Cavalos

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CAVALOS UMA CRÔNICA DE ELOÍ BOCHECO

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CAVALOS

UMA CRÔNICA DEELOÍ BOCHECO

Pelos olhos de um cavalo consegue-se alcançar a transparência. Um cavalo olha como quem

simplesmente é, sem os simulacros e encenações da vida ímpia.

Dos olhos dos cavalos caem misericórdias e alentos. Sem que se saiba, estão salvando o

mundo.

Quando estão esfalfados deitam-se e sondam as entrelinhas da paisagem como quem não tem avareza, só o peso das horas sobre o lombo.

Com as patas, imprimem no chão de terra batida,

seus dias breves, um a um desenhados.

Em dias de tempo bom e bastante sol, as borboletas costumam brincar nas marcas das patas dos cavalos. Cheiram as marcas e vão pros voos contentes por haverem capturado do chão certa

força que só ali encontram.

Os cavalos acostumaram-se tanto consigo mesmos que fitam os horizontes sem despeito. Os arremessos dos

cavalos alados não lhes causam gastura.

Não são, no entanto,

conformistas, têm sempre um coice certeiro

pra quem faltar com a

civilidade.

O lombo dos cavalos

ressente-se com o peso

das ruindades humanas. Pesa-lhes

sobretudo a falta de

gentileza com

a vida

Os canalhas e os cínicos da terra têm tudo a

aprender com a inteireza de um cavalo.

Com a noite imensa a alma dos cavalos se

funde a tudo que mergulha no sem fim dos relentos. Diz que é aí que capturam a

luz do vaga-lume cata-sonho, o que só

é concedido aos cavalos e, de século em século, a um ou outro ser humano.

É sabido que o cavalo de Tróia não se interessava por açúcar mascavo; porém, os outros cavalos em geral se esganam diante de um recipiente com a morena porção - nessa hora o mundo estaria

completo não fossem os cabrestos e as cercas de arame farpado.

Ao morrerem de velhice perdem os

dentes e são atacados pela febre puxadeira, que os

leva a procurar uma poça d'água que lhes alivie a sede final e lhes receba a alma; nem assim os cavalos perdem a elegância e

o aprumo.

Da primeira à última hora do dia são puro charme e crina. Pastam a campina como as crianças brincam, sem ciência do

quanto o presente vai ficando antigo nos embustes das estradas.

PS. Dedico estas linhas ao cavalo Pangaré, morto em 10.5.1969, do qual guardo um retrato em preto e branco, já

bem desbotado. -Eloí Bocheco-

Formatação: Nair Adelaide Bunn [email protected]