Cenas da Vida Pó-Moderna - Beatriz Sarlo
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156 cENAS DA vrDA Pós-MoDERNA
na construção de uma fama dois perfis no New York Times ou
três reportagens num jornal latino-americano, o quanto utn
Oscar pesa mais que um prêmio em Cannes, ou vice-versa.De modo algum tais afirmações do mercado estão isentas de
transcendência: tudo isso faz parte de um mapa cujos marcos
dependem dos costumes e das instituições; o público se deslocapor essa cartografia cambiante, às vezes seleciona um certoterritório, noutras vezes é deportado para outras zonas, confor-me a conveniência do mercado; certos públicos ocupam sempre
as mesmas fileiras, como se estivessem confinados; outros
aprenderam a desÌocar-se entre regiões diferentes e a decidirseu próprio rumo. Ninguém se mexe na base de uma liberdadesem limites; os mais pobres, menos favorecidos, são prisio-neiros de seu local de origem.
A neutralidade valorativa indica que mais democrático é
pensar que tudo é possível e igualmente legítimo. O passado
da arte é um grande depósito, ao qual se pode recorrer a fimde buscar o que for necessário, e não existe outra regra que
governe a entrada e a saída de mercadorias. Entretanto, a situa-
ção não nos autoriza a sermos otimistas: criou-se uma fraturaentre os artistas e o público de massa que as vanguardas culti-varam como sua marca de distinção, mas que, ao mesmo tem-po, pretenderam exorcizar violando os limites estabelecidos ins-titucionalmente para a arte. Nessa fratura, o mercado trabalhapara si e não para uma utopia de igualitarismo estético. Nessa
fratura, há pouco que possa interesar a uma discussão sobre
a arte. O absolutismo implantado pelo relativismo estético é um
dos paradoxos da modernidade, etalvez o último. Também nes-
te caso, no reverso de uma posição triunfante, por mais justa
que ela pareça, poderia ser descoberto um fato de barbárie.
Solapados os fìndamentos do valor estético, aumenta
como nunca a força dos especialistas (do mercado, da acade-
O lugar da arte I57
rrrr,r, rl:r rrrítlia). Se antes era preciso buscar legitimidade em
l,,rr),,r:. tlisltutas no interior do campo artístico, hoje ela pode
, r ,rlrtitlir crl instituições menos interessadas pelas perspec-
rrr.r', t'stúticas. Enquanto se afirma a soberania do público'
1, lorçlrrrÌ-sc as balizas que designam os territórios onde essa
,illrr'|lrniu é supostamente exercida. A discussão sobre valores
rr,r .rrlt' cxcluiu milhões de pessoas porque' efetivamente' era
rrrrr,r rliscltssão entre protagonistas. O fato de que hoje essa
,lr'., rrssrìo tenha sido riscada da agenda (de que ela seja con-
.r,l, rrtlu fbra de moda ou de que lhe seja imputada uma vocação
rlr' :rlrsoluto típica da modernidade que se pretende superar)
1,,rrh'Set um sinal da democracia dos tempos' Seja como for'
r,rnrlrúnr seria preciso considerá-la como um resultado da ex-
lì.rrsrìo sem precedentes do mercado capitalista na esfera das
.rrtt's. ll é bem sabido que o mercado é cego perante as dife-
r, n\-iìs, como a imagem mítica da justiça'
O pluralismo e a neutralidade valorativa, por outro lado'
rr,r,, significam a mesma coisa na esfera da arte ou na perspec-
trvrr rr partir da qual são julgadas as diferenças entre os po-vos
, os costutrÌes. Pode-se afirmar, ainda, que a arte'não vive da
,,,t'ristência das diferenças e sim da utopia de um absoluto'
(): lrstados e as instituições são os guardiães da eqüanimidade:
l)iil('cc que os artistas se adequaram melhor às posições exclu-
r lt'rrtcs. Talvez abordar a esfera estética da perspectiva do plura-
lr:,rrrrr religioso ou político signifique, em vez de colocá-la sob
r lrrrrrinação sociológica verdadeiramente inovadora, obscurecer
,rlritrrts dos traços que realmente a definem'
O fato de os valores serem relativos a suas respectivas
',,re icclades e épocas não deve excluir o interesse pelo debate
',,rlrlc quais seriam, para nós, esses valores. Saber que eles nllo
rlt,vctìì ser impostos a outras culturas é um obstáculo ao abstl-
CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
Intelecruais, arte e uideocultura
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I24 cENAs DÁ vrDA pós-MoDERNA
como as vanguardas, contra o sentido comum do público. Tam_pouco que sua arte é pura negatividade, crítica estética que se
converte em crítica ideológica. pelo contrário, Ozu e Ford nãosó nunca se colocaram fora da indústria cinematográfica, comoafinal foram pilares da credibilidade de um cinema de massanas décadas de 30 e 40. Junto com as banaliclades que os gran_des estúdios atiravam sobre as telas de todo o planeta, os filmesde Ozu e Ford (ou os de Wyler, ou antes de Griffith e Chaplin,mas também os de Hitchcock, para irmos direto ao assunto)são obras perfeitas, em que a linguagem do cinema está desen_volvida a ponto de alcançar seu estágio clássico. São filmes per_feitamente reconhecíveis: os planos gerais de Ford e os enqua_dramentos de Ozu hoje são considerados marcas pessoais quepassaram a fazer parte da gramática do cinema.
A pergunta sobre Ozu e Ford poderia ser multiplicadaindefinidamente: por que temos a convicção de que Canrandona chuva está tão longe de Fama ou Embalos cle sábado à noi-te? O filme de Stanley Donen e Gene Kelly foi, de imediato,um grande sucesso e um modelo de musical, cuja obsessivi_dade detalhista construía uma forma impecável. O que conver_tia esses diretores e esses filmes, de uma vez por todas, emfaçanhas estéticas singuÌares e grandes favoritos de todos ospúblicos?
Talvez a pergunta não esteja bem posta. provavelmente,
a formulação correta seria: o que permitia que Ford , OzLt,Hitchcock e Wyler fossem compreendidos por um público demassa, que consumia o cinema mais banal mas também RioGrande c Hi.çtória em Tóquio? O que se passava com a culturadesse público? Sob que condições Ozu e Ford conseguiramnão ser tolcradcls ìr margem (um no Japão e o outro nos EstadosUnidos) e sim manter-se no centro de um sistema de produçãoe consagração'l
O lugar da arte I25
lÌrr urn lado, a indústria cultural não tinha acabado de
rrrrpl:rrrlll sua hegemonia sobre todas as formas culturais ante-
u,)r('s. l)or'outro, as vanguardas não tinham dividido por com-
I'lr'to, nunìa cisão definitiva, o campo da arte. Quando essas
rrrrrtlrrrrçus aconteceram, na segunda metade do século XX, a
,rrrrpliirçho estratificada dos públicos e a experimentação estética
lì,r',siìriuìr a trilhar caminhos distintos, que se cruzam apenas
, nÌ ('irsos inteiramente excepcionais. Com a música e a literatu-
r.r, isso aconteceu antes do que com o cinema.
l)or que devemos nos preocupar com um processo que
p,u('cc irreversível e que, além disso, apresenta aspectos demo-
, r irticos'Ì Com efeito, a implantação das indústrias culturais tem
,,,rrscrltiências niveladoras e levanta um marco de ferro para
,rr;rrilo que muitos se comprazem em chamar de "cultura co-
rrrrnÌÌ". Ninguém pretende colocar-se nas antípodas desse oti-
rrrisrrro, e muito menos fazer a crítica elitista desses protestos.
Nas páginas seguintes, contudo, tratarei de apresentar,
,rtrrvés ile uma série de retratos de escritores e pintores, os
tr:rços tipicamente modernos da arte, que a cultura audiovisual
rl(' rÌìorcado parece destinar a um desvão visitado apenas pelos
( ,il)ccialistas ou por públicos muito vocacionais. Embora suas
,,lrnrs sejam expostas ou publicadas, o modelo de artista que
{ r,s('s retratos apresentam foi tocado por uma clara margi-
rrrrlitlacle. Existem, sem dúvida, grandes escritores cujos livros
.rtrr(ìrn centenas de milhares de leitores; mesmo assim, um mo-
vrrrcnto como o boom da literatura latino-americana, nos anos
t,{ ) r' 70, hoje atravessa uma fase quase residual, em que apenas
('', llrÌtores consagrados naquele tempo conservam o público
rrr:rssivo que então se constituiu.
Os retratos que proponho tentam provar a variedade com
rlil(' ir iÌrte opera. Ela cruza e superpõe faixas bem diferentcs:
l
I28 CENAS DÂ VIDA PÓS-MODERNA
com que se concentra. Explica em detalhes questões técnicas:como é feito o traço do junco na pintura chinesa, quais osmelhores papéis para trabalhar com aquarela, como mistura astintas para obter os cinzas que se distinguem, numa escaÌasutilíssima, a partir dos pretos mais intensos. Suas opiniões so_bre pintura são mais breves que suas discussões sobre cinema.Decerto sua formação técnica é mais compÌeta que sua culturaestética. Não vê toda a pìntura como especialista, mas conhecebem o que conhece. euando fala de pintura boa ou ruim suasopiniões têm um tipo de densidade compacta e nenhum espíritode conciliação.
Da mistura caótica de seus gostos, seus desenhos con_servam provas quase invisíveis. Durante anos, desenhou perso_nagens pequenos que, vistos a uma distância .,normal,,,
pare_cem meros grafismos. Tais desenhos têm uma dupla perspec_tiva: de longe são composições abstratas, pelas quais se esten_dem grandes massas vaporosas que formam espirais interrom_pidas, círculos incompletos ou superfícies que não evocam ne_nhuma geometria, mas somente a ocupação livre do plano que,por vezes, parece o grande fragmento de uma composição au_sente; de longe, esses desenhos conseguem um movimentoamplo e desenvolto sobre a base de grafismos muito pequenos.Vistos de perto, os grafismos revelam_se como personagensdiminutos, paisagens, casteÌos, monstros, cavalos, moinhos,vegetações de ficção científica, heróis de histórias em quadri_nhos sobre a idade da pedra. Estão saturados de significaçãocultural, ficções de terceira, ícones que evocam uma espécieoriginal de rctrô pop, ou sci-fi ott contos de fada. Tolkien visi_tando a abstração.
As duas perspectivas desses desenhos podem ser inter_pretadas como uma hipótese estética sobre a mistura de cul-
O lugar da trtt 129
turas. seus refinados cinzas e pretos evocam um cromatisrnoque se resolve, como no cinema ou na história em quadrinhos,em branco e preto. A abstração dos grafismos, vistos de longe,revela, quando a perspectiva é próxima, citações de um ima_ginário cultural que a composição do desenho nunca teriapermitido supor. A mistura de abstração e imaginário ficcionalnão causa conflito. As duas perspectivas integram diferençase permitem ver não várias coisas ao mesmo tempo, mas sim,conforme o lugar a partir do qual se ajusta o foco, dois sistemasde representação que conservam o rastro de suas diferentesorigens culturais.
Pintura e razíÍo. Falava cliante de seus quadros e nãoadmitia que o espectaclor ficasse ensimesmado nas peripéciasde sua visão. Acreditava que é preciso falar da pintura e quea arte (não só a pintura, mas também o cinema, os romances,a música) é uma matéria que o discurso captura, rodeia, inter_roga, contradiz. Diante de sua própria obra discorria como umintelectual. Nada nele evocava a imagem clássica do pintorcntregue à sua pulsão como que mergulhado em águas luaseclesconhecidas, nem a ìmagem mais atual do indiferente queclesconfia da polêmica e das posições fortes. A polêmica erascu território preferencial: ela permitia que ele empregasse umaartilharia de motivos sem sacrificar seu gosto pela hipérbole.lìazia do diáÌogo uma forma do conflito estético e não umac,rnunicação de informações sobre o mercado de arte ou osprômios.
Preservava do passado a tensão política (uma espécie del)cnnanente alerta ideológico) e o estilo de intervenção vanguar_rlista. Foi invariavelmente excessivo e desconheceu as estra-tógias de poupança do capital estético, de reaplicação do pres_lÍgio acumulado e de moderação elegante em face dos clonosrlt. galerias, colecionadores ou críticos.
130 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA
Referia-se à própria obra com a ceÍteza paradoxal de que
não estava falando dele mesmo: tratava-se, pura e simplesmente,
de pintura. Passava de seus quadros à história da pintura num
gesto que também explica quanto de história da pintura existe
em seus quadros. Mas era totalmente hostil ao colecionismo
pós-moderno da citação decorativa. Não visitava o passado co-
mo um arqueólogo, para inscrever em seus quadros os restos
de encontros caprichosos. Como um verdadeiro moderno, co-
nhecia a tradição a ponto de arriscar-se a parecer erudito ou
pedante. Suas decisões seguiam uma linha bem pensada.
Escolhia suas citações para demonstrar que o ato de pintar
inclui uma reflexão sobre os procedimentos e sobre o passado
da pintura. Trabalhou com as estrelas das vanguardas russas,
os ícones expressionistas, as naturezas mortas da representação
reaÌista, às quais dedicou um virtuosismo que lhe permitiu
mostrar fielmente os limites do realismo: pintou uma fruteira
branca sobre uma toalha branca, em homenagem a Malevitch,
a quem citaria muito depois em suas últimas obras. Mesmo
quando seus quadros citam claramente outros quadros seus,
estão longe da clausura espetacular, da repetição e do narci-
sismo. Essas claras referências à própria obra são um momento
a mais da reflexão estética.
Seus quadros proporcionam uma felicidade que pertence
à ordem do sensoriaÌ e não só à ordem da razão. Mas essa feli-
cidacÌe, que nos chega como uma iluminação persistente, está
perpassada pela idéia antidecorativa de densidade conceitual.
Urna explosão de cores sustenta a distorção de grafismos obs-
curos. e inquietantes, nos quais o traço é livre e pesado ao mes-
mo tempo; uma série de objetos simpáticos e cotidianos nos
inquieta por sua sintaxe abstrata; uma simples capa impermeá-
vel se converte no pesadelo hiper-realista de frutas reiteradas
O lugar drt artt' l3 I
corno se fossem motivos geométricos; as briÌhantes estrelas cla
'cvolução são atravessadas por pranos que destroem a estabi-
liclade das cinco pontas perfeitas; os vermelhos mais ricos etlçcorativos recobrem somente a metacle da tela; sobre a outrarrrctade, como um esqueÌeto traçado prosaicamente a lápis,nlostra-se o futuro do quadro que não chegou a ser pintaclo;rr rrrtificiosa fotogenia de grupos famiriares é questionacla porcspclhos que nos impedem de contemplar tranqüilamente orrrotiv<l (reunião de pais e filhos, crianças), porque a nossa posi_
çlr. cle espectadores está comprometida; as cadeiras, os pincéis,rs
'artelos flutuam num espaço não-figurativo, num fundo pu-
I iuìÌclìte pÌástico.
A feÌicidade de sua pintura cerebra a possibilidade cler'.rrrirruar a pintar depois das últimas clécadas. É possíveÌ conti-lr'irf ir pintar depois da arte conceitual, das instalações, dosItrtltltt',irtgs, da arte de manifesto porítico. Entretanto, essas dé-r'rrtlrrs rrão passaram em vão: ele sabia que não bastava mostrar,,'lr lì.licidade. Sem negar-se a experimentação alguma, pintou,rt\\int, u razão da beleza e a beleza d,a razão.
l,ú,s.snros. passa um bom tempo observando pássaros.l{r'rrrirr urna boa bibliografia: tem binóculos, botas de borracha,rrrrr t'lrrpéu de palha, um cantil
- enfim, o bastante para verr", |itssltr.os ern lagoas, planícies, canaviais, pântanos, rios e,lirrnrirlnÌcrìrc, bosques ou simples montes cobertos de eucalip_tr,. lrxplic. que o observador de pássaros é uma espécie de,.L'r'r..lrtl.l'de lembranças, pois a única coisa que guarda clelìrrr\ r'xr)c(lições são as linhas que registra no seu caderninho,rr',',ilrr: vi trrl piissaro, macho ou fêmea, sozinho ou em bando,r',ir'rl. .rr Pousado, perto do ninho ou atrás de alimento,r rurrirrrl'.tr crn silêncio, caçando minhoca ou bicando migalhas,rrr'r1'rrllrrrrtkl rr., charco ou parado no galho; também anota u
&
I32 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
hora e o local geográfìco preciso; acrescenta se o pássaro visto
é difícil de achar, fácil ou excepcional (segundo uma escala que
consta dos livros para observadores de pássaros). Nessa ob-
servação, ao mesmo tempo, seus olhos tornaram-se mais pers-
picazes para registrar os acidentes da natureza e as variações
da paisagem; sabe como são os reflexos da água ao meio-dia
e ao entardecer, em que se dif'erenciam as nuvens, que efeitos
são causados pelos juncos no rosto de uma menina ou sobre
as tábuas do cais. Isto lhe aguçou a atenção para as variações
mais diversas: são tão poucas as diferenças entre alguns pás-
saros que é preciso ater-se bem aos detalhes; e a luz é só a
do sol ou de mormaço, para quem não se dedica por horas a
fio a notar como a luz muda de modo imperceptível e firme'
sobre um galho ou sobre o Pasto.
Sempre se interessou pelas variações. É leitor de edições
anotadas que contenham todas as variantes sofridas por um
texto enquanto seu autor o escrevia e corrigia. Também colecio-
na edições bilíngües e segue com um detalhismo cabalístico os
deslizamentos que as palavras sofrem quando passam de uma
língua para outra. Seu gosto pelas variações o Ìevou a aprender
latim, porque não há nada mais incrivelmente cambiante do que
uma língua que não é mais falada; nas versões do latim podemos
ler a cultura e a história de cada um dos diferentes tradutores'
De vez em quando, ele próprio testa a mão em traduções. Di-
verte-se com os jogos de palavras; usa um dicionário que per-
mite procurar palavras espanholas como se fossem inglesas e
montar poemas cstapafúrdios sob o ângulo do sentido, mas que
soam perfèitamente como Poemas.
Sua literatura pertence à família desses prazeres. Escre-
veu muitos nomes de pássaros em poemas nos quais a paisagem
é leve e tranqüila; um reflexo de luz ou o som da água são
O lugar h rrtt 133
revelações brevíssimas da paisagem; é preciso ficar à esprcita,para registrá-las logo, antes que se desvaneçam. Depois pt_rclenr
ser retocadas infinitas vezes, mas sempre mantêm o caráter cle
algo que reteve o tempo num abrir e fechar de olhos. Os poe_lÌlas que ele escreve desse modo são, ao mesmo tempo, inten_samente objetivos e nitidamente pessoais: neles, resta aÌgo deurna experiência no mundo, uma experiência que não é dramá_tica, nem psicológica, e sim visual. Escreve a plenitude das sen_
sações no mundo, mesmo sabendo que cada uma dessas pa_
l'vras suscita um problema filosófico: plenitude? Sensações?Mundo?
Constrói variações de um mesmo texto: versões em que,irs vczes, o que muda é o ritmo; outras vezes, algumas palavras;('lrì outras, o tempo de um verbo; outras incluem, para o ouvicloirl('nto, ligeiras alterações sonoras; em outras, por fim, tudorrrrrtla. Sabe explicar muito bem por que corrigiu o que corrigiu:t'orrro Iê com precisão os outros poetas, pode ler com precisãost'rrs 1lróprios escritos.
Quando corrige algo numa versão e conserva a versãoirrrlt'r'ior, seus leitores podem ver o poema tão claramente como',r' r's(ivcsse montado dentro de uma caixa de cristal.
('onversctção. Gosta das piadas simples que aprendeuno,. rrllirnoq anos da escola primária e ri às gargalhadas comu\ l()l1os cle palavras mais bobos. A arte da conversação nãoí', Irllr clc, um exercício de competência nem uma extensãorlr.'.rr;r litcratura na vida diária, e sim uma prova de amizaderlr(' (l('vc scr aÍ'etuosa, brincalhona, hospitaleira, embora, porr'r'/r.s, lt.r'rrrirre em brigas homéricas. pratica uma conversaçãoIrìllrt rlc trlusões, tiradas conhecidas, com a recorrência cle
Irrrprrrrcrrlrs tlc Íìases, anedotas que conta atabalhoadamente,r ilil1' s(' niro soubesse narrar bem um fato nem apresentar unl
134 cENAS DA vlDA Pós-MoDIRNA
personagem. Sua ironia sempre ressalta demais' e a graça
freqüentemente causa um efeito que não entrega tudo ao
subentendido e ao não dito. Diverte-se fazendo demonstrações
evidentes e não procura quase nunca a originalidade em suas
observações. Não faz questão de parecer inteligente'
Seus olhos' entretanto, durante essas longas conversas
fiadas, ficam contraclitoriamente acesos, como se a vista esti-
vesse buscando o que suas paìavras sequer se propõem trans-
mitir. Alguém dentro dele está atento e, às vezes' vem à tona:
quando pronuncia uma diatribe política, quando faz juízos
morais duríssimos, quando eventualmente é provocado com o
nome de um escritor querido ou desprezado'
Homem de província, vive em Paris com a distância fria
e pouco deslumbrada de quem não está disposto a comprar
quinquilharia alguma dentre as que o mercado cultural oferece'
Nem mesmo com relação à própria obra ele se mostra disposto
a participar cle qualquer transação, por menor que seja' A
literatura na televisão para ele é um pesadelo, do qual prefere
abster-se de aparecer como personagem' Quer ser lido' mas
não é capaz de buscar admiração mediante o cultivo de uma
vida literária que lhe exigiria uma constância que ele só dedica
à literatura.Lê o que lê: um sistema cÌifícil de conhecer de todo'
porque às vezes apresenta leituras duvidosas e outras vezes
oculta leituras completamente seguras' Sabe-se, de todo modo'
que admira Adorno, Sartre' Borges, Juan L' Ortiz, César Vallejo
e Antonioni. Também é sabido que, desde moço, cultiva uma
crítica irritacla e intolerante para com a chamada "nova litcra-
tura latino-americana" ouo "boom da literatura latino-ameri-
cana". Um cle seus alvos favoritos é, naturalmente' Gabriel
García Marquez; nunca achou que Manuel Puig fosse um
grande escritor.
O lugar rJa rrrt 135
Sua obra de ficção é compacta e extensa. Nela tamptluco
llretende se mostrar inteligente. Só busca a perfeição que tenha
Ir poesia como horizonte. Seus personagens e suas tramas, con-
trrclo, resultam de um interesse inesperado, quando se considera
tlrc são quase sempre os mesmos, recortados na mesma paisa-
gc:rn e discutindo na realidade muito pouca coisa. Sua literatura
titlil'ícil, se o que se espera são idéias citáveis e argumentos
rurrrírveis. É preciso lê-lo como se lê a poesia, bem devagar,
;xrra captar, no ritmo das fìases e na matéria das palavras, o
irviuìço fentíssimo de relatos que estão literalmente colados na
litrg,uugem. Como programa estético, também ele poderia es-
('r'('vcr: "Atrás de ti, linguagem amadíssima".
Em seus romances, o tempo se arrasta como se não
lrrrrk:ssc transcorrer, embora de repente fique claro que já
pirssor.r para sempre. As descrições parecem mostrar algo
rrpn'crrsível, mas logo se repetem: as mudanças numa paisagem
\ri() tiuìtas que a descrição é só uma aposta contra a multipli-r rrlrrtlc clo mundo que a literatura rodeia sem nunca capturar
Irrlrinrnrcnte. A dramaticidade da condição humana não provém
rll r'pisriclios especialmente dramáticos, mas sim da presença
rhr rlrt' tlcsconhecemos, aquilo que, provavelmente, nunca será
tr'r't'l;rtkr corrìo uma verdade. Entretanto, a pergunta sobre a
r'r'rrlrrt[: í'uz sentido, apesar de ele saber que a resposta é impro-
r,rtvll. lÌlc sabe que o sentido é difícil, mas renunciar ao sentido
rì urrl lllrrralidade.
Srrir escritura perf'eita mostra até onde pode chegar a
r,ht Itliltil.
Intttitt. E,screve desde muito jovem. O primeiro trabalho
sÍru rlu(' li, lrí rnais de dez anos, foi um texto em que imitava
lrl lrr'rilol clue admira até hoje. Distinguia-se, porém, pelo
nrrrrln rlt' ;rllrcsontação, feita com certa violência, de utn fattl
1.36 cE,NAS DA vrDA pós-MoDERNA
que, provavelmente, o escritor admirado não teria escolhiclo:a concentração e o trabalhoso esforço de um cachorro fazendococô. Nessa mesma época, fez uma longa reportagem com oescritor admirado, no transcurso da qual sofreu a desventurade deixá-lo enfurecido. EIe, o jovem escritor, permaneceu im-pávido. Desde então publicou vários romances.
Estudou literatura na universidade enquanto trabalhavacomo motorista de taxi. Formou-se e imediatamente recusouuma possível carreira universitária. Também abandonou o taxi,sem entretanto esfalfar-se em busca de empregos que neces_sariamente tivessem a ver com literatura. Interessou-se peÌateoria literária de modo silencioso; de todo modo, fica claroque a única coisa que lhe interessa de verdade é a própria litera_tura. Do mundo literário conserva algumas amizades fiéis, masnunca freqüentou outros escritores como um dever que todoescritor cumpre a fim de obter o reconhecimento entre seuscolegas. Estes o respeitam, embora talvez o considerem umtanto reticente.
Sua reÌação com a linguagem surpreende, tanto quanclcl
o escutamos quanto quando o lemos. Filho de estrangeiros, clc
origem judaica, em suas conversas recorre a uma forma po-pular do espanhol rio-platense, cheia de palavras e gírias quccaíram em desuso. Não explica de onde as tirou. Esse traçode originalidade pitoresca, contudo, não é o que o singularizirSua marca pessoal é a ironia. Para quase todo mundo, a ironiiré uma forma de considerar e apresentar o que se pensa; unìirforrna que se usa muito ou pouco, mas que não chega a corì,verter-se no único modo do discurso. Em seu caso, entretant().a ironia é urrr traço permanente que ele nunca abanclona porcompleto; poclc cstar na superfície das frases, ou manifesturse através de uma levc rnudança de tom, jogando abertamerrtt,
O |ugar da trrt 137
rro choque de sentidos ou dissimulando_se em toques ben.rligciros. Seja como for, está ali o tempo todo.
Por isso, é muito difícil entender com alguma segurançao rluc ele está dizendo. Seus interlocutores permanecem sus_
lìrltsos, não na indecisão sobre um sentido em particular, mashr, lìa indecisão mais geral sobre o senticlo de todas as frases:clc lrÍ'inal está cumprimentando uma pessoa ou debochandorlclir'/ Ele assegura o que assevera ou justamente o contrário?Attí lr<l.ie sua literatura manifesta esse sentido irônico de diversosntotkrs. Principalmente, no uso desviaclo das palavras. Mas nãor(. ltittit de desvios muito óbvios, que façam questão de contra_rlizel os sentidos habituais da linguagem.
'l-rata-se, pelo contrário, de separações infinitesimais dosàcttti(los comuns, brechas na superfície das palavras que nãorr't',rrvcrtem em ohstáculos intransponíveis, mas sim em bre-v*l irrrcrrupções. Lendo seus romances, estamos numa situaçãorle' irrst:gurança contínua, mas tênue: as paÌavras às vezes nãofrnn'ef rÌì apresentar respostas completas, como cle costume; àsvr1/('s s0 desviam para um Ìado "incorreto", ou buscam esten-rler rr. irló ocuparem o lugar de outras palavras.
liscreve como se olhasse a linguagem cle soslaio, não porrlr,rlonÍiunça (isto seria quase um lugar_comum), e sim comoté nlìo livesse lembranças da linguagem, como se esse instru_llenlo íì)sse algo que ele conhece perfeitamente mas que, aoilltshlto lclnpo, parece_lhe um território estranho do qual precisalrfrlolrli'11'-ss. Seria um equívoco pensar que sua relação élfirrprrllr: trata-se, antes, de uma perspectiva em diagonal sobrelllil Í'sl)irço clue habitualmente olhamos de frente. Ao escrever,ftctlunl. cstraclas laterais e caminhos clesviados.
Itt,rôrtitt. Acordou no silêncio das altas horas; seu maridorl.h.rrrrsrrvrr rì.1ìr espaço próximo e fechado. A casa chiava ccln-r
138 cENAS DÁ vtDA Pós-MoDERNA
ruídos cíclicos, quase imperceptíveis. Mexeu nuns papéis. Na-
da. Só podia pensar naqueÌe outro, o escritor mais velho' ho-
mem de paixões contidas e públicas ao mesmo tempo, o poeta
tocado pelos deuses e pela fama' Sua admiração era tão poderosa
quanto seu desejo de ser mais que esse homem.
O que os unia a ponto de separá-los era, nessa noite e
nos dias seguintes, uma precipitação quase cega sobre as
palavras, nadando contra a corrente de um líquido elástico e,
ao mesmo tempo, insubstancial. Unia-os a perseguição do
mesmo, da qual o mais sortudo preservaria, entretanto, um
diferente rastro. Unia-os também a busca de favores, o sucesso
no ofício de apresentar a própria obra, a idéia de que tinham
uma missão e que outros (sem missão a cumprir) deviam reco-
nhecê-la. Unia-os a diferença entre eles, e ainda a diferença mais
radical entre eles e os outros homens e mulheres. Unia-os o amor
pela beleza, que reconheciam como uma paixão superior, e pela
fama, que concebiam como um truque no qual davam mais do
que recebiam. Unia-os, sem dúvida, o respeito pelas ferramentas
do ofício, a convicção de que só era possível aprender a usá-
las até certo ponto, e a crença de que o trabalho que realizavam
era extenuante dém de todos os limites. Procuravam'
A mulher, acordada, mas incapaz de escrever uma só
palavra, sem vontade de ler nem ver nem ouvir nada, pensou
que o outro dormiria tranqüilo, sem saber que ela, nesse instante,
pensava nele com uma admiração esfriada pela inveja ou, antes,
com os restos de uma inveja que a admiração tornava supérflua.
De todo modo, a juventude estava a seu favor: comparou o
que ambos tinham escrito, a idade que tinham quando publi-
caram o primciro Iivro. Ainda faltavam alguns anos para que
a mulher que não conseguia dormir chegasse à idade em que
o homem que dorrnia líl longe tinha alcançado o seu primeiro
O lugar li trt( I .19
grande sucesso ou, se preferirem, sua primeira grande obr.lr.
Sem dúvida, pode-se admirar um escritor mais velho com rnais
tranqüilidade do que um contemporâneo. Mas esse velho tinlruque continuar vivendo, porque sua morte significaria o fim dc
qualquer possibilidade de ele afinal reconhecê-la como sua se-
melhante. Apesar de tudo, tinham mais coisas a uni-los do que
a separá-los: A religião da arte? A república das letras? A busca
em comum pela beleza e pela verdade? O trabalho sobre os mes-
mos assuntos com os mesmos instrumentos? A leitura de aìgu-
mas centenas de livros? A separação insuperável que sentiam
diante das peripécias repetidas do cotidiano? A idéia de que
competiam no mesmo espaço e de que a competição não os
diferenciava tanto um do outro quanto a ambos do resto dos
seres humanos? A obsessão do fracasso e do êxito? A crença
alternada de que tinham vencido e perdido?
Mas o que os unia, enfim? Eram paroquianos da mesma
igreja? Membros do mesmo partido? Gostavam dos mesmos
vinhos ou da mesma paisagem? Talvez sequer se sentissem
comovidos pelos mesmos livros, sequer citassem os mesmos
versos de um poeta lido por ambos. A mulher soube, entretanto,
clue descobrir o que os unia era importante para dissolver a
distância que os separava. Mas, afinal: o que se pretendia
tiescobrir? A verdade da inveja, arazáo de uma amizade intensa
com um homem quase desconhecido, o assombro diante de
uma obra considerada admirável, o direcionamento para um
lugar onde talvez não se encontre o que se procura e onde tam-
pouco o outro encontrou o que buscava, o cansaço e a imaginu-
ção que afoga a escritura. "Andamos às cegas, sabendo, por
outro lado, quase tudo o que há para se saber". "Assim", clissc,
uma vez, o homem certamente adormecido à mulher insrtrrt',
"assim é a arte".
142 cENAS DA vrDA Pós-MoDI.RNA
se manifestam nos artistas, nos críticos, nos editores, mesmo
nos suplementos tlos jornais (aos quais ninguém atribuiria ta-
manha responsabilidade em outras áreas). Afirmam: a arte é o
que é, e o que ó é o que as convenções decidem que seja' Ao
fervor essençialista que buscou os fundamentos da arte, con-
trapõe-se unla pcrspectiva tomada de empréstimo à sociologia
cla cultura. Esta, a sociologia da cultura, operou como um ácido
cliante clo essencialismo, ao elitismo e às místicas da diferen-
ciação (que seriam as doenças da soberba estética) dispondo
as peças de uma'construção institucional que parece convincente
quando julgada por sua capacidade descritiva do funciona-
mento da arte na sociedade.
Num ponto, considerar a arte como instituição implica
situá-la numa proximidade proJhna, na qual se dissolvem as
veleidades de excepcionalidade porque os movimentos, os im-
pulsos e as regras sociais tambérn atuam na esfera da arte' A
perspectiva institucional desvenda as fantasias que os artistas
teceram sobre sua prática e revela que estão tão sujeitos às
determinações econômicas e sociais quanto as pessoas que se
ocupam da produção de mercadorias ou da disputa pelo poder'
Com uma particularidade: tudo isso acontece apenas por inter-
médio das forças e formas próprias do campo específico no
qual os artistas se movem.
Na modernidade, as relações entre os artistas e o público,
entre escritores e editores, entre pintores e marchands, mesmo
entre os produtores cuÌturais, ocorrem nvm espaço orticulado
como cenq)(t de.f'orças que não refletem diretamente as tendên-
cias enlrcntaclas em outras dimensões sociais' mas que confi-
guram uÍna cstrLltura especializada. Nela, os artistas situam-se
conforme o patrimônio cultural que acumularam ou que rece-
beram de herança. As tomadas de posição no campo intelectual
O lugar dt arrt 143
liclrrn restritas aos verdadeiros impulsos que as regem: a busca
tle consagração e legitimidade para as próprias obras, a com-
perição entre artistas, suas estratégias de luta e aliança' Não é
() carnpo sagrado da arte, e sitn um espaço profcmo de conflito'
( ) sociólogo atento (Pierre Bourdieu é seu paradigma) ouve os
rliscursos para descobrir neles o que negam ou ocultam: o
rlcsinteresse artístico só revela sua verdade quando pensado
('()rììo um investimento econômico a longo pÍazo' Os artistas
sr' .rìlttum para situar sua obra e, ao fazê-lo, permanecem cegos
rlirurtc da verdade de suas práticas. Quando falam de arte,
llrrrrbórn estão falando de competição; quando parecem mais
olrt'ccados pela busca de uma forma, mantêm outro olho ligado
rro nrcrcado e no púbÌico.
Essa sociologia da cultura reconduz (e reduz) as posi-
çocs cstéticas a relações de força dentro do campo intelectual
t' prrrpõre uma leitura pouco afinada justamente com as "regras
rltr lrrtc", tal como os escritores e artistas as apresentam diante
rlt' si 1lrírprios. O que resta dos conflitos quando qualquer toma-
rlrr rlc posição estética é interpretada como busca de legi-
trrrritlucle ou prestígio? O que resta das escolhas quando a liber-
rlirtlc rtão é senão uma ideologia entre outras, à qual se recorre
prrlir tlissimular desejos menos imateriais de consagração? O
r;rrt' r'csta dos vaÌores estéticos quando se assegura que eles são
Irt'llrs cle uma aposta na mesa na qual invariavelmente se joga
o rrronopólio da legitimidade cultural?
Os artistas seriam então movidos pelas regras desse
1rr11o. Sc a sociologia da cultura consegue derrubar a idéia bo-
lrrllrortlr de desinteresse e sacerdócio estético, ao mesmo tempo
r'rvrrzil rapidamente a análise das resistências propriamente
rrltiíicas que produzem a densidade semântica e formal da arte'
I ) prrrbloma dos valores fica assim liquidado, juntamente con't
rrr nri[os da liberdade absoluta da criação.
140 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
Mas como ter tamanha pretensão? "Com a certeza de
que os outros não têm remédio senão reconhecer nosso direito"'
respondeu, quase sem parar para pensar. São assim as regras
do jogo em que os dois estão metidos com uma intensidade
que beira o excesso, embora também possam vestir a máscara
da distância indiferente. Os outros reconhecem o nosso direito'
Girar à volta desse direito, usufruí-lo, fazê-lo produzir (se
possível) o melhor livro. Mas, quem pode dizer tranqüilamente
"o melhor livro", como se soubesse de que se trata? A mulher
acordada pensou: esta é, decerto, outra questão' E talvez ti-
vesse razão.
Valores e mercado
Durante séculos, um punhado de homens e umas poucas
mulheres participaram de uma longa e movimentada discussão
sobre arte. Houve um pouco de tudo: briga de poetas, querelas
entre os partidários do clássico e os inovadores que defendiam
as virtudes dos modernos, pugilato nos palcos de alguns teatros,
jovens diretores de cinema que responderam às vaias do público
atirando pedras. Houve competições e lealdades até a morte,
perseguições, suicídios, destruição de obras próprias e alheias,
sacrifícios sublimes e baixarias. O nome da arte foi pronunciado
em cacla uma dessas escaramuças, apesar de nem sempre seus
protagonistas terem podido demonstrar que só eram movidos
por aquela razão que todos consideravam superior. De todo
modo, a discussão continuou sob formas diferentes. Houve
tempos em que se reconheceu a existência de autoridades exte-
riores que traçavam planos para a cabeça dos artistas, definindo,
como príncipes ou sacerdotes, o sentido e a perspectiva do que
estavam produzindo. Depois, essas autoridades largaram esse
mundo à própria sina e os artistas passaram a pensar que então
O lugar dt artc 141
cram eles os únicos príncipes e sacerdotes de sua república.
Mais tarde, chegaram outros artistas, vindos de mais longe, das
rÌìargens da sociedade, para dizer que não eram nem uma coisa
norn outra, e sim boêmios, mulheres desafiadoras, missonários
ou, finalmente, produtores que levavam suas produções até o
rrrcrcado.
Até poucas décadas atrás, as pessoas que intervieram
r'nr cada uma dessas peripécias pensavam que suas posições
blscavam-se em valores cuja superioridade poderia ser demons-
Iliula ou pela razão ou porque assim o teriam decidido razões
srrlrcriores à razáo estética. O reino, embora atravessado pelas
lrrlls de programas ou personalidades, era estável e soberbo'
Sirbil-se (ou pensava-se que se sabia, o que dá no mesmo) por
rlrc lc;uilo que cada um defendia era melhor do que aquilo que
t'rrrlir urn atacava. Nunca se duvidou de que a discussão era
rrlrrcssante porque nela se estabeleciam dif'erenças fundamen-
lrris lirnto para fazer quanto para fruir a arte.
Quase todas as palavras escritas acima estão agora sob
t;rrcslho. Ouço dizer que a discussão é improdutiva, transcorre
lnr lclrìlos equivocados ou esconde seus verdadeiros motivos.
Alilrrra-se que já não se pode fazer uma pergunta sobre o que
I rr lrlte. Para um indiferentismo chamado "pós-moderno", a
Jr('rl.Ìurìta carece de interesse. Por sua vez, a sociologia da cul-
llu lr ir rcsponde de uma perspectiva institucional: a arte é aquilo
rillf ltnì grupo especializado de pessoas concorda que ela seja.
Sr,rri possível incorporar essa resposta a uma discussão esté-
lk'rr'/ Nao existiria uma alternativa à definição meramente
Itrrilitrrcional da arte?
Assegura-se hoje que só se pode dizer o que é a arte
ttrcrlirrrrlc ou uma Ìista das funções que ela desempenha na
virlrr social ou um inventário das crenças sobre ela, tal cotntl
-l,ilr
146 CENAS DA VIDA PÓS-MODE,RNA
Uma conversa, porém' fica interrompida: durante sé-
culos, alguns homens e umas poucas mulheres excepclonals
discutiram sobre arte como se a discussão cle seus valorcs fosse
possível. A arte se moveu dentro dessa "ficção" que foi' ao
mesmo tempo, o impulso de sua produtividade' pelo menos no
Ocidente. A hipótese da existência de valores que pudessem
ser fundados clentro da esfera estética deu origem' por outro
lado, ao processo de independência do estético perante a reli-
gião, a política, as autoridades tradicionais e o poder' Hoje essa
independência é um lugar-comum inclusive naqueles lugares
onde a censura impede o seu exercício. Entretanto, surgiram
outros problemas nesse lugar-comum' Se a opinião dos pode-
rosos não tem mais fundamento clo que a dos artistas' a opinião
dos artistas, inversamente, careceria de outra força além da que
estes possam obter em dois lugares: em seu próprio campo e
no mercado.
A sociologia acha que pode demonstrar que os valores
defenclidos ou atacados no campo cla arte respondem a uma
lógica que é artística na medida em que regula as relações entre
os artistas, mas não como lógica interessada somente na arte'
Se assirn for' há outro cenário em que se estabelece uma verda-
de sobre os valores estéticos; e o fundamento desses vaÌores
deveria ser procurado mais nas leis da competição entre os
artistas do que nas "regras da arte"' O movimento de transfor-
mação ininterrupta, a religião que cultua "o novo" e a busca
cle "originalidade" (que foram exigências da arte moderna)
tiveram um efèito diluidor sobre as autoridades estéticas cons-
tituídas, enfraqueceram o peso cla tradição e permitiram o esta-
belecimento de enfrentamentos contínuos entre aqueles que
defencliam cidadelas estabelecidas no campo artístico e aqueles
que iam até ele a fim de ocupá-lo' Nessa guerra de posições'
O /ug,tr líí /trt( 147
osjovens, os artistas que não estavam ligados às elites, os intc-
lectuais de origens enraizadas no povo, reivindicaram scus
clireitos apoiando-se em distinções estéticas e também em objeti-
vos extra-estéticos. No reverso dessa trama, porém, a com
petição mostrava a verdade negada pelos participantes do tor-
neio. Uma distinção estética não era só isso e, em úÌtima análise,
poderia muito bem ser pensada como outra coisa: a boa cons-
ciência de uma luta por sucesso.
Caso se aceite essa descrição, o "desinteresse" pela
tliscussão de valores estéticos é só uma ideologia a mais entre
irs que unem a república dos artistas, garantindo-lhes uma
itlcntidade apoiada em virtudes imaginárias (o amor à arte, alcpresentação daqueles que não têm voz, a defesa das tradições
ou o descobrimento do novo, a construção da nacionalidade,
rr busca da beleza ou da justiça). A idéia de missão no mundo,
rr tensão profética, o recolhimento à arte como único local isen-
lo de concessões ou, pelo contrário, o lançar-se na sociedade
llirra nela cumprir um destino, são relatos cujos verdadeiros
rrrriveis devem ser procurados em meio às sombras, como que
lx)r um policial. Sem fundamento em autoridades constituídas
c sern fundamento auto-suficiente no território da arte, a obje-
tiviclade dos valores estéticos foi contada entre as baixas desse
t'ornbate.
Essa dura Ìei também se aplica aos críticos, que acre-
rlitirvam estar falando sobre a arte a partir de um saber que lhes
;x'r'rrritia enxergar diferente do que os artistas viam e além do
rlrrc o público via. Sua opinião tem tanto ou tão pouco funda-
nr('rìlo quanto a dos artistas. Assim, não haveria outra saícllr
st'rrão o relativismo tolerante, uma posição que teria turrlrtkrrittlicalmente impossível tanto a arte do século XIX, ilcsrlc rr
Itorttantismo até o Impressionismo, quanto as vangutrltllrs tlo
ú il,
144 cENAs DA vlDA PÓs-MoDERNA
A perspectiva sociológica dissolve a boa consciência
autojustificativa, mas também corrói a densidade das razões da
arte. A partir dessa perspectiva' não chega a ser surpreendente
o gesto de Marcel Duchamp ao escolher um mictório para exi-
bir como obra de arte numa galeria. Pelo contrário, premoni-
toriamente, Duchamp teria levado até o fim a demonstração da
teoria institucional sobre a arte' e sua obra-mictório seria a
chave da teoria. O artista fez o objeto com sua visada estética
e não há nada no objeto que possa ser considerado estético
por seus valores intrínsecos; na verdade' o mictório pretende
liquidar para sempre esses valores' A convencionalidade da arte
atingiu seu limite quando o valor ficou,colado ao gesto de esco-
lha, e a obra não admite outro fundamento que não as relações
institucionais; eìas é que permitiram que Duchamp escolhesse
o rnictório e que isso fosse aceito pelos entendidos'
O que nas primeiras décadas deste século pôde ser visto
como um momento decisivo das vanguardas' hoje poderia ser
encarado também como capítulo final da dessacralização da
arte. Sem querer, Duchamp faz o gesto que lhe proporcionolt
sua "experiência crucial" sob a perspectiva sociológica' E acen-
de uma fogueira na qual também serão queimadas as vanguar-
das, ou seja, o melhor da arte do século XX'
A partir das vanguardas' a arte toca um limite que a
sociedade deste século conhece sob outros aspectos: se tudo
é possível' aquilo que era próprio da arte - precisamente a
luta por impôr soluções novas e definir problemas diferentes
claqueles do passado e de outros contemporâneos - perde sua
coluna vertcbrul. Por um lado, a sociologia da cultura ensinlr
que os movimentos estéticos devem ser lidos como combates
fela legitinridade c a consagração; por outro' uma intervenção
vanguardista (que a sociologia da arte considera perfeitamentc
O lugar da ,trtt 145
earacterística) dissolve qualquer possibilidade de se conside-
r.rrcm outros valores que sejam independentes daqueles que são
irÌstituídos pela visada do artista (legitimada, por sua vez, por
0utras visadas: as de outros artistas, a do galerista que aceita
suas obras, a do editor que as publica).
Nesse contexto, o debate estético perdeu seu fundamento
prrrvavelmente para sempre' Não existe deus nem fora nem
tlcrrrro do espaço artístico que nos venha a entregar o livro em
rprc estejam escritos os valores da arte. O processo de dessa-
t'rirlização se concluiu. Um de seus méritos é a instituição do
rcllrtivismo estético. Esta é também uma de suas conseqüências
rriris pcrturbadoras. O relativismo é como a democracia: uma
vt'z ouvidas suas promessas, tudo desaba frente ao ímpeto
rrivcllrrl0r e igualitário de seu impulso' No entanto, em contraste
r'onr r.rììa proposta otimista para a esfera política, os problemas
rlr virlor e do gosto na arte parecem adequar-se penosamente
n lruir icléia de "acordo constitucional" sobre o que se deve
lnrcr. Mais que em qualquer outra esfera, na arte é tão difícil
Irrrtitrrir. o possível quanto o proibido. Essa dificuldade frustra
it ('('nsÌrra, cujos argumentos (religiosos, políticos, nacionais,
Ilvulrrcionários) carecem de outro apoio além da força: quando
n rlcrttocracia irrompe na esfera da arte também é imposto o
;tlttrrrlisttto como princípio de regulamentação das diferentes
;lilrtç(ì(:s. Esse pluralismo assegura uma equivalência universal:
"llrlos os cstilos parecem mais ou menos equivalentes e igual-
lrFnl(' (lx)uco) importantes". Ninguém poderá ser condenado
pnl ìrirs icléias estéticas, mas em compensação ninguém terá
rtí lr\lrunìcntos que permitem comparar, discutir e validar as
tllletí.illcs cstóticas. O mercado, expert em equivalentes abstra-
Itti, trt'cbc csse pluralismo da estética como a ideologia mais
ËlelÍrr rìs sttas necessidades.
JLI
150 cF-NAs DA vtu,t pÓs-tr'toDERNA'
de qualquer limite pensável até então' Nesse duplo ttrovirtrcnto'
contudo, ela levaria ur-na lição imprevista: o mercado c o que
depois passou a ser chamado de "indústria cultural" tninavam
as bases da autoridade que avaliavam a propriedacle de um
paradigma educativo em matéria de estética' A contradição Íoi
logo reconhecida por aqueles que cliagnosticaram na "arte indus-
trial" a sentença de morte dos valores refinados de que as elites
culturais se imaginavam portadoras' divulgirdoras ou lnesmo
derradeiros bastiões. Inevitavelmente, o mercado introduz crité-
rios de avaliação quantitativos, que freqüentemente contradi-
zem a arbitragem estética dos críticos e as opiniões dos artistas'
A própria idéia de popularidade não poderia deixar de ser vista
com desconfiança, já que sobre ela se erguia a contradição ins-
talada bem no coração cla democracia' Àqueles que há quase
duzentos anos previram uma catástroÍè no campo da arte e da
cultura provocada pela opinião cle maior número' os que prefe-
riram correr os riscos de uma clemocratização das belas-letras
e das artes responderam com a confiança na eficácia das insti-
tuições pedagógicas (cujo poder, entretanto' também começava
a ruir). Ampliação do público e decadência dos valores foram
dois temas fatalmente relacionados' Enquanto o paradigma
peclagógico foi mantido, porém' o conflito não chegou a assumir
todos os traços de um dilema'
Será preciso então aceitar essa fatalidade e sair do dilema
pela única porta que parece entreaberta? Refiro-me à saída de
ernergência clescoberta pelo neopopulismo cultural' que encon-
tra nos sintomas clo mercailo um substituto capitalista para a
velha noção rotnântica de Povo' Para usar sem susto essa saída
de et'nergôncia' ó precis o Ïazer vista grossa diante de alguns
problemas. O prirneiro cleles é a lei de ferro do mercado: o lu-
cro, sobre o qual é irnpossível pronunciar qualquer condenação
O /try,tr rltt rtt lt' I 5 I
arcaizante que só serve para tranqüilizar a moral dos intclt'ctuais. Seria pref'erível, no entanto, que a tolerância não sc rrris-
turasse tão amigavelmente com a incapacidade de enxergur: no
mercado de bens simbólicos, não fica bem falar em termcls tlclucros, maximização de ganhos, competição econômica, expres-sões que em outros mercados ninguém deixaria de empregar.A sociologia da cultura ressaltou modos de funcionamento dosartistas que irnpedem a consideração do campo estético cornoum reino de espíritos livres de qualquer outra pulsão que nãcl
a da arte. Acredito, em todo caso, que os limites dessa descriçãosão menos estreitos do que os que propõem o otimismo de
mercado em sua apologia da substituição de uma autoridadeestética por um conjunto atomizaclo de consumidores.
Se assim for, qual será o futuro de uma arte que aindanão é ou taÌvez nunca seja uma arte de fiìassas, nem participado mercado como um bem atraente para os agentes capitalistasque definem suas tendências? A pergunta encontra algumasrespostas naquilo que hoje denominamos "políticas culturais",estratégias desenvolvidas por Estados que não entregam todoo destino da cultura à dinâmica mercantil.
No momento, porém, não é esta a perspectiva queimporta aqui. Antes, pretendo retomar uma pergunta sobre a
instituição do gosto e dos valores: se as certezas elaboradaspelos artistas e pelos filósofos entraram em crise porque, vistadc perto, qualquer legitimidade estética se clesdobra numa lu-tir por Ìegitimidade social; se a problemática da relação entrelcpresentação estética e sociedade, a dinâmica do novo e oprriprio projeto das vanguardas foram explicados peÌas leis que
r'cgem a competição entre artistas e pelas lutas para impor dcl'i-rrições institucionais da arte; se o relativismo valorativo ;.rotlcscr considerado a única crença forte que passa da moclcrnirllrtlt.
T48 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
século XX' Esses movimentos tiveram a vocação do absoluto
e sua experimentação estética sustentou' sem reticênctit' :^":
vicções "^ttuO"ntJ'' partidárias e conflitantes' Em cada post-
ção triunfant" tt;"'p;iu"r r"' as alternativas descartadas'
rechaçadas ""t" "t'Ut*as ou abandonadas sob a pecha de
arcaicas.Seassimapresentoascoisas'éporquemeinteressa
tomar a descrição sociológica e suas conseqüências ao pé da
letra- o que em ;;;;i ; chamado de "pós-modernidade"
(digamos: urnu ""oidinão" sovada "o-* o' fermentos da crise
das vanguardas históricas e os restos de paradigm^:::::1:
tam um mínimo de objetividade) teve seus profetas e serla pre-
ciso buscá-los justamente nas vozes que desvendaram a fé cega
dos moderno' "* 'uu' razões' Refiro-me não apenas à genea-
logia fitosófit" ;; ;' modernidade'-to: o:oéT-:::""t'1"
sociológico " unttopológico que' com imaginação menor' porem
com obstinada persistência' mostrou-nos o vazio de fundamento
dos modern", ", ;; conseqüência, a inocuidade de qualquer
tentativa O" ton"*i' limites ou legislar sobre a arte' Neste sen-
tido, a condição pós-moderna '"T-u*u inspiração inevitaveÌ-
mente sociológica: sua autoconscíêncía é a sociologia que lhe
permite in"utu' o relativismo valorativo como horizonte de
épotu A ficção que possibilitava a cabeça tttt:l:1.1ï",T""t::;t\ rrLYuv Y-' r- - universalista e sua
nidade foi banida: por um lado' sua vocaçao -.-^ .-,," rìeseios
lJ:ï:H Ïï.-ì",ï das direrenças; p,or ::lil-ïï'"1",,,ïliJï j:1ffi ;;;;ì";aridade'ou"'".']uïï:::ï.:::"Ïiï:::: ï'il ï1,
" * il ã*ffi;i l. j"' :ï ::'.1.'.1"11
" "ï lïl.:ffi;"ï;;;;;;,''o,.u' de est'o com a Ï::ï:: :::'"-::li.rito chamado moclerno' perderam o aloio ":'"Ï..Ï::::Ï1,
O ltrgar lt trtr 149
no qual hoje só é possível reconhecer uma confusão de trilhas
diversas. Pelo menos no Ocidente, a vocação de absoluto clos
artistas e intelectuais ficou enfraquecida provavelmente para
sempre, mas uma instituição, em compensação, apresenta-se
como novo paradigma de múltiplas liberdades: o mercado. No
caso que aqui nos interessa, o mercado de bens simbólicos'
Quero medir as conseqüências do que se disse até aqui.
A existência, o reconhecimento e a disputa por lugares auto-
rizados em matéria estética encontrou nos artistas vozes que
contestavam a opinião do "senso comum" e exibiam suas cre-
rlenciais em apoio à difusão propagandística de suas opiniões'
Por mais odioso que pareça, em matéria de estética (ou, se for
o caso, de filosofia), os princípios e os valores não estavam
vinculados, de maneira direta, à quantidade de adesões que um
ohjeto ou um texto suscitassem. Como se afirmou diversas
vcz.es, o saber delimitou uma zona sagrada a partir da qual se
rìxercem poderes novos e diferentes dos que foram instituídos
llcla revelação religiosa ou pela tradição.
Um dos paradoxos da modernidade é justamente a re-
lrrçiro que une saber e poder de modo mais embaraçado do que
rcvclariam as versões mais simples. No que concerne aos
rrrllcres (entre eles, as "regras da arte"), a modernidade podia
st'r liberal, mas não democrática; podia até não ser liberal em
rubsoluto. Assim, a desconfiança diante do "senso comum"
nllirvessa a história das concepções de arte e cultura. Por isso,
n rrrodernidade, quando sensível à democracia, é pedagógica:
u gosto das maiorias deve ser educado, uma vez que não há
*iporttaneidade cultural que assegure o juízo em matérias es-
ldticirs. O mesmo se poderia dizer das mais diversas variantes
rlr pcrdagogia política.
A modernidade combinou o ideal pedagógico com o
erlrrbclccimento de um mercado de bens simbólicos para lrlórrr
ï:ï;:ïil' "ï'"*""ìttas da história' inventavam um caminhir
ì
L52 CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
para a pós-modernidade, então: existe outro lugar, além do
mercado, onde se possa pensar a instituição de valores? No
mercado, fazem-se ouvir as vozes que não têm autoridade para
falar na sociedade dos artistas: o público, cujo saber não é espe-
cífico, tem ali um valor igual ao que detêm aqueles que dispõem
de saberes específicos. Em última análise, o público poderá
decidir se as opiniões dos críticos e as declarações dos artistas
lhe parecem razoáveis, convenientes, simpáticas ou engraçadas'
Poderá conceder a alguns personagens a possibilidade tempo-
râria de indicar as tendências do gosto; e poderá revogar essa
concessão sem precisar justificar convincentemente seus mo-
tivos; poderá coroar um artista e destronar o outro que ontem
era o favorito; poderá desprezar e ignorar, celebrar e respeitar,
praticar suas preferências com toda a firmeza que lhe permitir
o peso de suas intervenções no mercado que, através de diver-
sos mecanismos (a lista dos mais vendidos ou a resposta da
bilheteria), transformam-se alquimicamente em opinião pública'
A autoridade dos especialistas está ferida para sempre e estes
(que uniam saber e poder naquela visão convincente e crítica
da modernidade) têm que buscar em outra parte o poder que
lhes era atribuído por seus companheiros de armas e pelo
público, antes da expansão ilimitada do mercado.
As fontes de legitimidade se multiplicaram: uma pessoa
não fala porque outras poucas lhe reconheceram tal direito' A
menos que se queira falar só para essas pessoas, é preciso
conseguir uma autoridade que não dependa por completo nem
do discurso nem dos especialistas em discursos, e sim teori-
camente de "todos". É verdade que a comunidade dos artistas
e dos críticos continua julgando, construindo reputações e
organizando hierarquias. Isto só acontece, porém, onde ela é
poderosa (porque teve esse poder reconhecido, porque nunca
O lugar da arte 153
o perdeu completamente, porque o mercado precisa autorizar-
sc junto a essas autoridades, porque o Estado decidiu tratá-la
rlc acordo com políticas específicas, porque o lobby da arte
:rinda mantém canais de comunicação com outros lobbies). A
tlrreda de braço dos artistas com o mercado não se apresenta
tlrr mesma maneira em todo o Ocidente. Além disso, as forças(luc se sentam ao redor de uma mesa de negociações não têm
:ì Ínesma capacidade de ação nem meios equivalentes para
urtervir no mercado e assim passar pela prova democrática do
s ucesso.
A questão é bastante complicada, mas não se pode dizer
tlue seja nova. A crise da objetividade, o desaparecimento das
"cvidências", a insegurança dos fundamentos, a dissolução das
('r'cnças legitimadoras e sua substituição por novas crenças anti-
lrierárquicas, são capítulos de um longo processo nivelador que
produziu, em política, a institucionalidade republicana, certo
tipo de populismo, o democratismo. Nesse processo, alguns
srrberes se separaram do poder, difundiram-se pela sociedade,
rrliaram-se com as pessoas despojadas de saberes prestigiosos,
rnfientaram-se com os saberes tradicionais e disputaram as
posições adquiridas. A opinião da pessoa comum passou a ser
rrma dimensão inseparável da opinião pública.
No campo da arte, a revolução democrática instalou seus
tlilemas e paradoxos há quase duzentos anos. Entretanto, foipreciso esperar até a metade do século XX para que o processo
rlc nivelamento anti-hierárquico se unisse à indústria cultural
t:, particularmente, aos grandes meios de comunicação de
rììassa, numa combinação que hoje parece indissolúvel. Ao
Iongo das décadas, o público não só aumentou como também
sc emancipou de instituições mais tradicionais (geridas pelos
cspecialistas na formação do gosto) para travar um permancnlc
154 cENAs DA vrDA Pós-MoDEl{NA
diálogo com outros especialistas (os hoje denominados intelec-
tuais rurzssmidiáticos). Aumento do público e tendências anti-
hierárquicas são duas superfícies de um mesmo plano: chegamjuntas, e ninguém pode esperar o milagre de permanecer numa
sem escorregar para a outra.
Entretanto, não é indispensável acreditar que todos os
resultados de um processo de expansão e nivelamento devem
ser celebrados em uníssono. Especialmente se o mercado, que
é um espaço certamente imprescindível de circulação e distribui-
ção, acrescenta às tendências igualitaristas um antiigualitarismo
baseado na concentração do poder econômico. Não é indispen-
sável celebrar a decadência da autoridade dos artistas e intelec-
tuais quando ela é provocada pela ascensão dos dirigentes da
indústria cultural. Parece desnecessário afirmar: o mercado cul-
ïural não põe em cena Ltme comwúdade de consumidores e
produtores livres.
Se o relativismo é um ideal de tolerância, o espaço onde
esse ideal se estabelece não é o mercado. Este, antes, funciona
como uma alfândega do gosto: alguns produtos circulam com
vistos preferenciais, outros são favorecidos por políticas pro-
tecionistas, uns poucos são desterrados, uma quantidade con-
siderável enfrenta sérios problemas de ingresso. O gosto se for-
ma na colisão e na aliança de todas essas tendências. Em nome
do relativismo valorativo, e à falta de outros critérios de diferen-
cìação (porque o que ruiu foram justamente os fundamentos
do valor), opera-se como se o mercado fosse o espaço ideal
do pluralismo. E,mbora também se possa pensar que o mercado
exerce, em vez de uma neutralidade valorativa, fortes inter-
venções sobrc os artistas e sobre o público. Um absolutismo
de mercado, espccialrnente naquelas produções artísticas vin-
cuÌadas às inclústrius ludiovisuais, substitui a autoridade àmoda antiga.
O lugar da trt,' 155
O neopopulismo de mercado e os defensores do rela-
tivismo valorativo em matéria de arte, por diferentes caminhos,
rucabam de solapar o fundamento estético que uma perspectiva
sociológica tinha dcsvendado em sua mecânica profana. A
clessacralização da arte parece uma conseqüência irreversível
de dois amplos movimentos perfeitamente inscritos na lógica
da modernidade. De um modo geral, há pouco o que lamentar
diante do retrocesso de autoridades baseadas na exclusão ou
no tradicionalismo. Entretanto, algo indica que o carisma que
o artista antes carregava como marca de sua condição excep-
cional Íbi transferido para outros portadores, que ainda não
sabemos se poderão escrever uma história à altura da aura que
os ilumina: aqueles que foram consagrados exclusivamente pelo
mercado parecem tão pouco dispostos a adotar uma perspectiva
relativista quanto os antigos heróis culturais. Esta seria uma
pretensão razoâvel se não viesse acompanhada da prática de
urn novo tipo de absolutismo, apoiado em noções que também
merecem ser postas sob escrutínio, tanto quanto aquelas que
há poucas décadas se romperam. O mercado de bens simbólicos
não é neutro e, como qualquer outra instituição que o tenha
precedido, forma o gosto, institui critérios vaÌorativos e gira
sobre o conjunto de capital culturaÌ coÌonizando até os terri-
tórios abertos pelas vanguardas do início do século. Para os
grandes públicos, o mercado e algumas instituições direta ou
indiretamente vinculadas a suas tendências substituem, com
autoridade semelhante, os prestígios carismáticos tradicionais
e aqueles que foram consagrados pela modernidade.
O que o mercado tem a dizer sobre a arte é bastante
interessante: como se impõe uma estética na costa oeste ame-
ricana, qual a valorização das ações de um artista quando clc
tem uma retrospectiva organizada no Pompidou, quanto vulcrrr
158 cENAs DA vtDA Pós-MoDEIìNA
lutismo; mas a moral relativista não nos deveria impor o abso-
luto de uma renúncia. Em matéria de arte, uma forte tomada
de partido que possibilite a discussão de valores pode tornar
evidente para muitas pessoas a significação densa (a mais densa
das significações na sociedade contemporânea) do fato estéti-
co: mesmo reconhecendo-se que instituir valores para a eterni-
dade é uma ilusão.
CINCO
Intele ctuais
PnNseneu euc ESTAVAM NA vANGUARDA da sociedaile; que
eram a voz dos que não tinham voz. Acharam cìue podiam
representar os que viviam oprimidos pela pobreza e pela igno-
rância, sem saber quais eram seus verdadeiros interesses oll
o caminho para alcançá-los. Pensaram que as idéias podiarn
descer até aqueles que, operários, camponcses, marginais, sub-
mersos num mundo cego, eram vítimas de sua experiência.
Sentiram-se portadores de uma promessa: obter os direitos dos
que não tinham direito algum. Pensaram que sabiam mais do
que as pessoas comuns e que esse saber lhes outorgava um
só privilégio: comunicá-lo e, se preciso fosse, impô-lo a maiorias
cuja condição social as impedia de ver com clareza e, conse-
qüentemente, trabalhar no sentido de seus interesses.
Em sociedades em que o saber se tornava cada vez mais
importante para a produção e a reprodução da vida, encontraram
nos próprios saberes uma fonte de poder. Por vezes o emprega-
ram no embate com os ricos e com a autoridade; outras vezes
o empregaram para impor seus pontos de vista aos desvalidos.
Organizaram-se em grêmios, clubes, à volta de revislits,
em partidos. As revoluções (à esquerda e à direita) viratlt-ttos
na primeira fila; foram atores protagonistas em regimcs re vo
lucionários, tanto que chegaram a converter-se enr lítlt'tt's tllts
UFRJReitor
Vice-reìtora
Coordenador do
I;omn da Cìência e Cultura
I]DITORA UFRJ
DìretorEdìtora Executiua
Coortlrnn dora de Produção
Couelho Editorial
Aloisio Teixeira
Sylvia Vargas
Carlos Anronio Kalil lànnus
Carlos Nelson CoutinhoCecília Moreira
Janise Duarre
Carlos Nelson Coutinho (prcsiclcnte),
Charles Pessanha, Diana Maul de Carvalho,
José Luis Fiori, José Paulo Ncrro,Leandro Konder, Virgínia l;onre
Beatriz Sarlo
CENAS DA VIDA PÓS-MODERNA
Intelectuais, arte e uìdeocultura
na Argentìna
3" ediçáo
tradução
Sérgio Alcides
Editora UFRJ2004
Copyright @ 6y 2004 Grupo lìdrtorirl PhnctrFicha Catalográficr claborrda peh Divisão de Processrrrrorto 'l úcnico - SIBI/UFlìj
5243c Sarlo. lìeatriz-
Ccnas da vida pós-rnoderne: intclccturis, rrrc c
nr Argcnrina/lìcrtriz- Sarlo; tradução, Sérgio Alciclcs
Rio dc Janeiro; Iìditora UFIìJ,2004,196 p.; l3 x l9 crr
1. Desenvolvimenro Crrltural - Argcntinr 2. (
Globaliz-rção 3. Arte - Globalização L-l'írukr.
ISIrN 85-7 t08-t96-4
Coorrlenação le l:ttìção dr Texto
Lìsa Stuart
Cnpd'Ì'ita Nigrí
Reu ìsâo
Cccília Morcira
Josette Babo
Maria Tercsa Kopschitz. de IJarros
I)rojeto Grá.fìco e Iidìtordção lilerrônìct
Alice Brito
Janisc Duarte
Universidade lìerleral do Rio de JaneiroForum t{c Ciência e Cultura
Iìditora UlìlìJ
Av. Pasrcur, 250/sala Ì07 - Iìio de JaneiroCEP: 22290-()02'lè1.: (2t) 2295-1595 r. 124 a 127
Ììrx: (21\ 2542-7646 c 2295-0346
h t rp://wrvw.ctlìtorr. Lrfr j. br
on'''' 1Ïf i::'ÍËï;,ïil;"*'"''", J.:
virlcoc u lnr ra
.l.cd.
rrlturr -
cr)r) 303.44
Sumário
Perguntas 7
Capítulo I - Abundânciaepobreza 13
Cidade 13
Mercado 22
Jouens 32
Videogames 42
Capítulo II - O sonho acordado 53
Zapping 53
Grauação ao uiuo 68
Política 83
Citação B7
Capítulo III - Culturas populares, velhas e novas
Capítulo IV - O lugar da arte 123
Instantâneos 127
Valores e mercddos 140
Capítulo V- Intelectuais 159
Referências bibliográficas 183
BIBLIOïECA
SEDESruWES
Perguntas
Se não me engano, o incômodo é semelhante
àquele causado por declarações públicas de
ateísmo e, ultimamente, também de socia-
lismo: por que não guardar para si as con-
vicções sobre assuntos tão privados como
Deuseaordemsocial?Roberto Schwarz
Iìsr',lvos No FrM Do sECULo e na Argentina. Luzes e sombras
tlcÍ'inem uma paisagem conhecida no Ocidente, mas os con-
trastes sobressaem, aqui, por dois motivos: nossa marginalidade
c;uanto ao "primeiro mundo" (daí o caráter tributário de muitos
processos cujos centros de iniciativa se encontram em outro
lugar); e a solene indiferença com que o Estado entrega ao
lìlcrcado a gestão cultural, sem estabelecer para si uma políticarlc contrapeso. Como outras nações da América, a Argentina
vive o clima do que se chama "pós-modernidade" no marco
paradoxal de uma nação fraturada e empobrecida. Vinte horas
rliárias de televisão, em cinqüenta canais, e uma escola desar-
rnada, sem prestígio simbólico nem recursos materiais, paisa-
gens urbanas traçadas segundo o último design do mercado in-
tcrnacional e serviços urbanos em estado crítico. O mercado
lucliovisual distribui suas bagatelas e aqueles que podem constt-
nri-las se entregam a essa atividade como se fossem nroritcltlrcs
IB CENAs DA VIDA PÓs.MoDEIìNA
AÍìrma_se que a cidaclania se constitui no mercado e, poristo, os shoppings podem ser vistos como os monumentos deum novo civismo: ágora, templo e mercado como nos forosda velha ItáÌia romana. Nos Íbros havia oradores e audiência,poÌíticos e plebeus a serem rnanobrados; também nos shoppingsos cidadãos desempenham papéis diferentes: uns compram, ou_tros simplesmente oÌham e admiram. Nos shoppings não se po_derá descobrir, como nas galerias do sécuìo XIX, uma o.qr.o_logia do capitalismo, senão sua realização mais plena.
Frente à cidade real, construída no tempo, o shoppingapresenta seu modelo de cidacle de serviços rniniaturizada, quãse autonomiza soberanamente das traclições e clo seu entorno.Tem a atmosfera irreal de uma ciclacle elroi consrruído muiro rápido e não conhec"r'li:ff::il;J"ïlïïle contramarchas, correções, destruições, influências cÌe projetosmais ampÌos. A história está ausente, e, quando existe ali algode história, não se evidencia o conflito aiaixonante entre a re_sistência do passado e o impulso do p.es"nte. A história é usa_da para desempenhar um papel servir, convertendo_se em deco_ração banal; preservacionismo fetichista de alguns muros comosc Íbsscm cascas. por isto, o shopping está em perÍ.eita sintoniacorìl a paixho pelo decorativismo manifestada pela arquiteturadita pris-ntoclerna. No shopping de intenção preservacionista,a lristtirirr ó paradoxarmente tratada como souvenir e não comosr-rlx)rÍc rrtlrtcrial de uma iclentidacle e uma temporalidade quesclììl)rc iÌl)l.cscntiÌm ao presente seu conflito.
l)ispcrrsucll a história, como detalhe, o shopping sofrede urr, .rrr'ósiir rrcccssária ao bom andamento de seus negócios,porquc sc os; tr.irços clu história forem eviclentes demais, supe_rando a Íurçlìr (r('(()r'rlivll. o shopping viveria um choque defunções e sentitlos: l)iu.rÌ o shopping, a única máquina semiótica
Abundância e Pobreza 19
,' :r rlt' st'r.r próprio projeto. Em contrapartida, a história esbanja
',t'ntrrlos rluc o shopping não tem interesse em preservar' porque
{'nr :i('u cspaço, além de tudo, os sentidos valem menos que
,',, :.rlrril'icantes.( ) shopping é um artefato perfeitamente adequado à
Irrprrlt'sc do nomadismo contemporâneo: qualquer pessoa que
tr'rrlrr rrsucÌo um shopping uma vez pode usar qualquer outro,
r'rrr orrtllì cidade, mesmo estrangeira, da qual não conheça
',('(llr('r' l língua e os costumes. As massas temporariamente
rr'nurtlcs que se movem segundo os fluxos do turismo encon-
triur rìo shopping a doçura do lar, onde se apagam os contra-
t('url)os cla diferença e do mal-entendido. Depois de uma tra-
vt'ssil por cidades desconhecidas, o shopping é um oásis onde
trrtlo tcontece exatamente como em casa: do exotismo que
rh'lt:itu cl turista até esgotá-lo, pode-se encontrar um repouso
('nr cspaços que são familiares, mas que não deixam de ser 'de
t t'r'tl Íorma atraentes, uma vez que se sabe que eles estão no
"t'slnrngeiro", sendo, ao mesmo tempo, idênticos em toda par-
It'. Scrn shoppings e sem clubes Mediterranée, o turismo de
rlirssiÌs seria impensável: ambos proporcionam a segurança que
sti sg sente na própria casa, sem perder-se completamente a
t'rrroçho provocada pelo fato de que ela foi deixada para trás'
(.)rrlrndo o espaço estrangeiro e a força da incomunicabilidade
irrìeiìçiÌm como um deserto, o shopping oferece o paliativo de
srrrr l'utniliaridade.
Esta, no entanto, não é a única nem a mais importante
t orrtribuição do shopping ao nomadismo. Pelo contrário' a
rnritlrrina perfeita do shopping, com sua lógica aproximativa, é,
crn si rnesma, um tabuleiro para a deriva desterritorializada. Os
grorrtos cle ref'erência são universais: logomarcas, siglas, letras'
t.tiryrrctas não requererÌì que seus intérpretes estejam enrltiz.ittltls
)0 (irÌNA.s r)A vu)A Ì,ós_MoDIrìNA
e'r nenhum' cultura anterioq ou cristinta cla cultura do mercado.Assirn, o shopping produz uma cuÌtura extraterritorial cla qualninguém pode sentir-se excluído; mesmo aqueles que menosconsomem se movimentam com clesenvoltura pelo shopping einventam alguns usos imprevistos que a máquina tolera desdeque não dilapidern as energias que o shopping administra. Jávi, nos bairros ricos cla citiade, mulheres do subúrbio sentadasna beirada dos canteiros, bem perto das repÌetas mesas de umapraça de alimentação, clanclo de comer a seus bebês, enquantooutras crianças corriam entre os balcòes de vendas carreglndouma garrafa plástica de dois litros de Coca_Cola; já vi pessoastirando sanduíches caseiros de sacolas plásticas estampaclascom marcas internacionais, que certamente Í.oram reaprovei_tadas diversas yezes desde o instante em que saíram das lojasconfbrme as leis de um primeiro uso ,,legítimo,,.
Tais visitantes,que a máquina do shopping não contempla, rnas tampoucorejeita ativamente, são extraterritoriais: mesmo assim. a própriaextraterritorialidade do shopping admite seu ingresso, num cu_rioso paradoxo de liberdade plebéia. Fiel à universalidade domercado, o shoppìng em princípio não exclui.
Sua extraterritoriaÌidade tem vantagens para os maispobres: estes carecem de uma cidacle mais limpa, segura, combons serviços, transitável a qualquer hora; vivem em subúrbiosde clncle o Estaclo se retirou e a pobreza impede que o mercadoocul)e csse lugar vacante; suportam a crise clas sociedadesvicinuis, a rlcte rioração das solidariedades comunitárias e o noti_ciírrio coÍitlitrrro da violência. O shopping é exatamente uma rea_lização lrilrcrlrrilicrr c condensado ae qúliOudes opostas; aÌémdisso, colno csl)lÌço cxtraterritorial, ele não exige vistos es_peciais' Na orrrnr P.rrtu clo arco social, a extraterritoriaricladedo shopping pocrc'ilr lrícrlr'acluiro que os setores mécrios e altos
Abundância e Pobreza 2l
t'onsitlctam seus direitos: mesmo assim' o uso conforme dias
c lror.írrios demarcados impede a colisão dessas pretensões
tlistintus. Os pobres vão ao shopping nos fins de semana' quan-
tlo os rnenos pobres e os mais ricos preferem ir a outros luga-
lcs. () tnesmo espaço se transforma ao correr das horas e dos
tlilrs, rnanifestando esse caráter transocial que' segundo alguns'
rrriucirria a ferro e fogo a virada da pós-modernidade'
A extraterritorialidade do shopping também fascina as
l)cssorÌs muito jovens ainda, justamente pela possibilidade de
urr',r cleriva no mundo dos significantes mercantis' Em favor
rlo l'ctichismo das marcas, arma-se no shopping uma cenografia
r.it1uíssima na qual, pelo menos em teoria' nada falta: pelo con-
rr'írriil, faz-se necessário ali um excesso que surpreenda até
os cntendidos mais eruditos' O cenário mostra sua cara de
l)isneyworld: como em Disneyworld' todos os personagens
estiio presentes e cada um exibe os atributos de sua fama' O
slropping é uma exposição de todos os objetos sonhados'
E,sse espaço sem referências urbanas está repÌeto de
r.cl'crências neoculturais, de modo que as pessoas que as des-
corthecem podem aprender um know-how que se adquire pelo
rììcro estar ali. O mercado, potencializando a liberdade de
cscolha (mesmo que isto seja só uma tomada de partido ima-
tinária), educa em saberes que são' por um lado' funcionais
(.tÌì sua dinâmica e, por outro, adequados ao desejo juveniì de
libcrclade antiinstitucional' Sobre o shopping' ninguém sabe
rrutis clo que os adolescentes que podem ali praticar um sen-
tirrrcntalismo anti-sentimental no entusiasmo pela exibição e pela
libcrclade de trânsito, apoiada numa desordem sob controle' As
nìlìr'cas e etiquetas que constituem a paisagem do shopping
strbstituem o eÌenco de velhos símbolos públicos ou religiosos
(lue cntraram em declínio' Além disso' para as criançlts cott
)) ( rlNÂs t)z\ vlt)A pós_MoDEIìNA
Íugiadas pela febnof ereceu_,,ouno-oi::;,,:::::r"",n:::lilï1,:,,ï:ïï::de cidades periféricrs isto seja mai, um ef.eito estético do queurniÌ característica real de funcionamento. O shopping, enfìm,combina a plenitude iconográfica de todas as etiquetas com asmarcas .,artesanais,,
de alguns produtos foÌk_ecológìco_naturis_tas, compÌetando assim a soma de estilos que deÍìne uma esté_tica adolescente. K
A rapidez ","t"
industrial e compact disc'
urbana não reve ,,:i.:L""fïJ#:,"'e impôs na currura
cosrumes, nem mesmo nesre sécuro ,"ilJi'ïJJi:ff:,::riedade da mercadoria e pela instabilidade clos vaÌores. Dir_se_á que a mudança não é fundamental nem pocle ser cornparadacom outras, anteriores. Mesmo assim, acreclito que ela sintetizaos traços básicos daquilo que virá, ou melhor, daquilo que veiopara ficar: em cidades que se fraturam e se desintegram, esseabrigo antinuciear é
época onde as, ",;,iïllïT:ï,:ff ïïï1:J:,,ïi ïJ#construir ÌÌìarcos que se pretendam eternos, erige-se um monu_lnento baseado.iustamente na velociclacÌe clo fluxo mercantì1. Oshopping apresenta o espelho de uma crise clo espaço públicoorrrlc i clifícil constru.g*r inverrid" no ouui',ìJÏf: ;j,ïïn ::::nJi.,J;clc sigltíÍ'icantes.
Abundância e Pobreza 23
Urn troca, para ver se a convenciam, ofereceram um mês
rrrrrnu praia clo Caribe, férias numa estação de esqui para ela
(' urììu amiga, aulas particulares de patinação aeróbica ou asa
tlt'ltrr. tônis com tacômetro, autoinfláveis, modelo antigo' de
s0llr lina, debruados de cetim com forro de pele sintética para
tlt'pois clo esqui, permissão para o namoradinho ficar para dor-
rrrir.toclas as noites, um vestido de festa calvin Klein original,
rrrrr rcprodutor de CDs extraleve para levar na bolsa, um bone-
to inl-lável de Axl Rose, tamanho natural, um boneco inflável
tlc Luis Miguel, tamanho natural, uma cama de ginástica passiva
t' rrrrr gabinete de raios ultravioletas, lentes de contato verdes'
t irrza aço e azul turquesa, um holograma de sua cabeça, tamanho
rurtulal, um pôster para seu quarto, com a reprodução da pri-
rrrcira foto que tiraram dela, quando ela nasceu, um corte de
t irllclo, um implante de pestanas permanente, pintura de sobran-
ccllras, uma festa na discoteca que ela preferisse, um ursinho
Srrnth Kay gigante.
Quero a operação, insistiu a menina'
Acho que você tem ancas bastante desenvolvidas para
srrr irJade, argumentou a mãe. Detesto meu bumbum, replicou
:r l'ilha. Não vejo nada demais nele, disse o irmãozinho' Ao que
rr tcirnosa reagiu: por isso mesmo! Você ainda é muito nova
l)rìra tomar essa decisão, afirmou o pai' Todas as minhas ami-
lÌlrs mexeram em alguma coisa ou vão mexer para suas Í'estas
tlc15anoslEuéquenãoqueroseraúnicaidiota!IdioticeéIaz.cr operação, redargüiu o irmão, porque deve doer à beça'
Ninguém me entende, lamentou a menina'
O pai então ficou sério: nós a entendemos perfeitamente'
rrrirrha filha. A ninguém se pode negar esse direito' O problema
titFre vai sair caríssimo! Mais caro ainda vai ser se ninguém
tlrriscr olhar para mim, se não tirarem fotos minhas na praia'
MercadoAcorrÍcceu rccentemente, numa tarde cle domingo, numfesIituriìrìlc (lUc colììc
sunrara,,ì .,Ire cr,r,l;ilï."r;.:;ïï; ?i,illlrïlmenina per-
Vocôs jií s:tlrt'rtr. t.csnonde' al.. ^ ^_-mereram no a,ìo ,,,,,,:,,ï:lnï,ïffJ""ïr 1;eeração
que me pro-
24 cENAs DA vrDÂ pós-MoDErìNA
se eu não puder sair em capa de revista... Isso é que vai saircaro, os gastos com. a terapia, e sem que eu possa arranjar qual_quer trabarho quando crescer. Nisso era tem aìgurna razão, con_siderou a mãe.
Ninguém perguntou a você quanto custou o seu lifting,disse a menina, sem se dar conta de que não precisava atacarseus aÌiados. Eu mesma paguei o meu ttfting;iui até , .i;;com um saco cheio de moedinhas e ainda sobrou dirh;;;;.Sabe_se Ìá de onde você.foi tirar essa grana, ironizou a filha.Dinheiro não ÍèrÌe nem cheira, disse o i-rmaozinho. Tirei o di_nheiro do estúdio, clisse a mãe. E o mentúdio de quem? Idiora, esse guri u ,"' ,;;;:ïJ:Ïï j; tt
Do jeito que eu sou, com esse bumbum achatado, tenhovergonha até de ir à escola. Todas as garotas mexeram emalguma coisa: aÌargamento da ponte noroÌ, ."o1." das maçãs dorosto, engrossamento do lábio inferior, implante a" "oO"là fu.udiminuir a testa. retoque do queixo. seios maiores. seios maisarredondados, depilação deÍìnitiva clo púbis, serradura da últimacostela, ancas, rearce dos grúteos, desbastamento cle torno_zeÌos, endireitamento dos dedos dos pés, levantamento clo peitodos pés, suavização dos punhos, imftante de músculo peitoralduplo, arredondamento clos braços, estreiti
peeting com ácidos narurais. E se eu ,:i:::",ïïffiìïï:cabelos lisos? Seria muito pior, porque u g.nr" não sabe se vaipoder continuar usando. Isto sim é qu" .,"riu jogar dinheiro fo_ra, como as tatuagens que esse doido aí fez. Não se meta comi_go, reagiu o menino.
Não somos miljonários, disse a mãe. E o que é que issotem a ver com meu presente? Desde que comecei o SegundoGrau você jâ fez as bolsas debaixo áos olhos, enclireitou odesvio de septo, botou colágeno duas vezes e operou a barriga
Abundância e pobreza 25
;r;rr:r lrtrrlcr usar biquíni de novo. Quantas vezes você fez ani-
r,'r:,rrrio tlcsde que eu entrei no Segundo Grau? Três. E quantas
vr'/('s ()l)cl'ou? Mas nem todas tiveram anestesia total e, aÌém
rlr,,so, os culpados pela minha barriguinha foram vocês dois.
N,ro st' rìletam comigo, reagiu o menino.
l:stá bem, disse o pai, mas não me peça outra coisa até
, lrt'1';;1'lros 18. Ih, aos 18 já vou ser uma milionária e vou estar
rrr.rrrìtk) em Miami, disse a menina. E depois, a mamãe disse
,1rrt' ilr l'azer dois retoques antes que percebessem que ela já,,,tirviì lìcando com as pálpebras caídas. Com dois retoques por
,ur(ì, sc viver até os 75, serão mais ou menos setenta retoques,
nr:r\ rìtuìca se sabe o que mais pode aparecer nesse meio tempo.
Quem realmente precisava se operar era o pai. Com
,rrlrrcllrs olheiras, se fosse mandado embora do trabalho nunca
rnrris conseguiria um emprego decente. Este ano eu também
\'()u rììe operar, declarou. Afinal, mais coisas dependem de
rrrrrrr sozinho do que de vocês todos juntos.
Somos livres. Cada vez seremos mais livres para projetar
r(ìssos corpos. Hoje a cirurgia plástica, amanhã a genética, tor-
niun oLl tornaram reais todos os sonhos. E quem sonha esses
.,.rrlros'Ì A cultura sonha, somos sonhados por ícones da cuÌ-
rrrnr. Somos livremente sonhados pelas capas de revistas, pelos
( iu tiÌzes, pela publicidade, pela moda: cada um de nós encontra
rrrrr l'io que promete conduzir a algo profundamente pessoal,
r('ssl trama tecida com desejos absolutamente comuns. A ins-
trrlriliclade da sociedade moderna se compensa no lar dos so-
rrlros, onde com retalhos de todos os lados conseguimos operar
:r "linguagem da nossa identidade social". A cultura nos sonha
( ()nìo uma colcha de retalhos, uma colagem de peças, um con-
lunto nunca terminado de todo, no qual se pode reconhecer o
irro crì que cada componente foi forjado, sua procedência, o
,rr if inlrl que procura imitar.
CENAS DÁ VIDA PÓS_MODEÌìN,{
As identidades, dizem, quebraram. Em seu lugar nãoficou o vazio, mas o mercado. As ciênc.ias sociais descobrenrque a cidadania também se pratica no rsoas que não têm como reaÌiza, ,uo., ,.,tttcado,
e que as pes-
assim dizer, rbra do mundo. o.r*;";;::'::t:il:,,ïïi.tïobtêm nesse cenário planetário, ão quut ficam excluídos osmuito pobres. .O mercado unifica, ,.t..i,duz a itusão da diferença otruué, 0", ,J;;r":ïl;::*lïque abarcam os objetos adquiridos por meio clo intercâmbiomercantil. O mercado é uma Ìinguagem e todos nós procuramosfalar algumas de suas línguas: norro, ,;;; ;;;#;:jjogo de cintura. Sonhamos com as coisas que estão no mercado.Séculos atrás, essas mercadorias vinham de outras partes e nãoeram necessariamente melhores. A crítica dos sonhos Íbi umdos grandes impulsos para a construção da imagem de socie_dades diÍ'erentes. Assim, hoje, são os sonhos seriais do mercadoque se apresentam como objeto cla crítica.
O desejo clo novo é, por definição, inextinguíveÌ. Emcerta medida as varuma vez rompidas
lguardas estéticas já sabiam clisto' porque
autoriclades,no,r."rrlì^l^omportas da.tradìção' da reìigião' àas
pétuo. o mesmo o.,uttt' o novo se impõe com seu moto-per-
mercado mais do o;'ïJïriliïll;ï:l::;:',""0", ""Hoje o sujeito que pode entrar no mercado, que tem odinheiro para intervir neÌe como consumidor, é uma espécie decolecionador às avessqs. Em vez de colecionar objetos, cole_ciona atos cle aquisição de objetos. O velho tipo de colecionadorsubtrai os objetos da circulação e do uso a fìm de anexá-losa seu tesouro: nenhum fiÌateÌista envia cartas com os selos clesua coleção; nenhum aficcionado por soldadinhos de chumbopermite que uma criança brinque com eles; as caixinhas de
Abundância e pobreza 27
l,',lolrrs rle uma coleção devem permanecer intatas. O cole-
' r{rill(l()t'tfadicional conhece o vaÌor de mercado de seus ob-
l.t,s (.iri que pagou por eles) ou conhece o tempo de trabalho,1r(' invcstiu na sua coleta, caso não tenham sido adquiridos
;',,r rrrt'io cle compra e venda. Mas ele também conhece o valor,,lrlrrÌos, sintático que esses objetos têm em sua coleção; sabe
' lil;lis cstho faltando para completar uma série, quais os que não
porlt'rrì ser trocados de forma alguma, as histórias que estão
p.r tllis de cada um deles. Na coleção tradicional, os objetos
vrrliosos são literaÌmente insubstituíveis, ainda que um cole-
, rorrrrtlor possa sacrificar algum para conseguir outro mais
r':rlioso ainda.
O colecionctdor às avessas sabe que os objetos que
;rtklrrirc desvalorizam-se assim que ele os agarra. O valor desses
olrjctos começa a erodir-se e então enfraquece a força mag-
rrt:ticu que dá brilho aos produtos quando estão nas vitrines,hr rncrcado: uma vez adquiridas, as mercadorias perdem sua
.rlrrlt; na coleção, ao contrário, a alma das coisas enriquece à
rrrt'tlicla que a coleção vai se tornando mais e mais rica: na cole-
qrrtr, rr antigüidade implica maior valor. Para o colecionador às
,/t'(',s.!d.ç, o desejo não tem um objeto com o qual possa confor-
rniu -se, pois sempre haverá outro objeto chamando sua atenção.
l'.lc coleciona atos de compra-e-venda, momentos plenamente
rutlcntes e gloriosos: os norte-americanos, bons conhecedores
tlrrs peripécias da modernidade e da pós-modernidade, chamam
tlt' .sltopping spree a uma espécie de bacanal de compras na qual
rrrna coisa leva a outra até o esgotamento que encerra o dia nos
t'rrlõs das grandes lojas. O shopping spree é um impulso teo-
liclrnente irrefreável enquanto houver condições econômicas
prrlu levá-lo a cabo. Trata-se, ao pé da letra, de uma coleção dc
lrtos de consumo na quaÌ o objeto se consome antes sequcr
tlc scr tocado pelo uso.
28 CENAS I)A VIDA PÓS-MoDEÌìNA
No pólo oposto ao colecionudor c);s (tvesses estão os ex_cluídos do mercaclo: descle os excluíclos cpe, cle q";ü;" "^
do, ainda podem sonhar consumos irnaginirrios, até aqueÌescuja pobreza os restringc ao cur.ral das fantasias rnínimas. Es_gotam os objetos no consumo e a aquisição cle objetos não ïazcom que estes percam seu interesse: para eles, o uso dosobjetos é uma dimensão fundamental da posre. porém, salvono caso destes atrasados para a festa, o clesejo de objetos éhoje quase inextinguível para as pessoas que compreenderam
as regras do jogo e estão em condições de jogar.Os objetos nos escapam: às vezes porque não podemos
consegui-los, outras vezes porque já os conseguimos, massempre nos escapam. A identidade transitória afeta tanto os co-lecionadores às avessas quanto os menos Íavoreciclos colecio_nadores imaginários: ambos pensam que o objeto lhes dá (oudaria) aÌgo de que precisam, não no níveÌ da posse, mas no daidentidade. Assim, os objetos nos significam; eles têm o poderde outorgar-nos aÌguns sentidos, e nós estamos disp.stos aaceitá-ros' um tradicionarista diria que se trata de um mundoperfeitamente invertido. Mesmo assim, quando nem a religião,nem as ideoÌogias, nem a política, nem os velhos ìaços comu_nitários, nem as relações modernas da sociedade poclem oÍère_cer umÍÌ base de identificação ou um fundamento suficiente pa_ra os vrrlor.cs, ali estír o mercado, um espaço universal e livre,que rìos dít algo para substituir os deuses desaparecidos. Osobjctos sã<t os nossos ícones, quando os outros ícones, que re_prcsetìtiìvitrÌì ulgurna divindade, demonstram sua impotênciasirnbólicu, são os nossos ícones porque podem criar uma co_munidaclc irrragirriíria (a dos consumidores, cujo livro sagradoé. o adverti,s'irrg, c cu jo ritual é o shopping spree, ecujo temploé o shopping, scrrtlo ir ntocla seu código civil;.
Abundância e Pobreza 29
lrrrtlctanto, os objetos escapam (e não só dos desejos das
lìr",,i()irs tlue não podem adentrar com desenvoltura no mercado
('il:,('(luc| podem nele pôr os pés). Aquilo que os torna dese-
;.rvt'rs trrrnbém faz com que sejam voÌáteis. A instabilidade dos
, rlr;t'tos so origina justamente em seu livro sagrado e nos saberes
'lU(' ir erìciclopédia da moda codifica a cada temporada. São
r',rlrosos porque mudam constantemente, mas, por paradoxal
'1il(' l)lu'cça, também perdem seu valor porque constantemente
rrrrrrllrrÌì: a vida não encontra apoio neles, e ninguém vai querer
u',rr ulìì par de tênis velhos só porque um dia foi feliz enquanto
,,', r'rrlçuviì. Por vezes, o sentimentalismo pode salvar os objetos
rl,r tlt'saparição: guardam-se as camisetas de um time de futebol'
,, r't'sticlo de casamento, o primeiro uniforme escolar. O sen-
trrrrt'rrtalismo, assim, é uma forma psicológica do colecionismo'
lrrr gcral, no entanto, o passado marca os objetos só com a
rt'llricc, e não há defensores dos objetos velhos, assim como
r'\rslL:rÌì os preservacionistas de cidades ou edifícios: somente
,, ptiblico reclama a preservação. Os objetos privados envelhe-
( ( nì r'írpido e apenas um projeto perfeito poderia salvá-los de
t.rl tlctclioração. Aliás, nem isto: os objetos de projeto perfeito
\';r() l)urar nos museus e nas coleções; os objetos de projeto
'',,rrlinírio" (geralmente, os objetos marcados pela moda) só
'.:r{) l)rcservados enquanto não se puder substituí-los por outros
rrr;ris rìovos e melhores.
O tempo foi abolido para os objetos comuns do mercado'
N:rrr clrte eles sejam eternos, e sim por serem inteiramente tran-
tttririo.ç. Duram enquanto não se gastar de todo seu valor
',rrrrlrrilico, porque, além de mercadorias, são objetos hiper-
',rlrrilicantes. No passado, só os objetos de culto (religioso ou
i r v i I ) c os objetos de arte tinham essa capacidade de acrescentar
,ri) uso um "algo mais" de sentido que lhes conferia um signi-
30 cENAS r)A vrr)A pós-N,ToDERNA
ficado maior. Hoje, o mercado pocle tanto quanto a religião ouo poder: acrescenta aos objetos um ..algo mais,, simbólico fu_gaz, porém tão poderoso quanto qualquer outro símbolo. Osobjetos criam um sentido para além cle sua utiriclacle ou de suabeleza ou, melhor dizendo, sua utilidacle e suiÌ beleza sãosubprodutos desse sentido que vem cla hierarquia mercantil.Não é à toa que os objetos que ocupam o centro e o topo dahierarquia sejam mais belos (mais bem projetaclos) do que osque formam a base e os escalões médios. Sern dúvida, o mer_cado não é uma nau dos insensatos, onde se atribui maior pon_tuação a uma etiqueta sem que suas qualidiicles sejam ,"qu",examinadas. Contudo, a pontuação de uma marca, uma etiquetaou uma firma sempre tem outros fundarnentos, que extrapolamsuas qualidades materiais, seu funcionamento ou a perÍ.eição deseu projeto.
Tudo isto é sabiclo. Ainda assim, os objetos continuamescapando de nós. Tornaram_se tão valiosos para a construçãode uma identidade, são tão centrais no discurso cla fantasia,despejam tamanha infâmia sobre quem não os possui, queparecem feitos da matéria resistente e inacessível clos sonhos.Frente a uma realidacle instável e fragmentária, em processode velocíssimas metamorfoses, os objetos são uma âncora,porém uma âncora paradoxal, pois ela mesma <Jeve mudar otempo todo, oxidar-se e destruir_se, entrar em obsolescênciano prriprio dia de sua estréia. com tais paradoxos constrói_seo porlcl rlos objetos: a liberdade daqueles que os consomemsurgc cla Íõrr-ca necessidade do mercado de converter_nos emconsurnicl.rcs l)cnnanentes. A liberdade dos nossos sonhos deobjetos csc'tlì tr v.z clo ponto teatral mais poderoso, e coÌÌìela nos lìrlir.
O rnurrrlo rlos olr.jetos se expandiu e continuará a expan_dir-se' Até há porcirs tróclrcras, o que se podia comprar e vender
Abundância e pobreza 37
Irrrlur rrrrrir rnaterialidade exterior que só excepcionalmenter'rrlllrvir ul intimidade de nossos corpos. Hoje, não existe umt('r'il(il'i() onde o mercado, com sua imponente maré generali-z;rtkrriì. niro esteja abrindo suas lojas. Sonham-se objetos que
Irrrrrslìrlrnarão nossos corpos, e este é o sonho mais feliz e ater-ror'171q1119. O desejo, não tendo encontrado um só objeto queo slrtislìrça nem ao menos transitoriamente, encontrou na cons-trrlçiro de objetos a partir do próprio corpo o non plus ultrarrrrtlrr se reúnem dois mitos: beleza e juventude. Numa corrida( rìrÌtllÌ o tempo, o mercado propõe uma ficção consoladora:;r vt'llrice pode ser adiada e possivelmente
- não agora, mas
t;rlvcz em breve - para sempre vencida.
Se a velhice indigna das mercadorias expulsou a tem-porrrlidade da nossa vida diária (o tempo dos objetos só pesa
l)iu'tì cÌuem não pode substituí-los por outros mais novos),rlÌ.()ra nos oferecem objetos que alteram nosso corpo: próteses,
srrbstâncias sintéticas, suportes artificiais, que entram no corporlrrlante intervenções que o modificam segundo as pautas de
wl clesígn que muda de tempos em tempos - alguém ainda
(luor os peitos chatos que se usavam hâ dez anos, ou a magrezarlrr década de 60? No cenário público, os corpos devem ade-(luar-se à função perfeita, à prova de velhice, que antes se
('sl)crava das mercadorias. Não há motivos para rejeitar essa
tt'cnologia cirúrgica, imitando o escândalo com que as senhoras
rcspcitáveis do Novecentos se abstinham de tingir os cabelos.Nlìo se trata de ficarmos horrorizados hoje, diante de inter-ve rrções que nós mesmos vamos considerar até inocentes den-tnr de uma década. Ainda assim, precisamos perguntar o que
t'strr sociedade está buscando em tais avatares da engenhariattrrlroral ou do design de mercado.
-
32 c[.NAs DA vrDA pós-MoDEIìNA
Quem fala em nossos sonhos de beleza? O que acon_tecerá conosco se conseguirmos não só prolongar a vida, mastarnbém
- simplesmente - abolir a morte,Ì
Jovens
A Í'antasia é um tema e tanto. Nas discotccas, cle madru_gada, os muito jovens interpretam a seu rnotlo um ritual. Trata_se do carnaval que todos pensavam definitivamente excluídoda cultura urbana. Entretanto, o fim do século o clesenterra parasair à noite.
Que ninguém se confunda: essa garota que parece aprostituta de uma história em quadrinhos da ttrttvìrlu espanholaé simplesmente uma máscara. Está Íìntasiacla cle prostituta,mas seria um grave mal-entendido se a confunclíssernos comuma prostituta de verdade (que, por sua vez, jamais se vestiriadesse jeito, e sim no estilo das modelos). Confundi-Ìa com umaprostituta equivaleria a crer, num carnaval dos anos 20, quea "dama antiga" ou a "bailarina russa" vinham mesmo clo séculoXVIII ou da Rússia. Essa garota pintou o rosto e distribuiusobre o corpo uma série de signos que já não significam o queoutrora significaram: a bÌusa preta e transparente nho é umablusa preta e transparente, os lábios vermelhos não são Ìábiosvermelhos, os seios quase nus não são seios nus e tampoucoas botinas rnilitares são botinas militares, nem a minissaia bru-tal, colacla nas cadeiras e no púbis, é uma minissaia. Essa garotaescolheu urna máscara para usar de madrugada; não é umaversãro d<l traje cle festa de sua mãe, nem o resultado cla nego_ciação entl'e urìì vcstido de princesa e as possibilidades eco_nômicas da íìntília. E,la não se veste adaptando uma modaalheia ao gosto clas disc.tecas da adolescência, como se vestiam
Abundância e Pobreza 33
rs ltrrrotits clos anos 50, quando iam tomar chá na boate, na
Ir'rrlrrlivrr tlc serem as reproduções Kitsch de suas mães ou das
rutrlhclcs clo cinema. Como seu amigo (colete pintado à mão,
('rÌì colcs rnais ou menos rasta, tatuagem no bíceps, aros), ela
vt'stc rrrrur fantasia de discoteca na qual o humor disputa o ter-
r('no corn o erotismo.
A pura exterioridade do carnaval produz um efeito de
srrpcr'l'ície, em que tudo está para ser visto por inteiro: é uma
rnotlu que se propõe a desnudar, opondo-se à sua função tra-
tlit'ional de oscilar entre o visto e o não visto. O traje de festa
t' rr lrpoteose da insinuação; a fantasia de discoteca realiza quase
t'orrrpletamente o ideal de visibilidade total. O traje de festa não
:rtlrrrite combinações fora de seu sistema: os sapatos, a bolsa,
:rs.jtiias, o perfume devem pertencer a isso que o traje significa'
A I'antasia vive de uma certa descontinuidade; sua beleza sur-
plccnclente provém da arte do imprevisto, da imaginação
cornbinatória mais que do cânon. Como a roupa hippie dos anos
(r0, a fantasia de discoteca não exclui a combinação de diferen-
lcs temporalidades e origens: retrô punk, retrô romântico, retrô
cabaré, retrô folk, retrô militar, retrô Titanes en el Ring*, retrô
rrrsta, gigolô, femme fatale, demí-mondqlne, prostituta de Al-
rrroclóvar. Como na fantasia carnavalesca (que Madonna inter-
l)rcta com deliberada fidelidade), o prefixo "retrô" é um traço
biisico do estilo que aposta mais na reciclagem que na produção
rlo inteiramente novo. A originalidade é sintática, evoca o collage
c rrão rejeita uma estratégia de ready-made.
A garota está vestida em dois tempos: há um contraponto
(ìrìtre o corpo e sua fantasia. A roupa não foi escolhida para
' N. do T.: Trata-se de um programa da televisão argentina semelhantc
ao "Telequete" brasileiro.
34 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA
favorecer o corpo, segundo um cálculo fácil que, antes, sópermitia certas liberdades a certos corpos, quanto mais per_feitos mais livres para escolher a moda que iria cobri-Ìos. pelocontrário, a garota escolhe a fantasia e clepois a põe sobre ocolpo
- em camadas, em faixas, em pinceladas _ e o corpotem que aceitar a fantasia porque esta é mais importante doque ele, ainda que o exiba generosamente. A garota não fez suaescolha considerando o que lhe cairia melhor; vestiu a fantasiade que mais gosta ou, simplesmente, aquela que tinha de vestir.A idéia do carnaval se impõe sobre outras icléias: no carnaval,o que favorece a beleza dos corpos deve cecler diante do im_perativo de mostrar os corpos travestidos na fantasia. Existe'rcoisas que só são vistas numa cliscoteca: o vesticl' cle festa,por sua vez, podia ser usado também para ir ao teatro ou a
um casamento.
Quando cantavam no teatro, as velhas estrelas p<_rp nãose vestiam de modo diferente: exceto pela sobrecarga do gla-mour, nem Doris Day nem Bing Crosby usavam um traje queos distinguisse da idéia que a moda ocidental impunha naspassarelas e nas revistas. Quando Carlos Gardel ou MauriceChevalier se vestiam de gaúcho ou canoíier parisiense ficavamuito claro que isso era só um acréscimo decorativo que nãopoderia nem deveria ir além da cena.
Desde os anos 60, a cultura do rock, por sua yez, fezdo traje uma marca central de seu estilo. O rock foi mais doque urìla rnúsica; moveu-se desde o início com o impulso deuma contriÌcultr"rra que se espalhou pela vida cotidiana. O rockse identiÍ'ic.r-r clc rtr.do extramusical: sustentada pela música,a cultura rock clcÍ'irriu os limites de um território onde houvemobilização, rcsisíôncia e experimentação. A droga, que tinhasido um hábito privlrkl de burgueses curiosos, poetas deca_
Abundâncìa e Pobreza 35
tlt'nlcs, clândis e exploradores da subjetividade, foi parte da
t'rrltura clo rock e, no interior dela, adquiriu um caráter de
rcivinclicação pública e de fronteira transitável. Até hoje, no
irrrirgirrírrio coletivo, ela é associada aos jovens de um modo
rrrorirlista e persecutório. O rock foi um desafio juvenil (pos-
sivclrrrcnte o último) e não se equivocaram aqueles que assi-
iltrllrvlrrn seu potencial subversivo fundado na emergência de
rtlcolosias libertárias. A rebeldia do rock anuncia um espírito
rlt' t'ontestação que não pode ser separado da onda juvenil que
('ntrir rìo cenário político em finais dos anos 60. Podiam não
:,('r'()s Inesmos protagonistas, mas ainda que fossem diferentes,
;rrrrrl. clue nem se conhecessem, eram parte de um clima cultural'
O rock cumpriu um de seus destinos possíveis: deixou
rlt' scr um programa para transformar-se num estilo' A expan-
',lo (lrrdia do rock na cultura juvenil menos rebelde acompanha
,r rt't'iclagem de mitos românticos, satânicos, excêntricos' Como
r",trlo, o mercado recorre a ele, saqueia seus pais fundadores,
'.rrlrtllri o que neles havia de música pop. Esse movimento de
,r'.',inriltção, aliás, não é novo: inscreve-se como uma forma
,1,'t'ir.culação do rock desde o começo. Irmãos e inimigos, o rock
'' () lx)l) marcharam por caminhos cruzados, inclusive nos mo-
rr('nlos cle maior qualidade estética. Por isso, hoje, tudo pode
'., r rt'nrctido ao rock, na medida em que este se tornou um
Irl:ro rll cultura moderna, e com o desaparecimento de seus
.r',pt't los subversivos após a morte de seus heróis ou na emer-
),( n( rr tlo cliscursos mais piedosos (ecologistas, naturistas, es-
I'rr rtrrrlistus, new age) adotados pelos remanescentes'
('oltvertido em estilo (o que também aconteceu com as
r ,rrrlirilrrtkrs históricas), todas as variantes da cultura juvenil o
, rr,urì Sc o rock, como os hippies' encontrou no traje uma
ilr.rr,;r rk'cxcepcionalidade, a idéia do traje como diferenciaçho
36 cr-rN,{s DA vrDA pós-Mor)rìRNA
entre tribos cuÌturais se desenvolve em torJas iÌs suas peripécias.Os traços de estilo aparecem e desaparecem; voltam as jaquetas
pretas por uma temporada, as luzes e as sombras do punkpodem ser o ponto alto da maquiagem, as f'eridas clos skinheadssão recicladas pela tatuagem, o couro toma o lugar do .jeans,o jeans toma o lugar do couro, topetes com gel ou nucas raspa-das, garotos que no fundo são um tanto racistas vestem coletestipo Bob Marley. O traje sobressai com o esplendor de suaestrepitosa obsolescência e sua arbitrariedade soberana.
Assim, a garota da discoteca dá o testernunho de umaÍbrma de anestesia: ela despreza a origern dos estilos quecombina em seu corpo. Sua fantasia não tem passaclo (tampoucoo traje de "bailarina russa" indicava baile tblclórico ou nacio-nalidade russa): não a distingue o significado dos elementos que
ela combina, e sim a sintaxe com que eles se articulam. pura
forma, sua fantasia se diferencia da forma da mocla "legítima,,por não aspirar à universalidade e sim a uma fração particular:marca sua idade, sua condição de jovem, e não sua condiçãosocial ou seu dinheiro. Com a fantasia, a garota cumpre porinteiro o ciclo de algo que já começava a esboçar-se nos anos
50:',o "estilo jovem". A juventude não é uma idade e sim umaestética da vida cotidiana.
A infância quase desapareceu, encurralada por uma ado-lescência precocíssima. A primeira juventude se prolonga até
depois dos 30 anos. Um terço da vida se desenvolve sob o rótu-lo dejuvontutlc, tho convencional quanto quaisquer outros rótu-los. lbclo rnunclo sabe que esses limites, aceitos como indica-
ções prccisiìs, costunìiìm mudar o tempo todo.Ern l9(X), a rnulher imigrante que já tinha dois Íìlhos
não se considerava tão jovem aos 17 anos; seu marido, dez.anosmais velho, era unl lrortrcrn maduro. Antes, os pobres só eram
Abundância e Pob'eza 37
.jovens excepcionalmente; em seu mundo, passava-se direta-
mente da infância à cultura do trabalho, e os que não seguissem
esse itinerário entravam na qualificação de excepcionalidade
perigosa: delinqüentes juvenis, cujas fotos mostram pequenos
velhos, como fotografias de meninos raquíticos' Neste caso'
a juventude, mais que um valor, podia chegar a ser considerada
um sinal de perigo (esse hábito deu origem à criminologia' mas
a polícia o Pratica até hoje).
Entretanto, em 1918, os estudantes de Córdoba iniciaram
o movimento da reforma universitária proclamando-se jovens:
lrrgenieros, Rodó, Palacios, Haya de la Torre acreditavam que
estavam falando aos jovens e descobriram que o interlocutor
jovem podia ser insituído em benefício de quem quisesse ins-
tituir-se como seu mentor. Também se reconheciam como
.jovens os dirigentes da Revolução Cubana e os que marcharam
pclas ruas de Paris em maio de 1968' Tendo a mesma idade'
os líderes da Revolução Russa de l9l7 não eram jovens' A
iuventude revolucionária do começo do século supunha ter
rrrais deveres a cumprir do que direitos a reclamarl seu mes-
sianismo, como o das guerrilhas latino-americanas' valorizava
o tom moral ou o imperativo político que obrigava os jovens
l utuar como protagonistas mais audazes e livres de qualquer
vínculo tradicional.
Os românticos' por sua vez, tinham descoberto na ju-
vcntude um argumento estético e político' Rimbaud inven-
t()u, a preço de silêncio e exílio, o mito moderno da juventude'
trrrrrscxual, inocente e perversa. As vanguardas argentinas da
tlt:r'lr(la de 20 praticaram um estilo de intervenção que logo foi
,,,rrsiclerado juvenil. Bertold Brecht, por sua vez' nunca foi
l()v(ÌrÌ.r, nem Benjamin, Adorno, Roland Barthes' Os retratos de
l,:utlc, Raymond Aron e Simone de Beauvoir, aos 20 anos de
38 cENAS DA vrDA pós-MoDEtìNA
idade apenas, mostram a pose grave com a qual seus mode-los pretendem dissipar quaÌquer idéia da imaturidade quefascinava a Gombrowicz. Éramos jovens, afirrna Nizan, masque ninguém me venha dizer que os 20 anos são a rnelhor ópocada vida. David Vifras não era tão jovem quanclo, aos 27 anos,dirigia a revista Contorno, na qual a categoria cle ,Jovem" fbiestigmatizada por Juan José Sebreli, dois ou trôs anos maisnovo que Viías. Quando faÌaram de uma',nova geração,', esses
termos foram usados como marca de dif'erença iclcológica que,para completar-se, dispensava qualquer recurso a uma reivin-dicação de juventude.
Orson WeÌlcs não era tão jovem quanclo, aos 24 anos,fìlmava o Cidadão Kane. Nem Bufruel, nem Hitchcock, nemBergman jamais fizeram qualquer "cinema jovem", como JimJarmusch ou Godard. Greta Garbo, Louise Brooks, IngriclBergman, María FéÌix nunca foram adolescentes: sendo lâojovens, sempre pareceram só jovens. Audrey Hepburn foi a pri-meira adolescente do cinema americano: mais jovem que ela,só as crianças prodígio. Frank Sinatra ou Miles Davis nãoforam jovens como os Beatles. Nem Elvis presley sacava dajuventude como seu capital mais valioso: enquanto apaixonavaum público adolescente, sua subversão era mais sexual do quejuvenil. Jimmy Hendrix nunca pareceu mais jovem que o eternojovem, velho jovem, adolescente congelado, Mick Jagger.
Até o jeans e a minissaia não existiu uma moda jovem,nem urn rnercuckl que a pusesse em circulação. Mary euant,Lee e Lcvi's são a asademia do novo design. Até 1960, os jovensimitavarn, cstilizlrvaln ou, no máximo, parodiavam o que era,simplesmcntc, a rrrorlu. Assim, as fotos de atores bem jovens,jogadores cle lirtcllol uu cstudantes universitários não evocam,até então, a icorr<lrlirlil clc coroinhas perversos ou roqueiros
Abundância e Pobreza 39
dispostos a tudo, o que agora é lugar-comum' Essa iconografia
tem apenas um quarto de século' As modelos de publicidade
imitavam as atrizes ou a classe alta; hoje, imitam as modelos
mais jovens. As atrizes é que imitam as modelos' Somente no
caso dos homens a maturidade conserva algum magnetismo
sexual. Madonna é um desafio original porque adota a moda
retrô sem incorporar a ela clichês juvenis; com ela, passou a
existir uma fantasia só usada pelos jovens' que complica o sig'.'
nificado dos sinais de adolescência somados a uma moda que
exibe a acumulação de traços desta última metade de século'
Hoje a juventude é mais prestigiJsa do que nunca' como
convém a culturas que passaram pela desestabilização dos
princípios hierárquicos. A infância já não proporciona uma base
",l.quudu para as ilusões de felicidade, suspensão tranqüilizado-
ra da sexualidade ou inocência' A categoria de 'Jovem"' por
sua vez, garante um outro set de ilusões com a vantagem de
pocler trazer à cena a sexualidade e' ao mesmo tempo' desven-
cilhar-se mais livremente de suas obrigações adultas' entre elas
a cle uma definição taxativa do sexo' Assim' a juventude é
urn território onde todos querem viver indefinidamente' No
cntiìnto, os 'Jovens" expulsam desse território os impostores'
tlue não cumprem as condições da idade e entram numa guerra
gcracional banalizada pela cosmética' a eternidade qüinqüenal
tlirs cirurgias estéticas e das terapias new age'
A cultura juvenil, como cultura universal e tribal ao
rìÌcsrrìo tempo, constrói-se no marco de uma irutituição tradi-
t irlrtalmente consagrada aos jovens, que está em crise: a escola'
trrio prestígio se debilitou tanto pela queda das autoridades
trlrlicionais quanto pela conversão dos meios de massa no
('sl)rço de uma abundância simbólica que a escola não oferece'
r\s cstratégias para definir o permitido e o proibido entraram
40 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
em crise. A permanência, que era urì traço constitutivo daautoridade, foi rompida pelo fluir da novidade. Se é quaseimpossível definir o permitido e o proibido, iì moral deixa deser um território de conflitos significativt_rs para converter_senum elenco de enunciaclos banais: a autoriclade percleu seu as_pecto terrível e intimidatório (que potencializava a rebelião) esó é autoridade quando exerce a força repressiva (como costu_ma fazer, com indesejável freqüência). Oncle antes se podiaenfrentar a proibição discursiva, hoje parece restar só a polícia.Onde há poucas décadas estava a política, apareceram depoisos movimentos sociais e hoje avançam as neo_rcligiões.
O mercado ganha relevo e corteja a juventucle, depoisde instituí-Ìa como protagonista da maioria de seus rnitos. Aesquina onde se encontram a hegemonia do mercaclo e o pesodecadente da escoìa ilustra bem uma tenclência: os .Jovens,,
passam da novela familiar de uma infância cada vez mais brevepara o folhetim hiper-realista que põe em cena a dança clasmercadorias frente aos que podem pagar por elas e tambémfrente àqueles outros consumidores imaginários, aqueles quesão mais pobres, aos quais a perspectiva de uma vicla de tra_balho e sacrifício não atinge com a mesma efic/aciado que aseus avós, entre outros motivos porque eles sabem que nãoconseguirão sequer o que seus avós conseguiram, ou porquenão querem conseguir só o que estes buscavam.
Consumidores efetivos ou consumidores imaginários,os jovens cncontram no mercado de mercadorias e bens simbó_licos um deptisito clc objetos e discursos fast preparados espe_cialmente. A vclociclude de circulação e, portanto, a obsoles_cência acelcr.clu sc crlrnbinam numa alegoria de juventude: nomercado, as r.crc.rklr.i.s clevem ser novas, devem ter o estiÌoda moda, devem ciÌl)tar as mudanças mais insignificante.s do
Abundância e Pobreza 41
ar dos tempos. A renovação incessante necessária ao mercado
capitalista captura o mito da novidade permanente que também
impulsiona a juventude. Nunca as necessidades do mercado
estiveram afinadas tão precisamente ao imaginário de seus
consumidores.O mercado promete uma forma do ideal de liberdade e,
na sua contraface, uma garantia de exclusão' Assim como o
racismo se desnuda na entrada de algumas discotecas, cujos
porteiros são especialistas em diferenciações sociais, o mer-
cado escolhe aqueles que estarão em condições de, no seu in-
terior, fazer suas escolhas. Todavia, como precisa ser universal'
ele enuncia seu discurso como se todos, nele, fossem iguais'
Os meios de comunicação reforçam essa idéia de igualdade na
liberdade que é parte central das ideologias juvenis bem
pensantes, as quais desprezam as desigualdades reais a fim de
armar uma cultura estratificada porém igualmente magnetizada
pelos eixos de identidade musical que se convertem em espaços
para a identidade de experiências. Só muito abaixo, nas mar-
gens da sociedade, esse acúmulo de camadas se racha' As
rachaduras, de todo modo, têm suas pontes simbólicas: o vi-
deoclipe e a música pop criam a ilusão de uma continuidade
na qual as diferenças se fantasiam de escolhas que parecem
individuais e isentas de motivação social' Se é certo, como se
disse, que se ama uma est;ela pop com o mesmo amor com
que se torce por um time de futebol, o caráter transocial desses
afetos tranqüiliza a consciência de seus portadores, ainda que
eles mesmos, depois, diferenciem cuidadosamente e até com
certo prazer esnobe os negros dos louros, segundo a lógica que
também os classifica na portaria das discotecas' O impulso
igualitário que às vezes se crê encontrar na cultura dos jovens
tem seus limites nos preconceitos sociais e raciais, sexuais e
morais.
!
42 CENAS DA VIDA PÓS-MoDERNA
A debilidade do pertencimento a uma comunidade devalores e sentidos é compensada por um cenário mais abstratoporém igualmente forte: a insistência de um imaginário semasperezas, brilhante, assegura que a própria juventucle é a fontedos valores com que esse imaginário interpela os jovens. OcírcuÌo se fecha de modo quase perfeito.
Videogames
Entro num lugar com baruÌho de discoteca c ilurninaçãode bar da zona portuária. Os freqüentadores parecem saíclos
de um colégio, uma fàvela ou um escritório oncle trabalhariamna faixa mais baixa de especialização e salário. Cacla urn na sua,sem que os olhares se cruzem por um instante sequer. De quan_do em quando, um ou outro vai até o balcão do fundo e fazalguma transação. O balconista desconfia dos clientes e evitaqualquer contato além do indispensável. Sou aqui a única mu-lher. Mais tarde, entram duas garotas, que parecem amigas cle
um dos estudantes.
As paredes do salão estão pintadas de cores ácidas, verdemaçã, amareÌo, violeta. Sobre os painéis coloridos recaem as
luzes que vêm do teto, com a reverberação adicional cle algunsgrafismos em néon, raios, estrelas, espirais. Seja como fbr, nin_guém olha para as paredes ou para o teto; ninguém tem tempopara desviar-a vista. Todos sabem que há pouco a ser visto.O ruíclo cla rnúsica
- uma percussão que se repete sem varia_
ções, contra o Íìrndo de uma melodia brevíssima, bem simples,que tarnbólrr é r'cpctida e invariável
- mistura-se a outra sériede sons: upit,s, r.lltcs rnetálicos, golpes surdos, súbitas ondaselétricas, tìtittnrcits, .c<lrdes de sintetizador, tiros, vozes irre_conhecíveis, ltoitt,g, Íotrg, clash, a trilha sonora do desenhoanimado.
Abundância e Pobreza 43
A luz fria se mistura a outras luzes: clarões' raios' escu-
recimentos até o breu total, mudanças de planos de cor, auréolas
que se chocam contra a parede e os corpos' São efeitos de
luz que se mostram a si mesmos' valem pelo que são e não
pelo que permitem ver ao redor' São como coisas que preen-
chem o espaço e o transformam num holograma' Sem a luz e
o som, o lugar ficaria vazio, porque na verdade seus móveis
são esses mesmos efeitos: trata-se de um cenário de luzes onde
cada metro quadrado apresenta uma disposição nitidamente
delimitada de cores e ruídos' Por isso' cada um pode isolar-se
e ficar na sua.
Se me aproximo de algum dos freqüentadores' meio de
lado, para ver o que está fazendo' ele não desvia os olhos; essa
falta de contato me permite supor que não estou incomodando
muito. Seus oÌhos estão abstraídos num vídeo' suas mãos sepa-
raclas manejam as alavancas e os botões de um painel' Às ve-
zes, um movimento da cabeça dá a idéia de surpresa' contra-
riedade ou alegria, mas em geral essas pessoas não são de dar
na vista, estão ensimesmadas, abstraídas na configuração visual
clo vídeo que muda conforme os resultados instantâneos de
seus atos ou as decisões inescrutáveis dos chips'
A cada três, quatro ou cinco minutos' retorna-se ao
princípio: letras no vídeo indicam que' apesar de tudo parecer
iclêntico e infinito, não é bem assim' o contador zerou de novo'
ó hora de começar a contagem outra vez' As máquinas são um
itt.f'ìnito perióclìco, em que cada tanto encerra um ciclo e inicia
,,,,tro, basicamente igual' mas ao mesmo tempo caracterizado
yror variações. Como um infinito periódico' hipnotizam e indu-
zcrrr à busca de um ìimite inalcançável acima do qual o jogador
vt'ttcsria a máquina'
44 crNAs D^ vrDA pós-MoDERNA
Do outro lado do salão existe um mundo mais arcaico.Painéis verticais e horizontais, armados conÍbrme a estética popdo grafismo dos anos 50, oferecem uma superfície povoadade obstáculos (cogumelos, pontes, buracos, barreiras, labirin_tos, arcos) por onde circula uma bola de metal: avança, retroce_de e desaparece. Avança, retrocede e clesaparccc, rnas, ao fazê_lo, produz música: a música que o jogaclor joga, com as mãosnas laterais do painel horizontal, impedintlo clue a esfera caiano poço de onde já não sai até que tucro rcc()rncce mais umavez. Observo que os jogadores goÌpeiarn, inclinarn, empurramos pés e as laterais da máquina, que nho ó operacla somentecom as mãos, mas com todo o corpo. No pairrcl vcrtical, as luzesiluminam diferentes setores, desenhos de anirttlris, anõrcs, roletas,naves espaciais, gorilas, florestas, praias, piscinlrs, rnullrcres, sol_dados, dinossauros, atletas. Os desenhos são vcrclacleiros de_senhos (ao contrário das figuras geometrizaclas cla rnaioria dosvídeos); os sons também têm algo cìe real por(plc a esÍ-era emmovimento bate fisicamente nos c,gurrrcros o. n.s barreirasde metal.
Essas máquinas (as que não têm vídeo) lernbram um cas_sino: Las Vegas no espaço de dois metros por um. Não estouquerendo dizer simplesmente que os cassinos de Las Vegasestão cheios dessas máquinas e de vídeos conto os do outro lado.Cada uma dessas máquinas sintetiza o ruído e a iÌuminação cleum cassino, a repetição, a concentração, o infinito periódico deum cassino. AIérn disso, copiam a estética de Las Vegas (ouquem sabc seria rnelhor clizer que Las Vegas e estas máquinastêm a mesrna ostética?).
Dou urna volta em U e chego à saída. Ali, a cada ìadoda porta, há dois granclcs telões nos quais se reproduz um jogo
Abundância e Pobreza 45
de bola; como na televisão, o resultado aparece na base do
vídeo, identificando os times pela cor de suas camisetas' Um
homem olha, como eu, para essa partida realmente infinita e
periódica, vai até o balcão e retorna com uma ficha' disposto
a intervir para mudar a ordem da máquina'
Em outro lugar como esse, havia um cenário de fundo'
com escadaria e cascata, teto decorado I pintado de dourado'
com uma fonte que jorra água de verdade' Provavelmente nes-
ses ambiciosos restos de decoração estará a metáfora que
procuro para entender o jogo em questão' Esse salão era um
.in"-u. Hoje, o cinema foi dividido, como uma imagem de
televisão processada por computador, em mais de cem cubí-
culos. onde a escuridão e o silêncio admitiam uma só super-
fície iluminada e uma só fonte de som, agora há cem super-
fícies e cem sons. No entanto, nada tem o futuro assegurado:
em pouco tempo mais, a realidade virtual acabará com as
telas de videogame e só os roqueiros nostáÌgicos ou os ar-
tistas do revivalismo freqüentarão os poucos fliperamas que
não tiverem sido transformados, como as velhas iuke-boxes,
em peças de decoração retrô PoP'
As casas de videogames não podem evitar o "efeito
espelunca" mesmo as mais luxuosas, que combinam
o Kitsch e um certo ar East Side nova-iorquino com escadas
de ferro e biombos de metal dobrável, ou grafismos de
publicidade pós-moderna com as cores fosforescentes que se
usavam hâ dez anos. Melhor dizendo, suportam esse efeito
como uma das conseqüências de sua cenografia' Nos bairros'
algumas mães que acompanham seus filhos parecem com-
pletamente fora de lugar, porque não sabem como se portar'
como evitar o golpe da luz ou do som: levaram seus filhos it
um lugar inevitável porém perigoso e acreditam que sua presençil
46 cLNAs r)A vrDA pós-MODERNA
ali poderá salvá-los de um vício que consideram terrível justa-mente porque retira seus filhos daquelcs espaços imagináriosou reais onde se pode exercer a vigilância. Scus filhos, tendoos controles à mão, são mais hábeis do cluc elas. E tambémmais inteligentes, porque não se perdern no Iabirinto gráfico,pelo quaÌ elas não se interessam, pois não cortrpreendem, ounão compreendem, porque não as intercssa. Essas mães nãoamenizam o "efeito espelunca"; aliás, o rcssaltun-r: estão ali co-mo quem acompanha um alcoólatra até o bar, corn a fìnalidadeinalcançável de que ele tome uns copos a rììolìos.
Muito mais que a mecânica clos jogos, o "cf'cito espe-lunca" marca a presença de uma subcullunr cujos membrosvalorizam feitos que o resto da socicclaclc nho consirlcra tanto.Por exemplo, ganhar da máquina, o que signil'icir vclìccr alguémque não é teoricamente igual, mas sinr rculrrrcnle rliÍ'crcnte; porexemplo, ganhar sem obter outra rcconìltcnsir ulónr da simbó-lica. (Nos cassinos, quanclcl se ganha clirs rniitluirri,, ,,, I.Ë.o--pensas são, evidentemente, rnateriais. Nurrrl ou lìoult.ír casa devideogames cheguei a ver apostas, rìlas isso ó Íì.urrcamente
excepcional). O "efeito espelunca" tarnbórrr tctÌì, crìtretanto,algo de cassino: cada jogador está isolado para clcÍ'inir seu
destino num combate singuÌar com a máquina, c é ìr rrrírc1uina,
e não aos outros, que se deve demonstrar destreza, irnpavidez,perspicácia, arrojo e rapidez. Se é certo que muitas mltquinaspermitem o desafio entre dois jogadores, o mais comum, noslugares públicos, é o enfrentamento individuaÌ do jogador comsua m/rquina. Como no cassino, alguns observadores podemassistir à pcflonnunce dos jogadores mais habilidosos ou maissortud'os, mas, turnbém como nos cassinos, as maneiras ade-quadas impõern sulÌ regra de bom-tom: não olhar tle modo a
levar o outro a senlir-se olhado e vice-versa, não.fazer os
Abundância e Pobreza 47
gestos de quem sabe que está sendo olhado' O curioso metido
e o exibicionista se distinguem negativamente na paisagem dos
videogames.
O "efeito espelunca" também tem a ver com a presença
minoritária de mulheres. Algumas vão atrás dos namorados;
outras, mais inclinadas ao jogo, em geral se restringem aos
videogames geométricos, que são menos surpreendentes na
proliferação de sons, mas impõem dificuldades mais intelec-
tuais. o último Tetris tridimensional apresenta verdadeiros de-
safios à previsão de configurações espaciais sobre três planos
e um quarto eixo temporal que pauta a velocidade de queda dos
volumes. Seja como for, as mulheres são poucas e ninguém
olha para elas. Não são ignoradas por serem mulheres' e sim
porque o hábito induz a cruizar a menor quantidade possível
de olhares sobre os espaços reais; os espaços reais embotam
o olhar e tiram sua acuidade e sua capacidade de enfoque
refinado, necessários para enxergar bem os espaços das telas
de vídeo. obviamente, há mais mulheres nas casas de videoga-
mes situadas nos bairros residenciais (mais familiares' menores
e mais pobres na sua oferta técnica) e nos enormes videódro-
mos do centro, que interrompem a decadência de algumas ruas'
antes tradicionais, com uma decoração generosa e a presença
de seguranças, que muitas vezes são apresentados como um
dos serviços especiais oferecidos pela casa' Quando se descobre
a presença de um desses seguranças' o "efeito espelunca" au-
menta imediatamente.
As máquinas estão para além de tudo o que se disse' Na
verdade,sãoumconjuntodeelementosdetemporalidadesdiversas: as alavancas e os botões de controle pertencem à era
da mecânica; os vídeos, à era de imagens e sons digitalizados'
A combinação dessas duas tecnologias produz um híbrido ainda
48 cLNAs DA vrDA pós-MoDERNA
mais incongruente que o teclado bem projetado de um com-putador barato. Assim, combater essas rnáquinas requer uma
soma de habilidades de tipos diferentes: o manejo das alavancase dos botões se inscreve na ordem dos reflexos corporais; en-
tretanto o que se passa no vídeo e o que se deseja que ali acon-teça obedece a uma Ìógica extracorporal. Muitos dos jogos
trabalham com as dificuldades resultantes dessa heterogenei-dade. Até que ponto posso acelerar meus reflexos corporaispara conseguir vencer a velocidade dos chips? Que nível de
dificuldade posso atingir, não pela previsão abstrata, mas pela
capacidade física de transformá-la em ações quc apareçam novídeo? São estas as perguntas cruciais de todo borl jogadorde videogames. Os maus jogadores (como os maus bebedores,que só bebem para embriagar-se) não procuram respondê-las.
São facilmente identificáveis porque operam a alavanca comose fossem sonâmbulos, apertam os botões o tempo todo, não
se sujeitam à rapidíssima lógica tle efèitos e conseqüências, não
mudam de tática; vão até o fim do jogo como se curnprissem
um destino inexorável, que nunca conseguem adiar ou transpor,através de uma pontuação mais elevada. Esses rnaus jogadores(a maioria dos que vi) são arrebatados pela velocidade da
máquina e acreditam que a rapidez do reflexo físico poderá um
dia compensar a aceleração visuaÌ. Trabalham contra o tempo.
O bom jogador, por sua vez, trabalha com o tempo: é rápidoapenas o bastante, não mais. Os maus jogadores vão contraa lógica do jogo, que não está só na aceleração física, mas numa
teoria dcl cncontro (como a balística) entre a aceleração dos
movimentos e a tradução dos reflexos em decisões que retar-dem o firn. Ralamcnte encontrei bons jogadores, mas já existemmanuais de aut<l-ajuda nos Estados Unidos. Os jogadores não
aprendem muito cprando se entregam ao videogame como se
fosse um progratna de televisão um pouco mais participativo.
Abundância e Pobreza 49
Há máquinas que simulam um filme ruim e têm con-
troles imitando pistolas ou rifles. Embora sua tecnologia seja
mais soltsticad a, conceitualmente estão na pré-história do video-
game. O realismo das imagens produzidas por tais jogos é banal
e incrível: banal porque traduz em ícones a independência
icônica original das imagens clássicas do videogame; incrível
porque, segundo as leis do videogame, só se pode admitir um
realismo naturalista perfeito (como a realidade virtual) e não a
aproximação grosseira de imagens mais velhas do que a tecno-
logia que as torna possíveis. Poucos jogadores sutis escolhem
essas máquinas, cujas regras, ainda por cima, são simplórias'
e cuja imitação aproximada acaba sendo ofensiva à imaginação
totalmente livre do referente "naturalista" que se destaca nos
jogos mais bem projetados. Em geral, essas máquinas (como -
as que apresentam partidas de futebol nas quais se enfrentam
times realmente existentes) encontram-se nas entradas das
casas de videogame, para atrair aqueles que não são verdadeiros
aficcionados, que começam a jogar porque as máquinas thes
fazem lembrar de outra coisa e não por lhes mostrarem algo
de inteiramente novo.
No mesmo local se encontram as máquinas que simulam
a condução de um carro pela estrada ou numa pista de corridas'
Pode-se dizer que são as máquinas infantis por excelência'
Didáticas, com ligeiras mudanças de programação poderiam ser
incorporadas à auto-escola, que ensina a dirigir respeitando os
sinais de trânsito, acelerando apropriadamente nas curvas e
evitando os bólides que a qualquer momento podem apaÍeceÍ
pela frente. Multiplicadoras de uma onipotência trivial, adap-
tiÌm-se aos desejos mais previsíveis. Seu didatismo não ensina
nada de novo; a emoção que produzem vem de uma variante
lripertecnológica dos carrinhos de bater, dos parques de diver-
I
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I{i
i
t
50 crÌNÁ.s r)A vrDA pós-MODEIìNA
sões. Os jogadores que não enten<Jem a abstração clo videogamegeométrico ou a iconografìa estilizada invcntada pelos Nintenclorecorrem a esses jogos, mais afìns ao imaginírrio clo mercadoe à publicidade televisiva do que à estética do vicleódromo.
As máquinas clássicas (chamemos assirl àquelas que,
como o Pacman, produzem seus próprios her(ris) são as maisoriginais. Elas deixam bem clara a lógica de variaçho e repetiçãoque é a lei do jogo. E também assinalant clr.rc o segredo está
num limite nítido entre ciclos de peripéciais c vuzio de sentidonarrativo. Em cada unidade, se ganha ou sc pcrclc sem que se
altere qualquer relato. A progressho c<tnsistc crn acumularpontos a favor ou evitar o aumcnto clirs rlil'iculclades pelaabertura de saídas possíveis. Nho há r-rrna Iristtiriu, c sim uni-dades regulares, ao final das cpais o .j<lgacl<tr Í'ica sabendo se
ganhou ou perdeu. O videogarnc clíssico rcjcita a narrativa: osuspense depende das contas c1r,rc a rnírcluina c o.jogaclclr fazemdepois de cada troca cle tela, a cacla acionarncnto clc botão oumovimento de alavanca. Os jogos clássicos cstilizararl perso-
nagens e objetos do imaginário das histírrias cm cluadrinhos,da reportagem ou do filme de ação, mas sua voraciclaclc é maiornos personagens inventados. Porque existe Pacrnan, pode haveraviões, discos voadores, animais pré-históricos, lutadores decaratê e princesas aprisionadas et.Ìl outros videogames. paoman
e Tetris são o tipo ideal de semiose a que foram aclaptadcls os
personagens e objetos que vêm de âmbitos exteriores ao chip.E estes ficarn tanto melhores quanto mais perderem os traçospertencclìtcs a tlirnensões gráficas ou narrativas historicamenteanteriorcs ao vicleogame. Entretanto, anuncia-se para um futuropróxirno a sLrltclação clesses jogos clássicos pelo cruzamentoentre filmes e jogos. Sontente então será reconhecido seu cará-ter clássico.
Abundiìncia e pobreza. 57
Jli sc disse que os videogames são um ..carnaval de signi_
Í'icantcs". Assim é interpretado o esvaziamento de narração queslcs rcalizam, mesmo os que, no título e no sistema de persona_gens, prometem uma história. Na realidade, o cumprimentorlcssl pror.nessa não faz diferença para o jogador, que não co_lììcçu o.iogo para ver se este afinal revelará o desenlace de umaÍ'icção rprase ìnexistente, e sim para produzir um desenlac e não_
.f ict'iotrtrl em seu duelo com a máquina. Os signos que evocaml)crsorìagens, oposições, hierarquias, inimigos e ajudantes (numcsl)urìtoso modelo estrutural-folk-televisivo) provam que épossívcl um sistema de personagens sem história. Da mesmaÍìrlrrra, existe ação sem narração em cada uma das unidadesrl. .i.go: algo aproxima os videogames do tédio de um infinitocíclico, como o desenho animado de gato e rato, ou o do papa_lógtras. Não é preciso recordar a unidade anterior para passar
l)iÌra iÌ seguinte. E mais: se o jogador se cletivesse em recorda_
çõcs ficaria imediatamente atrasado na corrida imposta pelo.jouo. O que existe, e os anúncios publicitários que acompanhamos jogos o apresentam como argumento de venda, é um íema,gclalmente descrito da perspectiva do jogador, que o anúncioconverte em primeira pessoa: você é um piloto de guerra querlcvc cumprir uma missão, sobrevoanclo um território monta-nlroso desconhecido, etc., etc., etc. Também existem jogos"inteìectuais", para computadores domiciliares, que cortejam aboa consciência de seus usuários, assim convidados a construirl'elutos completos, com tempo disponível para que imaginemal tcrnativas.
Tema sem narração, tema em estado primitivo antes dapcripécia, dos desvios, das linhas secundárias. portanto: ternascrn significantes. No meio, repetições organizadas em ciclostlrrc cxigem uma perfonnance cuja verdade não está no crrÍì-crr_
52 cENAs DA vtDA Pós-MoDERNA
tamento de personagens, e sim no duelo entre jogador e máquina'
Neste sentido, o videogame clássico produz uma trama não-
narrativa, composta pelo encontro de ações físicas com suas
conseqüências digitais. Muitos filmes hoje imitam, sem alcançar
de todo, esse esvaziamento de história: onde esteve a história,
repete-se a peripécia. O videogame' como esses filmes' separa
narração e peripécia, personagem e narração, do conjunto que
lradicionalmente os unira.
Carnaval, portanto, de peripécias sem relato, próprio de
uma época em que a experiência do relato tencle a desapa-
recer: o videogame propõe a ilusão de que as ações um dia
poderão mudar o infinito periódico que a máquina tem ins-
crito e apresenta ao jogador em potencial, na primeira tela do
jogo, onde suas alternativas se repetem indefinidamente' Como
no zapping televisivo, também aqui existe algo dessa combi-
nação de velocidade e desvanecimento, que poderia ser o signo
de uma época.
DOIS
O sonho acordado
Zapping
 ru,rt;rrM pERDEU ToDA A INTENSIDADE. Não provoca espan-
l, rì('nÌ interesse, não resulta misteriosa nem particularmente
rrursl)lrrcnte. Está ali só por um momento, ocupando o tempo,
r'rrt;rrrnlo não for sucedida por outra imagem. A segunda ima-
l,('ur tluÌlpouco espanta ou interessa, nem resulta misteriosa ou
tr:ur\l)rrrcnte. Está ali só por uma fração de segundo, até ser
'.rrl,:,titrríclit pela terceira imagem, que tampouco é espantosa ou
rrr('r('ssante, e que resulta tão indiferente quanto a primeira ou
,r '., l,rrncl't. A terceira imagem permanece por uma fração infi-
rrrtr'sinurl e se dissolve no cinza do vídeo. Aciona o controle re-
rrr,rto. Iìccha os olhos e tenta lembrar da primeira imagem: eram
urr:rs l)cssoas dançando, mulheres brancas e homens negros?
l,rrnlrr'rtt havia nulheres negras e homens brancos? Lembra
rrrtrrllrrlcpte de uns cabelos compridos, enrolados, revolvidos
p')r (lulri rnãos, desde a nuca até cobrir os seios de uma mulher,
'.rrposlirrrìctìte a dona da cabeleira' Ou era essa a segunda ima-
l,('nr, rìunì plano mais próximo de dois ou três dos dançarinos?
l rrr rrt'grit a mulher do cabelo enrolado? Parecia bem morena,
rrr;r'; trrlvcz não fosse negra, talvez somente as mãos o Íìlsscttt
:','riirrtt, ncste caso, as mãos de um homem negro, lts lttlìos
,1r r,. lrr irrclrvuÍn COm O Cabelo. QUantO à terCeira imagcrn, lctltlrt lt
a
54 cENAS DA vrDA Pós-MoDEr{NA
va de outras mãos, um antebraço cotn pulsciras e a parte infe-
rior de um rosto de muÌher. Ela estava bebcnclo algo, em lata.
Ao f'undo, os outros continuavam dançanclo. Nho pôde decidir
se a rnulher que bebia era a mesmit de cabclos longos e enro-
lados, mas tinha certeza de que eriÌ uma Inttlltel c clc que a lata
era uma latinha de cerveja. Acionou o controlc relìloto e o vídeo
se iluminou de novo.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, setc, oito, nove, cin-
qüenta e quatro. Primeiro pÌano corl lelto uvltrtçattclo entre Ío-
lhagens tropicais; primeiro plano cortr lìtttclo lalanja oval e
letras pretas, atrás de um posto de gasolitta; plano geral de
platóia de circo (embora o lugar não parcça dc Í'ato um circo),
com muitos cartazes escritos à mão; prirneiro plano cclm uma
mulher, cle perfil em três quartos, muito traclttiacla, que diz:
"Não quero te escutar"; dois sujeitos encostaclos no capô de
um carro de polícia (são jovcns discutinclo); tutr traseiro femi-
nino, nu, que se clistancia, para o l'r"rnclo; plancl gcral de uma
rua, num bairro que não é daqui; Libortacl Littnarclue prestes
a começar a cantar (talvez não a cantal c sirr a chorar, porque
um tipo ameaçador se aproximava dela); uma senhora simpática
faz macarrão para a família, todos gritam, os meninos e omarido; um samurai ajoelhado em fiente a outro samurai mais
gordo, sobre o tablado, tendo legendas em espanhol no rodapé
do vídeo; uma outra rnulher empilha a roupa bem fofa, sob o
olhar clc sLra mhe (não sabe por que, mas a mais velha deve
ser sLllÌ rnue); Tina Turner em três posições cliferentes, em três
partes ckr vítlco; clcpois, Alaska, iluminada por trás (mas se vê
muito bcrrr c;rrc ó cla); uma apresentadora vesga sorri e grita;
o presidentc rlc urrra clcssus novas repúblicas da E,uropa dá uma
entrevista ern inglôs; rlois locutores Í'alam como galegos; Greta
Garbo dança corn urìì I)rìr cle meias num hotel luxuosíssimo;
O sonho acordado 55
'lÌrnr Cruise; James Stewart; Alberto Castillo; primeiro plano
corn horncm que vira a cabeça para as costas de uma mulher,
vendo-sc uma parte do rosto dela; Fito Páez sacoleja seus
cachos; dois locutores falam em alemão; aula de aeróbica na
praia; urna mulher bem humiÌde grita para o microfone esten-
clido por uma repórter; três modelos sentadas num líving', outras
rnoclclos sentadas em volta de uma mesinha de centro; dez
surl'istas pegando onda; outro presidente; a palavra fim sobre
runru paisagem montanhosa; um povoado em chamas, as pes-
soas correndo, carregando seus filhos e fardos de roupas (não
ú claqLri); Marcello Mastroianni grita com Sofia Loren, junto a
LlrÌl carro de Ìuxo, numa estrada; uns garotos entram correndo
na cozinha e abrem a geladeira; orquestra sinfônica e cq'o;
Orson WeÌles no alto de um púlpito, vestido de padre; Michelle
l)l'ciÍ r; uma partida cle futebol americano; uma partida de tênis
(iluplas femininas); dois locutores fàlam em espanhol rìas com
sotrÌque de outra parte; um homem negro é agredido no corredor
tlc urn bar; dois locutores, daqui, se olham e riem; atores bran-
cos e negros numa favela falam em português; desenhos anima-
tlos japoneses. Aciona o controle remoto pela última vez e o
vícleo retorna ao cinza.
De repente, liga outra vez, porque são dez da noite. Um
Irornem muito elegante está sentado atrás de uma escrivaninha,
tliz boa noite e explica sumariamente o que vai acontecer ao
longo de duas horas de entrevistas com políticos e personali-
rluclcs de todo tipo. Depois, uma série de planos mostra a deco-
t'lção: plantas artificiais que simulam plantas naturais e outras
construções tipo ikebana, com enfeites meio eletrizados; spots
tlc luz; planos de móveis: poltronas, aparadores, mesas e xícaras
tlc caÍé, vasos, arranjos florais, um quadro moderno; spots de
Itrz c de novo o mesmo homem que promete voltar dentro cle
lrtr,rlo: Llenâs cln vitln p<is-ltto<lct'ttit :ittlclcclttitis. itt'lc e
llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllll ï|lï"n'.,
Ex.3 UC LJVV
56 CENAS DA VIDA PÓ5-MODERNA
alguns minutos. Controle remoto. Anúncios: outra vez a dança
das brancas com os negros; agora se vê bem que estão numa
paisagem caribenha. Controle remoto: dois atores fazem cara
de idiota, encostam as testas e se olham. Anúncios: um carro
desliza por uma estrada com paisagem montanhosa. Um homem
de quarenta e tantos anos abre a porta de um apartamento onde
estão um menino de l7 e uma garota da mesma idade, que se
assustam. Controle remoto. Volta o homem elegantíssimo; à
direita e à esquerda estão sentados alguns políticos conhecidos
e uma mulher desconhecida. Deixa o controle rernoto sobre o
braço da poltrona e se levanta. Da cozinhu, cscuta o começo
da entrevista. Depois de cinco minutos, o homem elegante se
despede até depois do intervalo comercial. Controle remoto.
Flash informativo. Anúncios. Comédia pastelho. Série policial.
Anúncios. Um homem gordo suspira ao beijar uma mulheradormecida, que parece reclamar ent sonhos. Anúncios.
Um homem jovem (espócie de irrnão gêmeo de Richard
Gere) termina de se barbear e passa uma colônia brilhante e
gelatinosa pelo rosto e pelo peito nu; uma mulher jovem, lindís-sima, se veste; o homem, sem camisa, atravessa o sótão, vai até
o teÌefone, fica distraído por um tempo, pega um sax e começa
a tocar; a mulher terminou de se vestir, elegante e formal; ohomem continua tocando sax; ela faz um gesto de contrarie-
dade e sai; o homem já está na rua, em seu carro, e a pega;
parece que se conheciam. Uma garota muito nova anda de
camiseta e meias pelo apartamento que ocupa com o marido
ou narnorado; vai até o quarto, à procura de aÌguma coisa; a
cama está clcsÍ'cita e ele, recostado na parede, a observa sor-
rindo; de repente, a garota levanta os lençóis e encontra um
sax; ajoelha-se na ciÌrìla e começa a tocar. É o melhor da festa:
todo mundo está trocantkr olhares significativos, tomando bebi-
O sonho acordado 57
das com bastante gelo; das garrafas corre um líquido cor de
mel, que parece caramelo; de repente, todos se voltam para um
canto da sala porque um rapaz de paletó branco empunhou seu
sax. O médico do filme trabalha num hospício, onde enfrentaos casos mais enigmáticos, inclusive o de um louco que parece
ter chegado de outro planeta para revelar a verdade sobre este;
em casa, para distrair-se de tantas preocupações, o módicotambém toca sax. Esta noite a televisão parece uma inesperada
homenagem a Charlie Parker e John Coltrane. Num momentoqualquer, o canal de videoclipes passa Wayne Shorter.
Imagens demais e um dispositivo relativamente simples,
o controle remoto, tornaram possível o grande avanço interativodas últimas décadas, que não foi resultado de um desenvolvi-mento tecnológico da parte das grandes corporações, e sim dos
usuários comuns e correntes. Trata-se, é claro, do zapping.O controle remoto é uma máquina sintática, uma moviola
caseira de resultados imprevisíveis e instantâneos, uma base de
poder simbólico que é exercido segundo leis que a televisão
ensinou a seus espectadores. Primeira lei: produzir a maioracumulação possível de imagens de alto impacto por unidade
de tempo e, paradoxalmente, baixa quantidade de informa-
ção por unidade de tempo ou alta quantidade de informação indife-renciada (o que oferece, de todo modo, o "efeito de informa-
ção"). Segunda lei: extrair todas as conseqüências do fato de
que a retroleitura dos discursos visuais ou sonoros, que,se
sucedem no tempo, é impossível (exceto quando a pessoa gra-
va um programa e rcafiza as operações próprias dos especia-
listas em mídia e não dos telespectadores). A televisão exploraesse traço como uma qualidade que lhe permite uma enlou-quecida repetição de imagens; a velocidade do meio é superiorà nossa capacidade de reter seus conteúdos. O meio é mais
58 CENAS DA VIDA PÓS-MoDEIÌNA
veloz do que aquilo que transmite. Estes, nessa velocidade,competem até anularem-se os limites entre áudio e vídeo.Terceira Ìei: evitar a pausa e a retenção temporária do fluxo deimagens, porque conspiram contra o tipo clc atenção maisadequada à estética clos meios de massa c aÍctanr o que é
considerado seu maior valor - a variada repctiçho <Io mesmo.
Q3gtalei: a montagem ideaÌ, ainda que nem scrÌrpre possível,combina planos muito breves; as câmeras clcvcrn rnover_se otempo todo, para encher o vídeo conr irnagcrrs cliferentes eassim evitar a mudança de canal.
Na observância dessas leis resiclc o succsso cla televisã-o,mas também o do zapping. Os alarrnuclos cxccutivos de emis_soras e agências de publicidacle vôcrn n<t ?.ttltltine urn atentadoà lealdade que os cspectaclores clcvc'iurrr c.'tirruar cr-rltivanclo.Contudo, seria razolívcl aceitarent o íìrto clo cluc ho.je, sem ozappíng, ninguém rnais assistir-ia ìr tclcvisão. O clue até quasemeio século era uma atraçrro bascacla rra irnugc'r converteu-se numa atração sustentada na velocidadc. A tclcvisão foidesenvolvendo as possibilidades cle cortc e rììontagem que lhepermitiarn suas três câmeras, sem suspeitar cle que a certaaltura desse caminho
- dos longos planos gerais fixos até a
dança do switcher - o feitiço se voÌtaria contra o Íeiticeiro:
para os aficcionados, o controle remoto é muito n.rais clo queum syyiÍcher.
O switcher é a arma dos cliretores cle câmera; muitasvezes seln que nerÌt por que, eles apertam seus botões c passamde um ponto clc vista a outro. O controle remoto é uma armados espcctirckr.cs cluc apertam botões fazendo cortes oncle osdiretores dc câr'u'r rrho tinham previsto e montando essaimagem truncacla cotìì outra imagem truncada, procluzicla poroutra câmera, ern outro canal ou em outro Ìugar do planeta.
O sonho acordado 59
O switcher ancora os diretores de câmera num certo ambiente(o paincl dcl noticiário, o salão das modelos-apresentadoras, a
pista c as arquibancadas do musical, os pátios e palacetes das
telenovelas). O controle remoto não ancora ninguém em parte
alguma: é a sintaxe irreverente e irresponsável do sonho pro-
duzido por um inconsciente pós-moderno que embaralha ima-gens planetárias. Os otimistas poderiam pensar que foi alcançada
a apoteosc da "obra aberta", o limite da arte aleatória num gi-gantcsco banco de imagens ready-mctde. Para pensar assim, é
preciso cultivar uma indiferença cínica diante do probÌema da
densidade semântica dessas imagens.
O zctpping suscita uma série de questões interessantes.
Entre elas, evidentemente, a liberdade do espectador, exercidacom a rapidez com que se percorreria um shopping center a
bordo de um ônibus espacial atômico. Toda parada implica uma
atividade suplementar: enlaçar imagens, em vez de sobrepô-las,
Íìrzer uma leitura baseada na subordinação sintática e não na
coordenação (o zapping nos permite ler como se todas as ima-gens/frases estivessem unidas por um "e", um "ou", ou urn"nem", ou simplesmente separadas por pontos). Velhas leis da
narração visual que legislavam sobre o ponto de vista, a pas-
sagem de um tipo de plano a outro de abertura maior ou menor,
a duração correspondente dos planos, a superposição, o enca-
cleamento, a fusão de imagens, são revogadas pelo zctpping.
Não se trata, como pretendia Eisenstein, da "montagem sobe-
rana", e sim, muito mais, da desaparição da montagem, que
sempre supôs uma hierarquia de planos. O zapp1l1g demonstra
que a montagem c.aseira conhece uma única autoridade: o
desejo à frente da mão que faz pulsar o controle remoto. Como
muitos dos fenômenos da indústria cultural, o zappíng parcco
uma realização cheia de democracia: a montagem aulogc:r'itlrr
60 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA
pelo usuário, indústrias domiciliares de telespectadores produ-tivos, tripulantes livres da cápsula audiovisual, cooperativas
familiares de consumo simbólico onde a autoridade é duramen-te questionada, cidadãos participantes na cena pública eletrô-nica, espectadores ativos que contradizem, a partir do controleremoto, as velhas teorias da manipulaÇão, zapper"- da hegemonia
cultural das elites, obstinados sabotadores das medições de
audiência e, se houver ocasião, massas dispostas a rebelar-se
diante dos Diktats dos capitalistas da mídia.
- Seja como for, o zapping, na televisão, é o novo. Porém,
sua novidade exacerba algo que jta fazìa parte desse meio. O
zapping faz com maior intensidaile o que a televisão comercialsempre fez, desde o início: no núcleo do discurso televisivosempre existiu o zapping, como modo de produçho de imagens
encadeadas tirando partido da presença cle mais de uma câmerano estúdio. A idéia de supar,* por coincidôncia semântica,
também remete à improvisaçho sobre pautas melódicas ourítmicas prévias; a idéia de sapada de televisão conserva algodo improviso dentro de pautas bem rígidas. Entre elas, a
velocidade pensada como meio e fim do chamado "ritmo"visual, que se corresponde com os lapsos curtos (cada vezmais curtos) de atenção concentrada. Atenção e duração são
duas variáveis complementares e opostas: acredita-se que só
a curta duração pode reter a atenção.
No caminho, perdeu-se o silêncio, um dos elementosformais decisivos da arte moderna (de Miles Davis a John Ca-ge, de Malevitch a Klee, de Dreyer a Antonioni). A televisão,
* N. do T.: Ern castcllr.ulo, zapar significa "trabalhar com sapa" ou"fazer trabalho dc sapa". Scgundo o Aurélio, o termo vem do italianozappa, "enxadi'.
O sonho acordado 6l
quase contemporânea das vanguardas, aproveita delas alguns
procedinrentos, mas nunca os princípios construtivos. Não é
preciso atacá-la ou defendê-la por isso; a televisão não melhora
nem piora por tomar de empréstimo poucos ou muitos procedi-
mentos da arte "culta" deste século. Sua estética é própria. Se
a percla clo silêncio, do vazio ou do branco atinge a televisão, não
é porque a arte moderna tenha realizado obras nas quais o silên-
cio e o vazio demonstrarem exageradamente a impossibilidade
de dizer e a necessidade do não dito para que algo possa ser dito.
A perda do silêncio e do vazio de imagem a que me refiroaqui é um problema próprio do discurso televisivo, imposto não
pela natureza desse veículo, e sim pelo uso que desenvolve
algumas de suas possibilidades técnicas e atrofia outras. Ritmoacelerado e ausência de silêncio ou de vazio de imagem são
cfèitos complementares: a televisão não pode arriscar-se, porque
tanto o silêncio quanto o branco (ou a permanência de uma
rìlesma imagem) chocam-se contra a cultura perceptiva que a
tclcvisão implantou e que seu público lhe devolve multiplicadapelo zapping. A mudança de canal é uma resposta não só frente
iro silêncio, mas também frente à duração de um mesmo plano.
l'or isso, a televisão de mercado precisa de "ritmo", embora
:r sucessão vertiginosa de planos não constitua uma frase rítmi-t'rr c sim uma estratégia para evitar o zapping. Espera-se que
o rrlto impacto e a velocidade compensem a ausência de brancos
t' silôncios, que devem ser evitados porque abrem as fendas
;rclirs quais passa o aapping. Entretanto, é preciso considerar
st' rrão acontece exatamente o contrário: que o zappirzg seja
possível justamente pela falta de ritmo de um discurso visual
sobrccarregado, que pode ser cortado em qualquer parte urììir
v('z (lue todas as partes são equivalentes. A velocidaclc c oprccrrchimento completo do tempo não são leis cla lck:visiro
62 c!rNAS DA vrDA Pós-MODETÌNA
como possibilidade virtual e sim da televisão como produtora
de mercadorias cujo custo é gigantesco e, em conseqüência
disto, os riscos das apostas devem restringir-se ao mínimo.
Por tudo isto surge uma forma de ìeitura e uma forma
de memória: alguns fragmentos de imagens, os (lue conseguem
fixar-se com o peso do icônico, são reconheciclos, lembrados,
citados; outros são desprezados e se repetem inÍ'initamente sem
aborrecer a ninguém, pois, na verdade, ninguónt os vê. São
imagens de preenchimento, maré gelatinosa orrcle Í'lLrtuam, afun-
dam e emergem os ícones reconhecíveis, cluc trcccssitam dessa
massa móbil de imagens justamente para poclcr clilèrenciar-se
dela, despertar surpresa e circular com rapidez: as imagens
mais atraentes precisam de um "meio tlc contraste". Existem
porque existe uma infantaria dc intagens tltre pavirnentlìm o
caminho, embora não scjarn lembraclls. As ittragctrs de preen-
chimento, cadavez mais tttttlerosits, não slto notadas enquanto
existirem as outras irnagens; quanclo cstas colÌleçlÌltì a escassear,
zapping. Tudo isso demora mais para scr clcscrito clo que para
acontecer efetivamente.
As imagens de preenchimento se repr'tL'nì rnltis que as
imagens "afortunadas". Estas, poróm, também se rcpetern. Os
admiraclores intelectuais da estética televisiva reconhecem que
a repetição é um de seus traços e, com erudição variável de
caso a caso, rastreiam suas origens nas culturas folclóricas,
nos espetáculos da praça pública, nas marionetes, no grand-
guignol, no Íìrlhetim oitocentista, no melodrama, etc. Não preten-
do cletcr-rnc ncsscs cletalhes, mas convenhamos: a repetição serial
da televisiul corncrcial é como a de outras artes e discursos
cujo prestígio lìri lcgitirnado pelo tempo. Como o folhetim, a
televisão rcpctc LrrììiÌ estrutura, um esquema de personagens,
um conjunto pequeno clc tipos psicológicos e morais, um
sistema de peripéciais c aló uma ordem de peripécias.
O sonho acordado 63
Deleitar-se com a repetição de estruturas conhecidas é
l)razeroso e tranqüilizador. Trata-se de um deleite perfeitamente
lcgítimo tanto para as culturas populares quanto para os cos-
turnes clas elites letradas. A repetição é uma máquina de produzir
ulÌla suave Í'eÌicidade, na qual a desordem semântica, ideológica
ou experiencial do mundo encontra um reordenamento fìnal e
rerÌriÌnsos cle restauração parcial da ordem: os finais de folhetim
peierl as coisas em seu lugar e isto agrada inclusive aos sujeitos
lì'actais e descentrados da pós-modernidade. Não é preciso
reiterar toclos os dias o que já se disse vinte vezes a propósito
clo Ícllhetim, apenas para buscar antecedentes pretigiosos para
a televisão, que na verdade não os reclama nem deles necessita.
Caberia, antes, perguntar se os efeitos estéticos da repetição
tclevisiva evocam mais a serialidade de Alexandre Dumas que
a clo justamente esquecido Paul Feval. Quer dizer: no folhetim
oitocentista incluíam-se Alexandre Dumas e Paul Feval. Conhe-
ço rnuito bem aqueles que poderiam ser os Paul Feval da televi-
sho, rnas seria mais difícil distinguir seus Dumas. Se essa com-
paração parece improcedente, é preciso considerar que tam-
l.louco estaria bem ajustada a comparação entre teìevisão e
lìrlhetim clo século XIX. Até Umberto Eco pensa que Balzac
ó rrais interessante que os autores de Dallas; na verdade, só
rììcsrrìo quem nunca viu Dallas ou nunca leu Balzac poderia
inraginar uma demonstração em sentido contrário.
A novidade da televisão é tal que seria necessário lê-la
cÌìì seus recursos originais. Comecei pelo zappìng porque existe
irí urna verdade do discurso televisivo. É um modelo de sintaxe
(clucr dizer, de uma operação decisiva: a relação de uma imagem
corn outra imagem), que a televisão manejou antes que seus
cspcctadores inventassem esse uso "interativo" do controlo
tctìloto. A televisão realmente existente no mercado corncrciltl
64 cENAS DA vrDA Pós-MoDERNA
está obrigada a uma quantidade infinita de horas anuais; assim
como seus espectadores se vêem solicitados por imagens de-
mais, também a televisão deve produzir demais. A relação
qualitativa entre uma imagcm e outra, na qual emerge uma
terceira imagem ideal que permite construir sentidos, é quase
impossível na linha ininterrupta de montagem que o mercado
exige da televisão comercial. O acaso do encontro de imagens
não é, portanto, uma escolha estética que aproxime a televisão
da arte aleatória, e sim um último recurso no qual a televisão
retrocede porque tem que transrnitir centenas de milhares de
imagens por semana.
A repetição serial é uma saída para o impasse: centenas
de horas de televisão semanais (pelo ar e a cabo) seriam inviá-
veis se cada unidade cle programa pretendesse ter um formato
próprio. O que foi um traço da literatura popular, ou do cinema
desse gênero, do circo, clo teatro itinerante, da múrsica do cam-
po, do melodrama (todos se aprcssam em recordá-lo citando
mais uma vez os antecedentes cuja ancianidade se ergueria em
fator de prestígio) é uma resposta exigida pelo sistema de
produção. A série evita os imprevistos estilísticos e estruturais.
Na teledramaturgia de seriados, o sistema binário de persona-
gens permite construir relatos com a rapidez exigida por pro-
dutores que gravam três ou quatro episódios por dia; os atores
sabem perfeitamente a que procedimentos devem ater-se, os
cenários respondem a umas poucas tipologias bem identifi-
cáveis; os conflitos enfrentam forças morais e psicológicas
cuja previsibiliclacle só é interrompida pela complicação da
peripécia que, por um lado, recorre aos tópicos clássicos, e,
por outro, os atualiza com pacotes de referências imediatas que
ttazem para a telcclratnaturgia os assuntos em pauta nos pro-
gramas noticiostts. Sobrc a mesma trama de paixões, codifi-
O sonho acordado 65
cacla há décadas, a nova televisão dos últimos anos aplica a
ccrzidura cle remendos que assinalam a realidade: corrupção
política, Aids, excessos sexuais, homossexualidade, negociatas
públicas e privadas.
A estética seriada precisa de um sistema de traços sim-
ples, cuja condição é o desvanecimento dos matizes' O ma-
niqueísrno psicológico e moral baixa o nível de problema-
ticiclacle e costura as fendas cle desestruturação formaÌ e ideo-
l(rgica. A emergência de uma moda intelectual - que começou
lrír alguns anos a interessar-se pelo Kitsch no rádio e nas tele-
novelas e terminou por consumi-lo - não basta para responder
cle rnodo convicente às condenações à cultura de massa, que
a clernonizaram muitas vezes sem conhecê-la bem. Ao elitismo
clas posições mais críticas não deveria opor-se uma inversão
simétrica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos
encantos da indústria cultural.
Os programas de variedades, humorísticos' infantis ou
nrusicais encontram na repetição serial uma tela fixa (como um
roteiro de ferro) sobre a qual o improviso tece a repetição com
variações. Essa novidade moderada funciona em todo o sistema
produtivo, atingindo desde os roteiristas até os atores; e não
cleixa de ser econômica, por garantir o menor investimento de
tcmpo, ao permitir a repetição de cenários e figurinos. A tele-
visão não renuncia de boa vontade ao que já demonstrou sua
cficácia e isto não se opõe ao fluxo ininterrupto de imagens;
pelo contrário, é justamente o que o torna viável. Os melhores
c os piores programas podem ser realizados dentro de módulos
seriais: estes, por si sós, não garantem bons resultados; asse-
guram, isto sim, um modo de produção em que a repetição
compensa as lacunas da improvisação interpretativa e técnica'
No entanto, por mais detestável que pareça a afirmação, a rc-
66 CENAS DA VIDÂ PÓS-MODERNA
petição banaliza as improvisações interpretativas e se converte
numa estratégia para sair do impasse, ajustada conveniente-
mente à escassez do tempo de produção televisivo. Como em
qualquer outra arte, a improvisação não é uma qualidade subs-
tancial e sim um conjunto de operações técnicas e retóricas.
O fato de serem os humoristas e os atores de novelas aqueles
que recorrem com maior freqüência à improvisação testemunha
mais sobre o modo de produção em condições de mercado do
que sobre a influência daquilo que há várias décadas foi uma
inovação teatral. A improvisação televisiva responde antes à
lógica da produção seriada capitalista do que à estética.
Os cstilos televisivos trazem, muito cÌaramente, as mar-
cas de um discurso serializado: comédias, dramas, crítica de
costumes e programas de variedades remetem menos a uma
tipologia de gêneros (o conflito psicossocial, os avatares do
sentimento, o enigma do crirne, a apresentação da juventude,
da dança e da música) do que a um estilo padrão: o show, tribu-
tário das variedades humorísticas, musicais ou circences. O
show paira sobre todas as demais matrizes estilísticas: show
de notícias, show de reportagens, show de gols, show noturno
de política, distinto do show da meia-noite ou do show da tarde,
show de seriados, show infantil, show humorístico, show
íntimo de subjetividades. O denominador comum é a misce-
lânea.
Esse eslilo padrão funda a televisibilidade. Os políticos,
por exernplo, procuram construir suas máscaras segundo essa
lógica e, erÌì conseqüência disto, tentam memorizar tipos de
diálogo, gcstualidadcs, ritmos verbais; devem ser especialistas
em transiçõcs rápidas, mudanças de velocidade e direção para
evitar o tédio cla audiôncia. A destreza do político televisivo é
aprendida na escola audiovisual que emite certificados de
O sonho acordado 67
carisma eletrônico. A televisíbilidade é uma condição que deve
ser cJominada não só pelos atores mas por todos os que apa-
recem no vídeo. Tem a importância da fotogenia nas décadas
clássicas cle Hollywood. Assegura que as imagens pertençam
a urìr rresmo sistema de apresentação visual, as homogeneíza
c as torna imediatamente reconhecíveis. Permite a variedade
porque sustenta a unidade profunda que sutura as desconti-
nr.riclaclcs cntre os diferentes programas (a publicidade colabora
irrnlrlanrente nessa tarefa) . A televisibilidade é o fluido que dá
corrsistência à televisão e assegura um reconhecimento ime-
tlillo por parte de seu público. Se for respeitada, é possível
irl(crar algumas regras: o tom de alguns intelectuais eletrônicos,
inrportaclo da academia ou do jornaÌismo escrito, conserva o
rrtnrtivo da televisibiticÌade sem pagar tributo a seus modelos
nlris cclmuns. Esse tom faz valer sua diferença: diante do
Iolvclinho de todo dia, abre-se um parêntese de calma que
tlcslrfia a "tirania do tempo" e demonstra que a televisão não
irrrpecle necessariamente um momento de reflexão de vez em
tlrnrnclo, desde que alguns traços se mantenham: forte presença
icônica, movimentos de câmera arbitrários' mas aos quais já
('starÌìos habituados, imagens digitalizadas, atenção à palavra do
pri bl ico, sentimentalismo.
A televisão partilha do que antes repartiu, e reparte o que
l()rììou um pouco de cada parte, mas sempre conforme o
pr incípio de que, assim como o público é seu melhor intérprete
(tllí a Íorça da audiência para a televisão de mercado), a tele-
visrro entende cle públicos pelo menos tanto quanto o público
t'rrtcncle de televisão. Espelho democrático e plebeu, espelho da
Iotrrliclacle dos públicos que, além disso, começou a refletir cada
rrrrr rlc seus fragmentos, a televisão constitui seus referentcs
t.,rrro públicos e seus públicos como referentes. Como roslx)lì-
68 cuNAs DÁ vrDA pós-MODERNA
der à pergunta sobre se o público fala como as estrelas do star-system ou as estrelas do s/ar-^rystent falam como seu público?
Esses traços podem proteger os discursos televisivos da
descontinuidade do zappingl a todo momento, sempre se sabe
onde se está e pode-se abandonar um programa e passar para
outro com a garantia de que num segundo se compreenderá
o que estiver acontecendo. Votamos com o controlc remoto.
A competição entre canais é a disputa pelo lugar (imaginário)onde o zctppíng seja detido. Apesar de tudo, as imagens sig-nificam cadayez menos e, paradoxalmente, são cacla vez maisimportantes. De um ponto de vista Íbrmal, a televisão, que
parece a vencedora Íelriz de todos os discursos, chegou a uma
encruzilhada.
Gravação ao vivo
DiáÌogo visto e ouvido, ao cntardecer, num programajornalístico transrnitido peÌo canal estatal.
Apresentador: Este programa nos faz uma surpresa a
cada momento. Agora chegou uma das grancles. Vamos
anunciá-la com todo o cuidado. Este senhor veio aos
nossos estúdios e disse que tinha acabado de matar uma
pessoa, e gostaria de se entregar no ar...
NN: Não sei se o matei. Brigamos, e eu me defendi.
Aprasentarlor: Conte-nos o que aconteceu.
NN: Ontern à tarde estávamos esvaziando umas garrafas
de vinho conr rninha esposa e outros amigos, quando
alguns clelcs conrcçaram a gozar da minha mulher porque
ela tem lábio lcporino. Então esse rapaz começou a debo-
O sonho acordado 69
char da gente imitando o jeito de falar da minha senhora.
Disse a ele para não se meter comigo. Veja bem, sou uma
pessoa boa, me considero uma pessoa boa. Aí vieram
uns vizinhos e disseram a ele que não provocasse o meu
temperamento. Reconheço que meu temperamento é
bastante forte. E, vou lhe contar, saímos no braço. Dei-
lhe uns safanões e depois brigamos. Eram três, mais ou
rnenos, e eu estava sozinho. Não me lembro muito bem.
Apresentador: E depois?
NN: Me pegaram, me deram um chute na cabeça. Sangrei
na boca. Olha só como fiquei com o lábio cortado!
Apresentador: Por que decidiu se entregar? Por que osenhor veio até nossos estúdios?
NN: Eh... eu não tinha para onde ir, e não me considero
um assassino, ou...
Apresentador: Mas o senhor matou ou não matou?
NN: Eh... foi pena o que aconteceu. Não sei se ficouvivo, o garoto. Tomara que sim!
Apresentador: Acha que o matou?
NN: Não sei, não...
Apresenrador: O que o senhor usou para acertá-lo?
NN: Uma faca.
Apresentador: O senhor sabe que vai sair daqui preso,
não sabe?
Nl/: Tudo bem, acredito na justiça.
r
70 cENAs DÂ vrDA pós-MoDEr{NA
Que diferença haveria entre este diálogo e o que esse
homem teria se tivesse decidido ir a uma delegacia de polícia?É uma pergunta simples. Se dermos a resposta certa, acerta-remos na mosca a razão pela qual a televisão pode parecer umespaço mais próximo do que a delegacia do bairro, e o apre-sentador do programa, alguém mais confiável do que um poli-cial. Deixo de lado os motivos mais óbvios: os setores popula-res conhecem bem a face violenta da polícia. A questão não
passa apenas por aí. O trecho citado do programa reúne todosos traços da "nova televisão" ou, como vem sendo chamada,da "televisão interativa". Em primeiro lugar, trata-se de grava-
ção ao vivo; em seguida, por apresentar uma faixa de vida, de
modo mais nítido do que sequer teria sonhado um escritornaturalista do século XIX ou um de non fiction deste século;em terceiro lugar, o fato de que um estúdio de TV parece maisseguro, mais acessível e à altura do prcltagonista do que as insti-tuições; finalmente, a permanente arnpliação niveladora da refe-rência, produzida nos espectadores pela crença de que todos
somos, potencialmente, objetos e sujeitos que podem entrar no ar.
Vamos por partes. A gravação ao vivo é o limite extremoque nenhum filme documentário pôde atingir justamente porque
a tecnologia do cinema não a permite. No cinema, a projeçãomais viva sempre tem uma recepção retardada. Pode-se encurtarao máximo a captação da imagem e sua projeção, mas sempre
transcorre algum tempo entre uma ação e outra. E esse temponão é ncutlo. No seu decorrer acontecem operações técnicas(revclaçho, ccliçuo, reprodução) nas quais a imagem atravessa
um processo clc rnlrnipulações indispensável para a sua divul-gação conto Í'ilrnc. O Íìrto de essas manipulações serem neces-
sárias abre Lllìì crÌrììlx) cle clúvidas sobre as manipulações, porassim dizer, "clesnccessárias", que podemos atribuir ao acaso
O sonho acordado 7l
ou à deliberação: quanto de negativo deixou de ser reproduzido
e, em conseqüência disto, quantas imagens deixamos de ver
embora tenham sido vistas pelo diretor; que cortes foram
introduzidos na edição e por quê; se o corte pareceu inevitável
por motivos técnicos (uma imagem muito tremida ou fora de
foco, por exemplo); quem julgou seu valor, e como. Entretanto,
podemos supor que outros cortes foram realizados por razões
que nunca são explicitadas de todo (o diretor pode ter achado
a cena longa demais, que uma panorâmica sobre a paisagem
seria desnecessária, que determinada distância dos objetos os
privaria do caráter vívido que adquiriram nos primeiros planos
afinal escolhidos). Um fotógrafo insatisfeito com a luz pode
intervir no curso da reveÌação e da reprodução, e nunca sa-
beremos se o fez ou não, assim como não saberemos ao certo
se o que estamos vendo no filme é exatamente o que ficou re-
gistrado em seu negativo. No lapso que vai entre a filmagem
e sua projeção tudo pode acontecer, e esse "tudo" abre a possi-
bilidade da ficção, das opiniões tendenciosas dos realizadores
do Íìlme, dos erros corrigidos na sala de montagem. Nesta dis-tância temporal nasce a suspeita.
A televisão não se livra dessa suspeita quando a trans-
missão náo é ao vivo. Também sobre uma fita gravada podem
ser realizadas operações de edição, correção de luz, sobrepo-
sições, fusões, montagem das imagens sem respeito pela ordem
com que foram captadas pela câmera. No entanto, a televisão
tem uma possibilidade em particular que o cinema não tem: a
gravação ao vivo unida à transmissão ao vivo. Aí as manipula-
ções da imagem, ainda que permaneçam, não contam com o
tempo como aÌiado: o que se vê é literalmente tempo "real" e,
portanto, o que acontece diante da câmera acontece diante ckls
espectadores. Se isso não ocorre exatamente desse jeito, grirçlìs
72 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
à realização de intervenções técnicas e estilísticas (iluminação,profundidade de campo, enquadramento e retirada do enquaclra_mento, passagem de uma câmera para outra, interrupção clagravação durante o intervalo comercial), mesmo assim tucklacontece como se fosse desse jeito: o público passa por cimadas possíveis intervenções e a instituição televisiva reforça suacredibiÌidade no desvanecimento de qualquer deformação doacontecido quando se recorre à gravação ao vivo transmiticlaao vivo.
Surge assim uma ilusão: o que vejo é o que é, ao mesmotempo em que o vejo; vejo o que está sendo e não o que já foie agora é transmitido com atraso; vejo o decorrer da exìstênciae vejo o passar do tempo; vejo as coisas como são e não comoforam; vejo sem que ninguém me mostre como devo ver o quevejo, pois as imagens de uma gravação ao vivo transmitida aovivo dão a impressão de não terem sido editadas. O tempo realanula a distância espacial: se o que vejo é o tempo em seu de_correr, a distância espacial que me separa desse tempo podeser posta entre parênteses. Vejo, enLáo, como se estivesse ali.Em seus princípios, a televisão estava Ìimitada a essa trans_missão ao vivo, que não era uma opção deliberada e sim umimperativo: desde os anúncios comerciais até os seriados, tudosaía ao vivo. O aperfeiçoamento clas tecnoÌogias que permitemgravar e transmitir depois tornou possíveÌ o ensaio, a repetiçãodo que saiu ruim, a intervenção dos editores, a experimentaçãodos Íbrrnatos. A transmissão ao vivo deixou de ser uma ne_cessidadc parit [orniÌr-se uma opção que demonstra o que atelevisão lnde .fìtz.cr e não o que ela estaria obrigada a fazerpor razões tócrricas.
Pode-sc, port;Ìtìto, escolher entre um tipo de gravaçãoao vivo e outro, c''t cclições, e também entre a transmissão
O sonho acordado 73
;r. vivo ou nho. A transmissão ao vivo obrigatória dos primeirost('rÌìlx)s rla televisão transformou-se numa possibilidade nova.A paltir desse ponto, adquire outros valores e funções. A ilu-srro rlc vcrdade do discurso ao vivo é (até agora) a mais fortecstlirtégia de produção, reprodução, apresentação e represen_lrrçiìo clo "real". Fica-se com a impressão de que entre a ima-lt(:nÌ c seu referente material não há nada ou, pelo menos, háporripríssimas intervenções, que parecem neutras porque sãocorrsitleradas de caráter meramente técnico. Diante da gra-vrrçlìo ito vivo pode-se pensar que a única autoridade é o olhotllr cânrera: como desconfiar de algo tão sociaÌmente neutro( orìto uma lente? Neste ponto, a gravação ao vivo parece anularo lrrrtigo debate sobre a relação entre mundo e representação.
As conseqüências são diversas. Uma lente está nasrrntípildas da neutralidade. Mesmo na mais viva das gravações,strlrsiste a ntise en scène, a câmera continua escolhendo o en_
tlurrlramento e portanto o que fìca fora do quadro, as aproxima-çtìes e os afastamentos de câmera dramatizam ou suavizam as
irrurgens, os sons em off proporcionam dados que se combinam('orìì o que a imagem mostra. Tudo isso acontece mesmo queirs pcssoas que captam a gravação não estejam totalmente cons_cicntes de suas escolhas; se não são eles que decidem, entãorr rlccisão vem da ideologia e da estética do meio que fala quan_tlo os outros estão calados.
A gravação ao vivo produz uma verdade que aumentair virntagem atribuída ao poder da imagem frente ao das palavrasse rn imagens. Não há nenhum mal intrínseco nas imagens; elaslôrn essa capacidade de parecer mais imediatas do que qualqueroutro discurso. Numa cultura fundada na visão, a imagem temrrrais fbrça probatória uma vez que não se Ìimita a ser simples_rÌÌcnte verossímil ou coerente, como pode ser um cliscurs<1,
74 cENAS DA vrDA Pós-MoDERNA
mas também convence como verdadeira: alguém o viu com
seus próprios olhos, não foi contado por outrem. A gravação
ao vivo põe o espectador nos olhos da câmera e ninguém pre-
cisa contar nada para ele, porque é como se estivesse ali mes-
mo, ou ainda melhor, porque não teria podido aproximar-se a
ponto de captar um trejeito imperceptível com a nitidez do pri-
meiro plano, ou talvez se tivesse distraído com detalhes secun-
dários, que a câmera retira de seu quadro.
Por isso, o homem se acusa de assassinato diante de uma
câmera de televisão: como espectador, quer ocupar um espaço
de verdade no qual suas palavras soarão mais críveis. Diz que
confia na justiça, mas não se dirigiu a um juiz, a fim de confes-
sar sua ação. De todas as instituições, a teÌevisão ao vivo foi a
que lhe pareceu a mais digna de confiança: ninguém poderá
distorcer nem seus gestos nem suas afirmações e, mais ainda,
nenhum policial poderá forçá-lo adizer mais do que deseja, nem
deixá-lo incomunicável por horas. A televisão se converteu em
guarda de seu habeas corpus.
Os espectadores, por sua vez, recebem o que procura-
ram: não uma maior verossimilhança (que é produto de opera-
ções discursivas e retóricas) mas sim, ao vivo, a vida. O happening,
quer dizer, o fato no seu fazer-se: tanto mais valioso quanto
maior for a desconfiança despertada por outros fatos públicos,
cujas leis e cujos atores não são bem conhecidos e tampouco
as normas de funcionamento de suas instituições (quer dizer,
todas aquelas prírticas que, como a política, nem sempre podem
ser mostraclirs (nquanto acontecem). No happening, entretanlo,
a televisiro constlrii um modo de apresentação que amplia e
aperfeiçoa o rsulisrno (apesar de tudo, bastante alto) de outros
formatos: o hupltanirtg, transmitido ao vivo se diferencia da gra-
vação ao vivo transrniticla em VT -
modo freqüentemente
O sonho acordado 75
praticado pelos telejornais - pelo fato de que as gravações ao
vivo de notícias fbram pré-vistos por alguém em algum lugar
da emissora. A sintaxe dessas gravações ao vivo transmitidas
em VT não foi montada por si só. No happening de gravação
ao vivo transmitida ao vivo, cria-se a ilusão de que não existe
um narrador: os personagens se impõem sem o filtro de
nenhuma intermediação, exceto a intermediação institucional
televisiva que, neste caso, procura apagar suas marcas'
Esse happening duplamente ao vivo é um pedaço de vida
que autoriza não somente suas próprias imagens, mas também,
por procuração, todas as imagens televisivas. Sua verdade é
tão grancle que abarca outras gravações ao vivo transmitidas
em VT e ainda as gravações que sequer foram feitas ao vivo,
e sim com cortes. A verdade da televisão está na gravação ao
vivo transmitida ao vivo, não só por ser esta sua novidade
técnica original, mas também porque nela se funda um dos
argumentos de credibilidade do veículo: diante da opacidade
crescente de outras instituições, diante da complexidade infernal
dos problemas públicos, a televisão apresenta o que ocontece
ta! como esíá acontecendo e, em seu cenário, as coisas parecem
sempre mais verdadeiras e mais simples. Investida da autoridade
que as igrejas, os partidos e as escolas perderam, a televisão faz
soar a voz de uma verdade que todo mundo pode compreender
rapidamente. A epistemologia televisiva é, neste sentido, tão
realista quanto populista, e submeteu a uma demolidora crítica
prática todos os paradigmas de transmissão do saber conhe-
cidos pela cultura Ìetrada.
O pacto com o público se apóia nessa ìdeologia de base
clue ninguém ousaria criticar desenterrando argumentos eli-
tistas. A televisão éparte de um mundo laico onde não existcrn
autoridades cujo poder seja oriundo somente das tradiçõrcs, tllr
lcvelação, da origem. Se funda outros mitos e tlttlrits lttttoti
76 cF.NAs DA vrDA pós-M()DERNA
dades, não o faz através de uma reconstituição do passado, e
sim por uma configuração do presente e, queiramos ou não,
provavelmente do futuro. A televisão tende ao igualitarismoporque, até o momento, sua forma de competir no mercado
baseia-se nos níveis de audiência. Embora alguns publicitáriosinteligentes opinem que, acima dos dez pontos de audiência,a única coisa que se pode vender é a eletricidade necessáriapara manter ligados os televisores, e não as mercadorias anun-
ciadas nos intervalos, o nível de audiência define as políticasdas emissoras comuns (e, com uma estimativa de público mais
preocupada com a fragmentação por setores, também a das
emissoras a cabo e a da televisão codificada).
A "nova teÌevisão" se concentra em formatos como o
reality show e os programas participativos: quer dizer, aqueles
que, por definição, são impossíveis sem púbÌico de auditório,diante das câmeras, em contraste com um tipo mais arcaicode programa, que podia basear-se na concorrência entre partici-pantes do público, ou ainda receber o público no estúdio, mas
não transferia esses recursos para o resto da programação. Ho-je em dia, pelo contrário, até os programas de debate políticomais reflexivos têm público no estúdio, recebem ligações tele-fônicas e convidam não-especialistas para a mesma mesa, jus-tamente por sua condição de não-especialistas. Como na
conhecida boutede de Andy Warhol, a televisão promete que
um dia todos iremos ao ar, já que não existem qualidades
específ icas, mas só "acontecimentos" que podem levar-nos àtelevisho, à Íìrlta de "acontecimentos", nossa qualidade de cida-dãos é sr-rÍ'icicntc para estarmos ali. Neste ponto, a televisãocomercial vivc clc unt imaginário fortemente nivelador e igua-litarista. Mas nho sti tlestc.
O sonho acordado 77
Todos podemos estar diante das câmeras porque estão
luli figuras-chave que operam como "âncoras"; se a televisão
s(r nos mostrasse a nós mesmos, seria um pesadelo hiper-
rcalista. Em contraste, ela também nos mostra seus astros,
scres excepcionais que, ao mesmo tempo, falam uma língua
cornpletamente familiar e não evitam as banalidades cotidianas.
"Cultura espelho" de seu público mediada pela aura do star-
,ty.rtem. Nesse paradoxo do democratismo televisivo, funda-se
uma cultura comum que permite reconhecer a televisão como
um espaço mítico (aí estão suas estrelas, que são as verda-
cleiras estrelas da sociedade de massa) e, ao mesmo tempo,
próximo: Vênus na cozinha, a cozinha de Vênus. O público fala
cle igual para igual com as estrelas, dirige-se a elas pelo primeiro
nome, confia nelas porque estão eletronicamente próximas e
porque as estrelas, em vez de basearem seu carisma na distância
c na indiferença, procuram-no na proximidade de ideologia e
scntimentos.
A televisão apresenta as estrelas e seu público navegando
rìo rìesmo fluxo cultural. Essa comunidade de sentidos reforça
rurn imaginário igualitarista e, ao mesmo tempo, paternalista' O
ptiblico recorre à televisão para alcançar aquelas coisas que as
irìstituições não garantem: justiça, indenizações, atenção. É di-
l'ícil afirmar que a televisão seja mais eficaz do que as insti-
trrições para assegurar essas demandas, mas sem dúvida parece
ser, uma vez que não precisa ater-se a adiamentos, prazos,
pr<lcedimentos formais que retardem ou transfiram as soluções.
O cenário televisivo é como o paredão no jogo de squash: o
rcbote pode não chegar onde se espera, mas sempre tem rebo-
tc. O cenário institucional, mesmo o mais aperfeiçoado, não
tcrn nem poderia ter essa qualidade instantânea. O cenário
tclcvisivo vive do impulso, enquanto o cenário institucional
I
i
l-
78 CENAS DA VIDA PÓs-MODERNA
cumpre adequadamente suas funções, se processar com eficá-cia os impulsos coletivos. O cenário televisivo é rápiclo e parece
transparente; o cenário institucional é lento e suas formas (jus-tamente as formas que tornam possível a existência de insti-tuições) são complicadas até a opacidade que engendra a faltade esperança.
Embora seja possíveÌ demonstrar que a televisão não é
melhor do que as outras instituições para conseguir mais se-
gurança ou um serviço púbÌico melhor, eÌa vive do que seu
público oferece e taÌvez o retribua, a curto prazo, com algo doque esse público procura nela. O suposto assassino que correa uma emissora para fazer sua confissão encontra ali maisgarantias do que na instituição policial: maior velocidade damáquina burocrática, maior segurança pessoal depois da divul-gação do fato, ajuda para a família, que ficará entregue à própriasorte enquanto estiver preso, um advogado gratuito e maisinteressado em seu caso do que o def'ensor público que o Esta-do lhe ofereceria. Paternalismo televisivo numa época em que
o paternalismo político, nas grandes cidades, já não podegarantir o intercâmbio de serviços que antes implementava,num universo menos superpovoado. No lugar do caudilho polí-tico, que fazia a mediação entre seus seguidores e as institui-
ções, a estreÌa televisiva é uma mediadora sem memrjria, queesquece tudo entre um intervalo comercial e o outro, e cujopoder não reside na solução dos problemas de seus protegidos,e sim na oÍerta de um espaço de reivindicações e, também,indenizaçires sirnbólicas. Como os solitários que vão à televisãoem busca dc narnoradas, os esquecidos e os rejeitados procuramnela o ouviclo qr.re não encontraram em outra parte.
A televisão rcconhece seu público, entre outras coisas,porque necessita dcssc rcconhecimento para que seu púbÌico
O sonho acorltr/o 7()
seja, efetivamente, seu. A dinâmica capitalista desse meio passir
por cima de tudo o que puder diferenciar a televisão do público
e, portanto, fica impedida de desenvolver estratégias de paga-
rnento apenas a longo prazo (como as estratégias empregaclas
pela indústria editorial ou discográfica, que vive um equilíbriosempre instável entre os gostos do mercado e o risco de um
investimento cujo retorno pode não ser imediato). O público,por sua vez, encontra na televisão uma instância que as ins-
tituições não parecem conceder aos marginais, a quem está
atravessando situações excepcionais, àqueles que carecem do
saber necessário para movimentar-se nos ziguezagues do ser-
viço público, aos que desconfiam da mediação política, aos que
fracassaram em suas tentativas de ser ouvidos em outros es-
paços. A televisão joga com transparência e, nesse jogo, res-
ponde a uma demanda por rapidez, eficácia, intervenção per-
sonalizada, atenção às manifestações da subjetividade e par-
ticularismo que seu público não encontra em outra parte. Os
sujeitos televisivos adoram a proximidade (mesmo sendo umaproximidade imaginária) e a televisão lhes repete que ela, a
única, está sempre perto. Na tormenta relacional das grandes
cidades, a televisão promete comunidades imaginárias e nelas
vivem aqueles que hoje estão céticos quanto à possibiÌidade cle
fundar ou fortalecer outras comunidades.
Há inclusive quem pense que o ato de partilhar de un'r
aparelho de televisão, instalado na sala ou na cozinha como um
totem tecnológico, une com novos laços aqueÌes que estão
sentados diante do mesmo vídeo. Videofamílias, às quais o
enfraquecimento das relações de autoridade, paternidade e Í'ilil-ção tradicionais teria lançado ao limite da dissolução, voltarirrrrr
a unir-se no calor da luz cromática. É Olficit dizer se t:ssrr bclrr
80 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA
ficção neoantropológica tem mesmo alguma veracidade, além
das boas intenções.
Ainda assim, não há motivos para desconfiar do fato de
que certos heróis das subculturas juvenis hoje possam ser
conhecidos e ouvidos pelos mais velhos; a televisão os pôs ali
e, se o fez, assegurou-os contra o potencial subversivo ou sim-
plesmente antiadultos que tinham quando seus semelhantes es-
tavam confinados aos filmes e aos discos. Assim como tende
a transpor as classes sociais, a televisão também transpõe algu-
mas fronteiras de idade e sexo: os programas para adolescentes
são vistos por crianças e adultos; os seriados passam, com li-geiras modificações, nos horários noturnos; e, basicamente, os
anúncios comerciais da programação do dia ou da semana
podem ser vistos a qualquer hora e põem em circulação, diante
de públicos não-específicos, imagens específicas. A sintaxe
aleatória do zapping provoca o encontro, ainda que fugacíssimo,
entre um aposentado e um videoclipe, entre um programa para
o lar e um homem em busca de um show internacional de gols,
entre um metaleiro e um pastor eletrônico.
Em algumas horas do dia ou da noite, milhões de pes-
soas estão vendo televisão na mesma cidade ou no mesmo
país. Isso gera algo mais do que pontos de audiência a mais.
Gera, sem dúvida, um sistema retórico cujas figuras passam
para o discurso cotidiano: se a televisão fala como nós, nós
também falamos como a televisão. Na cultura cotidiana de con-
sumo rlais fugaz, as piadas, as maneiras de dizer, as persona-
gens da televisão Íìzem parte de uma caixa de ferramentas cujo
domínio assegura um pertencimento; quem não as conhece ou
é esnobe ou vem cle fora. Até as elites intelectuais, quando não
praticam a condcnação e o rechaço à televisão, acham simpá-
tico o cultivo dos clichôs aprendidos ao assistir à TV (para
O sonho acordado 8I
saber afinal de que se trata, já que todo mundo o faz, ou porque
o gosto pelo Kitsch não se esgotou de todo nos anos 60). Os
cÌichês da televisão passam como contra-senhas à Ìínguacotidiana, na qual muitas vezes a própria TV vai buscá-los, para
em seguida devolvê-los sob uma forma generalizada. A moda
e as mudanças de look são hoje mais televisivos do que cine-matográficos: as aulas de ginástica ensinam a modelar corpos
femininos como os que aparecem na televisão; a programação
televisiva também contribuiu para legitimar as intervenções
cirúrgicas embelezadoras, propondo um espelho ideal, no qual
todas as idades são cada vez mais indistinguíveis. Nem todos
esses desenvolvimentos de um processo identificatório têm a
televisão como único pólo ativo, mas ela sonda o que o público
viu no vídeo para tornar a registrá-lo, generalizá-lo e então
submetê-lo a uma nova sondagem, e assim sucessivamente,
num círculo hermenêutico e produtivo no quaÌ é difícil encontraro ponto verdadeiramente original.
A sociedade vive em estado de televisão. No entanto,
contra a ideologia neopopulista que encontra no vídeo a energia
sob cujo influxo podem ser restaurados os laços sociais que
a modernidade corroeu, seria necessário verificar até que ponto
a televisão precisa de uma sociedade em que esses laços sejam
fracos, para apresentar-se diante dela como a verdadeira de-
fensora de uma comunidade democrática e eletrônica ameaçada
e desprezada por aqueles que não ouvem suas vozes nem dão
importância a suas reivindicações. Não digo que essa ideologiaseja indispensável à existência de "qualquer" televisão; digo que
ela convém a esta, que hoje conhecemos: a mimese entre tele-visão e público não é, como provavelmente não seria qualquer
fusão completa, o melhor que pode acontecer ao mundo na
pós-modernidade. Nessa sobreposição, a possibilidade de crítica
82 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
à televisão realmente existente fica obstruída pela acusação deelitismo ultrapassado ou vanguarclismo peclagógico.
Presa ao espelho dos níveis de audiência, a televisão nãopode senão propor uma cultura de espelho, na qual todos pos_sam reconhecer-se- Esse "todos" configura justamente o sujeitoideal televisivo: o número mais amplo possível é o target dasemissoras de transmissão peÌo ar; e a ampliação das faixas depúblico até incluir todos os interessados em pontecial é o obje_tivo das emissoras de transmissão a cabo. No momento, aindaque essa característica não perdure necessariamente parasempre, a televisão deseja a universalidade ou a saturação dosespaços fragmentados. Para consegui-lo, o novo modelo ,,inte_
rativo" ou "participativo" se instala nas Í-enclas deixadas peladissolução de outros laços sociais e outras instâncias de parti_cipação. Lá onde a democracia complica cls mecanismos insti_tucionais e dissolve as relações cara a cara, a televisão encontrouum campo em que pode operar como meio à distância que, pa_
radoxalmente, encontra na representação cla proximidacle umade suas virtudes.
De quaÌquer ponto de vista, a televisão é acessível: refleteseu público e nele se reflete, como uma estrutura em abismoque confirmaria os traços barrocos que muitos acreditam veri-ficar na condição pós-moderna. A televisão é laica e democrá_tica, mas não deixa de ter fortes elementos de fundamentornítico. Repara a ausência de deuses neste munclo, através deum Olinrpo dc pequenos ídolos descartáveis, efêmeros porémfortes cornr scrni-heróis enquanto possuam a qualidade auráticaque a TV lhes proporciona. Diante da arìdez de um mundodesencantaclo, a tclcvisho traz uma fantasia sob medida paraa vida cotidiana.
O sonltt, acordado 83
Ela, cntretanto, também opera em outro sentido difìcil_mente disti'gLrível do primeiro: contribui para a erosão clelegitimiclaclcs tradicionais, porque fala cle tudo o que seu públicodeseja c o clcsejo de seu público se tornou incontrolável paraos princípi.s que antes o governavam ou pelo menos pareciamgovclná-1.. Mirnética e ultra-realista, a televisão constrói seupúblic. u I'ir' de poder refleti-Ìo, e o reflete para poder construí-Io: no pcríntetro desse círculo, a televisão e o público estabe_leccrn o pacto de um programa mínimo, tanto clo ponto de vistacstétic. cìuanto do ponto de vista ideológico. para produzir-securno tclevisão, basta Ìer o livro do público; para produzir_sec'rrr. público, basta ler o livro da televisão. Depois, o públicotusu a lclevisão como lhe parece meÌhor, ou como pode, e atclcvisho não deixa de Íazer o mesmo. o mercado audiovisuaì,rprc Í'iccionaliza a todos como iguais, reside nesse pacto que
'h. ó necessário às possibilidades técnicas do veículo, e simì lci capitalista da oferta e da procura. A relação de forças élão clesigual (e tão satisfatória) que nacla mudará, a menos queocorra uma intervenção externa sobre ela. Mas quem gostariatlc crtrpreendê-la, nesses tempos de liberalismo de mercado e
llopulismo sem povo?
Política
A televisão faz circular tudo o que pode ser convertidocrìì ussllnto: desde os costumes sexuais até a política. E também|crluz. ìr poeira do esquecimento os assuntos de que não trata:tlcstlc os costumes sexuais até a política. A primeira imagemt;rrc rr relevisão argentina transmitiu (e é basicamente dela queIt'rrlr, Íìrl.clo ao longo destas páginas) foi uma fotografia de Ev,l't'rtirr. lÌli ern l7 de outubro de 1951, durante uma transrnisslr.('\l'('r'irììcrìtiìl à qual, pouco depois, seguiram-se as transrrrissõt,s
84 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
regulares. Não surpreende a escolha desse primeiro íconetelevisivo (embora tenha sido a imagem de alguém que não
chegou a viver a era da televisão): Evita era a política na sua
forma sexualizada, e sua fotogenia era adequadamente te-levisiva. Com a imagem de Evita, a televisão argentina as-
sinou seu primeiro maniÍèsto: tudo o que passar pelo vídeo deveestar tocado por uma aura. A imagem de Evita unia a aura docarisma à da juventude e da beleza. DaÌi para a frente, o
caminho até a atual política televisiva seria longo e sinuoso, mas
em sua origem trazia um gesto que, sem querer, tinha sidoduplamente fundador.
Hoje, a política existe, na medida em que exista tele-visão. Não pode haver lugar para a nostalgia de passadas (e
provavelmente hipotéticas) fbrmas diretas de política. Tudo oque se pode fazer é a crítica mais radical da videopolíticarealmenle existente.
O desejo de uma sociedade em que as relações sejamperceptíveis imediatamente para todos os seus integrantes, emque a comunicação entre eles seja sempre simples e direta, emque os dispositivos artifìciosos da política pareçam desneces-
sários é, no limite, um desejo anticultural. A televisão inventou,há anos, uma personagem feminina
- vamos chamá-Ìa de D.Rosa -
que sintetizava esse desejo até o exagero hiper-realista.Para D. Rosa, não importa como seus objetivos são alcança-dos: não irnporta o que os outros possam padecer em conse-qüência cla atcnção dada a suas solicitações; não importam os
valores em jogo, cxceto quando coincidirem com a moralminiaturizada que cla professa. Por isso D. Rosa nega a po-lítica que pode opor-sc justamente a esse primitivismo darwi-niano, próprio de qucm cstá ern condições de sustentar com
O sonho acordado
mais força e persistência seus direitos (ou aquilo que considenrseus direitos).
Para D. Rosa, a política deliberativa-institucional é umobstáculo e nlto um meio. Por isso, ela ataca os políticos, des-confiando não só de suas intenções, mas também, ainda maisradicalrnente, de sua própria existência. Os políticos afastariamos sujeitos da realização de suas necessidades. A política, alémdisso, seria artificial, diante dos desejos dos sujeitos que sãoconsidcrados naturaís. D. Rosa participa de um sentido comumque sorÌlente por exagero paródico poderia ser denominadoliberal: para ela, é ilegítimo qualquer sistema que não ponha emprirneiro lugar a realizaçã.o do que considera direitos individuaisindiscutíveis. D. Rosa tem uma relação brutal com o Estadoe as instituições. Pensa, em primeiro lugar, que o fato de pagarirrpostos a habilita como árbitro na distribuição de recursos doorçarnento nacional. Assistiu a várias séries americanas em queos cicladãos afirmavam seus direitos não por pertencerem à co-rnunidade nacional, mas sim na condição de fonte de arreca-clação compulsória. Essa concepção fiscalista tla cidadanía, nolirnite, contrapõe-se a toda idéia de igualdade: os que mais pa-gurn teriam mais direitos a reclamar e os que menos pagamclcveriam aceitar a capitis diminutict de sua situação. D. Rosanircl entende muito dessas coisas, que aliás nem interessam a ela.Na verdade, sua idéia de cidadania está vinculada ao econômicornais que ao civil e ao político: define-se pelo uso e não pelo exer-cício; centra-se nos direitos, e não em direitos e deveres.
D. Rosa só pode viver num mundo de política midia_tizada (embora suas raízes remontem à pequeno-burguesia <Jos
romiìnces reaÌistas do século XIX). A política que interessa acla ó construída peÌos comunicadores, pela ordem do clia
l)ropostil pelos telejornais, pela credibilidade decrescentc ckrs
tÌ5
86 cENAS DA vtDA Pós-MoDEl{NA
representantes, para ser administrada pelos líderes dos meios
de comunicação de massa. À cultura do debate parlamentar -que D. Rosa cletesta, acusando o Parlamento de uma lentidão
insuportável - s,gssds-3s a da mesa redonda televisiva, em que
os jornalistas bancam os proÍ'essores (liberais, progressistas,
democráticos ou reacionários) dos políticos, e estes pretendem
passar por menos inteligentes do que são, quando o são, e por
mais honestos do que são, porque sabem que o público apren-
deu com D. Rosa uma verdade quase única: que os poÌíticos
são todos corruptos.
Se hoje é impossível imaginar política sem televisão,
pode-se, não obstante, imaginar mudanças na videopolítica: não
há nenhum destino inscrito na televisão do qual não se possa
escapar. Não é inevitável acreditar que os políticos são em si
mesmos desinteressantes e, por conseguinte, que devem con-
verter-se ao estilo televisivo se desejam, em primeiro lugar,
aparecer no vícleo, e em segunclo lugar falar a seus concida-
dãos como eles querem que se fale. Diga-se cle passagem que
seria bom que os políticos fossem os primeiros a se convencer
sobre este ponto, para em seguida convencerem seus asses-
sores de imagem que, diligentes servos-patrões, instruem aos
políticos sobre o que, quando e como devem falar no rádio e
na televisão.A identidade dos políticos não é construída somente nos
meios cle comunicação de massa. Os políticos, entregando-se
por intciro aos apelos da selva audiovisual, renunciam àquilo
que os constitLritt eln políticos: ser a expressão de uma vontade
mais ampla cluc a própria e, ao mesmo íempo, trabalhar para
a formação clessa vontade. Justamente porque na política há
pouco cle imediatisrno o muito de construção e imaginação,
pode-se dizer que é a política que deve tornar visíveis os pro-
O sonhc, aton/rtrlo tl'f
blemas e tirar os conflitos de sua clausura para levá-los à cctllt
pública na qual sejam definidos e afinal encontrem suas soltt
ções. Ora, se os conflitos não são apresentados pela políticl,
os meios de comunicação de massa ocupam seu lugar assiltlt-
lando outros caminhos pré-políticos ou antipolíticos para soltt-
cioná-los. A política tem um momento de diagnóstico e uln lììo-
mento forte cle produtividade. Em ambos, a relação entrc os
políticos e os cidadãos precisa, hoje' do cenário dos meios tlc
comunicação de massa, mas não necessariamente da tutela tltls
apresentadores da mídia. Se algumas questões importantes lxtrlt
amplas maiorias se convertem em objeto exclusivamente micliír-
tico, o sentido da política e dos políticos não parecerá eviclctlttr
para ninguém.
Citaçáo
Como todas as semanas' à mesma hora, dois atol'cs
participam de um esquete de programa humorístico' O a(ttr
principal é rápido, astuto, fanfarrão e discreto ao mesmo telììpo'
O outro o acompanha e lhe dá a deixa para tiradas engenh<lsits,
l'inge ser mais esperto, mas sempre demonstra menor conìl)rc:-
ensão, embora na verdade seja ele quem carregue a respollsil
biliclade pelo desenvolvimento do esquete. Na relação crltt'c
esses dois homens diferentes (que na vida real são alltigos
rnuito próximos) surge o cômico. O segundo ator, coln strtil
habilidade, prepara o terreno para a tirada final por contrt tlo
primeiro; sua missão, repetida semanalmente, é arat a te trit lllttlt
que a piada brote e o esquete termine numa explosão côrrtit'ir'
Às vezes, o quadro também tem a participação de ulttit tttttlltt'r
jovem, seminua, com quem é ensaiado um reperttil'io lritttltl'
rnas igualmenÍe eficaz, de chistes, indiretas e trocaclil[()s tlt' tlrr
plo sentido, olhares, toques e, conforme a noite, <lí'e:ttslts ptttv"
88 cENAs DA vÌDA pós-MoDERNA
cadas pela mistura convencional de abundância sexual e inge-nuidade. Como sempre, a improvisaçáo faz parte do efeito cô-mico, com muitas olhadelas para a câmera, alusões ao que se
passa fora do quadro, esquecimentos do scrupl (fingidos oureais), frases ditas em voz baixa, para serem ouvidas apenas
pela metade, demonstrando que algo de imprevisto transcorrepor trás das linhas conhecidas do esquete (um subtexto maisprivado entre os dois atores).
Certa noite, depois da mulher, entra em cena um terceiroator, muito menos conhecido do que os outros dois. Num climageral de improviso aparentemente sem orientação, implantadopelo protagonista e seu coadjuvante, o terceiro ator se acha au-
torizado a abandonar as falas determinadas pelo script e res-ponde ao ator principal um corì uma frase de sua lavra, inva-dindo o lugar do ator que habitualmente dá a deixa para a piada
final. Este, sem vacilar, corta o intruso, a seco: "Segundo, sim;terceiro, não!"
Essa reação, totalmente fora do script, deixa clara a exis-tência de uma estrutura de diálogos forte que responde, porsua vez, a uma hierarquia de atores. Corr ela, as coisas retornama seu lugar habitual. Num quadro sempre cheio de mal-entendi-dos, o segundo ator não deixou passar o mal-entendido dupla-mente improvisado com que usurpavam seu Ìugar. Os técnicosda emissora festejam ruidosamente a resolução do pequeno
conflito. Todo o episódio se escora no traço metaficcional qlue
o programa apresenta como uma de suas virtudes mais originais.A resposta improvisada do segundo ator desnuda as leis doquadro que, pckr nìenos em teoria, deveriam permanecer ocul-tas. Entretanto, explicitá-las como o programa costuma fazer,
em yez de destruir a ilusão do cômico, a acentua. Rimos da
piada que consta d,o .rcrì1tt e rimos (ainda mais) da mordacidadecom que um ator de terceira foi posto em seu lugar por um
O sonho acordado 89
rtor rlc scguncla, hábil, rápido e, além disso, amigo do protago-rristrr; a hicrarquia das estrelas é posta a nu e, emyez de produ-zil urn cstranhamento frustrante para o efeito cômico, o realça:lri tlturs piadas para fazer graça. A piada improvisada (meta-
liccional, auto-reflexiva porque se refere a uma hierarquia de
lrtrlrcs anterior ao esquete) solicita nossa cumplicidade e assimrcconhece nossa capacidade de manejo do repertório semanal.
lr llrcciso saber muito mais coisas para entender a piada impro-visirtla dcl que para achar graça da piada do script. Quem acha
griÌça t:rÌì "segundo, sim; terceiro, não" sabe muito bem como
são as coisas nesse programa. A compreensão da réplica de
inrproviso aproxima os atores (neste caso, os verdadeiros ídolostclcvisivos) de nós, os espectadores, ainda que, de certa forma,rros clesvie da ficção cômica. Rimos nc teÌevisão e não com
clir. Todos fazemos parte da tribo e a autoridade de quem sabe
rlus coisas está assim distribuída: nem o roteirista, nem o diretortlc câmeras, nem o primeiro ator podem evitar que o segundo
rc:r.ja revelando as leis do programa. Porém, o que é ainda mais
cxcitante é que os espectadores se dão conta do que está acon-
lccendo, porque esse programa e muitos outros nos ensinaram
rriio só sua comicidade mas também suas leis de produção. Ri-rÌros numa dupla risada: a de quem entende a piada e a de quem
sirbc por que está rindo.
A familiaridade da televisão com seu público e a proxi-rrriclacle imaginária que o público estabelece com a televisãolrrnça rnão de um recurso que oferece uma garantia de trans-
lrrrrôrrcia: a auto-reflexividade. A televisão só mostra sua co-zinha quando leva o público aos estúdios ou o põe diante das
t'irrrcras. Seriam, então, visitas guiadas, cuja função é aproxi-lniÌr rÌìirs náo interiorizar. J6t, a auto-reflexividade é a forma pela
t;u:rl rr tclcvisão interioriza seu público mostrando a elv como
lir
90 CE,NAS DA VIDA PÓS-MODERN,A
se faz a televisão. O que começou como recurso improvisadode alguns atores e apresentadores, numa época em que a maio-ria se esforçava para ocultar as marcas do que estava sendo
feito e assim se empenhava na apresentação da TV como "coisa
feita", hoje é um traço de estiÌo já clássico, de produtividade
indiscutível. A televisão se apresenta a si própria ao vivo (mes-
mo nos casos de transmissões gravadas) e, portanto, não pode
nem quer apagar os sinais do que é vivo. Tais sinais se tornaram
tão típicos que persistem mesmo nos programas gravados:
todos os programas humorísticos são auto-reflexivos; os teÌe-jornais estão cheios de comentários auto-reflexivos sobre atarefa realizada para conseguir as imagens da notícia; os pro-gramas jornalísticos mais sérios incluem avaÌiações da audiên-
cia deles próprios, que se olham a si mesmos no espelho das
escolhas do público; os apresentadores não hesitam em men-
cionar suas dificuldades, os tropeços organizativos, ou os fatos
que estão acontecendo por trás das câmeras; os artistas con-
vidados e os apresentadores de shows de variedades sempre
se referem aos momentos anteriores à transmissão, revelandoas condições de produção do que se verá depois; o proprietário
de uma emissora pode irromper no meio de uma tomada e mos-
trar a verdade de seu poder no vídeo. É comum vermos o des-
locamento de uma câmera nos estúdios, feito a fim de captar
um ângulo diferente; ninguém se importa muito, além disso,
que os reÍletores ou os microfones apareçam no enquadra-
mento, em meio a uma atmosfera de improvisação da mise en
scène, associada à legitimidade da qual se beneficia a auto-
reflexão; a TV sc apresenta como processo de produção e não
só como resultlrdtl.
Se a gravaçho uo vivo dá a impressão de que nada se
interpõe entre a imagem c seu referente, ou entre a imagem
O sonho acordado 9l
t'o ptiblico, c o que se vê no vídeo é mesmo uma efusão da
virllr, lr rnrto-rcl'lexividade só aparentemente produz um efeito
oposlo. l)trlo contrário, ela promete que o público (pelo menos
t'rrr lrill<itcsc) pode ver as mesmas coisas que os técnicos, os
rlrrclorcs, os atores e as estrelas vêem: ninguém manipula o que
ti rrroslnrclo, porque qualquer manipulação pode ser mostrada
t' conrorrtadu. A televisão se mostra sozinha e ao mostrar-se(.tirtt'<'nt. Nada aqui, nada lá: é a televisão de mãos limpas. O
rrso tlcscrrÍ'reado de efeitos especiais, que também Çaracteriza
ir tclcvisão realmente existente - como a dupÌicação do vídeo,
ir gnrtluçho de cores, a sobreposição de imagens, a câmera
lcrrtir, ir trucagem computadorizada -, é associado à auto-
rcl'lcxividade, sem que esta se anule. Talvez esteja aí um dos
rrrilirgres da retórica televisiva dos últimos anos: um "realismo"(luc rìssegura a presença da "vida" em çarÍaz; uma alusão
corÌstrìnte à maneira pela qual a "vida" chegou até ali1, e pro-
vitlôrrcias discursivas para que a "vida" seja atraente e não
sirrrplcsmente sórdida ou banal.
A televisão nos quer do seu lado (ao contrário do cinema,
t;rrc precisa do escuro, da distância, do silêncio, da atenção,
rr 'l'V não requer nenhuma dessas condições ou qualidades). Arrrrto-rcflexividade, que na literatura é uma marca.de distância,()l)crir na televisão como uma morca de proximidade que tornapossível o jogo de cumplicidades entre a televisão e o público.
l)c (oclos os discursos que circuÌam numa sociedade, o da tele-
visão produz o efeito de maior familiaridade: a aura televisiva
rriio vive da distância e sim de mitos cotidianos. Só existe umjcito cle aprender televisão: vendo-a. E é preciso convir que esse
irplcrrclizado é barato, antielitista e nivelador.
Por isso, a televisão não enfrenta obstáculos culturais
prrnr lculiz.ar suas operações auto-reflexivas. Também por isso,
92 CENAS DA VIDA PÓS-MoDERNA
a citação (que na literatura ou na pintura sempre implica umadificuÌdade de reconhecimento) pocle ser utilizada pela teÌevisãosem problemas: todos os espectaclores habituados à televisãoestão, em teoria, aptos a reconhecer as citações que ela apre_senta. Ao fazê-lo, eles participam cle um pÍazer baseado no laçocultural que os une com o meio: a terevisão os reconhece comoespecialistas em teÌevisão e assim Ìhes proporciona esses mo_mentos, nos quais o saber dos espectadores é indispensávelpara completar um sentido (quando é preciso saber que se tratade um programa concorrente, ou quando se recorre a uma fiasefeita inventada em outro programa, ou quando se entrevistauma celebridade tomando como suposto que o público já co_nhece tudo o que eÌa faz na televisão).
t A culminância da citação é a paródia, hoje usada comorecurso fundamental da comicidade televisiva: programas in_teiros, todos os dias, parocliam outros programas, seus títulos,o penteado de seus protagonistas, o jeito cle falar, os tiques dosatores, repeÍem suas repetições. No outro extremo clo arco estáa cópia, que funciona como estratégia das emissoras invejosasdo sucesso dos programas concorrentes.'A cópia acaba sendomenos interessante como recurso, porque sua lógica de repro_dução com variações é mais inerente à competição no mercadodo que às formas discursivas.
I Jâ a citação e a paródia representam um acréscimo desentido. Para decifrá-lo, é preciso conhecer o discurso citadoe reconhecê-lo em seu novo contexto..Ambas as operaçõesdevem ser in'rediatas, porque uma citação ou uma paródiaexplicadas, couto urìa piada explicada, perdem todo o efeito.A teÌevisão vivc rlc citur-se e parocliar_se até o ponto em quea repetição do procedirncnto chega a despojá_lo de qualquersentido crítico. A p.rriclia tclevisiva é simples: trabalha comsentidos conhecidos, que submcte a operações deformadoras
O son/to rtt otr/,tt/tt t) )
(caricatura, exagero, repetição); entre a paródia e o Par.trilrrkrse estabelece uma distância mínima (que garante o rccorrlrr:cimento imediato), regulada por um princípio de repetiçho. lÌrrisso, a televisão resgatou uma categoria que vinha do teatr. rlt:revistas e estava em vias de desaparecer: os imitaclorcs. Aincerteza que a paródia introduz em outros discursos (c,rrr,o literário) fica aniquilada pela proximidade que a televisii,estabelece entre a paródia e o parodiado. r,_,
Essas operações são muitas vezes mencionadas corrroprova da relativa sofisticação formal do discurso teÌevisiv..Gostaria de concordar com essa apreciação, mas não poss<1.
A televisão vive da citação mais por preguiça intelecluirldo que por qualquer outra coisa. Devora seus discursos, digcrc-os e volta a apresentá-los com ligeiras alterações por meio tllrdistância paródica, mas não tão alterados, como que a firn rlcdificultar o seu reconhecimento e assim procluzir um instarrtcde sentidos indeterminados. Esse cultivo da citação e da parriclirrestá mais vinculado aos modos de produção televisiva clo rprca uma intenção fortemente crítica. Como é feita com rapirlcz,a televisão retorna com freqüência extraordinária ao quc .jriconhece; e o que a televisão já conhece bem é televisão. lÌrrrpaíses onde a teÌevisão é produzida com mais tempo on rririsdinheiro, a citação e a paródia da própria televisão não sãorecursos que apareçam com a freqüência notada em televisõcsmais pobres ou mais ávidas de um retorno fácil e imeclirrt..'Ahiperparódia é uma falta de imaginação para produzir orrtr.rrsformas de humor, de sátira, de estilização ou de grotesco, rrlrisdo que uma demonstração de audácia criativa ou críticir. ,
Com a paródia e a citação, a televisão se recicllr tr simesma, fazendo de seu próprio discurso o único hor.izorrtr.cliscursivo, inclusive quando opera com personagcns o. s(.,liclos que não tiveram origem nesse meio. Ncstcs clrsos, il
94 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA
televisão os torna, primeiro, tal como apareceram no vídeo esobre essa imagem realiza suas operações de deformaçãoparódica. A televisão nunca dá por evidente uma existênciaextratelevisiva: suas citações do extratelevisivo sempre são
precedidas de uma aparição audiovisual. Pode-se dizer que esse
traço reforça a aproximação entre o meio e seu público, bem
como seu inerente democratismo. Pode-se dizer ainda que a
reciclagem paródica gera "leituras aberrantes", instáveis, "tur-
bulências do sentido". De minha parte, porém, eu sustentaria
o contrário. Das infinitas possibilidades da citação, da paródia
e da reciclagem, a televisão que conhecemos trabalha com o
nível mais baixo de transformação, para não impedir indevi-damente o reconhecimento do discurso citado e, assim, arriscar
o efeito cômico ou crítico. Em geral, a televisão se limita a
exacerbar os traços do parodiado, exibindo-os, por assim dizer,
em primeiro plano. Basicamente, a paródia televisiva aumenta
até deformar, sem buscar detalhes secundários nem produzirnovas configurações a partir do discurso de base. Na televisão,
nunca é possível hesitar sobre a natureza de uma citação (salvo
por ignorância de materiais televisivos anteriores); sabe-se de
imediato se se trata de uma cópia ou de uma paródia; descarta-
se, geralmente, a estilização, a ironia, a homenagem. Esses usos
limitados da citação não estão inscritos no destìno formal do
meio, e sirn numa retórica que deve garantir, sempre e em cada
um de seus pontos, a conexão de um fio terra pelo qual todos
os espcctadores possam escoar-se rapidamente.
Fala-se rnuito sobre a reciclagem de gêneros realizada
pela televisao. Os nrais sofisticados pesquisadores, ao subscre-
verem essa tosc, l)rorìlctem exemplos que a confirmariam. Em
geral, esses cxcrnpkls siur sempre os mesmos: anúncios que
reciclam anúncios ou irnilarn filmes, e filmes que exibiriam a
influência da publiciclade (c1ue, antes, tinha sofrido a influôncia
O sonho acordado 95
de outros filmes). Quando os exemplos não são contemporâ-
neos, todo mundo recorre ao providencial folhetim oitocentista,
que tinha encontrado sua descendência nos seriados de tele-
visão; os mais engenhosos buscam formas antigas de humo-
rismo popular que a televisão tinha retomado depois de seu de-
saparecimento. Para encarar seriamente essa discussão, seria
necessário diferenciar a reciclagem de formas próprias (a tele-
visão assistindo a si própria na auto-reflexão e na citação) da
recuperação de gêneros literários, musicais, circences, etc.
O caso dos gêneros literários apresenta uma certa quan-
ticlade de problemas, entre eles o da tradução de um discurso
escrito para outro, audiovisual. A televisão talvez tenha feito
muito mais do que reciclar o folhetim (e neste ponto seus admi-
radores não lhe fazemmuita justiça). Também fez muito menos,
lin-ritan<Jo-se à reprodução de um sistema de personagens, à
pcrrnanência de um mundo de valores dividido em duas metades
sirnétricas, ao frágil encadeamento das peripécias e à recorrên-
cia a certos tópicos: o reconhecimento de pais, mães e filhos
ignorados, perdidos ou trocados, num típico nó conflitivo que
muito freqüentemente tangencia o tabu do incesto; os obstá-
culos que a sociedade levanta frente à virtude, e a riqueza ao
amor; e alguns outros. Se o valor da operação televisiva sobre
o folhetim é este, não há incoveniente em admitir que ela foi
eÍicaz ao trazer para a atualidade um gênero do século XIX(antes também freqüentado pelo rádio). Admitamos que a te-
lcvisão fez justiça ao folhetim, desprezado pelas elites intelectuais
por preconceitos estéticos e sociais.
As defesas da televisão já se repetiram demais: acho que
scu potencial não deveria restringir-se com essa mistura co-
nlrccida de elegia e celebração, por sua capacidade de resgatar
r,ôrrcros perdidos. O folhetim televisivo é bom quando é born'
96 cENAS DA vlDA pós-MoDErÌNA
E é ruim (não importando o alcance cle sua reciclagem) quandonão consegue cumprir os requisitos mínimos do gênero: sus-pense, forte interdito do pessoal e do social, complicações ines-peradas porém não de todo inverossímeis (porque o folhetim,se é que estamos falando do folhetim, é minimamente rea-lista), reiterações para despertar a atenção e novidades pararetê-la. Também existe uma possibilidade, deixada de lado pelatelevisão que conheço: a criação de novos tipos de ficção a par-tir do esquema básico do folhetim.
Mas não se pode dizer que a televisão seja o únicodiscurso que propõe a reciclagem de gêneros tradicionais oua universalização da paródia como quase único procedimentocômico. Uma rede fina porém bem evidente comunica essamarca televisiva com formas extratelevisivas, até mesmo comalgumas propostas de circuitos aparentemente tão distantes datelevisão quanto o underground teatral "jovem".
Desenvolveu-se um sistema de empréstimos pelo qual a
televisão alimenta o underground e este consegue, mais tarde,alguma forma de reconhecimento na televisão. Assim descrito,o circuito pareceria ideal, quase uma invenção vanguardistapara a república estética. Entretanto, quando o underground se
faz "televisivo" (ou seja, em termos gerais, muito ou exclusi-vamente paródico; muito ou exclusivamente reconstituidor degêneros tradicionais), ele converte suas marcas mais espontâ-neas num estilo que encontrou na paródia o recurso hegemônicoda comicidadc, da dramaticidade e da crítica. A televisão con-voca esse unrlergrouncl, melhora sua própria qualidade e rea-firma um circuito clc inspirações mútuas. Os defensores dessecircuito evocarão a inspiração que as vanguardas encontraramna arte do cabaré, da caricatura, do humor de feira, oìt no pa-ckaging e na história ern quadrinhos. Parece-me, contudo, que
O sonho acordado 97
,r() tt'rl)'rllt u('ln colìì osses traços de estilo as vanguardas não
rr'rrrrnt'irrv;rnr ìs suas próprias marcas; cabia tudo dentro de sua
r',,t rilrrrr.l'trrr lorrlÌr urn exemplo especialmente probÌemático, em
,;rrt' :r irrovlrçlìo se aproxima mais dos procedimentos e dar( orl()1ìlirli't tlo rnercado, vamos dar uma volta pela pop art.l)t':;rlr'o l)ol), o consumo de símbolos, marcas de estilo, íconesrhr:, rrrt'ios tlc rnassa já não assusta a ninguém. Sabe-se que tudoporlt' st'r rtrutcrial estético (que, de certa forma, tudo começou.r r;t' lo :r lrtrrtir da arte moderna). O que o pop trazia era a notí-( r:l (tÌil() tolalrnente inédita) da morte da arte e do ocaso da',rrlrjctivitlurle. Com alegria espontânea, o pop se entregou ao( onsurÌÌo c cscolheu o que todo mundo consome: sopas, foto-
1'rrrli;rs tlc: rcvistas, fìlmes, coca-cola, sapatos, caixas de sabão
trrr po, lrist(lrias em quadrinhos. Sobre esses atraentes restos,crt'rt'itou o olhar estético e a reconstituição: séries, ampliações,rt';rctiçocs, cópias exatas, miniaturas, blow-ups. No entanto,rr('\nr(ì r;uundo parece mais próximo dos objetos que adota,rr l)()l) ('xcrcc sobre eles algum grau de violência simbólica: co-
l)r;u ('\itliuììente uma lata de sopa é diferente de parodiar o
'1,'ti.ritt rlc uma lata de sopa. Embora pareça o contrário, a cópia('\:rt:r iìl)rcsenta mais problemas estéticos do que sua defor-rrirç:r(), lx)rque questiona muito fortemente as idóias de que a
,rrlr llrrrrsÍìrr-rna tudo o que toca e o artista se define na marcap(',is():ll tlrro deposita mesmo sobre os objetos mais banais. A( (llìr:r ('xit(tÌ é, em sua própria exatidão, uma ironia.
O pop é impossível sem essa dupla distância: a que, porurrr lrrtlo, critica a arte consagrada, na linha das vanguardas,lt'slr'stlcrrlr); e a que, por outro, transforma os usos de umal:rtrr tlt' sol)u ou de um desenho de história em quadrinhos, para
.rlr rrrrr': "isto pode ser feito com aquilo". Consumista e celebra-t,rn(r, () llop lìli urna gigantesca máquina de reciclagem c
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I
98 CENAS DA VIDA PÓs-MoDEIìNA
mistura, mas conservou a distância que possibilitou justamentea operação pop. Ainda que seu legado estético seja menos inte-ressante do que o das vanguardas anteriores, é preciso reconhe-cer que o pop leva até o limite a afirmação de que os mate-riais artísticos são indiferentes. Em suma: depois do pop, nin-guém pode escandalizar-se (nem surpreender-se) com nenhu-ma reciclagem.
Quando o undergrcund se enamora dos meios de comuni-cação de massa, do bolero e da revista, percorre um caminhoque poucos hoje impugnariam, e abre portas que, na verdade,desde os anos 60 o pop já tinha deixado abertas. Abre-as,contudo, diante de um público jovem que, certamente, nãopassou peÌos escândalos mundanos e estéticos do pop. O pro-grama estético é mais moderado do que a liberdade de idéiassobre a sexualidacle, a violência, a religião, as autorìdades tradi-cionais ou o travestismo, carnpr)s eln que o underground é te-maticamente audaz, nos quais obtém eÍèitos "progressistas"(ainda que este adjetivo não seja muito popular hoje em dia).
Provavelmente por isto, a indústria audiovisual (que,
acredite-se ou não, sempre soube que era preciso cuidar meÌhordas fbrmas do que das idéias) pode adotar sem maiores confli-tos a paródia que traz à tona o underground. Como o impe-rialismo branco no século passado, a televisão não reconhecefionteiras: daí sua força.
TIì ÊS
Culturas populares,velhas e novas
Nrrrr,r vrL,rnEJo DE MoNTANHA, A sEGUTNTE história me é con-tirrlu pelo seu protagonista: "Há três noites, roubaram-me ozirino cle porte maior, não o que está sempre comigo, mas o()utro, unì cavalo alto, com mais de um e setenta, ou quase.'l'inha cmprestado para o cunhado de minha irmã, que ficouscrn cavalos, porque vendeu todos os que possuía, para pôrlcllrlclo em casa, aquela que a senhora conhece, em cima dorÌÌorìtc, antes da estrada e das quadras de tênis. O cavalo estavalli, preso a uma corrente, mas o cunhado da minha irmã não(t'rrr bons cães. Carregaram ele e deixaram a corrente. por issoti tlrrc a senhora não me viu nos últimos dias; saímos à procuratlt'lc, porque um amigo me disse que aquilo certamente foi coisatlt' ul.Ìì pessoal do outro lado da serra, que rouba só por malda_(l(', I)aríì dar umas voltas e depois, se der, vender. Mas geral-rrrcntc eles não vendem nada, são só uns moleques, mas unsrrrolcclues de nada. Além disso, a gente toda por aqui conhecerrcus cavalos, e eles então teriam que ir para bem longe se
t;rriscssern mesmo vender o zaino. Procuramos um dia inteiroirr('t;ue , de tardinha, voÌtei. Já tinha até tirado a sela da montariar;rurnrkr apareceu um amigo meu, com o cunhado cla minhair rruì, rlue jí tinha ido embora. Meu amigo parou e disse: ,Olha,
o st'rr cuvalo foi visto lá perto do açude'. Não fui avisar à poli
BIBLIOTECA
SEDESruWES
100 cENAs DA vrIlA Pós-MoDERNA
cia, porque eles só fazem ficha de occlrrência e mais nada. Selei
o bicho de novo e fomos juntos, lcvando os meus cachorros,
que são bons rastreadores. Ctlntiìraln para esse meu amigo que
o zaino estava todo machucaclo, num cercado navárzea do rio'
pegado ao açude. Com certcziì passaram com ele por cerca de
arame farpado, fizeram corrida, pura maldade. Não estava tão
machucado assim, mas tinha uma ferida na paleta e faltava uma
ferradura, que eu tinha calçado ele na semana passada' Depois,
ontem à tarcle, o amigo voltou e disse: 'Olha, viram seu cavalo
anteontem numa festa do outro lado do açude' na cidade; era
festança, parece que de casamento; o sujeito que viu achou que
você tinha emprestado ele, porque estavam montando o seu
cavalo no desfile até a igreja e depois na festa'' Já se vê que
ele foi abandonaclo depois do baile, chegaram de porre, deram
estirão nele. O amigo disse: 'Prometeram arranjar o vídeo da
festa; aposto que o seu cavalo aparece'. Então agora estou
esperando o tal vídeo, para ver se reconheço o cara. A polícia
assim não vai pocler dizer que ninguém sabe quem roubou o
cavalo e que por isso não vai fazer nada. Esse conhecido do
meu amigo prometeu entregar o vídeo hoje de tarde. O que eu
quero é que me paguem as diárias do cavalo, de dois dias
inteiros, e a dos outros cavalos que a gente usou na busca,
mais uma reparação pelos machucados, coitado do bicho, sabe-
se lá como foi que apareceu no vídeo. A senhora viu que é
um cavalo de chamar a atenção, mas faz uns quinze dias só
que clei unta tosada nele. O pessoal da TV a cabo disse que
ia passar o vícleo no noticiário daqui, para que todo mundo se
previna contra csscs lailrõres. Depois vou ver se vendo o cavalo'
Vai ficar conhcciclo c ccrtamente vai render um bom preço"'
Já se clissc clttc o interesse pelas cuÌturas populares é
contemporâneo ao tìlotÌlcnto do seu desaparecimento. Antropó-
Culturas populares, uelhas e rtou,ts l0l
logos, historiadores, sociólogos, críticos, estudam algo c;uc
praticamente não existe mais, tal como existiu num passado nlto
muito remoto: não há culturas camponesas ou, pelo menos,
culturas caÍnponesas não-contaminadas, exceto em regiões ex-
tremamente pobres, onde o capitalismo se dedicou apenas ao
usufruto e à destruição. As culturas urbanas são uma mistura
dinâmica, um espaço varrido pelos ventos dos meios de massa;
o que, em alguns países, foi cultura operária erodiu-se frente
às transformações produtivas, os sindicatos atuais, o desem-
prego, a conversão de milhares de operários em trabalhadores
do setor de serviços e, certamente, o denominador comum dos
meios de comunicação. Culturas populares: artefatos que não
existem em estado puro.
"Hibridização", "mestiçagem", "reciclagem", "mescla",
são as palavras usadas para descrever o fenômeno. Os setores
populares já não vivem limitados ao espaço físico do bairro,
da favela ou da fábrica. No telhado das casas, nas ladeiras
enlameadas ocupadas pelas favelas, ao longo das autopistas de
acesso às cidades, nos conjuntos habitacionais arruinados, as
antenas de televisão traçam as linhas imaginárias de uma nova
cartografia cultural. O hermetismo das culturas camponesas,
inclusive a miséria e o isolamento das comunidades indígenas,
rompeu-se; os índios aprenderam rapidamente que, se quiserem
ser ouvidos na cidade, devem usar os mesmos meios pelos
quais eles ouvem o que se passa na cidade. Vestidos com seus
trajes tradicionais modernizados pelo náilon e o jeans, calçando
tênis e protegendo seus chapéus com sacos plásticos, eles
protestam na praça pública, mas chamam a televisão para quc
a manifestação seja vista. É preciso descartar qualquer idéia
que relacione o que está acontecendo com o que acontecctl llo
passado: se é certo que dificilmente se pode evocar lt ó1lot'rt
TO2 CENAS DA VlDA PÓS.MODERNA
em que as culturas populares viviam em universos absoluta-
mente fechados, o que hoje se passa tem uma aceleração e uma
profundidade desconhecidas.
As culturas populares não escutam mais, como voz
externa privilegiada, as autoridades tradicionais: a Igreja ou os
setores dominantes muis cm contato com o mundo popular,
intelectuais à moda antiga, políticos paternalistas, caudilhos,patrões semifeudais. O racha das tradições tem um efeito libe-rador, democrático e laico, no que concerne às autoridacles e
aos traços culturais arcaicos. Os padres e os senhores tiveramque competir primeiro com os sindicatos, com a escola e com
os políticos; hoje todos têm que competir entre si e com os
meios de massa. A Igreja se preocupa com os pastores eletrô-nicos, que chegam aonde seus ministros não chegam, e comas seitas que trabalham com o estilo e o appeal da televisão:
os políticos tradicionais se preocuparn com o crescente ceti-cismo com que suas palavras siro recebidas nas comunidades
onde antes eles ditavam a lei, porque a mídia permitiu que alifossem ouvidas outras palavras e vistas outras faces. A escola,
empobrecida material e simbolicamente, não sabe como f'azer
para que sua ofèrta seja mais atraente do que a da culturaaudiovisual.
Onde quer que cheguen-r os meios de comunicação de
massa, nho passam incólumes as crenças, os saberes e as leal-
dades. Todos os níveis culturais se reconfiguram quando se
produz urìra roviravolta ila magnitude impÌicada pela transmissão
eletrônica clc ilnagens e sons. Hoje, a cidade está presente no
munclo rural nao sornente na ocasião da visita de um caudilho,
um padre oLl Llrìì tttcrcarlor de fblhetins, mas sempre e sincro-nicamente: o terÌìllo rlit cicladc e o do espaço campestre, antes
separados por distârrcius scrnanalmente reduzidas pela estrada
Culturas populares, uelhas e nouts 103
tk' lt'r'r'o, os.jorruris e os livros, agora são tempos sincronizados.l: tlcrr(rrr tlir citlade, o mesmo tempo circula pelo sistema linfá-lir'o tlos lrrcios de comunicação de massa para ricos e pobres,rlcscrrrplcgudos e membros da aÌta roda, idosos e jovens. A uni-rlrtle rurcional precisa tanto da comunicação pela mídia quantolrrrtcs prccisctu dos correios, das estradas de ferro ou da escola.('orrr u tclevisão todas as subculturas participam de um espaço
rrirciorral-internacional que adota características locais segundotr Íìrrça que tenham as indústrias culturais de cada país. Isso,(pre prcocuparia aos velhos populistas, não incomoda aos neo-
lx)[)ulistas de mercado, que encontram em cada uso local dos
cstilos internacionais ou nacionais uma prova irrefutável docontínuo palimpsesto que os setores populares escrevem com<ls rnateriais que lhes chegam pelo ar. Esse amigo meu, queprctende agarrar o ladrão de cavalos identificando-o no respec-tivo vídeo, é o herói ideal para uma épica neopopulista.
Entretanto, ainda não chegou o reino da independênciao cla igualdade simbólica. Os meios de comunicação de massa
croclem velhos poderes, mas dificilmente desejarão ou poderãolssentar as bases para a construção de novos poderes autô-nonros. São como o cão do lavrador: não deixam o velho donocomer, mas tampouco podem suportar que as pessoas preparemsua própria comida, e agora todas as dietas contam com uml'r.rndo de cozinha audiovisual. As culturas populares, então,atravessam uma longa transição sobre a qual é difícil fazer umbalanço. Sabemos o que se perdeu, mas ninguém sabe ao certoo que se ganhou desde que os meios audiovisuais implantaramsua hegemonia. Entre o que se perdeu, é preciso contar as iden-tidades cristalizadas e os velhos preconceitos; hoje é corìurììa condenação de atitudes (como o machismo e a violência clo-
rnéstica) que pareciam pertencer à natureza das coisas. linln.
104 cENAs DA vrDA Pós-MoDERNA
o que se perdeu, também devemos contar a obediência cega
a formas tradicionais de dominação sirnbólica (como a do cau-
diÌho, a do senhor, a do padre, a do pai, a clo professor). Como
se vê por essa enumeração, nem toda obediência tinha as
mesmas conseqüências para aqueles que a observavam: a es-
cola, sem ir mais longe, foi um fator essencial de modernização
libertadora dos setores populares que compreenderam desde o
início o valor do saber e souberam valer-se dela. A debilidade
atual da escola, que não pode distribuir saberes básicos de mo-
do minimamente aceitável, é um clcls piores obstáculos para a
construção de uma cuÌtura comum que nao se apóie somente na
comunidade imaginária construída pelos rneios de cornunicação
de massa.
Também ficaram soltos tls valores liberados num pro-
cesso cle transÍbrmação das iclentidadcs populares tradicionais,
cujas fisionornias já tinham sido dcsbastadas pelos processos
de modernização. A cultura da míclia convertc a todos em mem-
bros de uma sociedade eletrônica, que se apresenta imagina-
riamente como uma sociedade de iguais. Aparentemente, não
há nada mais democrático do que a cultura eletrônica, cuja
necessidade de audiência a obriga a digerir, sem interrupções,
fragmentos culturais de origens as mais diversas. Na mídia,
todo mundo pode sentir que há aÌgo de próprio e, ao mesmo
tempo, todo mundo pode imaginar que o que a mídia oferece
é objeto cle apropriação e desfrute. Os miseráveis, os margina-
lizados, os sirnplesmente pobres, os operários e os desempre-
gados, os habitantes das cidades e os interioranos encontram
na mídia uma cul{ura em que cada um reconhece sua medida
e cada um crê iclcntiÍ'icar seus gostos e desejos. Esse consumo
imaginário (em toclos os sentidos da palavra imaginário) reforma
os modos com quc os sctores populares se relacionam com
Culturas populares, uelhas e nouas 105
sua própria experiência, com a política, com a linguagem, com
o mercaclo, com os ideais de beleza e saúde. Quer dizer: tudo
aquilo que configura uma identidade social.
As identidades tradicionais eram estáveis ao longo do
tempo e obedeciam a forças centrípetas que operavam tanto
sobre os traços originais quanto sobre os elementos e valores
impostos peÌa dominação econômica e simbólica' Hoje, as
identidades atravessam processos de "balcanização", vivem um
presente desestabilizado pela desaparição de certezas tradicio-
nais e pela erosão da memória; comprovam a quebra de normas
aceitas, cuja fragilidade realça o vazio de valores e propósitos
comuns. A solidarieclade da aldeia era estreita e, muitas vezes'
egoísta, violenta, sexista, intolerante com os que eram dife-
rentes. Essa trama de vínculos caÍa a cara' em que princípios
de coesão pré-moclernos fundavam comunidades fortes, basea-
das em autoridades tradicionais, dispersou-se para sempre' As
velhas estratégias já não podem soldar as bordas das novas
diferenças.
Muitas comunidades perderam seu caráter territorial: as
migrações deslocaram homens e mulheres para cenários desco-
nhecidos, onde os laços culturais, se chegam a ser reimplanta-
dos, fazem-no em conflito com restos de outras comunidades
ou com os elementos novos das culturas urbanas' E ali, os
meios de comunicação de massa, como o ácido mais corrosivo,
reagem sobre as lealdades e as certezas tradicionais. No entanto,
entre os restos de velhos mundos separados entre si pela distân-
cia cultural e pelo espaço, a mídia também estende pontes e
cria uma nova globalidade' Vivemos na era do individualismo
que, paradoxalmente, floresce no terreno da mais inclusiva
comunidade eletrônica. Entretanto, os desvãos que separavam
distintas comunidades culturais não chegam a unir-se de todo
106 cENAS DA vrDA pós-MoDErìNA
porque, em alguns casos, essas velhas culturas foram poderosas
demais para desaparecer por completo. E, fundamentaÌmente,
porque, com a tenacidade do rnaterial, persistem as diferenças
econômicas e os obstírculos sociais contrapostos a um uso ver-
dadeiramente universal dos bens simbólicos. Seja como for, as
velhas identiilades se abrandaram e, acima de tudo, perderam
a capacidade de regenerar sentimentos de pertencimento, em-
bora a última palavra ainda não tenha sido pronunciada e, vezpor outra, velhos símbolos tornem a ser usados em novos con-
textos culturais ou geográficos.
Também os setores longamente enraizados num deter-
minado lugar sofreram uma desterritorialização: o bairro popularhoje é menos importante do que há quarenta ou cinqüenta anos,
como espaço de associação, construção da experiência comume estabeÌecimento de relações face a face. Em muitas cidades,
o bairro operário c o subúrbio são lugares inseguros, onde a
violência cotidiana aconselha o recolhimento privado. E no
centro mesmo do munilo privado, reluz o vídeo sempre des-
perto. O bairro deixa de ser o território de uso e pertencimento,porque seus habitantes seguiran'r o contraditório processo duplode transpor todas as fionteiras, tornando-se público audiovisual,e ao mesmo tempo ficar cada vez mais encerrados dentro de
suas casas. Velhos centros tradicionais de interação - a escola,as bibliotecas populares, os comitês políticos, as sociedades
de Íbmento, os clubes de bairro - deixaram de ser os lugares
oncle, no passado, deflniam-se perfis de identidade e sentido
cornunitÍriil. E,sses lugares, ainda dominados pela cultura da
Ietla c pela rclaçho individual, face a face, tôm hoje uma pre-
sença rrruito tììorìor'. Recorre-se a eles não ao longo de um co-tidiano corrtínuo, c sirn no momento de uma crise ou de uma
necessidaclc l.rclcrnltttiri a.
Culturas populares, uelltas e nouas 107
Os mais jovens não encontram nesses espaços nenhuma
das marcas culturais que interessaram a outros jovens, há trinta,
quarenta ou cinqüenta anos. E sem jovens, não existe possi-
biliclade de transmissão cultural. Outros lugares propõem aÌter-
nativas mais bem sintonizadas com as qualidades da cultura
audiovisual: Igrejas cujo estilo se inspira na pastoral eletrônica;
organizações centradas em objetivos pontuais que garantem
assepsia política, horizontalismo democrático e um mínimo de
estruturação institucional; casas de videogames; discotecas que
se especializam num leque particularíssimo de público, sele-
cionado com firme autoconsciência; fãs-clubes cujo perten-
cimento se origina na cultura audiovisual (com exceções: al-
gumas bandas de rock conseguiram estabelecer uma ponte
sobre os meios de comunicação de massa, que, de qualquer
rnodo, aperfeiçoaram-se para não deixar escapar um fenômeno
que, no início, passou-lhes despercebido).
Hoje a cultura juvenil é uma dimensão dinâmica, possi-
vclrnente a mais dinâmica das culturas populares e não-popu-
lares. Mesmo quando os jovens demonstram fina capacidade
tlc clistinguir matizes, a cultura juvenil tende a ser universal e,
rle fato, atravessa as barreiras entre classes e nações. Mais clo
r;uc pelo pertencimento social, as experiências culturais se re-
cortam pela pirâmide de idades. Nela, subsistem as diferenças
(c1uc, no rock, são a base de verdadeiras tribos), mas a universa-
lização pressiona com mais fbrça que os velhos particularismos
ills subculturas e os novos métodos de discriminação.
O único obstáculo eficaz contra a homogeneização cul-
tural são as desigualdades econômicas: todos os desejos tendem
lr assemelhar-se, mas nem todos os desejos têm as meslllas
conclições de realizarem-se. A ideologia nos constitui enr cott-
srrrrriclores universais, embora milhões sejam apenas cottsttttti
108 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA
dores imaginários. Se, no passado, o pertencimento a umacultura assegurava bens simbólicos que constituíam a base deidentidades fortes, hoje, a exclusão do consumo torna insegurastodas as identidades. Isto, justarnente na cultura juvenil, é bemmais evidente: o desejcl
- pela marca
- marca socialmente.Perdeu-se e ganhou-se. Por um lado, os letrados, que,
no passado, detinham o rnonopólio da Iegitimidade cuÌtural e
só deviam disputá-lo entre seus diversos grupos, hoje se vêemdesafiados, em bloco, por novos mecanismos de produção deÌegitimidade. Não podem mais legislar sobre o gosto com orgu-lhosa independência porque outros centros legitimadores ditama moda. A cultura audiovisual escolhe seus próprios juízes e
reconhece a força do número uma vez que seu negócio estána ampliação incessante dos públicos, mais do que na distinçãoelitista de grupos. A diferenciação em subculturas audiovisuaisé um fenômeno subordinaclo à ampliação e à homogeneização:as neotribos culturais tênt a impressão de cultivar os mais ex-clusivos particularismos com inteira liberdade, e não são des-
mentidas contanto que não entrem na disputa clo mercaclo au-diovisual global. Quando o fazem, como aconteceu em muitoslugares com as rádios de freqüência modulada, as grandesempresas da indústria cultural reagem: primeiro, botam a bocano trombone; depois, redefinem estratégias para intervir nessenovo mercado cuja base está no fracionamento quase infinitod,.: diul ratliolônico.
Na acentuação desses particularismos está apoiada umasubordinação diÍcrente: não são as classes dominantes, atravésde um sistcrna cortrplicado de instituições e delegados, que atra-vessam o lirnitc crìtrc grupos sociais. Em conseqüência disto,já não se pocle Í'ullrr lltenas de uma hegemonia cultural das
classes dominantcs ncrrr rlc urna autonomia restrita à cultura
Culturas populares, uelhas e nouas 109
irrrposta por suas elites. Hoje, qualquer possibilidade de iniciati-
vrr cultural independente passa pelo modo como diferentes gru-
pos sociais estejam em condições de misturar seus próprios
irrstlunrgr.rtos culturais, os da cultura letrada e os dos meios de
t'ornuuicação. Conforme essas três dimensões sejam relacio-
rrirrlas (elerlentos próprios de identidade, cultura institucional
cscolar, cultura da mídia), criam-se configurações diferentes
c instírveis, que podem mudar segundo as conjunturas políticas
rì lr lcl]ìperatura social. No marco da hegemonia audiovisual,
rrlgurnas situações especialmente nítidas (como a passagem de
rrrna ditadura para a democracia) desviam os canais através dos
rluais essa hegemonia é exercida. São episódios particulares em
tyuc valores são reordenados, e condutas não habituais são
cstirnuladas, sobre a base de uma mistura de elementos origi-
rlrrlos na tradição cultural, na cultura institucionalizada, em no-
vos conteúdos políticos e nos meios de comunicação de massa.
Muitas vezes, e isso fica bem claro nos cenários eleitorais, o
tliscurso da mídia entra em curto-circuito ao contato com iden-
titllcles políticas profundas ou novos ideais que a mídia não
rcspalda (por razões de censura ou cegueira). Nesses momen-
los, as subculturas atravessam fases de reestruturação rela-
tivarnente independente, embora não perdurem depois de esgo-
tirclo o potencial ideológico da conjuntura.
Seja como for, se é que alguma vez tiveram limites fortes
c precisos, as culturas populares afinal desvaneceram-se; tam-
bónr se esfumaram os perfis mais estáveis que distinguiam as
clites do poder. A universalização imaginária do consumo ma-
tcrial e a cobertura total do território pela rede audiovisual não
rrcabam com as diferenças sociais, mas diluem algumas mani-
lcstuções subordinadas a essas diferenças. O caso da língtrl
i10 cENAS DA vrDÂ Pós-MoDERNA
falada é particularmente significativo. Durante décadas, a lín-gua "correta" foi um ideal da escola, hoje desaparecido, pois
a escola não se encontra em conclições de transmitir qualquer
ideal, seja ele qual fbr. Por outro lado, a vitalidade e a criação
lingüísticas passarn pur cantinhr)s cornpletamente estranhos à
cultura letrada; e a homclgcneização lingüística desbasta as di-ferenças de região, classe ou profissãcl. Esse impuìso niveladortem ressonânciirs democráticas, se comparado à língua ultra-estratificada de alguns países europeus. Entretanto, nem tudo
pode passar sob o rótulo de nivelamento democrático quando
o discurso de um presidente da república ou de um parlamentarproporciona os exemplos mais típicos da Ìíngua popular. Numcírculo cujo ponto de origem é inútil buscar, os políticos falamcomo os jogadores de futebol ou como as vedetes da televisão,
na tentativa de imitá-los em seu sucesso, cultivando o neopopu-
lismo, ou (como se diz) para aproxirrìar-se de um povo, trans-
formado em comunidade de públicos e não de cidadãos, que
os consagraria segundo os critérios definidos pela aura da
mídia.
Todo mundo fala do mesmo jeito e a inovação lingüísticaemigra muito rapidamente de um grupo social para outro. Se
fortes marcas lexicais e fonéticas são conservadas em velhossetores tradicionais das elites, de qualquer modo, é mais peÌo
que esses níveis têm em comum com o resto da sociedade do
que pelo que os diferencia. Apesar de os próprios sujeitos toma-rem a distinçho entre grupos como um escudo protetor, essa
distinção se atenua, porque está menos fundada em elementos
culturais inaccssívcis e mais apoiada em elementos ao alcance
de todos; niro ó o rìrosrÌlo distinguir-se por falar fluentementeuma língua estranÊcil'lr ()u por comprar o último CD do Guns'n'Roses. Nho gcra o rììcsrÌlo tipo de diferenciação incontor-
Culturas populares, uelhas e noaas 1 1 1
ruivel o usufruto cle uma biblioteca familiar ou a posse de uma
rnotocicleta japonesa. Os símbolos do mercado, que são igual-
rììcnte acessíveis a todos, tendem a desvanecer os símbolos
tlir vclha clominação, baseados na diferença e no estabelecimento
tlc lirnites intransponíveis.
Aquilo que antes era considerado cultura letrada (então
rr única cultura legítima, pelo menos para os letrados) já não
organiza a hierarquia de culturas e subculturas. Os letrados,
tliante clisso, escolhem entre duas atitudes possíveis. Uns lamen-
tlrrn o naufrágio dos valores sobre os quais estava baseada a sua
Ircgemonia como letrados. Outros celebram que os restos do
rraufrítgio tenham chegado à costa, onde começam a montar
Lrnr arteÍato para explicar em que consistem as novas subcul-
turas e os usos populares dos despojos audiovisuais' Os pri-
rrrciros clesconfiam das promessas do presente; os segundos,
rreollopulistas de mercado, acreditam fervorosamente nelas' Os
lrrirnciros são velhos legitimistas, porque ainda respeitam uma
lriclurquia cultural em que a cultura da letra tinha um lugar he-
gcrrrônico assegurado, ao abrigo das pretensões de outras for-
rrrlrs culturais. Os segundos são os novos legitimistas, porque'
rro rraufrágio da cultura da letra e da arte culta, instalam seu
porlcr como decifradores e intérpretes daquilo que o povo faz
('olÌì os restos de sua própria cultura e os fragmentos da cultura
rlir nríclia, de que se apoderou. As coisas se inverteram para
s('nìpre. Os neopopulistas só aceitam uma legitimidade: a das
t'rrltrrras produzidas no cruzamento entre experiência e discurso
rrurliovisual. Consideram que os limites impostos à cultura culta
r.cl)rcscntam uma revolução simbólica na qual os antigos sub-
jrrglrrlils se apossarão de um destino independente por meio cltr
:rllcsluìato que fabricam com o zuppìng e outros recursos tec-
rrolrigicos cla cultura visual. Ambas as posições se enÍì'ctttilttl
112 cENAS DA vrDA pós-MoDERNA
segundo a fórmula que se tornou céÌebre há quase trinta anos:apocalípticos (hoje diríamos velhos legitimistas, defensoresirredutíveis das modaÌidades cuÌturais prévias à organizaçãoaudiovisual da cultura) e integrados (os defensores assalariaclosou vocacionais das indústrias audiovisuais e de sua nova le-gitimidade cultural).
Entretanto, algumas coisas permanecem irredutíveis. pa-
ra começar, a desigualdade no acesso aos bens simbólicos. Aocontrário de atenuar-se, essa dificuÌdade acentua-se porque a
escola atravessa uma crise econômica em cujo reverso se podeler tambérn uma crise de objetivos e a corrosão de uma autori-dade que não foi substituída por novas formas de direção. Aescola já não é iluminada pelo prestígio que tinha, reconhecidotanto pelas elites quanto pelos setores populares, nas primeirasdécadas deste século. Na maioria dos países cla América Latina,a escola pública é hoje o lugar da pobreza simbóÌica, onde pro-fessores, currículos e meios materiais concorrem em condi-
ções de muito provável derrota com os meios de comunicaçãode massa, que são de acesso gratuito ou moderadamente cus-.toso e abarcam todos os territórios nacionais.
Sabemos que a cultura letrada está em crise no mundo:os administradores norte-americanos vêem com inveja os re-sultados dos exames das crianças japonesas, que, de todomodo, são submetidas a disciplina de samurai para evitar odeclínio de seus desempenhos; também a escoÌa francesa hojelamenta a quecla dos padrões, sobretudo nas disciplinas huma-nísticas, tendo enlì'entado duas reformas consecutivas nos últi-mos dez anos, isto nurna instituição já reformada no calor doclima antiinstitrrcional dos anos 70. Multiplicam-se os exemplosde um domínio mais tarclio e incompleto das capacidades ele-
Culturas populare s, uelltas e nouas I13
rr(.nliu('s; vivcrnos a crise da alfabetização (e, com eÌa, a da
' ultlriì tllr lctru), embora os otimistas midiáticos celebrem as
lrrrlrilirlrrtlcs ldquiridas no zapping e no videogame. Essa crise,( l)()rÌ (luo se diga logo, não tem origem apenas na maior,lrlrrslro tlo cnsino entre setores sociais que antes estavam forarh' scu ulcance (imigrantes, minorias étnicas, etc.); nos últimos,ur()s, LÌ cnr países onde o ensino descreve há décadas um mo-\ nn('rìto clc expansão universal, a crise surgiu independentemente,los cÍcitos introduzidos pelas minorias raciais, religiosas, ou
pcl:r irrclusão parcial dos mais despossuídos. A crise da alfa-lrt'tiztrçircl afeta aos filhos das camadas médias urbanas, aos dos,,('t()rcs operários bem estruturados, aos da pequena burguesia.r\ t;rrcstlto tem uma importância especial na América Latina,, rrtlc prclblemas comuns se acumulam no âmbito de instituiçõesluilicis, e mais fragilizadas ainda pelos programas de reajustet't orrôrnico e redimensionamento dos Estados.
Afirma-se que a escola não estava preparada para o
;rtlvcntcl da cultura audiovisual. Nem os programas nem as
lrrrnrcracias educacionais foram modificados com velocidadei orrrparáveÌ à das transformações ocorridas nos últimos trintarrrros. Tudo isto é verdade. A questão não passa apenas pelas
t orrclições materiais de equipamento, que as escolas mais ricas,tle gestão privada, podem encarar e, em muitos casos, resolvertlrrs maneiras mais estapafúrdias. Comprar um aparelho de
te lcvisão, um videocassete e um computador pode representarurìì grave obstáculo para as escolas mais pobres (que são mi-llrirrcs) em qualquer país latino-americano. Suponhamos, de to-tkr rnodo, que a Sony e a IBM decidam praticar a filantropia emt'scala gigantesca. Ainda assim o problema que pretendo iden-til'icar permaneceria, justamente porque não se trata apenas de
rrrrra questão de equipamento técnico e sim de mutação cultural.
14 cENAS DA vrDA Pós-MoDElÌNA
A escola (como se diz) poderia beneÍìciar-se e aumentar
sua eficácia reutilizando as habilidades adquiridas peÌos alunos
em outra parte: a velocidaclc do J'eeling proporcionada pelo vi-
deogarne; a capacidade de compreensão e resposta frente a uma
superposição de mensagens; cls conteúdos Íàmiliares e exóticos
oferecidos pela míclia. Seria absurdo discutir esses dados, mas
ainda deveríamos poder questionar se tais habilidades e saberes
são suficientes como f'erramentas para a aquisição cle outros
saberes e habilidades ainda hoje vinculados à palavra, ao racio-
cínio lógico e matemático abstrato, à expressão lingüística e
à argumentação, indispensáveis, até segunda ordem, no mundo
do trabalho, da tecnologia e da política.
A rapidez de leitura do videoclipe e a mão leve essencial
para o videogame não habilitam para a capacidade intelectual
de longa concentração nutrì ponto determinado do monitor do
mais simples dos cornpr"rtadores, que como todos sabemos é
necessária para resolver até os mais banais problemas levan-
tados pelo uso dos mais banais programas. Muito menos pre-
param para o manejo de programas sofisticadíssimos, como
o hipertexto, que em pouco tempo será relativamente acessível.
A incorporação da informática. aplicacla ao aprenclizado cle
qualquer disciplina, requer habilidades ausentes no Nintendo:
leitura cle sintaxes hierarquizadas e complexas, menos npidez,[renos confìança nos reflexos motores, menos impaciência,
resultaclos a longo ptazo, toda uma narrativa da ocorrência, do
teste c clo fracasso que é oposta à rapidez de resultados do vi-
cleoclipo c clo vidcogame, embora os usuários lúdicos tenham
corÌì iÌ rnícpinu urna relação menos distante e mais audaz que
seus 1.xris c proÍcssores. A aprendizagem trabalha com poucas
uniclaclcs scrnânticrrs c l(lgicas por unidade de tempo, ou, em
outras pulavras, corìl r.lrììu leitLrra intensiva de poucas unidades.
Culturas populares, ue/ltas a nou,ts I I 5
,,\ rrpr.crrclizagern é um processo de aquisição de diferenças, cx-plolrrçho clo estranho, no qual a primeira lição consta das habr-
lirlrrtlcs necessárias para aprender e das condições psicomorais(tli{irrnos assirn, à Íalta de melhor termo) imprescindíveis.
A aquisição de uma cultura comum (ideal dernocráticotlrrc pode ser reinventado com um sentido de maior pluralismot' r'cspeito às diferenças, mas que não deveria ser desprezado)
srrllelc uma série de processos de recorte e não simplesmente
t[' continuidade fiente ao cotidiano. Aprende-se o que não sc
sirbc: esta simples idéia nos obriga a considerar outras. Em pri-rrrciro lugar, que a fonte de um patrimônio simbólico não está
sorr.rcnte naquilo que os sujeitos receberam e entendem como
prriprio (através da cultura vivida, familiar, étnica ou social) esirrr naquilo que transformarão em material conhecido através
tlc urn processo que implica, na mesma apropriação, uma difi-culclade e um distanciamento.
A hipotética doação da Sony às escolas pobres da Amé-lica Latina não excluiria a dura realidade de que é necessário
rrnr salto da videocultura "espontânea" rumo a outras dimen-sires culturais, e mesmo que isto seja Íacilitado pela incorporação
cla dimensão técnica e lúdica dos meios de cornunicação de
rììassa, permanece a necessidade de uma intervenção forte quc
nuo pode basear-se apenas na espontaneidade dos sujeitos. O
luclestramento como espectadores dos programas da Xuxa ou
como jogadores de videogame pode ser utilizado pela escolasó até um certo ponto muito inicial. Logo logo, os espectadores
da Xuxa deverão tornar-se leitores de uma página que, por maissimples que seja, requer habilidades ausentes do mundo rlu
Xuxa.
Por outro lado, apesar das Íantasias de alguns filmes clrrc
pensam que o feminismo consiste em apresentar meninas rruris
116 cENÂs DA vrDA Pós-MoDERNA
hábeis que seus irmãozinhos no trato com os computadores,
o jogador de videogame ou fanático da informática é, por velhas
razões culturais, muito notcllir"rnrente antes um menino que
uma menina - sobretudo nos setores populares (que não dis-
põem de computadclres ou videogames caseiros). Assim, as
casas de videogames de toclas as grandes cidades latino-ame-
ricanas são freqüentadas por um público predominantemente
masculino. A universalidade do treinamento adquirido não é,
portanto, tão universal assim; é apenas, na melhor das hipóte-
ses, de meío universo. Podemos extrair daí conseqüências que
afetam o otimismo tecnológico. Antes de celebrar a doação da
Sony a todos os grupos escolares da América Latina, seria con-
veniente desenvolver estratégias de compensação para as ha-
bilidades masculino-femininas que, a continuarem conforme o
movimento do mercado, carregam um forte travo de desigual-
dade sexual.
As doações da Sony seriam tão inúteis quanto um velho
projetor de super-8, caso a escola as empregasse como extensão
unicamente lúdica, para convencer seus alunos de que aprender
é tão divertido quanto ver televisão. A garotada, que não é boba,
intuiria que não é bem assim.
As culturas populares de países como o nosso têm a es-
cola como ponto de referência há um século. Erra quem vê na
escola apenas um instrumento de dominação. O que a escola
proporcionava passou a fazer parte ativa dos perfis culturais
popularcs. A all'abctização permitiu a difusão ampliada do jor-
nalismo nrorlcnro, clesde o início do século XX, e a eclosão,
nas quatro prirnr:ilus dócadas do século, de uma poderosíssima
indústria editorial dc rììussa, que publicou centenas de milhares
de volumes de literatura, clivulgação científica de bom nível,
Culturas populares, uelhas e nouas I 17
história, teatro e poesia. As culturas populares urbanas não
repudiaram essa contaminação pela cultura letrada. Pelo con-
trário, adotaram dela elementos cruciais para um processo de
rnodernização, formando uma base para dimensões culturais
comuns. Milhares de mulheres de setores médios e baixos
encontraram no magistério um caminho de independência tra-balhista e apoio para um poder relativamente autônomo da
autoridade masculina. A escola era um lugar simbolicamente
rico e socialmente prestigioso. Sem dúvida, a dominação sim-
bólica encontrava ali um de seus ambientes, mas a escola não
era somente uma instituição de dominação: ela também distribuía
saberes e habilidades que os pobres só podiam adquirir por
meio dela.
É verdade que a escola eliminou perfis culturais muitoricos. Os imigrantes entregaram seus filhos à escola, onde estes
perderam a língua e a cultura de seus pais e encontraram so-
mente a nova língua do novo país. Essa imposição, no entanto,
também os convertia em cidadãos e não em membros de guetos
étnicos onde as diferenças culturais permanecem intatas, assim
como a desigualdade entre nacionais e estrangeiros, entre mem-
bros de diferentes religiões ou diferentes etnias. A escola pas-
sava uma lixa de aço, mas em compensação, sobre a tábularasa de uma brutal conversão das culturas de origem, depositava
saberes que eram indispensáveis não somente para a formação
de mão-de-obra capitalista, mas também para o estabelecimento
das modalidades letradas da cultura operária, dos sindicatos e
das intervenções na luta política.
Numa escola forte e intervencionista, os letrados irn-puseram aos setores populares vaÌores, mitos, histórias e tra-
dições. Aquele, contudo, foi também um espaço laico, gratuit<r
e teoricamente igualitário onde os setores popuÌares purlcrirrrr
I18 cENAs DA vrDA pós-MoDERNA
apropriar-se de instrumentos culturais que não deixariam cle
empregar para seus próprios fins e interesses. A escola, semdúvida, não ensinava a combater a dominação simbólica, masproporcionava as fcrramentas necessárias à afirmação cla cul-tura popular sobre bases distintas, mais variadas e mais mo-dernas que as da experiência coticliana e os saberes tradi-cionais. A partir dessa distribuição cle bens e habilidades cul-turais, os setores populares realizaram processos de aclap-tação e reconversão muitas vezes bem-sucedidos. As mulheres,em particular, conheceram muito cedo a igualclacle legal exigiclapeÌa sua presença na escola tanto quanto a exigicla pelos ho-nlens.
As operações de hibridização entre culturas populares ecuÌtura da mídia, hoje realizadas pelos setores populares (assimcomo pelo resto da sociedade), tiveram um capítulo impor-tantíssimo no ambiente escolar. Ali, desde o início do séculoXX, obtinham-se as habilidades necessárias para fazer parte dopúblico dos grandes jornais modernos, para entender as trans-formações tecnológicas e dominar seus elementos técnicos e
para apropriar-se de conhecimentos que permitiam usos inde-pendentes dos objetivos institucionais. Com a aquisição cle sa_
beres que desconheciam e que não pertenciam ,,naturalmente,,
a seu mundo mais imediato, os setores populares não se acle-quavam como robôs aos conteúdos de uma cultura dominante,mas também recortavam, colavam, costuravam, fìagmentavame reciclavam. A apoteose da indústria cultural capitalista, po-rém, não compensa a decadência da escola pública.
Não existem culturas descontaminadas (ou contamina-das somente pela dominação das elites) e só os veÌhos populistaspoderiam acreditar na hipotética "pureza" das culturas popu-
Culturas populares, uelltas e nouas I
lares, por isso, a questão das culturas populares e sua semprerelativa autonomia passa pelos elementos que entram em cada
momento da mescla. Tudo depende das operações que os
setores populares estejam em condições de fazer a partir da
mescla cultural, que é inevitável e que só pode ser estigmatizadaa partir de uma perspectiva tradicionalista arcaizante. Ninguémé responsável pela perda de uma pureza original que as culturaspopulares, desde o início da modernidade, nunca tiveram.
A cultura popular, assim, não tem um paradigma passado
ao qual possa ser remetida. É impossível a restauração de umaautenticidade que só resultaria em manifestações de um Kitschfolclórico que não poderiam interessar sequer a seus protago-nistas. Assim como as culturas letradas não tornam a seus
clássicos senão por meio de processos de transformação, de-
Í'ormação e ironia, as culturas populares não podem pensar suas
origens a não ser a partir do presente. E, de todo modo, pressu-por essas origens já é algo de problemático: qual foi o momento
verdadeiramente autóctone de uma cultura que jír foi atravessada
pelos processos da modernidade? Esse momento é uma utopiaetnográÍìca que só pode tornar-se visível na vitrine de um mu-seu. Por sorte, os setores populares carecem dessa vocaçãoetnográfica, e fazem o que podem de seu passado.
As condições do que pode ser feito, contudo, são ins-táveis e dependem de políticas culturais sobre as quais os
setores populares decidem muito pouco. Os neopopulistas de
mercado, deslumbrados com o cruzamento entre os restos cul-turais populares e os meios de comunicação de massa, fechamos olhos diante das desigualdades de acesso aos bens simbólicose, em conseqüência disto, preferem não se referir à dominuçãoeconômica e culturaÌ. Para esses neopopulistas, a úniclr irrr
posição cultural preocupante é a das elites letradas (ìuc (.ons(.r
L9
l')0 (iirNls DA vrDÁ pós-MoDERNA
vam um paradigma pedagógico oposto ao laissez faire e con_tinuam a sustentar, além disso, o caráter fundamental da culturada letra dentro da configuração cultural contemporânea. Sobreo resto, ou seja, sobre o mais importante, eles nada têm a dizer.
E o mais importante são justamente os fios com que osmeios de comunicação de massa completam o tecido esfarra_pado das culturas populares. Sobre isto, uma perspectiva cul_tural democrática e igualitária não pode deixar de pronunciar-se' Se as políticas culturais ficarem sob a responsabiridade domercado capitalista, os processos de hibridização entre veÌhastradições, experiências cotidianas, novos saberes cada vez maiscomplexos e produtos audiovisuais terão no mercado seu ver_dadeiro ministério do planejamento. Nesse mercado simbólico,todas as desigualdades ficam mais acentuadas: a desigualdadeno acesso à instituição escolar, a desiguardade nas possibilidadesde escolha dentro da oferta audiovisual, a desigualdade de for_mação cultural original. Os setores populares não dispõem denenhum recurso todo-poderoso para compensar aquilo queuma escola em crise não lhes pode oferecer, aquilo que o óciodos letrados pode adquirir quase que sem dinheiro, aqueles bensdo mercado audiovisual que não são gratuitos ou que não seadaptam ao gosto que o mercado protege justamente porqueé o gosto favorável a seus produtos padronizados (que essesprodutos contribuíram para formar).
Não existe nos setores populares uma espontaneidadecultural mais subversiva, nem mais nacionaÌista, nem mais sá_bia que a de outros grupos da sociedade. Os velhos populistas(antecessores dos atuais neopopulistas de mercado) acre_ditavam ter encontrado no povo as reservas culturais de umaidentidade nacional. Atribuíam aos setores populares o que eles,
Culturas populares, uelhas e nouas 121
como intelectuais populistas, andavam procurando. Hoje sabe-
nlos que nenhuma elite letrada tem o direito de pedir aos outros
t;ue fabriquem as essências populares ou nacionais que essa
clite precisa para conceber-se como elite de um povo-nação.
Sabemos que essas substâncias nacional-populares não apenas
podem constituir a base de orgulhosas identidades indepen-
tlentes, mas também que adotam, muitas vezes, as facetas mais
terríveis do nacionalismo, do racismo, do sexismo e do funda-
rnentalismo.
Sabemos então que, assim como não existe uma únicacuÌtura legítima, em cuja cartilha todos devem aprender a mes-
rna lição, tampouco existe uma cultura popular tão sábia e po-
clerosa que possa ganhar todos os confrontos com a cultura
dos meios de comunicação de massa, fazendo com os produtos
cla mídia uma colagem livre e orgulhosa, nela inscrevendo seus
próprios sentidos e apagando os sentidos e as idéias dominantes
na comunicação de massa. Ninguém pode fazer uma operação
tão a contrapelo nas horas vagas, enquanto assiste à televisão.
Os setores populares não têm mais obrigações do que
os letrados: não é lícito esperar que sejam mais espertos, nem
rnais rebeldes, nem mais persistentes, nem que vejam com mais
clareza, nem que representem outra coisa senão eles mesmos.
Mas, em contraste com as elites econômicas e intelectuais, eÌes
dispõem de uma quantidade menor de bens materiais e sim-bólicos, estão em condições de usufruto cultural piores e têm
menores possibilidades de praticar escolhas não condicionadaspela pobreza da oferta ou pela escassez de recursos materiaise instrumentos intelectuais; em geral demonstram mais precon-
ceitos raciais, sexuais e nacionais do que os intelectuais, que
aprenderam a ocultá-Ìos ou mesmo a eliminá-los. Desta forma,
122 cENAs DA vrDA pós-MoDEr{NA
não são portadores de uma verdade nem responsáveis por suademonstração ao mundo. São sujeitos num mundo cle cliferençasmateriais e simbólicas.
Portanto, se se quer criar condições para a Ìivre manifes_tação dos diferentes níveis culturais cre uma sociedade, a primei-ra dessas condições deve ser a garantia cle um acesso democrá_tico aos armazéns onde estão guardadas as ferramentas: forteescoÌaridade e amplas possibilidades de opção entre diferentesofertas audiovisuais que concorram com a repetida oferta dosmeios capitalistas, tão iguais a si próprios quanto as mercadoriasque produzem. O que as pessoas vierem a fazer com esses ins_trumentos poderá ser chamado de hibridização, mescla, comoquiserem. Mas se a hibridização for de fato um modo cle cons_trução cultural, o importante é que os materiais metidos na suáÌcaldeira sejam selecionaclcls cla rna'cira
'ais livre possível, ea mais igualitária do ponto cre vista institucionar c econômico.
Mais: a celebração incliscriminada das estratégias de so_brevivência popular no fluxo contínuo dos meios audiovisuaisimplica uma conÍìança não na iniciativa e na originalidade dopovo, e sim na sua entrega total à manifcstação clas diferençassociais próprias do capitalismo, bem como a crença _ aí simà maneira populista clássica - na idéia de que tudo o que opovo faz tem sabedoria e aponta perfeitamente na clireção deseus interesses.
QUATRO
O lugar da arte
EsrÁ cenro: NUNCA, DESDE A TNVENÇÃo da imprensa, tanloslivros fbram publicados por ano, nem tantos jornais e revistlrs;exceto em casos de excepcional cegueira, como o que soÍì'crrros
aqui, os meios audiovisuais também se ocupam de escritolcse artistas. Estaremos então no meÌhor dos mundos?
Dificilmente se poderia responder de maneira unívocir rr
esta pergunta. A indústria cultural (o cinema, a televisho, os
discos, a promoção de eventos musicais, a edição) tent rruris
poder econômico do que jamais atreveram-se a sonhar os lìrndadores de um império como Hollywood. Mesmo assim, cpurntlo
se toma o caso do cinema, o que aconteceu aí represcrrtir rlr'
modo espetacular o nó de problemas que hoje enreda colìì scus
fios o público, os artistas e os investidores capitalistas.Gostaria de começar com uma questão sobre o cirrr:nrir
que tem a virtude de interessar a todos: por que hojc não slrtr
possíveis Ozu e John Ford? Diretores de cinema lìrrtcrrrcrrtt.
ancorados na indústria culturaÌ, Ozu e Ford foram anrbos corr
sagrados pelo público de massa e, ao mesmo tempo, ltrotlrrlor t.s
de verdadeiros estilos pessoais. Juntamente corn rclrlizlrrkrrr'snão tão bem-sucedidos e mais programaticiÌmelìtc virrt'rrl:rr1,,,,
ao cinema de arte, eÌes integram as fileiras tkrs rrrriort.s rl,,sécuÌo XX. Deles nunca se poderia dizer t;rrc tlrrlr:rllrrr,rrrr.
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como as vanguardas, contra o sentido comum do público. Tam_pouco que sua arte é pura negatividade, crítica estética que seconverte em crítica ideológica. pelo contrário, Ozu e Forcl nãosó nunca se colocaram fora da indústria cinematográfica, comoafinaÌ foram pilares da cre<Jibiliclacle de um cinema de massanas décadas de 30 e 40. Junto com as banalidades que os gran_des estúdios atiravam sobre as teras de todo o planeta, os firmesde Ozu e Ford (ou os de Wyler, ou antes de Griffith e Chaplin,mas também os de Hitchcock, para irmos direto ao assunto)são obras perfeitas, em que a linguagem do cinema está desen_volvida a ponto de alcançar seu estágio clássico. São filmes per_feitamente reconhecíveis: os planos gerais de Ford e os enqua_dramentos de Ozu hoje são consiclerados marcas pessoais quepassaram a fazer parte da gramática do cinema.
A pergunta sobre Ozu e Ford pocleria ser multiplicadaindefinidamente: por que temos a convicção de que Cqntandona chuva está tão longe de Fann ou Embalos cÌe sábado à noì_le? O filme de Stanley Donen e Gene Kelly foi, de imediato,um grande sucesso e um modelo de musical, cuja obsessivi_dade detalhista construía uma forma impecável. O que conver_tia esses diretores e esses filmes, de uma vez por toclas, emfaçanhas estéticas singulares e grandes favoritos de todos ospúblicos?
Talvez a pergunta não esteja bem posta. provavelmente,a formulação correta seria: o que permitia que Ford, Ozu,Hitchcock e Wyler fossem compreendidos por um público demassa, que consumia o cinema mais banal mas também ,RioGrandc e Ilistória ent Tóquìo? O que se passava com a culturadesse público'/ Sob que condições Ozu e Ford conseguiramnão ser tolcracl.s ìr margem (um no Japão e o outro nos EstadosUnidos) e sinr nritrrlcr-sc no centro de um sistema de produçãoe consagração'/
O lugar da arrt I 25
Por um lado, a indústria cultural não tinha acabado dc
implantar sua hegemonia sobre todas as formas culturais antc-
riores. Por outro, as vanguardas não tinham dividido por conì-
pleto, numa cisão definitiva, o campo da arte. Quando essas
rnudanças aconteceram, na segunda metade do século XX' a
ampliação estratificada dos públicos e a experimentação estética
passaram a trilhar caminhos distintos, que se cruzam apenas
em casos inteiramente excepcionais. Com a música e a literatu-
ra, isso aconteceu antes do que com o cinema.
Por que devemos nos preocupar com um processo que
parece irreversível e que, além disso, apresenta aspectos demo-
cráticos? Com efeito, a implantação das indústrias culturais tem
conseqüências niveladoras e levanta um marco de ferro para
aquilo que muitos se comprazem em chamar de "cultura co-
mum". Ninguém pretende colocar-se nas antípodas desse oti-
mismo, e muito menos fazer a crítica elitista desses protestos'
Nas páginas seguintes, contudo, tratarei de apresentar,
através de uma série de retratos de escritores e pintores, os
traços tipicamente modernos da arte, que a cultura audiovisual
cle mercado parece destinar a um desvão visitado apenas pelos
especialistas ou por públicos muito vocacionais. Embora suas
obras sejam expostas ou publicadas, o modelo de artista que
csses retratos apresentam foi tocado por uma clara margi-
nalidade. Existem, sem dúvida, grandes escritores cujos livros
atraem centenas de milhares de leitores; mesmo assim, um IÌlo-
vimento como o boom da literatura latino-americana, nos lìll()s
60 e 10, hoje atravessa uma fase quase residual, em que itpclìrrs
os autores consagrados naquele tempo conservam o 1lt'iblito
massivo que então se constituiu.
Os retratos que proponho tentam provar a vurictltttl,' crtrtr
que a arte opera. Ela cruza e superpõe faixas bctrl tlilì'rt'rrlr'"
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cultura de massas, grandes tradições estéticas, cuìturas popu_lares, a linguagem mais próxima clo cotidiano, a tensão poética,dimensões subjetivas e privadas, paixões públicas. Aí estão aspegadas, evidentes ou secretas, de experiências que todoscompartilhamos mas que, por alguma razão, só aÌguns homense mulheres transf'ormam em matéria cle um objeto estético.Assim transformadas, permitem um conhecimento e umreconhecimento de conclições comuns., são o que somos, masde maneira mais tensa, mais precisa, mais nítida e também maisambígua. Uma distância (que é a forma estética) possibiÌita vermais. Ninguém é obrigaclo a viver a situação em que a arte noscoloca. Entretanto, por princípio, ninguém está dela excluído.
A intensidade formal e semântica é alcançada quando, apartir daquilo que têm à mão, alguns homens e murheres criamconfigurações especi ai s, de uma a rb it rar i e dade ne c e s s árìa. Nãoexiste só um tipo de artista; estes perfis pretendem capturarbiografias em miniatura, ,.casos"
nos quais cada um tem suasestratégias para escolher os assuntos e deliberar sobre as for_mas, respeitar ou transgreclir os limites, expressar o que se crêsaber, Íalar ou calar sobre o que faz. Não se é artista de umasó rnaneira, porque se trabalha com instrumentos que cada umaprende a usar, modifica ou inventa. Não se é artista de umasó maneira porque alguns experimentam a plenitude do signi_ficado e outros vivem na dúvida sobre a possibilidacle cte, afinal,dizer de fato alguma coisa. Não se é artista de uma só maneiraporque a rccle invisíveÌ de experiência e cuÌtura, razão e ima_ginaçho, ckr cpte se sabe e do que nunca se poderá saber, é tecidasempre conr Í'ios clif'erentes.
Ent norrrc rla cliversiclacle da espécie humana, para mantera reivindic'çã. c' su. escala ecológica menos exigente, serianecessário prescrvlrr rnoclelos como os que posaram para osinstantâneos aprcsenluclos a seguir.
O lugar da arte 127
Instantâneos
Duas perspectivas. Leu histórias em quadrinhos e viutclevisão durante toda a sua infância. Lembra-se de todos os
iingles, todos os episódios dos seriados americanos e sabe decor falas de telenovelas que os próprios roteiristas esqueceram.l)c música popular, pouca coisa desconhece, e não tem qualquer
;lreconceito quanto a uma hierarquia de gêneros, canções ouintérpretes: gosta dos melhores e dos piores. Quis ser baterista,rnas ninguém em sua família se mostrou disposto a suportarsemelhante extravagância; comprou então uns atabaques comos quais percorreu, aos 20 anos, botecos em praias de segun-da categoria. Quando passou a estudar pintura aproximou-seda vanguarda teatraÌ e participou da encenação experimental cle
uma peça de Plauto. Depois abandonou o teatro porque nãogostava de ficar descalço no palco. Pela televisão, viu todasas comédias argentinas e todos os meÌodramas mexicanos dosanos 40 e 50. Nas cinematecas viu todo o Godarcl que pôde;conhece de memória as seqüências dos filmes de Coppola. Lêpor alto romances e poemas; lê de ponta a ponta os jornais e
as revistas mais diversos. Durante sua única viagem longa aos
Estados Unidos, fìeqüentou com a mesma regulariclade o Museude Arte Moderna e as casas que só tocavam Tito puente. Sealgum amigo vai ao exterior, encomenda, com a mesma urgên-cia, livros de Turner e discos difíceis cle salsa ou latin ja7.7.
Não conhece limites entre níveis culturais: passeia, sem pre-conceitos e muitas vezes sem princípios, entre o Kitsch e o su_
blime. Aprecia o mau gosto, sem fazer disto uma reivindicaçãopopulista.
Trabalha seus desenhos com a obsessão de um minia_turista. Enquanto desenha, Íala com quem estiver perto, párae gosta de ser interrompido; distrai-se com a mesma intensidade