhe são atribuídos hoje em dia,

somente na época em que a Estética foi constituída e que, pa­

ralelamente, a arte e o artista adquiriram um estatuto senão

autônomo, pelo menos reconhecido como situado à parte

das outras atividades sociais, ou seja, na metade e no final

do século XVIII, para florescer e tomar vulto no século XIX.

Os primeiros passos na via da crítica moderna estão ainda li­

gados ao exercício da literatura: escritores e filósofos a ela se

dedicam, assim como seus confrades, jornalistas, poetas ou

ANNE CAUQUELIN

(...) os autores não são forçosamente os próprios artis­

tas; eles podem ser os iniciadores de um site e ser mais pre­

cisamente o resultado de uma prática, de uma posição que é

a do editor, do galcrísta, do curador. O que desloca a questão

do autor e da recepção.

140

demonstração do que pode a arte tecnológica em seus di­

versos aspectos: redes (Internet), imagens sintetizadas, virtua ­

lidade e hiperrnídias. Com efeito, como esclarece Boissier',

6. 'Artifices N, Uart du virtuel s'cxpose-t-ll?', entrevista de J.-L. Bois­sier concedida a [érôrne Glicenstein, publicada na revista Parachute, n? 85(1997).

Acrescentemos que, em nossa opinião, os usuários de

redes, interatores dos sites, editores de páginas na Web po­

dem ser considerados críticos permanentes e, na medida

em que intervêm, críticos influentes. O que desloca um pou­

co mais ainda para cima a definição da crítica e do crítico;

com efeito, aquele que interage, que é co-autor, e que, por­

tanto, está na origem da obra, é também aquele que, intera­

gindo, a critica. O 'fazer crítica' seria então contemporâneo

da obra no sentido estrito: simultâneo.

Mas, antes que esse papel, essa definição, esse lugar no

circuito de produção de arte sejam reconhecidos, aceitos e

sobretudo experimentados, uma crítica positiva das novas

tecnologias, mesmo que muito parca, faz-se sobretudo re­

correndo às grandes visões do mundo, à ideologia do pro­

gresso, da democracia e da técnica, na qualidade de ajuda à

Page 71: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

143TEORIAS DA ARTE

um julgamento moral: elas não devem nem chocar o bom

gosto, nem ferir o bom senso, que é, como se sabe, o senso

moral, mas, ao contrário, devem servir às luzes da razão e

guiar as consciências no bom caminho. a que os censores

da Academia Real fazem, no início da operação, para discri­

minar as obras que serão apresentadas e as que serão recusa­

das, o crítico repete na outra ponta da cadeia, comentando e

escolhendo ele também dentre o que está exposto.

Sabe-se que, para os filósofos iluministas, todo espetá­

culo é em si perigoso pelo exemplo que dá e ao qual o brilho

da arte acrescenta um encanto pernicioso. A teoria moral de

uma obra de Rousseau é a prova disso, mas ela permanece

teórica (sem exemplificação), ao passo que Diderot coloca-a

em atividade ao comentar as obras expostas nos Salões.

Essas obras, pois, precisam ser devidamente esclareci­

das pelo filósofo e endereçadas ao público. Esse endereçamento,

que algumas vezes adquire ares de regeneração, é a maneira

de agir da crítica. Éassim que Diderot vê seu papel (que é de

ver e fazer ver) ao mesmo tempo que ele vive. Entre o ver e o

viver, a relação deve ser equilibrada, e é quanto a esse equi­

líbrio que os Salons, o Traité du beau, o Eneaios sobrea pintura"

amoldam-se ao leitor-espectador.

a que vem a ser essa relação? Seria possível responder,

um pouco apressadamente, que é aquilo que dá conta do

8. Denis Diderot, CEuurt'S t'StJzétiqucs (ed. Iuulvemiêres, Carni er-Flarn­marion,1 966).

II~

li

\

rI

li11ti'I

ANNE CAUQUELIN142

li

gente do teatro. E, uma vez que toda arte tem seu começo atri -

buído a alguém, concordou-se em designar Denis Diderot

o primeiro dos críticosde arte modernos'. Essa escolha de

Diderot como instaurador da crítica é interessante por si mes ­

ma, pois mostra bem o que esteticistas, artistas e público es­

peram da crítica: b art tant _~

~~orcnt

fii&itrymffiCrrã-pafttr i' e'ifiTj objetocom~~pmo:cm~~- tõio:Iõil

A instituição do 'salão', exposição oficial realizada a

cada dois anos (exceto algumas interrupções) desde 1667 e

cuja entrada é gratuita, torna públicas as obras, subtraindo­

as por assim dizer da contemplação privada dos únicos pro­

prietários afortunados, mas coloca-as também à prova de

cemem:en-d9,!tal !Z1TQ~te- .

.do e:de:tIm~

. ti -U'd , m~sumã;

.7. 0 _que, co~.o tod~ a~ribuiç~o, é um tanto injusto: a crítica, ou seja,a teorízaç ão da pratica, extstía no século XVII desde os primórdios da Aca -

o dernía Real, PJra distinguir a corporação dos artesãos dos verdadeiros pin-tores, esculíores e mesmo mais tarde dos arquitetos, era preciso que umdiscu.r.:o teórico fosse instituído, pois é a teoria que deve separar simplesopcranos de artistas protegidos pelo poder real. Os acadêmicos deviam,

~ pois, proferir discursos diante da Assembl éia e como exemplo apresentaras obras de alguns de seus membros (os quadros de Poussin serviram as-

I sim de pretext~ .para as primeiras conferências). Temos de Félibien belaspassage.nsde rntlca. (elogiosa) sobre o que ele considerava o exemplo acaba­

"" do de pintor: POUSSIn. Cf. Le« cOIrjfmlCl'S de l'Acndfmie roualc depcinture et desculpture11II XVIII" siêclc (ENSBA, 1996). .

',)

i.' ''','

Page 72: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

~l

14.5TEORIAS DA ARTE

3. Fortúnios e infortúnios do modelo

e o desvio reflexivo devem ser sempre entendidos em suas

devidas proporções. E esse desvio, uma vez bem compreen­

dido, pode consistir em converter um sentido em outro. As­

sim é com o teatro, onde é possível tapar os ouvidos para se

manter atento apenas à dramaturgia, e também com um qua ­

dro, diante do qual se pode fingir ser um surdo que observa

os mudos se expressarem por sinais",

o modelo Diderot, instaurado, não sofrerá grandes al­

terações, mesmo que os termos do paradoxo não sejam mais

os mesmos - a dupla em oposição objetividade/subjetivida­

de substituiu a dupla sentimento/razão - e mesmo que os

termos debatidos - em outras palavras, as hipóteses teóri­

cas em nome das quais o crítico estabelece suas avaliações

- mudem com o tempo.

Ainda que Denis Diderot tivesse realizado a façanha de

ser ao mesmo tempo filósofo, escritor e crítico, dificilmente

reencontraríamos mais tarde uma constelação como essa. A

população de críticos será recrutada sobretudo entre os jor­

nalistas, romancistas e poetas. Os escritos estéticos de Bau­

dela ire, que são textos teóricos, ~companham e sustentam

suas críticas pontuais; Zola e Huysmans, Mirbeau, Proust ou

Mallarmé, Apollinaire e Breton se posicionam e são ouvidos,

ANNE CAUQUELIN144

, '

elo da prática com ateoria, do momento presente experi­

mentado em suas sensações mais diversas, variadas, mutan­

tes, submetidas aos humores e ao gosto, com sua reflexão

no o que busca nelas a aceitação universal.

Ligar, em suma, a filosofia 'sthest5"êl:"i'ãi1SfOnna

sensação de tal maneira que ela se tome moral, ou seja, queela impressione osentimento. Essa mudança, essa conversão do

olhar dirigido de início ao exterior para retomar como avalia­

ção' do espetáculo vivido à visão íntima, só é possível se mu­

nida de uma escala de valores, ou seja, de uma teoria de re­

lações. Para isso, necessita-se previamente de hipóteses.

É assim, pois, que tadSliiifijiãT(3é'iieIiwiêSiffiÇãm!lm1i

Esse mo e o se ap ica a todos os tipos de crítica, mes­

mo que as mais conhecidas entre elas permaneçam nos Sa­

lons. Na verdade, o método críticoé o mesmo, quer se trate de

literatura, teatro, quer de pintura: a impressão do momento

9. Sobre Diderot, a absorção e a crítica de arte , cf. Michael Fried, Laplacc du spcctatcur (Gallimard, 1990).

10. Denis Didcrot, Lcttrc sI/rlessourds et muets, ediçâo crítica de PaulHugo Meyer, 1965.

Page 73: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

147TEORIAS DAARTEANNE CAUQUELlN146

------------------....,..-------- - - - - - _._._- ---'

4. Um caso de crítica muito influente: Greenberg"

Outro modelo poderia substituí-lo? Que fosse mais au­

toritário, com uma influência mais direta sobre a produção

dos artistas e suas reputações, escolhendo não mais o para­

doxo diderotista, mas, sim, um dos ramos do dilema: o for­

malismo rigoroso das proposições.

Na articulação de dois movimentos de arte norte-ame­

ricanos, que a essa época (1950-1970) se podem qualificar de

Enquanto dura a possibilidade de uma descrição ende­

reçada, ou seja, moralizada, porque o sujeito a ela se presta

com a figuração,depois com o lento movimento de abstração

que também pode ser descrito, o modelo de Diderot desem­

penha seu papel: ele mantém o balanço exato entre subje­

tividade do crítico (entusiasmo, emoção, moral do belo) e

objetividade (informação precisa, ensaio de classificação,

proposições teóricas). Mas esse modelo toma-se inutilizá­

vel diante da arte contemporânea, pois, de fato, o crítico não

pode manter a posição paradoxal do modelo Diderot, me­

tade descritivo e racional, metade sentimental e apreciativo.

Sobretudo com a arte tecnológica, como mostramos artes,

nem o sentimento ou a moral, nem o endereço ou a iI:lter­

pretação se sustentam.

13. Clement Grccnberg, Art et culturc. Essaiscritiques (Maculá,1988);cf. também Nicole Dubreuil-Blondin, La fonetion critique dans le pop artam éricain (Presses de l'Université de Montreal, 1980), e Thierry de Duve,ClementCreenberg entre les ligne« (Ed. Dis Voir, 1996).

mas o trabalho de base é realizado pelos redatores, e os de­

bates s50 feitos entre jornais e revistas, artigos e relatórios de

exposições. Pouco a po~co a crítica se toma um ofício, en­

quanto o crítico é o intermediário entre artista e público, e a

imprensa passa a ser o órgão de transmissão obrigatório".

Assim, ao contrário do que ocorre com as teorias pro­

priamente ditas assinadas com brilho pelos nomes de filó­

sofos, excetuando-se algumas assinaturas célebres, é uma

multidão de jornalistas e articulistas, de nomes mais ou me­

nos caídos no esquecimento hoje em dia, que faz e desfaz a

cotação dos artistas. Eles lutam em suas fileiras e orientam

definitivamente o trabalho do pintor e o gosto do público.

É todo um meio a envolver desse modo o trabalho da arte,

meio que milita, luta, se dilacera, invectiva e no qual estra­

tégias e artimanhas são lei. Sempre nos surpreendemos ao

saber que Gauguin era um esperto estrategista, "atuando

ao mesmo tempo como Mirbeau para o grande público e

como Aurier para os círculos literários; ou que Redon pre­

cisa de Huysmans, mais útil do que Hennequin, a quem

abandona quando tem seu reconhecimento assegurado",

que Pissarro, por sua vez, permanecia fiel ao velho sistema

de uma crítica dividida em dois campos, o oficial e o da crí­

tica independente".

1I : Lionello Venturi, Histoire de la critique d'art (Flamrnarion, 1969);Northorp Frye, Anatomie de 111 critique (Callimard, 1957); J. -r.Bouillon, N.Dubreuil-Blondin,A. Ehrard, C. Naubcrt-Riser, Lapromcnade du critique in­

liucnt (Hazan, 1990).12. Ibid., pp. 1 97~9 .

Page 74: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

~...

149TEORIAS DAARTE

1. Nos Estados Unidos do pós-guerra, mesmo que haja

colecionadores e galerias, o número de críticos de arte é res­

trito, e seu concurso é muito solicitado, pois os movimentos

artísticos andam tão depressa que marchands e coleciona­

dores sentem-se perdidos: falta-lhes um guia que marque

com sua chancela (e é freqüentemente um nome, uma eti ­

queta) um certo tipo de procura artística e o grupo de artis ­

tas que o praticam.

2. O crítico então não é mais apenas um jornalista que se­

gue os acontecimentos e escreve artigos na imprensa especia­

lizada; ele deve teorizar a prática, mais exatamente escolher

teorizar lima prática, e para isso impor-lhe um nome: é o caso

de Greenberg com o nome de formalistas. dado por ele a 'seus'

artistas. A prática da crítica, entendida dessa maneira, tem

também, como toda arte, sua especificidade e, na qualidade de

disciplina, deve criticar-se a si mesma. Permanecer vigilante.

3.Ter 'seus' artistas, o que significa, de um lado, patroci­

nar um movimento, ser o primeiro na hierarquia e o inventor,

de outro promover e colocar seus simpatizantes no cenário

internacional: o crítico faz seus pintores, o que quer dizer

que faz também seu público, que tem suas revistas, seus con ­

tatos com as galerias etc. Enquanto Castelli, o grande gale­

rista norte-americano, que também 'faz' seus pintores, nem

sempre consegue impor suas escolhas, Greenberg, por ou ­

tro lado, trabalhando em um nível superior, cria seus sim ­

patizantes, ou seja, cria as condições para o sucesso de seus

pintores. De fato, ele governa um mundo.

ANNE CAUQUELIN

ord consí-

vanguarda, Clement Greenberg é o 'teorista' (um tanto ter­

rorista também) do afta abstract expressionism ou modcmisi

painting. O maior crítico do século XX segundo alguns", o

deão dos críticos do pós-guerra na opinião de Rubin ", co­

meçou por impor a pintura norte-americana, destronando

a Escola de Paris, com a action painting, da qual se faz o de­

fensor e promotor; depois teoriza a pintura niodemista, o

que em seu vocabulário significa vanguarda, mas também e

sobretudo retorno à verdadeira essência da pintura, sua sin ­

gularidade, sua identidade: a planeidade. Com efeito - e este

é seu aporte teórico -, .. 'dape

gua 1 ta-sed

14. Thierry de Duve, op. cito . , .15. William Rubin , citado por lrving Sandler, Lctriomphc de Iar!amc-

ricain, t. 2: Les année« soixantc (Carr é, 1990).

148

flSEZ!ifii!iai8ã1 Ninguém pode negar que a especificidade

da pintura, sua mídia (seu local próprio), é a bidírnensiona-

. lidade; assim, ser pintor é trabalhar o mais perto possível des­

sa bidimensionalidade, reconhecê-la, deixá-la expressar-se

em toda a sua pureza. /I ( ...) a essência do modernismo está

relacionada ao uso dos métodos característicos de uma dis­

ciplina com o objetivo de criticar essa mesma disciplina" .

A influência então exercida por ele (que é tido como 'fa­

zedor de reis') deve-se a diversos fatores:

Page 75: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

. 16. Bárbara Rose, 'Thc primary of color' , Art intemational, maio de964, citado por lrving Sandlcr, op. cit.

151TEORIAS DAARTE

terpreta paralelamente toda a tradição da arte moderna co­

locando o período presente na mesma fase do passado.

Vê-se com isso a inflexão que o crítico impõe ao traba­

lho de 'seus' artistas e dos que, atraídos por sua importância,

tomam-se formalistas para ser defendidos por ele ... É nes­

se sentido que se pode falar dos 'efeitos reais' de uma prá­

tica teorizada como a exercida por Greenberg, teórico, no

domínio da arte em geral: artistas, bem como galeristas,

marchands, críticos de arte, historiadores e esteticistas,

Subjetividade de escolhas, objetividade de estruturação,

o crítico não pode escapar a essa dupla tentação; o principal é

fazer passar a primeira ramificação da contradição peloselo

da segunda... e Greenberg foi decerto um mestre nesse jogo.

O que nos importa mostrar aqui, contudo, é menos a m ànei­

ra um tanto ardilosa de alcançar esses fins, ou seja, de exercer

um poder real sobre o trabalho dos artistas, e portanto so ­

bre a história da arte, do que a real necessidade da teoriza ­

ção; tal necessidade é, por outro lado, dupla, pois encarre­

ga-se da teoria da crítica (como praticá-Ia, o que deve ser uma

'boa' crítica) e da prática artística, que é seu objeto.

Essa estruturação é útil aos críticos que quiserem se

tomar 'influentes' e reconhecidos, mas é negligenciada por

críticos menos exigentes que se contentam em fazer de al­

guma maneira publicidade deartistas.Atitude evidentemente

tida na mais baixa conta por alguém como Greenberg, que

a trata de jornalística e que, é preciso confessar, é a atitude

mais comum.

'Iri

il#l

11

ANNE CAUQUELIN150

Pois o trabalho teórico é dosado do poder particular que

é ser considerado 'objetivo', alheio a caprichos, humores e

gostos subjetivos. A teoria coloca Greenberg ao abrigo de

disputas sobre o gosto. Ele pode mesmo afirmar que o mau

gosto é uma qualidade e pretender apoiar o trabalho de pin­

tores pelos quais não tenha nenhum apreço. Em suma, essa

declaração sobre a forma da crítica - o que ela deve ser for­

malmente - vem redobrar a especificidade do conteúdo da

sua crítica, que parte para a guerra contra o subjetivismo, o

expressionismo do gesto (mesmo que seja expressionismo

abstrato), contra o painterlu, e vê nisso uma etapa que foi ul­

trapassada em direção a seus próprios limites, em direção à

abstração post paiuterlv, de estilo staincd colar field, plano e

sem nenhum relevo. Com isso, a crítica remete à história da

arte como contexto indispensável e se coloca ela mesma dire­

tamente, com o movimento que ela envolve e assina, dentro da

história, em suma, dentro da tradição em marcha. Barbara

Rose, que foi no começo discípula de Greenberg, fala da li ( • • • )

nova consciência que o crítico tem de seu papel histórico, de

seu desejo de ser assimilado ao estilo que a história consa-

";grará como a vanguarda de um período determinado".

" Ele trabalha, pois, ativamente, junto com seus discípulos,S:1i:\{

i.~~~os 'Grecnbergers', Michael Fried e Rosalind Krauss, para con -k'" , ,\.~"{:l

}r": sagrar glórias presentes: Louis, Noland e Olitski, mas rein-

Page 76: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

152 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 153

A esse respeito, pode-se arriscar a hipótese de que a

afluência de críticos chega a formar um verdadeiro meio

próprio da arte, um microcosmo com suas leis, sua divisão

de papéis, seus órgãos de difusão, alianças, batalhas e trai­

ções, estratégias, vitórias e derrotas, e que o meio assim cons ­

tituído facilita (se é que não promove) a ocorrência de um

número sempre crescente de movimentos artísticos, de obras

novas, essa agitação cada vez mais viva que caracteriza os

primórdios do século XX.

Seguindo essa hipótese, seria possível ver no mundo

da arte atual a busca e a aceleração desse movimento da crí­

tica, por sua vez ligado ao crescimento do número de expo­

sições, de galerias, de eventos públicos, e, em suma, à exten­

são do mercado, que tende a encobrir ou até mesmo abafar

as obras que pretende promover com seu constante e obri­

gatório comentário, a ponto de tomá-las invisíveis.

O movimento da obra para sua crítica - que parecia

tombar sob o sentido, a obra exposta à espera do comentário,

como era o caso dos Salões, boletins da Academia publicados

após cada exposição - estaria parecendo inverter-se atual­

mente: o crítico estilo Greenberg produziria de alguma ma­

neira a obra, em vez de contemplá-la tão logo pronta.

Em conclusão, como observamos em relação às dificul­

dades de constituição como crítica da nova crítica, a necessi­

dade da teoria se faz sentir agudamente: quando não é en­

contrada onde deveria, quando não há nenhum princípio

nem critério para avaliar, julgar ou colocar no lugar, dois fe-

Ô enos ocorrem simultaneamente em relação à crítica:

por um lado, o silênciô e, portanto, a esm ao; por

outro, um discurso geral de tendências, que inicia debates "

de sociedade nos quais - e isso não é um acaso - é colocada

a questão do sentido ou do não-sentido da arte, questão

sem verdadeira resposta - ou que pode ser solucionada so­

mente como a questão do movimento: caminhando.

-....! OIS modelos, o de Diderot e o de Greenberg, em ­

bora continuem ae fato a trabalhar como modelos dentro

! o imaginário crítico, são cOr'ftudo mal adaptados às cxigêp - .~.l.(cias de uma crítica contemporânea, que fale de uma arte con- ~

temporânea em processo de se fazer. Oprimeiro por ue seu­

'endereçamen oão p-cCl mais ocorrer, seu alvo (o bur-

guês culto) não e~tá mais em condições de trazer' baila ôSconneClmentos a qum os, os ue lhe foram úteis e os ue

ain a sao; ou então porque a crítica, caso continue 'sendo

feita, aceitando o endereço, obtém um resultado muito redu-

"Ziao em relâ'Ção ao alvo visad~, ue é a comunidade, maci a­

mente. eu passeIO po e, pois, ser atraente e de bom-tom,

mas fica inteiramente à margem do que está acontecendo.

O segundo porque a autoridãa;ae que fez prova na quali -

J ade de 'fazedor de reis' era exercida sobre um psqueQo

número de pessoas, trabalhando em conexão cerrada, den­

: trõêIõ"mesmo'*mundo; ora, repetir essa dominação passa a

ser improvável diante do número, da diversidade e da hibri -

dação ou mestiçagem das práticas atuais.-

Page 77: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

154 ANNE CAUQUELIN

•;.

TEORIAS DAARTE 155

11. UMA PRÁTICA QUE É PENSADA OU

'ISTO NÃO É UM LNRO'

Desde os 'cadernos' de Da Vinci, da correspondência

de Poussin, do diário de Delacroix, os textos de artistas vêm

se tomando numerosos, adquirindo direito de cidadania no

domínio da estética (como as obras de seus autores, eles es­

tão dentro do sítio), mas de que direito se -trata? Qual é o es­

tatuto desses textos? Justificativos, explicativos, pedagógicos

('cursos' professados, como por exemplo os do Bauhaus),

tratados (por exemplo, os de Kandinsky)" ou de interesse

documental para futuros historiadores da arte (por exem­

plo, as cartas ou os 'apontamentos' de Dürer), da categoria

da confissão e da meditação ('apontamentos', diários) ou pro­

mocionais e polêmicos (textos para catálogo, manifestos,

respostas a entrevistas), to t ~QS tístas é di-, '

.' , ,p'I ' OUI~osfácios,

- ao 'dicas

areçe re-

~amiimillll~_mm~2l21~!1qUmse~meles~uea

Épossível su numa primeira abordagem e-o ex-. 5 para uso público são diferentes dos textos para uso prí­

.l:·jado (correspondência ou diário): os primeiros visam a uma

, I justificação, sendo argumentação e explicação exteriores à"~ ' 17. Wassily Kandínsky, DII spiritucí dans l'art. e/ dons la peinture ell

' /'f'rticúlirr (Denoe1, 1989); fuill/, liglle, plm~ (Denoél, 1970).

obra propriamente dita, e estariam destinados, voltados ao

exterior; os segundos seriam notas escritas para uso pró­

prio, rascunhos, rasuras, monólogo interior; fariam parte da

obra a título de um movimento interno de reflexão, indis­

pensável à prática de uma arte (nesse sentido, as rasuras e

correções dos manuscritos de Flaubert são textos 'privados',

do interior da obra, sendo, de certa maneira, comentários

sobre ela). Mas essa distinção cede diante de uma necessá­

ria ambigüidade: como julgar por exemplo as cartas de Pous­

sin? Elas servem a dois usos: o epistolar não pode ignorar o

que deve ao pintor nem que deve trabalhar para seu reco­

nhecimento como pintor. Ele é a mídia útil, o intermed~ário

obrigatório. Por conta disso, submete-se a ele, trabalha para

sua glória ou para seu conforto. Mas, inversamente, não se

pode pretender também que a formulação, a verbalização

das questões colocadas pelo eu-pintor ao eu-escriba, modi­

fique a ordem das prioridades? O pintor seguiria então os pre­

ceitos que o escriba estruturou... na realidade não se sabe qual

dos dois faz obra nem como é partilhada a invenção.

esse entremeio que o-do.a.ttista.asscgllra' ....

termediação entre o não-verbal e o verbal, de maneira a jun­

tar os dois. O título de um texto recente de Noel DólIa, La

parole dite parum ceil", coloca singularmente em perspectiva

essa ambigüidade, na qual siste, dizendo "ma

18. Noel Dolla, La parole di/e par /Im a:i1 (Ll-íarmattan, col. Esthé­

tiques. 1995).

Page 78: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

157TEORIAS DA ARTE

,no período recen­

te, não mais existirem obras sobre a arte que não recorram aos

escritos dos artistas mais do que aos trabalhos de historiado­

res ou de esteticistas. Os livros de Kandinsky, os de Klee, de

Mondrian, de Malevitch, Matisse, Magritte, os dos land ar­

tists", ou ainda de Barnett Newman, de Rodtchenko, de Rei­

nhardt, de De Kooning parecem falar deles mesmos. A moda

é o retorno à origem, e o documento funciona como prova.

"Você dirá: eu não quero falar das palavras mas apenas

das coisas, eu responderei que, embora você só queira fa­

lar das coisas, isso só será possível com a mediação das pala­

vra . u de outros signos","

É, nesse caso, a o texto que permite ver, que

torna a coisa (obra) visível; é a argumentação, a teoria que se

vê sob a forma que adota, na aparência de sua quase-invisi ­

bilidade. O texto do artista adquire um estatuto inteiramente

diferente ou, mais precisamente, o traço que o unia até pou­

co tempo, de maneira bastante frouxa, à obra reforça-se, tor­

na-se necessário, passa a fazer parte do dispositivo artístico.

Dispositivo que tende cada vez mais a tomar a forma de u'fêff();,{jbfeJõl

ANNE CAUQUELIN156

Como saber qual dos dois fica em primeiro lugar, palavra ou

olho, visível com a condição de ser pensado, ou pensamento

com a condição de visibilidade? Distinção tênue e que muda

com cada artista, cada movimento artístico e provavelmen­

te também a cada época e cada 'moda' teórica. (A atual im­

portância das análises lingüísticas tem alguma relação com

o abundante florescimento de textos de artistas.)

É de tal maneira tênue que a obra torna-se abstrata,

não responde mais aos cânones das teorias fundadoras e es­

capa à interpretação disciplinar e até à investigação dos crí-

ticos. P o

o

iàl.ituaiill.mDJ1Lirrimiiiüwritj1FqpnmõuniJÉ ela, a coisa, que tem

necessidade de visibilidade (a possibilidade de ser vista por

um público), e para isso é preciso que seja transportada para

o registro do escrito, do 'dito', e portanto da leitura.

19. René Magritte, Écrits complets (Flamrnarion, 1979).

20. Guillaume d'Ockham, Écrits surleprcmierliure dcs sentcnces, cita­do por [o êl Biard, Guillaume d'Ockham, logiqilcctphilosoplt íe (PUF, 1997).

* Landart: movimento artístico nascido nos Estados Unidos em 1967­1968, sob o impulso de um grupo de artistas que pretendiam dissociar prá ­ticas artísticas e produção de objetos. Surgiu também na Europa ao mesmotempo que as diversas revoltas estudantis, o triunfo da pop musice iIS primei­ras comunidades hippies. (N. de T.)

------------ - - - --

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._- ........------- - - --- --- - - - - - - _.-.

158 ANNE CAUQUELlN TEORIAS DAARTE 159

ria da história, que deveria se contrapor mas que na realida­

de se junta, e a hipótese, metafísica, de um mundo invisível

que nos cerca e nos instiga a descobri-lo, mesmo diante do fa­

to de que o sublime por definição é indizível e informulável...

Assim, o que à primeira vista pode parecer opiniões va­

gas, humores, gostos pessoais, em suma, o que não se dis­

cute, como diz o ditado, sujeito a modificação, sem bases

bem fundadas e onde nem sequer se cogita encontrar qual­

quer teorização, é na verdade uma espécie de resumo de teo­

rias mescladas, que o hábito tornou naturais, evidentes, ou

seja, implícitas.Para captar o aspecto 'teórico' dessa opinião da qual se

fala tão mal, temos de repensar a natureza da doxa, seu papel,

sua utilidade e o tipo de conhecimento de que se vale. Com

efeito, quando se fala de opinião e de tantas acepções diver­

sas, esquece-se a origem dessa espécie de julgamento, origem

que, no caso, é a doxa, noção em geral vista como oposta ao

logos e possuidora de todas as características de um mau logos,

de um logos errático, pouco seguro, degradado, que é preciso

soerguer. Para a filosofia clássica, é o último degrau do conhe­

cimento, o conhecimento por 'ouvir dizer'. O ponto onde a

teoria fracassa em ser compreendida e onde o falatório, o 'fa­

lar sem dizer nada', substitui o desejo de conhecimento" .

m. O RUMOR TEÓRICO

..Das teorias de fundação às teorias de acompanhamen-

to, aos escritos de artista-s e de críticos, o discurso envolve a

prática da arte. Mesmo considerando, como muitos, que essa

prática seja pura intuição e inspiração, não-conceitual e não­

intelectual, a teorização está sempre presente, teorizando jus­

tamente essa ausência voluntária de teoria. Isso pode parecer

um sofisma, como também parece paradoxal o casamento

'rumor-teoria'...

respei o o primeiro ponto, contudo, considerando

atentamente a aparência espontânea do artista, sua sensi­

bilidade, seu 'gênio', a maneira como ele não 'reproduz o vi­

sível, mas, sim, toma-o visível?', percebe-se até que ponto

existe, não uma constatação, algo óbvio, uma evidência in­

contornável, mas, ao contrário, como pano de fundo, uma

teoria que irriga e orienta essas proposições. Elas erigem-se

com efeito sobre um fundo filosófico, um misto de plato­

nismo (reproduzir é ruim, pois nos afasta da verdade) e de

neoplatonismo (tomar visível o invisível é glorificar o Um;

. o homem completa e aperfeiçoa a natureza de maneira na-. ~

tÓ, tural). Na qualidade de teoria ambiental, vimos essas pro -

. posições no início deste trabalho. A elas se misturam uma,teoria do gênio herdada de Kant e do romantismo e uma teo-

21. Paul Klee, 'Credo du cr éateur', em Théorie de l'art modeme (De­, noêl-Gonthier, 1971).

22. No que se refere à do xa e sua relação com a arte, cf. AnneCauquelin. Ean du lieu comrmlTl, du baTi usage de la doxa (Le Seuil, 1997).

:'

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160 ANNE CAUQUELlNTEORIAS DAARTE 161

1. A doxa, nascimento e usos

Se nos baseamos na tradição clássica, doxa é o nome

de um conhecimento de primeiro grau, o mais baixo: o que

põe em cena o 'ouvir dizer, o que se escutou falar, que se

recebe e aceita como um ruído, ou que é emitido como pura

aparência. Poder-se-ia mesmo dizer que não se trata em

absoluto de conhecimento. Essa má opinião acerca da doxa­

como-opinião se transmitiu com constância ao longo dos sé­

culos, é encontrada em Spinoza no CourtTraité, expressamen­

te colocada em último lugar, e acompanha nossas próprias

opiniões - ditas 'pessoais' sobre a opinião (e veremos o quan­

to esse qualificativo de pessoais é errôneo...) -, dotando-nos

assim de uma opinião dóxica sobre a doxa.

Mas, ao reconsiderarmos esse tipo de 'conhecimento',

nós o encontramos ligado a uma configuração específica que

alia tempo, lugar e papel social, e que compreende, a esse

título, um dispositivo de transmissão da memória, do saber

adquirido e dos métodos de aprendizagem.

Esse tempo e esse lugar são os da cidade antiga. E, de

fato, a doxa não é concebível fora da comunidade urbana e do

que ela oferece como pluralidade de classes, de ofícios, de or­

ganizações administrativas, de povos e de línguas diversas.

A doxa nasce com a polis, à qual é indispensável. Por quê?

Porque o funcionamento da cidade necessita da diversidade

de ofícios e de saberes, e por isso mesmo, por um lado, de

modos de conhecimento distintos, de linguagens distintas,

e, por outro, de uma linguagem comum compreensível por

todos e que una os membros da comunidade, permitindo­

lhes falar entre si e participar de uma cultura comum ':" es ­

pécie de reservatório de memória - dentro da qual eles pos­

sam buscar o que bem entenderem.

De que forma a doxa assegura esse duplo papel?

Primeiro, pelo fato de ser o modo de saber apropriado

a certos ofícios, portanto uma linguagem especializada: tal

é a linguagem de todo artesanato, de todos os ofícios em

que a prática é mais importante do que a especulação in­

telectual. Trata-se de receitas empíricas, de termos de ofício,

de um saber consignado em listas e em acrescentamentos, de

práticas aperfeiçoadas ao longo dos anos, transmitidas pe­

los mestres a seus aprendizes, e não de construção teórica.

É, pois, um saber dóxico, que pode mudar - e ao longo do

tempo, e segundo as escolas-e os mestres -, mas é ainda

assim um saber e muito útil à cidade. O que faria ela sem

médico, sem arquiteto, sem marceneiro nem oleiro, sem gi­

nasta nem músico? Todos aprendem seus ofícios por inter­

médio dos ouvir-dizeres, espécie de corrente que passa de

mestre a mestre. Nada de universalidade, pois, nada além do

particular e, assim, nenhuma 'ciência' propriamente 'dita.

Esta é reservada à teoria e aos teóricos, ou seja, aos filóso­

fos, que detêm esse estranho' poder de dizer a verdade, o

bem e o belo, e de dizer também, na mesma ocasião, que a

doxa e os doxistas não o podem fazer. A estes cabe apenas

dizer o verossímil, o que se parece com a verdade, trabalhar

na esfera da ilusão e da diversidade das aparências.

.1.

Page 81: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

Contudo, considerando a importância dessas dóxai, que

tecem no seio da cidade uma cadeia de palavras particula­

res, chega-se a dizer que.rem termos de ligação útil, a doxa

ultrapassa de muito a palavra isolada, elitista do filósofo,

ainda que uma seja particular e a outra, universal...

2. Transmissão do elo e lugar-comum

É que também são mulheres e crianças e algumas ve­

zes escravos os detentores da palavra dóxíca, e a linguagem

deles, esse contínuo ruído de fundo, é o bem e o elo co­

mum da comunidade. Claro, trata-se de falatórios, palavras

à-toa, palavras ao vento, mas também, e ao mesmo tempo,

o fundo memorável da educação, do aprendizado do povo

e da comunidade.

' 1 Preceitos, lendas, superstições, histórias e História se

~ misturam em um constante rumor, enfeitadas com miga­

lhas de saber, de receitas privadas, de conselhos e opiniões,

remédios caseiros, diz -se.

Podemos nos perguntar qual é o cimento que mantém

juntas essas migalhas de saberes, mas, se consideramos real­

~ente apenas viáveis e transrnissíveis as organizações con ­

ceituais, não temos como não desprezar essa disparatada

;,:.colcha de retalhos. Mas a lógica das deduções silogísticas

, I:que comanda a montagem desses fragmentos heteróclitos

.. ,é inteiramente diferente, e há que reter prioritariamente no

.. :" ~lín imo uma de suas características: essa montagem é ex­

.. .tremamente sólida, resiste a todas as críticas e manifesta uma• ~ .t1

j, ....1 li

vitalidade a toda prova. Será necessário perguntar-se qual a

causa e o que a toma tão indestrutível. Contudo, será neces ­

sário também indagar-se a que uso essa montagem se des­

tina e se é preciso, como apregoa o logos da lógica, reorga ­

nizar sua desordem ou deixá-Ia em sua inconseqüência.

A solidez da doxa se deve curiosamente à sua extrema

maleabiJidade; a doxa está entregue à apreciação de indiví­

duos, sem doutrina para fixar seus contornos; e as opiniões

dóxicas se adaptam com efeito às circunstâncias; daí seu as­

pecto mutante ao mesmo tempo em que os traços caracte­

rísticos de seu exercício permanecem constantes. Veremos

assim, em relação ao que nos diz respeito - a atividade ar­

tística -, a doxa adaptar-se às novas condições da prática da

arte, mesmo que pouco a pouco e com certo atraso em re­

lação à própria prática (Picasso tomou-se um 'clássico' da

doxa, que fez dele um de seus ícones favoritos).

Da mesma maneira, essa solidez se deve ao fato de a

doxa não proceder de uma transmissão institucional: suas

proposições não são estudadas em livros; ela não é lida em

textos, ela é escutada, ouvida como um ruído de fundo ao

qual não se presta atenção; por isso escapa à análise e por­

tanto à crítica. E, além do mais, como criticar, com os crité­

rios clássicos que menosprezam a contradição e a incoerên­

cia, alguma coisa que desde logo se coloca como incoerência

e contradição?

Enfim, essa doxa é um resumo (pejorativamente, diría­

mos um 'amontoado') de lugares-comuns. É a esse uso que

163TEORIAS DA ARTEANNE CAUQUELlN162

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ela é destinada, e é esse seu papel principal. Os lugares-co­

muns são as proposições e crenças comuns que se instalam

por repetição e forjam os hábitos de pensar, de sentir e de

perceber. O que se denomina 'cultura'. Sendo 'lugares', es­

sas proposições podem ser detectadas da mesma maneira

que os 'lugares' ou topo; da retórica antiga. Eles reúnem,

com efeito, os dispositivos de argumentações possíveis se­

guindo os sujeitos, as paixões, os julgamentos, os atos, as in­

tenções, as causas, as presunções etc. Um bom retórico se

serve desses lugares para passar em revista todas as possibi­

lidades de defesa ou de ataque e os combina entre si de modo

a orientar seu discurso: essa orientação dentro do labirinto

dos topo; é o que se chama de sentido. Na expressão lugares­

comuns, se lugares designa perfeitamente os 'pacotes' de sen ­

tido, comuns designa, por sua vez, a partilha desse sentido

entre todos os que formam a comunidade: o 'bom senso' é

o resultado da aceitação e da afirmação repetida desses lu-

. gares-cornuns. O trabalho da doxa é visto a partir de então

como trabalho de coesão social; ela oferece a todos sua tra­

ma bem tecida, sem exceção, e esses 'lugares' apresentados

por ela ao entendimento de todos nos tomam capazes de nos

entendermos uns com os outros.

Assim, a cultura é exatamente esse tecido de lugares­

comuns costurados pela doxa, aos quais todos aderimos em

uma dada comunidade. E nada mais do que isso. O que é

posto à disposição de todos nos lugares-comuns? O patrimô­

nio recebido e retransmitido das 'idéias prontas' sobre a vida,

164 ANNE CAUQUELIN TEORIAS DA ARTE

a moral, a arte, o belo, o verdadeiro, a ciência, o progresso, a

democracia... E esse 'amontoado' não tem nenhum rigor de

montagem, a não ser o fato de poder ser inteiramente repen­

sado, de poder passar pelo crivo da razão por um teórico...

(acontecimento pouco provável,dado que esse conjunto é so­

lidamente tramado e resistente à dissolução crítica: o mais ar­

guto dos teóricos,o maior dos pensadores, considerará conso­

lidadas longas listas de doxa, desde que não digam respeito à

abordagem das questões de que estiver tratando). Contudo, é

justo essa trama que liga os diferentes grupos dentro de uma

comunidade de cultura que compartilha os mesmos valores. E

se é assim no que diz respeito à idéia (e à crença) que compar­

tilhamos sobre a ciência (seu progresso), sobre a democracia

(sua necessidade), sobre a moral (inclua-se a do altruísmo, do

anti-racismo, da liberdade, da igualdade e da universalidade

dos direitos), a mesma coisa ocorre em relação à arte (mesmo

que, no caso, as proposições sejam menos claras).

Eis portanto a doxa dando lugar aos lugares-comuns so­

bre a arte. Detenhamo-nos por um momento nessas pro­

posições e vejamos como elas são oriundas e tecidas a par­

tir das teorias que vimos passando em revista até agora.

~ As proposições dóxicas sobre a arte e usos

- 0 Sobre arte, a proposição comum consiste em admitir

71,sua n~cessidade. A razão : é "" sua prática é uma da~ ""

ractensticas do homem (como nr ou errar) . Éseu apanaglO;

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te

,

Podemos encadear muitas outras proposições de luga­

res-comuns da doxa sobre a questão da arte: eles vêm de

toda parte, de todos os estratos que compuseram lentamen­

te essa vulgata, e o interesse dessa composição é seu poli­

morfismo, sua labilidade e a maneira pela qual ela evita qua­

se inocentemente o princípio da não-contradição. Só para

citar alguns outros exemplos:

- Do platonismo, a doxa retém a clara separação entre arte

e técnica (que Platão nunca fez), a técnica sendo desprezível

pelo fato de ser útil, voltada ao interesse, construída em to:n 0

do particular e não do universal, e vulgardemais para se apro­

ximar da beleza. A arte não deve se comprometer com a téc­

nica, sob o risco de se mecanizar, de se tomar fria e calculista

(donde a recusa da doxa a considerar as artes tecnológicas

como arte). Assim, ela adotou o discurso negativo, antitécnico

e antidóxico de Platão e o confrontou com uma idéia de arte

que, por ter passado por Aristóteles, por Kant, pelo neoplato­

nismo e por dois mil anos de discursos sobre as obras de arte,

carregou-se positivamente de qualidades superiores. O resul­

tado é esse curioso amálgama e essa inconseqüência radical

que faz ignorar a parte técnica do trabalho artístico e ao mes­

mo tempo a exige como prova do valor da obra...

_ Do ncoplatonismo, a doxa mantém a idéia de que a arte

participa do Ser e do Um, que seu valor é o mesmo concedi­

do à alma, e que, ao se celebrar e praticar a arte, está se cele-

,~ 1~ ~~+"~ORIAS DA ARTE

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t

ANNE CAUQUELI . •

-- _._.._- --- -- - - - - - - - - - - - -

os animais não são artistas. Ao homem cabem todas as pri­

mazias, inclusive a seguinte: realizar atos gratuitos não di­

retamente ligados ao interesse (a fome, a sobrevivência), um

ato por nada, pela beleza do ge~to.

À primeira vista, essa proposição nada tem de especial;

nós a recebemos como o enunciado de uma evidência ab­

solutamente natural. Olhando-a mais de perto, contudo, nos

damos conta de que ela se parece estranhamente com um

dos quatro momentos do julgamento de gosto kantiano: o

'desinteressamento'. Ela se parece com ele, mas não é idên­

tica; com efeito, para Kant, trata-se de um dos traços do jul­

gamento estético vis-à-vis um objeto de arte, dentro do es­

paço circunscrito que é o dele; para a doxa, em compensação,

trata-se de uma característica do homem em geral, sem que

a questão seja o julgamento de um objeto especificado.A doxa

transmite, pois, de fato, alguma teoria, mas à sua moda, or­

denando o conteúdo. A generalização é um de seus ardis;

outro de seus ardis, que facilita a transmissão, é falar do ob­

jeto do modo como a teoria falaria de julgamento ou de ati­

tude. Com efeito, da atitude estética que deve ser desinte­

ressada segundo Kant, a doxa passa ao objeto de arte: ele não

, deve suscitar interesse, ele não deve ser consumível nem uti­

litário de nenhuma maneira. Por outro lado, o que para Kant

" '~cabe aos que olham, os contempladores, e que lhes assegu­

ra que estão de fato lançando um olhar estético sobre o queI

" contemplam, a doxa atribui o papel a outro sujeito inteira-

mente diferente, um sujeito único, aquele que faz a obra,

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ANNE CAUQUELlN

brando a Natureza e Deus. E também que a Natureza consti­

tui ao mesmo tempo o valor a respeitar e o objetivo a perse­

guir (é preciso trabalhar para ser natural); é sabido que a natu­

reza (o dom) sem trabalho não vale nada, mas, paralelamente,

a doxa nos diz que o trabalho sem o natural é da mesma ma­

neira nulo. A natureza indica o bom sentido, o caminho a se­

guir, ela é um dos principais lugares-comuns da doxa, mesmo

e sobretudo que não se consiga defini-la. (Seria preciso per­

guntar-se que parte ocupa o lugar-comum nas eruditas aná­

lises de certos fenomenólogos sobre a natureza naturante e

a natureza naturada ...Que natureza é essa que se afirma pela

obra do artista que natura a natureza?) Seja qual for, natu­

reza ou Deus, a arte se compromete com o divino, o sagrado,

e qualquer infração à reverência recebe severas reprimendas.

- Do romantismo e da Escola de Frankfurt, a doxa retém,

embora de maneira antinômica, que a arte deve ser crítica

diante dos valores do senso comum, irreverente diante de

. uma sacralização ou privilégios insustentáveis. É preciso ter

espírito contestador de vanguarda, única garantia da origi­

nalidade desejada. Não se trata mais de natureza, no caso,

mas de invenção crítica, tão longe quanto possível do real.

- De Nietzsche e do romantismo, que o artista é um gê­

nio insólito, acima do bem e do mal. Entretanto, diz ainda

a doxa, é preciso respeitar a moral comum, sob pena de se

ser rejeitado.

- De Schopenhauer, que a arte apaga toda dor, bem co­

mo todo desejo; que o estado de leveza, de falta de peso, é

'j

TEORIAS DA ARTE

desejável, como também a ataraxia. A suspensão fora dos

barulhos da multidão, o isolamento são condições da arte e

da felicidade; contudo, ainda assim, a arte deve comunicar

(Kant), mesmo que o artista esteja isolado, mesmo que se

queira que a arte seja incomunicável e inefável, e que nada

possa ser dito, já que ela escapa a nossos sentidos, assim co­

mo a qualquer explicação.

- Finalmente, de uma verdadeira corrente de pensa­

mento democrático vem a idéia de que a arte deve estar ao

alcance de todos, do senso comum e do bom senso, que é

um lugar comum (no sentido de espaço público), proprie­

dade da comunidade e não de uma só pessoa, que ela faz par­

te da história, ou seja, de nossas memórias (mesmo que nada

saibamos sobre ela, nem sequer que ela existe), e portanto

está ligada ao corpo físico e espiritual da nação, se bem que

por certo - diz ainda a doxa - ela seja absolutamente univer­

sal (embora, sabe-se, a doxa não saiba nada do universal,

nem poderia saber nada, confinada que está no particular).

Todas essas afirmações contraditórias (que não enu­

meramos, seriam necessárias páginas) em nada atrapalham

a doxa, que as mistura, embaralha, retira um ou diversos

elementos quando é o caso de ~taca~ ou defender, exatamen­

te como faria o retórico, a quem ela nada deixa a desejar, Es­

se aspecto desordenado que ela nos mostra faz pensar que se

trata de um falar sem dizer nada, de atirar palavras ao ven­

to, e que são apenas palavras maldosas correndo pelas ruas,

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. _..- _. - - .. . _ ... _•. .._--

- termo que significa pejorativamente humores, caprichos e

gostos individuais sem relação com o razoável, flutuando se­

gundo as variações da moda -, mas, sim, muito ao contrário,

construção pacientemente elaborada nos ateliês do imaginá­

rio, saída de um terreno comum, o dos pensamentos que fo­

ram se formando no contato com as práticas e pouco a pouco

adquiriram, ao se superpor por estratos, o porte de um pa­

limpsesto, de uma estrutura geológica estratificada, muitas

vezes milenar, tão sólida quanto a rocha. Sobre a qual, como

um templo, eleva-se, erige-se nossa inabalável crença na arte.

TEORIAS DA ARTEl-

II1rI;

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rI,I

li

ANNE CAUQUELIN

s quais não se deve dar nenhuma importância, seu despro­

pósito devendo até mesmo ser deplorado.

Ora, ao qualificar a doxa de rumor teórico, no terreno

da arte, quisemos mostrar que não é bem assim, que a doxa

é um gênero de discurso alagas, não absurdo, mas ao lado e

fora da lógica, da erudição e do conhecimento preciso; que

esse discurso é sustentado por um amálgama de teorias,

carregado por sua vez de elementos teóricos numerosos e

absolutamente reconhecíveis sob seus disfarces, contribuin­

do para formar em tomo da arte uma nuvem de sentido (bom

senso e lugares-comuns) que nos mantém em suspensão,

seduzidos, perturbados, e nós mesmos dóxicos a respeito da

arte, da qual compartilhamos simultânea ou sucessivamen­

te todas as perspectivas que a doxa libera.

A doxa simplifica, generaliza, retém uma imagem e faz

dela a alegoria do discurso feito em outros lugares; desliza

de um objeto a outro, troca sujeito contra objeto e vice-versa;

mas a doxa, esse conhecimento difuso que não se conside­

ra conhecimento, que se traduz em geral por 'opinião', tam ­

bém transporta as teorias da arte - todas as teorias da arte

. e seus acompanhamentos interpretativos - em total desor-

dem junto com certas obras (as que estão inscritas no Pan­

, . teão da memória) por meio de um transbordamento de fe­

.~{licidade.; é esse transbordamento que forma na realidade

. nossas crenças sobre a arte, o que nós pensamos que ela é

e deve ser como resposta ao rumor da doxa, atravessada de

um lado ao outro pelo teórico. Não é, pois, tanto 'opinião'

,"·1

Page 86: CAUQUELIN, Anne - teorias da arte.pdf

li

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TEORIAS DA ARTE 177