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    Neste perodo coube, no caso brasileiro, a uns poucos civilistas aaproximao inicial ao contedo conceito, atravs da defesa de uma clusulageral de tutela da pessoa humana com fundamento no art. 1, III, com o que setentava reelaborar o princpio-guia que serviria a reunificar o direito civil.

    Representava, portanto, para os que se dedicavam ao estudo do direito dasrelaes privadas, um passo decisivo, imprescindvel, porque se estava porestabilizar o entendimento da fragmentao da disciplina,2 caotizada numemaranhado de microssistemas, ignorados tanto a unidade do ordenamento

    jurdico como os seus princpios jurdicos gerais, que, porm, desde h muito nomais se podiam encontrar no Cdigo Civil.

    De fato, o descompasso existente entre os conceitos essenciais do direitocivil a sua dogmtica, proveniente de institutos romanos reelaborados pela

    pandectstica e o contexto, inteiramente diferente, em que tais conceitos

    permaneciam sendo invocados gerou primeiro uma crise de identidade,3e depoisuma crise de paradigmas.4

    No decorrer do sculo XX, com o advento das constituies dos Estadosdemocrticos, os princpios fundamentais dos diversos ramos do direito etambm os princpios fundamentais do direito privado passaram, nos pases detradio romano-germnica, a fazer parte dos textos constitucionais. Tambm noBrasil, os princpios gerais do direito civil haviam sido transplantados para otexto constitucional. Por isso, os civilistas que no estavam presos summa

    divisio logo advertiram o papel central que a pessoa humana, a partir danormativa constitucional, havia adquirido. A imprescindibilidade de reconstruoe revalorizao de seus princpios gerais tornava-se evidente.

    , contudo, evidente a insuficincia de se constatar meramente atransposio dos princpios bsicos do texto do Cdigo Civil para o texto da LeiMaior. preciso avaliar a mudana do ponto de vista sistemtico, ressaltandoque, se a normativa constitucional est no pice de um ordenamento jurdico, os

    2 Para esta perspectiva, ver Natalino IRTI. Let della decodificazione. Diritto e Societ, s.n.Padova, 1978, p. 613 e ss.3 V., por todos, Salvatore PUGLIATTI. Diritto pubblico e diritto privato, in Enciclopedia deldiritto, XII, Milano: Giuffr 1964, p. 697, para quem "negata la distinzione (pubblico-privato),si dissolve il diritto. O autor justifica sua posio advertindo que na Alemanha, sob o regimenacional-socialista, a distino fora completamente negada, reduzindo-se o Direito medida daGemeinschaft (comunidade), isto , todo sob o signo do direito pblico.4Neste sentido, alude-se socializao, despatrimonializao, publicizao e a tantosoutros processos que, em comum, evocam a dimenso das mudanas sofridas pelo direito civilao longo do sculo XX. Sobre o sentido do termo paradigma, como se sabe, seu uso atual nocontexto cientfico devido a Thomas KUHN (1922-1996) em sua obra The Structure ofScientific Revolution (1962). Segundo Kuhn, em pocas normais, mais ou menos longas, acincia opera com um conjunto de suposies, ou modelos, conhecido por paradigma, que

    orienta o desenvolvimento posterior das pesquisas cientficas, na busca da soluo para osproblemas por elas suscitados; em perodos excepcionais, ou revolucionrios, o velhoparadigma fracassa (ou decai) e d lugar, no sem disputa, a um novo paradigma.

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    princpios nela presentes se tornam, em consequncia, as normas diretivas, ounormas-princpio, para a reconstruo do sistema de direito privado.5 No sesustenta tal perspectiva metodolgica, contudo, to-somente em virtude daconstruo hierarquicamente rgida dos ordenamentos assim constitudos; vai-se

    alm, reconhecendo, ou pressupondo, que so os valores expressos pelolegislador constituinte que devem informar o sistema como um todo. Taisvalores, extrados da cultura, isto , da conscincia social, do ideal tico, danoo de justia presentes na sociedade, so, portanto, os valores atravs dosquais aquela comunidade se organizou e se organiza. neste sentido que se deveentender o real e mais profundo significado, marcadamente axiolgico, dachamada constitucionalizao do direito civil.6

    A Alemanha foi o primeiro pas de tradio continental a seguir estecaminho, atravs do papel desempenhado por sua Corte Constitucional, como

    guardi dos direitos fundamentais dos indivduos contra agresses provenientestanto do poder pblico como de particulares. O leading case, o chamado CasoLth, deu-se em 1950, quando um proeminente cineasta j desnazificado iriaestrear um novo filme. Erich Lth, ento presidente do Clube de Imprensa deHamburgo, pressionou distribuidores e donos de cinemas para que no oinclussem em sua programao. Sustentava Lth que, caso o filme entrasse emcartaz, seria dever dos alemes decentes no o assistir. O produtor e odistribuidor da obra, ento, processaram-no por perdas e danos perante o juzo

    cvel, o qual, aceitando as ponderaes feitas, considerou aquelas declaraescomo uma incitao ao boicote e contrrias moral e aos bons costumes. O rufoi proibido, com base no 826 do BGB,7de se manifestar a respeito do filme.Lth apresentou uma reclamao constitucional, valendo-se do direitofundamental liberdade de expresso (art. 5 da Lei Fundamental). A deciso doTribunal Constitucional reformou, em favor de Lth, a sentena do juzo cvel econsiderou ter havido, no caso, violao do seu direito liberdade de expresso.8

    S possvel ter-se uma ideia do alcance e da importncia desta deciso,avalia Dieter Grimm, quando se pensa no ordenamento vigente antes do caso

    Lth na verdade, a deciso do juzo cvel no se distanciou um milmetro

    5Pietro PERLINGIERI.Perfisde direito civil, cit., 1997 [1975], p. 35 e ss.

    6Ver, sobre o conceito, por todos: Pietro PERLINGIERI.Perfisde direito civil, cit.,passim, masespec. p. 1-14. Ver tambm Maria Celina BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil-constitucional,Revista de Direito Civil, v. 65, cit., p. 23 e ss. e Gustavo TEPEDINO. Temas dedireito civil. 2. ed., 2001, espec. p. 1-22.7Dispe o pargrafo 826 do Brgerliches Gesetzbuch (BGB, o cdigo civil alemo): Quem,

    contrariando os bons costumes, causar danos a outrem ficar obrigado a indeniz-lo.8Dieter GRIMM. A carreira de uma campanha de boicote (Die Karriere eines Boykottaufrufs).

    Die Zeit, n. 40, 27 set. 2001. Trad. D. Nogueira Leito. Para o inteiro teor desta deciso, ver:BverfGE 7, 198. Disponvel, em ingls, em . Acesso em: 5 jan. 2006. O caso foi julgado em janeiro de 1958.

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    sequer do paradigma de ento: uma lide entre particulares s podia ser resolvidapelo direito privado e, no mbito do direito privado, os direitos fundamentaisno tinham qualquer importncia.9

    Os direitos fundamentais na Alemanha do ps-guerra, bem como no Brasil

    at Constituio de 1988, serviam apenas para que o indivduo se defendesse deuma eventual ingerncia excessiva do Estado. Somente o Estado se subordinavaaos comandos constitucionais, no o indivduo: ... se uma norma do BGB constitucional e ningum poderia duvidar da constitucionalidade do pargrafo826 , ento a Constituio j havia cumprido sua tarefa. Na interpretao eaplicao de uma norma civilista, a Carta Magna no desempenhava papelalgum.10

    Como se sabe, na esfera poltica que, nos Estados democrticos, soreconhecidos os valores comuns da sociedade e estabelecidos os princpios

    fundamentais do ordenamento. O direito constitucional representa atualmente oconjunto de valores sobre os quais se constri, na atualidade, o pacto deconvivncia coletiva, funo antes exercida pelos cdigos civis. O direito

    justamente isto, uma fora de transformao da realidade.11 sua a tarefacivilizatria, reconhecida atravs de uma intrnseca funo promocional,12 a

    par da tradicional funo repressiva, mantenedora dostatus quo.A maior dificuldade do direito tem sido estabelecer um compromisso

    (pacto) aceitvel entre os valores fundamentais comuns, aqueles aptos a delimitar

    os enquadramentos ticos e morais nos quais as leis se inspirem, e os espaos deliberdade, os mais amplos possveis, de modo a permitir a cada um a escolha deseus atos e a conduo de sua vida particular,13 de sua trajetria individual, deseu projeto de vida.

    Toda esta problemtica nos pe diante do desafio de distinguir quais sejamos atributos intrnsecos pessoa humana, cuja proteo o direito chamado agarantir e promover, e de que forma tais atributos devam ser, relativamente,hierarquizados.

    Mas em que consiste a dignidade humana, expresso reconhecidamente

    vaga, fluida, indeterminada?14

    Esta uma questo que, ao longo da histria, tematormentado filsofos, telogos, socilogos de todos os matizes, das maisdiversas perspectivas, ideolgicas e metodolgicas. A temtica tornou-se, a partirde sua insero nas longas constituies, merecedora da ateno privilegiada do

    9 Dieter GRIMM. A carreira de uma campanha de boicote, cit., p. 3.10Dieter GRIMM. A carreira de uma campanha de boicote, cit., p. 3.11Pietro PERLINGIERI. Normas constitucionais nas relaes privadas, cit.12Norberto BOBBIO. La funzione promozionale del diritto (1969), cit., p. 13 e ss.13

    Assim, Sylviane AGACINSKI.Poltica dos sexos. Trad. M. N. Teixeira. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1999, p. 98.14 Fabio Konder COMPARATO.A afirmao histrica dos direitos humanos, cit., p. 1.

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    jurista, que tem, tambm ele, grande dificuldade em dar substncia a um conceitoque, por sua polissemia15e pelo atual uso indiscriminado, tem um contedo aindamais controvertido do que no passado.

    2. O conceito filosfico-poltico de dignidade

    Se no fossem iguais, os homens no seriam capazes de secompreenderem entre si e aos seus ancestrais, nem de prever as necessidades dasgeraes futuras. Se no fossem diferentes, os homens dispensariam o discursoou a ao para se fazerem entender, pois com simples sinais e sons poderiamcomunicar suas necessidades imediatas e idnticas.A pluralidade humana, afirmaHannah Arendt, tem este duplo aspecto: o da igualdade e o da diferena.16

    Ao e discurso so os modos pelos quais os seres humanos se

    comunicam uns com os outros, no como meros objetos fsicos, mas comopessoas. , pois, com palavras e atos, observa Arendt, que nos inserimos nomundo humano.17 A ao e o discurso so tambm as atitudes que melhortraduzem a singularidade de cada ser humano. S o homem capaz de comunicara si prprio, e no apenas comunicar alguma coisa sede, fome, afeto, medo.Todavia, quando se trata de definir, filosoficamente, quem somos, s possvelenumerar qualidades e caractersticas do que somos, revelando-se, ento, anotria incapacidade filosfica de se chegar a uma definio da pessoa humana,de se revelar a sua essncia viva.18

    Esta incapacidade talvez explique a impossibilidade de apreender, semrecorrer cultura e histria, o que especfico humanidade ou condiohumana. A pluralidade humana, conclui Arendt, a paradoxal pluralidade deseres singulares.19

    Para distinguir os seres humanos, diz-se que detm uma substncia nica,uma qualidade prpria, comum unicamente aos humanos: uma dignidadeinerente espcie humana. A raiz etimolgica da palavra dignidade provm dolatim: dignus aquele que merece estima e honra, aquele que importante;

    15 Ingo Wolfgang SARLET.Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, cit., p. 38 e ss.16Hannah ARENDT.A condio humana. 9. ed. Rio de Janeiro-So Paulo: Forense Universitria,1999 [1958], p. 188. Para uma aprofundada anlise do pensamento arendtiano no que tange,especialmente, aos direitos da pessoa humana, ver a interessante obra de Celso LAFER. Areconstruo dos direitos humanos: um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt. SoPaulo: Companhia das Letras, 2001.17Hannah ARENDT.A condio humana, cit., p. 189.18 Hannah ARENDT. A condio humana, cit., p. 194-195. Em igual sentido, Fabio KonderCOMPARATO.A afirmao histrica dos direitos humanos, cit.,p. 3: Na verdade, a indagaocentral de toda a filosofia bem esta:Quem o homem?.19

    Segundo Hannah ARENDT.A condio humana, cit., p. 171, atravs de sua singularidadeque o homem retm a sua individualidade e, atravs de sua participao no gnero humano, elepode comunicar aos demais esta singularidade.

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    diz-se que a sua utilizao correspondeu sempre a pessoas, mas foi referida, aolongo da Antiguidade, to-s espcie humana como um todo, sem que tivessehavido qualquer personificao.20

    por todos conhecida a clebre explicao de Ccero em De officiis, onde

    assinala que o vocbulo latino persona servia originalmente para designar amscara usada pelos atores durante as representaes teatrais. Tambm os gregostinham a sua mscara conhecida como prosopon (rosto) , que seencaixava sobre a face do ator substituindo-a pela do personagem. A mscararomana, ao contrrio, servia para favorecer a passagem da voz do ator per

    sonare e no tinha a funo de o esconder ou substituir, sendo usada, naverdade, para isolar a emoo que se desejava transmitir: (...) no o rosto de umhomem colrico mas os traos da clera mesma.21 Portanto, no uma pessoamas um papel, e justamente este o significado que passou do teatro ao direito

    romano: uma parte, abstratamente considerada, a quem se atribuem direitos edeveres.22

    Foi o cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a ideia de umadignidade pessoal, atribuda a cada indivduo. O desenvolvimento do pensamentocristo sobre a dignidade humana deu-se sob um duplo fundamento: o homem um ser originado por Deus para ser o centro da criao; como ser amado porDeus, foi salvo de sua natureza originria atravs da noo de liberdade deescolha, que o torna capaz de tomar decises contra o seu desejo natural. 23

    Atribui-se a Bocio, em texto que data do sculo VI, o registro que propiciou,atravs da matriz teolgica, a transmisso da cultura greco-latina aos filsofosmedievais. Foi a propsito do mistrio da Santssima Trindade que Bocioofereceu a definio de pessoa, que viria a ser adotada posteriormente por SoToms: ... substncia individual de natureza racional.24

    Da se pde pensar, como o fez So Toms, a dignidade humana sob doisprismas diferentes: a dignidade inerente ao homem, como espcie; a dignidade

    20 Jean-Marie BREUVART. Le concept philosophique de dignit humaine. Revue dthique etThologie Morale, n. 191. Paris, 1994, p. 104-105.21Florence DUPONT.Lorateur sans visage: essai sur lacteur romain e son masque. Paris: PUF,2000.22Para tais explicaes, ver Dominique LECOURT. La personne humaine.Res Publica, n. hors-srie n. 1, out. 2002, onde o autor afirma ainda: Les juristes romains gardrent le souvenir decette thtralit originaire lorsquils utilisrent le vocable de persona comme lmentessentiel du droit civil quils inventrent.(...) Lobjectif tait de soumettre la transmission des

    patrimoines des rgles stables23Jean-Marie BREUVART. Le concept philosophique de dignit humaine, cit., p. 107.24No original: ... rationales naturae individua substantia. Sobre a importncia histrica deAncio Mnlio Torquato Severino Bocio, fundador da Escolstica, Luiz Jean LAUANDapresenta um belo estudo introdutrio e a traduo de sua obra Bocio e o De Trinitate.

    Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2006. Apropsito, ver tambm Lambros COULOUBARITSIS. Histoire de la philosophie ancienne etmdivale, 1998 apudDominique LECOURT. La personne humaine, cit., p. 2.

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    existe in actus no homem enquanto indivduo, passando desta forma a residirna alma de cada ser humano.25A inflexo diz com o fato de que o homem deveagora no mais olhar apenas em direo a Deus, mas tambm se voltar para simesmo, tomar conscincia de sua dignidade e, assim, agir de modo compatvel. 26

    Mais do que isso, para So Toms, a natureza humana consiste no exerccio darazo e atravs desta que se espera a sua submisso s leis naturais, emanadasdiretamente da autoridade divina.

    Tal mudana pde ocorrer porque, diversamente das demais religies daAntiguidade, o cristianismo surgiu como uma religio de indivduos que no sedefinem por sua vinculao a uma nao ou a um Estado, mas por sua relaodireta com o mesmo e nico Deus. Enquanto nas outras religies antigas adivindade se relacionava com a comunidade organizada, o Deus cristorelaciona-se diretamente com os indivduos que nele creem.

    Foram ento introduzidas, atravs do cristianismo, duas novas concepesticas: a ideia de que a virtude se concebe pela relao com Deus, e no com a

    polisou com os outros homens; e a afirmao de que, embora os seres humanossejam dotados de vontade livre, o seu primeiro impulso, proveniente da naturezahumana fraca e pecadora, dirige-se para a transgresso.27Como a prpria vontadehumana se encontra, na origem, pervertida pelo pecado (o pecado original), ocristianismo pressupe o ser humano, em si e por si, como incapaz de realizar o

    bem, necessitando portanto do auxlio de Deus para se tornar virtuoso. Isto ser

    feito mediante a obedincia estrita lei divina, revelada e inscrita no corao decada um dos homens, atravs de atos de dever.Em 1486, Giovanni Pico, Conde de Mirandola, ento um jovem com 23

    anos, enunciou a sua famosa Oratio de Hominis Dignitate, depois considerada odiscurso fundador do renascimento humanista, o primeiro horizonte damodernidade, assim definida em razo de seu compromisso com a valorizao ea promoo filosfica do homem. O antropocentrismo presente na obra no eracompletamente novo para a poca, j tendo sido celebrado por outros autores,como Petrarca, Bruni e Manetti. O que diferencia Giovanni Pico e o torna digno

    de meno que seu texto, embora faa numerosas aluses ratio theologica, apar da ratio philosophica, no estabelece entre elas a habitual relao desubordinao, de dependncia, de causa e consequncia entre o Criador e acriatura.28 No por acaso as teses de Pico foram consideradas herticas por

    25 Battista MONDIN. O humanismo filosfico de Toms de Aquino. Trad. A. Angonese. SoPaulo: Edusc, 1998.26Jean-Marie BREUVART. Le concept philosophique de dignit humaine, cit., p. 110.27Marilena CHAUI. Convite filosofia. 9. ed. So Paulo: tica, 1997, p. 342-343.28 Maria Lourdes Sirgado de Sousa GANHO. Acerca do pensamento de Giovanni Pico della

    Mirandola. Prefcio a Giovanni Pico della MIRANDOLA.Discurso sobre a dignidade do homem.Lisboa: Edies 70, 1989 [1486], p. 23 e ss., espec. p. 26. Ver tambm: David Edward COOPERAs filosofias do mundo: uma introduo histrica. So Paulo: Edies Loyola, 2002, p. 250 e ss.

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    Inocncio VIII, embora viesse seu autor a ser absolvido pelo sucessor, PapaAlexandre IV.

    Entre os tericos modernos, debruaram-se sobre o conceito de pessoahumana principalmente Hobbes, Locke e Kant. Thomas Hobbes, no Leviat

    (1651), a partir da aludida obra de Ccero, usa a noo como central para oconceito de soberania absoluta que defende: a nica sada para se evitar a guerra,de fato, parece-lhe ser a criao do Estado como uma entidade capaz de reduzir avontade dos indivduos a uma vontade nica, mediante a atribuio de todos os

    poderes e de todos os direitos (menos o direito vida) a uma nica pessoa: apessoa do soberano.

    John Locke, ao contrrio de Hobbes, acreditando que o fundamento nicodo Estado deve ser o consenso entre os seus membros, publica, em 1689, oclebreEnsaio sobre a compreenso humana, no qual afirma, em relao ao que

    aqui nos diz respeito, que entende a palavra pessoa como a que empregadapara designar aquilo que algum chama de si mesmo. Locke associa ao termoas palavras identidade, conscincia e memria, vendo o ser humanoindividual como um ser dotado de identidade reflexiva, em virtude daconscincia dessa sua identidade.29

    Em 1788, atravs da Crtica da razo prtica, Immanuel Kant reassentoua questo da moralidade em novas bases, resumidas, em ltima instncia, no queele denominou de imperativo categrico.30 O dever, segundo Kant, no se

    apresenta atravs de contedos fixos, nem tampouco uma lista ou catlogo devirtudes; antes, configura-se atravs de uma forma que deve valer universal eincondicionalmente, isto , categoricamente, para toda e qualquer ao moral.31

    O imperativo categrico est contido na sentena: Age de tal modo que amxima de tua vontade possa sempre valer simultaneamente como um princpio

    para uma legislao geral. Esta formulao foi desdobrada por Kant em trsmximas morais. So elas: i) Age como se a mxima de tua ao devesse sererigida por tua vontade em lei universal da natureza, o que corresponde universalidade da conduta tica, vlida em todo tempo e lugar; ii) Age de tal

    Segundo Cooper, noDiscursode Pico ressoa o tema humanista de que a dignidade do homemno se deve ao fato de compartilhar a natureza divina. Os seres humanos so sui generis, semafinidade com os animais, nem como os anjos, nem com Deus. verdade que devem tentar seaproximar da natureza de Deus pela contemplao (...). A dignidade humanano depende dosucesso deste empreendimento, mas da capacidade de realiz-lo livremente, de tornar-seigual aDeus (p. 251).29Dominique LECOURT. La personne humaine, cit., p. 2.30Barbara FREITAG. A questo da moralidade: da razo prtica de Kant tica discursiva deHabermas. Tempo Social - Revista de Sociologia USP, So Paulo, n. 1(2), 2. sem. 1989, p. 9.31 Marilena CHAUI. Convite filosofia, cit., p. 345-346. Sustenta Nicola ABBAGNANO.

    Dicionrio de filosofia. 3. ed., rev. e ampl. So Paulo: Martins Fontes, 1999 [1960] que o termoimperativo, criado possivelmente por analogia ao vocbulo bblico mandamento, no passade um outro nome para a palavra dever.

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    maneira que sempre trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa deoutrem, como um fim e nunca como um meio, que representa o cerne doimperativo, pois afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas; e iii) Agecomo se a mxima de tua ao devesse servir de lei universal para todos os seres

    racionais, que exprime a separao entre o reino natural das causas e o reinohumano dos fins, atribuindo vontade humana uma vontade legisladora geral. 32

    Compe o imperativo categrico a exigncia de que o ser humano jamaisseja visto, ou usado, como um meio para atingir outras finalidades, mas sempreseja considerado como um fim em si mesmo. Isto significa que todas as normasdecorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade ohomem, a espcie humana enquanto tal. O imperativo categrico orienta-se,ento, pelo valor bsico, absoluto, universal e incondicional da dignidadehumana.33 esta dignidade que inspira a regra tica maior: o respeito pelo outro.

    De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de valores:o preo (Preis) e a dignidade (Wrden). Enquanto o preo representa um valorexterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representaum valor interior (moral) e de interesse geral. As coisas tm preo; as pessoas,dignidade. O valor moral encontra-se infinitamente acima do valor demercadoria, porque, ao contrrio deste, no admite ser substitudo porequivalente. Da a exigncia de jamais transformar o homem em meio para sealcanarem quaisquer fins. Em consequncia, a legislao elaborada pela razo

    prtica, a vigorar no mundo social, deve levar em conta, como sua finalidademxima, a realizao do valor intrnseco da dignidade humana.34

    3. A expresso jurdica da dignidade humana

    Esta sucinta exposio da construo do conceito filosfico-poltico dadignidade humana deve-se compreenso de que a reflexo jurdica sobre otema35se desenvolve, necessariamente, com o recurso filosofia, poltica e

    32Marilena CHAUI. Convite filosofia, cit., p. 346. Ver tambm: Paul RICOEUR. Luniversel etlhistorique.Le Juste 2. Paris: Esprit, 2001, p. 267-285, espec. p. 273.33Barbara FREITAG. A questo da moralidade: da razo prtica de Kant tica discursiva deHabermas, cit., p. 10.34Barbara FREITAG. A questo da moralidade: da razo prtica de Kant tica discursiva deHabermas, cit., p. 10.35Obrigatria a referncia interessante anlise sobre o difcil argumento, desenvolvida combrilhantismo por Antonio Junqueira de AZEVEDO. A caracterizao jurdica da dignidade dapessoa humana, cit., p. 1-22. Segundo o autor, o uso da expresso dignidade da pessoahumana acontecimento recente no mundo jurdico, concluindo que hoje a dignidade da

    pessoa humana como princpio jurdico pressupe o imperativo categrico da intangibilidade davida humana e d origem, em sequncia hierrquica, aos seguintes preceitos: 1 - respeito integridade fsica e psquica das pessoas; 2 - considerao pelos pressupostos materiais mnimos

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    histria. Ao ordenamento jurdico, enquanto tal, no cumpre determinar o seucontedo, as suas caractersticas, ou permitir que se avalie essa dignidade.Tampouco so as constituies que a definem.36 O direito enuncia o princpio,cristalizado na conscincia coletiva (rectius, na histria) de determinada

    comunidade, dispondo sobre a sua tutela, atravs de direitos, liberdades egarantias que a assegurem. Esclarea-se que no se trata de adotar uma posio

    jusnaturalista, mas de ressaltar que, evidentemente, antes de se incorporar talprincpio s constituies, foi imperioso que se reconhecesse o ser humano comosujeito de direitos e, assim, detentor de uma dignidade prpria, cuja base(lgica) o universal direito da pessoa humana a ter direitos. 37

    O respeito dignidade da pessoa humana, fundamento do imperativocategrico kantiano, de ordem moral, tornou-se um comando jurdico no Brasilcom o advento da Constituio Federal de 1988, do mesmo modo que j havia

    ocorrido em outras partes. Em particular, aps o trmino da Segunda GrandeGuerra, em reao s atrocidades cometidas pelo nazi-fascismo, a DeclaraoUniversal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Naes Unidas em 1948,enunciava em seu art. 1: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidadee direitos. A Constituio italiana de 1947, entre os princpios fundamentais,tambm j havia proclamado que todos os cidados tm a mesma dignidade eso iguais perante a lei. No obstante, costuma-se apontar a Lei Fundamental deBonn, de maio de 1949, como o primeiro documento legislativo a consagrar o

    princpio em termos mais incisivos: Art. 1, 1 A dignidade do homem intangvel. Respeit-la e proteg-la obrigao de todos os poderes estatais.Do mesmo modo, a Constituio portuguesa de 1976, promulgada aps o

    longo perodo de ditadura salazarista, estabelece, em seu art. 1: Portugal umaRepblica soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoahumana e na vontade popular e empenhada na construo de uma sociedadelivre, justa e solidria. Igualmente, a Constituio espanhola de 1978, adotadaem seguida ao fim da repblica franquista, estabelece no art. 10, 1: Adignidade da pessoa, os direitos inviolveis que lhe so inerentes, o livre

    desenvolvimento da personalidade, o respeito lei e aos direitos dos demais sofundamentos da ordem poltica e da paz social.

    Anote-se que a Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia,assinada em Nice em dezembro de 2000 e incorporada como Ttulo II Constituio europeia, prev em seu primeiro art.: A dignidade do ser humano

    para o exerccio da vida; e 3 - respeito pelas condies mnimas de liberdade e convivnciasocial igualitria.36Jos Afonso da SILVA. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia,

    cit., p. 92.37Fernando SAVATER. tica como amor-prprio. So Paulo: Martins Fontes, 2000 [1988], p.165.

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    inviolvel. Deve ser respeitada e protegida. Tem a Carta um captulo dedicado dignidade (Captulo I), e encontram-se ali tutelados o direito vida, integridadedo ser humano, a proibio de torturas e tratamentos desumanos ou degradantes ea proibio escravido e ao trabalho forado.

    No direito brasileiro, aps mais de duas dcadas de ditadura sob o regimemilitar, a Constituio democrtica de 1988 explicitou, no art. 1, III, a dignidadeda pessoa humana como um dos fundamentos da Repblica. A dignidadehumana, ento, no criao da ordem constitucional, embora seja por elarespeitada e protegida. A Constituio consagrou o princpio e, considerando asua eminncia, proclamou-o entre os princpios fundamentais, atribuindo-lhe ovalor supremo de alicerce da ordem jurdica democrtica.38 Com efeito, damesma forma que Kant com a ordem moral, na dignidade humana que a ordem

    jurdica (democrtica) se apoia e se constitui.

    Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humanaser tutelada, prioritariamente, onde quer que se manifeste. Tero precedncia osdireitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneiraou de outra, frgeis e que esto a exigir, por conseguinte, a especial proteo dalei. Nestes casos esto as crianas, os adolescentes, os idosos, os portadores dedeficincias fsicas e mentais, os no-proprietrios, os consumidores, oscontratantes em situao de inferioridade, as vtimas de acidentes annimos e deatentados a direitos da personalidade, os membros da famlia, os membros de

    minorias, entre outros.Este , seguramente, o aspecto mais visvel da mencionada transmutao.Deve-se, no entanto, e isto imprescindvel, explorar mais detalhadamente adimenso atribuda, no ordenamento jurdico vigente, ao princpio constitucionalda dignidade da pessoa humana, porque tal parece ser o nico princpio capaz, naatualidade, de conferir a unidade axiolgica e a lgica sistemtica necessrias recriao dos institutos jurdicos e das categorias do direito civil.

    Isto significa que o valor da dignidade alcana todos os setores da ordemjurdica.39Eis a principal dificuldade que se enfrenta ao se buscar delinear, do

    38Esta ideia explorada na obra de Gustavo TEPEDINO, que tem parte substanciosa reunida emseu Temas de direito civil, j citado, com especial relevo nos primeiros trabalhos que acompem: Premissas metodolgicas para a constitucionalizao do direito civil (p.1-22), Atutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro (p. 23-54) e Direitoshumanos e relaes jurdicas privadas (p. 55-71).39Neste sentido, PauloFerreira da CUNHA. O ponto de Arquimedes. Coimbra: Almedina, 2001,p. 212, aps apontar a dignidade da pessoa humana como o valor dos valores, aduz que elaseria uma espcie degrundnorm. Segundo Daniel SARMENTO, uma das mltiplas funes doprincpio da dignidade da pessoa humana servir como o principal critrio material para aponderao de interesses, quando da coliso de princpios constitucionais. Contudo, a

    dignidade da pessoa humana o respeito a este valor, sendo um fim e no um meio parao ordenamento constitucional, no se sujeita a ponderaes (A ponderao de interesses naConstituio Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 196).

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    Embora de difcil demarcao, no que tange composio das dimensesde cada um dos mencionados princpios para a construo do conceito jurdico dadignidade humana (isto , de seu ncleo referencial), cabe indicar os novos

    problemas que tais princpios atualmente ensejam e aos quais o ordenamento

    deve particular ateno.

    3.1. A igualdade

    O fundamento jurdico da dignidade humana manifesta-se, em primeirolugar, no princpio da igualdade, isto , no direito de no receber qualquertratamento discriminatrio, no direito de ter direitos iguais aos de todos osdemais. Esta uma das formas de igualdade, a primeira porque a mais bsica, aque normalmente se denomina igualdade formal, segundo a qual todos so

    iguais perante a lei.42Logo se iria verificar, contudo, que essa espcie de igualdade,

    exclusivamente formal, era insuficiente para se atingir o fim desejado, isto , noprivilegiar nem discriminar, uma vez que as pessoas no detm idnticascondies sociais, econmicas ou psicolgicas. Adotou-se ento,normativamente, uma outra forma de igualdade, a chamada igualdadesubstancial, cuja medida prev a necessidade de se tratarem as pessoas, quando

    42A mxima que proclama a igualdade entre todos os homens uma das que possui mais alto

    significado emotivo, percorrendo o pensamento poltico-filosfico ocidental, dos estoicos aoscristos primitivos, renascendo, com novo vigor, durante a Reforma, assumindo com Rousseaue os socialistas utpicos dignidade filosfica, para chegar a ser expressa sob forma jurdica nasmencionadas declaraes de direitos em fins do sculo XVIII. O documento de Declarao deIndependncia norte-americana, assinado em 4 de julho de 1776, trazia, logo em seu incio, aseguinte frase: Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos oshomens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienveis, queentre estes esto a vida, a liberdade e a busca da felicidade; que, a fim de assegurar essesdireitos, instituem-se entre os homens e os governos, que derivam seus justos poderes doconsentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutivade tais fins, cabe ao povo o direito de alter-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-oem tais princpios e organizando-lhes os poderes pela forma que lhe parea mais convenientepara realizar-lhe a segurana e a felicidade. A ideia de que os homens nascem livres e iguais etm o direito de repudiar um governo opressor ganhou o mundo. Ao mesmo tempo em que odocumento foi o Manifesto da Independncia dos Estados Unidos da Amrica, tambm seconsagrou como uma das maiores conclamaes da histria moderna para que os homenslutassem contra a tirania onde quer que estivessem. Representou ainda o anncio do surgimentode uma nova era democrtica que, gradualmente (por reforma ou por revoluo),substituiu os regimes monrquicos e aristocrticos que at ento dominavam o cenrio poltico esocial no Ocidente. Mais diretamente, ela foi a fonte de inspirao para que os franceses seinsurgissem em 1789 contra a monarquia absolutista de Lus XVI, estimulando-os a queredigissem um documento semelhante, aprovado pela Assembleia Nacional francesa em 4 deagosto de 1789. A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, como ficou conhecida,

    promulgada em 26 de agosto de 1789, como consequncia da vitria burguesa na RevoluoFrancesa, estabelece em seu art. 1o: Os homens nascem e permanecem livres e iguais emdireitos. As distines sociais somente podem fundar-se na utilidade comum.

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    desiguais, em conformidade com a sua desigualdade; esta passou a ser aformulao mais avanada da igualdade de direitos.43 No entanto, eevidentemente, no se pde prescindir da igualdade formal, qual se acrescentouesta outra, dita substancial.44

    Se, num primeiro momento, logo aps a instaurao dos Estados deDireito na Europa Ocidental, a igualdade substancial gerou significativasalteraes legislativas que, tomadas em conjunto, viriam a formar a estruturanormativa dos chamados Welfare States , hoje, a questo mais debatida coloca-se em outros termos, isto , na reivindicao de um direito diferena. 45Esta

    43Ver, a propsito, Luiz Edson FACHIN. Teoria crtica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar,2000, p. 283. No direito brasileiro, obrigatria a referncia ao conhecido passo de RuiBARBOSA em sua Orao aos moos:A regra da igualdade no consiste seno em quinhoardesigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,

    proporcionada desigualdade natural, que se acha a verdadeira lei da igualdade. (...) Tratarcom desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e noigualdade real. Para uma nova interpretao da obra de Rui Barbosa no que toca ao direitocivil, ver Gustavo TEPEDINO. Rui Barbosa e o direito civil. In: Margarida Maria LacombeCAMARGO (org.).A atualidade de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2001, p.23-42, onde se pode encontrar, alm do trecho citado, diversos outros excertos que permitiramao autor concluir nos seguintes termos: Desprovido dos preconceitos histricos e dogmticosque tantas vezes refreiam os romanistas, pde Rui Barbosa propor teses que, fiis embora aoiderio liberal que cultuou por toda a vida, se mostram extremamente avanadas para o seutempo, suscitando a superao da dicotomia entre o direito pblico e o direito privado, e asupremacia da dignidade da pessoa humana nas relaes de Direito Civil, imperativos da ordemjurdica contempornea (p. 42).44Pietro PERLINGIERI.Perfis do direito civil, cit., p. 44-45.45 Nesta perspectiva, ver Erhard DENNINGER. La reforma constitucional en Alemania: entretica y seguridad jurdica. In: Antonio Enrique PREZ-LUO (Coord.). Derechos humanos yconstitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 309: El nuevociudadano, por as decirlo, no se contenta con ser considerado igual a todos, dotado de losmismos derechos. Ms bien, reclama el reconocimiento de su diversidad respecto de los otros.O geneticista francs Jacques TESTART.A fertilizao artificial. So Paulo: tica, 1996, p. 87,narra um caso paradigmtico: (...) a normalidade no provm de nenhuma definio racional,mas de uma certa relao entre o indivduo julgado e o grupo que se autoriza a julgar. GeorgesCANGUILHEMescreve em Le normal et le pathologique: O ser vivo e o meio no so normaisse pegos separadamente, mas sua relao que os torna normais um em relao ao outro. Emum programa de televiso sobre os surdos-mudos (La marche du sicle, setembro de 1992),pudemos ver concretamente algumas dessas pessoas, que considervamos deficientes,reivindicar um direito diferena (...). O reino dos surdos-mudos evidentemente de umagrande riqueza, e no um mundo de sofrimento. Em relao surdez como identidadecultural, chocou a opinio pblica mundial a notcia, divulgada em abril de 2002, acerca daopo feita por um casal homossexual, Sandra Duchesneau e Candy McCullough, surdas denascimento, de gerar uma criana portadora da mesma condio. Em vo procuraram um bancode smen que satisfizesse essa sua aspirao; depois que o pedido foi rejeitado por todos osestabelecimentos do gnero, acabaram usando o smen de um amigo em cuja famlia a surdez semanifestava j h cinco geraes. Ao justificarem a sua escolha, afirmaram considerar que asurdez no representa uma deficincia. No obstante, a tutela de identidade cultural querepresente, na ordem cultural vigente, relevante perda em relao integridade psicofsica no

    pode abranger terceiros, especialmente quando se trata de crianas e adolescentes, os quaismerecem concreta proteo por parte da ordem jurdica, principalmente quando a ameaa vemde quem os deve proteger.

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    ideia parte do princpio de que, em lugar de se reivindicar uma identidadehumana comum, preciso que sejam contempladas, desde sempre, as diferenasexistentes entre as pessoas, evidncia emprica facilmente comprovada: oshomens no so iguais entre si, e para confirmar esta assertiva basta pensarmos

    em dicotomias facilmente visualizveis, como cultos e analfabetos, sadios edeficientes, heterossexuais e homossexuais.46 A humanidade diversificada,multicultural, e parece mais til procurar compreender e regular os conflitosinerentes a essa diversidade de culturas e formas de pensar do que buscar umafalsa, porque inexistente, identidade.47 Da ter sido sugerida a substituio dotermo identidade por outro, que oferece maior sentido de alteridade: oreconhecimento do outro, como um ser igual a ns. Enquanto na identidadeexistiria simplesmente a ideia do mesmo, o reconhecimento permite a dialticado mesmo com o outro.48

    O princpio da igualdade, visto sob este ngulo, dos que mais se presta aensejar hard cases casos cuja soluo, justamente porque no h uma nica ecorreta soluo, nem sempre satisfaz o sentimento pessoal de justia dointrprete. Os hard cases configuram um dos aspectos mais interessantes daaplicao do direito atual. A necessidade metodolgica de aplicar os princpiosconstitucionais a todas as relaes jurdicas, inclusive as intersubjetivas denatureza privada, fez com que se multiplicassem as ocasies de coliso de

    princpios. So tais os casos que, por influncia do direito norte-americano,

    passam a formar a categoria dos chamados casos difceis.

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    Hiptese emblemtica do que se afirma ocorreu num caso decidido pelaSuprema Corte dos Estados Unidos, relativo a competies desportivas eenvolvendo a Associao Profissional de Golfe norte-americana (PGA). Emdeterminados circuitos da PGA, que rene a elite do esporte, exige-se que oscompetidores percorram a p as distncias entre os buracos. Um atleta, portadorde rara sndrome numa das pernas, reivindicou o direito de fazer o percursoacomodado num carrinho eltrico, pois, com o passar do tempo, as longas eextenuantes caminhadas passaram a provocar-lhe forte dores. Majoritariamente, a

    46 Para uma viso sobre o direito diferena em razo da opo sexual da pessoa, verMaria Celina BODIN DE MORAES. A unio entre pessoas do mesmo sexo: uma anlise sob aperspectiva civil-constitucional, cit., p. 89-112.47Sylviane AGACINSKI.Poltica dos sexos, cit., p. 162 e ss.48Esta tese sustentada por Paul RICOEUR.A crtica e a convico: conversas com F. Azouvi eM. De Launay. Lisboa: Edies 70, p. 88-91.49 Ver, por todos, Ronald DWORKIN. Uma questo de princpio. So Paulo: Martins Fontes,2000 [1985]. Sobre o tema, ver, tambm, Robert ALEXY. Teoria dos direitos fundamentais.Trad. V. Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2008 [1986, 5. ed. de 2006] e ManuelATIENZA.Para una razonable definicin de razonable. Doxa, n. 4. Rio de janeiro, 1987, p. 194.

    Segundo Atienza, en principio podra entenderse que un caso es difcil si, aplicando criterios deracionalidad estricta, resultara que: a) el caso no tiene solucin; b) tiene una solucin queresultara inaceptable; c) tiene ms de una solucin (incompatibles entre si).

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    Suprema Corte concordou que a obrigatoriedade de percorrer a p tais distnciasnem era fundamental natureza do jogo, nem gerava uma unfairadvantaged, enquanto a tese vencida entendeu ser da prpria natureza dosesportes competitivos a comparao entre habilidades desigualmente

    distribudas, no cabendo ao Tribunal interferir na determinao do que seriafundamental ou no naquele mbito desportivo.50

    A forma de violao por excelncia do direito igualdade, ensejadora dedanos morais, traduz-se na prtica de tratamentos discriminatrios, isto , em

    proceder a diferenciaes sem fundamentao jurdica (ratio), sejam elasbaseadas em sexo, raa, credo, orientao sexual, nacionalidade, classe social,idade, doena, entre outras. Do ponto de vista terico, pois, os grandesquestionamentos passaram a ter por objeto a validade das polticas de aoafirmativa;51 a legitimidade de especial proteo (ou favorecimento) dada a

    grupos, minoritrios52ou no;53o respeito cultura das minorias54etc.

    50PGA Tour, Inc. v. Martin, decidido em 29 de maro de 2001. A maioria esteve compostapelos juzes Stevens, Rehnquist, OConnor, Kennedy, Souter, Ginsburg e Breyer, e a minoriapor Scalia e Thomas. Esta deciso foi considerada uma importante vitria para a comunidade,composta pelos portadores das mais diversas deficincias fsicas.51Sobre o tema ver Mara Vittoria BALLESTRERO. Acciones positivas. Punto y aparte.Doxa, n.19. Rio de Janeiro, p. 92-109; Michel ROSENFELD. Affirmative Action and Justice: A

    Philosophical and Constitucional Inquiry. New Haven and London: Yale University Press,1991; Joaquim BARBOSA. Ao afirmativa e princpio constitucional da igualdade. Rio deJaneiro: Renovar, 2001.52Frise-se que este combate discriminao pode ser implementado com o intuito de minoraroutras diferenas histricas, como na recente polmica acerca do sistema de adoo de cotasna seleo dos alunos para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e para aUniversidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Originalmente as Leis Estaduais n. 3524,de 28 dez. 2000, e n. 3708, de 9 nov. 2001, reservavam 50% das vagas daquelas instituies aalunos provenientes do ensino pblico, e 40% das vagas populao negra e parda,respectivamente. A Lei Estadual n. 4151, de 4 set. 2003, modificou o controverso regime eunificou o sistema de reserva de vagas, num total de 45% das vagas da UERJ e da UENF paraalunos carentes, distribudas entre 20% para alunos oriundos da rede pblica, 20% paraafrodescendentes e 5% para deficientes fsicos.53Certamente, afirma Mara Vittoria BALLESTRERO. Acciones positivas. Punto y aparte, cit., p.92, o caso das mulheres singular, se o comparamos com os membros de qualquer minoria,lingustica religiosa ou racial. As mulheres so a maioria da populao em muitos pases;ademais, no constituem um grupo j que a sua presena est disse minada tanto no grupodominante como nos grupos minoritrios. Une entre si as mulheres uma comunidade de gnero qual lcito atribuir significados e implicaes diversas. Durante muitos sculos, acomunidade de gnero foi, por si s, causa de excluso social e poltica; a chegada do direitoigual, sem distino de sexo, suprimiu a correlao entre gnero e excluso, mas no eliminou oprolongamento dos efeitos da excluso. Hoje, na medida em que existe o princpio da igualdade,o que confere comunidade de gnero um valor de grupo o fato de que, com respeito adeterminadas situaesemprego, postos de responsabilidade, cargos eletivos, as mulheresaparecem como um grupo em posio desvantajosa enquanto sistematicamente infrarepresentado. Um exemplo que se tornou famoso foi o julgamento pela Corte de Justia da

    Comunidade Europeia, em Luxemburgo, do chamado caso Kalanke, que versou sobre aigualdade entre homens e mulheres e a discriminao positiva concedida s mulheres: CasoC-450/93, Kalanke v. Freie Hansestadt Bremen. Igualdade homens/mulheres Promoo.

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    O vnculo de participao numa sociedade pautada pelo pluralismocompreende, cada vez mais, o respeito aos direitos dos membros das diversasculturas minoritrias este, o nico meio de proteger a pessoa humana em suasrelaes concretas, e no mais o cidado, conceito abstrato, historicamente

    Deciso de 17 out. 1995 [Referncia:Diretiva 76/207/CEE do ConselhoJO L 39 de 14 fev.1976]. A sentena Kalanke submeteu a ao afirmativa em favor das mulheres a umsignificativo ataque. Trata-se do caso de um jardineiro alemo, Eckhardt Kalanke, que aspiravaao posto de jardineiro-chefe da Cidade-Estado de Bremen, na Alemanha, mas que se viupreterido por uma mulher, a Sra. Gleismann, no porque tivesse esta melhores aptides, masporque uma lei local, de novembro de 1990, estabelecia que os postos de trabalho de funespblicas deviam ser repartidos quantitativamente, em 50%, entre homens e mulheres. OTribunal de Justia Europeu de Luxemburgo declarou tal disposio contrria legislaocomunitria, em particular Diretiva 76/207/CEE, relativa ao princpio de igualdade detratamento entre homens e mulheres no mbito da comunidade. Esta polmica sentenaprovocou uma certa preocupao e se chegou a pensar que se poderia proibir, em nvel europeu,

    a ao afirmativa. Finalmente, em decorrncia da presso do Parlamento Europeu e de muitasorganizaes feministas de toda Europa, conseguiu-se introduzir, no Tratado de Amsterd, umdispositivo que tornou possvel a manuteno da ao afirmativa (ou positiva). No aludidoartigo do Tratado menciona-se apenas o sexo infra representado; assim, chegar o dia em queos homens que estejam infra representados em determinadas profisses reclamaro atravs damesma ao afirmativa.54Um dos mais emblemticos casos acerca do respeito a uma cultura minoritria foi julgado noincio dos anos 70 pela Suprema Corte norte-americana. Trata-se do caso Wisconsin v. Yoder,(406 U.S. 208 1972), no qual se discutiu o direito de membros da comunidade religiosa Amish ano mais frequentar uma escola estadual, como determinava a lei do Estado do Wisconsin. ACorte, de fato, reconheceu um direito de iseno ao cumprimento da obrigatoriedade da lei emfavor dos jovens da comunidade, entrevendo na instruo escolar obrigatria at os 16 anos um

    possvel atentado sua liberdade religiosa fundamental. A opinio da maioria foi sustentadapelo Chief Justice Burger, nos seguintes termos: The Amish have a legitimate reason forremoving their children from school prior to their attending high school. The qualitiesemphasized higher education (self-distinction, competitiveness, scientific accomplishment, etc.)are contrary to Amish values. Additionally, attendance in high school hinders the Amishcommunity by depriving them of the labor of their children and limiting their ability to instillappropriate values in their adolescents. A state's interest in universal education must bebalanced against the legitimate claims of special groups of people. The State cites two interestsin compulsory education: to create a citizenry to participate in our political system and to

    prepare self-supportive people. The Court agrees with the Amish that an additional one or twoyears of education will not significantly affect either of these interests. Pela minoria,argumentou oJusticeDouglas que as razes e os interesses dos pais poderiam ser diferentes dosinteresses dos filhos e que a deciso da Corte, na realidade, se baseava na errnea identificaodesses dois ncleos de interesses. Afirmou o ministro na ocasio: In the present case, the Stateis not concerned with the maintenance of an educational system as an end in itself, it is ratherattempting to nurture and develop the human potential of its children, whether Amish or non-

    Amish: to expand their knowledge, broaden their sensibilities, kindle their imagination, foster aspirit of free inquiry, and increase their human understanding and tolerance. It is possible thatmost Amish children will wish to continue living the rural life of their parents, in which casetheir training at home will adequately equip them for their future role. Others, however, maywish to become nuclear physicists, ballet dancers, computer programmers, or historians, and

    for these occupations, formal training will be necessary. There is evidence in the record thatmany children desert the Amish faith when they come of age. A State has a legitimate interest

    not only in seeking to develop the latent talents of its children but also in seeking to preparethem for the life style that they may later choose, or at least to provide them with an optionother than the life they have led in the past.

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    ligado ao exerccio dos direitos polticos. Neste particular, os estados da Europa,tambm por fora dos resqucios colonialistas, deparam-se com os dilemas postos

    pelas atuais e complexas dimenses conferidas ao direito igualdade.55A presena, num mesmo territrio, de uma pluralidade de culturas, como

    ocorre tanto na Europa como nos Estados Unidos situao a que tambm nsestamos acostumados , se tem constitudo, de fato, nos nossos dias, como umgrande desafio regulamentao tica e jurdica, na medida em que evidenciadiferenas, seja no plano das concepes de vida (concepes culturais,filosficas, religiosas), seja no plano dos comportamentos (usos, costumes,tradies), que pem em cheque a suficincia do princpio da igualdade, tantoformal como substancial.

    Considera-se, modernamente, que ao princpio da igualdade deve serintegrado o princpio da diversidade, ou seja, o respeito especificidade de cada

    cultura. A identidade da cultura de origem um valor que se deve reconhecer,encontrando-se o respeito identidade e diferena cultural na base do prprio

    princpio da igualdade, que justamente o funda e sustenta. O paradoxo aparente.Cabe distinguir igualdade como estado de fato e igualdade como regra ou

    princpio. A diferena o contrrio da igualdade como estado de fato (se duascoisas so diferentes porque no so iguais); todavia, quanto igualdade como

    princpio, seu oposto no a diferena mas a desigualdade.Os problemas surgem, porm, no momento em que se tenta responder

    questo sobre quem igual e quem diferente. Os critrios na base dos quais seagrupam os indivduos iguais e os diferentes variam conforme os tempos, oslugares, as ideologias, as concepes ticas, religiosas, filosficas. Os indivduosso, entre si, tanto iguais quanto diferentes, e podem mesmo ser consideradostodos iguais pessoas e todos diferentes altos, baixos, gordos, magros,

    55 A esse respeito, um dos casos mais conhecidos o da proibio do uso do chador poradolescentes de origem islmica em algumas escolas pblicas francesas. Tal pea, descrita noAurlio como veste feminina, geralmente negra, que envolve todo o corpo, at os tornozelos, eencobre a cabea e grande parte do rosto, usada no Ir e noutros pases muulmanos, atentariacontra a tradio republicana da escola laica. Para um enfoque desta polmica, ver AmyGUTMANN. Challenges of Multiculturalism in Democratic Education. Disponvel em:. Acesso em: 5 jan. 2006.Sobre a questo, manifestou-se ainda Jrgen HABERMAS. Entrevista. In: Barbara FREITAG eSrgioPaulo ROUANET.Dilogo cientfico. Tbingen: Instituto de Colaboracin Cientfica, v. 5,ns. 1-2, 1996, p. 161-188. Rouanet indaga: Podemos separar la cultura poltica de la culturaen general? Como Vd. sabe, en Francia las nias de religin islmica no pueden entrar en laescuela con su velo.Ao que Habermas responde: Y por qu no? Las nias catlicas tambinusan la cruz. Rouanet explica: Los franceses dicen que eso transgrede la tradicin laica dela escuela republicana e Habermas finaliza: En ese caso deberan ser retirados todos los

    smbolos religiosos. Aps grande controvrsia sobre o assunto na Frana, a questo foiresolvida por meio da promulgao da Lei n. 2004-228, de 15 mar. 2004, ... encadrant, en

    application du principe de lacit, le port de signes ou de tenues manifestant une appartenancereligieuse dans les coles, collges et lyces publics, que basicamente proibiu a ostentao desmbolos religiosos nos estabelecimentos de ensino pblicos.

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    tendo sido previsto pelo texto constitucional, para tanto, um salrio mnimocapaz de atender s necessidades vitais bsicas do trabalhador e de sua famlia(art. 7, IV, da Constituio Federal).

    Atualmente, as maiores perplexidades em torno do tema dizem respeito ao

    extraordinrio desenvolvimento da biotecnologia e s suas consequncias sobre aesfera psicofsica do ser humano. Assim, por exemplo, no mbito do que comeaa se configurar como um novo ramo, o do biodireito,60 ainda semregulamentao jurdica adequada, encontram-se problemas decorrentes dareproduo assistida61 como a procriao post-mortem62e o congelamento deembries63, da privacidade dos dados genticos,64da experimentao em seres

    60 Judith MARTINS-COSTA define biodireito como o termo que indica a disciplina, aindanascente, que visa determinar os limites de licitude do progresso cientfico, notadamente da

    biomedicina, no do ponto de vista das exigncias mximas da fundao e da aplicao dosvalores morais na prxis biomdica isto , a busca do que se deve fazer para atuar o bemmas do ponto de vista da exigncia tica mnima de estabelecer normas para a convivnciasocial (Biotica e dignidade da pessoa humana: rumo construo de um biodireito. RTDC -

    Revista Trimestral de Direito Civil, v. 3. Rio de Janeiro, 2000, p. 64).61Sobre reproduo assistida, ver o pioneiro estudo de Helosa Helena BARBOZA.A filiao em

    face da inseminao artificial e da fertilizao in vitro. Rio de Janeiro: Renovar, 1993; e ainda,em meio farta bibliografia hoje existente sobre o assunto, Jacqueline COSTA-LASCOUX.Procriao e biotica. In: Georges DUBY e Michelle PERROT. Histria das mulheres noocidente, v. 5. Porto: Afrontamento, 1991, p. 639 e ss. Para um aprofundado exame dasquestes de responsabilizao civil, ver Bruno LEWICKI. O homem construtvel:responsabilidade e reproduo assistida. In: Helosa Helena BARBOZA e Vicente de Paulo

    BARRETTO(orgs.). Temas de biodireito e biotica. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 99-154.62 Sobre a procriao post-mortem e, em especial, acerca do clebre leading caseParpalaix,ocorrido na Frana em 1981, ver Gail KATZ. Parpalaix c. CECOS: Protecting Intent inReproductive Technologie.Harvard Jornal of Law & Technologie, v. 11, n. 3. Boston, 1998; oestudo substancioso de Christopher SCHARMAN. Not Without My Father: The Legal Status ofthe Posthumously Conceived Child. Vanderbilt Law Review, v. 55, n. 3. Nashville, 2002, p.1001-1054; e DOLGIN, J. Defining the Family: Law, Technology, and Reproduction in anUneasy Age. New York: New York University, 1997, p. 203-206. No Brasil, cf. Eduardo deOliveira LEITE.Procriaes artificiais e o direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.232-237. Depois do casoParpalaix, os CECOS (Centros de Estudos e Conservao do vulo eEsperma Humanos) decidiram inserir em todos os contratos, estipulados com os casais que osprocuram para depsito e congelamento de esperma ou de embries j formados, uma clusulasegundo a qual a restituio ao casal, qualquer que seja o objetivo do pedido, somente podeocorrer na presena e com o renovado consenso de ambos; a morte do homem, portanto,acarreta a consequncia, de fato, de a impedir (ver, a propsito, TGI Toulouse, 26.03.1991, inJCP, 1991, II, n. 21.807, com relao ao esperma; TGI Rennes, 30.06.1993, in JCP, II, n.22.250, com relao aos embries).63Neste tema, o caso mais conhecido ocorreu nos Estados Unidos e foi julgado, em junho de1992, pela Suprema Corte do Estado do Tennessee: Davis v. Davis (842 S.W.2d 588, 597).Tratava-se de sete embries congelados e de seu futuro, j que os Davis, aps seu divrcio,discordavam acerca do destino a lhes ser dado. Enquanto Mary Davis queria engravidar, JuniorDavis gostaria que eles permanecessem no estado congelado em que se encontravam. A Corteassim decidiu: In summary, we hold that disputes involving the Disposition of pre-embryos

    produced by in vitro fertilization should be resolved, first, by looking to the preferences of theprogenitors. If their wishes cannot be ascertained, or if there is dispute, then their prioragreement concerning Disposition should be carried out. If no prior agreement exists, then the

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    humanos,65dos atos de disposio sobre o prprio corpo,66dos transplantes,67damudana de sexo,68acontecimentos plenamente factveis desde a aquisio, cada

    relative interests of the parties in using or not using the pre-embryos must be weighed.

    Ordinarily, the party wishing to avoid procreation should prevail, assuming that the other partyhas a reasonable possibility of achieving parenthood by means other than use of the pre-embryos in question. If no other reasonable alternatives exist, then the argument in favor ofusing the pre-embryos to achieve pregnancy should be considered. However, if the party

    seeking control of the pre-embryos intends merely to donate them to another couple, theobjecting party obviously has the greater interest and should prevail. Para outros detalhes, ver

    Medical and Public Health Law Site. First Embryo Disposition Case - Davis v. Davis, 842S.W.2d 588, 597 (Tenn. 1992). Disponvel em:. Acesso em: 5 jan. 2006.64A privacidade dos dados genticos suscita diversos questionamentos; entre os mais citados,encontra-se a sua eventual utilizao indiscriminada por companhias de seguro e empregadoresinescrupulosos. A este propsito, ver Alexander Morgan CAPRON. Genetics and Insurance:

    Accessing and Using Private Information. In: EllenFrankel PAUL,FredMILLER,Jr.,eJeffreyPAUL, (Coords.). The Right to Privacy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 235-275. Entre ns, ver o excelente estudo de Bruno LEWICKI.A privacidade da pessoa humana noambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.65Ver a anlise de Bernard EDELMAN. Exprimentation sur lhomme: une loi sacrificielle. In:

    La personne en danger. Paris: PUF, 1999, p. 323-340. No Brasil a resoluo 196, de 1996, doConselho Nacional de Sade, que estabelece as normas de pesquisa envolvendo sereshumanos. Em seu item V - Riscos e Benefcios, prev-se: V.2. As pesquisas sem benefciodireto ao indivduo devem prever condies de serem bem suportadas pelos sujeitos dapesquisa, considerando sua situao fsica, psicolgica, social e educacional (grifou-se).66A esse respeito, a situao mais chocante daqueles que sofrem de apotemnofilia, doentesvulgarmente conhecidos como amputados por escolha (amputees by choice ou wannabes),

    pessoas que, embora no estejam fisicamente doentes, desejam ter (s vezes violentamente) umde seus membros amputado. Esta condio tornou-se bem mais visvel a partir de suadivulgao na Internet, e hoje h mais de uma centena de listas de discusso, uma delasintitulada justamente amputees-by-choice, a qual se tem preocupado em oferecer, segundo sediz, algum alvio aos portadores desta disfuno, os quais se sentem menos solitrios e menosexcepcionais. Sobre o tema, ver o interessantssimo artigo do jornalista Carl ELLIOT.A new wayto be mad. Disponvel em: e. Acesso em: 5 jan. 2006. No Brasil, ver o pioneiro artigo de CarlosNelson KONDER. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes.RTDC - Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, Padma, v. 15, jul.-set. 2003, p. 41-72.67Aqui, um dos problemas mais controvertidos refere-se aos transplantes e, em particular, aoexpediente de programar uma nova gravidez com a finalidade de obter o rgo a medulassea compatvelque pode vir a salvar o filho doente. Sobre o caso mais famoso, de Molly eseu irmo Adam Nash, ver Gay FRANKENFIELD. The Nash Family: Breaking New Ground inMedicine. Health News. WebMD. Disponvel em: . Acesso em: 5 jan. 2006. Ver, ainda, Jos Roque JUNGES. Biotica:perspectivas e desafios. So Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 205 e ss., e Carlos Maria RomeoCASABONA. Aspectos jurdicos do aconselhamento gentico. In: _______. Biotecnologia,

    Direito e Biotica: perspectivas em direito comparado. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 1-70.68 Helosa Helena BARBOZA. Biotica x biodireito: insuficincia dos conceitos jurdicos. In:Helosa Helena BARBOZA e Vicente de Paulo BARRETTO. (orgs.). Temas de biodireito ebiotica, cit., p. 21-26. Sobre os diversos aspectos da sndrome transexual, ver, entre outros,

    Elimar SZANIAWSKI.Limites e possibilidades do direito de redesignao do estado sexual. SoPaulo: Revista dos Tribunais, 1999, e Ana Paula Ariston Barion PERES. Transexualismo: odireito a uma nova identidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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    questes ticas relevantssimas, ligadas exatamente necessidade de uma polticade privacidade que proteja adequadamente a pessoa humana. No por acaso, nadefinio j consolidada de Stefano Rodot, o direito privacidade , justamente,o direito de manter o controle sobre as prprias informaes e de determinar o

    modo de construo da prpria esfera privada.72

    Da, diante da atual e potencial multiplicao de dilemas presentes na

    prtica cotidiana da biomedicina, provm a necessidade de que sejamestabelecidos determinados limites externos, limites que so, forosamente, tantode natureza tica quanto de natureza jurdica.73 O termo biotica veio a sercunhado no incio da dcada de 70.74A matriz da preocupao que ele expressa,contudo, pode ser encontrada na condenao, pela comunidade internacional, dasatrozes experincias nazistas realizadas em seres humanos reprovaocorporificada, em 1947, no chamado Cdigo de Nuremberg, que continha as

    primeiras regras que poderiam ser chamadas de bioticas.75 O Cdigoestabeleceu como princpio primeiro ser absolutamente essencial que se obtenhao consentimento do voluntrio ou doente, alm de exigir que a experinciadesenvolvida deva ser suscetvel de fornecer resultados importantes para o bemda sociedade, devendo, ainda, ser concebida de modo a evitar todo tipo deconstrangimento fsico ou moral.

    Em 1964, o Cdigo foi revisto pela organizao Mundial de Sade OMS , dando origem Declarao de Helsinque, j vrias vezes atualizada, e

    ainda em vigor. Quanto a este assunto, o princpio que nos interessa, j previstopor esta declarao de 1964, dispe: Os interesses e o bem-estar do ser humanodevero prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da cincia.76Emrelao a outras categorias de direitos, vige a regra oposta, isto , a da

    prevalncia dos direitos da coletividade sobre o interesse individual. O interesse

    72Stefano RODOT. Tecnologie e diritti, cit., p. 33.73A cincia, qualquer cincia, afirma Andr COMTE-SPONVILLE. Morrer Curado?, cit., p. 61,no tem conscincia nem limites, alm dos limites que ela se impe como tarefa a transpor eque transpe de fato, mais cedo ou mais tarde. Se deixarmos as cincias e as tcnicas puraespontaneidade de seu desenvolvimento interno, uma nica coisa certa: ser feito todo opossvel, segundo o conhecido princpio. Na Medicina, no entanto, sendo a pessoa humana oprprio objeto de investigao, isto no pode ser aceitvel.74 Criado por Van Resselaer POTTER.Bioethics: Bridge to The Future. Englewood Cliffs:Prentice Hall, 1971.75A este respeito, aduz Michael GRODIN. Historical Origins of the Nuremberg Code. In: JohnMICHALCZYK (coord.). Medicine, Ethics and the Third Reich: Historical and ContemporaryIssues.Kansas City: Sheed & Ward, 1994, p. 191-192.76 Primacy of the human being. The interests and welfare of the human being shall prevailover the sole interest of society or science.Na Declarao de Helsinque, estabelece o art. 5o:Every biomedical research project involving human subjects should be preceded by careful

    assessment of predictable risks in comparison with foreseeable benefits to the subject or toothers. Concern for the interests of the subject must always prevail over the interests of scienceand society.

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    imprescindibilidade da esfera psquica, como um aspecto que vai aos poucos,basicamente at o incio da vida adulta, se formando.81

    Do mesmo modo, e por iguais motivos, o anonimato de doador de smen,na inseminao artificial heterloga, configura outro exemplo que no compactua

    com a ordem constitucional da prevalncia das situaes existenciais.82

    Argumenta-se que, se a providncia da proibio do anonimato for tomada, istosignificar o fim desse mtodo de reproduo. Talvez. No entanto, a viso dosque sustentam o anonimato parece estar deformada pelo longo tempo em que odireito civil cuidava unicamente de direitos subjetivos de matriz patrimonial. Adeturpao refere-se ideia de que conceber um filho seja um direito dos pais.Para a garantia desse direito, pode-se fazer o que quer que seja necessrio,inclusive conceber um filho que no poder ter acesso sua origem gentica,aspecto que compe a essncia de sua identificao.

    De outro lado, sob esta nova tica, no parece suficiente, no caso deexperimentao de novas drogas em seres humanos, garantir somente oconsentimento livre e informado da pessoa, ainda que isto signifique a prestaode um servio de elevadssimo valor moral ao resto da humanidade. AConveno Europeia dos Direitos do Homem e da Biomedicina, de 1997, deumais um firme passo neste sentido. Admite a Conveno, no entanto, que serealize experincia cientfica em ser humano, com o seu consentimento livre eesclarecido, mesmo que esta interveno no traga necessariamente benefcios

    diretos para a sua sade (art. 17). Nesta rea, a proteo da pessoa humana e dasua dignidade que deve prevalecer quando se tratar da sua integridade fsica epsquica, da sua participao em qualquer experimentao cientfica. Seria maisdo que desejvel, por conseguinte, que a Conveno assim como a Resoluodo CFM que, entre ns, regula a matria j tivesse previsto a exigncia de aexperimentao se qualificar, sempre, como potencialmente benfica sadedaquele que a ela se submete.

    Nos casos indicados, ser possvel verificar se necessria a utilizao deum substrato ou outro para se alcanar a proteo que se deseja dignidade. No

    que tange ao anonimato do doador de smen, h interesse de terceiros, dasgeraes futuras,83 que devem ser resguardados; portanto, apesar da atual

    81Stefano RODOTsustentou que a declarao do sexo que resulta do registro civil, a ser feitaquando do nascimento, uma descrio do papel social vinculado a um dado biolgicopresumidamente imutvel, enquanto a construo da identidade de gnero pode demandar maistempo (Prsentation gnrale des problmes lis au transsexualisme. Transsexualisme, Mdicineet DroitXXIII Colloque de Droit Europen, Pays Bas, Vrije Universiteit, 1993, p. 20 e ss.).82Catherine LABRUSSE-RIOU. Responsabilit, droit des personnes et sciences de la vie. Droit et

    Cultures, n. 1. Paris, 1996, p. 81.83 J. C. MONIER. Personne humaine et responsabilit civile. Droit et Cultures, n. 31, 1. Paris,1998, p. 66. Quanto responsabilidade para com as futuras geraes v. o texto fundante de

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    liberdade para tanto, entende-se que no cabe proporcionar sociedade estaalternativa.84 Menos problemtica, por outro lado, parece ser a hiptese dotransexualismo. No entanto, s a clusula geral de tutela da pessoa humana

    poder autorizar que o interesse individual prevalea sobre o interesse pblico

    contido no princpio da veracidade do registro. Considerado prevalecente ointeresse privado, o resultado ser nico: a indicao no registro dever sercompatvel com a do sexo de aparncia da pessoa,85 isto , o sexo de suaescolha.86 Aqui, a vontade individual ser novamente merecedora de

    privilegiada tutela, a partir do momento em que se passou a considerar a noode sade como o bem-estar psicofsico e se entendeu ser a sndrome transexualuma grave disfuno psicofsica, que pode atenuar-se exclusivamente atravs dacirurgia de redesignao do sexo.87

    A necessidade urgente de regular os dilemas criados pelos avanos

    cientficos, com todos os desdobramentos poltico-tico-sociais que suscitam,

    Hans JONAS. El principio del responsabilidad: ensayo de una tica para la civilizacintecnolgica. Barcelona: Herder, 1995,passim.84 No mesmo sentido, Pietro PERLINGIERI, para quem se deve dissentir das propostas quepreveem o anonimato do doador do smen. (...) No tutelar o anonimato, antes, atribuirresponsabilidades a quem doa, com o seu smen, a vida, personalizar a doao significa evitar aespeculao (Perfis do direito civil, cit., p. 176).85 A jurisprudncia francesa j consolidou o entendimento de que, ao portador de sndrometransexualem seguida a tratamento cirrgico com finalidade teraputica, se no mais detmtodas as caractersticas de seu sexo de origem e apresenta aparncia fsica que o aproxima do

    outro sexo (ao qual corresponde seu comportamento social) estar justificada, pelo princpiodo respeito vida privada, a alterao no registro civil, de modo que seu estado civil indiqueo sexo de sua aparncia, no representando obstculo a tanto o princpio da indisponibilidade doestado das pessoas. A esse respeito, ver Code Civil, Paris: Dalloz, 1996, notas ao art. 99, p. 135-136.86 TJSP, 5a C.C., Ap. Cv. 1.651.574, Rel. Des. Boris Kauffmann, julg. em 22.03.2001.Registro civil. Pedido de alterao do nome e do sexo formulado por transexual primriooperado. Desatendimento pela sentena de primeiro grau ante a ausncia de erro no assento denascimento. Nome masculino que, em face da condio atual do autor, o expe a ridculo,viabilizando a modificao para aquele pelo qual conhecido (Lei n. 6.015/73, art. 55, par.nico, c/c art. 109). Alterao do sexo que encontra apoio no art. 5, X, da Constituio da

    Repblica. Recurso provido para se acolher a pretenso. funo da jurisdio encontrarsolues satisfatrias para o usurio, desde que no prejudiquem o grupo em que vive,assegurando a fruio dos direitos bsicos do cidado (grifou-se).87Entre os quatro pases europeus que no reconhecem legalmente a redesignao, a Inglaterraviolou, segundo deciso da Corte Europeia de Direitos Humanos, a privacidade da vida familiarde dois transexuais operados. Em julgamento de julho de 2002, no caso Goodwin v. The United

    Kingdom (Application n. 25680/94), a Corte considerou violados os artigos 8 (direito aorespeito da vida privada) e 12 (direito de casar e fundar uma famlia) da Conveno Europeiados Direitos Humanos. Christine Goodwin, de 65 anos, reclamava no s das humilhaessofridas no seu ambiente de trabalho aps a cirurgia, mas tambm pelo fato de ter que continuara pagar contribuies para a previdncia social at os 65 anos, idade estabelecida para oshomens, e no aos 60, idade para as mulheres. Os 17 juzes decidiram por unanimidade no

    haver indcios de que a mudana no status legal dos transexuais provocaria prejuzos aointeresse pblico. No houve, porm, indenizao, porque se entendeu que a declarao deviolao constitua, em si mesma, satisfao bastante em relao ao dano moral sofrido.

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    encontrou um legislador sem o preparo necessrio para oferecer respostas claras,simples e rpidas e nem poderia ser diferente. A elaborao de uma ordem

    jurdica que regule fatos sociais novos implica a definio, a priori, de grandeslinhas, ou princpios, que sirvam de parmetro e referncia para a sua

    normatizao.88

    Tais princpios, que devero nortear a elaborao da legislaoespecfica do setor, so, obrigatoriamente, consequncia de um debate socialacerca das opes morais e ticas formuladas e aceitas pela cultura sobre a qualeles viro a incidir sob a forma de normas jurdicas .89

    Se nenhum tratamento desumano ou degradante pode ser imposto, senenhuma experincia pode ser feita sobre a pessoa humana sem o seu expresso einformado consentimento, se o seu interesse prevalece, sendo o interesse superiora ser protegido, o que dizer acerca das escolhas do prprio indivduo? Trata-seaqui de indagar qual o limite deste seu direito individual ao prprio corpo.

    Podemos, luz do princpio maior da dignidade da pessoa humana, dispor comobem entendermos, com autonomia e informao, acerca de ns mesmos, denossos corpos e mentes?90 Qual a esfera atual da liberdade (individual) deautodeterminao? Ser preciso examinar os delineamentos atuais do direito liberdade antes de sugerir alguma direo.

    3.3. A liberdade

    Liberdade e autonomia privada foram, durante muito tempo, consideradas,do ponto de vista do direito civil, conceitos sinnimos. Era muito simples, defato, traduzir uma pela outra quando se tratava da igualdade formal no mbitodas situaes patrimoniais; simples porque se dava ao indivduo, a todo equalquer indivduo, amplo poder de disposio, desde que, evidentemente, ele

    88Neste sentido, Vicente de Paulo BARRETTO: Neste quadro de incertezas morais e jurdicas,torna-se necessrio procurar alguns critrios que expressem argumentos morais, mais do quetentar a soluo dessas questes atravs da aplicao mecnica dos princpios da biotica oupura e simplesmente acatar os ditames contidos no Cdigo de tica Mdica (As relaes dabiotica com o biodireito. In: Helosa Helena BARBOZAe Vicente de Paulo BARRETTO(orgs.).Temas de biodireito e biotica, cit., p. 63 e ss.).89Idem, ibidem.90 A referncia obrigatria, a respeito dos limites ao do indivduo neste campo, ainda devida elaborao de Immanuel KANT, desenvolvida na Fundamentao da metafsica doscostumes[1785], na qual, em apertada sntese, o filsofo adota o seguinte raciocnio: a pessoano pode dispor de si mesma porque no uma coisa; nem tampouco pode ser propriedade de simesma, pois seria contraditrio: na medida em que pessoa, sujeito ao qual pode caber apropriedade de coisas. Se fosse propriedade de si mesma, portanto, seria coisa, cuja posse

    poderia reivindicar. Ora, pessoa, o que diferente de propriedade e portanto no uma coisa,pois impossvel ser, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, e fazer coincidir o proprietrio e apropriedade. Baseado nisto, a pessoa no pode dispor de si mesma.

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    possusse bens bens para contratar, bens para testar, bens para adquirir, benspara dividir.91

    Com efeito, ao protagonista do Cdigo Civil, sujeito de direitos eproprietrio, cabia velar unicamente por seus familiares e por seus bens,

    apresentando-se desvinculado do tecido social que o envolvia. Individualmente,como cidado, ainda no havia conquistado a plenitude de seus direitos polticose sociais, carecendo, durante o sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculoXX, dos poderes legais que lhe iriam permitir atuar politicamente. O indivduo

    burgus ento manifestava, e iria manifestar por longo tempo, profundadebilidade no que tange ao seu poder na sociedade, mostrando-se estruturalmentefraco para lutar pela defesa de seus direitos polticos.

    Desse modo, aps a elaborao do conceito de patrimnio,92 bastouregulamentar os direitos subjetivos relativamente aos bens materiais

    concepo que, efetivamente, prevaleceu desde o incio da era das codificaes.A liberdade, sob tal prisma, era absoluta; as restries a ela tinham unicamenteo condo de proteger as liberdades dos demais indivduos. A autonomia dos

    privados contrapunha-se ordem pblica e/ou aos interesses da coletividade, osquais somente em pouqussimos setores, considerados estratgicos, podiam

    prevalecer sobre os interesses dos privados. Tal concepo, denominadaliberalismo jurdico, apresentava o direito privado como o corao de toda avida jurdica e o direito pblico como uma leve moldura que devia servir de

    proteo ao primeiro.

    93

    A situao comeou a se modificar justamente a partir da necessidade deregulamentar as situaes extrapatrimoniais. Embora Savigny ainda tivesseinsistido em afirmar que o homem, sujeito de direitos, era, antes do mais,proprietrio de seu prprio corpo, essa concepo no carreou grandesseguidores,94nem atingiu os objetivos desejados. A vexata quaestiopermaneciasendo saber quais os poderes que detinha a pessoa para dispor de si, de seudestino, de seu prprio corpo, ou saber at onde a autonomia dos privados podiaavanar sem ferir a ordem pblica, a moral e os bons costumes designaes do

    91 Notria a definio de direito de propriedade formulada pelo Code, caracterizada pelaausncia de limitaes. Comentando o sistema de direito privado que se consolidou com aRevoluo Francesa, Michele GIORGIANNI aponta: ... os dois pilares desta concepo eramconstitudos pela propriedade e pelo contrato, ambos entendidos como esferas sobre as quais seexerce a plena autonomia do indivduo; maior importncia, contudo, h de ser reconhecida propriedade que ao contrato (o mtodo de sua aquisio), naquele sistema que assistia exasperao da defesa da propriedade, que constitua o smbolo da liberdade econmica Odireito privado e as suas atuais fronteiras. Revista dos Tribunais, a. 87, v. 747. So Paulo, jan.1998,, p. 39).92 Hans HATTENHAUER. Conceptos fundamentales del derecho civil. Barcelona: Ariel, 1987

    [1982], p. 95.93Assim relata Gustav RADBRUCH.Filosofia do direito, v. 2. Coimbra: A. Amado, 1961, p. 8.94HansHATTENHAUER. Conceptos fundamentales del derecho civil, cit., p. 103.

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    que, ento, se consideravam os princpios fundantes de qualquer ordenamentojurdico.

    Alm disso, as situaes existenciais a serem tuteladas exprimem-se nos em termos de direitos subjetivos, mas ainda em termos de direitos

    potestativos, de deveres, de nus, de poderes, faculdades, estados: ... no centrodo ordenamento est a pessoa, no como vontade de realizar-se libertariamente,mas como valor a ser preservado tambm no respeito de si mesma.95

    O princpio da liberdade individual consubstancia-se, hoje, numaperspectiva de privacidade, intimidade e livre exerccio da vida privada.Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferncias de qualquergnero, as prprias escolhas individuais mais: o prprio projeto de vida,exercendo-o como melhor convier.

    Como exemplos de situaes violadoras da dignidade humana em razo da

    leso ao princpio da liberdade, cabe referir desde a revista ntima a que submetido o empregado, o exame toxicolgico determinado pelo empregador eoutros exames em geral, como, ainda, a submisso ao chamado bafmetro, aimpossibilidade de recusar tratamento mdico por motivos religiosos, aincapacidade de controle acerca dos prprios dados pessoais (os chamadosdados sensveis), o rigor excessivo no exerccio da autoridade parental (deoutro lado, a falta absoluta de liberdade da criana ou do adolescente), a restrio manifestao de pensamento e de crtica, a priso ilegal e outras circunstncias

    semelhantes que, embora tambm presentes no direito civil, tm sido maistuteladas pelo direito penal, tais como o crcere privado, a violncia sexual dentro ou fora do casamento , a falsa denncia.

    Ao direito de liberdade da pessoa, porm, ser sempre contraposto oucom ele sopesado o dever de solidariedade social, no sentido que se expor aseguir, mas j definitivamente marcado pela conscincia de que, se, por um lado,no se pode conceber o indivduo como um homo clausus concepo mtica eilusria elaborada por Rousseau , por outro lado, tampouco podem existirdireitos que se reconduzam a esta figura ficcional.

    3.4. A solidariedade96

    Os direitos s podem ser exercidos em contextos sociais, contextos nosquais se do as relaes entre as pessoas, seres humanos fundamentalmente

    95Pietro PERLINGIERI.Perfis do direito civil, cit., p. 298-299.96 Parte substancial das ideias apresentadas neste item j havia sido desenvolvida em OPrincpio da Solidariedade, escrito para compor o volume comemorativo dos 60 anos da

    Departamento de Direito da PUC-Rio e publicado por PEIXINHO, Manoel; GUERRA, Isabela;NASCIMENTO, Firly. (Orgs.). Os princpios da Constituio de 1988. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2000, p. 167-190.

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    organizados para viverem uns em meio aos outros.97No sculo passado surgiu,em grande parte como consequncia das trgicas experincias vivenciadas aolongo da Segunda Grande Guerra, um novo tipo de relacionamento entre as

    pessoas um relacionamento baseado na chamada solidariedade.98

    De fato, uma parcela relevante do que acontece em nossos dias teveorigem nos efeitos da criao e da assimilao do conceito de humanidade,elaborado para dar resposta aos crimes praticados, no perodo de 1933 a 1945,

    pelo regime nazifascista. Foi a noo de crime contra a humanidade, at entoinexistente, que possibilitou que se comeasse a pensar na humanidade comouma coletividade, merecedora, enquanto tal, de proteo jurdica. A utilizao doconceito foi mais tarde ampliada, inspirando tambm a proteo de umpatrimnio comum da humanidade, desta feita contra a exploraodesordenada dos recursos naturais. Na expresso de um civilista francs, a

    humanidade apresenta-se como o conceito jurdico adequado para combater todasas formas de barbrie moderna, originadas pelo Estado ou pela tecnocincia.99

    A esse respeito, de se ressaltar a tbua axiolgica trazida pelasconstituies do sculo XX, elaboradas e promulgadas aps o trmino daSegunda Grande Guerra. Nesse novo ambiente, o valor fundamental deixou deser a vontade individual, o suporte ftico-jurdico das situaes patrimoniais queimportava regular, passando a ser a pessoa humana e a dignidade que lhe intrnseca. No caso brasileiro, a mudana de perspectiva deu-se por fora do art.

    1, III, da Constituio Federal de 1988 e da nova ordem por ela instaurada,calcada na primazia das situaes existenciais sobre as situaes de cunhopatrimonial.

    A Constituio de 1988, ao estabelecer os objetivos da RepblicaFederativa do Brasil, no art. 3, I, indica, entre outros fins, a construo de umasociedade livre, justa e solidria. Neste mesmo art. 3, no inciso III, h outrafinalidade a ser atingida, que completa e melhor define a anterior: a erradicaoda pobreza e da marginalizao social e a reduo das desigualdades sociais eregionais. Assim, esses incisos do art. 3 conclamam os Poderes da Repblica a

    uma atuao promocional, atravs da concepo de justia distributiva, voltadapara a igualdade substancial.

    97Ver, por todos, Norbert ELIAS. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahareditor, 2001 [1990], p. 97-99.98Umberto ECO.Entrevistas, cit., p. 208 e ss.99 Bernard EDELMAN, Le concept juridique dhumanit. La personne en danger. Paris: PUF,1999, p. 528. O autor arremata: Plus prcisment, ce concept dsigne quelque chosedabsolument indit: il est avr que les hommes, en tant quils constituent lhumanit, sont

    dsormais en danger: ce ne sont plus les individus eux-mmes qui mritent protection, mais lacommunaut humaine, rassembl autour de valeurs le respect et la dignit , de bienscommuns et dune mmoire.

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    Pode-se ento deduzir que, de acordo com o texto constitucional, aconformao de nosso Estado Democrtico de Direito tem como fundamentos adignidade humana, a igualdade substancial e a solidariedade social. A expressareferncia feita pelo legislador constituinte solidariedade cria em nosso

    ordenamento um princpio jurdico novo,100

    a ser levado em conta sempre,inclusive nos momentos de interpretao e aplicao do direito,101 por seusoperadores e demais destinatrios, isto , por todos os membros da sociedade.

    Do ponto de vista jurdico, como mencionado, a solidariedade est contidano princpio geral institudo pela Constituio de 1988 para que, atravs dele, sealcance o objetivo da igual dignidade social. O princpio constitucional dasolidariedade identifica-se, desse modo, com o conjunto de instrumentos voltados

    para garantir uma existncia digna, comum a todos, numa sociedade que sedesenvolva como livre e justa, sem excludos ou marginalizados.

    No apenas no mbito legislativo, mas igualmente no judicirio se revela aimportncia que adquiriu o princpio constitucional da solidariedade. O STF j outilizou como fundamento jurdico para o julgamento de diversas questescontroversas, como no controle da constitucionalidade do Programa Emergencialde Reduo de Consumo de Energia Eltrica, que previa metas de consumo e umsistema de tarifao especial;102da ampliao das hipteses de responsabilidadeobjetiva no seguro obrigatrio;103 e, especialmente, da sujeio dos servidoresinativos cobrana de contribuio previdenciria.104

    Em relao violao daquilo que no pode ser considerado um direitosubjetivo, nem uma faculdade, tampouco um poder-dever isto , nenhumacategoria preconcebida do direito civil lhe serve de vestimenta , asolidariedade, no entanto, pode dizer-se fundamento daquelas leses que tenhamno grupo a sua ocasio de realizao: ela abrangeria os danos sofridos no mbitofamiliar, nas mais diversas medidas, desde a leso capacidade procriadora ousexual do cnjuge at violncia sexual praticada contra filha menor, aodescumprimento da penso alimentcia de filho, ao no-reconhecimentovoluntrio de filho ou criao de dificuldades a esse reconhecimento, falta de

    visitao. Abrangeria tambm os danos causados aos scios minoritrios ou atexcludos de companhias, algumas espcies de danos sofridos pelos chamadosgrandes traumatizados, como as crianas e os idosos, e o descumprimento dosdeveres fundados na boa-f.

    100Ver Paulo BONAVIDES. Curso de direito constitucional, cit., p. 259.101Pietro PERLINGIERI.La personalit umana nellordinamento giuridico, cit., p. 161.102 STF, Pleno, ADC 9, Rel. Min. Nri da Silveira, Rel. p/ acrdo Min. Ellen Gracie, julg.13.12.2001, publ. DJ 23.04.2004.103

    STF, Pleno, ADIMC 1003, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 01.08.1994, publ. DJ 10.09.1999.104 STF, Pleno, ADI 3105, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acrdo Min. Cezar Peluso, julg.18.08.2004, publ. DJ 18.02.2005.

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    Parte-se daqui, evidentemente, para as hipteses mais conhecidas etuteladas e que tm como fundamento a solidariedade social: os danos causadosaos consumidores e os danos causados ao meio ambiente.

    Todas as hipteses lembradas, no que se considerou os quatro principais

    corolrios da dignidade humana, devem ser entendidas meramente comoexemplos, e no s a sua classificao ainda incipiente, como a sua inclusonuma categoria no exclui a possibilidade de se encontrar tutela em algumaoutra. O dano causado pela morte de um ente querido pode dizer respeito tanto leso da integridade psquica quanto solidariedade familiar; a violao daintimidade pode aproximar-se mais da libe