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Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da ___ Vara da Infância e da Juventude do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. O Ministério Público do Estado do Paraná, por sua Promotora de Justiça que ao final subscreve, no exercício de suas atribuições legais e com fundamento no inc. III do art. 129 da Constituição Federal; inc. IV do art. 1º, art. 3º e art. 5º da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985; inc. IV do art. 54, inc. V do art. 201, inc. III do art. 208 e inc. I do art. 210, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PRECEITO COMINATÓRIO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, consistente na oferta regular de vagas para a educação infantil, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela em face do Município de Curitiba, pessoa jurídica de direito público interno, com sede administrativa na Prefeitura Municipal, situada na Rua Avenida Cândido de Abreu, n° 817, nesta cidade e Comarca, na pessoa de seu representante legal, Sua Excelência Gustavo Bonato Fruet, Prefeito Municipal, pelas razões de fato e de direito que passa a expor. 1. BREVE INTRODUÇÃO SOBRE O OBJETO DA DEMANDA Ao longo da petição inicial será narrado, fundamentadamente, que: i) o Município de Curitiba tem o dever constitucional de ofertar serviços educacionais, especificamente voltados à educação infantil (0 a 5 anos); ii) significativa parcela das crianças destinatárias desta prestação estatal não está sendo atendida; iii) cerca de

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Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da ___ Vara da Infância e da Juventude do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba.

O Ministério Público do Estado do Paraná, por sua Promotora de

Justiça que ao final subscreve, no exercício de suas atribuições legais e com

fundamento no inc. III do art. 129 da Constituição Federal; inc. IV do art. 1º, art. 3º e

art. 5º da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985; inc. IV do art. 54, inc. V do art. 201, inc.

III do art. 208 e inc. I do art. 210, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei

8.069/90), vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

COM PRECEITO COMINATÓRIO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER,

consistente na oferta regular de vagas para a educação infantil,

com pedido de antecipação dos efeitos da tutela

em face do Município de Curitiba, pessoa jurídica de direito público interno, com

sede administrativa na Prefeitura Municipal, situada na Rua Avenida Cândido de

Abreu, n° 817, nesta cidade e Comarca, na pessoa de seu representante legal, Sua

Excelência Gustavo Bonato Fruet, Prefeito Municipal, pelas razões de fato e de

direito que passa a expor.

1. BREVE INTRODUÇÃO SOBRE O OBJETO DA DEMANDA

Ao longo da petição inicial será narrado, fundamentadamente, que: i) o

Município de Curitiba tem o dever constitucional de ofertar serviços educacionais,

especificamente voltados à educação infantil (0 a 5 anos); ii) significativa parcela das

crianças destinatárias desta prestação estatal não está sendo atendida; iii) cerca de

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dez mil crianças aguardam, em fila de espera, a oportunidade de receberem a

referida prestação estatal; iv) esta quantificação é questão incontroversa, pois o

Município, expressamente, reconhece a existência desta demanda manifesta, não

atendida; v) esta demanda será gradativamente elevada, em razão da Emenda

Constitucional nº 59/2009, a qual torna obrigatória a frequência, na etapa da pré-

escola, para todas as crianças de 04 e 05 anos de idade; vi) a referida Emenda

Constitucional impõe, desde já, certas posturas aos administradores municipais, ao

estabelecer a universalização do ensino, progressivamente, até 2016; vii) ao longo

de vários anos, buscou-se de todas as maneiras, a solução extrajudicial da questão,

sendo que todas estas tentativas foram insuficientes para a integralização do

atendimento buscado; viii) a pretensão aqui deduzida implica, exclusivamente, no

controle judicial sobre atos administrativos vinculados, estabelecidos, de forma

cogente, no ordenamento jurídico; ix) logo, não se está a pretender o controle sobre

o mérito de atos sobre os quais seja conferida margem de discricionariedade ao

administrador público1.

2. DA COMPETÊNCIA DA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), no inc. III do

art. 208, estabelece que se regem pelas disposições daquela Lei as ações de

responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente,

referentes ao não oferecimento ou oferta irregular de atendimento em creche e pré-

escola.

Especificamente com relação à competência, assim dispõe o inc. IV do

art. 148 da Lei 8.069/90:

Art.148. A Justiça da Infância e Juventude é competente para: [...] IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209;

1 “A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em

seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental”. (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337–SP. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.08.2011)

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Vale dizer. Apenas a competência da Justiça Federal e dos Tribunais

Superiores prefere a da Vara da Infância e da Juventude, conforme dispõe o art.

2092.

Importa o registro que a questão é sedimentada na jurisprudência:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. MENOR PÚBERE. MATRÍCULA EM CURSO SUPLETIVO. ART. 148, IV, C/C ART. 209 DO ECA. COMPETÊNCIA ABSOLUTA DA VARA DA INFÂNCIA E DO ADOLESCENTE. 1. Discute-se no apelo a competência para apreciar mandado de segurança impetrado contra dirigente de instituição de ensino, com o objetivo de se assegurar ao menor de 18 anos matrícula no exame supletivo e, em sendo aprovado, a expedição do certificado de conclusão do ensino médio. 2. A pretensão deduzida na demanda enquadra-se na hipótese contida no art. 148, IV c/c art. 209, do ECA, sendo da competência absoluta do Juízo da Vara da Infância e da Juventude a apreciação das controvérsias fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos vinculados à criança e ao adolescente. Precedentes. 3. Recurso especial provido. (STJ. REsp. 1.217.380-SE. Rel. Min. Castro Meira. J. 10.05.2011)

A análise dos fundamentos em questão demonstra, com segurança, a

competência absoluta do Juízo da Infância e da Juventude, em razão da matéria.

3. DA NARRAÇÃO FÁTICA

3.1 Da relevância do tema

Para a análise do direito que se pleiteia, por meio da presente ação, é

preciso que se tenha a real dimensão da importância do tema tratado. Isto porque a

educação infantil mostra-se essencial ao desenvolvimento pedagógico, social e

neurológico das crianças. Além disso, há aspectos favoráveis, sob o ponto de vista

externo, pois tal espécie de educação contribui sob o prisma social e econômico,

conforme será brevemente demonstrado.

2 Art. 209. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva

ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores.

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Sob o enfoque pedagógico, estudos indicam que a educação infantil

produz reflexos positivos no aproveitamento do ensino fundamental, tanto no que diz

respeito ao nível de aprendizagem, quanto ao combate à evasão escolar.

Ademais, há que se destacar o caso das famílias que não dispõem de

condições financeiras para contratar os serviços de pessoas habilitadas a cuidar de

seus filhos, considerando a hipótese bastante comum de tanto o pai, quanto a mãe

exercerem atividades laborais.

Em circunstâncias como tais, as crianças acabam por permanecer em

casa, sozinhas, sem a assistência de quem quer que seja ou, quando muito, na

companhia de irmãos mais velhos ou de pessoas absolutamente desqualificadas

para as assistirem. Este quadro, além do prejuízo para a formação intelectual, expõe

a criança ao estado de notória vulnerabilidade, caracterizando a situação de risco, a

que todos estão obrigados a prevenir (ECA, art. 70).

A relevância da educação infantil, em seus diversos aspectos, tem sido

objeto de pesquisas, inclusive na área econômica, sendo de se destacar os estudos

desenvolvidos pelo economista James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel.

Segundo o pesquisador, crianças que frequentaram a educação infantil obtiveram

rendas mais elevadas na fase adulta, estiveram menos suscetíveis à prisão,

gravidez precoce e à dependência de programas governamentais de transferência

de renda. Conclui ser a educação infantil o melhor investimento social existente e,

além disso, quanto menor for a idade da criança destinatária da alocação dos

recursos públicos, maior será o retorno para ela e para a sociedade3.

3.2 Dos conceitos necessários à compreensão da política pública voltada à

educação infantil: i) demanda manifesta; ii) demanda absoluta decorrente da

EC 59/2009; iii) Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs)

É preciso que se proceda ao delineamento dos objetos de cada um dos

inquéritos civis que embasam a presente ação civil pública. De início, diga-se que

ambos são remotamente correlatos, porém imediatamente diversos. Explica-se.

3 Referência constante de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas a respeito da educação infantil.

Disponível em http://cps.fgv.br/edu_infancia. Acesso em 26.05.2014.

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A similitude decorre de ambos apurarem a insuficiência da oferta, pelo

Município de Curitiba, de vagas na Educação Infantil. A divisão dos objetos pode ser

assim explicitada:

1. O Inquérito Civil MPPR-0046.11.003305-0 trata da denominada

demanda absoluta. Decorre da obrigatoriedade de oferta de vagas

para todas as crianças de 04 e 05 anos na Educação Infantil4, que a

partir do ano de 2016 serão obrigadas a se matricularem. O tratamento

jurídico do tema prevê a oferta escalonada e progressiva, cuja

universalidade deverá ser atingida até o início daquele ano letivo.

2. O Inquérito Civil nº MPPR-0046.13.000743-1 trata da demanda

manifesta. Decorre do dever, há muito exigível do Poder Público, de

ofertar vagas, também na Educação Infantil, para a faixa etária de 0 a

05 anos, a todas as crianças que, por seus representantes legais,

expressamente solicitaram o serviço5.

A demanda efetivamente existe e revela o quadro de nítida

insuficiência da política pública setorial praticada pelo Município de Curitiba. Chega-

se a esta conclusão em virtude do número de crianças que procuraram a Promotoria

de Proteção à Educação – tanto diretamente, quanto por intermédio dos Conselhos

Tutelares – e relataram a inexistência de vaga para a educação infantil.

A partir de cada uma destas crianças atendidas, foi instaurado

procedimento preparatório individualizado, totalizando mais de 11.000

procedimentos. Tais procedimentos foram reproduzidos na tabela que instrui a

presente petição inicial (doc. 125).

Por outro lado, o próprio Município reconhece o déficit nesta monta,

pois a Secretaria Municipal de Educação declinou, por meio do Ofício nº 608/2013-

PGM-ACE, datado de 24 de abril de 2013, que encaminha a Informação nº 113,

4 O fundamento jurídico está na Emenda Constitucional nº 59/2009 e no inciso IV do artigo 208 da

Constituição Federal. O fundamento fático está no desejo de se oferecer, integralmente, matrícula universal e de frequência obrigatória para a pré-escola, ou seja, 04 e 05 anos de idade. 5 O fundamento da pretensão está no inciso IV do artigo 208 da Constituição Federal.

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datada de 08 de abril de 2013, que o número de crianças em lista de espera, em

março de 2013, correspondia a 10.179, sendo 9.165 de 0 a 3 anos e 1.014 de 4 a 5

anos (doc. 14).

Por fim, cumpre esclarecer que a oferta da educação infantil no

Município de Curitiba se operacionaliza por meio dos estabelecimentos de ensino

denominados Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs).

3.3 Das investigações quanto à inadequação do serviço de educação infantil

prestado pelo Município de Curitiba

As investigações a respeito da oferta de vagas para a educação infantil

no Município de Curitiba tiveram início no ano de 2002. A partir de então, o

Ministério Público passou a desenvolver suas atividades em diferentes frentes, tendo

sempre por finalidade a mensuração do déficit de vagas, assim como a busca da

solução extrajudicial do conflito.

Inicialmente, o objeto da investigação se limitava à demanda manifesta,

sendo que, posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional nº 59/2009, o

objeto foi ampliado para se analisar, também, a oferta necessária à universalização

do ensino da segunda etapa da educação infantil.

Quanto a esta segunda etapa, importa frisar que será de frequência

obrigatória a partir de 2016. Entretanto, a Emenda Constitucional impõe aos

municípios o dever de implementação progressiva, culminando com a

universalização em 2016. A seguir, passa-se a se fazer referência aos principais

momentos deste longo percurso.

Em 2002, foi instaurado o Procedimento de Investigação Preliminar

(PIP), autuado sob o nº 013/2002, perante a Promotoria da Infância e da Juventude,

no qual foram colacionados centenas de documentos e requisições, encaminhados

pelos Conselhos Tutelares, de vagas não atendidas. A par do dimensionamento da

demanda, algumas questões foram resolvidas no plano individual.

Em 2008, o referido Procedimento foi remetido à Promotoria de Justiça

de Proteção à Educação, ocasião em que se determinou a instauração do Inquérito

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Civil, autuado sob o nº 160/2008 – PJEduc6. A partir de então, os Conselhos

Tutelares passaram a encaminhar seus Termos contendo solicitações individuais de

vagas na Educação Infantil a esta Promotoria de Justiça.

No curso do referido Inquérito, sempre se teve como objetivo a

satisfação difusa de tal direito. No entanto, ante a urgência, buscou-se, de forma não

excludente, a solução individual das questões que diuturnamente surgiam.

Este tratamento individual, não prioritário no Inquérito, assumiu

gradativamente proporções bastante expressivas, retratando o quadro caótico da

situação que se está a tratar. Inicialmente enfrentou-se a questão caso a caso e,

posteriormente, por regionais, estabelecendo-se como critério a esfera territorial de

atuação de cada um dos Conselhos Tutelares.

Em 2009, houve certo avanço nas tratativas junto à Municipalidade,

tendo esta, inclusive, assumido o compromisso expresso de ampliar a oferta em

9.283 vagas, até 31 de dezembro de 2011. Expirado o prazo para cumprimento do

compromisso, o Município de Curitiba informou que atingiria a meta avençada,

porém com atraso, afirmando que haviam sido criadas 6.378 vagas até maio de

2012 e que as demais 2.990 vagas encontravam-se em fase de implementação

(Ofício n.º 086/2012-EM).

Em 03 de dezembro de 2012, o Município informou que destas 2.990

vagas faltantes, 2.690 haviam sido providenciadas e, assim, as 300 vagas restantes,

seriam concluídas no primeiro trimestre de 2013 (Ofício 1.796/2012-PGM-ACE). A

efetiva entrega das unidades restantes deu-se no início do ano de 2014.

Entretanto, em que pese o atendimento das vagas acima tratadas,

ainda que intempestivamente, detectou-se demanda ainda maior, o que deu ensejo

à instauração, no início de 2013, do Inquérito Civil nº MPPR-0046.13.000743-1

(Portaria – doc. 02), sem prejuízo da continuidade do acompanhamento do

cumprimento do compromisso no Inquérito inicial.

No curso deste último procedimento, a Secretaria Municipal de

Educação reconheceu, por meio do Ofício nº 608/2013-PGM-ACE, datado de 24 de

abril de 2013 (Informação nº 113, datada de 08 de abril de 2013) que o número de

6 Em março de 2011, com a implementação do Sistema PRO-MP, o Inquérito Civil recebeu o n.º

MPPR-0046.08.000145-9.

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crianças em lista de espera, em março de 2013, correspondia a 10.179 (9.165 de 0 a

3 anos e 1.014 de 4 a 5 anos) – doc. 14, fls. 34-37.

Diante da defasagem observada, e, com base no crescente número de

requisições recepcionadas diariamente na Promotoria de Justiça, foram realizadas,

no segundo semestre de 2013, tratativas junto ao Município, visando firmar Termo

de Ajustamento de Conduta para atendimento à demanda, tanto da manifesta,

quanto da decorrente da EC 59/2009, para a Educação Infantil (crianças de 0 a 05

anos).

Contudo, mesmo oportunizando ao Município a redação de ressalvas à

aplicação de multa, e concedidas reiteradas dilações de prazo para apresentação de

cláusula prevendo os recursos necessários para o cumprimento do Termo, não se

logrou êxito em firmar o acordo, diante da negativa da municipalidade em assinar o

documento.

3.4 Da insuficiência da política pública atual e da necessidade do provimento

judicial destinado à sua adequação

Há uma série de documentos oficiais, fornecidos pelo próprio

Município, que apresentam a política pública7 voltada à educação infantil. A análise

desta política leva à conclusão de sua inadequação, sobretudo em razão de não

contemplar vagas para as crianças que já requereram sua matrícula, e não foram

atendidas, bem como pelo fato de não viabilizar a universalização gradativa prevista

na EC-59. É o que se passa a apontar.

Primeiramente, em expediente subscrito pela Secretária Municipal da

Educação, em 26.03.2013, informou-se ao Ministério Público que a política pública

idealizada contemplaria 3.816 novas vagas (doc. 14). Observa-se, no entanto, que a

demanda manifesta já era de 10.000 vagas. Este cotejo inicial, por si só, já seria

suficiente para indicar o desacerto da política.

7 Segundo Juarez Freitas: “Em outras palavras, as políticas públicas são autênticos programas de

Estado (mais do que governo), que intentam, por meio da articulação eficiente e eficaz dos atores governamentais e sociais, cumprir os objetivos vinculantes da Carta, em ordem a assegurar, com hierarquizações fundamentadas, a efetividade do complexo de direitos fundamentais das gerações presentes e futuras” (FREITAS, Juarez. O controle jurisdicional das políticas públicas e o início do fim do Estado omisso. Interesse Público – IP. Belo Horizonte, ano 16, n. 84, mar./abr. 2014, p. 18).

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Na sequência, importa a análise do Programa de Trabalho da

Secretaria Municipal da Educação, referente ao ano de 2013 (doc. 14 – fl. 32 do

ICP). Vê-se que o Programa destina R$ 345.000,00 para a divulgação de

campanhas informativas e educativas de utilidade pública, ao mesmo tempo em que

reserva R$ 350.000,00 para a ampliação de Centros Municipais de Educação Infantil

– CMEIs. Vale dizer, a mesma importância conferida à publicidade, é despendida à

ampliação de unidades escolares, distorção que vem a evidenciar a

desproporcionalidade entre as rubricas e a justificar a intervenção judicial.

Além disso, previa-se R$ 15.310.000,00 para a construção de nove

Centros Municipais de Educação Infantil, sendo um por regional. Entretanto, verifica-

se que o custo de cada CMEI tem sido de, aproximadamente, R$ 2.000.000,00,

considerando a estrutura necessária para o atendimento de 200 crianças. Logo, há

inconsistência na previsão orçamentária, pois para a construção de nove CMEIs,

seriam necessários, ao menos, R$ 18.000.000,00.

Por outro lado, nove CMEIS atenderiam, no máximo, 1.800 crianças,

frente à demanda manifesta de 10.000 crianças. Esta é política que o Município

pretendia implementar para atender a demanda incontroversa de mais de 10.000

crianças. É preciso que o Judiciário intervenha para suprir esta omissão.

O mais desalentador é que nem mesmo esta política insatisfatória foi

implementada, pois no ano de 2013, o Município limitou-se a inaugurar dois CMEIs,

os quais tiveram suas edificações iniciadas na gestão anterior. Esta política pública,

destinada ao atendimento que deveria receber a prioridade absoluta, está a merecer

o controle judicial.

A insuficiência aqui relatada apresenta outros desdobramentos. Para

2014, o Programa de Trabalho para a área da educação é ainda mais preocupante,

pois houve redução das verbas para a construção dos CMEIs, de R$ 15.310.000,00

para R$ 3.513.000,00. O pior ainda é que a previsão ali constante seria de

construção de 22 CMEIs, o que implicaria na despesa de R$ 44.000.000,00, sendo

que foi previsto apenas R$ 3.513.000,00, ou seja, menos de 10% do necessário

(doc. 48). É por mais esta inconsistência que o Ministério Público judicializa a

questão.

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Outro ponto está em que se estimou, para 2014, a importância de R$

3.513.000,00 para a construção de 20 CMEIs (e não mais 22, conforme constava do

Plano anterior). Entretanto, apenas para a reforma e ampliação de 02 CMEIs está

previsto o orçamento de R$ 6.538.000,00, conforme foi constatado pelo Núcleo de

Auditoria do Ministério Público (doc. 110). Ou seja, para construir 20, custa R$ 3

milhões e para reformar 02, custa R$ 6 milhões. Constata-se a completa

insubsistência da política.

A política pública idealizada pelo Município mostra-se absolutamente

inapta a atender a elevada demanda existente em relação à educação infantil.

Considera-se, para tanto, não somente a lista de espera fornecida pelo próprio

Município, mas também fontes outras de informação que trouxeram ao Ministério

Público os elementos necessários para a formação de sua convicção no sentido de

que os direitos das crianças estão efetivamente sendo violados e, não somente isto,

o Poder Público não se mostra hábil a apresentar uma política pública

definitivamente resolutiva.

Uma destas fontes constitui-se nos atendimentos individuais realizados

pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares, os quais geraram as planilhas

de atendimento constantes dos documentos n. 444 e 445, compostas pelos dados

pessoais das crianças que registraram a recusa do Município em aceitar a matrícula

na rede municipal da educação infantil. Mais de 10.000 atendimentos foram

realizados nesse mesmo sentido.

É bem verdade que parcela destas crianças já foram admitidas na

educação infantil, outras tantas avançaram na idade e não tiveram a oportunidade

assegurada, mas, sob o aspecto quantitativo, a lista permanece incólume, pois

outras crianças vieram a integrá-la, na mesma proporção, sem contar com as

crianças que sequer procuraram por este direito, por absoluto desconhecimento

acerca da questão.

O Município de Curitiba sempre foi cientificado destes atendimentos

individuais, pois, mensalmente, era-lhe encaminhada a lista atualizada das crianças

que pretendiam a matrícula (doc. 440).

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Outro fator, e aqui se está a tratar de expedientes bastante atuais, diz

respeito aos Ofícios dos Conselhos Tutelares, dos quais o Ministério Público tomou

ciência, dando conta da falta de vagas na educação infantil:

Ofícios Conselhos Tutelares - Falta de vagas

Ofício n.º Origem Documento n.º

s/n Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares

24

s/n Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares

35

s/n Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares

63

TE 2013008699 Conselho Tutelar - Regional Matriz 64

TE 2014005302 Conselho Tutelar - Regional Santa Felicidade 76

TE 2014005467 Conselho Tutelar - Regional Santa Felicidade 78

s/n Conselho Tutelar - Regional Boqueirao 114

TE 2014010381 Conselho Tutelar - Regional Matriz 114

TE 2014005467 Conselho Tutelar - Regional Santa Felicidade 114

s/n Manifesto da Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares

114

s/n

Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares para o Vereador Jorge Bernardi com cópia para o Vereador Mauro José Ignacio - Presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal de Curitiba

117

s/n Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares para o Prefeito Municipal Gustavo Fruet

117

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Ressalta-se que estes Ofícios informam sobre a necessidade das

vagas na educação infantil, em uma perspectiva coletiva. Lado outro, conforme foi

visto acima, há milhares de atendimentos, realizados pelo Ministério Público, acerca

da necessidade não atendida de acesso à educação infantil, em uma perspectiva

individual. Consta do doc. 125 o mapa destes atendimentos individuais, totalizando

mais de 11.000 casos.

Observa-se, quanto à demanda absoluta, a inconsistência da política

pública voltada ao atendimento gradual da demanda de crianças de quatro a cinco

anos, até 2016, considerando que, até lá, esta etapa da educação infantil será

obrigatória e, consequentemente, a oferta deverá ser universalizada. Passa-se a

análise dessas inconsistências.

No plano plurianual (PPA – 2014/2017), contempla-se a construção de

35 CMEIs (doc. 49), o que atenderia, na melhor das hipóteses, 7.000 crianças,

diante de um quadro de 10.000 crianças já inscritas em lista de espera e uma

demanda a se consolidar até 2016 de mais de 15.000 crianças. Esta insuficiência da

política pública foi objeto de análise e encaminhamento à Câmara dos Vereadores

de Curitiba, em oportunidades distintas, por ocasião da análise das diversas leis

orçamentárias (docs. 110, 324 e 363).

Sobreleva a gravidade do ocorrido, o fato do Exmo. Sr. Prefeito

Municipal ter sido, formal e tempestivamente, cientificado de que os recursos

deveriam estar previstos no Projeto de Lei relativo ao referido Plano Plurianual

(Ofício nº 542/2013-PJEduc – doc. 307):

[...] alertar Vossa Excelência sobre o dever do Poder Executivo Municipal de prever recursos no seu respectivo Projeto de Lei de Plano Plurianual – PLPPA a ser encaminhado à Câmara de Vereadores até, no mais tardar, setembro do corrente ano [...]

Ainda assim, não o fez!

A demanda estimada para a educação infantil, na faixa etária de quatro

e cinco anos, é de 43.827 (doc. 27). Estima o Município que, em 2015, 25.514

crianças estariam matriculadas na rede municipal. Entretanto, segundo os dados

fornecidos pelo IBGE, em 2013, apenas 11.394 crianças estavam matriculadas. Não

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se sabe a razão pela qual o Município estima que em 2015 haveriam 25.514

crianças matriculadas na rede municipal.

A partir dessa premissa equivocada, o Município conclui que a

demanda a ser suprida em 2015 seria de 4.038, quando, na verdade, levando-se em

consideração os dados oficiais fornecidos pelo IPARDES/IBGE, haveria o déficit de

15.886 vagas. Estes dados foram coletados e analisados pela Subprocuradoria

Geral de Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional (doc. 30). O raciocínio

é simples:

População de crianças com idade de 04 e 05 anos

residentes no Município de Curitiba

42.998

Crianças com idade de 04 e 05 anos, residentes no

Município de Curitiba, matriculadas nas redes pública e

privada

27.132

Crianças com idade de 04 e 05 anos, residentes no

Município de Curitiba, não matriculadas na educação infantil

15.886

36,9% do total

Fonte: matrículas IPARDES/SEED, população censitária e estimada, IBGE/DATASUS

– Ano de 2012

Outro ponto está em que a estratégia vislumbrada pelo Município para

o atendimento desta demanda (subestimada), para crianças de quatro e cinco anos,

valer-se-ia da utilização de salas de aula localizadas em estabelecimentos de ensino

fundamental (para crianças e adolescentes entre seis e quatorze anos), as quais se

encontrariam ociosas.

Sabe-se, no entanto, que não é esta a melhor forma de atendimento,

pois o compartilhamento do estabelecimento com crianças maiores gera sempre

preocupação em relação à integridade física, psicológica e nutricional. Trata-se,

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como se sabe, de etapas educacionais distintas, merecendo, cada qual,

encaminhamentos compatíveis com suas peculiaridades.

A política pública voltada à educação não tem recebido o tratamento

prioritário pelo Município de Curitiba, conforme se observa, também, das verbas

destinadas a tal segmento. Enquanto em 2013, a educação recebeu 17.11% do

orçamento, em 2014, exercício correspondente ao primeiro ano de orçamento

elaborado pela atual gestão municipal, a previsão foi de 16,59%, o que representa

variação, a menor, de 15,10% das verbas (Gazeta do Povo. Edição de 07.10.2013 –

doc. 34). A proposta orçamentária a que se alude encontra-se no documento nº 48.

O Conselho Tutelar do Bairro de Santa Felicidade, também preocupado

com a questão, indagou ao Município acerca da construção de novos CMEIs, tendo

em vista o recebimento constante de reclamações da população, em razão da

insuficiência de vagas na educação infantil. A resposta merece destaque (doc. 76 –

fl. 317):

Ctba, 10 de janeiro de 2014. Informamos que não há liberações de reformas e/ou construção de CMEIs, até o presente momento, para o ano de 2014, na Regional de Santa Felicidade.

Torna-se cada vez mais evidente que, sem a intervenção judicial, a

questão jamais será resolvida.

Em conclusão, vê-se que ainda que fosse facultado ao Município

elastecer seu prazo para o cumprimento de um dever constitucional, em relação ao

qual há muito está inadimplente, a política pública que pretende implementar não

possui fundamento na lei orçamentária. Vale dizer, não viabiliza nem mesmo o

pouco que deseja fazer.

Constata-se, pois, a insuficiência da política pública municipal para a

educação infantil, nos exatos termos a que faz alusão Ana Paula de Barcellos:

Não se trata, repita-se, de julgar entre eficiências maiores ou menores, nem de substituir a avaliação política da autoridade democraticamente eleita pela do juiz, mas apenas de eliminar as hipóteses de ineficiência comprovada. Assim, se houver consenso técnico-científico de que o meio escolhido pelo Poder Público é ineficiente, ele será também juridicamente inválido, pois não

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se poderá considerá-lo um meio legitimamente destinado a realizar o fim constitucional8.

É exatamente esta ineficiência da política pública que se constatou ao

longo do Inquérito Civil.

3.5 Tentativas inexitosas de solução extrajudicial do conflito

No decorrer das investigações, várias informações foram obtidas, o que

permitiu ao Ministério Público conhecer da política pública ofertada, contrapô-la à

demanda existente e constatar que aquilo que vem sendo feito não resolve a

situação. O encaminhamento para o ajuizamento da presente ação judicial, no

entanto, foi antecedido de sucessivas tentativas de composição extrajudicial do

conflito, por meio da celebração de termo de ajustamento de conduta. Todavia,

todas as tentativas foram inexitosas.

Nestas tentativas de ajustamento da conduta, sempre se buscou a

solução extrajudicial do litígio, de tal forma que todos os óbices administrativos e

financeiros que foram apresentados pela municipalidade tenham sido devidamente

considerados.

Bem demonstra o que se alega o primeiro ato praticado no curso do

Inquérito Civil, consistente na comunicação formal à Secretaria Municipal da

Educação, acerca da instauração e do objeto da investigação (doc. 03). Da mesma

forma, as tratativas mantidas com a Secretaria Municipal da Educação, desde o

início da atual gestão municipal (doc. 04).

Em reunião ocorrida em 25 de abril de 2013, o Ministério Público

reiterou pessoalmente à Secretária Municipal da Educação a intenção de se firmar

Termo de Ajustamento de Conduta (doc. 15). O mesmo ocorreu em reunião

realizada em 04 de setembro de 2013, ocasião em que, inclusive, foram

apresentados à Sra. Secretária Municipal da Educação, os levantamentos encetados

pela Subprocuradoria Geral de Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional

8 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas

públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, jan.-mar./2007, Salvador, p. 24.

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– MPPR (doc. 31). Os respectivos documentos foram disponibilizados à Secretaria

por meio digital (doc. 32).

Em 22 de outubro de 2013, houve nova reunião com o Município, tendo

por pauta a possibilidade de ser celebrado o Termo de Ajustamento de Conduta

(doc. 36). A partir desta reunião, tomando por base o que nela havia restado

acordado, o Ministério Público reapresentou proposta de TAC (docs. 40 a 44).

Não obstante, além da sistemática recusa, o Município de Curitiba

chegou a propor o atendimento parcial da demanda manifesta, ainda assim de

maneira escalonada, até 2016, pleiteando que o Ministério Público concordasse com

esta alternativa, como se lhe fosse lícito transigir acerca de direitos indisponíveis9,

ainda mais quando da titularidade de crianças. É o teor da contraproposta, conforme

redação da cláusula 1.2 da minuta do TAC (doc. 57 – fl. 251):

Atendimento, da demanda manifesta, comprovada através do reconhecimento, pela Prefeitura Municipal de Curitiba, por meio do documento intitulado “Informações – Educação Infantil 2013”, entregue em 25/04/2013 à Promotoria de Justiça, da defasagem, na Educação Infantil, de 9.165 vagas para a etapa de 0 a 3 anos, e de 1.014 vagas para a faixa etária de 04 e 05 anos (totalizando 10.179 vagas), em, no mínimo 50% de crianças na faixa etária compreendida entre 0 (zero) a 03 (três) anos de idade no período entre 2013 e 2016 [...] (destacou-se)

Outro aspecto que leva à conclusão quanto à inadmissibilidade da

contraproposta são os números relativos à população infantil, de 04 e 05 anos,

utilizados pelo Município (cláusula 1.1 – doc. 57 – fls. 248/250). Nesta

contraproposta do Município, partiu-se de premissas equivocadas, pois se

considerou que a população de crianças “de 04 a 05 anos” seria de 21.282 no ano

de 2013 e será de 21.585 no ano de 2016. Assim, a partir destes dados, concluiu

que 19.520 crianças, “de 04 a 05 anos”, estão matriculadas na pré-escola,

considerando a rede particular e a pública de ensino.

Entrementes, o recorte efetuado para a obtenção de tais dados é

nitidamente falso. Explica-se. A fase pré-escolar destina-se às crianças nascidas em

9 A indisponibilidade de tal direito foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal: “A educação infantil

representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV)”. (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337–SÃO PAULO. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.08.2011)

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dois anos, atualmente, aquelas nascidas nos anos de 2009 e 2010. Logo, destina-se

às crianças que completarem 04 anos ao longo de 2014 e também àquelas que

completarem 05 anos em 2014. Não foi este o raciocínio utilizado pelo Município.

De forma manifestamente equivocada, o Município afastou de seu

cômputo as crianças com 03 anos completos e que completarão 04 anos ao longo

do ano letivo de 2016, as quais, como se sabe, também devem ingressar na pré-

escola. Na verdade, a base estatística deve se ater aos dois anos de nascimento e

não aos meses de aniversário.

Assim, a população de crianças que deve ingressar na educação pré-

escolar é de 42.990 em 2012, segundo dados do IPARDES/SEED, para matrículas e

IBGE/DATASUS, para população censitária e estimada (docs. 30 e 124). Destas,

27.756 estão matriculadas nas redes pública e privada de ensino, conforme os

resultados finais do censo escolar 2013, publicado pelo INEP10.

Observa-se, também, na contraproposta, a retirada da expressão “de

forma imediata” quanto ao atendimento da demanda manifesta, com a substituição

pelo “atendimento de, no mínimo, 50% desta demanda até o ano de 2016”.

Definitivamente, a proposta modificativa não poderia ser aceita, seja por representar

disponibilidade indevida do interesse público, seja por contrariar o próprio texto

constitucional.

Ressalta-se que a modificação diz respeito à demanda manifesta e,

assim, conforme foi visto, deve ser atendida de pronto. Não se está a tratar,

portanto, da demanda absoluta, para a qual a diretriz constitucional admite a

progressividade no atendimento, chegando-se à integralidade em 2016.

Além disso, na contraproposta ofertada pela municipalidade, em

relação ao Termo de Ajustamento de Conduta, não foi detalhada a cláusula quarta,

que trata dos recursos públicos necessários à prestação do serviço, assim como foi

suprimida a cláusula penal, o que evidencia a não disposição do Município em

celebrar o compromisso ou, ainda que venha a firmá-lo, não o adimplir (doc. 57).

Deve ser considerado que seria notoriamente temerário que o

Ministério Público viesse a definir o ajustamento da conduta, relativa à omissão

histórica do Poder Público frente à efetivação de direitos fundamentais, sem que

10

Disponível em: http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-matricula

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houvesse meio de compelir o gestor público ao adimplemento e sem que houvesse

meios adequados de fiscalização do cumprimento do quanto convencionado, tanto

pelo Ministério Público, quanto pelos demais controladores, dentre os quais se

sobressai o decorrente do controle social.

O Ministério Público até mesmo supôs que tal posicionamento não

representaria a vontade do Sr. Prefeito Municipal, razão pela qual se fez questão de

que a problemática chegasse formalmente ao seu conhecimento, solicitando

audiência com a referida Autoridade, para a explanação dos fatos. Extrai-se do

despacho proferido no respectivo Inquérito Civil (doc. 84):

Entretanto, por cautela, pondera-se que todos estes acontecimentos devem ser levados formalmente ao conhecimento do Chefe do Poder, responsável último pela definição das políticas públicas e pelos atos, comissivos e omissivos, praticados dentro de sua esfera de poder. Quer-se, com isto, inclusive, facultar-lhe a manifestação.

Naquela ocasião, relatou-se todo o ocorrido, a relutância do Município

em atender seu dever constitucional, as tentativas frustradas de composição

extrajudicial e a inconsistência da proposta formulada pelo Município. De tudo isto, o

Sr. Prefeito tomou ciência. Ao final, formalizou-se a última oportunidade para a

celebração do Termo de Ajustamento de Conduta (Ofício 255/2014-PJEduc e

Despacho 73/2014-PJEduc). Destaca-se do despacho:

Diante do exposto, determina-se à Secretaria desta Promotoria de Justiça que oficie ao Senhor Prefeito Municipal, para que, no prazo de trinta dias: I – Seja cientificado de todo o ocorrido, desde a insuficiência da política pública até a relutância em se ajustar o ilícito, apesar da insistência e do esforço do Ministério Público em compor, desde que dentro da legalidade; II – Manifeste-se, expressamente, acerca da adesão, ou não, à proposta de Termo de Ajustamento de Conduta [...]

Este Ofício foi instruído com os principais documentos anexados ao

respectivo Inquérito Civil e entregue pessoalmente ao Sr. Prefeito.

Esta postura conciliadora do Ministério Público, diga-se, fez-se

constante ao longo de todo o Inquérito Civil, pois o Sr. Prefeito já havia sido

formalmente comunicado da existência do Inquérito e da necessidade de adequação

da política pública voltada à educação infantil, antes mesmo de sua posse no cargo,

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o que foi reiterado nos primeiros dias de seu mandato (doc. 254). O mesmo ocorreu

em relação à Sra. Secretária Municipal de Educação (doc. 255).

Em que pese tudo isso, a resposta do Município foi dada pela

Procuradoria Jurídica que, por sua vez, limitou-se a encaminhar pronunciamento da

Secretaria Municipal da Educação, no sentido de declarar que não há interesse na

celebração do TAC, pois a política pública existente, sob a ótica dele, está

adequada.

Destaca-se que, se de um lado o Município reconhece que existem

mais de dez mil crianças, já em lista de espera, sem educação infantil; de outro,

assevera que a política pública da educação infantil é “planejada, eficiente e com

metas para os próximos anos ...” (doc. 111). É o exemplo típico de discurso

insubsistente, pois distante dos fatos.

Enfim, resta claro todo o esforço despendido, desde o ano de 2008,

visando à garantia ao direito à educação infantil das crianças do Município de

Curitiba. Se tal situação não justifica a interferência judicial, não se imagina o que

justificaria.

3.6 Da vulnerabilidade da lista de espera em razão da ausência de

transparência

Outra demonstração da precariedade da política pública praticada

advém da fragilidade operacional que envolve o gerenciamento da lista de espera

para a educação infantil.

Esta lista de espera, apesar de divulgada, não é transparente, pois não

contempla os nomes das crianças que desejam ingressar na educação infantil.

Trata-se, portanto, de lista quantitativa, com grau de confiabilidade duvidoso, pois a

omissão dos nomes impede o exercício do controle em suas mais diversas formas,

principalmente o controle social.

Abre-se parênteses. A mesma obscuridade ocorre em relação ao

sistema SIOPE, meio eletrônico pelo qual se publiciza as verbas referentes à

educação, pois se constatou que o Município de Curitiba não está a alimentar este

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sistema, conforme consta do Relatório de Auditoria (doc. 110). As consequências

disso são óbvias. Fecha-se parênteses.

Outro ponto está em que sempre se desejou que as famílias

interessadas obtivessem protocolo do requerimento de ingresso na lista de espera,

para que fosse possível o acompanhamento individualizado da situação. Esta

pretensão, tantas vezes recepcionada pelo Município, jamais foi atendida, não

ultrapassando de um projeto piloto, ainda incipiente (doc. 22). Em resumo, não se

sabe o andamento da lista.

Observa-se que tal prática permite, inclusive, a omissão de dados e,

ainda, a possibilidade de eventual atendimento de famílias por critérios de ordem

meramente pessoal.

3.7 Atuação democrática do Ministério Público

O presente tópico se presta a demonstrar que a pretensão jurisdicional

ora deduzida, em razão do viés democrático que pautou a atuação do Ministério

Público ao longo da instrução, confere legitimidade à futura sentença judicial.

O Ministério Público, em todos os momentos, procurou legitimar sua

atuação, dialogando com o Município, com as famílias preteridas em seus direitos,

com os Conselhos Tutelares que estiveram na linha de frente da aludida situação de

carência social, assim como com os Conselhos Gestores das Políticas Públicas.

Esta postura pode ser exemplificada com o compartilhamento das

informações obtidas ao longo do Inquérito Civil com outros segmentos sociais, a

exemplo dos Conselhos Tutelares e do Conselho Municipal da Educação (docs. 18 a

21). Outro exemplo está no relatório apresentado pelo Ministério Público aos

membros da Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares de Curitiba

(doc. 25).

Em sequência, menciona-se o encaminhamento constante nos

documentos 45 (ao Conselho Municipal de Educação) e 46 (ao Presidente da

Comissão Temática da Educação dos Conselhos Tutelares de Curitiba).

É importante destacar que no decorrer do Inquérito Civil foram

realizadas reuniões periódicas com os Conselhos Tutelares, tendo por pauta a

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educação infantil no Município de Curitiba, conforme foi discriminado na tabela

constante do doc. 436. Igualmente, os Conselhos Tutelares foram informados, por

ofício, de todos os acontecimentos relevantes no âmbito do Inquérito Civil, de

maneira a possibilitar a manifestação (doc. 435). Outros órgãos também foram

formalmente comunicados, assim como cada um dos vereadores (doc. 439).

Importa também o registro da análise sobre a insuficiência das leis

orçamentárias (doc. 52), dentre elas o PPA 2014-2017, a qual foi encaminhada à

Câmara dos Vereadores (individualmente, a cada um dos vereadores), assim como

aos Conselheiros Tutelares e ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do

Adolescente (Ofícios 767 a 850/2013-PJEduc - docs. 53 a 56).

É relevante destacar que esta prática procedimental do Ministério

Público, consistente no compartilhamento constante das informações com diversos

segmentos, para além de conferir legitimidade à atuação, veio a corroborar com a

coleta de dados e com a constatação das carências, em razão do canal de

interlocução estabelecido com diferentes setores sociais, em decorrência desta

forma de agir. Prova disso está nos inúmeros encaminhamentos de informações e

documentos dos quais o Ministério Público foi destinatário.

Deduz-se do que foi exposto, que as decisões aqui tomadas, que

levaram à busca do provimento judicial, não decorreram de análises isoladas e

sectárias do Ministério Público, mas, ao contrário, foram construídas legítima e

democraticamente com órgãos representativos especializados.

4. DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

O direito à educação infantil possui fundamento na Constituição

Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional. Além disso, por se constituir em direito fundamental, é

assegurado por uma série de normas principiológicas. É o que se passa a examinar.

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4.1 Constituição Federal (Princípio da Prioridade Absoluta)

O art. 227 da Constituição Federal assegura, à criança e ao

adolescente, inúmeros direitos, dentre os quais a educação. Por outro lado,

estabelece o dever de se conferir prioridade absoluta na implantação de políticas

públicas voltadas à sua efetividade:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (destacou-se) [...]

Vale ressaltar que esta norma constitucional, por tratar de direitos

fundamentais, tem aplicação imediata, consoante a determinação do § 1º do art. 5º

da Constituição Federal e, portanto, independe de regulamentação: “As normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A Constituição Federal estabelece em seus artigos 6º e 205, que a

Educação é um direito social, a todos destinado, sendo dever do Estado e da família

sua garantia, visando à formação plena do cidadão:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [...] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Especificamente com relação às crianças de 0 a 5 anos de idade,

reforça-se, no inc. IV do art. 208, o dever do Estado em garanti-lo mediante a oferta

da Educação Infantil, ou seja, de vagas em creche (0 a 3 anos) e pré-escola (4 e 5

anos), sendo este direito público subjetivo, cuja violação, por força dos §§ 1º e 2º do

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mesmo artigo, seja pela ausência de oferta, ou mesmo por sua execução irregular,

leia-se no caso, a irregularidade como insuficiência, enseja a responsabilização da

autoridade competente:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; [...] § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

Evidencia-se a obrigatoriedade do município em garantir, com

prioridade, a Educação Infantil, pelo contido no art. 211 da Constituição, o que deve

se concretizar por meio da igualdade de acesso e oferta de serviço gratuito de

qualidade em estabelecimentos de ensino oficiais, conforme comando constitucional

do art. 206:

Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. [...] § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. [...] Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...] IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; [...] VII - garantia de padrão de qualidade.

Como foi visto, a obrigatoriedade do município em fornecer vagas em

creche e pré-escola públicas de forma gratuita e com qualidade decorre de

determinação constitucional, não se podendo justificar sua falta.

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4.2 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996)

Além de reforçar grande parte dos comandos constitucionais já

apontados, como por exemplo, nos arts. 4º e 11, a Lei 9.394/1996 ressalta a

importância da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, além de

se constituir em instrumento complementar à educação familiar, visando o

desenvolvimento integral da criança até os seus 05 anos de idade nos aspectos

físico, psicológico, intelectual e social:

Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma: a) pré-escola; b) ensino fundamental; c) ensino médio; II - educação infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade; [...] Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: [...] V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. [...] Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; [...] Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. [...] Art. 30. A educação infantil será oferecida em: I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;

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II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.

Vê-se, assim, que a LDB concebe a educação infantil como etapa

essencial do desenvolvimento das crianças, atribui aos municípios a

responsabilidade pela sua oferta e assegura, a todos, independentemente da classe

social, acesso gratuito a esta fase da educação.

4.3 Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90 (doutrina da proteção

integral)

O art. 1º do ECA institui a doutrina da proteção integral, concebida a

partir de um sistema de proteção prioritário dos direitos fundamentais das crianças e

adolescentes, oponíveis ao Estado, à família e à sociedade. Determina a atuação

conjunta, para que seja disponibilizada à população infanto-juvenil toda assistência

necessária para o seu completo desenvolvimento. Dentre os direitos que compõem

este sistema inclui-se, por óbvio, o direito à educação.

Em decorrência da posição doutrinária assumida, o ECA elenca a

obrigatoriedade em se assegurar todas as oportunidades e facilidades para o

desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças, em condições

de liberdade e de dignidade:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Os artigos 53 e 54 repetem a determinação constitucional de que a

garantia do direito à educação é dever do Estado, sendo efetivado, no caso da

Educação Infantil, por meio do acesso à creche e à pré-escola:

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...] V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.

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[...] Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: [...] IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; [...] § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente.

A mesma Lei dispõe, inclusive, que a prioridade absoluta para a

efetivação dos direitos referentes à, dentre outros, educação, compreende a

destinação privilegiada de recursos públicos, preferência na formulação e execução

de políticas sociais públicas e precedência de atendimento nos serviços públicos:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Não restando dúvidas quanto à responsabilidade do poder público, no

caso, do executivo municipal, de ofertar vagas na educação infantil para a efetivação

do direito à educação das crianças do município, e, diante do princípio da prioridade

absoluta, a execução desta política pública deve ser tida como prioridade, sendo

imotivada eventual alegação de impossibilidade de a municipalidade cumprir com

sua obrigação, exaustiva e repetidamente constante nos diplomas legais expostos.

Em síntese, as normas acima reproduzidas e analisadas permitem a

conclusão de que a política pública em questão é exigível do poder público.

Eventuais óbices a tal pretensão não se sustentam, conforme argumentos a seguir

adiantados.

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4.4 Da inexistência de ofensa à tripartição dos poderes

O provimento judicial que se pleiteia, de forma alguma, implica na

ingerência indevida do Poder Judiciário no Poder Executivo. Há que se considerar,

como desde o início se fez, que não se traz à discussão aspectos discricionários da

gestão pública, mas da efetivação de direitos fundamentais, expressos na

Constituição, em relação aos quais não foi conferida qualquer margem de

discricionariedade ao administrador público.

Mesmo porque, as políticas públicas não se tratam de “protocolares

agendas daquilo que os governos pretendem realizar, isto é, simples programas

governamentais, não de Estado”11, já que “a liberdade administrativa, em matéria de

políticas públicas, só pode ser exercida „em razão e nos limites‟ das prioridades

constitucionais”12.

Como corolário de tal constatação, tem-se como perfeitamente possível

a tutela jurisdicional, tendente a determinar a adequação de política pública, a qual,

da forma como foi concebida, não atende aos fins constitucionais a que se presta e,

por conseguinte, traz lesão irreparável a pessoas em idade de formação.

Transcreve-se a abordagem de Ana Paula de Barcellos:

Nesse contexto, compete à Administração Pública efetivar os comandos gerais contidos na ordem jurídica e, para isso, cabe-lhe implementar ações e programas dos mais diferentes tipos, garantir a prestação de determinados serviços, etc. Esse conjunto de atividades pode ser identificado como “políticas públicas”. É fácil perceber que apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas vezes detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção13.

11

FREITAS, Juarez. O controle jurisdicional das políticas públicas e o início do fim do Estado omisso. Interesse Público – IP. Belo Horizonte, ano 16, n. 84, mar./abr. 2014, p. 20. 12

FREITAS, Juarez. O controle jurisdicional das políticas públicas e o início do fim do Estado omisso. Interesse Público – IP. Belo Horizonte, ano 16, n. 84, mar./abr. 2014, p. 23. 13

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, jan.-mar./2007, Salvador, p. 11.

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O STF já tratou desta possibilidade de controle judicial e concluiu pela

não existência de ofensa à tripartição dos poderes, em situações como a aqui

postulada:

Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político--jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337–SP. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.08.2011)

Extrai-se do voto do Relator:

Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.

A doutrina inclinou-se pela atuação judicial nestes mesmos termos.

Segundo Daniel Sarmento:

Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, o que impedia que servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações positivas do Estado. As intervenções

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judiciais neste campo eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais. Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o país, tornaram-se freqüentes as decisões judiciais determinando a entrega de prestações materiais aos jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados. Trata-se de uma mudança altamente positiva, que deve ser celebrada. Atualmente, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro „leva a sério‟ os direitos sociais, tratando-os como autênticos direitos fundamentais, e a via judicial parece ter sido definitivamente incorporada ao arsenal dos instrumentos à disposição dos cidadãos para a luta em prol da inclusão social e da garantia da vida digna. [...] (SARMENTO, Daniel. Reserva do Possível e Mínimo Existencial. In: Comentários à Constituição Federal de 1988. São Paulo: Gen Forense, 2009, p. 371/388)

Em conclusão, pode-se afirmar que a adequação da política pública

voltada à educação infantil, nos termos postulados e diante do contexto

apresentado, não viola o princípio constitucional da tripartição dos poderes.

4.5 Da não aplicação da teoria da reserva do possível

O princípio da reserva do possível estabelece restrição à exigibilidade

de certas políticas públicas, em virtude de limitações de ordem orçamentária.

Prevalece, portanto, nesta ótica, o custo dos direitos, em detrimento de sua

realização.

É bem verdade que tal teoria é dotada de grande racionalidade, pois

seria inconcebível a existência de prestações estatais, sem que houvesse a

correspondente fonte de custeio. Entretanto, há relevantes fatores a serem

considerados no caso em concreto, os quais levam à conclusão da não

aplicabilidade de tal teoria.

Primeiramente, seria inviável invocar razões de ordem financeira,

diante da determinação constitucional de que a área destinada à infância possui

tratamento prioritário, e não somente isto, de forma absoluta. Vale dizer, a existência

de outras políticas, em segmentos diversos, não relativiza o aludido vetor

constitucional que, incondicionalmente, vincula o administrador público.

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Em segundo lugar, a restrição de cunho orçamentário não serve como

justificativa à restrição de direitos fundamentais, especialmente diante de quadro de

execução orçamentária em que se contempla a remuneração de cargos em

comissão, de construção de pontes exóticas e de destinação desproporcional de

verbas públicas a eventos esportivos.

É o que sustenta o Min. Herman Benjamin:

No campo dos direitos individuais e sociais de absoluta prioridade, o juiz não deve se impressionar nem se sensibilizar com alegações de conveniência e oportunidade trazidas pelo administrador relapso. A ser diferente, estaria o Judiciário a fazer juízo de valor ou político em esfera na qual o legislador não lhe deixou outra possibilidade de decidir que não seja a de exigir o imediato e cabal cumprimento dos deveres, completamente vinculados, da Administração Pública. Se um direito é qualificado pelo legislador como absoluta prioridade, deixa de integrar o universo de incidência da reserva do possível, já que a sua possibilidade é, preambular e obrigatoriamente, fixada pela Constituição e pela lei14.

Importa a menção de que a reserva do possível, ainda que tenha sua

pertinência relativa, conforme acima já se indicou, encontra limitação insuperável no

conjunto de direitos fundamentais que integram o núcleo do denominado mínimo

existencial.

Insere-se nesse conceito:

[...] um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337–SP. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.08.2011)

Especificamente sobre a política pública para a educação, Ana Paula

de Barcellos bem posiciona a reserva do possível, em face de políticas voltadas à

concretização de direitos de tal envergadura:

14

STJ. REsp. 440.502/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. J. 15.12.2009.

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Prosseguindo no exemplo da educação, é certo que todos os recursos previstos nos arts. 195, 198, par. 2º e 212 da Constituição terão de ser investidos em serviços de educação pelos diferentes entes federativos. Se esse investimento, porém, não for suficiente para produzir o resultado esperado – a oferta de educação fundamental gratuita para toda a população –, outros recursos além desse mínimo terão de ser aplicados em políticas públicas até que a meta seja alcançada. Por outro lado, se o resultado em questão for atingido com um investimento menor do que o mínimo previsto constitucionalmente, o restante dos recursos continuará a ser aplicado em educação, agora na realização de outras metas previstas pelo texto constitucional, como, e.g., a progressiva universalização do ensino médio etc.15

É fundamental que se considere o dado objetivo de que o direito que se

pretende efetivar não representa impacto significativo no orçamento municipal. Isto

porque, atualmente há 34.192 crianças matriculadas na educação infantil, pela rede

pública (doc. 119). Estas crianças custam ao município R$ 329.670.000,00 ao ano, o

que equivale a R$ 9.641,73 por criança/ano (doc. 110).

Logo, se for dado atendimento imediato às crianças em lista de espera

(demanda manifesta), cerca de 10.000 crianças, haveria o incremento de R$

96.417.300,00 no orçamento e, para se atender à demanda futura, decorrente da EC

59/2009, cerca de 14.000 crianças (já descontadas as 1.000 crianças que estão na

lista de espera, na faixa etária de 04 e 05 anos), ter-se-ia a elevação de R$

134.984.220,00.

Toma-se por balizamento o orçamento de Curitiba, para o ano de 2014,

no importe de R$ 7.200.000.000,00. Assim, para a demanda manifesta, o acréscimo

representa 1,34% do orçamento global e para a demanda futura, 1,87%. Parece

extremamente pequena a elevação frente aos benefícios de que se está a tratar.

Considere-se, ainda, que estes valores estão sendo estimados a maior,

pois deles devem ser deduzidos os valores decorrentes de uma economia de escala,

assim como repasses federais destinados exatamente à implementação de tais

políticas, e, ainda, sobretudo, os repasses havidos do FUNDEB quando a criança é

matriculada.

Este último valor, fixado anualmente, era de R$ 2.985,31, por

criança/ano, em 2013, para a etapa creche e pré-escola, período integral, nos

15

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, jan.-mar./2007, Salvador, p. 21.

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termos do Anexo I, da Portaria Interministerial nº 04 de maio de 2013, emitida com

fundamento nos §§ 1º e 2º do art. 4º e no inc. IV do art. 15 da Lei 11.494, de 2007

(doc. 98 – parte final).

Nº de

crianças

Custo ao

município (R$)

% do

orçamento

Custo ao município

deduzindo o repasse do

FUNDEB (R$)

% do orçamento

deduzindo o

repasse do

FUNDEB

10.000 96.417.300,00 1,34% 66.564.200,00 0,92%

14.000 134.984.220,00 1,87% 93.189.880,00 1,29%

Além do inexpressivo impacto orçamentário, conforme acima foi

narrado, é de total relevância para a análise da inaplicação da teoria da reserva do

possível ao caso concreto, a existência de uma série de despesas públicas

assumidas pelo Município de Curitiba, as quais, em absoluto, não se mostram

imprescindíveis. Em razão disso, não se confere a prioridade absoluta à política da

educação infantil.

Exemplo emblemático do que se está a tratar são as despesas

assumidas pelo Município de Curitiba, por ocasião do Evento Copa 2014, apuradas,

em abril de 2014, na ordem de R$ 173.000.000,00 (Fonte: Gazeta do Povo de

30.04.2014 – doc. 106). Apenas o viaduto estaiado consumirá mais R$

84.000.000,00, com o agravante que se trata de opção administrativa calcada

apenas em aspectos estéticos, pois viadutos mais tradicionais custam

expressivamente menos (Disponível: http://solucoesdagua.com/noticias/2010-

06/obra-da-copa-mais-uma-etapa-da-ponte-estaiada-fica-pronta - doc. 118).

Para fins de cotejo, vale lembrar que um CMEI, para 200 crianças,

custa, aproximadamente, R$ 2.000.000,00 ao Município. Uma conta simples: com os

recursos investidos na Copa Fifa 2014, para realizar 04 jogos em Curitiba, daria para

construir 86 CMEIs, atendendo 17.200 crianças, trazendo benefícios permanentes a

todas elas. Parece legítimo que o Judiciário interceda em atos de governo que

priorizem eventos esportivos de duração efêmera, em detrimento de políticas

públicas concretizadoras de direitos fundamentais, de efeitos eternos, não somente

às crianças, mas a toda sociedade.

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4.6 Da proibição do retrocesso social

O princípio da proibição do retrocesso social impede que sejam

desconstituídas as conquistas já alcançadas, o que encontra plena aplicação

perante a situação do ensino em tempo integral. Equivale a dizer que o Poder

Público não pode reduzir ou suprimir a concretude dos direitos já efetivados. Ao

contrário, deve preservar o que já fora constituído de modo a garantir a proteção e a

segurança do sistema jurídico-constitucional.

Esta é a realidade de Curitiba: “Curitiba também se destaca por

oferecer atendimento em tempo integral (mais de 7 horas) nas creches públicas,

para quase 100% das crianças, com média de horas/aula de 11 horas” (Ofício

181/2014-SME, de 07.05.2014 – doc. 111).

Vale dizer, se o ensino já vem sendo ofertado em período integral, as

ofertas futuras não podem contemplar apenas o meio período. Aliás, o período

integral é a tendência no tratamento da educação no Brasil, conforme se extrai dos

seguintes indicativos, trazidos apenas exemplificativamente: i) art. 29 da Lei

9.394/1996; ii) inc. I do art. 3º do Decreto nº 7.083, de 27.01.201016; iii) inc. XXV do

art. 7º da Constituição Federal17; iv) Agravo de Instrumento nº 70028343515, 7ª.

Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. em 13.05.200918; iv)

Apelação Cível nº 70024360638, 7ª. Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. André Luiz

Planella Villarinho, j. em 11.03.200919; v) Agravo de Instrumento nº 70026479543,

16

Art. 3º São objetivos do Programa Mais Educação: I – formular política nacional de educação básica em tempo integral; 17

Art. 7º, CF. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas; 18

Agravo de instrumento. Estatuto da Criança de do Adolescente. Direito à Educação. Fornecimento de vaga em creche a crianças de idade entre zero a seis anos. Impossibilidade de limitação horária (meio turno apenas) ao fornecimento das vagas, em detrimento dos interesses da população. Recurso Desprovido. Agravo de instrumento. 19

APELAÇÃO CÍVEL. ECA. EDUCAÇÃO. VAGA EM ESTABELECIMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL. TURNO INTEGRAL. DIREITO FUNDAMENTAL DA CRIANÇA À EDUCAÇÃO. A Constituição Federal, em seu art. 208, IV, garante ao infante de até cinco anos o direito à educação, assegurando-lhe o atendimento em creche ou pré-escola. A Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação, em seu art. 11, V, atribuiu aos Municípios a competência para garantir a educação infantil. A educação infantil, segundo o art. 29 da Lei 9.394/96, visa o desenvolvimento integral da criança, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. A implementação da educação infantil em turno

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Sétima Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. Vasco Della Giustina, j. em 19.11.200820,

entre outros.

Assim é que, considerada a dimensão que a educação infantil está

inserida, bem como a pluralidade de sujeitos que dela se beneficiam – aqui

atingindo, além das crianças, seus respectivos pais e/ou responsáveis – deve ela

(educação infantil) atender às necessidades de ambos, reforçando-se, desta forma,

a importância de assegurar a oferta em período integral.

A implementação da educação infantil em turno integral garante às

crianças de até cinco anos o direito ao ensino na forma mais ampla, além de evitar

sua exposição a situações de risco, o que guardaria plena convergência com o

Princípio da Proteção Integral.

Em acórdão proferido pelo Min. Celso de Mello, no Agravo Regimental

no Recurso Extraordinário com Agravo nº 639.337, do Supremo Tribunal Federal,

entendeu-se que a cláusula da proibição do retrocesso em matéria de direitos

prestacionais impede que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez

atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado,

conforme teor da ementa abaixo:

A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto

integral garante aos menores de seis anos o direito ao ensino na forma mais ampla, além de evitar que se exponham a situações de risco. APELAÇÃO PROVIDA. 20

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DIREITO Á EDUCAÇÃO. VAGA PARA EDUCAÇÃO INFANTIL - CRECHE - EM TURNO INTEGRAL. GARANTIA FUNDAMENTAL. DIREITO SOCIAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO EM SENTIDO AMPLO, AÍ INCLUÍDO O MUNICÍPIO DE SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ. ARTS. 6º E 208 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART.54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRECEDENTES. AGRAVO DESPROVIDO.

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constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.

Assim, o Município de Curitiba, de acordo com a vedação do

retrocesso social, não pode restringir a oferta no período integral. Reduzir esta

política pública seria retroceder no que já foi avançado, inadmissível quando se trata

de direitos fundamentais.

4.7 Abordagem doutrinária e jurisprudencial acerca do controle judicial das

políticas públicas voltadas à efetivação do direito à educação infantil

O direito à educação infantil deve ser assegurado pelo Poder Público,

no caso o Município (CF, art. 211, § 2º), consoante dever expresso no inc. IV do art.

208 da Constituição Federal, “sob pena de configurar-se inaceitável omissão

governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento,

pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da

Constituição Federal” (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337).

Afinal, pondera Ana Paula de Barcellos:

Se a Constituição contém normas nas quais estabeleceu fins públicos prioritários, e se tais disposições são normas jurídicas, dotadas de superioridade hierárquica e de centralidade no sistema, não haveria sentido em concluir que a atividade de definição das políticas públicas – que irá, ou não, realizar esses fins – deve estar totalmente infensa ao controle jurídico. Em suma: não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas apenas da limitação do primeiro pelo segundo21.

Merece destaque acórdão paradigmático do Supremo Tribunal Federal,

lavrado pelo Min. Celso de Mello, no qual todos os parâmetros que norteiam a

discussão foram enfrentados:

EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA

21 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas

públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, jan.-mar./2007, Salvador, p. 14.

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DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA – QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” – INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (STF. AgReg. no RE com Agravo 639.337–SÃO PAULO. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.08.2011)

Ada Pellegrini Grinover sintetiza a possibilidade do controle judicial

sobre as políticas públicas:

Diante de todo o exposto, podem ser assentadas as seguintes conclusões: a) o Poder Judiciário pode exercer o controle das políticas públicas para

aferir sua compatibilização com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º da CF/88);

b) esse controle não fere o princípio da separação dos Poderes, entendido como vedação de interferência recíproca no exercício das funções do Estado;

c) consequentemente, o Judiciário pode intervir nas políticas públicas – entendidas como programas e ações do Poder Público objetivando atingir os objetivos fundamentais do Estado – quer para implementá-las, quer para corrigí-las quando equivocadas;

d) há limites postos à intervenção do Judiciários em políticas públicas. Tais limites são: (i) a restrição à garantia do mínimo existencial; (ii) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha do agente público; (iii) a reserva do possível;

e) a estrita observância desses limites, assim como o correto entendimento do que sejam políticas públicas, são necessários e suficientes para coibir os excessos do Poder Judiciário;

f) para fazer face ao descumprimento da ordem ou decisão judicial pelo Poder Público, sem embargo da aplicação de astreintes – pouco adequadas quando se trata da Fazenda Pública –, as sanções mais

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eficazes são a responsabilização por improbidade administrativa e a intervenção federal ou estadual no Estado ou Município; e, em âmbito mais limitado, a imputação ao Prefeito Municipal de crime de responsabilidade;

g) todas as espécies de ações – coletivas, individuais com efeitos coletivos, ou meramente individuais – são idôneas a provocar o controle e a eventual intervenção do Judiciário nas políticas públicas.22

Luiza Cristina Fonseca Frischeisen aborda a questão da restrição das

margens de discricionariedade do ato administrativo em função do dever de

concretização de políticas públicas voltadas aos direitos fundamentais:

Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer. [...] Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração. [...] As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional. (Frischeisen, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 59, 95 e 97)

Dois aspectos presentes no caso concreto reforçam esta possibilidade

de intervenção. Em primeiro lugar, não se está a deduzir qualquer pretensão que já

não tenha sido legalmente prevista. Vale dizer, não se postula a formulação de

política pública inovadora, mas, tão somente, a formulação de política pública

consentânea com o ordenamento jurídico, especialmente concatenada com a

principiologia constitucional.

22 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle de Políticas Públicas pelo Poder Judiciário. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo: Revista dos Tribuanais. Vol. 42, out./2008, p. 13.

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Em segundo lugar, em razão dos contornos prioritários e peculiares da

educação infantil, as respectivas politicas públicas, desenvolvidas neste segmento,

têm sido objeto, sem qualquer restrição, do controle judicial, conforme demonstra a

coletânea de julgados a seguir reproduzida em suas ementas.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal:

CRECHE E PRÉ-ESCOLA - OBRIGAÇÃO DO ESTADO - IMPOSIÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE NÃO VERIFICADA - RECURSO EXTRAORDINÁRIO - NEGATIVA DE SEGUIMENTO. 1. Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado à educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. O Estado - União, Estados propriamente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios - deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. Eis a enorme carga tributária suportada no Brasil a contrariar essa eterna lengalenga. O recurso não merece prosperar, lamentando-se a insistência do Município em ver preservada prática, a todos os títulos nefasta, de menosprezo àqueles que não têm como prover as despesas necessárias a uma vida em sociedade que se mostre consentânea com a natureza humana. 2. Pelas razões acima, nego seguimento a este extraordinário, ressaltando que o acórdão proferido pela Corte de origem limitou-se a ferir o tema à luz do artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal, reportando-se, mais, a compromissos reiterados na Lei Orgânica do Município - artigo 247, inciso I, e no Estatuto da Criança e do Adolescente - artigo 54, inciso IV. 3. Publique-se. (STF. Decisão Monocrática. RE 356.479-0. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 30.04.04. DJ 24/05/04. Destacou-se) CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

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- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-Administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina. (STF. RE 436.996/SP. Rel. Min. Celso de Mello. J. 26.10.2005)

No mesmo sentido: i) STF. RE 463.210 AgR. Rel. Min. Carlos Velloso.

J. 06.12.2005; ii) STF. AI 592.075 AgR. Rel. Min. Ricardo Lewandoeski. J.

19.05.2009; iii) STF. RE 554075. Rel. Min. Cármen Lúcia. J. 30.06.2009; iv) STF. RE

464.143 AgR. Rel. Min. Ellen Gracie. J. 15.12.2009; v) STF. RE 482.611/SC. Rel.

Min. Celso de Mello. J. 23.03.2010; vi) STF. AI 809.018-AgR. Rel. Min. Dias Toffoli.

DJe 10.10.2012.

Recentemente, de forma ainda mais incisiva, o STF manteve decisão

que havia determinado ao Poder Público que procedesse à reforma de

estabelecimento de ensino:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. INTERVENÇÃO EXCEPCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (STF. Ag. Reg. No RExt. 788.170-DF. Rel. Min. Cármen Lúcia. J. 22.04.2014).

Neste acórdão, destaca-se o controle judicial mais verticalizado da

política pública educacional, pois se considerou que o zelo na manutenção das

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instalações físicas nas quais o ensino é ministrado, autoriza a intervenção judicial.

Adentrou-se, portanto, não apenas na oferta da educação, em si, como também na

qualidade do serviço.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO CONSTITUCIONAL À CRECHE EXTENSIVO AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS. NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA. 1- O direito constitucional à creche extensivo aos menores de zero a seis anos é consagrado em norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Violação de Lei Federal. "É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II – progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de (zero) a 6 (seis) anos de idade. 2 - Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados ao segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado. 3 - Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública. 4 – A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. 5 - Um País cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à

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educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais. 6 - Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional. 7 - As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação. 8 - Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária. 9 - Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e aluar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional. 10 – 0 direito do menor à frequência em creche, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana. 11 - O Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer incluindo o menor numa 'fila de espera', quer sugerindo uma medida que tangendo a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe às vezes. 12- Recurso especial provido. (STJ. Primeira Turma. RESP 575.280/SP. J. 09.09.2004. DJU 25.10.2004. Rel. para o acórdão Min. Luiz Fux. Destacou-se)

No mesmo sentido: STJ. REsp. 440.502/SP. Rel. Min. Herman

Benjamin. J. 15.12.2009.

A tendência do E. Tribunal de Justiça do Paraná é no mesmo sentido: i)

TJPR. Agravo de Instrumento nº 683250-8. Rel. Juíza Sandra Bauermann. J.

20.09.2011; ii) TJPR. Apelação Cível 827.127-6. Rel. Des. Abraham Lincoln Calixto.

J. 17.04.2012; iii) TJPR. Reexame Necessário 1.170.370-1. Rel. Des. Maria

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Aparecida Blanco de Lima. J. 26.02.2014; iv) TJPR. Apelação Cível e Reexame

Necessário 1114259-5. Rel. Des. Antenor Demeterco Junior. J. 01.04.2014; v) TJPR.

Reexame Necessário 1.202.789-9. Rel. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia. J.

15.04.2014.

Conclui-se, portanto, no sentido da nítida convergência entre a doutrina

e a jurisprudência acerca da admissibilidade, ainda que cautelosa, do controle

judicial das políticas públicas.

5. DAS ALTERNATIVAS DE AJUSTES NA POLÍTICA PÚBLICA VOLTADA À

EDUCAÇÃO INFANTIL

Demonstrou-se que a educação infantil, sem se ingressar no campo de

sua indispensabilidade sob os aspectos pedagógicos, neurológicos e sociais, é

assegurada a todas as crianças, tanto no plano constitucional, quanto no

infraconstitucional.

De igual forma, apresentou-se o déficit de oferta de vagas para a

educação infantil no Município de Curitiba, o que aliás, reitera-se, nem mesmo o

Município discorda.

Logo, constata-se a insuficiência da política pública municipal voltada à

oferta da educação infantil, sendo necessária a interferência judicial, não para ditar a

política pública adequada, como se lhe fosse facultado substituir o administrador,

mas para determinar a readequação desta política, de forma que direitos

constitucionais e elementares sejam assegurados.

O ajuste nesta política, de maneira a permitir o acesso de todas as

crianças que manifestaram o interesse em frequentar esta etapa do ensino, pode

ocorrer de diferentes modos, sempre a critério do administrador que, para tanto,

dispõe de certa discricionariedade, na qual, por óbvio, não se ingressará. Afinal, a

Constituição fixa, de forma vinculante, fins ou metas que devem obrigatoriamente

ser cumpridos pelo Poder Público, mas como atingir esses fins cabe ao Poder

Público definir23.

23

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, n. 15, jan.-mar./2007, Salvador, p. 23.

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A maneira mais ortodoxa para a oferta do serviço decorre da

destinação de verbas orçamentárias suficientes para a sua prestação pela própria

Administração Pública.

Em relação à demanda absoluta (EC/59), não há dúvidas, esta seria a

única medida adequada. Vale dizer, a formulação de política pública que contemple

a construção e a implantação de Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs),

em número suficiente a universalizar o serviço.

Já quanto à demanda manifesta, considerando a existência de mais de

10.000 crianças em lista de espera e, ainda, a necessidade de atendimento imediato

desta demanda, talvez não se faça viável a prestação direta do serviço, ao menos

no curto prazo.

Diante disso, um encaminhamento possível, sempre a critério do

administrador, seria o estabelecimento de parcerias com o setor privado, por meio

da celebração de convênios com instituições particulares, de modo a permitir que

nelas sejam matriculadas, às expensas do município, as crianças que procurem o

serviço, tudo conforme prevê o art. 461 e parágrafos do Código de Processo Civil.

Observa-se que o custo decorrente das mensalidades no segmento privado não

difere significativamente do custo do aluno no setor público (Tabela do SINEPE –

doc. 438).

Vê-se, para tanto, que o segmento privado dispõe, conforme dados do

ano de 2014, de mais de 5.000 vagas ociosas, sendo que “esta capacidade

instalada pode ser ampliada conforme a necessidade do município dentro de um

contexto de parceria com o poder público” (Informação do Sindicato das Escolas

Particulares – doc. 81).

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tratou desta hipótese:

AÇÃO ORDINÁRIA. ECA. DIREITO À EDUCAÇÃO. DEVER DO MUNICÍPIO. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS PARA DEFENSORIA PÚBLICA. DESCABIMENTO. Constitui dever do Município assegurar às crianças o acesso à educação, cabendo-lhe garantir vaga na rede pública ou, então, na rede privada, às suas expensas. (TJRS. Apelação Cível 70047246434 – destacou-se).

No mesmo sentido: TJRS. AI 70020645198. J. 24.10.2007.

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Esta medida seria admissível temporariamente, até que o Município se

estruture para a prestação direta do serviço.

6. DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA

A antecipação dos efeitos da tutela decorre da presença dos requisitos

da verossimilhança das alegações deduzidas pelo autor e de fundado receio de

dano irreparável e de difícil reparação (CPC, art. 273).

Sobre a plausibilidade da pretensão, há que se destacar a plena

exigibilidade do referido direito fundamental, de caráter indisponível, conforme foi

largamente sustentado ao longo da fundamentação jurídica desenvolvida nesta

petição inicial. Além disso, observou-se que a demanda existente é questão que

restou incontroversa no transcurso do Inquérito Civil.

Quanto ao dano irreparável, constata-se a absoluta urgência em se

ofertar as vagas para a educação infantil às crianças que integram a lista de espera

(atual e futura), considerando-se, dentre outros motivos, os efeitos maléficos e

irreversíveis que a omissão aqui tratada é capaz de produzir. Vale dizer, a

possibilidade de atendimento ao direito à educação infantil somente é viável nos

primeiros anos de vida. Caso esse direito não seja efetivado, exsurge seu

perecimento.

Destaca-se que cercear crianças do direito à educação infantil implica

em trazer-lhes prejuízos irreparáveis, pois já foram estudados os efeitos maléficos

que as crianças que não recebem a educação infantil suportam, irreversivelmente,

ao longo da vida. Exemplo disso são as conclusões dos estudos e pesquisas da

Fundação Carlos Chagas com o apoio do Banco Mundial e pesquisas longitudinais

desenvolvidas nos Estados Unidos. Estas pesquisas mostram que a variável

“frequência à pré-escola” foi a que demonstrou maior impacto sobre as notas obtidas

pelas crianças nas provas de linguagem e matemática.

Enfim, faz-se imprescindível considerar que o direito que se busca não

se presta, apenas, a assegurar resultados futuros, mas também diz respeito às

vivências que proporciona à criança nesta fase da vida. A restrição implica na

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subtração desta experiência e, consequentemente, na diminuição da vida, em seu

aspecto qualitativo.

Traz-se, como paradigma, julgamento do Supremo Tribunal Federal, o

qual indeferiu pedido de suspensão de liminar que buscava sobrestar liminar que

determinara o imediato fornecimento de vagas em creche aos munícipes (STF.

Suspensão de Liminar n. 720/SP. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. J. 24.01.2014).

O E. Tribunal de Justiça do Paraná tem admitido a antecipação de

tutela, em casos idênticos, sendo oportuno destacar acerca da análise quanto à

presença dos requisitos que autorizam sua concessão:

O perigo de dano irreparável ou de difícil reparação reside, como bem anotou o douto representante do Parquet, na impossibilidade da população infantil de Ivaiporã receber educação adequada, fator este que pode gerar prejuízos irreversíveis aos infantes, vez que se encontram em importante etapa de desenvolvimento físico, psicológico e intelectual. (TJPR. Agravo de instrumento 1.221.559-3. Rel. Juíza de Direito Substituta em 2º Grau Fabiana Silveira Karam. J. 19.05.2014)

No mesmo sentido: TJPR. Agravo em suspensão de liminar 1.152.243-

1/01. Rel. Des. Guilherme Luiz Gomes. J. 02.12.2013.

Desta forma, e, presentes os requisitos necessários, requer o Ministério

Público seja concedida medida liminar, determinando que o Município de Curitiba,

até o início do próximo ano letivo, promova o atendimento em creche e pré-escola,

em período integral (manhã/tarde) a todas as crianças constantes na lista de

espera (cerca de dez mil crianças), assim como todas aquelas que vierem a integrá-

la.

Do mesmo modo, há que se tratar a demanda absoluta, referente ao

ensino pré-escolar, voltado às crianças de 04 e 05 anos, conforme estabelece a

Emenda Constitucional 59/2009, no sentido da universalização progressiva, até o

início do ano letivo de 2016.

É cabível e necessária a antecipação dos efeitos da tutela, também em

relação a esta demanda absoluta, pois seu atendimento, além de ser progressivo

desde a Emenda Constitucional, deverá ser universalizado no início do ano letivo de

2016. Assim, a verba orçamentária destinada para tanto, deverá estar contemplada

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na Lei Orçamentária para 2015, cujo prazo para proposta pelo Executivo é 31 de

agosto de 2014 (ADCT, art. 35, par. 2º; CF, art. 57).

Logo, o periculum in mora é ainda mais evidenciado, pois até 31 de

agosto de 2014, deverá o Município prever na proposta de Lei Orçamentária, os

recursos necessários para o atendimento pleno da educação infantil, considerando a

demanda manifesta (lista de espera), assim como a absoluta (EC 59/2009).

Desta forma, e, presentes os requisitos necessários, requer o Ministério

Público seja concedida medida liminar, determinando que o Município de Curitiba,

contemple no Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2015, a ser encaminhado

até 31 de agosto de 2014, os recursos necessários para o atendimento da demanda

absoluta (EC 59/2009), de maneira universalizada, até o início do ano letivo de 2016.

Deverá ser determinado também que o Município promova as adequações

necessárias no Plano Plurianual (2014-2017) e no Projeto de Lei de Diretrizes

Orçamentárias (2015).

Por fim, é preciso que se antecipe os efeitos da tutela, para determinar

que o Município promova a ampla divulgação das listas de espera, referentes à

demanda manifesta, de forma a possibilitar a fiscalização quanto ao cumprimento

das decisões judiciais a serem proferidas.

Na hipótese do Município de Curitiba não providenciar o quanto

requerido, no prazo mencionado, requer o Ministério Público seja o Sr. Prefeito

Municipal condenado a arcar com multa cominatória diária de R$ 1.000,00 (um mil

reais), nos termos do § 2º do art. 213 da Lei 8.069/90 e § 2º do art. 12 da Lei

7.347/85, valor esse que deverá ser destinado ao fundo gerido pelo Conselho dos

Direitos da Criança e do Adolescente deste Município, na forma do art. 214 do

Estatuto da Criança e do Adolescente c/c os arts. 11 e 13 da Lei 7.347/85.

A multa deverá ser aplicada também ao Município, considerando que

inexiste óbice à utilização, em face de pessoas jurídicas de direito público, da multa

cominatória prevista no § 5º do art. 461 do CPC. Requer o Ministério Público que a

multa ao Poder Público seja fixada no valor de R$ 100.000,00 por dia. Sabe-se que

a “astreinte”, com precípua função coercitiva, tem por finalidade específica compelir,

legitimamente, o devedor, a cumprir o preceito.

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7. DOS PEDIDOS FINAIS

Ante o exposto, requer:

1. A antecipação dos efeitos da tutela para determinar ao Município de Curitiba,

observada a manifestação prévia no prazo de 72h, nos termos da Lei

8.437/92, que oferte a educação infantil, até o início do próximo ano letivo, às

dez mil crianças que atualmente aguardam vaga em lista de espera,

destacando-se, desde já, a inclusão no provimento também daquelas

crianças que vierem a pleitear vagas durante a instrução do presente

processo, as quais, da mesma forma, deverão ser incluídas na rede municipal

de ensino.

2. A antecipação dos efeitos da tutela para determinar ao Município de Curitiba,

observada a manifestação prévia no prazo de 72h, nos termos da Lei

8.437/92, que reestruture, desde já, a política pública voltada à educação

infantil, de forma tal que os planos de atuação contemplem o atendimento à

demanda absoluta, referente à educação infantil para a faixa etária de 04 e 05

anos - pré-escola (mais de 15.000 crianças, ressalvado que, em sendo dado

atendimento imediato às crianças em lista de espera - demanda manifesta, a

demanda absoluta seria reduzida para cerca de 14.000 crianças, pois cerca

de 1.000 crianças entre 04 e 05 anos também constam da lista de espera) até

o início do ano letivo de 2016.

3. A antecipação dos efeitos da tutela para determinar ao Município de Curitiba

que publique a lista de espera, por estabelecimento de ensino, referente às

crianças – nominalmente, que já manifestaram o interesse em cursarem a

educação infantil e não tiveram seu direito assegurado.

4. A antecipação dos efeitos da tutela para determinar ao Município de Curitiba

que contemple, nas leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA), os recursos

necessários para o atendimento da demanda manifesta e da demanda

absoluta, decorrente da EC 59/2009. Para tanto, é preciso que se observem

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os prazos das leis orçamentárias: i) em relação ao Plano Plurianual (2014-

2017), já sancionado, é preciso que se promova a alteração, mediante nova

Proposta Legislativa; ii) em relação à Lei de Diretrizes Orçamentárias para o

ano de 2015, já foi encaminhado o Projeto de Lei pelo Executivo, porém é

possível a alteração, mediante proposta do Município, considerando-se, para

tanto, o prazo de devolução, pelo Legislativo, até 17 de julho de 2014 (ADCT,

art. 35, par. 2º; CF, art. 57); iii) em relação à Lei Orçamentária Anual, para o

ano de 2015, o prazo para encaminhamento do Projeto de Lei pelo Executivo

é 31 de agosto próximo (ADCT, art. 35, par. 2º; CF, art. 57).

5. O cumprimento da decisão liminar deverá ser compelido, mediante a fixação

de multa diária: i) no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais), a recair na pessoa

do Sr. Prefeito Municipal; ii) no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), a

recair no Município de Curitiba. Estes valores deverão ser destinados ao

fundo gerido pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente deste

Município, na forma do art. 214 do Estatuto da Criança e do Adolescente c/c

os arts. 11 e 13 da Lei 7.347/85.

6. A citação do Município de Curitiba, na pessoa de seu representante legal,

para contestar, querendo, a presente ação, sob pena de revelia.

7. A procedência do pedido para condenar o Município de Curitiba na obrigação

de fazer, consistente em promover as adequações em sua política pública

voltada à educação infantil, conforme acima foi explicitado, para que promova

a matrícula na educação infantil, em período integral e em estabelecimento

próximo à residência da família, de todas as crianças constantes nas listas de

espera, o que, atualmente, ultrapassa dez mil vagas (demanda manifesta). O

provimento deve ser estendido às crianças que, ao longo da demanda, vierem

a integrar a referida lista de espera.

8. A procedência do pedido para condenar o Município de Curitiba na obrigação

de fazer, consistente em promover as adequações em sua política pública

voltada à educação infantil, em período integral e em estabelecimento

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próximo à residência da família, para que, nos termos da EC-59/2009, a

demanda absoluta, referente às crianças que completarem 04 e 05 anos ao

longo do ano letivo de 2016 (mais de 15.000 crianças, ressalvado que, em

sendo dado atendimento imediato às crianças em lista de espera - demanda

manifesta, a demanda absoluta seria reduzida para cerca de 14.000 crianças,

pois cerca de 1.000 crianças entre 04 e 05 anos também constam da lista de

espera), seja atendida progressivamente, sendo universalizada até o início do

ano letivo de 2016.

9. A procedência do pedido para condenar o Município de Curitiba na obrigação

de fazer, consistente na publicação nominal da lista de espera, por

estabelecimento de ensino, referente às crianças que já manifestaram o

interesse em cursarem a educação infantil e não tiveram seu direito

assegurado.

10. A procedência do pedido para condenar o Sr. Prefeito Municipal de Curitiba,

no pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), em caso de

descumprimento da sentença judicial, com fundamento no § 2º do art. 213 da

Lei 8.069/90 e § 2º do art. 12 da Lei 7.347/85, valor este que deverá ser

destinado ao Fundo gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e

do Adolescente, na forma do art. 214 do Estatuto da Criança e do

Adolescente c/c os arts. 11 e 13 da Lei 7.347/85.

11. A procedência do pedido para condenar o Município de Curitiba no

pagamento de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de

descumprimento da sentença judicial, com fundamento no § 2º do art. 213 da

Lei 8.069/90 e § 2º do art. 12 da Lei 7.347/85, valor este que deverá ser

destinado ao Fundo gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e

do Adolescente, na forma do art. 214 do Estatuto da Criança e do

Adolescente c/c os arts. 11 e 13 da Lei 7.347/85.

12. A produção de todas as provas legalmente admissíveis, especialmente a

juntada do anexo Inquérito Civil nº MPPR-0046.13.000743-1 e do Inquérito

Civil nº MPPR-0046.11.003305-0, a inquirição de testemunhas (já arroladas),

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a juntada de documentos (nos termos do art. 397 do CPC) e exames periciais

que se fizerem necessários.

13. A condenação do Município de Curitiba no pagamento de encargos de

sucumbência e demais cominações legais, cujo montante deverá ser

destinado ao Fundo Especial do Ministério Público, criado pela Lei Estadual

nº 12.241, de 28.07.1998.

Dá-se à causa para efeitos meramente fiscais, o valor de R$ 1.000,00

(mil reais).

Nestes termos, Pede deferimento. Curitiba, 30 de junho de 2014.

Hirmínia Dorigan de Matos Diniz Promotora de Justiça

Relação dos principais documentos juntados:

Nº do doc.

Natureza do documento

Conteúdo do documento

Doc. 14

Ofício 608/2013-PGM-ACE

Programa de Trabalho da SME – ano 2013

Lista de Espera (demanda manifesta)

Doc. 27

Estimativa da demanda para a educação infantil, na faixa etária de 04 a 05 anos, de 43.827 crianças.

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Doc. 30

Dados oficiais fornecidos pelo IPARDES/IBGE,

relativos à educação infantil.

Docs. 40 a 44

Proposta de TAC apresentada pelo Ministério

Público.

Doc. 48

Proposta de Lei Orçamentária – 2014

Doc. 49

Plano Plurianual 2014-2017

Doc. 57

Contraproposta ao TAC, apresentada pelo

Município.

Doc. 76

Resposta do Município de Curitiba ao Conselho

Tutelar do Bairro de Santa Felicidade,

informando que não há liberações de reformas

e/ou construção de CMEIs, até o presente

momento, para o ano de 2014, na Regional de

Santa Felicidade.

Doc. 84

Despacho proferido no Inquérito Civil

determinando que a problemática chegasse

formalmente ao conhecimento do Prefeito

Municipal, solicitando audiência com a referida

Autoridade, para a explanação dos fatos.

Doc. 110

Relatório de Auditoria do Ministério Público.

Doc. 111

Declaração do Município de que a política

pública da educação infantil é “planejada,

eficiente e com metas para os próximos anos

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...”.

Doc. 125

Tabela contendo o número de Procedimentos

Preparatórios de mais de 11.000 crianças que

requereram matrícula na educação infantil e não

foram atendidas.

Doc. 254

Cientificação do Sr. Prefeito da existência do

Inquérito e da necessidade de adequação da

política pública voltada à educação infantil, antes

e depois de sua posse no cargo.

Doc. 307

Ofício nº 542/2013-PJEduc.

Cientificação do Exmo. Sr. Prefeito Municipal de

que os recursos necessários à gradativa

universalização da pré-escola deveriam estar

previstos no Projeto de Lei relativo ao Plano

Plurianual.

Doc. 440

Tabela de requisições de vagas à Secretaria

Municipal da Educação.

Doc. 444

Tabela numérica

Dados atualizados do documento 125.

Doc. 446

Tabela nominal

Relação nominal de mais de 11.000 crianças

atendidas pelo Ministério Público e pelos

Conselhos Tutelares, as quais tiveram

matrículas negadas nos CMEIs.

Rol de testemunhas (suprimido)

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